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Cadernos de Ciência & Conservação

- História da Arte Técnica -


v.1. n2, jan.2014

Yacy-Ara Froner
(organização)
CADERNOS DE CIÊNCIA & CONSERVAÇÃO
- História da Arte Técnica -
v.1. n2, jan.2014

Yacy-Ara Froner
(organização)
© 2014, Centro de Conservação e Restauração; Programa de Pós-Graduação em
Artes - EBA-UFMG.

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reproduzida ou transmitida, sejam quais forem os meios empregados, sem citação
da fonte e créditos devidos.

O conteúdo e a redação dos artigos é de responsabilidade de seus autores.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Biblioteca da Escola de Belas Artes da UFMG, MG, Brasil)
FRONER, Yacy-Ara org.
Cadernos de Ciência & Conservação - História da Arte Técnica. (v.1,
n.2. : 2014 : Belo Horizonte)
Cadernos de Ciência & Conservação - História da Arte Técnica
(nov.2011), Belo Horizonte, jun. de 2014. - Belo Horizonte: PPGA-
EBA-UFMG, 2014-
222p. : il.
Inclui Bibliografia
Artigos em vários idiomas
ISSN:
1. Artes, 2. Conservação-Restauração. I. Universidade Federal
de Minas Gerais. Escola de Belas Artes. II Organizador III. Título
IV.Série
CDD: 700
CDU: 7
Cadernos de Ciência & Conservação

Universidade Federal de Minas Gerais


Reitor: Jayme Arturo Ramíres
Pro-Reitor de Pós-Graduação: Rodrigo Antônio de Paiva Duarte

Escola de Belas Artes


Diretor da Escola de Belas Artes: Maria Beatriz Mendonça
Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Artes: Mariana de Lima e Muniz

Centro de Conservação e Restauração


Diretora do CECOR: Bethânia Reis Veloso
Editora: Yacy-Ara Froner

Comissão Científica
Alexandre Leão
Isolda Maria Mendes
Luiz Antônio Cruz Souza
Magali Melley Sehn
Yacy-Ara Froner Gonçalves

Realização
Grupo de Pesquisa ARCHE
Grupo de Pesquisa LACICOR
Grupo de Pesquisa i-LAB
www.eba.ufmg.br/sppgrad
Editorial
O campo científico da Conservação e da Restauração cada vez se expande

Teoria e contexto
mais e abarca diversas áreas do conhecimento: das Ciências Humanas, as
bases da Filosofia, das Ciências Sociais, da História, da Antropologia, da
Etnologia, da Arqueologia, da Museologia, da Arquitetura, da Ciência da

Ciência & Conservação


Informação, da Arquivologia, da Biblioteconomia e das Artes, fornecem
os objetos e as bases teóricas para seu reconhecimento epistemológico.
Das Ciências Exatas, a Química, a Física, a Engenharia e a Ciência da
Computação disponibilizam as ferramentas indispensáveis para uma
ação acurada. Das Ciências Biológicas, a Biologia, a Botânica, a Ecologia
e as Ciências Ambientais dispõem suas estruturas fundamentais para a
compreensão da matéria e do entorno.

No entanto, há uma frase de Torraca que adverte quanto às atitudes de


cientistas quando chamados para atuar dentro da Ciência da Conservação:
por considerá-la um domínio subdesenvolvido, do ponto de vista científico,
tendem a transferir suas experiências e métodos sem avaliar as
especificidades que envolvem um bem cultural, en conséquence, ils sont tentés
de transférer directement à la conservation idées préconçues, équipement et procédés
venus de leur champ antérieur de spécialisation. C’est seulement après quelques
expériences malheureuses qu’ils aparennent que le problème n’est pas si simple; la
terre de la conservation est pleine de pièges, et les indigènes sont frèquemment hostiles
(TORRACA, apud BERDUCOU, 1990, p.14).

Mais uma vez, com o intuito de reforçar a presença desse campo de estudo
na UFMG, realizamos o segundo evento, direcionado nessa edição à História
da Arte Técnica. Assim, a série Ciência & Conservação apresenta o conjunto
das discussões epistemológicas e relatos que foram disponibilizados no
encontro de 2011. Esperamos, ao longo deste projeto, contribuir para a
consolidação da área de pesquisa da Ciência da Conservação e dar maior
visibilidade às ações institucionais.
5
Dra. Yacy-Ara Froner
Organização
Sumário

História da Arte Técnica


Primeira Parte: HISTÓRIA DA ARTE TÉCNICA
Antonio Sgamellotti - Il laboratorio mobile MOLAB, per indagini non
invasive in situ nell’arte moderna e contemporanea (09)

Ciência & Conservação


Yacy-Ara Froner - Vulnerabilidade de Acervos Científicos (22)
Márcia Almada - Segredos necessários à Caligrafia e Pintura em Manuscritos
– Século XVIII (38)
Aloisio Arnaldo Nunes De Castro - O Restaurador de quadros e o Con-
servador da Pinacoteca: reflexões históricas (53)
Lucienne Maria de Almeida Elias et alii- Conservação do Conjunto Es-
cultórico da Capela da Ceia - Santuário Senhor Bom Jesus de Matosinhos em
Congonhas, MG (69)

Segunda Parte:
Questões de Conservação de Arte
MODERNA E Contemporânea

Claudina Dutra Moresi et alli. Pesquisa Guignard (86)


Ana Cecilia Nascimento Rocha Veiga – Arquitetura contemporânea de 6
museus: coadjuvante ou protagonista? (100)
Ana Paula Silva – Oneyda Alvarenga e Mario de Andrade: interlocuções na
construção do patrimônio cultural (107)
Amanda Cordeiro et alii - Conversa entre Parceiros: futuros artistas e fu-
turos conservadores (118)
Camilla Vitti Mariano – Materiais Plásticos no acervo da Pinacoteca do
Estado de São Paulo: a Fonte das Nanás de Niki de Saint Phalle (130)

História da Arte Técnica


Tatiana Duarte Penna – Acervo de artista: uma contribuição na conservação
da Arte Contemporânea (142)

Ciência & Conservação


Terceira Parte:
Documentação Científica de
Bens Culturais

Ana Clara Mourão – Geotecnologias na Gestão do Patrimônio Ambiental,


Histórico e Cultural (151)

Marcelo Coelho et alii – Projeto panorâmica virtual para cidades históricas


– cidade virtual (165)

João Cura D’Ars – Métodos Eletroquímicos de Análise como ferramentas


auxiliares na Restauração de Bens Culturais em Metal (178)

André Prous et alii – Amidos Pré-Históricos em mós do Sítio Arqueológico


Caixa D’água, de Buritizeiro/Mg: abordagem Arqueobotânica no Cemitério
do Holoceno Médio (186)

Alexandre Leão et alii – Título: Documentação Científica por Imagem de


Bens Culturais: Estudo de caso dos painéis Guerra e Paz de Candido Portinari
(193)

Soraya Coppola – Técnicas analíticas avançadas para o estudo de têxteis 7


(209)
Arte Técnica
História da
Ciência & Conservação
8
História da Arte Técnica
Il laboratorio mobile MOLAB, per indagini
non invasive in situ nell’arte moderna e

História da Arte Técnica


contemporanea

Antonio Sgamellotti
Centro di Eccellenza SMAArt, CNR-ISTM, UdR INSTM
Dipartimento di Chimica, Università degli Studi di Perugia

Ciência & Conservação


* Conferencista convidado

Introduzione
Le ricerche descritte in questa conferenza sono state eseguite dal gruppo
“Beni Culturali” del Dipartimento di Chimica dell’Università di Perugia.
Tali ricerche fanno parte delle attività del Centro di Eccellenza SMAArt
(Scientific Methodologies applied to Archaeology and Art - sito web:
www.smaart.it ), un centro multidisciplinare dell’Università di Perugia,
istituito nell’aprile del 2001 dal Ministero dell’Università e della Ricerca
Scientifica e Tecnologica (MURST). Il Centro opera in stretta sinergia
con l’Istituto di Scienze e Tecnologie Molecolari (ISTM) del CNR e con
l’Unità di Ricerca di Perugia del Consorzio Interuniversitario Nazionale
per la Scienza e Tecnologia dei Materiali (INSTM), entrambi con sede
presso il Dipartimento di Chimica.
Nell’ambito delle attività internazionali il Centro SMAArt ha coordinato,
nel VI° Programma Quadro, il progetto europeo Eu-ARTECH (Access,
Research and Technology for the conservation of the European Cultural
Heritage - sito web: www.eu-artech.org), che ha avuto la sua evoluzione
nel VII° Programma Quadro nel Progetto CHARISMA (Cultural Heritage 9
Advanced Research Infrastructures: Synergy for a Multidisciplinary
Approach to Conservation/Restoration), un consorzio costituito da
ventuno istituzioni europee, tra le più prestigiose del settore.
Una caratteristica rilevante di questi progetti europei è l’attività di accesso
transnazionale, che consiste nel fornire ai ricercatori europei e dei paesi
associati, l’accesso a conoscenze tecnologiche avanzate e a laboratori
forniti di strumentazioni di avanguardia. In questo contesto si inseriscono
le attività del MOLAB (MObile LABoratory), un laboratorio mobile

História da Arte Técnica


costituito da un insieme unico di strumenti portatili di avanguardia . Il
laboratorio MOLAB consente di effettuare misure con metodi non-
invasivi in situ, cioè nello stesso luogo dove l’opera d’arte è conservata,
come una sala di un museo, un monumento all’aperto, una impalcatura
per un intervento di restauro o un sito archeologico. L’elenco delle
principali strumentazioni MOLAB, alcune prototipali e comunque tutte

Ciência & Conservação


allo stato dell’arte, utilizzate nel corso delle indagini sull’arte moderna e
contemporanea è riportato nella tabella seguente.
Alcune strumentazioni disponibili nel laboratorio mobile, MOLAB:
. Sistema per la fluorescenza a immagine
. Spettrometro per fluorescenza a raggi X (XRF)
. Spettrometro medio-FTIR a fibre ottiche
. Spettrometro vicino-FTIR a fibre ottiche
. Spettrometro micro-Raman a fibre ottiche
. Spettrometro UV-Vis a fibre ottiche
. Fluorimetro UV-Vis a fibre ottiche
. Profilometro NMR-MOUSE

Lo sviluppo di tali apparecchiature, leggere e funzionali, è stato reso


possibile negli ultimi anni dalla disponibilità di fibre ottiche, che
trasmettono radiazioni non solo nella regione del visibile ma anche in
quella del medio infrarosso, e dall’utilizzo di rivelatori sempre più efficienti
e di piccole dimensioni e dalla sempre più spinta miniaturizzazione delle
componenti elettroniche.
Confrontando e combinando tra loro i dati ottenuti con le differenti
strumentazioni portatili secondo un approccio a molte tecniche, senza
muovere l’opera d’arte e senza prelevare alcun campione, sono state 10
ottenute informazioni significative, consistenti nella identificazione della
quasi totalità dei pigmenti, nella indicazione dei gruppi di appartenenza di
coloranti, vernici e leganti utilizzati dagli artisti, oltre ad informazioni sulla
tecnica esecutiva delle opere e sul loro stato di conservazione.
Con l’intento di dimostrare le potenzialità dalle strumentazioni
spettroscopiche portatili nello studio non-invasivo di opere d’arte
moderne e contemporanee sono presentati le indagini diagnostiche sul
dipinto Victory Boogie Woogie di Mondrian, su alcuni dipinti di Burri e

História da Arte Técnica


sulla scultura Calamita Cosmica di De Dominicis.

Indagini diagnostiche nell’Arte Moderna e Contemporanea: i casi


studio di Piet Mondrian, di Alberto Burri e Gino De Dominicis
L’approccio non invasivo a molte tecniche risulta particolarmente adatto

Ciência & Conservação


allo studio di opere d’arte moderne e contemporanee che presentano,
rispetto a quelle antiche, un migliore stato di conservazione e di integrità
fisica. L’applicazione in situ di metodi non invasivi per lo studio di
materiali e di tecniche artistiche del ventesimo secolo si presenta però
particolarmente complicato. Infatti le opere risultano complesse perché
gli artisti moderni hanno a disposizione una grande varietà di materiali,
sia naturali che sintetici (ad esempio nuovi pigmenti e coloranti organici,
leganti polimerici, supporti plastici etc.), con la possibilità inoltre di
superare le tecniche tradizionali sperimentando nuovi metodi non ben
codificati.
Il dipinto Victory Boogie Woogie di Piet Mondrian, ultima opera non
ancora completata al momento della morte dell’artista a New York nel
1944, è uno dei più rappresentativi emblemi dell’arte astratta e non
figurativa del ventesimo secolo. Questa opera, venduta ad un collezionista
americano dai discendenti dell’artista, fu acquistata nel 1998 dallo stato
olandese ed è permanentemente esposto alla Gemeentemuseum de L’Aja.
Il carattere non finito dell’opera rappresenta una rara opportunità di
discutere la tecnica pittorica ed il modo di operare di Mondrian nell’ultima
fase della sua lunga carriera artistica. Le indagini condotte utilizzando
tecniche spettroscopiche portatili disponibili nel laboratorio MOLAB
sono state eseguite in un laboratorio dalle pareti di vetro all’interno di una
sala del Gemeentemuseum (vedi Figura 1), alla presenza molto interessata 11
del pubblico e della stampa.
História da Arte Técnica
Ciência & Conservação
Figura 1 - Gli operatori MOLAB all’interno del Gemeentemuseum de L’Aja

Il dipinto è composto di 574 semplici figure geometriche: quadrati,


rettangoli, rombi e triangoli dipinti con soli cinque colori: bianco, grigio, blu,
giallo e rosso, oltre alla presenza di nastri di plastica rossi, probabilmente
prove da sostituire con colori nella versione finale del dipinto. Nonostante
la semplicità nella scelta di colori da parte dell’artista, la composizione della
tavolozza risulta piuttosto complessa, dovuta a miscele ed eterogeneità di
materiali non sempre evidenti all’osservazione visiva.
Bianco – L’immagine in fluorescenza della superficie rivela che, al
contrario di come appare visivamente, i rettangoli bianchi non hanno
una composizione omogenea. Ad esempio in uno dei rettangoli studiati
(il rettangolo 289), l’immagine in fluorescenza mostra la presenza di tre
diversi materiali corrispondenti ad un area dalla tonalità gialla, ad una con
tonalità grigia e ad un area blu che funge da fondo. La spettroscopia XRF
rivela la presenza di tre elementi da porre in relazione ai pigmenti bianchi: 12
zinco, bario e titanio, con un rapporto costante per i primi due elementi. Il
titanio invece risulta essere presente in due concentrazioni diverse, con una
concentrazione maggiore nella regione che appare grigia nell’immagine in
fluorescenza. Il titanio ed il bario sono da porsi in relazione all’uso di
diossido di titanio, noto anche come bianco di titanio, e solfato di bario,
quest’ultimo identificato dalle caratteristiche bande di assorbimento
nel medio infrarosso. Per quanto riguarda lo zinco, l’analisi spettrale in
fluorescenza UV-Vis rivela la presenza di due diversi spettri di emissione:
uno, diffuso nella maggior parte delle aree bianche, caratterizzato da un

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massimo a 430 nm è in accordo con le proprietà luminescenti del solfuro
di zinco, mentre la banda intensa e stretta a 380 nm, osservata solo nelle
aree con fluorescenza gialla, è una proprietà caratteristica dell’ossido di
zinco, noto anche come bianco di zinco. Utilizzando l’approccio a molte
tecniche e le informazioni ottenute dalla fluorescenza a immagine e dalle
spettroscopie XRF, medio infrarosso e UV-Vis è possibile concludere

Ciência & Conservação


che sono presenti tre diversi tipi di pigmenti bianchi: due miscele di
solfuro di zinco, solfato di bario e bianco di titanio che differiscono nella
concentrazione di quest’ultimo pigmento (corrispondente alle fluorescenze
grigie e blu), ed una miscela di bianco di zinco e solfato di bario. L’uso di
bianco di zinco è limitato solo ad alcune aree, quelle con fluorescenza
gialla: proprio queste aree mostrano problemi di conservazione, come
evidenziato dalla presenza di carbossilati metallici.
Grigio – Il materiale che fornisce le tonalità grigie è costituito da una
miscela di pigmenti bianchi (solfuro di zinco, solfato di bario e bianco di
titanio ad alte concentrazioni) e nero carbone di origine animale, come
mostrato dalla caratteristica transizione del gruppo fosfato nello spettro
del medio infrarosso.
Blu – Le aree blu sono generalmente caratterizzate dall’assenza di
elementi pesanti e dalla presenza di caolinite (un idrossilicato di alluminio,
identificato da caratteristiche bande strette nel vicino infrarosso, assegnabili
a modi di combinazione di gruppi ossidrilici interni e superficiali). Queste
informazioni suggeriscono l’uso di un ultramarino sintetico (silicato di
sodio e alluminio con gruppi solfurici che fungono da cromoforo), un
pigmento che contiene caolinite, come residuo derivante dalla sua sintesi.
Misure XRF indicano, in alcuni casi, la presenza addizionale di cobalto,
dovuto alla presenza di blu di cobalto (uno spinello di cobalto e alluminio),
scoperto da Thenard nel 1802 e noto per questo come blu di Thenard. La 13
presenza di questo pigmento è rivelata dagli assorbimenti elettronici ben
strutturati nella regione spettrale 6500-8500 cm-1 (transizioni d-d di ioni
cobalto nello stato di ossidazione +2 in coordinazione tetraedrica).
In aree contenenti i due pigmenti blu, un’analisi dettagliata delle
macroimmagini in fluorescenza, accoppiata ai dati spettrali, ha permesso
l’identificazione della stratigrafia, senza alcun prelievo: lo strato di blu
ultramarino è sottostante allo strato superficiale di blu di cobalto.
Giallo – Le aree di tonalità gialla sono caratterizzate dalla presenza del

História da Arte Técnica


pigmento solfuro di cadmio mescolato con solfato di bario. Le immagini
in fluorescenza mostrano aree irregolari di fluorescenza, con un’intensa
emissione a circa 700 nm, nota come fluorescenza rossa, dovuta a difetti
strutturali quali ad esempio vacanze di zolfo. Il diagramma di correlazione
dei conteggi XRF del cadmio e del bario mostra che le aree gialle
fluorescenti presentano una maggiore concentrazione di bario. L’analisi

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elementare non evidenzia altre differenze tra le aree gialle fluorescenti e
non fluorescenti: ne consegue l’uso da parte dell’artista di due pigmenti
gialli di identico colore ma di composizione leggermente diversa. La
forte fluorescenza UV-Vis deriva da difetti non rivelabili dalla tecnica
XRF, mentre il bario è da porsi in relazione al litopone giallo di cadmio
o semplicemente ad una addizione di solfato di bario nella formulazione
del pigmento in tubetti. Non si osserva alcuna differenza di tonalità di
colore, inoltre il giallo fluorescente sembra essere presente insieme a
quello non fluorescente nella stessa pennellata: questa è un indicazione
che probabilmente i due diversi pigmenti venivano mescolati insieme nella
tavolozza dall’artista, prima della loro applicazione nel dipinto.
Rosso – Le aree di tonalità rossa sono ricche in cadmio, selenio e zolfo,
chiara indicazione dell’uso di un pigmento rosso a base di solfoseleniuro
di cadmio. Lo spettro di fluorescenza mostra una banda larga centrata a
circa 810 nm, assegnabile ad una emissione dovuta a difetti strutturali od
impurezze. La quantità di titanio, bario e zinco è generalmente molto bassa
nelle aree rosse, suggerendo che il pigmento rosso non veniva mescolato
con quello bianco.
Un colorante rosso organico di sintesi, con una forte emissione a 620
nm, è stato individuato in diversi nastri trasparenti di cellophan, che erano
stati dipinti di rosso su un lato ed incollati nel lato opposto dallo stesso
Mondrian. 14
Le indagini scientifiche non invasive, oltre a determinare i materiali
costitutivi, hanno permesso anche di fornire informazioni sulla tecnica
costruttiva del dipinto. Ad esempio, in certe aree bianche è stato possibile
determinare la presenza, non più visibile, di aree sottostanti gialle e rosse,
grazie alla rilevazione negli spettri XRF di bassi segnali di cadmio o cadmio
più selenio, quest’ultimi nello stesso rapporto misurato nelle aree rosse del
dipinto. L’informazione che ne deriva è che una regione dipinta in rosso

História da Arte Técnica


fosse inizialmente presente sotto lo strato bianco finale.
Un’altra informazione sulla modalità di lavoro di Mondrian può essere
derivata da una presenza non trascurabile di piombo, in diversi punti del
dipinto, come rilevato dalla tecnica XRF. Questi punti non hanno alcuna
correlazione né con specifiche aree, né con tonalità di colore. Un’ipotesi
plausibile è che questi punti corrispondano ad aree dove Mondrian, invece

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di procedere applicando strati di pittura successivi su quelli precedenti,
abbia raschiato gli strati preesistenti prima di applicare nuovi strati
più rispondenti alle sue esigenze estetiche. Così operando l’artista ha
diminuito lo spessore degli strati pittorici, in modo tale che i raggi X sono
in grado di superare la stratigrafia così ridotta, penetrando fino allo stato
di preparazione ricco in piombo.
Nella Collezione Albizzini di Città di Castello sono stati indagati, con il
laboratorio mobile MOLAB, venti dipinti di Alberto Burri, con date che
vanno dal 1948 al 1975. L’opportunità di studiare un numero così elevato
di opere appartenenti a diversi periodi artistici di Burri (ad esempio dalle
plastiche ai sacchi, dalle combustioni ai cellotex) offre un test impegnativo
per l’identificazione in situ di materiali e tecniche nell’arte contemporanea.
Si sono raccolti un grande numero di dati spettrali (in totale circa 650
spettri relativi alle tecniche XRF, nel medio e vicino IR, micro-Raman,
UV-Vis in assorbimento ed emissione). Con lo scopo di trarre il maggior
numero possibile di informazioni da questi dati, è stata applicata un’analisi
statistica multivariata, del tipo PCA (Principal Component Analysis), che
riducendo la dimensionalità delle informazioni permette di visualizzare
similitudini e differenze tra i dati spettrali. I risultati completi di queste
indagini sono riportati in dettaglio nel riferimento , mentre in questa
conferenza si intende presentare solo alcuni aspetti particolari di questa
ricerca. 15
Burri utilizza sia pigmenti tradizionali, che materiali miscelati in maniera
complessa per avere particolari effetti e tonalità di colore. Ad esempio
nell’opera Gobbo 1952, le aree rosse sono ottenute utilizzando vermiglione,
cioè solfuro di mercurio, mentre quelle violette sono ottenute mescolando
vermiglione e blu di cobalto, cioè pigmenti del tutto tradizionali.
Nel dipinto Catrame 1949, l’area centrale presenta diverse tonalità che
vanno dal rosso marrone al rosso intenso fino all’arancione. Il pigmento

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sempre presente nelle diverse aree è un’ocra rossa, cioè ossido di ferro,
mescolato a differenti componenti allo scopo di ottenere effetti cromatici
differenziati. Nell’area con tonalità rosso marrone, l’ocra rossa è mescolata
con una componente silicatica, mentre nella regione di color rosso intenso,
l’ocra è mescolata con gesso, carbonato di calcio e caolino; quest’ultimo
componente è invece assente nell’area arancione.

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In dipinti dai toni monocromatici bianchi, quale ad esempio Bianco
1952, sono presenti effetti morfologici ed ottici diversi, che possono
essere messi in relazione alla composizione chimica dei materiali utilizzati
dall’artista. Le aree di tonalità bianche tendenti al giallo contengono come
pigmenti carbonato di calcio e solfato di bario, con un legante avente una
componente proteica e lipidica (probabilmente uovo, ma potrebbe trattarsi
anche di olio e colla o caseina); mentre nelle aree bianche con tonalità
brillanti, lucide e lisce dal punto di vista morfologico è presente bianco di
zinco con PVA (polivinilacetato, nome commerciale vinavil) come legante.
Il PVA era già utilizzato in pittura intorno agli anni 1945 negli Stati Uniti,
mentre la sua comparsa in Europa avverrà solo alcuni anni più tardi. Le
indagini scientifiche hanno rivelato la presenza di vinavil in alcuni dipinti
di Burri del 1948: questo suggerisce che l’artista umbro sia stato tra i primi
a sperimentare in Europa questo nuovo legante, probabilmente a seguito
dei suoi frequenti viaggi negli Stati Uniti. Le indagini sul dipinto Bianco
1952 mostrano come la presenza della componente lipidica favorisca la
formazione di prodotti di degrado quali saponi. L’uso di diversi materiali
per ottenere particolari effetti cromatici può determinare la formazione
di diversi prodotti di alterazione e degrado: ne consegue la necessità di
applicare trattamenti di conservazione differenziati, anche all’interno dello
stesso dipinto.
Nel corso delle indagini scientifiche sul dipinto di Burri Bianco e Nero 16
1971 si è sperimentato per la prima volta in opere contemporanee l’uso
di un profilometro a risonanza magnetica nucleare (NMR-MOUSE) per
la determinazione, in maniera non invasiva, della stratigrafia degli strati
pittorici. Questa informazione è ottenuta attraverso la misura dei tempi di
rilassamento dei nuclei degli atomi di idrogeno in un campo magnetico. Il
profilo rivela che lo strato pittorico e quello della preparazione hanno uno
spessore di 320 μm, e che in entrambi gli strati è presente come legante un
polimero di sintesi, del tipo PVA.

História da Arte Técnica


Le indagini condotte sulla scultura Calamita Cosmica (1988) di Gino De
Dominicis hanno fornito informazioni sui materiali costitutivi di questa
opera dal forte impatto visivo che è stata esposta per la prima volta nel
1990 al Centro Nazionale di Arte Contemporanea di Grenoble. Il titolo
della scultura allude al rapporto che la colossale creatura lunga 24 m,
riproducente una specie antropomorfa sconosciuta ai terrestri, intrattiene

Ciência & Conservação


con lo spazio cosmico mediante l’asta d’oro, contenente al suo interno una
calamita, che come un gigantesco gnomone in bilico sul dito medio della
mano destra del monstrum, scandisce un tempo originario e ultramondano.
L’imponente scultura, nota anche come “Scheletrone” risulta essere
costituita essenzialmente da un materiale molto leggero, il polistirene
espanso (densità media 8-60 kg/m2), che ha permesso all’autore di realizzare
la scultura come una rappresentazione architettonica di colonne, guglie e
volte. La struttura dell’opera è rivestita da una stratigrafia complessa di
cinque strati (vedi Figura 4) di spessore e composizione diversa. Il primo
strato è costituito da una matrice allumino-silicatica contenente carbonato
di calcio, diossido di silicio e di titanio insieme ad ossido di ferro, che
conferisce al tutto una colorazione rossastra. Gli strati due e quattro, di
colore bianco hanno la stessa composizione con esclusione dell’ossido di
ferro. Particolarmente interessante è il terzo strato, costituito da una lamina
di ottone, lega di rame e zinco al 15%, dallo spessore di circa 100 μm. Si
tratta, probabilmente, dello strato preparatorio funzionale a deporre poi la
foglia d’oro, così come era nelle iniziali intenzioni di De Dominicis, tanto
che l’opera veniva anche chiamata Ventiquattro metri di forme d’oro.
La tecnica ricorda la modalità di esecuzione delle dorature nei dipinti
murali, in cui una lamina metallica (ad esempio di stagno) veniva utilizzata
per ottenere fogli spessi e uniformi su cui poi applicare la foglia d’oro
tramite mordenti oleosi. In seguito ad una sorta di pentimento, l’autore 17
ha ricoperto la lamina di ottone con un primo strato sottile simile a quelli
interni e poi con uno strato finale, che è quello che determina la resa
estetica dell’opera, ottenuto utilizzando polistirene in polvere mescolato
con vari pigmenti. Il colore di questo strato è ottenuto mediante l’uso di
diversi pigmenti: diossido di titanio (nella forma rutile) dal forte potere
coprente, la cui tonalità bianca è resa più fredda con l’aggiunta di piccole
quantità di pigmenti di colore blu, oltremare sintetico, e verde, ftalocianina
di rame. Per quanto riguarda l’uso di leganti è da sottolineare la differenza

História da Arte Técnica


tra la stratigrafia sotto la lamina di ottone e quella finale: sono presenti
due polimeri di sintesi di struttura differente, probabilmente entrambi di
natura vinilica.
Particolarmente interessante è il terzo strato, costituito da una lamina di
ottone, lega di rame e zinco al 15%, dallo spessore di circa 100 μm. Si
tratta, probabilmente, dello strato preparatorio funzionale a deporre poi la

Ciência & Conservação


foglia d’oro, così come era nelle iniziali intenzioni di De Dominicis, tanto
che l’opera veniva anche chiamata Ventiquattro metri di forme d’oro.
La tecnica ricorda la modalità di esecuzione delle dorature nei dipinti
murali, in cui una lamina metallica (ad esempio di stagno) veniva utilizzata
per ottenere fogli spessi e uniformi su cui poi applicare la foglia d’oro
tramite mordenti oleosi. In seguito ad una sorta di pentimento, l’autore
ha ricoperto la lamina di ottone con un primo strato sottile simile a quelli
interni e poi con uno strato finale, che è quello che determina la resa
estetica dell’opera, ottenuto utilizzando polistirene in polvere mescolato
con vari pigmenti. Il colore di questo strato è ottenuto mediante l’uso di
diversi pigmenti: diossido di titanio (nella forma rutile) dal forte potere
coprente, la cui tonalità bianca è resa più fredda con l’aggiunta di piccole
quantità di pigmenti di colore blu, oltremare sintetico, e verde, ftalocianina
di rame. Per quanto riguarda l’uso di leganti è da sottolineare la differenza
tra la stratigrafia sotto la lamina di ottone e quella finale: sono presenti
due polimeri di sintesi di struttura differente, probabilmente entrambi di
natura vinilica.
Le informazioni ottenute sui materiali costitutivi della scultura di De
Dominicis sono di particolare rilevanza dal punto di vista conservativo: la
presenza di polistirene espanso, sia nella struttura interna che nello strato
esterno, necessariamente richiede che venga evitato l’uso di solventi in
grado di sciogliere questo materiale, quali ad esempio acetone e solventi 18
clorurati. Le indagini hanno inoltre evidenziato la presenza di cloruri
nello strato esterno (probabilmente riferibile alla doppia esposizione
dell’opera in ambienti ricchi di aerosol marino, nel cortile della Reggia di
Capodimonte a Napoli e nel cortile della Mole Vanvitelliana ad Ancona),
ed anche nitrati, per cui è richiesta un’attenta valutazione degli effetti di
questi sali solubili sulla stabilità strutturale della scultura.
Il MOLAB ha recentemente condotto una campagna di analisi non invasive
in situ su tredici dipinti e quattro disegni di Picasso esposti nell’omonimo

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museo di Antibes (vedi Figura 2).

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Figura 2 - Gli strumenti MOLAB insieme a “La joie de vivre” (2010)

Il museo possiede una collezione unica di opere dell’artista, eseguite in situ


tra l’estate e l’autunno del 1946 quando, durante il periodo post-bellico,
a causa della indisponibilità nel sud della Francia di strumenti pittorici
tradizionali (colori ad olio, tele), Picasso ha colto l’opportunità di esprimere
liberamente la propria creatività utilizzando materiali solitamente non
destinati a scopi artistici, come ad esempio colori impiegati per uso edile e
navale, pannelli di fibrocemento come supporti e, non di rado, riutilizzando
tele già dipinte.
I numerosi dati spettroscopici raccolti hanno l’obiettivo di chiarire la
composizione chimica dei pigmenti e dei materiali non convenzionali
presenti, così come degli oli e resine naturali impiegati come leganti, 19
nonché l’eventuale presenza di agenti siccativi da ricondurre ad una
specifica produzione industriale. Tali informazioni sono utili altresì a
chiarire l’influenza dei suddetti mezzi “non convenzionalmente artistici”
sulle caratteristiche ottiche delle opere, quali ad esempio la brillantezza e
lucentezza e quindi a comprendere meglio la tecnica pittorica di Picasso
in quegli anni.
Le ricerche presentate in questa conferenza dimostrano come le tecniche
non invasive, disponibili nel laboratorio mobile MOLAB, siano in grado di

História da Arte Técnica


fornire, con un approccio in situ a molte tecniche, informazioni rilevanti
sui materiali costitutivi e sulle tecniche esecutive di dipinti moderni e
contemporanei. Queste informazioni utili dal punto di vista storico-
artistico, sono di grande ausilio per una corretta conservazione preventiva
ed una adeguata manutenzione programmata di opere d’arte moderne e
contemporanee.

Ciência & Conservação


Ringraziamenti
Le ricerche presentate sono state condotte in stretta collaborazione con 20
B.G. Brunetti, coordinatore del progetto Eu-ARTECH, e con C. Miliani,
coordinatrice del MOLAB.
Si ringraziano i componenti del gruppo “Beni Culturali” del Dipartimento
di Chimica dell’Università di Perugia per il contributo nelle ricerche e la
Fondazione Albizzini di Città di Castello per l’accesso alla Collezione
Burri.
___________
Riferimenti bibliografici

História da Arte Técnica


1. C. Miliani, F. Rosi, B.G. Brunetti, A. Sgamellotti, “In situ non invasive study of artworks: the
MOLAB multitechnique approach”, Acc. Chem. Res. 43, 728 (2010).

2. C.Miliani, K. Kahrim, B.G.Brunetti, A.Sgamellotti, A.Aldrovandi, M.R.van Bommel, K. J. van


den Berg, H.Janssen, “MOLAB, a mobile facility suitable for non-invasive in-situ investigations of
early and contemporary paintings: the case-study of Victory Boogie Woogie (1942-1944) by Piet
Mondrian”, Proceedings of the 15th Triennial Conference of ICOM-CC, New Dehli, Vol. II 244
(2008).

Ciência & Conservação


3. F. Rosi, C. Miliani, C. Clementi, K. Kharim, F. Presciutti, M. Vagnini, V. Manuali, A. Daveri, L.
Cartechini, B.G. Brunetti, A. Sgamellotti, “An integrated spectroscopic approach for the non invasive
study of modern art materials and techniques”, Applied Physics A, 100, 613 (2010).

21
Vulnerabilidade de Acervos Científicos

História da Arte Técnica


Yacy-Ara Froner
PPGA-EBA-UFMG
* Conferencista convidado

Resumo

Ciência & Conservação


A prática da preservação de acervos científicos possui especificidades que devem ser
consideradas: a dissociação da informação como um dos itens de vulnerabilidade; a demanda
da interlocução entre as áreas responsáveis pela pesquisa, organização e conservação de
coleções; e a dimensão da coordenação de projetos de gestão de acervos científicos. A
documentação, como protocolo da área de Conservação Preventiva, é discutida nesse
artigo como princípio fundamental para a gestão desses acervos.
Palavras-chave: Conservação Preventiva, Documentação, Gestão, Acervos Científicos
Abstract
The practice of preservation of scientific collections has specific characteristics that must be considered:
the damage of information as one of the items of vulnerability; the demand of the dialogue between the
areas responsible for research, organization and conservation of collections; and the scope of coordination
of scientific collections management projects. Documentation, such as Preventive Conservation Protocol, is
discussed in this article as a fundamental principle for the management of scientific collections.
Key words: Preventive Conservation, Documentation, Management, Scientific Collections

Over the past decade, aspects of heritage have become


important issues in the discourse on place, cultural identity,
and ownership of the past. Yet for all its engagement with
the function, presentation, and interpretation of heritage
as material culture, conservation lags behind in the larger
debate, both in terms of a critical reassessment of its
own principles and in dialogue with related fields, such
as design and aesthetics, as well as history, anthropology,
and the other social sciences. This lag is due in part to
conservation’s recent and somewhat insular professional
development and its avoidance of a critical examination of
the inherited historical and cultural narratives constructed
through past motives of preservation
22
Frank Matero. Ethics and Policy in Conservation.
Newsletter GCI, Volume 15, Number 1, Spring 2000
Introdução
Ao propor esta discussão, alguns problemas vivenciados ao longo de vinte

História da Arte Técnica


anos de trabalho na área, como conservadora, consultora, pesquisadora e
professora, me vieram a mente: a dissociação da informação como um dos
itens de vulnerabilidade de acervos científicos; a demanda da interlocução
entre as áreas responsável pela pesquisa, documentação, organização e
conservação de coleções; e a dimensão da coordenação de projetos de
gestão de acervos científicos.

Ciência & Conservação


A experiência como conservadora na Coleção Mário de Andrade (IEB-USP)
entre 1992 e 1994; a atuação como chefe do Laboratório de Conservação e
Restauração do MAE-USP entre 1994 e 1999; o trabalho como consultora da
Fundação VITAE entre 1996 e 2006 junto a vários museus científicos, em
especial no Museu Nacional da UFRJ; e a atual vivência como pesquisadora
e docente na Escola e Belas Artes da UFMG me proporcionaram níveis
diferenciados de ação e percepção da área.
Como estagiária, técnica de nível superior, consultora ou docente vinculada
a cursos de graduação e programas de pós-graduação, eu experimentei
espaços diversos: sendo orientada e orientando pesquisas; fazendo parte
ou coordenando equipes; assumindo categorias diversas, próprias das
hierarquias institucionais.
Dessas experiências, algumas camadas instauradas no poder simbólico
dos espaços públicos e privados me pareceram mais visíveis, bem como
as alterações sutis ocorridas no processo de democratização do país,
impactando politica e financeiramente diretamente nas instituições
responsáveis pela preservação de bens culturais, acervos científicos e
artísticos.
Assim, discutindo gestão, interlocução e vulnerabilidade de acervos
científicos, esta apresentação significa uma reflexão sobre as camadas
interligadas que comportam a vivência, a formação e os estudos 23
relacionados à Conservação Preventiva.
O conhecimento das bases históricas e conceituais sob as quais os
homens se posicionaram e se posicionam em relação aos bens culturais
é extremamente importante: coletar, colecionar, expor, estudar, possuir
e ver são atitudes que implicam na manutenção ou não das condições
materiais do objeto, ao mesmo tempo em que reproduzem as noções de
valor e de significado desses bens. De acordo com Jacques Le Goff (1982,

História da Arte Técnica


p. 95), a memória coletiva e sua forma científica, a história, aplicam-se dois
tipos de materiais: os documentos e os monumentos. Desses elementos de
memória e história, a preservação é um campo transdisciplinar que busca,
por meio da malha das interlocuções, reencontrar um tempo perdido.

A Ciência da Conservação: a construção de um campo

Ciência & Conservação


transdisciplinar
O final do séc. XIX apresenta uma tensão entre o Museu e a Universidade,
sendo o primeiro subordinado às demandas da Ciência Moderna e, portanto,
um apêndice da academia. Mesmo os espaços destinados à arte, sem um
juízo de valor estabelecido pela mediação da Estética e da História da Arte,
teriam sua visibilidade e mérito questionados. Ancorada nas discussões
conceituais da Filosofia e da História, a Escola de Viena produzirá um
pensamento clave, vinculando a cátedra das universidades à experiência
dos museus, cujo maior representante foi Alois Riegl (1858-1905).
Os conceitos expostos por Riegl no texto The Modern Cult of Monuments:
its Essence and its development, escrito em 1903, apesar de circunscritos na
esfera da História e da Filosofia da Arte, foram utilizados como base para o
reconhecimento do espaço museal e da prática de preservação, uma vez
que é nesse primeiro texto que o respeito ao original e os critérios de
seleção a partir da noção de valor são anunciados. A força de Riegl foi ter
reunido em si as duas tradições – a do museu e a da academia, – e a de
partir de uma análise rigorosa dos objetos cuja guarda lhe estava confiada
estruturar o embasamento de seus estudos.
Os objetos adquirem valor pelas mãos do conhecimento! Berenson
(1972, p. 230) afirma que nenhuma história pode ser escrita sem valores
axiomáticos, conscientemente manifestos ou inconscientemente supostos; 24
os valores não podem existir sem um avaliador e não conhecemos nenhum
avaliador, exceto o homem. O objeto existe enquanto um elemento a ser
preservado quando lhe é imputado um valor histórico, artístico e cultural.
Nesse contexto os bens culturais transformam seus sentidos na rede
das trocas simbólicas: além do valor do culto, da singularidade artística
ou exótica e do seu próprio valor “patrimonial”, agrega-se a ele – ao
bem cultural – o sentido histórico (Documento/Monumento), partícipe do

História da Arte Técnica


pensamento fenomenológico de Hegel.
A partir do século XIX, quando as grandes coleções públicas são
formadas, os profissionais dessa área são confrontados com uma nova
responsabilidade perante os museus. Nesse momento, a linha limítrofe
que separava a criatividade do artista e a atitude do restaurador começa ser
mais bem demarcada: o respeito estético e com relação à originalidade da

Ciência & Conservação


obra passa a ser uma bandeira dos profissionais mais sérios. It was then
that progress began in the restorer’s practice as a craftsman. This remained,
nonetheless, quite empirical, for no-one but the restorer knew the nature of the precious
material which had to be conserved without losing the attraction of its appearance
(COREMANS, 1969, p.10). A proliferação de museus públicos, baseados
no modelo Francês, e sua administração por especialistas determinaram
uma nova postura dos restauradores, curadores, pesquisadores,
documentalistas, museólogos em relação a essas coleções.
Quando as Ciências Naturais, particularmente a Física e a Química, passam
a fazer parte do corpus do conhecimento necessário à manipulação da
matéria, critérios científicos provenientes dessas disciplinas tornam-
se fundamentais para a compreensão da natureza e da estrutura dos
artefatos antigos e das obras de arte, transformando significativamente
o comportamento dos restauradores. Um dos primeiros laboratórios
de restauração, aberto em Staatliche Museum de Berlim, apresenta seus
primeiros registros em 1888 e dedica suas atividades, prioritariamente, ao
acervo arqueológico montado então. Se o final do século XIX imprime um
modelo museológico gestado pelo surgimento da Ciência Moderna, o início
do século XX fortalece esse modelo por meio de um princípio ideológico.
O enfrentamento da Primeira Grande Guerra na Europa impôs uma nova
realidade ao meio da conservação: a quantidade de destroços produzida e
das restaurações indiscriminadas forçou os governos, autoridades locais e 25
pesquisadores a repensarem sua margem de ação. Provavelmente as bases
da conservação moderna foram lançadas quando, em 1930, o Escritório
Internacional de Museus da Liga das Nações chamou o primeiro encontro
internacional para tratar dos princípios científicos da restauração:
In October 1930 nearly two hundred museum directors,
art historians, and scientists gathered in Rome for a unique
international conference. Held under the auspices of the
International Museums Office of the League of Nations,
the conference had as its stated purpose “the study of

História da Arte Técnica


scientific methods for the examination and preservation
of works of art.” At the end of five days, conference
participants confirmed “the utility of laboratory research as
an aid to the study of the history of art and museography...”
Science in the service of art was recognized and modern
conservation was born (LEVIN, 1991, p. 1).
Pela primeira vez utiliza-se a expressão “método científico” com respeito

Ciência & Conservação


ao ofício da restauração. Arquitetos restauradores, baseados nos escritos
de Boito, estruturaram o pensamento das décadas de trinta e quarenta,
como Gustavo Giovannoni (1873-1947) com seus escritos: Enciclopédia
italiana di scienza (1931), Il restauro dei monumenti (1945).
Logo após o encontro, ocorreu o Primeiro Congresso Internacional de Arquitetos
e Técnicos de Monumentos Históricos. Nesse congresso foi formalizado o
primeiro documento de caráter internacional que concebia o patrimônio
cultural como algo de existência histórica e social ampla. O conceito de
bem cultural se expande para além das fronteiras nacionais que viam na
sua preservação a manutenção de uma identidade própria ao adquirir uma
dimensão de valor universal.
De acordo com Carbonara (1996, p.242), o trabalho de Gustavo
Giovannoni inspirou diretamente a Carta de Atenas (1931), documento
resultante desse encontro que formalizou algumas diretrizes reproduzidas
ainda nos documentos atuais. Como presidente da Associazione Artistica
tra i Cultori dell’ Architettura (AACA), fundada em Roma em 1890, ele
postulou e expandiu o conceito de preservação dos bens culturais
arquitetônicos, promovendo iniciativas de conservação, manutenção e
restauração de monumentos e sítios a partir dos avanços da Engenharia e
da Arquitetura modernas. As ações da AACA na Europa e a Carta de Atenas
assinalaram o conceito moderno de patrimônio cultural e a construção da
noção de patrimônio mundial. A formalização do documento apresenta 26
sete princípios concernentes à restauração/conservação de sítios e
monumentos, e por isso também foi chamada de Carta de Restauro.
Nesse mesmo contexto, o Escritório Internacional de Museus (OIM) – uma
instituição internacional fundada em 1926 que almejava interligar os
museus do mundo, a partir da organização de intercâmbios e congressos
– contribuiu para a fundação em 1939 do Instituto Central de Restauro (ICR),
em Roma. Cesare Brandi (1906-1988), contemporâneo de Giovannoni,

História da Arte Técnica


é seu fundador e diretor, ampliando as bases da AACA a partir do
direcionamento dos esforços do ICR para o estudo de objetos e acervos
museológicos. O impacto da ação desses organismos pode ser sentido
no Brasil a partir da estruturação do primeiro Curso de Museus do Museu
Histórico Nacional, fundado em 1932 e responsável pela primeira formação
especializada de profissionais de museu no Brasil, e pela fundação do

Ciência & Conservação


IPHAN (1933).
A Segunda Guerra Mundial (1939-1945) e o desmantelamento da Liga
das Nações (1926-1939) interrompem essas ações internacionais, retomadas
apenas a partir da segunda metade do século XX.
Com a criação da ONU e a fundação da UNESCO, discussões acerca
da cooperação internacional para a preservação cultural são retomadas.
Em 1956, o belga Paul Philippot e o italiano Cesare Brandi fundaram as
bases teóricas do ICCROM e restomaram os programas de treinamento
e intercâmbio internacionais. É possível pontuar esse período como o
nascimento da Ciência da Conservação e seus campos de estudo específicos: a
História da Arte Técnica, a Conservação Preventiva e a Física e a Química aplicada
ao estudo dos materiais.
A expansão industrial e seu impacto urbanístico principalmente em
centros históricos impõem novos problemas à área. A década de oitenta
será marcada pelas teorias de Garry Thomson, estruturadas a partir de
uma série de artigos que introduzem os princípios do controle climático
em museus – a área da Conservação Preventiva – e que culminaram com a
obra The Museum Environment (1982).
En fait, le concept n’est pas vraiment nouveau. Il était dans
l’air depuis longtemps, très longtemps. Déja au 19ème
siècle, Adolphe Napoleón Didron, ècrivat: Conserver
le plus possible, réparer le moins possible, ne restaurer
à aucun prix, laissant entendre qu’il fallait intervenir les
27
moins possible sur l’objet pour assurer l’authenticité de son
message (GUICHEN, 1995, p. 5).
Garry Thomson coloca pela primeira vez de maneira sistemática os
problemas referentes à climatização em museus, demonstrando a
importância do controle da luz, da temperatura e da umidade incidente
sobre as coleções e elabora a máxima da Conservação Preventiva: um mau
restaurador pode destruir uma obra, um mau conservador pode destruir

História da Arte Técnica


uma coleção inteira!
As duas últimas décadas do século vinte são marcadas por várias
discussões que fazem com que o restaurador/conservador seja obrigado a
especializar-se cada vez mais e em 1994, com a criação de um diploma de
estudos especializados em Conservação Preventiva na Universidade de Paris,
a disciplina passou a ser mais bem embasada e difundida.

Ciência & Conservação


Dissociação da informação: lacunas da Conservação Preventiva
A Ciência da Conservação definida como um campo de conhecimento
transdisciplinar é uma abordagem científica que visa a unidade do
conhecimento em torno de questões polissêmicas direcionadas à
preservação do patrimônio cultural. Considerando este estatuto
transdisciplinar, procura estimular uma nova compreensão para com
seu objeto de pesquisa – a preservação – articulando elementos que
passam entre, além e através de disciplinas correlatas ou não, almejando
a compreensão da complexidade associada a este objeto. Além disso, a
transdisciplinaridade é uma atitude empática de abertura ao outro e seu
conhecimento (ROCHA FILHO, 2007).
A partir das alterações dos paradigmas propostos na década de oitenta,
quando as relações ambientais foram apontadas como preponderantes no
processo de preservação de acervos, a pirâmide que articulava a hierarquia
entre a pesquisa, a extroversão e a manutenção das fontes passou a
demandar uma relação horizontal das competências, considerando a
primazia da salvaguarda como sustentação de todas essas ações.
Cassar é uma das maiores especialistas a difundir o campo da Conservação
Preventiva como um campo de conhecimento da área de Ciência da Conservação.
Para ela, a Conservação Preventiva abarca procedimentos relacionados à
adequação das condições ambientais, físico-químicas e de gestão, sob 28
as quais um bem cultural encontra-se submetido: parte de relações que
envolvem o macro ambiente, o ambiente médio e o microambiente do
entorno do bem cultural, como também das políticas correlacionadas ao
seu uso e preservação; busca respeitar as especificidades tanto do edifício
quanto da coleção sob sua guarda, minimizando ao máximo o impacto
das degradações por meio da adoção de alternativas equilibradas que
entendam as características do acervo e da arquitetura, principalmente
no que tange ao patrimônio histórico edificado que cumpre o papel de

História da Arte Técnica


museu. Diante desses princípios, cada vez mais os campos ocupados pelas
áreas conhecidas como ciências duras, atuam como disciplinas aplicadas à
conservação de bens culturais, abrindo um leque de possibilidades diante
da interdisciplinaridade.
Como paradigma científico apoiado em uma visão dialética atual, a
Ciência da Conservação deveria romper com a hierarquia estruturada desde

Ciência & Conservação


o século XIX sobre a autoridade da pesquisa científica, porém, desde o
Documento de Bologna (1999), muitos pesquisadores da área a consideraram
sedimentada no corpus das Ciências Naturais, cujo objeto de pesquisa seria
estruturado em torno de parâmetros específicos: a constituição de um
corpus científico sobre a tecnologia de construção da imagem (objeto),
por meio de procedimentos, métodos e equipamentos que validassem esse
conteúdo – a História da Arte Técnica; experimentos sobre o desempenho
de materiais utilizados nas práticas de intervenção – o corpo fundamental
da Ciência da Conservação; e a constituição de um campo de estudos voltado
para a gestão ambiental – a Conservação Preventiva.
Nenhum desses campos abarca as relações apontadas por Torraca (1999)
sobre a indispensabilidade de a área compreender sua própria amplitude.
Cada vez mais a Ciência da Conservação deixa de ser uma ciência ancorada
na área de Ciências Naturais ou Ciências Exatas. A complexidade de seu
objeto sugere que o acesso apenas pode ser mediado pela interlocução
consistente de todas as áreas de conhecimento.
As falhas de tais pressupostos podem ser percebidas quando projetos e
investimentos de adequação de áreas de Reserva Técnica e Exposições em
museus enfatizam questões relacionadas ao gerenciamento ambiental em
detrimento (ou total desconhecimento) do contexto documental do acervo.
O Inventário, então, não é percebido como procedimento da Conservação
Preventiva e, desse modo, nem sempre é contemplado. Preocupado com a 29
adequação do edifício, o monitoramento climatológico torna-se a principal
base do diagnóstico de conservação: temperatura, luz, umidade, poluição
são o elementos abalizados como fatores de degradação. Associados ou
não a estes fatores, o ataque biológico também é visto a partir de seu
potencial de risco.
Nem sempre a organização documental ou a organização física do acervo
são consideradas e, equivocadamente, sistemas de controle ambiental são

História da Arte Técnica


priorizados nesses diagnósticos. Quando a organização física é contemplada
a partir da aquisição de mobiliário e suportes de acondicionamento, nem
sempre é associada a ela propostas de sistematização documental.
Em projetos de criação ou adequação de espaços para gestão de acervos –
pesquisa, guarda ou exposição – a constituição de uma base informacional
segura é matéria preponderante. Principalmente no campo de acervos

Ciência & Conservação


científicos, a dissociação da informação invalida o mérito e a capacidade
de interlocução do objeto. Portanto, sempre a precedência deveria ser a
identificação e o Inventário do acervo, cuja ferramenta – o banco de dados
– sistematiza e viabiliza o acesso às informações. Dentre os protocolos
estabelecidos para conservação de acervos científicos, o Inventário é uma
das ferramentas primárias, inicial e indispensável para o reconhecimento
do acervo, sua quantificação e qualificação. O Inventário cumpre o papel de
registro e, considerando ferramentas como Diagnóstico de Risco e Diagnóstico
em Conservação Preventiva, ele significa um dos primeiros protocolos de
controle de acesso, bem como é a primeira estratégia de reconhecimento
para avaliação das coleções (PANISSET, 2011).
Por experiência própria, acervos científicos, principalmente etnográficos e
arqueológicos oriundos de pesquisas de campo, são os mais vulneráveis e
os riscos podem ser mapeados ao longo do processo:
1) Quando o acervo é resultado da prática de Arqueologia de Salvamento,
nem sempre os protocolos de estudos científicos da área são seguidos e as
informações relacionadas ao objeto já se perdem na escavação;
2) Quando a coleta ou o resgate arqueológico ou etnográfico é
produto de uma investigação acadêmica, nada garante a continuidade da
pesquisa e, numerosos acervos são guardados sem registro ou informações;
3) Em ambos os casos, nada avaliza a documentação, a criação 30
de um Banco de Dados ou Inventário do acervo no espaço museológico
ou acadêmico, pois a prioridade da publicação dos resultados – como
relatório, artigo, monografia, dissertação ou tese – se impõe sobre a gestão
documental e de guarda;
4) Em instituições museológicas, a gestão do acervo nem sempre
é percebida como prioritária e espaços de Reserva Técnica, restritos a sua
invisibilidade, nem sempre são organizados.

História da Arte Técnica


Nesse contexto, quando um projeto específico para readequação de espaços
destinados à guarda de coleções é aprovado, a fase da implementação é o
momento de maior vulnerabilidade do acervo, pois implica em operações
de retirada, translado e reorganização do acervo para outro espaço.
Roubo, furtos e perdas são comuns nesse momento e, sem um controle
documental, uma vez perdido, perdido está. Além disso, a vulnerabilidade

Ciência & Conservação


se instala em um duplo operacional: a potencialidade da dissociação da
informação pela carência de registro do objeto e da degradação física do
objeto devido à sua movimentação.
Assim, a vulnerabilidade informacional implica dois problemas conceituais
e técnicos: a perda das informações específicas da pesquisa científica e a
falta de controle documental do acervo. O Banco de Dados é a ferramenta
que responde por estas questões e, consequentemente, deve ser protocolo
prioritário nas ações de Conservação Preventiva.
Protocolos de Conservação Preventiva para gestão de acervos
científicos
Pensar o Inventário como protocolo introdutório ou basilar da prática da
Conservação Preventiva não significa desqualificar ou minimizar o impacto
de todos os outros fatores ambientais, pois um acervo inventariado
submetido a ataque biológico é tão alarmante quanto um acervo não
inventariado cujos registros foram perdidos. Nem tampouco ultrapassa os
limites de competência da área, pois o princípio da preservação é gestado
pela transdisciplinaridade.
A questão não é colocar qual problema é mais significativo ou prioritário,
mas perceber que a especificidade de acervos científicos impõe um
olhar diferenciado para a área de Conservação Preventiva, a qual deverá
estabelecer um estreito diálogo com o pesquisador para compreender as 31
reais exigências de preservação. Por sua vez, a capacidade ampliada da
Conservação Preventiva prevê um deslocamento entre, além e através de
múltiplas disciplinas na busca de soluções dos problemas relacionados à
gestão e à preservação das coleções, atuando para além de paradigmas
fixos gestados em áreas fixadas.
Acervos de História Natural, por exemplo, apresentam “coleções tipo”
que envolvem um cuidado particularizado. Essas coleções são compostas

História da Arte Técnica


por indivíduos de uma determinada espécie que deram origem ao estudo
taxionômico e/ou inauguraram uma nova classificação. Ainda que
existam milhares de artrópodes, o primeiro Seira ritae (nova espécie de
animal microscópico importante para o equilíbrio ecológico e preservação
da biodiversidade das praias) descoberto torna-se prova da primazia de
determinado cientista, universidade ou país em relação ao registro de

Ciência & Conservação


um novo espécime. Essa distinção deve ser levada em conta na gestão
do acervo. Por conseguinte, a gestão de acervos científicos impõe uma
interlocução entre as áreas responsáveis pela pesquisa, organização e
conservação de coleções.
Coleções arqueológicas e etnográficas demandam um registro acurado da
coleta ou escavação, o qual deve ser sinalizado em todos os sistemas de
documentação: da embalagem à ficha catalográfica. Os registros de campo
– fílmico, fotográfico, cadernetas etc. – precisam ser tratados como acervo
e, se possível, digitalizados para consulta e organização informacional, o
que implica na construção de um bando de dados sobre aproximações
e acesso para com o objeto de estudo. Por exemplo, os registros das
expedições de Max Schmidt (1874-1950) ao povo Umutina nos anos
vinte diferem completamente daqueles produzidos pelas expedições de
Harald Schultz (1906-1966) nos anos quarenta e abarcam documentos
extremamente distintos.
Além dessa documentação de coleta, toda a documentação resultante
da pesquisa acerca da tecnologia de construção do objeto, arqueometria
e intervenções de conservação- restauro, bem como das pesquisas
que fundamentaram o diagnóstico e a tomada de decisões, devem ser
contempladas.
Assim, da análise especializada do pesquisador que dá voz ao objeto – da
Antropologia à Arqueologia – aos estudos dos pesquisadores que ampliam 32
essa voz pelo estudo da materialidade e dos pesquisadores que contribuem
par a manutenção dessa voz por meio da conservação dessa materialidade
– a Ciência da Conservação –, o Inventário torna-se uma ferramenta importante
de corporação dessas informações. ).
Além das informações específicas de coleta, análises e intervenções, as
informações relacionadas à localização do objeto são extremamente
importantes: o mapeamento em Reserva Técnica é indispensável, bem como

História da Arte Técnica


o controle de acesso e translado. Essa prática não é usual e inúmeras
instituições científicas se deparam com uma perda constante de seus
artefatos: onde esta a borduna Tokuna que estava no armário? Cadê meu
batedor que estava no laboratório? A vulnerabilidade dos acervos é maior
internamente nas instituições pela falta de gerenciamento das informações
de translado do que nos processos de empréstimo e exposições

Ciência & Conservação


externas, pois nesses contextos de intercambio institucional as regras de
movimentação são sempre mais claras.
A política de translado de acervo internamente deve ser coerente
e contínua, e a documentação de entrada do acervo na instituição
imediatamente implementada em sua chegada. A localização das peças
nos laboratórios de investigação ou de conservação também precisa ser
sistematizada desde o ingresso do acervo. Após a análise e as intervenções
de conservação e restauração, a embalagem e a organização em RT
necessitam ser mapeadas e registradas em um campo específico da ficha
de registro. Na implementação de projetos de Conservação Preventiva, o
Diagnóstico de Conservação deverá fornecer os dados indispensáveis sobre
a política de gestão informacional desses acervos, incluindo questões de
documentação de translado e localização.
Por sua vez, a implementação de projetos específicos de reformas das
salas que abrigam ou expõem as coleções, do edifício como um todo ou
da adequação desses espaços deveria prever o controle da movimentação
do acervo e, caso o acervo não esteja inventariado e organizado em um
banco de dados, este seria o momento ideal para a implementação deste
protocolo. Uma vez que esses projetos normalmente contemplam a
adaptação do edifício, o planejamento do mobiliário e a implementação
de sistemas de acondicionamento adequados, normalmente nesta ultima
fase os registros fotográficos e informacionais podem ser realizados. A 33
equipe de conservação, por conseguinte, precisa associar os protocolos
de armazenagem e documentação. O cronograma da proposta definirá
os campos que serão preenchidos nesse momento e, assim, a ferramenta
do banco de dados não poderá ser fechada, mas aberta à adição de novos
campos de informação.
A segurança da documentação científica do acervo permite que uma nova
forma de organização das coleções em Reserva Técnica seja vislumbrada.
Normalmente os acervos são organizados por procedência, coleta

História da Arte Técnica


ou coletor; esta prática implica em justapor materiais de características
diversas e que, geralmente, interagem de forma a comprometer a
conservação uns dos outros. Cada elemento possui uma propriedade de
se relacionar com níveis distintos de temperatura, luz e umidade, como
também admitem estruturas físicas e químicas desiguais. Líticos e vidros
em uma mesma gaveta, plumas e crânios em uma mesma caixa conduzem

Ciência & Conservação


à crônica de uma degradação anunciada. As diferenças dimensionais e de
peso também implicam no planejamento e desenho do mobiliário e, deste
modo, a organização dos acervos em Reserva Técnica por suas características
materiais significa a elaboração de um plano de guarda eficiente, pautado
por parâmetros da Conservação Preventiva. Um projeto inteligente e
estratégico é aquele que reúne os quesitos necessários à preservação do
acervo: documentação, acondicionamento, adequação ambiental, plano de
manutenção do edifício, plano de vistoria, controle de ataque biológico,
protocolos de manipulação. É também aquele que contempla a viabilidade
das ações com transformações das práticas engendradas em hábitos
consuetudinários dos agentes institucionais.
Assim, a orientação para guarda do acervo a partir de suas características
materiais nem sempre é bem vista pelos pesquisadores de acervos
científicos, pois temem que a ação de não reunir todos os objetos
coletados em campo em um mesmo armário, setor ou sala específica
implique na dissociação da informação ou na desorganização do acesso.
Em nome desse controle, inúmeros pesquisadores conservam os
acervos em suas casas ou fazem do laboratório de pesquisa um espaço
de guarda, imprimindo um caráter feudal de posse e domínio. Na área
da Museologia, essa conduta é análoga e inúmeras vezes podemos ver em
uma mesma vitrina objetos que comprometem uns aos outros – como
objetos metálicos e têxteis expostos juntos – a partir de um parâmetro que
prioriza a informação em detrimento da conservação, sem compreender 34
que a migração dos componentes de corrosão sobre o tecido ocasiona
uma degradação imediata.
Os protocolos de organização de acervo em Reserva Técnica por
materialidade só podem ser implementados a partir de um gerenciamento
documental, portanto, a documentação museológica parte de uma
conversa interdisciplinar entre pares: não é prerrogativa desta ou daquela
área! Sua alimentação, nos atuais sistemas de informatização, deve ser

História da Arte Técnica


partilhada entre todos os setores que acessam, manipulam e estudam o
objeto. Porém, a responsabilidade pela movimentação do acervo deve
ser gerenciada sempre por um setor específico, definido no plano gestor
institucional.
Museologia, Arquivologia, Documentação, Ciência da Informação, Computação,
Ciência da Conservação, Antropologia, Etnologia, Arqueologia, História, Ciências

Ciência & Conservação


Naturais... quem tem a prerrogativa para a implementação dessa política
de controle e registro informacional do acervo?
Cada área chamará para si a responsabilidade, a diretiva, a localização
política no ápice de uma pirâmide imaginária. O princípio de vassalagem e
subordinação determina, então, uma fratura na comunicação entre agentes
que possuem o mesmo objetivo: a preservação dos acervos.
Essa arrogância normalmente emperra a implementação de projetos
e políticas ampliadas para a gestão das coleções e intensificando sua
vulnerabilidade em todos os níveis, informacional e material. Logo, é
indispensável compreender que a coordenação de projetos de gestão de
acervos científicos nem sempre será é privilégio de uma área: a competência
será motivada pela experiência e pela capacidade estratégica de gerenciar
pessoas que deverão partilhar seus conhecimentos específicos em nome
de um objetivo maior, a salvaguarda da coleção. As ferramentas específicas
de cada campo gestadas pela interatividade – não pela hierarquização de
princípios – possibilitam o sinergismo das ações.
Considerações Finais
A Ciência da Conservação, em virtude de sua amplitude transdisciplinar,
alarga o campo da Conservação Preventiva como uma área de ação pautada
pela concepção estratégica que reúne competências distintas necessárias à
implementação de uma política de gestão para a preservação de acervos. 35
A percepção da vulnerabilidade informacional dos acervos científicos
implica na criação de protocolos de gerenciamento documentais
importantes que abarcam todas as áreas envolvidas e são indispensáveis
para a elaboração de Diagnósticos de Conservação e Diagnósticos de
Risco, bem como na implementação de projetos voltados à Conservação
Preventiva das coleções. A implementação desses projetos deve
compreender esta vulnerabilidade em todas as suas fases.
O diálogo entre pares é fator primordial para a definição dos sistemas, das

História da Arte Técnica


prioridades e dos princípios norteadores que podem minimizar os riscos
da dissociação informacional, mantendo a voz e o potencial de pesquisa
dos acervos científicos.
___________
Referências

Ciência & Conservação


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37
Segredos necessários à Caligrafia e
Pintura em manuscritos - Século XVIII

História da Arte Técnica


Márcia Almada
EBA-Universidade Federal de Minas Gerais

Resumo

Ciência & Conservação


No presente artigo serão apresentadas oito técnicas de decoração de manuscritos pintados
no século XVIII na América portuguesa, recolhidas de um raro manual publicado em
Lisboa em 1749. Trata-se da obra de José Lopes Baptista de Almada, que reúne técnicas
dispersas em tratados e manuais de pintura e caligrafia, impressos ou manuscritos, e também
da tradição oral. A obra procurava sintetizar, de forma prática e fácil, o conhecimento
vigente à época..
Palavras-chave: pintura, caligrafia, manuscritos, séc.XVIII
Resumen
En el presente artículo se presentarán ocho técnicas de decoración aplicadas en los manuscritos pintados del
siglo XVIII en la América portuguesa, sacados de un raro manual publicado en Lisboa en 1749. La
obra de José Lopes Baptista de Almada reúne el conocimiento disperso en los tratados técnicos y manuales
de pintura y caligrafía, impresos o manuscritos, asimismo en la tradición oral. El autor trató de sintetizar,
de una manera práctica y sencilla, los conocimientos vigentes en el siglo XVIII..
Key words: pintura, caligrafia, manuscritos, sec. XVIII

Introdução
A sociedade setecentista estava acostumada a lidar com a visualidade
como um dos requisitos do discurso e, assim, manteve a antiga prática
de ornamentação de manuscritos, revestindo alguns documentos com um
caráter simbólico e solene a partir do uso de certos artifícios de natureza
material. Os sentidos e usos do documento adornado se modificaram
ao longo dos séculos e, na era moderna, devem ser compreendidos a
partir das mudanças nos hábitos de leitura e escrita possibilitadas pela 38
propagação da imprensa. A abrangência crescente da administração
pública nos estados monárquicos também atingiu os usos do manuscrito,
especialmente aqueles que vinham agregados com qualidade visual e
estética. Os manuscritos adornados retomaram, de uma forma intensa,
o seu estatuto de raridade, poder e tesouro e podem ser inseridos tanto
no campo da investigação em história da arte quanto no da história da
cultura escrita. A prática da América portuguesa deve ser percebida no

História da Arte Técnica


contexto internacional da cultura ocidental, destacando comparativamente
as especificidades regionais através da identificação de interações técnicas,
estéticas e iconográficas, seja pela identificação das fontes modelares,
textuais e gráficas que regeram a execução dos documentos, seja pelo
diálogo estabelecido com outras formas de expressão visual própria da
cultura colonial.

Ciência & Conservação


Para entender a importância do documento adornado, é necessário analisar
os aspectos técnicos construtivos juntamente com o papel assumido pela
escrita na era moderna e a atuação dos calígrafos e escrivães na sociedade
setecentista. É preciso tanto olhar o observador em suas competências
específicas quanto tomar a percepção como algo concreto, através das
características formais do objeto, destacando as competências do
executor, que são perceptíveis através da análise da aplicação das técnicas
e da escolha dos materiais.
Conforme afirma Robert Darnton, o significado do uso dos objetos
está relacionado às formas de produção, aos investimentos feitos, aos
esforços dos sujeitos em dominar as técnicas que resultem em produtos
necessários a uma determinada sociedade (DARNTON, 1998, p.200).
Assim, a observação dos aspectos materiais e visuais, bem como do
processo executivo utilizado, permite que se recolha informações decisivas
para compreender a qualidade, a capacidade técnica e os conhecimentos
teóricos ou práticos do executante, além de criar subsídios para a reflexão
sobre o trabalho, a fruição, o uso e a circulação dos objetos.
A letra desenhada e pintada
Na arte da escrita, há uma conexão clara que une a letra à pintura e ao
desenho. Esta ligação se estabelecia pelas regras que regiam as artes,
enquanto que forneceia os preceitos teóricos necessários à arte da escrita. 39
O domínio do desenho era importante principalmente para a execução
de letras especiais, como as capitulares e os rasgos caligráficos, que são
os volteios que a mão fazia com a pena sobre o papel, inscrevendo linhas
que extrapolavam a forma dos caracteres, criando adornos sobre a própria
letra ou em vinhetas e decorações marginais. As capitulares poderiam ser
caligráficas – feitas à pena - ou pintadas - como as iluminuras, usando
como instrumento principal o pincel e tendo como recurso de imagem
uma gama variada de pigmentos.

História da Arte Técnica


Esse conhecimento, que se perpetuava ao longo dos séculos, poderia ser
transmitido por meio da prática oficinal ou da leitura de obras impressas
e manuscritas. Em uma via de mão dupla, os próprios manuais poderiam
condensar um tipo de conhecimento que também se transmitia pela
oralidade. Como Portugal publicou poucos manuais de caligrafia e de
pintura, os tratados editados na língua espanhola foram os mais utilizados

Ciência & Conservação


(ALMADA, 2011).
Um raro caso de manual português impresso até o século XVIII – e
talvez o único – que trata conjuntamente da caligrafia, do desenho e da
iluminação de manuscritos é Prendas da Adolescencia, ou Adolescencia
Prendada, de José Lopes Baptista de Almada, editado em 1749.
Baptista de Almada nasceu na Vila de Chaves, província portuguesa
trasmontana, em data desconhecida. Era doutor em Direito Canônico,
tendo se formado pela Universidade de Coimbra (MACHADO, 1965-
67, t. 4, p. 193). Não era, portanto, um calígrafo profissional, mas com
certeza foi um grande conhecedor da matéria e pesquisador incansável,
características perceptíveis através das inúmeras citações a variados autores
e de algumas explicações práticas pouco divulgadas em outras publicações.
Além do português Manoel de Andrade de Figueiredo , as referências de
Almada para a arte da escrita foram os espanhóis Pedro Díaz Morante (a
quem é comparado em um dos poemas laudatórios), Juan de Iciar, Juan
Claudio Aznar Polanco, José de Casanova e o francês Louis Senault, entre
outros.
Sua abordagem do ensino da caligrafia e da pintura era essencialmente
prática, seguindo a seguinte motivação:
Obrigou-me a grande falta de livros, que nestas Artes
experimentam não só os nossos curiosos Portugueses, 40
mas ainda os Estrangeiros: porque não houve até agora
Autores alguns que se resolvessem a compor de algumas
novas matérias, ou Prendas, de que escrevo, nem se
determinassem, como eu, a descobrir-lhe tantos segredos, e
tantas curiosidades, quantas eles avaramente ocultaram em
algumas das Artes de que escreveram (ALMADA, 1749,
f.2).
O autor revelava o interesse coevo com a educação doméstica, “dos jovens
adolescentes ou de todas e quaisquer pessoas curiosas, e principalmente

História da Arte Técnica


para os inclinados às Artes ou Prendas de Escrever, Contar, Cetrear,
Debuxar, Iluminar, pintar, colorir, bordar, entalhar, miniaturar, etc.”
(ALMADA, 1749, P. 17). No ensino das letras, fez uma abordagem
descritiva e se eximiu de incluir gravuras de letras, fazendo apenas
referências, nas glosas do texto, das mostras já publicadas. Depois de
descrever teoricamente o modo de se traçar as letras e as diferenças

Ciência & Conservação


entre elas, passou ao que pode ser considerada a essência de sua obra: os
“segredos” para composição de tintas e as fórmulas práticas para executar
diversos artifícios no manuscrito, tais como as maneiras de tirar manchas
de azeite, renovar a tinta esmaecida, apagar letras escritas de forma errada,
reforçar ou engrossar papéis de pouca qualidade, escrever sobre objetos
de prata e usar os metais como pigmento. Em seguida, detalhou a técnica
de se elaborar o desenho de figuras humanas e de ornamentos caligráficos;
ainda apresentou, de maneira breve, algumas matérias pouco usuais, como
a aritmética hebraica e o alfabeto aritmético grego e romano.
Sua visão do ensino era claramente pragmática. A obra muito se assemelha
a outras do gênero, dedicadas aos ensinamentos práticos da pintura e do
desenho. Uma dessas obras, que inclusive serviu de referência para Almada,
foi Segredos das Artes Liberais e Mecânicas, escrita pelo espanhol Bernardo
de Montón e traduzida para o português por Joaquim Feyo Cerpa em 1744.
Almada ainda usou a obra Secretos del reverendo Don Alexo Piamontes,
editada na Itália no século XVII e com traduções em espanhol em 1640 e
1698. O reverendo Piamontes, como ele próprio afirmou no prólogo de
sua obra, passou 57 anos peregrinando pelo mundo, coletando “segredos”
sobre as artes, entre homens doutos, oficiais, lavradores, ou seja, toda sorte
de pessoas. O estudioso se interessava tanto pelas informações do círculo
dos letrados quanto das oriundas da cultura popular. Seu livro versa sobre
saúde, perfumes e sabões, culinária, além de trazer informações sobre 41
diversos pigmentos para pintura e iluminação.
Serão apresentadas, a seguir, oito das técnicas apresentadas por Almada,
cuja aplicação pode ser detectada em documentos produzidos na América
portuguesa e em Portugal, durante o século XVIII: 1. presença de desenho
subjacente; 2. uso de cópias diretas de modelos; 3. desenhos figurativos
feitos com volteios caligráficos; 4. uso de cetras em ornamentos e letras;
5. desenhos simétricos; 6. uso de letras enlaçadas, conforme o modelo de

História da Arte Técnica


Manuel de Andrade de Figueiredo; 7. uso do ouro ou prata; 8. pintura e
miniatura.

Desenho a lápis sob a letra ou pintura


O desenho a lápis sob a letra ou pintura é um procedimento básico para
a decoração de manuscritos. De fato, o desenho estava na origem da

Ciência & Conservação


imagem inscrita em diversos suportes (papel, tecido, madeira, pedra), fosse
para as plantas arquitetônicas, os mapas econômicos, as cartas geográficas,
as pinturas de paisagens. Enfim, era útil para várias profissões, como
defendia o teórico português Félix da Costa em Antiguidade da pintura
(FARIA, 2001, p. 47-48). O desenho se aproximava ainda mais da escrita,
na medida em que as duas atividades eram consideradas representações
gráficas do pensamento. Assim, para muitos calígrafos, a capacidade de
escrever era também a de desenhar capitais ornamentadas, cercaduras e
vinhetas.
De uma maneira geral, percebe-se que os esboços feitos a lápis anteriormente
ao desenho final ou à pintura era uma constante. Esta característica sugere
que poucos calígrafos portugueses se sentiam confiantes em soltar a mão
e executar os “rasgos naturais”, que eram feitos sem estudos prévios,
capacidade atingida por aqueles que tinham muito treino anterior. Os
desenhos subjacentes são características dos “rasgos artificiais”, aqueles
feitos a partir de modelos. O desenho a lápis igualmente estava no cerne
das várias técnicas de reprodução de imagens.

Métodos de reproduzir desenhos


A cópia de modelos iconográficos, de padrões de design, de letras ou de
ornamentos não constituía nenhum problema para os artífices durante
o século XVIII, que nem ao menos necessitavam ocultar suas fontes, já 42
que o imitatio era aspecto central da obra artística do período. Tal como
as técnicas utilizadas nos livros medievais e aquelas apresentadas por José
Lopes Baptista de Almada, várias das capitulares e decorações marginais
de manuscritos adornados foram copiadas diretamente dos manuais de
caligrafia seiscentistas e setecentistas. José Lopes Baptista de Almada
dedicou toda uma parte de sua obra aos modos de copiar desenhos, cujo
título já deixa implícita a sua utilidade: “Socorro particular para os curiosos
que não souberem dibuxar” (ALMADA, 1749, p. 79-83). São cinco as

História da Arte Técnica


maneiras que ensinava:
a) A primeira é a técnica de fazer um quadriculado sobre a
imagem, repetindo-o na folha que se quer desenhar, de igual tamanho,
maior ou menor conforme se deseje manter o formato original, aumentá-
lo ou reduzi-lo. O quadriculado será uma referência das distâncias entre
cada parte do contorno da imagem, facilitando sua cópia indireta pelo

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desenhista;
b) A segunda maneira é fazer um decalque do desenho refazendo
suas linhas com lápis ou carvão, deitar esta face do original sobre o papel
que se quer ornamentar e brunir pelo verso usando uma concha muito
lisa. Para diminuir o brilho causado pela abrasão com a concha, o autor
recomendava que se usasse uma interface de papel limpo. Nesta técnica, o
desenho original ficaria em posição invertida;
c) A terceira técnica consistia em aplicar carvão sobre o verso da
folha que contém o desenho, colocá-la sobre a folha que se quer decorar
e depois contornar as linhas do desenho com uma espátula (“ponteiro”)
de osso ou de madeira. Esta técnica fazia com que o desenho ficasse na
mesma posição que o original;
d) No quarto modo utilizava-se um vidro colocado sobre o
desenho, no qual seria delineado o contorno da imagem com tinta preta.
Depois de seca a tinta, aplicava-se um papel molhado sobre o vidro,
esfregando suavemente com uma esponja, ao modo de gravura. O papel
deveria permanecer sobre o vidro por meia hora e, depois de ser removido,
o contorno do desenho seria perfurado com agulhas e transposto para
outro suporte através da aplicação de pó de carvão com uma “boneca”,
técnica conhecida como spolvero ou, popularmente, como picadinho;
e) A quinta técnica consistia em fazer um papel translúcido
43
impregnando-o com azeite quente. Este papel, depois de preparado, seria
colocado sobre o desenho, que teria suas linhas copiadas com tinta. O
molde de papel translúcido depois seria utilizado para a transferência
definitiva com a técnica spolvero.
Outra prática utilizada foi a reprodução dos desenhos feitos pelo próprio
artista, usando a transparência da folha para copiar a imagem da frente.
Esta técnica, de origem medieval, foi utilizada em vários manuscritos

História da Arte Técnica


setecentistas.
Foram localizados alguns exemplares de manuais de caligrafia que guardam
as marcas dos processos de cópia. No acervo da Biblioteca da Residencia
de Estudiantes, em Madri, existe um exemplar do livro Arte de escrever,
de Antonio Jacintho de Araujo (Lisboa, 1794), que teve vários ornamentos
e letras perfurados por agulha. Como não há marcas de carvão sobre a

Ciência & Conservação


superfície do papel, é possível que os furos tenham sido feitos sobre
outras folhas que seriam usadas como moldes de transferência dos
desenhos, como recomendavam alguns autores. Também exemplares da
obra de Manoel de Andrade de Figueiredo, que sem dúvida foi a grande
referência da caligrafia nos domínios portugueses, apresentam marcas
físicas dos processos de cópia direta. É o que pode ser percebido no livro
pertencente à Biblioteca da Universidade de Coimbra, que apresenta várias
perfurações de agulha nos contornos de imagens, indicando o uso da
técnica do spolvero. Há também um exemplo de cópia pelo delineamento
com lápis no verso da folha em uma vinheta com dois pássaros e cetras.
Além das marcas na própria página, o pigmento ficou estampado na
página subsequente. O desenho que foi copiado era bastante apreciado
para decorar manuscritos pintados, seja no Brasil, seja em Portugal.

Desenhos figurativos feitos com volteios caligráficos


Para realizar os desenhos figurativos com volteios caligráficos, a primeira
recomendação dada por José Lopes Baptista de Almada era desenhar com
uma pena de lápis os contornos das figuras na posição e postura que se
desejasse. No caso das figuras nuas, recomendava que se devia guardar
o “decoro e honestidade” (ALMADA, 1749, p.61-63). Somente depois
que o desenho estivesse finalizado e de acordo com a “devida proporção
e simetria”, deveria ser coberto com “linhas enroscadas” (os volteios 44
caligráficos), conselho que demonstrou visualmente em uma das poucas
imagens de seu livro. O autor dava detalhes para a perfeita consecução da
técnica como, por exemplo, estar atento a que os volteios sempre fossem
feitos para dentro da linha do desenho inicial, para que não se perdessem
as proporções alcançadas. No caso de figura com asas, fitas, bandas ou
outros elementos externos ao corpo principal, os volteios deveriam ser
cobertos a tinta com a mesma linha que se tivesse feito o corpo, dando
a impressão de ter sido feito com um único movimento de pena. Para os

História da Arte Técnica


modelos passíveis de serem copiados, remetia aos trabalhos de Manuel
de Andrade de Figueiredo, Pedro Diaz Morante e Senault (francês). As
figuras vestidas com “franjões, plumagens, peito, elmo, escudo, etc., tudo
proporcionado ao sexo e condição da mesma figura” (ALMADA, 1749, P.
65), seguiriam as mesmas instruções, acrescidas de uma maior dificuldade
para adaptar as vestimentas aos corpos.

Ciência & Conservação


Após a finalização do desenho, o autor ensinava como preparar o papel
para receber a tinta, para que ela “pareça impressa” (FIGUEIREDO, 1722,
p. 34) aplicando-se uma camada de “goma graxa” (pó feito a partir de casca
de ovo finamente moída) com uma bolsa feita com pano de linho, em
pressões suaves sobre o papel. Após essa preparação, o calígrafo deveria
preparar uma pena com a ponta muito fina e curta e cobrir o desenho com
a tinta preta. A sugestão do autor para dar uma aparência profissional ao
desenho era fazer as linhas parecerem perfeitamente unidas, mesmo que
tivessem sido cobertas com movimentos descontinuados da pena,
porque de outra sorte ficarão penadas sem primor e sem
gala. Neste ponto se funde toda a admiração dos que não
sabendo o modo de fazê-las, entendem que pegando a pena,
sem mais preparação alguma, se fez inteiramente o artifício
de toda a figura ou penada (ALMADA, 1749, p.63).
Um dos efeitos elegantes e desejáveis na escrita à pena era o uso de
diferentes espessuras das linhas feitas em uma mesma sequência. Esse
efeito poderia ser atingido de várias maneiras. Uma delas era a variação da
pressão da pena sobre o papel; outra era a mudança de posicionamento
da pena de ponta larga durante o trajeto da mão, da forma como Andrade
ensinou. Isto exigia uma habilidade extrema do calígrafo. Almada, porém,
ensinava um modo mais prático e fácil de alcançar os “grossos” da linha.
Primeiro dever-se-ia cobrir todo o desenho com a linha fina e somente
depois aplicar a segunda camada de tinta, fazendo as linhas grossas.
45
Novamente, o importante, no entender do autor, era que, ao encorpar
e unir os riscos finos, o manejo da pena devesse ser “de tal modo que
quem os vir fique entendendo que de uma penada, ou golpe, foram feitos
uns e outros” (ALMADA, 1749, p.65). Ainda dava recomendações básicas
como não deixar cair as linhas finas sobre outras igualmente finas, nem
linhas grossas sobre outras grossas, manejo que prejudicaria o efeito de luz
e sombra alcançada pelas diferenças de espessura da linha.

História da Arte Técnica


Este artifício técnico facilitava em muito a execução das ornamentações. A
preocupação repetida do autor de “fazer parecer” que os desenhos haviam
sido feitos conforme as técnicas mais elaboradas da caligrafia é própria
do público que se pretendia alcançar, ou seja, aqueles que eram iniciantes
ou não especialistas na arte da escrita. De certa forma, o objetivo dos
livros que continham os “segredos” das artes, era a de popularizar o

Ciência & Conservação


conhecimento, tornando-o acessível a uma parcela maior de interessados.
Estes recursos foram utilizados por calígrafos/pintores na América
portuguesa e podem ser percebidos através de um olhar aproximado para
as linhas do desenho, que deixam visíveis as emendas feitas em muitos
tracejados das ornamentações.

Desenhos de cetras
As cetras são os desenhos formados por uma série de linhas entrelaçadas,
partindo de um centro quadrangular. Esta decoração era usada com
diversas finalidades, para compor hastes de letras, vinhetas, bordaduras
e complementos de desenhos caligráficos figurativos. As cetras aparecem
para o espectador como intricados labirintos, feitos a partir de uma só
linha contínua. Uma maneira prática de fazer tais elementos foi ensinada
por Almada (ALMADA, 1749, p.66-68). Inicialmente, quatro linhas
equidistantes à maneira de um X deveriam ser traçadas com uma pena de
lápis, como demonstrado visualmente em seu livro. As pontas das linhas
seriam complementadas com linhas curvas ou ovais, que deveriam se unir
a uma das pontas soltas do mesmo lado. Esta linha corresponderia a um
mesmo desenho do lado oposto, continuando assim de um lado e de outro
até que todas estivessem unidas. Novamente a recomendação era que se
fizesse de tal maneira que tudo parecesse ter sido feito de uma só vez.
Depois de riscada a cetra com lápis, aplicava-se a goma graxa no papel
46
e se dava início à aplicação da tinta preta. O desenho de determinados
complementos do ornamento, como anjos ou escudos, deveria ser feito
no momento inicial. O autor adverte que, ao fazer ornamentos figurativos,
era necessário que se guardasse a aproximação com “a forma da coisa, de
tal sorte que assim como se vir a obra fique logo se percebendo tudo o que
em si contém, ou as coisas se compõem” (ALMADA, 1749, p.68).

Desenhos de quinas repetidas simetricamente cetras

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As bordaduras com decoração de quinas repetidas simetricamente eram
chamadas por Almada de “redes de cetras” e tinham como fundamento
a simetria das formas. Para executar os ornamentos de forma simétrica,
o papel deveria ser dobrado ao meio, sendo riscadas algumas cabeceiras,
cantos e lados, deixando linhas soltas para se unirem com outras cetras.

Ciência & Conservação


Para aqueles que encontrassem dificuldade em manter o mesmo desenho
de cima a baixo, o autor ensinava as maneiras de reproduzir o desenho. Com
o papel dobrado ao meio, passava-se a tinta sobre as partes já desenhadas
e, antes que a tinta secasse, um lado do papel seria pressionado sobre o
outro, deixando assinaladas as linhas, que deveriam ser posteriormente
complementadas. A transferência do desenho poderia também ser feita
pelo método de decalque com o uso do lápis. O papel deveria então ser
dobrado e brunido com uma concha fina. Para remover o vinco causado
na folha pela dobra, o autor recomendava simplesmente que se fizesse
uma dobra contrária. Em sua opinião, não era desejável que aparecessem
grandes áreas sem decoração; para sanar o problema, os vazios seriam
preenchidos com algumas linhas enroscadas.

Letras enlaçadas de Manoel de Andrade de Figueiredo


Como tem sido discutido, o livro Nova Escola para aprender a ler, escrever
e contar, de Manoel de Andrade de Figueiredo, foi utilizado não apenas
como um manual das primeiras letras, mas também como um repositório
de ideias e modelos para ornamentação de manuscritos. Manoel Andrade
de Figueiredo apresentou as capitulares constituídas a partir de cetras em
três gravuras de seu livro (FIG. 1). A partir daqueles modelos, José Lopes
Baptista de Almada descreveu em detalhes as maneiras de se aplicar a
decoração. Conforme dizia o autor dos “segredos” da caligrafia, as letras 47
capitais são as letras de rasgo solto, que servem como maiúsculas e aparecem
no princípio de qualquer escrita; podem ser ornadas com “penadas, peixes,
aves, búzios, florões, fruteiros, anjos, grotescos troncos, ou de qualquer
coisa, conforme a ideia do curioso escrevente e desenhista” (ALMADA,
1749, p.70). Novamente, o que parece ser um intrincado labirinto de
linhas cruzadas é decifrado pelo autor, que fornece uma técnica para guiar
a direção do tracejado: fazer um modelo da letra que se quer com um

História da Arte Técnica


barbante grosso, entretecendo-o como um alamar. O desenho deveria
ser feito a partir do modelo de barbante, prestando-se atenção quando
as linhas iam por baixo ou por cima. Segundo o autor, “esta invenção foi
a mais fácil que pudemos descobrir para estas letras” (ALMADA, 1749,
p.70).

Ciência & Conservação


Figura 1 – Letras com cetras de Manoel de Andrade de Figueiredo, gravura 37

Escrever letras com ouro ou prata


A decoração de letras e de vinhetas com pigmentos metálicos, como o ouro
e a prata, foi recurso muito utilizado na ornamentação de documentos
na América portuguesa. O brilho e a densidade do efeito pictórico
destacavam a riqueza do manuscrito. Os pigmentos metálicos poderiam
ser encontrados como folhas finíssimas, que eram aplicadas com o uso
de bases preparatórias específicas a partir de técnicas requintadas que 48
exigiam um grande domínio do material e habilidade do artesão. Na talha
e na escultura policromada, o douramento era feito pelos que ocupavam
o ofício de dourador, sendo que, nas Minas, o trabalho foi exercido pelos
pintores (ARAÚJO, 2010, p. 108) tal a complexidade da técnica. O metal
poderia ser também encontrado como pó, cuja aplicação era muito mais
simplificada.
Conforme explica José Lopes Baptista de Almada, inicialmente a goma
arábica dissolvida em água comum deveria ser aplicada com um pincel

História da Arte Técnica


sobre as letras, servindo como um adesivo do pigmento (ALMADA, 1749,
p.21-22). O autor sugeria que se misturasse açafrão à goma para que esta
ganhasse alguma coloração e facilitasse a sua aplicação sobre o papel. O
recurso também servia para complementar alguma parte não preenchida
pelo ouro. O adesivo poderia ser substituído por leite de figueira. O ouro
em pó deveria ser aplicado com um pincel antes da secagem completa da

Ciência & Conservação


goma e depois seria brunido com miolo de pão.
O alto índice de uso de pigmentos metálicos em documentos pintados
de Minas Gerais não está relacionado com a disponibilidade do material
bruto, já que para ser transformado em pigmento, deveria passar por
processos específicos. As folhas metálicas não eram produzidas na região e
chegavam principalmente a partir do porto do Rio de Janeiro (COELHO,
2005, p.240). Pode, sim, ser um indício da pujança e do gosto pelo luxo
daquela sociedade.

A pintura e a miniatura
Na quarta parte de sua obra, José Lopes Baptista de Almada tratou da
Arte de Iluminar e colorir. Segundo o autor, a arte de iluminar seguia os
mesmos princípios das demais pinturas, pois não importava que as tintas
possuíssem composições ou suportes diferentes (óleo, têmpera, goma;
papel, tela, parede). Seguindo os teóricos antigos, como Aristóteles, Plínio,
Xenofonte, entre outros, entendia que a iluminação compreendia a forma
e a matéria:
O debuxo é a forma, e o colorido, ou as tintas, nesta Arte, são
a matéria, que com o debuxo constituem o representativo
ser de todas as coisas visíveis, em determinada espécie, onde
cada uma individualmente tanto é mais perfeita quanto o
debuxo mais com a sua simetria se acomoda (ALMADA,
1749, p. 86). 49
O autor seguia a categorização do desenho entre natural e artificial.
Natural compreenderia as formas “realmente existentes”, sejam racionais
(homens, mulheres, meninos), sensitivas (animais) e vegetativas. Desenho
artificial seria relativo às coisas mistas ou compostas de coisas naturais
e não naturais, como os grotescos com figuras de faunos, sátiros, etc. A
matéria (ou cor), seria o resultado de um condicionamento de sombra
e luz, embora “não deixará de ser colorida qualquer matéria idônea, a

História da Arte Técnica


que as cores, ou tintas, se aplicarem ainda [que] sem ordem” (ALMADA,
1749, p. 87). As tintas naturais eram as terrosas: ocre, terra verde e terra
negra; as artificiais (também chamadas de floridas) eram as melhores para
a iluminação: sombras de cintra, verdete, negro de fumo, sinople, verde
lírio, tinta da china, cinzas azuis, verde estilado, verde bexiga, flor de anil,
guta gamba, carmim, açafrão, vermelhão e zarcão. A partir da obra de

Ciência & Conservação


Felipe Nunes, ensinava todas as combinações para realçar ou “amansar”
as cores e como fazer as melhores diluições para efeitos de meio tom.
Assim, Almada ensinava detalhadamente como usar as cores para atingir
os efeitos desejados, em sua graduação, efeitos de luz e sombra e de claro
e escuro. Outra técnica convergente entre a pintura e a caligrafia é o que Almada
designou como miniatura, “uma espécie de pintura monocromática (...) feita por uma
repetida imposição de pontos, uns sobre outros graduados na cor” (ALMADA, 1749,
p. 129).
Como a definição comum de miniatura está comumente ligada ao uso do
minium, um pigmento vermelho usado em iniciais em livros medievais, o
termo pontilhismo é mais adequado para nomear essa técnica de pintura.
Poderia ser usada a tinta da China (preta) ou qualquer outra que se quisesse,
mais escura ou em meio tom, em diversas aplicações consecutivas, até
que se atingissem os efeitos desejados de volume e luz. Alguns pintores
utilizavam pontos localizados de pigmento ouro ou prata. Para executar
esta pintura, utilizava-se uma pena de ponta finíssima, aproximando
os instrumentos do pintor e do calígrafo. Também é possível fazer
pontilhismos com o uso de várias cores.
Quanto à pintura, ela esteve presente não só nas letras, mas em vinhetas,
bordaduras, página de rosto e frontispício de livros e documentos
manuscritos. Nestes casos é onde melhor se coordena o trabalho do
calígrafo e do pintor, algumas vezes feito por apenas um profissional, 50
outras por distintos sujeitos que possuíam domínios diferenciados, como
será abordado no capítulo seguinte. Em relação aos padrões de decoração
de letras e vinhetas utilizados pelos calígrafos e pintores de manuscritos
na América portuguesa durante o século XVIII, é preponderante a obra
de Manoel de Andrade de Figueiredo. Mas isto não excluiu a presença de
modelos produzidos por profissionais de outras partes do mundo, que
poderiam circular de forma impressa ou manuscrita. O livro de Andrade é

História da Arte Técnica


um eco de muitas dessas referências, especialmente as espanholas.
As comparações que podem ser feitas entre os “segredos” e suas
aplicações revelam que muitos manuscritos foram ornamentados a partir
do conhecimento apenas básico das regras, não só no Brasil, mas também
em Portugal. Este conhecimento, pautado na aprendizagem prática -
em alguns casos autodidata - e na habilidade manual, ampliava o rol de

Ciência & Conservação


indivíduos capazes de sua realização. Assim, compreende-se a existência de
vários documentos com as mais diversas qualidades técnicas, característica
extremamente significativa para a compreensão dos usos dos documentos
pintados durante o século XVIII.
_________
Notas
1. FIGUEIREDO, Manoel de Andrade de. Nova Escola para aprender a ler, escrever e contar. Lisboa
Ocidental: Oficina de Bernardo da Costa de Carvalho, 1722

2. “Curiosos” são os especialistas da arte da escrita ou aqueles que estão em vias de se formar. Em
uma passagem, o autor fala: “temos tratado da Arte de Escrever, dos seus instrumentos, e adereços
para os Escreventes em geral: resta-nos agora satisfazer ao desejo dos curiosos, escrevendo algumas
curiosidades, que a experiência, e alguns Autores estrangeiros nos ensinaram”. Em outra passagem
fala de “curioso adolescente”, ou “curioso principiante”.

3. Cf. gravuras 37,38 e 39.

4. Alamar é um enfeite ou ornato do vestuário, feito com requife ou cordão trançado de seda, lã ou
metal, formando, por vezes, alça ou presilha à frente.

5. Essas técnicas podem ser encontradas na obra de Filipe Nunes. Arte da pintura: symetria, e
perspectiva, p. 124-126 e foram analisadas por Márcia Almada, em Livros iluminados na era moderna,
p. 59-61.

6. Sinople é um termo que pode indicar a cor vermelha ou ocre, e ainda, na heráldica, a cor verde (em
francês) ou a preta.

___________
51
Referências
ALMADA, José Lopes Baptista de. Prendas da adolescencia, ou adolescencia prendada com as
prendas, artes, e curiosidades mais uteis, deliciosas, e estimadas em todo o mundo: obra utilíssima nam
só para os ingenuos adolescentes, mas para todas, e quaesquer pessoas curiosas; e principalmente para
os inclinados ás Artes, ou prendas de Escrever, Contar, Cetrear, Dibuxar, Iluminar, Pintar, Colorir,
Bordar, Entalhar, Miniaturar, etc. Lisboa: Officina de Francisco Silva, 1749.
ALMADA, Márcia. Das artes da pena e do pincel. Caligrafia e pintura em manuscritos no século
XVIII. 2011. 2 vol. Tese (Doutorado em História Social da Cultura) – Faculdade de Filosofia e
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História da Arte Técnica


ALMADA, Márcia. Livros manuscritos iluminados na era moderna: compromissos de irmandades
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ARAÚJO, Jeaneth Xavier. Os artífices do sagrado e a arte religiosa nas Minas setecentistas: trabalho
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COELHO, Beatriz (Org.). Devoção e arte: imaginária religiosa em Minas Gerais. São Paulo: Editora
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Ciência & Conservação


DARNTON, Robert. Os best-sellers proibidos da França pré-revolucionária. São Paulo: Companhia
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FARIA, Miguel Figueira de A imagem útil: José Joaquim Freire (1760-1847) desenhador topográfico e
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FIGUEIREDO, Manoel de Andrade de. Nova Escola para aprender a ler, escrever e contar. Lisboa
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MACHADO, Diogo Barbosa. Bibliotheca lusitana: histórica, crítica, e cronológica na qual se
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NUNES, Philippe. Arte da pintura: symmetria, e perspectiva. Lisboa: Pedro Crasbeeck, 1615. Edição
fac-similada. Porto: Paisagem, 1982.

52
O Restaurador de quadros e o
Conservador da Pinacoteca: reflexões

História da Arte Técnica


históricas
Aloisio Arnaldo Nunes de Castro
Doutorando PPGA-EBA-UFMG

Yacy-Ara Froner (orientadora)

Ciência & Conservação


PPGA-EBA-UFMG

Resumo
Este artigo pretende analisar o perfil histórico e conceitual do profissional atuante na
conservação e restauração de acervos em papel no âmbito brasileiro. Para tanto, faz-se a
contextualização histórica da conservação e restauração de acervos no Brasil, investigando
origens, influências históricas, sociais e culturais. Na perspectiva de análise de Pierre
Bourdieu, enfoca o conservador-restaurador como “ator social”, bem como a maneira com
que as práticas e narrativas preservacionistas são construídas, legitimadas e apropriadas
pelos agentes e instituições sociais..
Palavras-chave: História da Conservação, Epistemologia, Conservador-Restaurador,
Papel, Documentos Gráficos
Abstract
This paper analyses the historical and conceptual profile of the professional whose work involves conservating
and restoring paper collection in Brazil. With this end in view, a historical contextualization of conservation
and restoration of collection in Brazil is presented seeking out the origins and the historical, social and
cultural influences. From the perspective of Pierre Bourdieu’s analysis it focuses on the conservator-restorer
as a “social actor” as well as the way by which preservationist practices and narratives are constructed,
legitimized and appropriated by the social institutions and agents.
Key words: History of Conservation, Epistemology, Conservator-Restorer, Paper, Graphic Documents

Introdução
As reflexões apontadas neste estudo procuram delinear, em perspectiva
diacrônica, uma breve radiografia do profissional atuante na conservação
e restauração de acervos em papel no âmbito brasileiro, investigando o
53
perfil de formação, formas de conduta, bem como a participação deste
sujeito na construção do espaço social preservacionista.
Ao longo das últimas décadas do século passado, esperou-se dos
conservadores-restauradores de bens culturais, o domínio das técnicas
intervenção no bem cultural deteriorado, o estudo científico sobre a

História da Arte Técnica


constituição material dos bens culturais, assim como o conhecimento
dos procedimentos metodológicos de conservação preventiva. Todavia, o
debruçar sobre o conhecimento acerca da história da própria disciplina em
que trabalham ou em que pesquisam - em suas distintas temporalidades
– ainda não pôde ser constatado no âmbito preservacionista ou no meio
acadêmico.

Ciência & Conservação


Nesse sentido, como bem assinalou Beatriz Kühl em seus estudos sobre
história e ética da conservação, as ações cotidianas de conservação
e restauração, compelidas por razões de cunho pragmático, dedicam
pouco tempo à análise dos princípios teóricos que regem as escolhas dos
meios técnico-operacionais que utilizamos para atingir os objetivos da
preservação. Portanto, muitas questões teóricas são negligenciadas e, de
outra parte, a fé cega ao tecnicismo demarcado nas últimas décadas pode,
muitas vezes, culminar em intervenções equivocadas1.
Assim, aponta-se para a necessidade de uma discussão mais aprofundada
no que diz respeito ao estudo dos critérios teóricos, históricos e éticos que
norteiam as ações de conservação e restauração dos bens culturais móveis,
em particular aquelas demarcadas no cenário preservacionista brasileiro.
Do artista-restaurador ao pós-graduado em Ciência da Conservação, esta
pesquisa busca identificar os contextos históricos nos quais os atores sociais
dedicados à conservação e restauração de acervos em papel forjaram a sua
atuação profissional, bem como objetiva examinar a formação e capacitação
profissional, as atribuições e os princípios éticos que nortearam suas ações
ao longo do tempo. Numa estratégica de investigação dos interstícios,
das narrativas e representações culturais2 preservacionistas, este estudo
enfoca o processo de desenvolvimento semântico e o perfil conceitual do
profissional brasileiro atuante na conservação e restauração quais sejam:
“conservador de pinacoteca”, “ajudante de conservador”, “conservador”, 54
“conservador-restaurador”, “conservador de biblioteca”, “técnico-
restauradores”, “conservador do patrimônio histórico e artístico”,
“restaurador de livros e documentos”, “técnico em assuntos culturais’,
“conservador-restaurador de bens culturais móveis” e, por fim, “cientista
da conservação”.
Tendo em vista a construção do recorte temático apresentado, as categorias
analíticas com as quais Bourdieu pensa a sociedade são adotadas como

História da Arte Técnica


viés interpretativo. Desse modo, temos a opção de colocar em paralelo
os conceitos de campus e habitus com a trajetória e a construção do
pensamento preservacionista brasileiro. Para Bourdieu, a sociedade é
configurada por vários espaços dotados de relativa autonomia, mas regidos
por regras próprias3. O conceito de habitus propõe identificar a mediação
entre o indivíduo e sociedade. Habitus é, então, “uma forma de disposição

Ciência & Conservação


à determinada prática de grupo ou classe, ou seja, é a interiorização de
estruturas objetivas das suas condições de classe ou grupos que gera
estratégias, respostas ou proposições objetivas para a resolução de
problemas postos de reprodução social”4.
Desse modo, os conceitos de campus e habitus são utilizados com ferramentas,
como fundamentos metodológicos na investigação e no deciframento do
espaço social demarcado pela preservação do patrimônio cultural, bem
como para o entendimento do percurso deontológico do profissional da
conservação e restauração de acervos em papel.
Situado – na arena preservacionista - o campo de conflito, de disputa,
da deterioração versus preservação, do efêmero versus permanência, da
obsolescência versus modernidade, da memória versus esquecimento,
poderíamos indagar à luz do pensamento bourdieusiano: Quem são
estes atores sociais que se dedicam à preservação do patrimônio cultural
constituído por acervos em suporte de papel? O que eles fazem? Como eles
se articulam (jogam) dentro do campo social? Que capital eles apresentam?
O habitus faz com que o indivíduo eleja preferencialmente grupos que
compartilham das mesmas escolhas, agrupando-os a partir do capital que
os mesmos dispõem. De acordo com Bourdieu, “os agentes constroem
a realidade social; sem dúvida, entram em lutas e relações visando impor
sua visão, mas eles fazem sempre com pontos de vistas referenciais
determinados pela posição que ocupam no mesmo mundo que pretendem 55
transformar ou conservar”5 . Desta forma, os conservadores-restauradores
de acervos em papel poderiam ser categorizados como atores sociais e,
assim, munidos do capital intelectual (conhecimento, técnica, códigos
culturais) e do capital social (relacionamento e redes sociais) agrupam-se
em torno da problemática da preservação do patrimônio cultural.
Num exame epistemológico, encontramos, na literatura dos oitocentos,
várias referências que fazem alusão à prática da “Arte da Restauração”.
Em 1846, é publicada a obra Essai sur l´art de restaurer les estampes et les

História da Arte Técnica


livres, autoria de Alfred Bonnardt que apresenta a “arte de restaurar”, sob
forma de receituário, com a descrição de variados métodos de remoção
de manchas, clareamento de papel e de reconstituição de gravuras e livros
raros6 . No ano de 1853, o restaurador do Museu do Prado, Vicente Poleró
y Toledo, publica a obra “Arte da Restauração”, na qual defende o conceito
de que “la restauraciòn és hermana cariñosa de la pintura” e, neste sentido,

Ciência & Conservação


o artista-restaurador deveria ter, além dos dotes artísticos como o domínio
do desenho e da mistura de cores, “perseverança e força de vontade”,
para praticar a “arte da restauração”, então desenvolvida nos porões dos
museus europeus7. Manuel de Macedo, conservador do Museu Nacional
de Belas Artes, em Lisboa, publica, em 1885, um livro de conservação e
restauração de pinturas e gravuras - que se incumbe de divulgar “noções
e preceitos da arte de restaurar” - no qual designa a restauração como
“apenas um ofício” e que “exige um conhecimento cabal dos processos
de pintura”. Ademais, Macedo, ao definir o perfil do então restaurador,
salienta que o retoque “constitui a parte artística de mister do restaurador,
pois o bom restaurador não pode deixar de ser um pintor consumado e
possuidor de talento”.
Reflexos desta concepção de restauração podem ser observados no
cenário brasileiro, no período correspondente ao Segundo Reinado,
conforme evidenciam os registros encontrados na Academia Imperial de
Belas Artes. Em 1855, Manuel Araújo Porto-Alegre, apoiado por D. Pedro
II, iniciou uma ampla reforma de modernização na Academia Imperial
de Belas - AIBA, buscando ajustar a instituição aos progressos técnicos
assinalados nos oitocentos, conhecida como Reforma Pedreira. Dentre
as várias ações inovadoras realizadas, Porto-Alegre instituiu o cargo de
“Restaurador de quadros e Conservador da pinacoteca”, disponibilizando
uma vaga correspondente. Tal iniciativa exemplifica, de modo pioneiro,
a inserção do profissional nos quadros de uma repartição pública do 56
governo, visto que não se consta a presença do referido funcionário nos
estatutos anteriores da instituição. Nesse contexto, há que se considerar a
possibilidade de que Porto-Alegre, durante a sua temporada de estudos na
Europa tomara conhecimento da “Arte de restaurar”, praticada em centros
franceses. Como se pode interpretar, inicia-se, portanto, a construção do
espaço social do profissional conservador na esfera pública. Dentre as suas
funções o “Conservador da Pinacoteca” deveria “fazer manter o asseio e
a ordem da Pinacoteca (...)” ou seguir a orientação que “A Pinacoteca

História da Arte Técnica


deve ser conservada sempre no maior asseio possível e será franqueada
diariamente a qualquer pessoa, ainda mesmo estranha, que a quiser
visitar”8. Depreende-se que o “Restaurador de quadros e Conservador da
Pinacoteca” trabalhava com uma extensa variedade de acervo, inclusive
com papéis, considerando-se que além de pinturas e painéis havia também
desenhos, gravuras e demais técnicas em suporte de papel que integravam

Ciência & Conservação


o acervo da pinacoteca9.
A carência de pessoal especializado nos trabalhos de conservação e
restauração de acervos no âmbito brasileiro, bem como a necessidade
de buscar uma formação específica na Europa, já se fazia notar desde o
Segundo Reinado, conforme se verifica em correspondência, datada de
1859, de Tomás Gomes dos Santos, então diretor da AIBA, dirigida ao
Ministro dos Negócios do Império. Nesse ofício é salientado a necessidade
do candidato em de conhecer “as obras dos grandes mestres da arte e
de aperfeiçoar-se nas ciências das escolas e estudar os novos meios que
porventura se tenha descoberto na arte de restaurar painéis” . Com vistas
à obtenção dos recursos necessários para o “Restaurador de quadros e
Conservador da Pinacoteca”, observa-se, na estratégia de argumentação
do diretor da AIBA, a ênfase dada à qualificação artística de Carlos Luiz
do Nascimento11 visto que “(...) A falta de um homem especial nestes
conhecimentos se tem feito contra por vezes na Academia, e ninguém
melhor que o Conservador da Pinacoteca, poderia ser aproveitado (...)”.
Mais adiante, a narrativa associa a qualificação artística do pintor aos
traços de caráter e de personalidade “(...) por que o seu talento não vulgar
como pintor histórico e restaurador de painéis, reúne um espírito sagaz e
ilustrado.”12
Como se poder notar nos documentos administrativos da AIBA, a atuação
do Conservador da Pinacoteca na estava dissociada da condição de artista 57
e do fazer artístico. Nesse sentido, em 1860, Carlos Luiz do Nascimento,
“Conservador da Pinacoteca”, é nomeado Cavaleiro da Ordem da Rosa
em razão de suas obras exibidas na Exposição Geral, assim como pela
prestação de trabalhos de restauração da AIBA13.
Outro elemento profissional da conservação e restauração encontrado
na AIBA é o “Ajudante de conservação”. Nos documentos analisados
verifica-se que eram os próprios alunos da AIBA que ocupavam tal posto,
como Belmiro de Almeida, Pereira de Carvalho e João José da Silva14 . Tal
constatação contribui para a interpretação de que, sob a perspectiva da

História da Arte Técnica


relação mestre e aluno, as atividades de conservação e restauração estavam
presentes no bojo da instituição, integrando-se, assim, à formação dos
alunos.
Nos documentos analisados, observa-se para que a ocupação do cargo de
“Conservador da pinacoteca”, era mister a formação artística, a condição
de ser artista, não revelando, portanto, qualquer formação específica para

Ciência & Conservação


o cargo. Outrossim, nota-se que tal ocupação gozava de certo prestigio
no interior da AIBA, visto que o “Conservador da pinacoteca” ocupava a
terceira posição na hierarquia de pessoal, recebendo vencimentos somente
abaixo dos professores titulares e do diretor do AIBA.
Após a Proclamação da República, em 1890, a AIBA passa a denominar-se
Escola Nacional de Belas Artes – ENBA, ocorrendo a reformulação dos
estatutos da instituição. No que diz respeito ao pessoal administrativo,
os estatutos referem-se à figura do “Conservador”, com o abandono da
nomenclatura “Conservador de Pinacoteca” anteriormente empregada,
apontando o aumento de uma vaga para o referido cargo. Desse modo, a
ENBA passa a contar com duas vagas o que sugere o aumento do acervo
da pinacoteca, bem como a demanda das atividades de conservação e
restauração. Em relação aos deveres do pessoal administrativo, nota-se
que não havia a especialização do “Conservador”, corroborando com o
entendimento de que conservação e restauração de papel realizava-se em
meio às outras categorias do acervo. Desse modo, constata-se o perfil
multifacetado do então “Conservador” que trabalhava com uma extensa
variedade tipológica de acervos, conforme se verifica no detalhamento
das atribuições do estatuto: “(...) a conservação e a restauração dos
quadros, das gravuras e estampas de arquitetura, dos fragmentos de
decorações arquitetônicas, das coleções de esculturas, e outros que lhe
serão confiados”15. 58
Em 1911, ocorrem novas modificações nos estatutos da ENBA.
É interessante notar o surgimento de um grau de especialização,
considerando-se que dentre as duas vagas para o cargo de “Conservadores-
restauradores” uma delas seria destinada para a pintura e gravura, ao
passo que a outra seria para a categoria de escultura. Outro aspecto
observado é a hierarquização dos serviços de conservação e restauração,
estabelecendo-se que “os ajudantes competirão os serviços ordenados
pelo conservador”16.

História da Arte Técnica


Ao longo da Primeira República, verificamos práticas realizadas no interior
da AIBA que exemplificam que os profissionais ainda trabalham sob a
égide do conceito de “Arte de Restaurar”. Desse modo, encontramos num
relatório datado em 1919, dirigido ao Diretor da ENBA no Rio de Janeiro
e assinado pelo “restaurador e conservador” Sebastião Vieira Fernandes17,
uma relação de dezenas de obras de arte (pinturas, desenhos, aquarelas e

Ciência & Conservação


esboços) de autoria de Vitor Meirelles que haviam restauradas na “Sala de
restauração desta Escola”18.
Em outros moldes institucionais e distanciando-se do conceito da “arte de
restaurar” observa-se, nas décadas de 1920 e 1930, ações educativas que
tangenciam a formação de profissionais para o trabalho de conservação
e restauração de acervos em papel, prenunciando-se, assim, a adoção
de um caráter mais técnico. No contexto do desenvolvimento de uma
política e de uma ideologia de tendências nacionalistas, se dá a criação
do Museu Histórico Nacional, em 1922, por Gustavo Barroso. Com o
diretor do Museu, Barroso cria o Curso Técnico de Museus com o
objetivo de formar “técnicos-conservadores” para trabalhar com o acervo
deste mesmo Museu, àquela época, já numeroso e eclético. É interessante
observar nas ementas das disciplinas do curso de Museologia a inclusão
do temário da conservação e restauração de pintura, escultura e papel. As
aulas práticas de conservação e restauração eram praticadas nas Seções de
conservação e restauração do Museu Histórico Nacional e Museu Nacional
de Belas Artes19. Observamos na narrativa barrosiana que a restauração da
“relíquia do passado” aproxima-se dos aspectos ditos técnicos e, portanto,
é metaforizada como um ato médico compreendido por dois momentos
distintos: diagnóstico e terapêutica. Outrossim, Barroso esboça o perfil
do restaurador como sujeito que deveria possuir duas virtudes essenciais:
paciência e modéstia20. 59
Em se tratando de acervos bibliográficos e documentais, verificamos,
na década de 1920, a atuação funcionários de órgãos públicos na
sistematização de trabalhos de conservação. Em 1923, é aprovado um
novo regulamento para o Arquivo Nacional no qual surge a denominação
do “Conservador da biblioteca” para o funcionário incumbido do “asseio
das respectivas salas, e de limpeza e conservação de móveis, livros e mapas
(...)”, além da aplicação de inseticidas à documentação contaminada, sendo
seu salário correspondente a um terço do que era pago aos arquivistas. O

História da Arte Técnica


relatório do Arquivo Nacional de 1934 faz menção aos “nossos operários
da Oficina deste Arquivo” indicados que são para a prática de serviços
de conservação de documentos. Conforme analisou Adriana Cox Hollós
em sua dissertação de mestrado, “esses auxiliares não possuíam sequer
o ensino médio concluído”, denotando, por conseguinte, “identidade
artesanal” à preservação documental21.

Ciência & Conservação


Na Era Vargas, destaca-se a atuação pioneira de Edson Motta no campo
da conservação e restauração do patrimônio cultural, inaugurando a fase
científica da restauração no Brasil, o que lhe conferiu a denominação do
“Pai da restauração científica no Brasil”. Em 1945, a pedido de Rodrigo
Melo Franco de Andrade, Edson Motta obtém uma bolsa de estudos pela
Fundação Rockefeller a fim de realizar estágio no Fogg Art Museum22 da
Universidade de Harvard23. Em 1947, Edson Motta retorna ao Brasil e
inicia a organização do Setor de Recuperação da Diretoria do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional. Em 1948, Edson Motta sistematiza as
atividades de conservação e restauração de papel na Biblioteca Nacional.
É interessante verificar no detalhado relatório dirigido ao então Diretor
da Biblioteca Nacional, Josué Montello, a preocupação do restaurador em
implementar no Brasil o que, provavelmente, foi o primeiro laboratório de
conservação e restauração especializado somente em papel, com a adoção
de metodologia e moldes ditos científicos24. Cria-se, assim, um divisor
de águas no campo da conservação e restauração de papel, contrapondo-
se, portanto, aos métodos calcados na “arte de restaurar” ou aqueles
considerado empíricos, ambos praticados nas décadas anteriores.
Em 1958, é instituída da “Seção de Restauração” do Arquivo Nacional,
incumbida de “reparar e restaurar os documentos que com esse fim
lhe forem destinados”25, no entanto, não se verificou na documentação
administrativa a categorização do profissional incumbido de tal tarefa. 60
Nos anos de 1960, encontramos os cargos de “Conservador do Patrimônio
Histórico e Artístico” e de “Auxiliar de Conservador do Patrimônio
Histórico e Artístico”, lotados na então Diretoria do Patrimônio Histórico
e Artístico Nacional - DPHAN do Ministério da Educação e Cultura26.
Em 1962, estabeleceu-se a sistematização do “Setor de Recuperação de
Pintura, Escultura e Manuscritos”, subordinada à Divisão de Conservação
e Restauração - DCR27. Deve-se notar, nesse momento, que a restauração
de papel encontra-se incluída sob a denominação de “manuscritos” e

História da Arte Técnica


podemos depreender, também, que a restauração de obras de arte em
suporte de papel estaria, provavelmente, inserida sob a denominação
de “pinturas” do dito Setor. Há que se analisar, ainda, o emprego da
terminologia “Recuperação” do referido Setor, o que denota a atribuição
de significado à atividade profissional muito mais focada, portanto, à
prática e aos métodos de recuperação, reparos curativos do bem cultural

Ciência & Conservação


do que propriamente em ações de conservação dos acervos culturais
brasileiros.
No âmbito educacional, o pioneirismo da inserção da conservação e
restauração como disciplina no Curso de Belas Artes da então Universidade
do Brasil, pelo Prof. Edson Motta, é destacado no discurso de formatura
da turma de 1961 da ENBA. Mesclando a relação entre arte e ciência,
Liana Silveira, oradora da turma, alude ao Prof. Edson Motta como “(...)
iniciador, o fundador, o desbravador no Brasil de uma nova ciência dos
quadros: restauração e conservação da pintura”. Mais adiante, em sua
narrativa, a formanda ressalta, em tom de ineditismo, o aprendizado em
“restaurar e conservar as obras dos artistas da pintura, do afresco, da
gravura e do desenho. (...) aprendemos a química das tintas, a composição
dos suportes e a cura do papel para evitar a ação do tempo sobre os
trabalhos executados28.
No que tange à formação de conservadores-restauradores de papel,
verifica-se na década de 1960, dentre as ações do início da gestão de
Renato Soeiro na DPHAN, a elaboração de um projeto encaminhado à
Comissão de Educação da Organização dos Estados Americanos – OEA,
relativo à criação de um Laboratório-Atelier a ser localizado no Brasil com
“o fim especial de atender os estudantes oriundos dos países situados na
região sul da América, bem como os trabalhos de conservação a serem
realizados no país”29. Dentre outros acervos, havia previsão para o ensino 61
de gravuras, livros e documentos, observando-se uma vertente de cunho
tecnicista na listagem de equipamentos indispensáveis à instalação do
Laboratório-Atelier como o pedido de um Laminador Barrow”30, o que
reflete, de fato, a adoção de uma linha americana de restauração de papel.
Em 1973, o cargo de “Conservador do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional’’, juntamente outros cargos do Ministério da Educação e Cultura,
é transformado em “Técnico em Assuntos Culturais”31. Em 1973, dá-se
o nome de “Setor de Conservação e Restauração de Pinturas, Esculturas,

História da Arte Técnica


Manuscritos e Códices do IPHAN”32. Tais nomenclaturas indicam a
supressão da terminologia “Recuperação” anteriormente adotada na
denominação do Setor pela DPHAN, em 1966. Portanto, a adoção dos
termos “conservação e restauração” indica avanços conceituais na prática
preservacionista e ilustra o perfil do “Técnico em Assuntos Culturais”,
atuante em abrangente variedade tipológica de obras em suporte de papel,

Ciência & Conservação


ou seja, gravuras, manuscritos, livros, códices e impressos. No âmbito da
Biblioteconomia, Lindaura Alban Corujeira reclama o lugar científico da
conservação e restauração de papel. Em artigo publicado em 1973, na
Revista de Biblioteconomia autora sustenta que “o empirismo cedeu lugar
a processos técnico-científicos que colocam a restauração dentro dos mais
recentes progressos da ciência e técnica”33.
Em fins da década de 1970, constata-se a mudança de nomenclatura
do “Setor de Conservação e Restauração de Pintura, Escultura, Talha,
Manuscritos e Códices” - para “Centro de Conservação e Restauração de
Bens Culturais”. Tal mudança coaduna as influências do ideário de Aloísio
Magalhães, ocasião em que ele substitui a noção de valor de “patrimônio
histórico e artístico” por “bem cultural”. Por conseguinte, depreende-se
que a política de conservação e restauração não estaria voltada apenas para
objetos de relevância histórica e artística, ao contrário, deveria abranger a
extensa variedade tipológica de bens culturais, dentre as quais se incluiriam
os acervos documentais e bibliográficos34.
É nessa perspectiva de renovação do Setor que, em novembro de 1978,
Maria Luiza Guimarães Salgado apresenta ao Núcleo de Recursos
Humanos do Departamento de Assuntos Culturais – DAC, um estudo
sobre a definição de atribuição de Técnico de Assunto Cultural – Área
Restauração. Há nesse estudo uma descrição detalhada sobre o perfil do
restaurador de papel no qual verificamos o empenho da autora em justificar 62
a importância da atividade laboral e, conseqüentemente, a reinvidicação do
status e do reconhecimento profissional no contexto do serviço público:
Os técnicos que se ocupam da restauração de papéis
recebem um tipo de formação muito específica, na qual
habilidade manual é fator absoluto para a execução de sua
tarefa, sem falar na vocação inata. A obturação de falhas
numa gravura e eventuais compensações é um trabalho que
exige grande sensibilidade, agudo senso crítico e destreza
manual. (...) Dentro da conservação e restauração de bens
culturais, é a área mais carente em recursos humanos, pois
requer um número maior de requisitos do que aqueles

História da Arte Técnica


que são exigidos em outras áreas da especialização. (...)
As pesquisas científicas efetuadas na área de papéis estão
ligadas de um modo geral ao laboratório científico. Nele,
serão investigados vários fenômenos que atuam sobre a
permanência do suporte (...).
As décadas de 1970 e 1980 são marcadas pelo tecnicismo na conservação
e restauração, nas quais verificamos a ênfase no arsenal tecnológico, o

Ciência & Conservação


restauro de massa e a montagem de laboratórios pioneiros nas instituições
detentoras de acervos e nas universidades. Podemos conceber - no
contexto do final da década de 1970 e ao longo das décadas de 1980 e
1990 - a implantação dos laboratórios de conservação e restauração como
a consolidação de um campus específico no qual os atores sociais dão lugar
às suas atividades profissionais, às suas práticas culturais. Nesta fase de
cunho tecnicista, detecta-se a o perfil do conservador-restaurador de papel
voltado para a discussão em torno do diagnóstico do estado de conservação
dos acervos deteriorados, bem como para os critérios, técnicas e
metodologias aplicáveis à restauração dos bens culturais deteriorados. Para
tanto, o arsenal tecnológico, os equipamentos científicos, as instalações e
mobiliários específicos atuam como elementos constituintes de um espaço
simbólico e de afirmação do habitus profissional, do capital intelectual.
Nesse sentido, os laboratórios são interpretados como representações
coletivas pois além de atuarem como locus, como arcabouço científico
necessário aos procedimentos científicos da conservação e restauração
dos documentos gráficos, são também legitimadores de uma categoria
profissional que buscava, de modo insistente, um lugar de reconhecimento
no espaço social preservacionista. Por ocasião do 1º. Seminário Nacional
da ABRACOR, realizado em novembro de 1985, foi realizado um
levantamento intitulado “Quadro atual dos laboratórios de restauração
de papéis” no qual é contabilizado 18 laboratórios de restauração em 63
funcionamento, além do total de 100 profissionais atuantes nos referidos
laboratórios.
Na década de 1990, marcam-se mudanças de paradigmas conceituais
motivadas pelo despertar da conservação preventiva 35. É nesse contexto
que as ações da preservação documental pautam-se, notadamente,
em referências bibliográficas de autores norte-americanos, conforme
evidenciado no Projeto “Conservação Preventiva em Bibliotecas e Arquivos”
- CPBA36. Desse modo, a adoção da conservação preventiva promoveu

História da Arte Técnica


uma revisão nas políticas de trabalho das instituições públicas detentoras
de acervos, na atuação profissional dos conservadores-restauradores, nas
ementas das disciplinas dos cursos de graduação e de pós-graduação e
na pesquisa de técnicas e materiais aplicáveis à conservação preventiva.
Como isso, tem-se a quebra de paradigma, mudando o foco da atuação do
profissional, anteriormente dirigido ao bem cultural deteriorado e agora

Ciência & Conservação


à conservação dos estoques informacionais. Outrossim, na perspectiva
contemporânea, estabelece-se a proposição de
compreender a disciplina Conservação e Restauro no
âmbito da Ciência – A Ciência da Conservação - ,
procurando não restringí-la apenas à atividade técnica mas
percebê-la enquanto um saber constituído, resultante de
paradigmas, de reflexões e do desenvolvimento histórico,
capaz de reunir todas as premissas necessárias à categoria
científica37.
Em convênio com a Escola SENAI Theobaldo de Nigris, a ABER criou,
em 1990, o Curso de Conservação-Restauração de Documentação Gráfica,
considerado o único em nível técnico na América Latina, verificando-
se a importância da criação do primeiro Laboratório-escola em âmbito
nacional. O curso tem como finalidade preparar auxiliares na preservação,
conservação e restauro de documentação gráfica. Ao longo dos seus 20
anos de funcionamento, encontra-se na 32ª turma, tendo formado cerca
de 300 técnicos representantes de diversas regiões brasileiras e de países
vizinhos na América Latina.
Considerações finais
Não obstante o discurso e metodologia científica que se pretendeu
implementar no Brasil, a conservação e restauração de acervos em
papel no Brasil foi interpretada, ao longo das cinco últimas décadas do
século passado, como uma prática curativa, pontual e intervencionista, 64
voltada para o bem cultural deteriorado. Em razão da carência de
mão-de-obra especializada, o contexto brasileiro delineou a atuação um
profissional de natureza múltipla, ou seja, esperou-se a sua performance,
simultaneamente, em três grandes áreas da memória cultural expressa no
suporte de papel: acervo bibliográfico, documental e obras de arte em
suporte de papel. Além disso, o conservador-restaurador de papel era
concebido como um indivíduo paciente, meticuloso e dotado de virtudes
e de habilidades manuais e artísticas – notadamente oriundo da formação

História da Arte Técnica


acadêmica em Artes Plásticas - e sua atuação estava caracterizada por
um fazer operacional, bem como por um labor silencioso e isolado em
núcleos de conservação e restauração. Esta prática reducionista deve ser
extinta e atualmente pode-se constatar o direcionamento para uma linha de
menor intervenção, além do chamamento ao diálogo no planejamento de
trabalho norteado, portanto, nos conceitos estabelecidos pela conservação

Ciência & Conservação


preventiva. Tal constatação é evidenciada nas ementas das disciplinas de
preservação de papel ministradas dos cursos universitários e nas grades
curriculares dos cursos de graduação e pós-graduação.
Ao percorrer a trajetória do profissional da conservação e restauração
de papel, verificou-se o processo de constituição dos espaços simbólicos
de atuação profissional: desde a Pinacoteca da AIBA, as “Salas de
Restauração” que funcionaram na Escola Nacional de Belas Artes do Rio
de Janeiro na década de 1910, os incipientes ateliês de restauro localizados
nos porões dos museus e na Escola de Museologia sediada no Museu
Histórico Nacional nas décadas de 1940 e 1950, os locais improvisados
como corredores e banheiros desativados nas instituições públicas nas
décadas de 1960 até a implantação dos Laboratórios de Conservação e
Restauração em instituições públicas detentoras de acervos nas décadas
de 1970. Por último, a implantação, nas últimas décadas, dos Laboratórios
da Ciência da Conservação e dos Laboratórios de Conservação Preventiva
nas universidades.
Com relação ao modelo educacional, cabe ressaltar que a inexistência de
uma formação sistemática por meio da graduação acadêmica, na área de
preservação de papel, constituiu-se num grave fator que comprometeu,
sobremaneira, o desenvolvimento da disciplina no âmbito brasileiro.
Conforme se pode observar, foram as instituições detentoras de acervos
que, ao longo das últimas décadas, por meio de um ensino informal, 65
acabaram por oferecer treinamentos práticos, estágios supervisionados
e cursos de curta duração com vistas a suplantar a evidente lacuna
educacional. Todavia, a área apresenta ainda aspectos muito vulneráveis no
campo da formação profissional, o que possibilita o desenvolvimento de
trabalhos equivocados sob o ponto de vista conceitual e técnico praticados,
mormente, por mão-de-obra inadequada e amadora, comprometendo,
em conseqüência, a integridade o patrimônio cultural. Por outro lado,
as recentes implantações da graduação acadêmica em Conservação e

História da Arte Técnica


Restauração, assim como a consolidação de programas de mestrado
e doutorado na respectiva área, contribuirão, em consequência, para a
formação profissional, o desenvolvimento da pesquisa científica e a
aplicação de metodologias específicas em consonância com o país de
clima tropical.
Reclamando os preceitos estabelecidos pela Ciência da Conservação,

Ciência & Conservação


observa-se a ampliação das atividades e da atuação do conservador-
restaurador de papel no Brasil, ou seja, muda-se o perfil do ator social
outrora centrado numa ação de caráter micro, para o emergir de um
novo profissional – o Cientista da Conservação - pautado numa visão
ampla, interdisciplinar, comprometida, portanto, com aspectos culturais,
científicos, políticos, gerenciais e administrativos. Assim, como professara
Paul Philippot, o desenvolvimento da restauração só se dará, de fato, na
medida em que o âmbito da sua função cultural seja compreendido e
sustentado pela sociedade38.
___________
Notas
1. KÜHL, Beatriz Mugayar. História e Ética na Conservação de Monumentos Históricos. In: Revista
do Patrimônio Cultural. USP: São Paulo, v.1, n.1, pp. 16-40, nov. 2005/abr.206, p.17.
2. CHARTIER, Roger. Por uma sociologia histórica das práticas culturais. In: A História Cultural –
entre práticas e representações, Lisboa:DIFEL, 1990. p.14.
3. SETTON, Maria da Graça Jacintho. A teoria do “habitus” em Pierre Bourdieu: uma leitura
contemporânea. São Paulo: USP, 2002, p. 64.
4. AZEVEDO, Mário Luiz Neves de. Espaço Social, Campo Social, Habitus e Conceito de Classe
social em Pierre Bourdieu. São Paulo, 2003, p. 1.
5. BOURDIEU, Pierre. La noblesse d`Etat. Grandes écoles et esprit de corps. Paris: Les editions de
Minuit, 1989 apud AZEVEDO, Mário Luiz de. Espaço Social, Campo Social, Habitus e Conceito de
Classe Social em Pierre Bourdieu, p. 2.
6. BONNARDOT, Alfred. Essai sur l´art de restaurer les estampes et les livres, ou Traité sur les
66
meilleurs procedes pour blanchir, détacher, décolorier, réparer et conserver les estampes, livres et
dessin. Paris: Chez Castel, Libraire Editeur, 1858. 2ª ed..
7. RUIZ DE LACANAL, Maria Dolores. El conservador-restaurador de bienes culturales: historia de
la profesión. Madrid: Editorial Síntesis, As. A,, 1999. p. 167.
8. Decreto nº. 1603 de 14 de maio de 1855 – Da novos Estatutos à Academia das Belas Artes.
9. FERNANDES, Cybele Vidal Neto. O Ensino de Pintura e Escultura na Academia Imperal de Belas
Artes. 19&20, Rio de Janeiro, v.II, n. 3, jul. 2007. p. 6, 23 Disponível em:http://www.dezenovevinte.
net/ensino_artistico/aiba_ensino.htm.

História da Arte Técnica


10. Documento nº. 866 do Arquivo do Museu D. João VI, Escola de Belas Artes da UFRJ.
11. Pintor histórico, ocupante do cargo de “Conservador da Pinacoteca” da AIBA.
12. Idem
13. Documento n.º. 860 do Arquivo do Museu D. João VI - Escola de Belas Artes da UFRJ.
14. Documento nº. 4268 do Arquivo do Museu D. João VI - Escola de Belas Artes da UFRJ.
15. Decreto N º. 983 de 8 de novembro de 1890 – Aprova os estatutos para a Escola de Belas Artes.

Ciência & Conservação


16. Decreto n. 8964 de 14 de setembro de 1911
17. Pintor, ocupante do cargo de “Conservador da Pinacoteca” da ENBA.
18. Arquivo Noronha Santos – IPHAN. Série Centro de Restauração de Bens Culturais. Caixa 04,
pasta 05, envelope 04.
19. MUSEU HISTÓRICO NACIONAL. Legislação. Ministério da Educação e Saúde, Serviço de
Documentação, Folheto nº. 46: Impressa Nacional, Rio de Janeiro.
20. BARROSO, Gustavo. Introdução à Técnica de Museus. Vol. I, Gráfica Olímpia: Rio de Janeiro,
1946. pp. 13-14.
21. HOLLÓS, Adriana Lúcia Cox. Entre o passado e o futuro: os limites e as possibilidades da
preservação documental no Arquivo Nacional. (Dissertação de Mestrado em Memória Social). Rio de
Janeiro: Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, 2006. p. 57.
22. Aberto ao público em 1895, o Fogg Art Museum é o mais antigo museu da Universidade de
Harvard, em Cambridge, Massachusets. O “The Center for Conservation and Technical Studies” foi
criado em 1928 por Edward W. Forbes, então diretor do Fogg Museum e é considerado o mais antigo
centro de conservação, pesquisa e treinamento dos EUA.
23. EDSON Motta – Pinturas. op. cit..
24. Arquivo Noronha Santos – IPHAN, Série Centro de Restauração de Bens Culturais, Caixa 11,
Pasta 03.
25. Por meio do Decreto Nº. 44862 de 25/11/1958.
26. Lei Nº. 3780 – de 12 de julho de 1960. Dispõe sobre a Classificação de Cargos do Serviço Civil
do poder Executivo, D.O.U. 12/07/1960.
27. “Resumo das decisões tomadas nas reuniões convocadas pelo Diretor Geral, Rodrigo Mello
Franco de Andrade, realizadas na sede do DPHAN nos dias 3, 4 e 5 de dezembro de 1962, com o
fim especial de estabelecer normas e planos para ordenação dos trabalhos de recuperação de obras
de arte”. Arquivo Noronha Santos – IPHAN, Centro de Restauração de Bens Culturais da SPHAN,
Módulo 68, caixa 58, pasta 48.
67
28. Discurso da oradora da Turma de 1961, proferido na solenidade de Formatura da Turma de 1961
do Curso de Professores da Escola Nacional de Belas Artes. In: Universidade do Brasil. Arquivos da
Escola de Belas-Artes, 12 de agosto de 1962, Número VIII, Universidade do Brasil.
29. Arquivo Noronha Santos - IPHAN, Série: Centro de Restauração de Bens Culturais – SPHAN,
Caixa 58, Pasta 48, Documento de 05/02/1968.
30. Arquivo Noronha Santos – IPHAN, Série: Centro de Restauração de Bens Culturais – SPHAN,
Caixa 58, Pasta 48, Documento de 05/02/1968.
31. Decreto Nº. 72.493/ 19 de julho de 1973.
32. Arquivo Noronha Santos – IPHAN, Série Centro de Restauração de Bens Culturais, Módulo 36,
Caixa 36, Pasta 2.

História da Arte Técnica


33. CORUJEIRA, Lindaura Alban. Métodos de prevenção e eliminação de fungos em materiais
bibliográficos. Revista de Biblioteconomia, Brasília: 1,jan./jun.1973.
34 Arquivo Noronha Santos – IPHAN , Série Centro de Restauração de Bens Culturais (Laboratório),
Módulo 36, Caixa 3, Pasta 2.
35. Cf. GUICHEN, Gaël de. La conservation preventive: un changement profond de mentalité. Study
series, Bruxelas: ICOM-CC/ULB, v.1, nº1. p. 4-5, 1995.
36. Pelo alcance dos resultados obtidos o Projeto CPBA recebeu, em 1998, o Prêmio Rodrigo Melo

Ciência & Conservação


Franco de Andrade.
37. FRONER, Yacy-Ara. Princípios históricos e filosóficos da conservação preventiva/ Yacy-Ara
Froner, Alessandra Rosado. Belo Horizonte:LACICOR, EBA, UFMG, 2008.
38. PHILIPPOT, Paul. Restoration from the perspective of the humanities. In: Historical and
Philosophical Issues in the Conservation Cultural Heritage. Los Angeles: GCI, 1996, p. 216-229.

68
Conservação do Conjunto Escultórico da
Capela da Ceia - Santuário Senhor Bom

História da Arte Técnica


Jesus de Matosinhos em Congonhas, MG

Lucienne Maria de Almeida Elias


Doutoranda PPGA-EBA-UFMG

Ciência & Conservação


Luiz Antônio Cruz Souza (orientador)
PPGA-EBA-UFMG
Resumo
O conjunto escultórico da Capela da Ceia é composto por 15 esculturas em madeira
policromada, datadas de 1796 a 1799, pertencem à Capela da Ceia da Via-Sacra do Santuário
Senhor Bom Jesus de Matosinhos, localizado na cidade de Congonhas, Minas Gerais.
Apresenta autoria escultórica de Antônio Francisco Lisboa e a policromia de Manoel da
Costa Athaíde. Tratamos da mais antiga das seis edificações do conjunto, a única a ser
construída durante o período de permanência de Antônio Francisco Lisboa no local. Neste
diagnóstico são considerados os diferentes fatores que descrevem o acervo e a edificação,
estabelecendo conexões entre estes planos que irão fundamentar um diálogo coerente e
integrado a partir do reconhecimento das deteriorações e degradações apontadas e sua
importância para a preservação e conservação desse acervo..
Palavras-chave: Conservação; Restauração; Conservação Preventiva; Via Sacra; Congonhas
Abstract
The sculptural piece called as “Capela da Ceia” Chapel of the Supper consists of 15 sculptures in
polychrome wood, dating from 1796 to 1799, belong to the “Capela da Ceia” of the Shrine of Bom Jesus
de Matosinhos, in the city of Congonhas, Minas Gerais. Author presents sculpture by Antonio Francisco
Lisboa and polychrome Manoel da Costa Athaíde. We treat the oldest of six buildings in the set, the only
one built during the period of stay of Antonio Francisco Lisboa in place. In this diagnosis are considered
the different factors that describe the collection and the building, establishing connections between these plans
that will support a coherent and integrated dialogue based on recognition of deterioration and decay, and
pointed out its importance for the preservation and conservation of this collection.
Key words: Conservation; Restoration; Preventive Conservation; Via Sacra; Congonhas

69
Introdução
A preocupação em preservar os objetos de arte vem desde a antiguidade
clássica, onde gregos e romanos procuravam cuidadosamente escolher os
materiais para a confecção de suas manufaturas. Essa ação ganha novas
interpretações a partir da Idade Média em que são executadas restaurações
em objetos, principalmente por motivos religiosos e devocionais. Neste
momento os objetos passam a receber intervenções, por vezes caracterizdas
até por substituições de partes ou releituras conforme o estilo predominante
na época. No Renascimento a partir da distinção entre o valor histórico e o

História da Arte Técnica


valor estético das obras antigas, são estabelecidos critérios de intervenções
dando nova interpretação e significado para a preservação. Na espanha do
séc. XVI ainda são constatadas ações por parte de pintores, tendo como
objetivo renovar objetos, retábulos e igrejas.
Em 1566 Felipe II demonstra sua preocupação com a conservação de
seu acervo escrevendo uma carta, mais própria de um tratado, onde são

Ciência & Conservação


ditadas instruções para seu pintor Navarrete, nela são estabelecidas ações
para o tratamento e proteção do suporte madeira, climatização das obras
em seus locais, proteção contra luz e da ação de pássaros, colocação de
marcas, fixação de obras na parede, embalagens e outros.
Já com a Reforma Protestante, na Europa Central, ocorreram grandes
destruições e transferências de obras para edifícios públicos e particulares,
a restauração torna-se uma prática visando apenas reparar.
No séc. XVIII a figura do restaurador se diferencia do artista, apontando
indagações, escritos e ensaios quanto á técnicas usadas e a prática exercida,
sendo que até o momento o repintar era a forma de intervenção mais
usada.
A introdução dos métodos científicos nas áreas das coleções teve seu início
no séc. XVIII com o trabalho do cientista alemão Friedich Klaproth1, que
analisou a composição de moedas metálicas. No século seguinte, vários
profissionais passam a investir na pesquisa de causas e efeitos do meio
ambiente e sua influência nos materiais, sendo um movimento de destaque
para as ciências. Essa busca incluiu a necessidade de novos conhecimentos
tanto realativas aos materiais, às técnicas, atribuição de períodos históricos,
quanto a autenticidade dos objetos.
No séc. XIX os movimentos de conservação e os de restauração se
opuseram ferozmente2, sendo criado em 1888, por Friedrich Rathgen, o
70
primeiro laboratório químico do Museu Real de Berlim com o objetivo
de contribuir na compreensão da deterioração de objetos dos acervos
e desenvolver metodologias de tratamentos para seu controle, neste
momento então passa a ser conhecida a Ciência da Conservação.
Durante a primeira metade do séc. XX laboratórios, em toda parte,
trabalharam em estudos crescentes e fundamentais sobre a tecnologia e
os materiais, criando a base do conhecimento atual sobre a compreensão

História da Arte Técnica


científica dos objetos. Já na segunda metade do séc. XX, a conservação
passa a ser considerada área especializada de estudo, sendo neste período
discutidos e examinados seus conceitos e componentes básicos. Os
trabalhos científicos e laboratoriais passam a ser ponto de referência para
a conservação e este conceito toma extensão para países fora da Europa
e Estados Unidos3.

Ciência & Conservação


Nos últimos anos, a atenção para com a conservação preventiva de acervos
e edifícios tounou-se arma influente na pesquisa científica baseando-se
num maior conhecimento dos problemas que impedem a preservação
e detectando mecanismos de degradação dos objetos com relação a seu
universo4.
Podemos definir a conservação através do conceito apresentado por
Hallam5, que a considera como o processo para minimizar a deterioração
do objeto afim de que aspectos existentes possam ser preservados para o
futuro. Muitos esforços no circuito internacional estão sendo feitos para
a pesquisa, divulgação e definição de programas e procedimentos comuns
à conservação preventiva, destacamos o Getty Conservation Institute
(GCI)6, que foi o primeiro a desenvolver uma estratégia de diagnóstico
para os museus americanos, em cooperação com o National Institute for
Conservation (NIC), um projeto que vem aperfeiçoando o processo de
diagnóstico à medida em que é fundamentada a integração mais intensa do
edifício, da coleção e das questões organizacionais. Outros institutos, como
o International Center for the Syudy of Cultural Property (ICCROM), o
International Council of Museums (ICOM), e com destaque no Brasil
para o Laboratório da Ciência da Conservação /CECOR da Universidade
Federal de Minas Gerais, são entre outras instituições que apresentam
pesquisas, artigos e referências básicas para estudo de acervos.
71
Segundo May Cassar7, os fatores que incidem na degradação de um objeto
são os materiais componentes e a técnica, as condições ambientais do
edifício e entorno, a maneira de otimização dessas obras em pesquisas, uso
em exposições e as respectivas intervenções anteriormente executadas.
Segundo Cassar, para preservar um acervo é fundamental conhecer e
investigar também o estado de conservação e os grupos que apresentam
maior risco no acervo.
Fundamentados nesse vasto conhecimento exigido pelas ciências,

História da Arte Técnica


estabelecemos um ponto de partida definindo o objeto de estudo e
o universo que se insere, para assim entendermos a complexidade que
envolve a Conservação Preventiva e a participação fundamental do
profissional Conservador-Restaurador.
A representação da Via-Sacra iniciada pelo Passo da Ceia é parte integrante

Ciência & Conservação


do conjunto representado por sete cenas, composto por esculturas em
exposição permanente nas seis capelas pertencentes ao Santuário Senhor
Bom Jesus de Matosinhos, tratamos de um acervo de relevância histórica,
artística, cultural e religiosa, dado aferido com o título recebido em 1985,
de Patrimônio da Humanidade pela UNESCO.
A instituição conta com o administrador Padre. Benedito Pinto da Rocha;
o qual é responsável pelo local sendo que todas as questões relativas ao
Santuário passam por sua avaliação.
A Capela da Ceia abriga um conjunto composto por quinze esculturas em
madeira policromada, sendo que nove delas esculpidas em meio corpo,
escavadas na parte posterior, expostas sobre bancos de madeira e seis
esculpidas em corpo inteiro, estas esculturas foram executadas pelo Meste
Antônio Francisco Lisboa – o Aleijadinho, contratado no período de 1796
a 1799.
Suas imagens foram policromadas pelo pintor Manoel da Costa Athaíde,
um dos mais importantes da região no período, o qual foi responsável pela
organização das imagens em seus respectivos lugares. Esta constatação se
confirma no Livro 1o de Despesas do Santuário.
Segundo o Livro de Inventários da Irmandade de Matosinhos datado de
14 de julho de 1875, fls. 17 e 18, o acervo da Capela da Ceia foi assim
inventariado: “Passo da Ceia – 1 Imagem do Senhor em vulto grande / 72
12 apóstolos do dito / 2 serventes do dito / 1 mesa grande redonda / 1
estrado / 17 pratos de louça branca / 3 garrafas de vidro, pequenas / 1
copo com prato de vidro / 1 porção de louça de barro / 1 lampião de
pau”18.
História da Arte Técnica
Ciência & Conservação
FIGURA 01 - Acervo da Capela da Ceia, ano de 1875. Fonte – Oliveira,1983 .

A cidade de Congonhas nasceu entorno da região do ouro, próxima


ao rio Maranhão, na primeira metade do séc. XVIII, tendo sido criada
oficialmente em 1746, elevando-se a categoria de município em 1938.
Devido às recessões econômicas, ocorridas em virtude da decadência
da exploração aurífera, Congonhas manteve suas características urbanas
praticamente inalteradas até princípios da década de 1950, como cidade de
romaria. A partir daí, houve um crescimento com a implantação de várias
indústrias de extração de minério de ferro e na atividade de siderurgia
como a Açominas, Ferteco Cia Paulista de Ferro-Ligas e a Cia. Siderúrgica
Nacional Setor MG, (CSN – SMG), que se instalaram na região em vista
da exploração econômica de suas riquezas minerais. Com isso, o município
experimentou um rápido crescimento passando de aproximadamente
9.300 habitantes, em 1950, para aproximadamente 30.800 em 1980. A
absorção desse contingente populacional, que representou um aumento
de 900%, com relação ao núcleo tombado pelo SPHAN9 em 1941, 73
motivou significativas transformações na cidade, com descaracterização
e destruição de parte de seu acervo arquitetônico, bem como a expansão
urbana desordenada.
A região apresenta aspectos climáticos classificados como Mesotérmico,
úmido; com Chuvas Torrenciais resultantes do relevo, sendo que o
Santuário está localizado numa área íngreme com declives acentuados
e localização da Capela da Ceia no terreno na parte mais baixa, com

História da Arte Técnica


inclinação bastante aguçada, confirmadas no estudo das curvas de nível do
terreno, topografia, corte longitudinal e do corte transversal representados
na planta de localização, obtidas pelo Instituto de Patrimônio Histórico
e Artístico Nacional e pelo Instituto de Geociências Aplicadas10. Tanto
no corte longitudinal que engloba o percurso da Igreja até a capela da
Ceia, quanto no corte transversal que percorre da rua do Aleijadinho,

Ciência & Conservação


passando pela área do Santuário na altura da Capela da Prisão até o Beco
dos Canudos, verificamos que pelas inclinações dadas a Capela da Ceia
está localizada no ponto mais baixo do terreno e vulnerável à enxurrada e
captação de águas pluviais, (Fig.02).
O local recebe visita diária de turistas brasileiros, estrangeiros e
principalmente religiosos, sendo considerado centro de peregrinação. O
fluxo aumenta excessivamente nas festas da Semana Santa e no Jubileu
em setembro. Nestes períodos são armadas barracas pela Rua Bom Jesus
e Rua Aleijadinho. Já na Semana Santa são feitas encenações da Paixão de
Cristo, com palco montado à frente das capelas e a procissão percorre as
ruas próximas.

74
Figura 02 - Planta de localização com as curvas de nível do terreno, cortes longitudinal e
transversal. - Fonte - Arquivo IPHAN e IGA.

A história oficial do Santuário do Senhor Bom Jesus de Matosinhos11 do


arraial de Congonhas do Campo começa com a aprovação eclesiástica,
pelo primeiro bispo de Mariana, D. Frei Manuel da Cruz, para erguer uma
ermida no Monte Maranhão, que deveria funcionar provisoriamente até a
construção do edifício definitivo, com o fruto das esmolas que o primeiro
ermitão, Feliciano Mendes, e seus sucessores pudessem recolher pelos

História da Arte Técnica


caminhos das Minas. De uma longa série de administradores, Feliciano
Mendes foi o primeiro leigo responsável pelo local.
As fontes históricas fundamentais para o estudo dessa obra se encontram
no Arquivo do Santuário do Bom Jesus do Matosinhos. Destacamos os
Livros de Despesas, que cobre o período de 1757 –1834, constando do
conjunto de recibos correspondentes aos anos 1797 a 180212 .

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As edificações, ou seja, as capelas apresentam datas diferenciadas de
finalização sendo datada a capela da “Ceia” de 1808, em seguida as capelas
do “Horto das Oliveiras” no ano de 1818 e a capela da “Prisão” no ano
de 1819. Depois da conclusão dessas três primeiras capelas, os trabalhos
foram interrompidos por quase meio século, sendo retomado no fim de
186413, com a construção das capelas da “Flagelação” e “Coroação de
Espinhos”, período em que o programa de construção das sete capelas
foi reduzido para seis, provavelmente por motivos de ordem econômica
fazendo com que estes dois grupos fossem alojados no mesmo local; a
capela da “Cruz às Costas” e a capela da “Crucificação”, foram finalizadas
no ano de 1872.
A apresentação da capela é feita pela cartela localizada sobre a porta
em posição centralizada junta a verga, com a inscrição que define a
representação do conjunto: “CAENATIBUS / AUTEM EIS ACCEPIT
/ JESUS PANEM / HOC EST COR/PUS MEUM/S. MATII. CAP.26 /
V.27”. Significando: Enquanto ceavam Jesus tomou o pão e disse: Este é o
meu corpo. Mateus. Cap 26 / V. 27.
O estilo construtivo dessa capela é caracterizado nas construções datadas
da arquitetura colonial mineira14, sendo dotado de um único pavimento.
Para enterdermos a influência do edifício com relação aos fatores de
degradação das esculturas, faz-se necessário conhecermos previamente 75
dados referentes à sua tecnologia de construção e conseqüentemente as
patologias presentes. A frente da capela está voltada para o lado sudoeste.
A região onde há maior incidência do sol fica na parte norte, localizando
a intercessão das paredes da lateral esquerda e a posterior. Segundo visita
realizada sob orientação da Profa. Dra. Eleonora de Assis e do Prof. Dr.
Eduardo Cabaleiro ao local, foram discutidas questões quanto ao tipo
de ventilação que ocorre na área interna da capela, sendo constatada em
planos gerais que há pressão de entrada de ventilação natural para a área

História da Arte Técnica


interna da edificação, mas não há pressão de saída, pois o edifício possui
uma única abertura para a passagem de ventilação na porta principal.
Para que exista uma ventilação em um edifício é preciso que no mínimo
existam duas aberturas15, o que ocorre nesta edificação em particular é que
o local para a entrada de ar é o mesmo local para a sua saída, portanto,
pressumivelmente a ocorrência da ventilação natural seria passível da

Ciência & Conservação


presença de um diferencial de pressão entre o ambiente externo e interno
diagnosticando uma condição difícil de ocorrer naturalmente.
Os estudos sistemáticos para o diagnóstico do estado de conservação
e as patologias encontradas na edificação estão baseados nos check-list
desenvolvidos pelo Getty Conservation Institute16. Dentre as abordagens
são necessárias a identificação da técnica construtiva e patologias presentes
na edificação.
Esta pesquisa apresenta um mapeamento detalhado da cúpula, paredes
internas, externa e pisos, apontando os principais problemas. Dentre
eles as manchas de coloração escura referentes a rachaduras e infiltração
de água, presença da ação de microorganismos17, o que caracteriza a
presença de microvegetais aderidos à cantaria, deslocamento do bloco
de pedra central junto à cartela, representando o risco eminente de
desabamento18. Na ombreira verificamos o desgaste do suporte formando
rebaixamento parcial do degrau de entrada da capela, presença de fissuras
nas paredes formando linhas verticais e grandes rendilhados (significando
movimentação diferenciada de materiais), nestes locais foram coletadas
amostras resultando na presença do aglomerante cimento e tinta látex ),
na cúpula as fissuras no sentido horizontal na região próxima às cimalhas.
Na área interna da edificação as principais patologias englobam a presença
de ataque de insetos xilófagos na porta de entrada da capela, manchas 76
de coloração escura (umidade), fiação exposta, eflorescências salinas na
superfície dos materiais, sendo sua maior característica a exsudação de sais
minerais que cristalizam em tempo seco20, (Corte estratigráfico no1300,
camada da pintura com presença de sais – LACICOR; (Fig.03).
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Figura 03 – Eflorescências salinas. LACICOR – 2001.

Presença das chamadas criptoflorescências21 que são as formações salinas


ocultas, ou seja, crescimento de sais ou cristais no interior dos materiais e
ainda poeira e sujidades aderidas às paredes.
Contudo, podemos concluir que um dos principais fatores desencadeadores
de patologias presentes na edificação da Capela da Ceia, seria a presença
de umidade decorrente de águas pluviais (localização da edificação e
aberturas presentes na porta de entrada), por capilaridade (eflorescências),
e devido ação humana (manchas no piso devido acúmulo de água utilizada
na manutenção). Intervenções anteriores, com o uso de argamassa
incompatível (aglomerante cimento) sobre a argamassa original (areia e
cal), analisadas nas paredes externas resultam na vedação e permitem o
acúmulo de umidade nas paredes internas onde detectamos patologias não
verificadas na parte externa. Verificamos a opresença de pintura com tinta
com base vinílica incompatível com a tinta original (tinta a base de cal).
Na análise construtiva das esculturas em madeira policromada, tratamos
de um grupo composto por quinze esculturas, sendo nove esculturas,
incluindo a figura principal da cena: o Cristo, esculpidas em meio corpo
com abertura na área posterior e estão expostas sobre banco de madeira,
as seis esculturas restantes foram esculpidas em corpo inteiro (imagens de 77
vulto). São classificadas em esculturas de talha inteira ou talha completa
por não possuírem articulação.
O grupo de esculturas possui características que são diferenciadas entre
si conforme aspectos referentes à tecnologia construtiva. O conjunto
apresenta cortes faciais para colocação de olhos de vidros. As dimensões
variam de 87,5 cm a 168 cm de altura; as esculturas apresentam uma variação
de quatro a oito blocos de madeira em cada composição estrutural, sendo

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verificadas principalmente no corte facial, mãos com encaixe macho e
fêmea, e corpo (os demais seriam blocos menores que compõem partes
menores).
Segundo o inventário do IPHAN as esculturas da capela da Ceia são
compostas de madeira do tipo cedro, (em sua classificação é considerado
uma madeira fina, macia sendo muito empregada no séc. XVIII, devido à

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facilidade do manuseio22).
A policromia é composta por encolagem, base de prepração branca, camada
de policromia e verniz, análise feita através de exames estratigráficos
realizados no conjunto. A técnica é pintura à pincel feita com pigmento
e óleo, constituída por camadas de tinta preparadas a partir de pigmentos
inorgânicos sintéticos ou naturais fixados em uma camada através de um
meio oleoso, que com o passar do tempo forma uma retícula tridimensional
que mantém coesa a camada de pintura eos pigmentos nela presentes.
Os olhos das esculturas são do tipo calota, característica observada em
área de perda e de instabilidade, segundo análise de fragmento coletado
do olho direito da escultura representativa do Servo (que fica á direita), é
constituído de suporte de vidro23 recebendo em seguida, na área interna,
uma camada de pintura na região central referente à íris e por última outra
camada pictórica que envolve todo o globo ocular. Para a incustração dos
olhos foi executado o corte seccionado na face de todas as esculturas desse
conjunto. Os olhos foram confeccionados e a policromia foi executada
com a técnica à pincel.
Executada a investigação do estado de conservação desse conjunto de
esculturas destacamos inicialmente perdas de objetos citados no inventário
que não se encontram mais no local, dentre eles: pratos de louça branca,
garrafas de vidro, copo, louças de barro e lampião de pau. 78
Sujidade presente sob a forma de poeira, principalmente nas áreas de
baixo relevo, como cabelos, barbas e dobras nas vestimentas. Presença de
teias de aranha e insetos vivos (como aranhas), estes referentes a falta de
rotinas de higienização e também decorrente da entrada de pela abertura
da edificação sem uma filtragem. Craquelês localizados principalmente na
região de união de blocos e nas áreas de carnação, denominados como
craquelês de idade do tipo fissuras reticulares caracterizados pelo formato

História da Arte Técnica


de rede e definidos por elementos lineares24, estes são decorrentes da
movimentação diferenciada dos materiais componentes do suporte
madeira e das camadas que compõe a policromia.
Destacamos a presença de perdas pontuais caracterizadas por lacunas
de policromia e lacunas de profundidade, assim como áreas de abrasão
intensificadas nas regiões das vestimentas (parte frontal), em setores

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pontuais (carnação), repinturas (parte posterior) e ranhuras provocadas
por remoção mecânica inadequada da repintura (intervenções anteriores).
Verniz oxidado causado pelo envelhecimento natural da matéria e também
pela aderência de sujidades.
Esmaecimento da policromia, verificada principalmente nas esculturas
próximas à porta de entrada, devido incidência de luz natural.
Dentre os problemas detectados no suporte observamos a presnça de
desprendimente e instabilidade de blocos, observados principalmente nas
áreas das mãos que em sua maioria estão soltas e ficam apenas encaixadas
nas aberturas dos braços. Verificamos também a presença de perdas de
suporte pontuais referentes a orifícios de ataque de insetos xilófagos não
ativos, não sendo detectada a presença de excrementos. Fraturas de partes
de dedos de alguns pés e mãos, sendo visível a desfiguração rosto do Judas
Iscariotes.
Nos olhos podem ser vistos deslocamentos, perdas de suporte, sendo
que alguns desses locais estão preenchidos com algodão, rachaduras,
presença de coloração avermelhada na região interna de alguns olhos
e reconstituições aparentes. Há rachaduras verticais provenientes da
confecção em madeira maciça.
Dentre as nove esculturas em meio corpo, seis delas apresentam manchas
de coloração marrom na área posterior próxima a região do banco de apoio,
79
formndo um desenho no sentido horizontal percorrendo a distância dos
limites dessas esculturas, provavelmente decorrentes da ação de umidade
ascendente. Complementações aparentes, sem acabamento.
A partir do levantamento de informações que envolvem a edificação, o
conjunto escultórico, seus componentes e estado de conservação, função
social, ambiente político-institucional, contexto histórico e geral, aspectos
climáticos, política de gerenciamento e entorno; podemos identificar os

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principais fatores que comprometem a preservação desse acervo. Dentre
estes estão os fatores ambientais – Umidade Relativa, Temperatura, Luz,
Particulados; Fatores humanos - Intervenções inadequadas, Vandalismo,
Manipulação, Manutenção (rotinas); Causas Naturais – Inerentes á técnica
construtiva e aos materiais constitutivos.
Contextualizando estes fatores ao conjunto escultórico em estudo,

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destacamos a presença de umidade observada desde o direcionamento
e escoamento de água da chuva no interior da capela causado pela sua
localização no ponto mais baixo e inclinação detectada no terreno,
verificadas poças de água após chuvas; pouca drenagem de água do
entorno ocorrendo depósito no corredor lateral da capela; a absorção de
água por capilaridade verificada na presença de eflorescências salinas nas
paredes internas; a intervenção anterior com colocação de argamassa e
nova pintura nas paredes externas compostas por materiais incompatíveis
com as características construtivas originais agregaram características de
vedação das paredes; a limpeza do piso interno com água sem o preparo
prévio dos profissionais para a manutenção adequada.
Esse descontrole da presença do componente água auxiliado à falta
de ventilação e o fato de tratarmos de obras constituídas por materiais
higroscópicos e anisotrópicos resulta na presença de manchas de umidade,
rachaduras, desprendimentos dos olhos e movimentação diferenciada do
suporte e policromia desencadeando a formação de craquelês.
Outro fator em destaque é a intervenção inadequada observada na
edificação e nas esculturas apontam para a vertente da necessidade de
intervenções adequadas, embasadas em estudos prévios, pesquisas e
análises de possibilidades, contratação de profissionais qualificados, assim
como maior rigidez na fiscalização e acompanhamento das intervenções. 80
Verificamos a remoção parcial e inadequada de repinturas, onde são
verificadas a remoção frontal com abrasionamento da pintura original
e a não remoção posterior caracyerizando uma intervenção de caráter
imediatista “apenas o que será visto pelo espectador”.
O depósito de particulados e sujidades advindas da abertura presente na
porta de entrada sem uma filtragem, a falta de equipamentos de segurança
adequados e a falta de consciência de alguns visitantes resulta na fragilidade
da segurança, assim como depredação das obras.

História da Arte Técnica


Cada conseqüência está determinada por um fator, é fundamental que
o profissional da Conservação-Restauração conheça e investigue esse
universo que circunda o objeto artístico, pois a partir desse conhecimento
aprofundado será possível estabelecer prioridades e propostas concretas
para a preservação desse acervo.

Ciência & Conservação


O desenvolvimento de novas estratégias para a conservação do conjunto
escultórico da capela da Ceia devem ser formatadas em conjunto por equipe
avaliadora tanto do acervo quanto da edificação e do conjunto, mantendo-
se dentro das reais possibilidades para implementação pela instituição. A
escolha dessas estratégias envolve ações que irão comtemplar a situação
em que o acervo está inserido, seu histórico e suas características primárias,
sem o comprometimento da função religiosa conferida e priorizando a
preservação efetiva para as futuras gerações.
___________
Notas
1. TAGLE, 1999. v.14, n.1.
2. PRICE, 1996.
3. PRINCE, 1996.
4. TAGLE, 1999. v.14, artigo1.
5. HALLAM, 1986. p.323-332.
6. The Conservation assessment: A tool for planning, implementing and fund raising, publicado em
1990. Conservacion Preventiva colecciones Del museo y su médio ambiente, Oaxaca 1995.
7. CASSAR, 1995. p.14.
8. OLIVEIRA, 1985, p.28.
9. SPHAN _ Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.
10. A execução da planta no programa AutoCAD, as curvas de nível e os cortes do terreno foram feitos
pela bolsista da área de arquitetura Ana Carolina Elias, do Laboratório da Ciência da Conservação.
81
11. OLIVEIRA, 1983. p.11-16.
12. MACHADO, 1978.
13. RIBEIRO, 1979.
14. VASCONCELOS, 1979.
15. RIVERO, 1986. P.110-112.
16. “Taller en Edificios de Museus y sus Colecciones”. Un proyecto del Consorcio Latinoamericano
17. VERÇOZA, 1991. p. 32-34.

História da Arte Técnica


18. Segundo análise do prof. Eduardo Cabalero, especialista em patologias de edificação
19. Coleta de amostra e análise dos materias – Escola de Engenharia de Materiais / Prof. Dr. Abdias
Magalhães/UFMG
20. VERÇOZA, 1991. p.28-30.
21. CONCEIÇÃO, 1971.
22. RIGAU,1978.

Ciência & Conservação


23. Exame de FTIR - LACICOR
24. KNUT, 1999.

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Ciência & Conservação
Questões de Conservação
de Arte Moderna e
Contemporânea
85
Pesquisa Guignard

História da Arte Técnica


Claudina Maria Dutra Moresi - Cecor-EBA-UFMG; Anamaria Ruegger
Almeida Neves - Cecor e APL- EBA-UFMG; Bethania Reis Veloso
- Cecor e APL-EBA-UFMG; Paulo Baptista - FTC-EBA-UFMG;
Arnaldo de Albuquerque Araújo - NPDI-DCC-ICEx-UFMG; Clarissa
Costa e Lima - SERPRO; Inês Assunção de Castro Teixeira - FaE-
UFMG e NHO/CEM/FAFICH-UFMG; Alessandra Amaral Andrade
- pesquisadora; Cristina Neres da Silva - IC-EBA-UFMG

Ciência & Conservação


Resumo
A “Pesquisa Guignard”, iniciada em 2000, consiste no estudo sistemático da produção
do desenhista e pintor modernista Alberto da Veiga Guignard (1896-1962), importante
formador de escola no Brasil. Relaciona aspectos técnicos, históricos e estéticos visando
à caracterização da sua obra. Contempla o uso dos materiais artísticos, referindo-se a
parte do acervo público e particular existente, principalmente em Minas Gerais. Envolve
atividades multidisciplinares nas áreas de Arte, Conservação, História Oral, Fotografia,
Informática, Informação e Educação. Como exemplo da metodologia dessa investigação
científica, mostraremos o estudo completo da pintura Paisagem Imaginária, acervo do
Museu de Arte da Pampulha, em Belo Horizonte, MG.
Palavras-chave: Alberto da Veiga Guignard; arqueometria; história da arte técnica; pintor
modernista brasileiro
Abstract
The “Pesquisa Guignard” project was created in 2000 in order to develop systematic studies of the
production of Alberto da Veiga Guignard (1896-1962), a modernist painter and an important reference
in the pictorial art in Brazil. These studies take into account technical, historical, and aesthetic aspects
that help establish the characterization and importance of his work. They also consider the materials used
by the artist in paintings that are found in public and private collections in Minas Gerais. This project
also involves related activities in art, preservation, oral history, photography, computer science, information
and education. As a case study, a complete analysis of the painting Paisagem Imaginária (Imaginary
Landscape), currently in the Pampulha Art Museum in Belo Horizonte, is shown.
Key words: Alberto da Veiga Guignard; archeometry; history of art technique; Brazilian modernist
painter

Introdução
86
O estudo sistemático usando metodologia científica de análise de artistas
brasileiros, com identificação de materiais, técnicas e pinceladas, é um
procedimento já difundido em vários países (BOMFORD, D.; KIRBY,
J. et all, 1991), mas pouco explorado no Brasil. No exterior, os grandes
centros de pesquisas e museus já têm banco de dados computadorizados
das obras dos seus principais artistas, além de seus respectivos catálogos
raisonnés. Atualmente, no Brasil existem diversas ações de catalogação e

História da Arte Técnica


informatização de acervos dos nossos artistas e de pesquisa. O desenhista
e pintor modernista Alberto da Veiga Guignard (1989-1962) foi escolhido
para investigação científica da sua produção, pela sua importância de atuação
em Minas Gerais e no Brasil. Sua produção, dispersa principalmente em
coleções particulares, compreende obras sobre papel (desenho, ilustração,
pintura sobre papelão, etc.); pinturas sobre madeira (maciça, compensados,

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forros); pinturas sobre tela, pinturas murais, objetos decorados (portas de
armário, violão, etc.) entre outros (FROTA, L. C., 1997; ALBERTO, 2005;
BOGHICI, J. e HOLLANDA, N. B., 2000).
A “Pesquisa Guignard”, iniciada em 2000, visa investigar aspectos da vida
e da obra deste importante artista, reunindo investigadores de diversas
áreas. Está sendo desenvolvida no Centro de Conservação e Restauração
de Bens Culturais Móveis (Cecor) da EBA-UFMG, pela química Dra.
Claudina Maria Dutra Moresi e pelas professoras e conservadoras nas áreas
de pintura, Dra. Anamaria Ruegger Almeida Neves e, papel, Ms. Bethania
Reis Veloso. A Pesquisa reúne, também, os seguintes pesquisadores
professores da UFMG: Dr. Paulo Baptista do Departamento de
Fotografia, Teatro e Cinema da EBA; Dr. Arnaldo de Albuquerque Araújo,
coordenador do Núcleo de Processamento Digital de Imagens (NPDI) do
DCC-ICEx e Dra. Inês Assunção de Castro Teixeira, da Faculdade de
Educação e membro do Núcleo de História Oral do Centro de Estudos
Mineiros da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (NHO/CEM/
FAFICH/UFMG). Esta parceria resultou, até o momento, na orientação
de dezoito estudantes de Iniciação Científica, três graduados que tiveram
bolsa de Desenvolvimento Tecnológico e na conclusão de dois mestrados.
A metodologia dessa investigação científica estruturou-se em fases
distintas, indissociáveis e complementares:
87
1. Bibliografia - análise e levantamento bibliográfico nas bibliotecas da
Escola de Belas Artes da UFMG, da Escola Guignard da Universidade
Estadual de Minas Gerais (UEMG) e no Museu Casa Guignard, em Ouro
Preto, da Superintendência de Museus e Artes Visuais do Estado de
Minas Gerais, que constituem os mais completos e importantes acervos
bibliográficos sobre o artista, além de busca na Internet1 ;
2. História Oral - método usado nas entrevistas e depoimentos com ex-
alunos, retratados e colecionadores2;

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3. Estudo da Obra - identificação e análise das obras do artista, a partir de
exames técnicos, formais e estilísticos3;
4. Documentação Fotográfica - registro e ferramenta de análise e
divulgação da obra do artista;4
5. Preservação Digital - tecnologia aplicada na produção, edição,

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armazenagem e transmissão da informação, pelo sítio da Pesquisa - http://
pesquisaguignard.eba.ufmg.br/guignard/ 5.
Até o momento, cerca de duzentas obras pertencentes ao acervo público
e particular, principalmente de Minas Gerais, foram estudadas. A maioria
delas foi trazida ao Cecor para exame e documentação. Outros objetos
foram estudados in situ, na residência dos proprietários e nos museus.
Algumas obras que entraram no Cecor para serem restauradas, foram,
também, estudadas. A análise completa da pintura “Paisagem Imaginária”,
do acervo do Museu de Arte da Pampulha de Belo Horizonte – MG é
apresentada em detalhes como exemplo da metodologia usada na Pesquisa.
Estudo da obra
Cada obra estudada recebeu um número de registro e foi examinada em
detalhe. Foi elaborada uma ficha descritiva, com respectivo manual de
preenchimento, subdividindo-se em:
1. Dados gerais - número, título(s), dimensões, gênero, suporte, técnica,
data, palavras chaves, marcas e inscrições, descrição;
2. Dados do proprietário – tipo, endereço;
3. Dados históricos - detalhamento de informações históricas;
4. Análise da obra - características estilísticas (VIEIRA, I. L., 1988), 88
técnicas, relatório técnico;
5. Estado de conservação - diagnóstico;
6. Imagens - documentação fotográfica e radiografia.
O formato eletrônico das fichas descritivas foi preparado, inicialmente,
pela equipe de informática da UFMG, resultado de várias reuniões e
testes das respectivas planilhas manuais. A versão final, ou seja, o Sistema
de Informação multimídia da Pesquisa Guignard foi implementado

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utilizando arquitetura ArquivoBR versão 1.2, desenvolvido pela Bertholdo
Consultoria.
A sistemática de análise baseia-se no princípio de que a ciência, por
meio de exames, pode auxiliar a revelar a beleza de certos detalhes no
visível e no invisível, podendo mostrar as possíveis etapas de elaboração
das obras de arte. Apoiado nas informações buscadas na Bibliografia e

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nos depoimentos orais, coletados durante a pesquisa, ou disponíveis
na literatura (fitas de vídeos e livros) (VILARA, P., 1966), a obra foi
minuciosamente estudada pelas conservadoras Profa. Dra. Anamaria, de
pintura, e Profa. Ms. Bethania, de papel, em colaboração com a química
Dra. Claudina. Iniciou-se a observação das características de cada peça
por exames organolépticos, a olho nu ou com uma visão ampliada sob
a lupa binocular e/ou ao microscópio estereoscópico; e com luzes
especiais, quando a obra é iluminada com diferentes tipos de luzes e/ou
radiografada, podendo ainda ser estudada com sistemas de infravermelhos
(reflectografia, imagem multiespectral), ou documentadas com filme
infravermelho. Esta sequência de exames permite um amplo conhecimento
do objeto artístico, sem a necessidade de remoção de amostras. Eles
podem ser registrados por fotografia, possibilitando obter informações
sobre o suporte (trama do tecido, sentido dos veios da madeira), a grafia
do artista (tipos de pinceladas, presença de empastes ou camadas delgadas,
escrita pictórica e desenhos), a presença de intervenções na obra (verniz,
retoques,nivelamentos, colagens) e do seu estado de conservação.
Após este diagnóstico, na última etapa, realizou-se a busca das cores da
paleta do artista pela conservadora Profa. Dra. Anamaria (NEVES, A. R.
A., 1998) e a caracterização das técnicas e materiais constitutivos das obras
pela cientista da conservação, Dra. Claudina. A metodologia de análise
envolveu, na maioria dos casos, a remoção de um número mínimo de 89
microamostras, representativas, que foram examinadas por uma série de
técnicas analíticas sensíveis. Com o desenvolvimento da pesquisa, esse
número foi diminuído, pela educação do olhar e experiência da equipe
em “enxergar” com mais evidência os tipos de pinceladas e de materiais
pictóricos característicos do mestre Guignard. Priorizando, assim, o uso
dos métodos não-destrutivos, obras significativas foram escolhidas para
um estudo mais completo.

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O estudo da pintura “Paisagem Imaginária”
O procedimento metodológico usado na Pesquisa Guignard é apresentado
com o exemplo do estudo da pintura “Paisagem Imaginária” (Figura 1),
número de registro G0076 , a seguir.
. Dados gerais

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Título: Paisagem Imaginária Título 2: Noite de São João
Data: 1961 (datada) Técnica: pintura sobre tela
Dimensões: 61 X 46 cm Proprietário: MAP, BH – MG

Figura 1 - Paisagem Imaginária, 61 X 46 cm, pintura sobre tela, 1961. Acervo do museu
de Arte da Pampulha (MAP), Belo Horizonte – MG. a) Frente b) Verso
(Fotografias: Renata Garboci)
90
. Descrição da obra
Paisagem imaginária formada por montanhas em tons escuros com cinco
igrejas, sete balões, duas pontes e um trem (Figura 1a). Em primeiro
plano vê-se montanhas mais escuras e menores. Ao centro do primeiro
plano encontra-se um balão colorido rodeado por figuras humanas, à
sua direita está uma cruz branca e à esquerda, uma igreja. Em segundo
plano concentram-se as outras igrejas e as duas pontes. Na ponte superior
observa-se a presença de um trem seguido de quatro vagões. Em terceiro
plano as montanhas são mais claras e de picos pontiagudos com céu de

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cores: preto, cinza e nuvem branca ao centro. Os balões, a partir do balão
central do primeiro plano, dividem-se em dois grupos: três de cada lado e
diminuem à medida que sobem em direção às nuvens.
. Dados Históricos
No verso encontra-se (Figura 1b):

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. Inscrição à caneta hidrocor vermelha e verde (parte superior ao centro):
“Tombo 158/ Doação art./ DPt.092”
. Registro do Museu de Arte de Belo Horizonte em papel colado
diretamente na tela (canto superior esquerdo): “Museu de Arte de Belo
Horizonte / ACERVO Nº 158/ ARTISTA: Alberto da Veiga Guignard/
TÍTULO: Noite de S. João/ DIMENSÕES: 61 X 46/ TÉCNICA:
Pintura/ ANEXADA EM: 1961/ ORIGEM: Doação do Autor”
. Registro do Museu de Arte da Prefeitura de Belo Horizonte, em papel
colado no chassi (canto superior esquerdo): “21.6 a 31.7.1972/ Este
quadro esteve exposto no Museu de Arte da Prefeitura de Belo Horizonte/
Homenagem...”
. Análise da obra: características técnicas
A pintura apresenta dimensões de 61 X 46 cm, tecido em algodão com
variações de 19 a 21 fios por centímetro na altura, e 15 fios por centímetro
na largura7 , sendo a altura em fios duplos e fiação irregular (fio grosso e
fio fino). O tecido foi fixado com tachinhas e tem acabamento uniforme
da preparação branca visível nas bordas; apresenta encolagem visível pelo
verso.
A tinta muito diluída foi aplicada com pinceladas irregulares sobrepostas.
Predominam as cores preta, cinza e ocre. Camada pictórica muito fina 91
deixando visível a trama do tecido. Na área superior, as camadas são
de veladuras pretas e cinzas, com nuvens esbranquiçadas formadas por
movimentos circulares. A pintura possui veladuras de cores azul, roxo,
verde, amarelo, branco e preto. Os balões foram pintados, inicialmente de
branco e depois, acrescentados traços finos de cores vivas e encorpadas.
Apresenta desenhos estilizados de figuras humanas, igrejas e da locomotiva,
sendo as figuras humanas formadas por duas cores, cabeça preta e corpo
branco. Linhas brancas foram pintadas sugerindo estradas, contornando

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pontes, nos túneis e nas cercas. As palmeiras são formadas por pinceladas
delicadas de cor verde escuro. As igrejas foram pintadas de tinta branca
e, depois, acrescentadas as janelas e portas. A tinta preta mais grossa,
proporcionando uma coloração mais escura, foi usada nas montanhas.
Pintura assinada e datada “Guignard 1961”, com tinta diluída azul, na
frente, canto inferior direito. Apresenta corte vertical na parte inferior da

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letra “G” maiúscula. E, no verso, a assinatura, seguida de data, “Guignard
1961”, feitas na cor verde com tinta diluída, canto inferior direito.
Apresenta letra “G” inicial com corte e pingo no número “1” final “1961”.
Ausência de camada de verniz.
. Estado de conservação
Obra em bom estado de conservação. O chassi8 apresenta orifícios de
insetos xilófagos, perdas na lateral superior direita, frestas nos encaixes de
45° e papel adesivo em todos os montantes. No verso, o tecido apresenta
manchas de oxidação em toda superfície, papel de identificação colado
na parte superior esquerda e anotações em hidrocor verde e vermelho no
centro superior.
A camada pictórica apresenta pequenos pontos de perda, principalmente
na parte superior. Na lateral direita, o desgaste está mais acentuado na
parte inferior, provavelmente provocado por respingos de um produto
abrasivo. Apresenta, ainda, pequenos craquelês de secagem e, sujidades
generalizadas (Figura 1).
. Exame com luzes especiais
No estudo técnico, as características de cada obra foram observadas com
o posicionamento da fonte luminosa (rasante, transversa), sob iluminação
com luzes especiais (ultravioleta, monocromática). Algumas obras foram 92
fotografadas com filme infravermelho e/ou radiografadas. Foi realizada
a documentação fotográfica das etapas de interesse e a digitalização dos
filmes de raios-X9 .
No exame da obra por luz rasante (ou tangencial), a obra é iluminada
com fonte intensa quase paralelo à sua superfície, formando com ela um
ângulo agudo. Todos os relevos e deformações da pintura e do suporte
são realçados. O estudo da Paisagem Imaginária mostra alguns pontos

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em relevo, principalmente no centro inferior. Apresenta relevos verticais,
provavelmente marcas deixadas pelo pincel durante a aplicação da
preparação e/ou característica da tecelagem na fiação do tecido. Como a
tinta é diluída os relevos na camada pictórica são mínimos.
A luz transversa, ou seja, a iluminação da obra com fonte intensa de luz
por trás e visualizando-a pela frente, auxilia a identificação de rupturas,

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pontos frágeis, intervenções, empastes, áreas delgadas, falhas na camada
pictórica e no suporte, presença de craquelês, entre outros. Na pintura
foram observados pequenos pontos de desgaste por toda a tela. Desgaste
horizontal junto à madeira do chassi na parte inferior, além do desgaste
vertical no lado inferior direito. Tela no geral transparente, resultado do
uso de tinta muito diluída, com manchas escuras apenas nas áreas de
pinceladas pretas. As inscrições, a assinatura do verso e a etiqueta de
identificação são visíveis pela frente, por causa da transparência da tinta.
Apresenta pequenos craquelês na fumaça da locomotiva e nas portas
vermelhas das igrejas.
No exame da obra por fluorescência ao ultravioleta10 , a maioria dos
compostos fluorescentes são orgânicos, de origem natural ou sintética, tais
como: vernizes (resinas de damar, resina acrílica, verniz fosco contendo
ceras, etc.), as lacas (garança, alizarina, cochonilha, carmim, etc), pigmentos
violeta sintéticos e alguns pigmentos inorgânicos como os de zinco, de
cádmio, entre outros. Os pigmentos usados a partir do final do século
XIX, são em sua maioria sintéticos, fabricados industrialmente, sendo
esse instrumento de análise importante para auxiliar a identificação dos
pigmentos modernos usados em pinturas desse período. Esses materiais
fluorescentes podem dar diferentes respostas (fluorescência colorida)
segundo a sua natureza química. As fluorescências se tornam mais
intensas à medida que as substâncias envelhecem. Portanto, esse método 93
diagnóstico sem remoção de amostras, auxilia na identificação de certos
pigmentos e permite mostrar o estado de conservação da superfície da
obra. Alguns materiais pictóricos, usados em restaurações, absorvem mais
a luz resultando em menos fluorescência e, portanto, aparecendo mais
escuros, distinguindo-se assim do original.
O exame da pintura em estudo mostra fluorescência alaranjada nas áreas
amarela e vermelha dos balões, característica do uso de pigmentos de

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cádmio. Na porta vermelha da igreja central, Guignard usou outro tipo
de vermelho. A assinatura e data, de cor azul, apresentam coloração mais
escura. Esta pintura não apresenta manchas escuras característica de
intervenções recentes (Figura 2).

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Figura 2 – Fluorescência ao ultravioleta, detalhe da pintura mostrando que nos balões
o artista usou os pigmentos fluorescentes de cádmio, nas cores vermelho e amarelo
(Fotografia: Renata Garboci)

No exame da obra por luz monocromática11 , as cores não são percebidas,


a escrita pictórica e o desenho da pintura aparecem contrastado e nítido.
Como o contraste é ampliado, possibilita à visualização de retoques
mais fracos, linhas do desenho e de sua elaboração, além de intervenções
(repinturas) situadas sob o verniz. Na pintura analisada, os traços, o
movimento das pinceladas e as linhas do desenho ficaram mais visíveis.
Pinceladas irregulares e circulares foram usadas na representação das 94
nuvens. As montanhas apresentam pinceladas verticais e horizontais. Os
balões são formados por traços finos de pinceladas únicas com tinta mais
encorpada. Pinceladas finas formam as cercas, as estradas e contornam as
pontes.
O exame com radiação infravermelha possibilita investigar as camadas
subjacentes à superfície da pintura, ou seja, mostrar os arrependimentos
e/ou alterações realizadas pelo artista, esboços, podendo definir suas

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características, evidenciar assinaturas escondidas sob camada de verniz
espessa, auxiliar na identificação de intervenções. Algumas obras foram
documentadas por fotografia no infravermelho utilizando-se o filme
Infrared High Speed, da Kodak. Na pintura “Paisagem Imaginária” as
fotografias de infravermelho revelaram informações complementares ao
exame com luz monocromática, tais como, as linhas dos desenhos, as

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pinceladas finas e livres, a transparência das tintas, o movimento do pincel
na pintura do fundo.
A radiografia consiste na imagem da estrutura interna da obra em função
dos materiais constitutivos do objeto artístico, por meio de um aparelho
de raios-X. O seu princípio básico é a conversão em imagem visível,
provocada por maior ou menor absorção dos raios-X, pelos materiais.
A sensibilidade e precisão do método baseiam-se na diferença em peso
atômico dos elementos químicos presentes e na espessura da camada em
que foram aplicados, aparecendo preto, branco e em tons de cinza. Quanto
maior o número atômico, maior absorção dos raios-X, correspondendo
às áreas brancas na radiografia. Essa técnica auxilia na identificação de
certos pigmentos, tipos de pinceladas, tratamento pictórico e uso de
determinadas ferramentas pelo artista. E, também, na avaliação do estado
de conservação da obra, dentre outras possibilidades (GILARDONI; A
et al., 1977).
A pintura analisada mostra áreas brancas bem definidas, com traços
e linhas nítidas. As figuras humanas, formadas por pequenos traços de
tinta diluída, mostram-se bem visíveis. Apresenta alteração nas nuvens
localizadas no centro superior, que foram parcialmente cobertas por
veladuras acinzentadas, feitas com pigmentos de menor absorção dos
raios-X. As igrejas foram pintadas de branco, sendo que, as janelas
vermelhas e portas pretas, feitas com pigmentos de elementos químicos 95
mais leves, foram pintadas depois. Existem alguns pontos mais claros
nas igrejas, variação na intensidade de absorção dos raios-X, devido
à quantidade variada de mistura de pigmentos utilizada e espessura das
camadas. Os balões, também, apresentam-se mais claros devido ao uso
dos pigmentos amarelo e vermelho de cádmio, e do vermelhão (sulfeto
de mercúrio), constituídos de elementos químicos pesados, o cádmio e
o mercúrio, respectivamente. Os vagões da locomotiva apresentam um

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traço branco na parte superior. A trama do tecido é visível devido ao uso
de tinta muito diluída. O chassi apresenta galerias de inseto xilófago, que
aparecem mais escuras, principalmente na lateral superior. Os pigmentos
brancos de chumbo, de zinco e o litopônio (mistura de sulfato de bário
e sulfeto de zinco), que apresentam alta absorção pelos raios-X, foram
usados nesta pintura. Todos os pigmentos mencionados acima foram

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identificados por análises físico-químicas.
. Estudo de cores
O estudo de cores, buscando a paleta do artista, consiste na reprodução de
áreas anteriormente selecionadas e mapeadas da pintura. A partir do uso
de cores puras, de misturas e sobreposições de camadas de tintas propõe-
se caracterizar as pinceladas, a repartição de planos, o emprego das cores
e os recursos cromáticos utilizados para o efeito de volume, luz e sombra.
Na pintura “Paisagem Imaginária” esse estudo possibilitou conhecer as
cores utilizadas por Guignard, como também a maneira do artista usar o
pincel, o ponto de toque na tela, a direção da pincelada etc.
. Técnica e materiais
Os exames técnicos anteriores, sem remoção de amostras, direcionaram
a etapa de caracterização dos materiais constitutivos das obras de arte.
Minúsculos fragmentos das peças foram coletados para as análises físico-
químicas e estudos estratigráficos realizados nos laboratórios do Cecor
e de outras unidades da UFMG12 . As técnicas utilizadas são sensíveis
e específicas, onde os resultados complementam-se: microscopia ótica,
microquímica, espectroscopia de absorção na região do infravermelho
por transformada de Fourier (FTIR) (DERRICK, M.R. et all,1991)
microscopia eletrônica de varredura (MEV) acoplada ao espectrômetro
de energia dispersiva de raios-X (EDS), fluorescência de raios-X e
96
difração de raios-X. Materiais originais e usados em intervenções foram
investigados - suporte (tecido, madeira e papel), pigmentos, cargas, lacas,
aglutinantes, colas, vernizes, adesivos, entre outros. Cortes estratigráficos
foram preparados para estudar as camadas originais e as intervenções
posteriores. As peças estudadas no Cecor foram examinadas, inicialmente
ao microscópio estereoscópico (lupa binocular) com registro fotográfico
(microfotografias), das áreas de interesse. O mesmo procedimento foi

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adotado com os fragmentos, cortes estratigráficos, pigmentos, suportes
e outros materiais de interesse examinados aos microscópios de luz
polarizada refletida, fluorescência ao ultravioleta e eletrônico de varredura.
As microamostras removidas da pintura “Paisagem Imaginária” foram
para elucidar as dúvidas encontradas nos exames com luzes especiais.
Procurou-se remover amostras do suporte e das diversas cores em áreas

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discretas ou próximas à perda de camada pictórica, avaliando-se sempre
a necessidade técnica. As amostras foram enumeradas, os locais de sua
remoção marcados em uma fotografia da pintura, descritas a seguir: 1.
Suporte, bordas, amostras no sentido da largura e da altura; 2. Data,
número 9, até o suporte, local com relevo da preparação; 3. Telhado da
igreja inferior esquerda, com friso branco, até o suporte; 4. Verde do
fundo, lateral direita, abaixo do túnel, até a preparação; 5. Balão, vermelho
e amarelo, próximo ao trenzinho, sem camada de preparação; 6. Porta
vermelha escura, igreja central, abaixo do trenzinho, até a preparação; 7.
Violeta, céu superior direito, até a preparação; 8. Preto, fundo entre as
cercas, parte inferior, próximo á multidão soltando balão, até a preparação.
O tecido usado na pintura, de acordo com as análises, é o algodão de
densidade regular 20 x 15 fios por cm2, tecelagem tafetá com fios duplos
no sentido da altura (fio grosso, alguns, e fio fino), tendo sido encolado.
O corte estratigráfico da amostra 6, porta vermelha escura, mostra a
sequência de camadas de tinta usadas pelo artista. A camada branca (1),
denominada base de preparação, foi aplicada sobre a encolagem do tecido,
sendo mais espessa do que as camadas cinza (2) e vermelha escura (3). A
cinza é uma camada aplicada sobre a preparação e em toda a extensão da
pintura. De acordo com depoimento da ex-aluna Maria Helena Andrés13
Guignard costumava sujar a tela quando fazia as paisagens.” Ela se 97
refere ao tom cinza, usado pelo artista para estabelecer forma e volume.
As análises físico-químicas mostraram que a preparação constitui-se de
cola animal aglutinando a mistura dos pigmentos carbonato de cálcio e
branco de zinco, contendo grãos transparentes de sílica. A preparação é
lisa, homogênea e mais espessa comparada às camadas coloridas.
De acordo com as análises, a técnica da pintura é a óleo, e Guignard usou
como camada cinza o preto de ossos misturado aos brancos de chumbo
e de litopônio. O preto de ossos foi usado também no fundo, amostra

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8. No friso branco acima do telhado, amostra 3, foi identificado uma
mistura de branco de chumbo e de zinco. Certamente, nas áreas brancas
das igrejas, torres, cruz, figuras humanas, e caminhos, também foram
usados esses pigmentos brancos. Estas áreas apresentam semelhança na
radiografia e nos outros exames com luzes especiais. A assinatura e data,
amostra 2, foram feitas com o ultramar artificial misturado ao branco

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de zinco. No fundo, Guignard pinta com o violeta de cobalto (fosfato
de cobalto), amostra 7, também misturado ao branco de zinco. Os
pigmentos de cádmio, nas cores vermelho e amarelo, o vermelhão (sulfeto
de mercúrio), e os pigmentos de óxidos de ferro, vermelho e marrom,
foram identificados nesta pintura. No balão, amostra 5, Guignard usou
o amarelo de cádmio, e, na camada vermelha, o vermelhão misturado
ao vermelho de cádmio. O vermelho escuro usado na porta da igreja
central, amostra 6, é um pigmento laca, provavelmente carmim, pela
fluorescência rosada, características microscópicas, e pelos resultados dos
métodos espectroscópicos - FTIR, MEV- EDS. O verde de cromo foi
usado no fundo, amostra 4, e no marrom do telhado, amostra 3, misturado
a pigmentos de óxido de ferro, nas cores vermelho e marrom, nestas duas
áreas. Certamente o azul ultramar artificial e o violeta de cobalto foram
usados em outras áreas azuis e violeta da pintura; o verde de cromo e os
pigmentos terras em outras áreas verdes. O estudo estratigráfico mostrou
ausência de verniz.
Conclusão
A sistemática de análise científica e multidisciplinar, implementada na
Pesquisa Guignard, possibilitou um aprofundamento no conhecimento
sobre os materiais, suportes e tratamentos pictóricos usados pelo
desenhista e pintor Alberto da Veiga Guignard, e serve de modelo para o
estudo de outros artistas e/ou coleções brasileiras. 98
___________
Notas
1. Participaram desta fase Viviane Soares Prates Miranda (DTI-CNPq) e Natalya Dimov (BIC-PRPq).

2. A historiadora Alessandra Amaral Andrade (DTI-CNPq) realizou o trabalho de História Oral.


3. Bolsistas de Iniciação Científica envolvidos nesta etapa: Aline C. Santos, Anamaria L. Camargos,
Angélica O. Araújo, Fernando M. Silva, Tales E. R. Sabará, Cristina N. Silva, Iara L. Alvarenga, Virgínia
A. Camargos e Adelízia R. M. Marques.
4. Equipe de fotografia: Renata S. Garboci (DTI-CNPq) e, de Iniciação Científica, os alunos Ana Paula
Torres, Diego M. Ribeiro, Bruno F. S. Regino.

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5. Equipe de informática: Clarissa Costa e Lima (DTI-CNPq), e, de Iniciação Científica, os alunos
Fernanda M. Vieira, Gláucia S. Tavares, Maria Cecília R. Barbosa, Thatyene L.A.S. Ramos e Rodrigo S.
Oliveira.
6. O registro corresponde à identificação e controle da obra. É composto pela letra “G”, seguida de
dígitos sequenciais.
7. Medida da densidade (peso) do tecido em centímetros quadrados (cm2), para determinar o tipo de
trama - fechada, regular e aberta com o tipo de fios usado na tecelagem - fino, médio e grosso.
8. Chassi ou bastidor é a estrutura que serve de suporte ou armação em madeira usado para estirar a tela.

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9. A digitalização dos filmes de raios-X foi realizada pelo Prof. Alexandre Leão FTC/EBA/UFMG.
10. A fonte de luz ultravioleta tem a propriedade de provocar fenômenos de fluorescência em certos
materiais. A fluorescência ao ultravioleta é percebida pelo olho humano na faixa visível do espectro
eletromagnético.
11. Luz monocromática é a luz de uma “única” cor, como, por exemplo, a luz monocromática amarela
emitida pelo vapor de sódio, nas lâmpadas.
12. Departamento de Engenharia Metalúrgica e de Materiais (DEMET) da Escola de Engenharia;
Centro de Microscopia (CM); Departamento de Química (DQ) do Instituto de Ciências Exatas (ICEx).

13. Entrevista realizada pela equipe de História Oral.

__________
Referências
ALBERTO da Veiga Guignard (1896-1962). Rio de Janeiro: Pinakotheke, 2005.

BOGHICI J (org.) and Hollanda N B (coord.). O humanismo lírico de Guignard. Rio de Janeiro: Museu
Nacional de Belas Artes, 2000.

BOMFORD D; KIRBY J. et all. Art in the making: Impressionism. London, White Dove, 1991
(National Gallery).

DERRICK, M R; LANDRY, J M; STULIK, D C Methods in scientific examination of works of art:


infrared microspectroscopy. Los Angeles: Getty Conservation Institute, 1991.

FROTA; L. C. Guignard - arte, vida. Rio de Janeiro: Campos Gerais, 1997.

GILARDONI, A.; ORSINI; R.A.; TACCANI, S. X-rays in art: phisics,technique, applications. Lecho:
Stefanoni, 1977.

MATERIAIS DE ARTE NO BRASIL Rio de Janeiro: Instituto Nacional de Artes Plásticas, 1985.

NEVES, A. R. A. Reintegração cromática: metodologia para obtenção de cores predeterminadas. Belo


99
Horizonte: UFMG. Escola de Belas Artes, dissertação de mestrado, 1998.

VIEIRA, I L. A Escola Guignard na cultura modernista de Minas: 1944-1962. Pedro Leopoldo: CESA,
1988.
Arquitetura contemporânea de museus:
coadjuvante ou protagonista?

História da Arte Técnica


Ana Cecília Rocha Veiga
Doutoranda PPGA-EBA-UFMG

Yacy-Ara Froner (orientadora)


PPGA-EBA-UFMG

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Resumo
Desde Uffizi de Vasari, o primeiro edifício projetado para ser um museu, a arquitetura
museológica sofreu grandes transformações. Para os modernistas, a função precedia a
forma e a arquitetura. Já a arquitetura contemporânea seria uma arquitetura “falante”,
enquanto se esqueceria de ser “arquitetura de ofício”. Contaminada pela febre do original
a qualquer custo, prima pelo grito formal, esquecendo-se, até mesmo, de por quê e o quê
brada em tão alta voz. Será que, neste diálogo intenso, as necessidades programáticas e
museológicas encontram-se verdadeiramente contempladas? E a conservação do acervo,
tem seu lugar primordial? Traçar uma breve trajetória da arquitetura de museus, bem como
analisar o cenário contemporâneo, com suas questões e dilemas, consiste no objetivo deste
artigo, parte integrante da tese da autora.
Palavras-chave: Arquitetura de museus, conservação preventiva, modernidade e pós-
modernidade
Abstract
Since Uffizi of Vasari, the first building designed to be a museum, the museum architecture transformed
itself. Modernists thought that form should follow function. Nevertheless, today architecture insists to
talks out loud, forgetting to be functional and practical. Infected by the disease of originality, prefers form
and beauty despite the costs and users needs. In this intense dialog, the architectural program is really
contemplated? And the preventive conservation of the collections is guaranteed? To trace a brief history of
museum’s architecture and analyze the contemporary scene, among others polemic issues, consists the target
of this paper, part of the author’s PhD theses.
Key words: museum’s architecture, preventive conservation, modern and postmodern times berto da Veiga
Guignard; archeometry; history of art technique; Brazilian modernist painter

Introdução 100
Desde Uffizi de Vasari, o primeiro edifício projetado para ser um museu, a
arquitetura museológica sofreu grandes transformações. Para os modernistas,
a função precedia a forma e a arquitetura. Nas palavras de Sullivan, revelaria
toda a sua nudez. Arquitetura pré-fabricada, proporcionando a realização
de “um interior mais amplo, iluminado, asséptico, desprovido de elementos
decorativos, cuja montagem e desmontagem deveria significar economia
de tempo e dinheiro.” (CASTILLO, 2008, p.33) Le Corbusier propôs a sua
“Máquina de Expor” e também o seu “museu de crescimento ilimitado”,

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trazendo a tona a discussão acerca da flexibilidade da arquitetura frente ao
seu acervo. O Congresso Internacional de 1934 (Madrid) ocupou-se de
definir a questão do programa arquitetônico para os museus, reforçando
a relevância do tema e gerando um documento cujo viés funcionalista
era a tônica. GUIMARÃES (2010) destaca que, segundo os termos do
Congresso, a arquitetura do museu precisava levar em conta o local no

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qual se inseria, bem como possibilidades expositivas flexíveis e acessíveis,
cujos objetivos tinham caráter tanto modernistas quanto preservacionistas.
Da mesma década deste evento, o MOMA, calcado na essência do “less
is more”, com sua arquitetura limpa e neutra, privilegiou a lógica do
“cubo branco”. Tornou-se paradigma até os dias de hoje, ancorado nos
preceitos racionais influenciados por De Stijl e Bauhaus. Contudo, foi um
modernista “orgânico” - Frank Lloyd Wright - que, com o Guggenheim de
Nova York, introduziu o conceito de “museu como obra de arte”. Agora,
a arquitetura deixava de ser somente “embalagem” e interagia visualmente
com as obras em exposição, como o faz os caracóis dinâmicos de Wright .
Como este “museu-caracol”, existem hoje infinitas arquiteturas projetadas
especificamente para abrigarem coleções. Novamente, apresentam-se de
forma tão espetacular que competem, inclusive, com seu acervo exposto.
Um exemplo clássico desta polêmica é a “franquia” do Guggenheim na
cidade de Bilbao (Espanha). Projetado pelo célebre arquiteto Frank O.
Gehry no suspiro do século passado, desde então “veste a arte de titânio”.
(GUGGENHEIM, 2010) São 24.000 metros quadrados de blocos
curvos e retorcidos, interligados, com revestimentos audazes e luxuosos,
como as caríssimas placas de titânio que proporcionam as visões mais
deslumbrantes do edifício. Não há modéstia na arquitetura deste museu
em todos os seus amplos sentidos: orçamento, integração com a paisagem,
partido arquitetônico, seleção de materiais e objetos. Sem o computador 101
e avançadas tecnologias de representação e cálculo estrutural, não estaria
em pé. Sem os milhões dos mecenas contemporâneos, não sobreviveria às
corrosões e intempéries. É, portanto, tão ou mais importante do que as
obras que abriga. Nisto, vêem muitos um ponto positivo:
O primeiro equívoco na análise da obra de Gehry se dá

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ao estabelecer-se uma distinção clara entre arte e museu.
Ali, pretende-se justamente criar um jogo infinito de
sobreposições e distorções. A construção interage, a
partir de sua irregularidade, com a mostra e o espectador
simultaneamente. Num momento de fusão das disciplinas,
quando muito se fala em transdisciplinaridade e alguns
teóricos trazem temas como Translinguagens, Trans-
arquitetura e Transdesign, o Guggenheim é um museu que

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se confunde com a arte num processo de hibridização das
linguagens. Não se trata de um lugar para exposições inertes,
assépticas e laboratoriais. Diferente do museu-suporte, ele
é capaz de acolher exposições e acariciá-las. (...) É provável
que uma mostra renascentista receba menos atenção que
o museu se o visitante for novo no recinto. Porém, qual
o problema em preferir a experiência no tempo-espaço
construído àquela de uma visualidade já incorporada ao
cotidiano? A mente acomodada reluta quando o programa
é subvertido em favor da experiência. E não há problema
algum que a cada nova exposição novas questões surjam da
relação travada, até porque cada conjunto exposto poderá
sempre ser tratado como uma instalação que se relaciona
com o prédio. A diferença se apresenta na explicitação
do que na maioria dos outros casos está subentendido: a
composição “obra-conjunto-espaço”. Além disso, para
aqueles que passeiam pela Europa, há inúmeros outros
museus no formato estabelecido corroborando para que
o Guggenheim Bilbao seja uma experiência diferenciada.
(CARVALHO, 2009)
Ainda que bem argumentados, os pontos favoráveis à obra não são
consenso. Continuadores do projeto moderno reclamam um retorno à
funcionalidade, simplicidade, praticidade e economia na arquitetura, seja
esta museal ou não. Submergida pelos valores mercadológicos, este tipo
de arquitetura estrondosa levou a alcunha de “arquitetura do espetáculo”.
A “arquitetura do espetáculo” se caracteriza pela complicação
formal (que é muito diferente de complexidade), excesso
102
de elementos, gratuidade, uso de referências não-
arquitetônicas e geometrias obscuras, resultando em
objetos que têm pouca semelhança com edifícios e pouca
relação com as atividades neles realizadas. Essa produção
se apoia em um entendimento equivocado do que é
criatividade em arquitetura, abrindo mão da habilidade de
atender demandas reais bem delimitadas para se tornar algo
ligado ao imprevisto, ao insólito e ao surpreendente. Está
claro que esse fenômeno é um reflexo do momento cultural
em que vivemos, dominado pelos valores da economia de

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mercado e pelos princípios da propaganda e do marketing, o
que faz com que a arquitetura tenha passado a se preocupar
mais em causar impacto visual do que em realmente servir
à sociedade. (MAHFUZ, 2010)
Assim, a arquitetura contemporânea seria uma arquitetura “falante”,
enquanto se esqueceria de ser “arquitetura de ofício”, onde “o lado

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criativo (ou artístico) da arquitetura se revela como um modo superior
de resolver, pela forma, os problemas práticos que definem um dado
problema arquitetônico”. (MAHFUZ, 2010) Isto vai de encontro com
a nossa compreensão do que viria a ser, de modo global, arquitetura:
Arquitetura e Urbanismo consiste no projeto, planejamento e construção
de edificações e cidades, através de conhecimentos amplos de engenharia,
tecnologia, sociedade e arte. Arquitetura e Urbanismo, como prática, é a
arte-tecnologia de bem projetar, planejar e construir as microestruturas -
edifícios, casas - em concordância e harmonia com a construção e projeto
das macroestruturas - espaços públicos, cidades. Está necessariamente
subordinada aos fins que a antecedem. E estes fins são inúmeros. Além
do programa básico, demandas do cliente, qualidade construtiva e de
pós-ocupação, atendimento à legislação e normas técnicas, precisamos
acrescentar outros fins que, cada dia mais, tornam-se obrigatórios numa
arquitetura que se afirma como tal - moral e tecnicamente correta: eficiência
energética, economia, durabilidade, sustentabilidade, praticidade de
manutenção. No caso dos museus, é preciso, em primeiro lugar, lidar com
a questão gravíssima da conservação do acervo, que pede estar protegido
em condições ambientais adequadas. A forma, portanto, não pode vir ao
acaso, como em uma obra de arte. A forma precisa se subordinar a tudo
isto anteriormente listado. MAHFUZ menciona o artigo do arquiteto
Rem KOOLHAAS, intitulado “Dane-se o programa”, onde o programa
arquitetônico não é visto como um convite à criatividade e superação, mas
103
como um obstáculo à arquitetura estridente.
Contaminada pela febre do original a qualquer custo, a arquitetura pós-
moderna prima pelo grito formal, esquecendo-se, até mesmo, de por
quê e o quê brada em tão alta voz. O autor do MAC – Museu de Arte
Contemporânea de Niterói, o aclamado arquiteto Oscar Niemeyer, não
esconde o seu fascínio pela originalidade. “Você pode não gostar do que
eu faço, mas nunca viu nada igual”, costuma dizer. De fato, sou traída

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pelo meu olhar e debruço em rendição, encantada pelo disco voador
pousado como um cogumelo no horizonte de Niterói. Niemeyer, tu és
um grande artista! Teu risco é escultura, é poesia, é curva da montanha
redesenhada ao longo do breve sopro da tua vida duradoura. Mas o que
dirão os artistas? Muitos se queixam da “competição cruel” entre acervo
e arquitetura, bem como entre arquitetura e o Rio de Janeiro, que vence

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sozinho, qualquer esforço de conquistar a atenção do fruidor. Neste caso,
como em tantos outros, a arquitetura é entendida como uma obra de
arte, peça contemplada entre o acervo do museu. Portanto, o drama da
originalidade na arte se estende ao panorama arquitetônico, com todos os
seus louvores e vicissitudes. Este mercado de originalidades e autógrafos
chega, mais forte do que nunca, ao mundo arquitetônico museológico e
expográfico, onde a eloqüência do novo fala mais do que o imperativo do
melhor, do mais adequado, do respeito à funcionalidade e à essência do
usuário. No caso dos museus, impõe-se a revelia, também, da alma de seu
acervo.
E isso dá, em arte, o culto da originalidade. Virtude
suprema, para muitos. É, no entanto, um valor relativamente
recente. Os grandes gênios do passado visavam antes a
universalidade. Copiavam-se sem vergonha, imitavam-se
sem opróbrio. O que um realizara com sucesso, por que não
tentar realizar de novo? (...) Roger Caillois compreendeu-o
bem: “Só os talentos medíocres fogem de qualquer modelo
e se esforçam por buscar o inédito. Um gênio tem mais
audácia... Ele provoca a comparação, precisamente porque
se sente ou se sabe incomparável...” (...) a singularidade não
é uma virtude, mas um fato. Ela é apenas outro nome da
solidão. (COMTE-SPONVILLE, 1997, p.322-323)
GARDER (1996, p.45) vai concordar, à sua maneira, lembrando que a boa
arte sempre foi valorizada, mas que a imposição de que a mesma fosse
autêntica é relativamente recente, datando do século XVIII e firmando-se
104
no século XIX. Antes, a autenticidade consistia em algo irrelevante, ao
contrário dos nossos dias, em que a autoria prevalece sobre a excelência.
Como na arte, esta “coleção de autógrafos” tem imperado na arquitetura,
onde assinaturas justificam qualquer gasto, qualquer intervenção, qualquer
projeto. Urge repensarmos a arquitetura dos museus, urge promovermos
novos Congressos como o de 34. O projeto moderno não morreu.
Ao contrário, tem recuperado fôlego cada vez maior, à medida que a

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sociedade global se conscientiza dos danos provocados por um consumo
desenfreado de recursos naturais e energéticos, por um capitalismo regido
exclusivamente pela lógica voraz do mercado, que produz museus para uma
minoria elitizada, com investimentos ofensivamente altos, em detrimento
da preservação/aquisição de acervos, geração de conhecimento e até
mesmo democratização do acesso à cultura.

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Nós, profissionais da museologia e arquitetura, precisamos com urgência
recobrar nossa consciência, elevando o ético, ao invés do simplesmente
estético; recuperando o verdadeiro trabalho em equipe, ao invés da
egocêntrica autoria; ensinando às gerações futuras que também no
museu se deve repensar o luxo e o desperdício. Arquitetura é instrumento
didático, arquitetura fala por si. O que têm aprendido os visitantes, quando
caminham por entre os corredores dos nossos museus contemporâneos?
Que lições silenciosas, valores agregados, mensagens subliminares
estamos transmitindo com nossos templos culturais espetaculares? Este é
o momento, vamos refletir sobre a simplicidade, exterior e interior...

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106
Oneyda Alvarenga e Mario de Andrade:
Interlocuções na construção do

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Patrimônio Cultural
Ana Paula Silva
Doutoranda PPGCI-ECI-UFMG

Alcenir Soares dos Reis (orientadora)

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PPGCI-ECI-UFMG

Resumo
A história da preservação do patrimônio cultural brasileiro, possui na pessoa de Mário de
Andrade um reconhecimento de seu papel de vanguarda à frente da construção do Ante-
projeto de lei que forneceu as bases para a instauração do SPHAN. A partir da constituição
de acervo etnográfico criado através das viagens promovidas pela Missão de Pesquisas
Folclóricas deu-se início no Brasil aos estudos científicos dedicados a cultura brasileira.
Todos os materiais recolhidos pela Missão foram organizados por Oneyda Alvarenga e
disponível a consultas públicas na Discoteca Pública; hoje este acervo encontra-se no
Centro de Cultura São Paulo. Pretende-se com a tese investigar o significado e a importância
da participação de Oneyda Alvarenga no trabalho realizado em termos dos processos de
construção do patrimônio cultural na situação de afastamento de Mário de Andrade do
Departamento de Cultura de São Paulo. Objetiva-se analisar os processos de conservação,
de organização do acervo e de disseminação informacional pela referida senhora durante
o período em que foi diretora da Discoteca aspectos que evidenciam a sua originalidade e
inovações em tratar acervos audiovisuais. Apreender o trabalho realizado pela musicista e
debatê-lo no campo da Ciência da informação pode se constituir um importante espaço
para a produção de conhecimento a cerca da manutenção e gerenciamento de acervos não
convencionais..
Palavras-chave: Patrimônio cultural, acervo audiovisual, informação
Abstract
The history of the preservation of the cultural heritage of Brazil, has in the person of Mario de Andrade
a recognition of its leading role ahead of the Preliminary Construction bill that provided bases for the
establishment of SPHAN. From the constitution of ethnographic collection created by the trips organized
by the Folklore Research Mission was started in Brazil turned to scientific studies the Brazilian culture.
All materials collected were organized by Oneyda Alvarenga and ready for public consultation at the
Disco Service. Today this collection is at the Centre de Cultura São Paulo. The aim with the thesis
investigate the meaning and importance of the participation of Oneyda Alvarenga in terms of construction
107
processes in the context of cultural heritage management and removal of Mario de Andrade of the Culture
Department of São Paulo. The objective is to analyze the processes of preservation, organization of the
collection and dissemination of informational Oneyda created during the time he was director of Disco.
Revealing its originality and innovation in audiovisual collections. This working method has not yet been
presented in the debates in information science, may constitute an important space for the production of
knowledge about the maintenance and management of collections unconventional..
Key words: Cultural heritage, audiovisual collection, information

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Introdução
Estudos sobre a construção do patrimônio cultural brasileiro evoca na
nossas lembranças à presença de Mário de Andrade. Ele foi dentre poucos
de sua época, quem proporcionou, na dimensão de longo prazo as bases
teóricas, ideológicas e políticas para a formulação de uma legislação e de
fomento a preservação do patrimônio cultural, material e imaterial.

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Em particular no que se refere a Mário de Andrade o conhecimento em
torno da preservação das manifestações da cultura brasileira e da promoção
da cientifização do saber cultural, é resultado de suas investigações,
centrado no seu projeto de descobrimento da autêntica cultura nacional,
opção para além do projeto modernista, movimento em que Mário de
Andrade foi importante articulador e militante.
Em 1936, por solicitação do Ministro da Educação e Saúde, Gustavo
Capanema, Mário de Andrade redige o Anteprojeto da lei de proteção
ao patrimônio cultural, no qual propõe a criação do SPHAN (Serviço do
Patrimônio Artístico Nacional). No documento identificam-se as seguintes
formulações, “entende-se por Patrimônio Artístico Nacional todas as
obras de arte pura ou de arte aplicada, popular ou erudita, nacional ou
estrangeira, pertencentes aos poderes públicos, a organismos sociais e a
particulares nacionais, a particulares estrangeiros, residentes no Brasil.”.
Conforme indica a literatura verdadeiro visionário, Mário de Andrade
enxergou claramente a riqueza das expressões e manifestações culturais
e a importância da diversidade em seus processos de construção. Seu
amplo conceito de patrimônio estava à frente das concepções culturais da
época. Em seu ousado anteprojeto, são propostos quatro livros de tombo,
abrigando oito categorias de classificação, tratando de bens tangíveis e
intangíveis. Vale ressaltar que, com Mário de Andrade a ideia de patrimônio 108
agregado à formação do cidadão ganha espaço para a implementação de
ações em políticas públicas voltadas ao direito de acesso e ao direito de
preservação da memória e dos costumes tradicionais brasileiros.
Desde a década de 40 até os dias de hoje, a legislação em torno da proteção
do patrimônio histórico e cultural passou por alterações profundas, desde
a criação de instituições e programas voltados à formação de especialistas
e profissionais voltados as diversas áreas que cobrem o vasto campo de

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atuação, até as atividades que envolvem as áreas destinadas à preservação,
uso e disseminação do patrimônio cultural.
Atualmente intensificam-se as discussões acerca da importância da
proteção ao patrimônio cultural e a regulamentação das ações de
preservações de bens culturais em nível mundial, momento em que cresce
concomitantemente a preocupação com o documento, e especialmente

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com a informação nele contida, argumento que vem impulsionando
grande parte discussões e propostas para ações e políticas de proteção do
patrimônio cultural.
Entretanto, em termos práticos, estão os profissionais que lidam
diretamente com a manutenção de espaços de memória como bibliotecas,
arquivos e museus cientes das relações estabelecidas junto à sociedade
que as mantêm e legitimam preparados para lidar com as demandas
informacionais? Estão estes habituados a lidar com a variedade e as
necessidades desses tipos de artefatos, ou de seus registros? Quais são
as principais dificuldades enfrentadas? Quais são as principais referências
voltadas às possibilidades informativas desses acervos?
Em razão destas indagações é no contexto da Ciência da Informação
que surge a proposta desta tese. Ao investigar a atuação e possibilidades
da informação no espaço do patrimônio cultural, foi preciso realizar
um levantamento bibliográfico em torno da história e da evolução
do patrimônio cultural, a fim de estabelecer conexões entre as áreas e
domínios específicos. Ao realizar esta atividade e durante as leituras
teóricas, as atenções voltaram-se para Mário de Andrade e as pessoas com
quem ele se relacionava. Apontar a perspectiva metodológica sob qual se
pretende realizar a pesquisa, o que terminou por evidenciar a relevância
de Oneyda Alvarenga junto à Mário de Andrade. Assim, a proposta deste 109
texto é o de apresentar o momento atual da tese.
Delimitação da pesquisa: recorte e problematização
Como definição de um primeiro marco teórico foi realizada uma pesquisa
bibliográfica dividida em três grandes áreas, a saber:
• Mário e Andrade trajeto histórico-social, buscando captar em termos
informacionais, os diferentes aspectos de sua trajetória;
• Mário de Andrade e a noção de patrimônio – formação do anteprojeto

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As leituras mais importantes deste momento foram: a Revista do IPHAN,
n. 32, publicação especial sobre o centenário de Mário de Andrade. A obra
de Paulo Duarte, sócio e amigo de Mário de Andrade “Mário de Andrade
por ele mesmo”, onde estavam lá relatadas as correspondências mantidas
por eles, desde o início do Departamento Municipal de Cultura até a sua

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morte em 1945. O “Turista aprendiz” de Mário de Andrade, onde estão
relatadas suas vivências principalmente da primeira expedição realizada
por ele pelo Norte e Nordeste brasileiro, o “Inventário dos Sentidos de
Mário de Andrade” de Gilberto Nogueira, “Câmara Cascudo e Mário
de Andrade”, cartas e correspondências entre os dois e fontes relativas
aos contemporâneos de Mário de Andrade que figuram na história do
patrimônio brasileiro: Rodrigo Melo Franco, Gustavo Capanema, dentre
outros.
Assim, tendo em vista as novas perspectivas de estudo que se colocaram a
partir destas leituras, origem de Mário de Andrade e seus desdobramentos
como do homem público a frente do Departamento Municipal de Cultura
e do Anteprojeto, bem como contexto histórico-cultural que propiciou a
institucionalização do anteprojeto, firmaram-se como questão fundamental
a importância do entendimento que esta situação histórica determinava.
Foi também durante o processo dessas leituras que, a figura de Oneyda
Alvarenga, ex-aluna de Mário de Andrade se destacou considerando que
ela, ao que tudo indica, se constitui junto com ele figura significativa na
construção de instituições voltadas ao estudo da cultura imaterial e dos
seus registros em audiovisual de maior importância do país, ou seja, a
viagem da Missão de Pesquisa Etnográfica.
Em face desta descoberta e do completo desconhecimento na área de
Ciência da Informação do trabalho informacional criado pelos dois, deu- 110
se início a uma pesquisa documental sobre a pessoa Oneyda Alvarenga
e da Discoteca Pública. Ao mesmo tempo foram realizadas disciplinas
nos cursos de pós-graduação oferecidos pelas escolas de Belas Artes e
de Arquitetura , onde o conceito de patrimônio, conservação e restauro
ofereceram fundamentos teóricos que deverão compor um capítulo da
tese voltado à definição do campo e do entendimento das diferentes
facetas que compõem o universo do patrimônio histórico e cultural.
Considerando este percurso e as indagações suscitadas, foi realizada então

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uma viagem in loco, a São Paulo, na Biblioteca Mário de Andrade, à USP -
Instituto de Estudos Brasileiros (onde está recolhido o arquivo pessoal de
Mário de Andrade) - e ao Centro Cultural São Paulo (onde está a Discoteca
Pública).
O contato com as fontes documentais delineou o desenho metodológico

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da tese. Ficou claro que a pesquisa será qualitativa e de fundo documental,
uma vez que levando-nos a opção de conduzi-la em termos qualitativos,
tendo como base a análise documental, os objetivos da tese se concentram
na inter-relação de Oneyda Alvarenga e Mário de Andrade e, nas
interlocuções por eles estabelecidas que resultaram na criação da Discoteca
Pública de São Paulo.
Os estudos teóricos realizados até o momento permitiram apreender e
construir, através do levantamento das atividades desenvolvidas pela
Discoteca Pública, um dos pilares para a formação de um acervo voltado
ao registro da cultura imaterial e à etnografia. Em razão desta primeira
aproximação apenas consultando os documentos será possível vislumbrar
ou descortinar esta construção, fato que se constitui em elemento
desafiador, compreender como os homens apreendiam os assuntos de seu
tempo, ou, colocando tal questão em termos atuais, perguntar-se de que
forma os homens construíam as informações voltadas ao conhecimento
da cultura em seu tempo.
Apresenta-se a seguir dados coletados relacionados à Oneyda Alvarenga e
a Discoteca Pública bem como, os registros que ela contém em especial os
documentos que compõem o acervo da Missão de Pesquisa Etnográfica.
Oneyda Alvarenga e a Discoteca Pública
Oneyda Paoliello de Alvarenga nasceu em Varginha, Minas Gerais em 111
6/12/1911. Quando adulta, Oneyda foi a São Paulo estudar música
quando ela tinha 19 anos. Ela então matricula-se no Conservatório
Dramático e Musical de São Paulo e inicia seus estudos de piano com
Mário de Andrade, com quem também teve aulas de estética e história da
música. Sensível e criativa, Oneyda despontou para a arte desde jovem.
Em 1937, ganhou o primeiro prêmio do Curso de Etnografia e Folclore da
Prefeitura de São Paulo com o trabalho O cateretê do sul de Minas Gerais. Um
ano depois, lançou seu primeiro livro de poemas, A menina boba.

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A influência de Mário de Andrade foi decisiva para a formação cultural e
orientação vocacional de Oneyda Alvarenga e ela foi a principal assessora
nos empreendimentos do mestre. De imediato, travou-se uma relação de
comprometimento, profissionalismo, amizade e cumplicidade; Oneyda
Alvarenga e Mário de Andrade se corresponderam intensamente entre 1932
e 1940. Quando ele faleceu, em 1945, Oneyda assumiu o compromisso de

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reunir, compilar, sistematizar e publicar parte de sua obra, encargo que o
amigo confiou-lhe em sua carta-testamento.
Essa tarefa foi uma das mais importantes experiências profissionais para
Oneyda. Ela dedicou grande parte de seu tempo ao Acervo da Missão de
Pesquisas Folclóricas, com a catalogação dos objetos, registros sonoros e as
publicações das séries Registro Sonoro do Folclore Musical Brasileiro e o
Catálogo Ilustrado do Museu Folclórico. Oneyda Alvarenga foi a primeira
diretora da Discoteca Pública Municipal da Prefeitura de São Paulo, e
permaneceu no cargo de 1935 até sua aposentaria em 1968. Faleceu em
São Paulo, em fevereiro de 1984.
As atividades de Oneyda Alvarenga como diretora da Discoteca, lhe
possibilitou realizar diversas atividades no espaço musical. Em 1942
publicou “A influência negra na música brasileira”. Em 1945 foi agraciada
com o prêmio Fábio Prado pelo trabalho “Música Popular Brasileira”.
Foi ainda fundadora da Academia Brasileira de Música, foi membro do
Conselho Nacional do Folclore - do Ministerio da Educação e Cultura.
Há ainda , dentre sua atuação ter sido membro, desde a sua fundação,
do Comite Executivo da Association Internationale de Bibliotheques de
Paris, como representante da America Latina e membro correspondente
da International Music Council de Londres.
Em 1950 publicou “Música Popular Brasileira”. Em 1958 recebeu da 112
Prefeitura do Rio de Janeiro a medalha Silvio Romero. Publicou diversos
livros no Brasil e no exterior. Em 1974 colaborou com a Enciclopédia da
música brasileira como consultora de folclore. Por sua atuação também, na
área da MPB, foi escolhida pela dupla organizadora do Conselho Superior
de MPB do MIS (Museu da Imagem e do som), Ary Vasconcelos e R. C.
Albin, como um dos 40 fundadores do Conselho, que logo depois atribuiria
e votaria os prêmios Golfinho de Ouro e Estácio de Sá, conferidos pelo
Estado da Guanabara através do Museu da Imagem e do Som.

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O catálogo histórico-fonográfico da Discoteca Oneyda Alvarenga – Centro
Cultural São Paulo assinala a existência em seu acervo de exatos 1.299
fonogramas originais em acetato referentes à música popular tradicional.
Eles provêm de origens distintas: gravações realizadas no Estado de São
Paulo no início de 1937 e no final de 1938 (Itaquaquecetuba, Capital,
Carapicuíba e Atibaia), e gravações da Missão propriamente dita, realizadas

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entre fevereiro e junho de 1938 em quatro Estados do Norte e Nordeste.
Hoje, a Discoteca Oneyda Alvarenga está organizada em três setores:
. Acervo Sonoro: coleção de discos de música erudita, popular, nacional e
estrangeira, que possui 45.000 discos de 78 rpm, 26.000 discos de 33 rpm
e 1500 CDs.
. Acervo Impresso: cerca de 62.000 partituras de música erudita, popular,
nacional e estrangeira; 11.000 livros de música e hemeroteca musical com
1500 assuntos.
. O Acervo Histórico guarda documentos objetos, discos, mobiliário, filmes
e fotografias provenientes dos projetos desenvolvidos nos primeiros anos
de existência da Discoteca. Dentre os conjuntos preservados, encontram-
se: a coleção da Missão de Pesquisas Folclóricas de 1938; o conjunto
documental produzido pela Sociedade de Etnografia e Folclore, criada
em 1936; a documentação histórico-administrativa da Discoteca Pública
Municipal de 1935 a 1983; os filmes produzidos pelo casal Dina e Claude
Lévi-Strauss; os registros de Camargo Guarnieri sobre o II Congresso
Afro-brasileiro, realizado em Salvador, Bahia, em 1937; as monografias que
participaram dos Concursos de Monografia sobre Folclore, promovido
pelo Departamento de Cultura; as gravações para o Arquivo da Palavra e
os documentos do Congresso Nacional da Língua Cantada de 1937, cuja
proposta foi subsidiar estudos no campo da fonética. 113
Durante os trabalhos desenvolvidos na Discoteca, Oneyda Alvarenga
sempre abriu fronteiras, trocando documentos e experiências de trabalho
junto a bibliotecas do exterior do país, como a Biblioteca do Congresso
norte-americano e diversos antropólogos de universidades européias
e norte-americanas. Mário de Andrade e Oneyda Alvarenga cederam
cópia dos fonogramas da Missão de Pesquisas Folclóricas à Biblioteca
do Congresso no início dos anos 40. Um CD de pouca circulação foi

História da Arte Técnica


publicado a partir daquele material na série The Library of Congress –
Endangered Music Project, The Discoteca Collection. Naquela época o
uso de registro audiovisual para manifestações de cultura era inovador
não apenas no Brasil. E a organização da Discoteca foi alvo de interesse
estrangeiro, de modo que a disponibilização das informações de Oneyda
junto aos Diretores de instituições culturais estrangeiras contribuiu

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grandemente para o desenvolvimento do estudo do folclore no mundo.
Em uma das cartas trocadas entre ela e Mário de Andrade, Oneyda relata
com entusiasmo o sucesso das atividades realizadas pela Discoteca:
“Acaba de sair daqui o sr. Henry McGeorge, da Library of Congress. Expus
o caso do material folclórico a ele, a impossibilidade atual de intercâmbio
por falta de matrizamento e estudo das peças. O Sr. McGeorge perguntou
então se eu acreditava possível uma solução do problema, caso o Ministério
das Relações Exteriores entrasse na dança. Inútil dizer que nós (o Saia, por
acaso, também se achava presente) nos agarramos violentamente à ideia.
Mário amigo, eu quero crer na eficácia desse remédio. É bem provável que
cheguemos a esta conclusão ao mesmo tempo gostosíssima e desolante:
vamos ter nosso material estudado, por interferência dos Estados Unidos!
Nós somos um povo divertidíssimo... mais um abraço, Oneyda” S.Paulo,
30 de maio de 1939.
As década de 30-40 foi um período de mudanças no Brasil e de confronto
ideológicos na construção da política estatal, em função do regime de
Vargas e da alteração do prefeito de são Paulo, Mário de Andrade não
pode ser mais o diretor do Departamento Municipal de Cultura (DPM);
porém era ele quem decidia junto a Oneyda os caminhos da Discoteca. A
verba sempre era pouca, pois o diretor da instituição não vislumbrava e
também não se empenhava junto ao DPM NA cidade como era próprio
de Mário de Andrade. Então para custear as matrizações e demais recursos 114
técnicos necessários ao acervo da Discoteca, Oneyda se desdobrava em
áreas e atividades para assim manter aberta e dar prosseguimento à análise
da enormidade de material colhido pelas viagens etnográficas, bem como
de outros acervos recolhidos pela Discoteca ao longo do tempo.
Mário, Vão aqui duas linhas apressadas, só para lhe contar
que o material colhido pela Missão em Pernambuco já
chegou. A coleção é enorme e notável. Enquanto abria os

História da Arte Técnica


caixotes lamentei demais você não estar vendo também as
descobertas sucessivas, porque juro que você faria a cara
mais gostosa deste mundo. O casal Lévi-Strauss ficou de
queixo caído. Deixei o material todo na sala da Sociedade
de Etnografia, por não ter outro lugar onde guardá-lo. Está
lá por cima das mesas. Tive o cuidado de fechar portas e
janelas a sete chaves. O mais, tudo bem. Ainda não tive
tempo de ver como ficou o filme que chegou no dia do seu

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regresso ao Rio. Continuo trabalhando nos concertos, que
me custam um bocado de tempo e esforço. (São Paulo, 18
de abril de 1938).
Destaca-se ainda que a compra de material fonográfico era, caro, raro e de
difícil acesso, então os dois sempre procuravam auxilio em outros museus
e instituições de outros países. Esse trecho de carta é interessante, pois
eles vão conseguir apoio de uma instituição alemã, em pleno período do
entre guerra:
Mário..., seguem com esta carta uma fatura enviada pelo Dr.
Schneider, a mim entregue pelo José Bento. O museum Für
Völker-Kunde está cobrando os fonogramas. Em vez de
lhe remeter a carta do Schneider, achei mais prudente lhe
mandar cópia, pois que ela é dirigida a você como Chefe da
Divisão de Expansão Cultural. Que devo fazer a respeito?
Tentar o pagamento oficial imediatamente? O preço é
pequeno, 847$964, ao câmbio de hoje. Espero indicação
sua com urgência....
E a resposta:
... vai junto a carta do Schneider. Já deu os passos pra
pagamento? Si não conseguir consentimento oficial me
avise, faremos uma coleta entre amigos, pagaremos Berlim,
e doaremos o material ao Departamento de Cultura.
Escreva a ele por mim, faz favor, conte que parti de S.
Paulo, que fui pro cafundó, tenho tanta vergonha do
Homem! E veja se manda os cobre logo pra ele. E não 115
esqueça de, mandar pedir a, máquina pra reprodução dos
fonogramas que ele ofereceu grátis, a carta sobre isto deve
estar no arquivo da Divisão,..., pergunte primeiro a ele si é
possível mandar grátis, ou se ele quer pagamento e quanto.
São Paulo 28/08/1938.
Através das leituras realizadas pelas correspondências trocadas por
Mário e Oneyda também é possível verificar a proximidade e até mesmo
a afinidade de trabalho que os dois possuíam. Em média demorava-se

História da Arte Técnica


até 1 semana para uma carta chegar de São Paulo ao Rio de janeiro e
muitas vezes não era possível que Oneyda consultasse Mário para algumas
atitudes práticas. Lembremos que também existia nesta época a censura e
então deviam ser cuidadosos.
Como preciosa fonte documental através das cartas foi possível obter
informações importantes sobre a organização da Discoteca (seu regimento

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interno), e de suas atividades de difusão cultural, com detalhes de pré-
produção, produção e de reflexos com o público etc. A indicação de que
haviam registrado esses dados e publicado as estatísitcas de frequencia de
público também proporcionaram encaminhar a busca em outras fontes.
Tais documentos serão detalhados após a sua coleta e análise.
Oneida ,..., Meu caso é o seguinte: me mande com
possível urgência ou uma lei completa da criação do Dep.
de Cultura, ou uma cópia da parte da lei, que organiza a
Discoteca Pública. Me mande mais uma amostra das... não,
não mande não, isto é, mande sim que guardarei comigo
pro meu governo, uma amostra das suas fichas de pesquisa.
Me mande mais dizer tipo de uma vitrola cara, ótima e de
outra que seja barata mas boa, suficiente pra se ouvir tudo
muito bem. E me mande alguns nomes e tipos de máquinas
de gravação, si possível com preço atual ou antigo. Futuro
é imprevisível coma guerra. De tudo isto darei o que não
for propriamente trabalho técnico aí na discoteca, pra
um rapaz do Museu Nacional, que estou auxiliando na
organização de pesquisas folclóricas do Museu. Não mande
oficialmente, mande pra mim, que saberei dar o que se pode
dar sem competente requerimento oficial. Também estou
auxiliando a puro leite-de-pato. Rio de janeiro 4-IX-1939.
Desde a criação do Departamento e da Discoteca até a saída de Mário
da chefia, passam-se apenas 3 anos e é natural que após este tempo
surgissem as grandes demandas para se conhecer como, e de que maneira 116
foram organizados seus trabalhos, a metodologia criada, a forma como
acondicionavam o material, os instrumentos de pesquisa as fichas de
consulta etc. Mesmo a distância Mário e Oneyda continuaram a informar e
disseminar o que havia criado, dando origem a nossos acervos folclóricos
em todo o país e para o mundo
Primeiras conclusões
Mário de Andrade ao longo de sua vida produziu um acervo de cartas

História da Arte Técnica


epistolares de enorme valor, que tem servido de base documental às diversas
pesquisas em torno de sua vida e de suas atividades. O uso desse tipo de
fonte documental tem sido objeto de estudo nas pesquisas qualitativas, por
fornecerem ao pesquisador informações muito próximas ao cotidiano dos
indivíduos que as produziram, e permitem maior profundidade na análise
de fatos, pois revelam o íntimo de quem às produziu. Matildes Demétrio

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dos Santos, em sua “Obra ao sol carta é farol: a correspondência de Mário
de Andrade e outros missivistas” a autora utiliza das cartas epistolares
como fonte documental privilegiada. Segundo a autora:
a correspondência funciona como um meio de pesquisa
realmente significativo, adquirindo valor e estatuto de
um documento histórico, pois a escrita das cartas registra
muitas das transformações profundas da história política
e literária ,..., na escrita das cartas, lugar e data são fatores
preponderantes que, uma vez obedecidos, têm a vantagem
de situar no tempo e no espaço a feitura e o conteúdo
da mensagem. A data , especialmente, delimita e capta
o momento em sua fugacidade. Não se trata de relatar
ações ou acontecimentos de cada dia, como num diário.
Trata-se de recompor um espaço íntimo, mas de tempo
determinado, uma forma de reviver e repensar o que está
acontecendo. (p. 22)
O conjunto das correspondências de Mário de Andrade foi a sua maioria
publicada ou está disponível no Instituto de Estudos Brasileiros – IEB,
podendo ser consultadas on line. As correspondências de Oneyda
Alvarenga também estão disponíveis, bem como os documentos
relacionados à formação e atividades desenvolvidos pela Discoteca
Pública, que se encontram no arquivo da própria instituição. Entretanto
os relatórios e as anotações realizadas no cotidiano da discoteca, ainda não
foram relacionados num inventário descritivo. 117
No que se refere à coleta de dados em pesquisa qualitativa, devemos ter em
mente que os dados são colhidos, interativamente, num processo de idas
e voltas, nas diversas etapas da pesquisa e na interação com seus sujeitos.
Desta forma, após as visitas de campo necessárias e das entrevistas,
poderemos assim, ainda redefinir os nossos objetivos de forma que a
questão seja enfim elucidada.
A proposta de lei formulada por Mário de Andrade na década de 30 do
século passado se coloca ainda hoje como um avanço na legislação do

História da Arte Técnica


patrimônio cultural, avanços que apenas com a Constituição de 1988 foram
contemplados incluindo as representações culturais de caráter imaterial.
As atividades desenvolvidas pela Discoteca Pública revelam em última
medida as possibilidades de trabalho em torno do patrimônio imaterial.
Os processos relacionados à coleta, tratamento, registro, preservação do
conjunto de documentos em suporte audiovisual e dos seus documentos

Ciência & Conservação


correlatos, possibilitam sob o enfoque da ciência da informação analisar
as relações informacionais envolvidas na construção desse acervo e sua
disseminação, ou transferência. Vale ressaltar que, segundo Chizzotti
(2005, p.16), “a determinação de um problema a ser pesquisado pode
originar-se, pois, da observação direta e da reflexão sobre fatos observáveis,
de leituras e de análises pessoais, de fontes documentais orais ou escritas”.
Durante todo o tempo em que Oneyda ficou a frente da Discoteca, até
os dias de hoje raros foram os momentos em que o acervo não estava
aberto à consulta pública. As poucas interrupções que ocorreram foram
ocasionadas em função das numerosas mudanças de endereço, ou por
intervenções técnicas, como a reforma de equipamentos ou cabines de
audição. Mas nunca por decisões políticas ou por releituras do papel da
discoteca no contexto cultural da cidade.
No início desde artigo apresentei questões acerca da dimensão
informacional que todos os atores, ligados ao patrimônio vivenciam na
atualidade, ou seja, Como dar acesso, de forma consciente, sem prejuízo
ao público e oferecer com responsabilidade, meios com qualidade de
informação, em seus suportes preservados ou numa coleção que possa
servir de fato ao compartilhamento de um acervo coletivo, servindo ao
público mais especializado, ou mesmo a formação de novos públicos.
Talvez seja na discoteca onde está a materialização mais simples do que
Mário de Andrade vislumbrava quando entrou pela primeira vez num 118
vapor pelos confins brasileiros.
___________
Referências
ALVARENGA, Oneyda. A discoteca pública Municipal. Revista do Arquivo Municipal. Volume
LXXVII. 1942.
ANDRADE, Mário, ALVARENGA, Oneyda. Cartas. São Paulo: Duas cidades. 1983.

ANDRADE, Mário. O turista aprendiz.

História da Arte Técnica


CARLINI, Álvaro. Cante lá que gravam cá: Mário de Andrade e a missão de pesquisas folclóricas de
1983. Dissertação de mestrado. Faculdade de Filosofia, Letras e ciências humanas da universidade de
São Paulo. São Paulo, 1994.

CHIZZOTTI, A.: Pesquisa em ciências humanas e sociais. São Paulo: Cortez. 2005.

DUARTE, Paulo. Mário de Andrade por ele mesmo. 2º Ed. São Paulo; Hucitec; PMSP, 1985.

Revista do Patrimônio histórico e artístico nacional. Mário de Andrade. N. 30. 2002.

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SAMPIETRI, Carlos Eduardo. A discoteca Pública Municipal de São Paulo: (1935-1945). Dissertação
de mestrado. Faculdade de Filosofia, Letras e ciências humanas da universidade de São Paulo. São
Paulo, 2009.

SANTOS, Matildes Demétrio. Ao Sol Carta é Farol – a correspondência de Mário de Andrade e


outros missivistas. 1ª ed. São Paulo: Annablume Editora, 1998.

SILVESTRE, Karin. A Discoteca Pública Municipal. Revista DART. Centro Cultural são Paulo.

TONI, Flávia Camargo. A missão de pesquisas folclóricas do Departamento de cultura de São Paulo.
São Paulo; centro cultural são Paulo/ Secretaria Municipal de cultura, 1984.

119
“Conversa entre parceiros”: futuros
artistas e futuros conservadores

História da Arte Técnica


Amanda Cordeiro; Ana Carolina M. R. Montalvão; Gerusa de A.
Radicchi; Giulia V. Giovani; Guilherme Garcia; João Henrique Ribeiro;
Marcella F. Oliveira; Nelyane Santos.
IC-EBA-UFMG

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Magali Melleu Sehn (orientadora/coordenadora)
EBA-UFMG
Resumo
Na Arte Contemporânea a diversidade de técnicas construtivas e a rede de significados
estabelecida entre o objeto artístico, o espaço e o público, são elementos em evidência. O
entendimento destes recursos é essencial para que os conservadores-restauradores possam
atuar sobre estes objetos artísticos. A partir desta perspectiva foi desenvolvido o projeto
“Conversa entre Parceiros: futuros artistas e futuros conservadores”, uma proposta de
interação entre estes profissionais, onde foram realizadas entrevistas dirigidas por alunos
de Conservação-Restauração à alguns estudantes de Artes Visuais, ambos da Escola de
Belas Artes-UFMG. Essa experiência resultou num esboço de uma metodologia adequada
para realização de entrevistas com artistas, revelando a consciência destes em relação a
materiais que utilizam e suas expectativas em relação à conservação.
Palavras-chave: Arte Contemporânea, Entrevistas, Conservação, Documentação
Abstract
In Contemporary Art the variety of constructive techniques and the meaning network established among
the artistic object, the space and the audience, are elements in evidence. Understanding these features is
essential to the intervention of conservator-restorers on these art objects. From this perspective we developed
the project “Chat Between Partners: future artists and future conservators,” a proposal for interaction
between these professionals, where interviews were conducted by students of Conservation-Restoration of
some students of Visual Arts, both from the School of Fine Arts-UFMG. This experience resulted in a
draft of an appropriate methodology for conducting interviews with artists, revealing the awareness of these
in relation to materials they use and their expectations for conservation.

Key words: Contemporary Art, Interviews, Conservation, Documentation

Introdução 120
Trabalhos artísticos de caráter efêmeros, interativos, performativos e
que buscam aguçar sentidos alternativos do espectador, começaram a
ser produzidos largamente a partir da década de 50. Os materiais que
compuseram a arte deste momento passaram a não mais ser escolhidos
por efeitos de durabilidade e tradicionalidade, sendo escolhidos pelas
possibilidades de se tornarem veículos ilimitados da expressão individual.
Conseqüentemente, a ação da conservação foi desafiada a inserir-se na

História da Arte Técnica


nova dinâmica, adaptando sua metodologia à necessidade do entendimento
da perspectiva criativa de cada artista:
Devido ao desinteresse dos criadores pela durabilidade dos
objetos, e à utilização diversificada de materiais, as obras
geralmente necessitam de intervenções de conservação e
restauro desde muito cedo. A grande diferença relativamente
à arte de períodos anteriores é que freqüentemente é preciso

Ciência & Conservação


intervir nas obras ainda durante a vida dos artistas que as
criam, ou seja, o artista vivo compensa de certa forma a
falta de perspectiva histórica, uma vez que este é, à partida,
uma fonte de documentação inestimável (MACEDO:
2007, p.2).
As primeiras preocupações da Conservação Preventiva para com o registro
da Arte Contemporânea se iniciaram entre as décadas de 70 a 80 século XX.
Buscando a caracterização das novas técnicas e novos métodos, iniciativas
como a da Tate Gallery em Londres1 , ou como a do MoMa em Nova York,
começaram a sistematizar os primeiros questionários de entrevistas com
artistas. Estes exemplos influenciaram diretamente na criação de INCCA
(International Network for Conservation of Contemporay) em 19992, a
maior rede internacional atuante no compartilhamento de informações
sobre as intenções dos artistas.
A Profa. Magali Melleu Senh, Doutora pelo Departamento de Artes
Plásticas da USP e com pesquisa na área de preservação de instalações
artísticas, propôs nas disciplinas Conservação de Arte Contemporânea
e Discussão Temática (segundo semestre de 2010 e primeiro semestre
de 2011) a aplicação das metodologias das entrevistas para o curso de
Conservação-restauração da Escola de Belas Artes da UFMG. A proposta
“Conversa entre Parceiros: futuros artistas e futuros conservadores”,
além de servir como um laboratório para as metodologias de entrevistas,
buscou a investigação dos conhecimentos e técnicas dos alunos dos dois 121
cursos de graduação da Escola de Belas Artes. Durantes as entrevistas
forma avaliados os materiais, os métodos, o potencial criativo dos alunos
e a relação que estes elementos estabelecem com possíveis medidas de
conservação. Com a experiência, foi possível observar a necessidade de
treinamento e escolha consciente no momento de optar por métodos e
técnicas adequadas para capturar a informação.
ETAPA 1: Metodologia e Técnica
As perguntas elaboradas e a metodologia de entrevistas aplicada

História da Arte Técnica


foram programadas a partir do material didático disponibilizado pela
coordenadora durante a disciplina, como o Guide to good practice:
artists’ interviews, publicado pelo INCCA3 e os estudos do Inside –
Istallation: Preservation and Presentation of Istallation Art. Após os
estudos das vantagens e desvantagens das técnicas e métodos disponíveis,
a técnica selecionada foi a entrevista oral com a utilização de vídeo. A

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escolha de selecionar o vídeo como meio de regístro foi possível devido à
familiaridade dos entrevistadores com tal técnica e,principalmente, devido
à possibilidade de contar com o apoio do Departamento de Fotografia,
Teatro e Cinema da Escola de Belas Artes da Universidade4. O roteiro
foi o ponto de partida para a entrevista, cabendo aos entrevistadores
manipular as perguntas frente a novos possíveis temas que pudessem
surgir. As perguntas foram as seguintes:
1- Fale sobre sua pesquisa artística. (Quais artistas mais o
influenciaram?)
2- Como você desenvolve suas ideias? (Pré- projetos? Maquetes?
Ensaios?)
3- Quais materiais você mais utiliza?
4- Qual a relevância destes materiais no contexto de seus trabalhos?
5- Qual a relevância de prováveis mudanças de aparência em suas
obras?
6- Existe algum interesse por aspectos efêmeros em suas pesquisas
atuais ou futuras?
7- Qual a importância do contexto e do espaço físico em sua obra?
8- Qual a importância da documentação para você? 122
9- Quais são os métodos utilizados para a documentação e armazenamento
de informação a cerca da obra?
9- No caso de obras intencionalmente efêmeras, qual status
conferido ao registro?
ETAPA 2. Processo de entrevistas
Os estudantes de arte foram selecionados em função das características

História da Arte Técnica


de seus trabalhos. Teve-se como meta selecionar artistas que trabalhavam
a mistura de técnicas, experimentação e utilização de materiais diversos.
Além disso, houve a preocupação de explorar os conteúdos das diferentes
habilitações desenvolvidas na Escola de Belas Artes da UFMG.
Inicialmente, a coordenadora Profa. Magali Sehn convocou os

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entrevistadores e entrevistados para uma reunião com o objetivo de explicar
os objetivos e as etapas do processo de trabalho. A equipe organizou-se da
seguinte forma: os estudantes de conservação revezaram-se no comando
da entrevista enquanto os demais integrantes da equipe acompanhavam,
avaliando e apoiando tecnicamente todo o processo.
Figura 1 e 2: estúdio e gravação das entrevistas

Ana Carolina Montalvão entrevista Rafael Casamenor


Rafael Casamenor cursa a habilitação em gravura e, desde 2006, quando
entrou na Escola de Belas Artes já tinha interesses específicos. O aluno
de Artes Visuais contou sobre sua experiência em gravuras em metal.
O diferencial do seu trabalho é o uso de placas de circuito no lugar das 123
matrizes metálicas tradicionais. Segundo ele, a conservação dessas placas é
mais fácil em comparação às outras matrizes, devido aos polímeros que a
constituem. No entanto, a escolha do material foi motivada pelo resultado
estético proporcionado às impressões. Assim como preferência por papéis
alcalinos, que também se dá pela qualidade garantida à impressão, e não
pela durabilidade que este pode conferir ao trabalho. Quando questionado
sobre as alterações que podem vir a ocorrer em suas obras, Rafael disse
que as mudanças de aspecto não o incomodam, já que elas fazem parte da

História da Arte Técnica


vivência do objeto.
Gerusa Radicchi entrevista Alisson
Alisson foca o seu trabalho acadêmico na produção de esculturas que têm
como matéria prima sucata e peças retiradas de ferros-velho. Durante a
entrevista comandada pela aluna Gerusa, Alisson revelou ter preocupações

Ciência & Conservação


com a conservação de seus trabalhos. Segundo ele, os principais fatores de
degradação das suas obras são as intempéries a que estão sujeitas e o mau
comportamento de espectadores, que sobem nas estruturas metálicas das
obras de grande porte. Para evitar os desgastes causados por esses agentes,
o escultor afirmou aplicar verniz como camada de proteção e reforça as
peças nas junções, para que elas suportem maior peso. Outra prática de
preservação do artista é o registro. Alisson documenta todo o seu processo
criativo, desde a seleção de peças no ferro-velho, até concretização do seu
trabalho.
Amanda Cordeiro entrevista Daniel Bilac
O artista Daniel Bilac cursa habilitação em pintura. Ele demonstrou ter
bastante consciência dos efeitos danosos que a utilização de materiais
de baixa qualidade pode ocasionar em seus trabalhos. Embora Daniel se
preocupe com a conservação de suas pinturas, ele afirma não ter interesse
em mudar o modo como as executa. Para o estudante, a escolha de
materiais não é aleatória e faz parte do processo de criação e execução de
um trabalho. No entanto, ele tem o cuidado de não expor seus trabalhos à
luz do sol. Por mais que as possíveis alterações de aspecto das suas obras
não o perturbem, não é de seu interesse fragilizá-las ainda mais.
Marcella Oliveira entrevista Patrick
Na entrevista conduzida pela aluna Marcella Oliveira, o estudante de Artes 124
Visuais Patrick contou sobre os artistas que influenciam suas pinturas e
como realiza seus trabalhos. Costuma utilizar em uma mesma tela diversas
técnicas pictóricas e para evitar incompatibilidade ele as utiliza em uma
sequencia específica, conforme foi orientado por seus professores de
Ateliê de Pintura. Patrick escolhe um material para cada representação de
forma, relacionando a técnica com o significado de seu trabalho.
Outra área de prática do aluno é o grafite, que ele considera uma arte
mais efêmera, já que os muros onde trabalha podem ser repintados ou

História da Arte Técnica


derrubados a qualquer momento. Todos os seus trabalhos, seja grafite
ou pintura, são documentados. As pinturas em especial, têm o processo
descrito em um diário, para ilustrar o Trabalho de Conclusão de Curso.
Nelyane Santos entrevista Fernando Ferreira
Fernando Ferreira volta sua produção acadêmica para a pintura e para a

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performance. Em suas pinturas utiliza materiais diversos e insere colagens
de imagens retiradas de jornal. Fernando declarou na entrevista não pensar
a respeito das alterações de aspecto a que suas obras ficam suscetíveis com
a mescla de técnicas e materiais.
Em relação às performances, o artista se mostrou muito preocupado com
a questão da documentação. Por seu aspecto efêmero, Fernando acha
o registro da performance fundamental, mas deve que ser realizado de
forma cautelosa, para não distorcer o seu significado inicial.
João Henrique Barbosa entrevista Marcos Vinícius
Durante a entrevista Marcos Vinícius revelou ter adquirido maior
conhecimento sobre técnicas de pintura, materiais e suportes somente
quando ingressou na Escola de Belas Artes. Começou a realizar pinturas e a
fazer experimentos, descobrindo sua preferência pela tinta acrílica, devido
aos diferentes efeitos que ela permite produzir. Outro material que lhe
interessa é a caneta esferográfica, apesar de saber que a cor sofrer rápido
esmaecimento. O estudante vê com bons olhos as possíveis mudanças de
aspectos que podem ocorrer em seus trabalhos e acredita que elas podem
inclusive, em alguns casos, favorecê-las esteticamente.
Gerusa Radicchi entrevista Tales Sabará.
Tales Sabará é bacharel em pintura, formado pela Escola de Belas Artes.
Apesar de ter se graduado com habilitação em pintura, seus trabalhos
125
mais recorrentes são desenhos. Tales já realizou diversas exposições,
mas focou sua entrevista na série Filhos da Terra, na qual utilizou grafite
para o desenho e ingredientes da cozinha para preparar o suporte. Ele
interveio no suporte para sugestionar um papel antigo, desgastado pelo
tempo. Nesse trabalho, por se tratar de um projeto de pesquisa, o artista
não se preocupou com o efeito que o uso desses materiais poderia causar.
Seu intuito era justamente saber quais seriam esses efeitos. Durante o

História da Arte Técnica


período acadêmico, Tales estagiou no CECOR (Centro de Conservação
e Restauração) da UFMG, onde aprendeu a usar o passe-partout para
armazenar e expor seus trabalhos com maior proteção. Por lá também
aprendeu técnicas em estúdio de fotografia documental, o que afirmou
ter sido essencial para fazer o registro de suas pinturas que são de grande
formato.

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ETAPA 3. Interpretação dos resultados
Após todas as entrevistas realizadas, coube à equipe fazer a seleção
dos melhores momentos para a edição. Buscou-se o equilíbrio entre as
perguntas mais importantes realizadas pelos estudantes-conservadores,
bem como as respostas mais relevantes dadas pelos estudantes-artistas.
Os vídeos foram analisados junto à coordenadora, a e as conclusões
importantes sobre o processo puderam ser tiradas.
Quanto à metodologia, foi possível constatar que o método oral possui
muitas vantagens por permitir um contato maior com o entrevistado,
mas demanda de grande objetividade e controle do entrevistador para
evitar ambiguidades e repetições. A técnica do vídeo parece ser a mais
completa por registrar todos os aspectos que a relação entre entrevistado
e entrevistador, mas requer um operador profissional e de muito tempo
para editar.
Quanto aos entrevistados, todos demonstraram várias sincronias
de posturas e pensamento que podem ser atribuídos à formação
disponibilizada na escola e às tendências artísticas gerais atuais. Todos
apresentaram algum conhecimento a respeito dos efeitos do tempo
sobre as obras e classificaram alguns desses efeitos como positivos, ou
até como essencial dentro da proposta artística. Eles apresentaram certa
resistência à incorporação de metodologias de conservação aplicáveis a 126
bens artísticos das artes tradicionais e também tenderam a escolher os
materiais intuitivamente. Todos demonstraram alguma consciência sobre
a importância do registro, mesmo quando não o executavam, e estão (ou
estiveram) desenvolvendo registros para o Trabalhos de Conclusão de
Curso –TCC.
Os relatos se distanciam em momentos os quais a vivência com cada
material e técnica passou a caracterizar as práticas individuais. O aluno

História da Arte Técnica


Tales nos apresentou uma relação diferenciada para com o registro após
estágio no Centro de Conservação-Restauração – CECOR: “Foi muito
bacana porque eu tive a experiência dentro do estúdio e isso contribuiu
muito para que eu documentasse os meus trabalhos” (Tales:7’55”). Os
alunos Alisson Brito, Fernando e Patrik experimentaram escultura para
locais urbanos, performance e grafite respectivamente. Desenvolveram de

Ciência & Conservação


formas distintas a reação contra a deterioração: Você pode pintar um dia
um muro na rua, ficar dois ou três dias fazendo um trabalho e no outro
dia você pode passar lá e a chuva ter derrubado o muro (Patrik: 9’05”).
Alisson complementa: “São peças que parecem ser muito resistentes,
mas não são, porque elas estão suportando uma carga grande de peso. E
funcionam como um carro, elas têm chassi e, inclusive os pontos pra você
pegar certinho, e carregar. Mas, se você coloca pressão no lado errado,
você a desequilibra e ela pode sim quebrar”. (Alysson: 5’00”)
Ele foi o único que apresentou alguma prática de proteção para o
transporte e contra o vandalismo.
Considerações finais
Dentre as questões observadas, a mais relevante diz respeito à relação
que os alunos do curso de Artes Visuais estabelecem com a prática da
conservação, sobretudo o valor positivo e/ou negativo que dão a elas e
postura de distanciamento e/ou aproximação estabelecida. De forma
geral, os alunos se pronunciaram avessos às práticas de conservação,
porém relataram várias medidas que podem ser caracterizadas como
preventivas, principalmente quanto ao acondicionamento dos objetos e
ao registro e sistematização dos trabalhos. Possivelmente, esta situação
ambígua diz respeito à falta de clareza do que realmente seria a conservação
em arte contemporânea, e mais precisamente ao equívoco de confundir 127
conservação com estaticidade, congelamento da obra no tempo e limitação
do processo criativo.
Eles cresceram, amadureceram. É como rever alguém
depois de muito tempo. É um trabalho vivo, ele tem uma
espécie de metabolismo. Ele ganha com isso. As manchas
mudam, as vezes aparecem coisas que não existiam antes,
as cores esquentam, porque o papel fica amarelado. É como
se meu trabalho fosse vivo mesmo. Eu acho muito positivo
que ele seja vivo. (Bilac: 6’46”).

História da Arte Técnica


As técnicas de conservação preventiva em arte contemporânea devem ser
apresentadas aos alunos de Artes Visuais, assim como os conceitos de
efemeridade e de carga semântica dos materiais devem ser apresentados
aos alunos de Conservação-Restauração. Será uma forma de diluir a
postura de distanciamento e criar mecanismos eficazes de produzir os
registros; as intervenções preventivas e curativas;

Ciência & Conservação


● garantir que as intervenções respeitem as características do
patrimônio;
● registrar os resultados após as intervenções;
● realizar um registro permanente do patrimônio cultural antes da
alteração, planejada ou não;
● fornecer bases para o monitoramento, gerenciamento e manutenção
de rotina;
● fornecer uma ferramenta de acompanhamento e gestão do
patrimônio em todos os níveis.
A importância da documentação se estende além de seu uso como
ferramenta nas atividades de conservação/restauração. É também
um meio de comunicação com público em geral, ajudando a educá-lo
sobre a importância do patrimônio e promovendo seu envolvimento na
preservação. Constitui ainda uma importante fonte de pesquisa sobre o
patrimônio histórico e cultural para diversas áreas e disciplinas.
A documentação também pode ser considerada como uma espécie de
apólice de seguro contra perda e como um registro para a posteridade,
para a as gerações futuras, em caso de catástrofes e destruição. A
documentação se bem empreendida e devidamente gerenciada fornece
um registro duradouro do patrimônio cultural. No caso dos bens móveis é
128
crucial para medidas de proteção contra roubos e tráfico ilícito, bens não
documentados se tornam difíceis de recuperar. Uma boa documentação
economiza tempo e dinheiro, ajudando a priorizar recursos e evitando a
duplicação de esforços.
Utilizar a documentação exaustiva é um compromisso ético do
conservador-restaurador. Os relatórios dos procedimentos adotados
durante um processo de conservação e restauro fazem parte do Código

História da Arte Técnica


de Ética do profissional que atua em qualquer bem cultural móvel ou
imóvel. Intervenções de conservação se constituem em um momento
crítico na vida de um bem cultural e um registro cuidadoso pode preservar
informações que serão a base para avaliações futuras e novos tratamentos.
efetivas. Enquanto cientistas da conservação é nosso dever divulgar os
benefícios da documentação para nossa prática profissional, resultando

Ciência & Conservação


em uma maior qualidade nas práticas de preservação.
___________
Notas
1. Ver: http://www.tate.org.uk/research/tateresearch/majorprojects/interviews.htm.
2. Rede criada na seqüência do simpósio Modern Art: Who Cares?(1997), lançado pelo Netherlands
Institute for Cultural Heritage.
3. Manual desenvolvido pelo INCCA durante o período de sua formação, de 1999 a 2002. Disponível
em: http://www.incca.org/files/pdf/resources/guide_to_good_practice.pdf.
4. Com o apoio do Prof. Maurício Silva Gino e Nelson Barraza, responsável pela filmagem realizada
no estúdio do ateliê de pintura.
__________
Referências
MACEDO, Rita. Da preservação à História da Arte Contemporânea: Intenção Artística e Processo
Criativo. In: @pha.boletin n°5. Dezembro, 2007. Associação Portuguesa dos Pesquisadores da Arte
APHA (pp.01-06). Disponível em http://www.apha.pt/boletim/boletim5/default.htm. Acesso: 29
de agosto de 2011, 24 horas.
MACEDO, Rita; OLIVEIRA, Cristina Correia. Novos documentos na preservação do efêmero. In:
Revista de História da Arte. nº8. Janeiro, 2010 .Museus e Investigação, Lisboa: Instituto de História
da Arte FCSH-UNL. (pp.217-233). Disponível em http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/8145.pdf
Acesso: 29 de agosto de 2011, 24 horas.
INCCA Guide to Good Practice Artists Interviews, European Commission, Raphael Programme.
Amsterdã: 2002. 13 p. Disponível em: http://www.incca.org/files/pdf/resources/guide_to_good_
practice.pdf. Acesso :30 de agosto de 2011, 22 horas.
MACARRÓN MIGUEL, Ana María; GONZÁLEZ MOZO, Ana. La conservación y la restauración
en el siglo XX. 2. ed. Madrid: Tecnos: Alianza, 2004. 216 p.
SEHN, Magali Melleu. A preservação de `instalações de arte`com ênfase no contexto brasileiro: 129
discussões teóricas e metodológicas. 2010. Dissertação (Doutorado) – Escola de Comunicações e
Artes (ECA). Universidade de São Paulo.
FREIRE, CRISTINA; MUSEU DE ARTE CONTEMPORANEA (SÃO PAULO, SP). Poéticas do
processo: arte conceitual no museu. São Paulo: Iluminuras, 1999 197 p.
http://www.incca.org/ Acesso: 30 de agosto de 2011, 14 horas.
http://www.inside-installations.org/ Acesso: 30 de agosto de 2011, 14 horas.
http://www.moma.org/ . Acesso: 30 de agosto de 2011, 14 horas.
Materiais Plásticos no Acervo da
Pinacoteca do Estado de São Paulo: a

História da Arte Técnica


Fonte das Nanás de Niki De Saint Phalle

Camilla Vitti Mariano


Mestranda do PPGA-EBA-UFMG

Ciência & Conservação


Luiz Antônio Cruz Souza (orientador)
PPGA-EBA-UFMG
Resumo
A pesquisa, sob orientação do professor Dr. Luiz A. C. Souza, discute uma das problemáticas
que envolvem a conservação de arte contemporânea, a utilização de materiais plásticos,
pelos artistas em obras de arte. A obra Fonte das Nanás, da artista Niki de Saint Phalle,
que integra o acervo da Pinacoteca do Estado de São Paulo, foi escolhida como estudo de
caso pelo fato de apresentar deteriorações da camada de pintura e do verniz de proteção,
devido à contínua exposição a fatores ambientais e pela própria concepção da obra como
uma fonte d’água.
Palavras-chave: Conservação/Plásticos/ Pinacoteca do Estado de São Paulo/ Niki de
Saint Phalle/ Resina de poliéster e fibra de vidro
Abstract
This research, under the supervision of the professor Dr. Luiz A. C. Souza, discuss some of the issues
concerning the conservation of contemporary art, the use of plastic materials by artists in works of art.
The Nanas fountain, one of Niki de Saint Phalle works, that belongs to the Pinacoteca do Estado de
São Paulo collection, was chosen as case study because presents some paint and coating layers degradations
occurring due to the exposure to environmental factors and the original intention of the artist when creating
the piece as a water fountain.
Key words: Conservation/Plastics/ Pinacoteca do Estado de São Paulo (museum)/ Niki de Saint
Phalle/ Glass Fiber Reinforced Polyester (GRP)

Introdução
Os materiais plásticos estão presentes no cotidiano em dezenas de objetos
e utensílios e são utilizados para diversos fins e de diferentes maneiras
130
quando aplicados em criações artísticas.
A ideia de que os plásticos são substâncias inertes é equivocada, pois a
longo prazo, podem sofrer mudanças em suas características gerando
uma necessidade nos museus e instituições culturais de criar condições
adequadas para a conservação dessas obras e coleções que desacelere
o processo de degradação. O projeto europeu Preservation of Plastic
Artefacts in Museum Collections (POPART)1, formado por importantes

História da Arte Técnica


museus e instituições europeias, consiste em ampliar o conhecimento
sobre os principais polímeros sintéticos encontrados na maior parte das
coleções da Europa, como o poliuretano, polimetil metacrilato, nitrato
de celulose, acetato decelulose e polivinilcloridro. O POPART tem como
objetivo criar, com base científica, suporte e parâmetros para questões
comoexibição, acondicionamento, limpeza, restauração e estratégias de

Ciência & Conservação


preservação das coleções.
Um dos objetivos deste trabalho é contribuir para a reflexão sobre as
problemáticas referentes à conservação e restauração de obras de arte
contemporâneas pertencentes a instituições culturais, para tanto, um
levantamento do acervo da Pinacoteca do Estado de São Paulo foi realizado
de forma a abranger obras de arte em suporte de materiais plásticos.
A Pinacoteca possui um acervo voltado, principalmente, para arte
brasileira dos séculos XVIII a XXI, que conta com aproximadamente
novemil obras, entra telas, papéis, esculturas, objetos, instalações e outros.
Parte dessa coleção, cerca de 2% do acervo, está exposta nos espaços dos
edifícios da Luz, Estação Pinacoteca e Parque da Luz.
As obras feitas totalmente ou parcialmente em materiais plásticos
correspondem, atualmente,a 0,2% do total da coleção e estão distribuídas
entre algumas categorias do acervo como escultura, relevo, gravura,
colagem, instalação e arte-objeto. O fato do número de obras ser reduzido
contribui para facilitar o gerenciamento dessa parte da coleção, que está
em constante crescimento devido às políticas de aquisições da instituição.
Entre os artistas com obras em plástico estão Pazé, Iole de Freitas, Frida
Baranek, Amélia Toledo, Gilberto Salvador, Sheila Goloborotko, Alex
Flemming, Farnese, Beatriz Milhazes, Mário Cravo Neto, Dudi Maia Rosa
e Lothar Charoux. As produções mais antigas são da década de 1960 e 131
a mais recente é de 2007. Os termos encontrados na catalogação foram
acrílico, resina, plástico, poliestireno, policarbonato, PVC, acetato, poliéster
e fibra de vidro, látex, nylon.
A proposta inicial, para a dissertação de mestrado, consistia em investigar
e caracterizar a composição do polímero base de cada obra do acervo,
porém tendo em vista o tempo hábil para a conclusão do curso, decidiu-
se pelo estudo da obra Fonte das Nanás, de Niki de Saint Phalle. Desse
modo, o trabalho tem por objetivo integrar pesquisa histórica e conceitual

História da Arte Técnica


com a pesquisa científica do material constituinte da obra e análise das
condições ambientais do espaço expositivo, no intuito de contribuir
com as discussões sobre o tema para que possa servir de subsídios para
possíveis projetos de conservação e restauro.
Materiais plásticos

Ciência & Conservação


O composto básico de cada material plástico, denominado resina ou
polímero é que define em que categoria o material se encontra classificado.
Apesar da nomenclatura “plástico” generalizar esses diferentes compostos,
o termo é utilizado para definir que um material pode ter sua forma
modificada pelo calor, pressão ou força externa. Levando esse fato em
consideração, pode-se dizer que outros materiais, comopor exemplo, a
argila é também um material plástico, assim como a borracha, a cera, a
goma-laca e outros (ROUKES, 1978).
Citando Cyril Redfarn, John Morgan simplifica a definição do termo
plástico como materiais que possuem as seguintes características:
Materiais sólidos; polímeros orgânicos ou orgânicos/inorgânicos; natural
ou quimicamente modificado, polímeros sintéticos ou a mistura desses;
que podem receber corantes ou plastificantes e materiais capazes de
serem moldados durante uma fase do processo de produção (MORGAN,
1993, p.440)
Os primeiros plásticos surgiram em 1860 e foram denominados de semi-
sintéticos, no entanto, plásticos de origem orgânica (natural), como chifres
de animais, látex e laca são usados há muito tempo como substitutos de
materiais mais nobres. O século XX representa o momento da fabricação
de plásticos sintéticos comumente aplicados em diversos objetos do
cotidiano (WINSOR e BALL, 2005). 132
O uso desses materiais por artistas iniciou-se em meados dos anos 1920,
quando os russos, precursores do construtivismo, Antoine Pevsner e
Naum Gabo, escreveram o Manifesto Realista, em que proclamavam
que as esculturas deveriam ganhar em leveza e transparência, opondo-se
à rigidez e monumentalidade das formas adotadas desde a antiguidade
(ROUKES, 1978).
Em condições inapropriadas de conservação ou pela própria ação do
tempo os plásticos podem sofrer efeitos físicos e químicos. Os efeitos

História da Arte Técnica


químicos são os mais graves e irreversíveis e podem ser desencadeados
através do contato com substâncias presentes na atmosfera, como o
oxigênio, ozônio, umidade e poluentes. Os efeitos físicos estão associados
à absorção de líquidos e vapores, danos mecânicos ou excesso de calor ou
frio (MORGAN, 1993).
Ao caracterizar o tipo de plástico ou plásticos empregados em uma obra

Ciência & Conservação


de arte, tem-se referências sobre as possíveis degradações que podem
ou já estão em andamento, inerentes ou não ao objeto. Isso facilita ao
conservador criar estratégias de conservação e inibir processos de
degradação já iniciados (SHASHOUA, 2008).
O termo “conservação por inibição” foi criado por Yvonne Shashoau
(2008, p.12), de maneira a se adequar ao que realmente ocorre com relação
aos materiais plásticos, substituindo, portanto, os termos prevenção e
intervenção. A explicação está no fato de que quando a degradação dos
materiais plásticos se inicia não há mais como parar este processo, mas
apenas inibir sua ação. A autora propõe também que haja conscientização
dos conservadores para a criação de micro-climas dentro das reservas
técnicas, que são projetadas na maioria das vezes pensando-se na variedade
de materiais que serão armazenados. Os micro-climas propostos por
Yvonne podem ser realizados, em sua maioria, com uso de embalagens de
polipropileno e absorventes que minimizam os fatores que aceleram ou
iniciam os processos de degradação.
Algumas informações como a tecnologia de fabricação (que inclui
patentes e marcas) ou o histórico da peça podem facilitar a identificação.
Se o artista puder ser contatado, é possível consultá-lo sobre o tipo e o uso
do material plástico, assim como informações sobre a técnica encontradas
na catalogação da obra. Em situações em que não há como remover 133
amostras ou realizar testes, seja pela dimensão ou pelo risco à integridade
do objeto artístico, essas alternativas podem ser aplicadas, no entanto,
não substituem os testes ou os exames, mas auxiliam em uma primeira
identificação (SHASHOUA, 2008).
Ainda de acordo com Yvonne Shashoua (2008, p.285), os testes para
identificação são classificados como métodos simples, exames de aparência,
medições das propriedadesfísico-químicas e por técnicas instrumentais.
Niki de Saint Phale e a Fonte das Nanás

História da Arte Técnica


Agnés Fal de Saint Phalle Maries nasceu na cidade de Neiully-sur-Seine,
na França, em 1930. Importante artista do século XX, desenvolveu
empiricamente, desde o início de sua carreira, na década de 1950, um
estilo que se utilizava de símbolos, signos e mitos para expressar sua
“inconformidade frente aos valores estabelecidos e aceitos por uma

Ciência & Conservação


sociedade conservadora” (ARREOLA, 1997, p.23).
Segundo a autora, Niki utilizou diferentes técnicas ao longo de sua
trajetória. Inicialmente pintava óleos sobre tela, passando a partir de 1955,
a agregar objetos industrializados às suas composições bidimensionais,
como machados, facas, revolveres, como uma representação do masculino;
e utensílios domésticos como uma representação do feminino. A artista
continuou agregando materiais industrializados em suas criações, como
no conjunto de peças tridimensionais do período branco da década de
1960. Ainda nesse período, Niki esteve em contato e foi influenciada
pelo trabalho de artistas como Rauschemberg, Jasper Johns, Willem de
Kooning e Jackson Pollock. Em visita à Barcelona, pôde conhecer as
obras do arquiteto catalão Gaudí recebendo explícita influência em suas
criações, principalmente das obras do Parque Güell para futuramente
idealizar e construir o Jardim do Tarô na cidade de Garavichio, na Itália.
Com sua série de obras intitulada Tiros, a artista propôs interação entre
público e obra, com sessões de disparos sobre montagens de gesso e
bolsas de tinta, que vazavam manchando a superfície à medida que a artista
literalmente atirava nas obras. Foi uma proposta inovadora de participação
do observador no processo criativo, alterando os códigos de comunicação
entre a artista, a obra e o espectador. Com esta série, Niki passou a fazer
parte, em 1961, do grupo de artistas Novos Realistas.
134
Em francês coloquial, a palavra naná significa moça. As primeiras Nanás
surgem em 1965, mostrando uma visão mais positiva e otimista do mundo,
marcando um período de mudanças nas técnicas e no estilo da artista. As
esculturas das Nanás normalmente possuem desenhadas em seus corpos,
figuras coloridas, flores, corações, listras, que são marcadas por linhas pretas
que dividem os desenhos, criando molduras e contornos. Podem ou não
ter seus rostos definidos, assim como os tons de pele assumem diferentes
coloridos. “Com corpos redondos e generosos, elas se apresentam como

História da Arte Técnica


emblemas da feminilidade, ao mesmo tempo em que constituem uma
espécie de homenagem, à força e sexualidade” (ARREOLA, 1997, p. 26).
De acordo com a artista, a inspiração para a criação das Nanás surgiu de
um desenho do pintor Larry Rivers, que representava sua mulher grávida.
As peças foram inicialmente criadas em lã, fibra de algodão, papel machê
e tela de arame, surgindo também em serigrafias até assumirem as grandes

Ciência & Conservação


formas feitas em poliéster e fibra de vidro. Esses materiais começaram a
ser empregados em suas criações a partir de 1967, quando Niki criou as
obras Casa de Sonhos de Naná e Chafariz de Naná (PINACOTECA DO
ESTADO DE SÃO PAULO, 1997).
Niki de Saint Phalle foi uma artista de reconhecimento internacional e
intensa produção, principalmente pelas obras públicas e monumentais. É
de sua autoria, em parceria com o artista Jean Tinguely, o conjunto de 16
esculturas da Praça Stravinsky, em frente ao Centro Georges Pompidou,
em Paris2.
Apesar da grande produção da artista, há pouca publicação de pesquisas
voltadas à conservaçãoe restauração de suas obras. Através do banco
de dados do INCCA3 foi possível localizar a ficha resumida, de 2001,
sobre a intervenção em uma obra de Niki de Saint Phalle, de 1971,
intitulada Womanhead, realizada pelo departamento de tecnologia do
SchweizerischesInstitutfürKunstwissenschaft (SIK-ISEA) em Zurique.A
obra em questão é um exemplode esculturas feitas em série em “resina
de poliéster moldada com calcita como carga e com base em acetato de
polivinila. A camada de tinta sobre essas tem como aglutinante o amido
e foi revestida com poliestireno transparente” (WAENTIG, 2008, p.270).
A incompatibilidade entre o amido e a camada de poliestireno somada
à fragilidade da base de preparação, resultaram no craquelamento e 135
delaminação da camada de pintura. A proposta de restauro ficou restrita
à consolidação dessa camada de pintura e, para tanto, foi utilizada uma
dispersão de resina acrílica, já que o suporte estava intacto.
Niki de Saint Phalle faleceu em 2002, aos 71 anos, na cidade de San Diego,
na Califórnia, em decorrência de falha pulmonar. Waentig (2008) faz uma
referência a sua morte, quando cita o descuido dos artista ao manipular a
resina e a fibra de vidro, por ser o estireno, presente na resina de poliéster,
uma neurotoxina e asfibras de vidro que se caso forem inaladas alojam-se

História da Arte Técnica


nos pulmões. A artista criou a Niki Charitable Art Foundation4, com mais
de seis mil obras que pertenciam a sua coleção e que se tornou ativa após
o falecimento de Niki.
De acordo com a documentação de entrada da obra, a Fonte das Nanás foi
doada à Pinacoteca em 1998, após contatos do então diretor, Emanoel
Araújo, com o curador da retrospectiva da artista, que ocorreu na Pinacoteca

Ciência & Conservação


e na Casa França Brasil, em 1997, Jean-Gabriel Miterrand. O processo de
tombamento somente é finalizado em novembro de 1999, quando a obra
passa a fazer parte do acervo da instituição5. A serigrafia de autoria da
artista, intitulada Black is Different foi doada pela então Associação Amigos
da Pinacoteca em 1997, juntamente com três fotografias de Carlos Freire
que participaram da exposição paralela à sua retrospectiva, Fotografando
Niki de Saint Phalle. Essas fotografias foram realizadas em 1982, por Carlos
Freire, para o Centro Georges Pompidou.
A obra, vista na imagem 01 ao final do texto, está catalogada como
uma escultura de poliéster, produzida em c. 1974/1991, com 225 cm de
diâmetro x 55 cm de altura. O material utilizado para a estruturação da
peça foi a resina de poliéster com a fibra de vidro. O uso desse material nas
criações da artistaviabilizou a construção de obras de grande porte, com
estrutura mais leve, facilitando transporte e manuseio.
Outras características importantes da resina são a resistênciaà chamas, ser
auto-extinguível, ter resistência à água e intempéries, possuir variedades de
cores, resistência à temperaturas de até 121°C e boa resistência à tração,
que pode ser aumentada em sete vezes quando acompanhada de fibra
de vidro (ROUKES, 1978). O uso conjunto desses dois materiais pode
ser reconhecido pela sigla GRP (Glass Fibre Reinforced Polyester). Sobre
a estrutura de resina de poliéster e fibra de vidro existe uma camada 136
de pintura e uma camada de verniz de proteção, cuja composição será
investigada em uma próxima etapa da pesquisa.
Na parte inferior da obra, existem três peças de metalpara encaixe da peça
sobre a caixa de aço inoxidável do reservatório de água da fonte. O sistema
não possui nenhum tipo renovação da água, ficando esta armazenada no
local até sua substituição dentro do plano de rotina de limpeza da obra. Para
movimentação da água há uma bomba localizada dentro do reservatório
que a conduz através de mangueiras de borracha até as saídas encontradas

História da Arte Técnica


nas áreas de boca, mãos e seios das Nanás, retornando ao reservatório
por meio de orifícios que se encontram ao redor das figuras. O conjunto
formado por obra e reservatório são originais e estão apoiados sobre uma
base de ferro construída pela equipe da Pinacoteca para conferir altura à
obra e como medida de conservação.
Condições do espaço expositivo e estado de conservação da obra

Ciência & Conservação


Apesar da Fonte das Nanás estar localizada no pátio interior do edifício,
coberta porclarabóia, a sua concepção como fonte d’água já é um motivo
para que haja desgaste da camada de proteção. O sistema de bombeamento
de água funciona, de terça a domingo, por um período de oito horas
por dia. Outros fatores que podem contribuir para a deterioração são a
presença excessiva de luz e radiação UV, calor, depósito de poluentes e o
fato de o local em que se encontra no museu não ser climatizado.
A obra possui sinais de deterioração, como o aparecimento de bolhas e
perdas da camada pictórica, principalmente onde há acúmulo de água.
Há depósitos de materiais na parte inferior da peça, causados pela água
que ao retornar ao reservatório pelos orifícios, acaba se espalhando pela
superfície e com a evaporação acumula sais e sujidades.
Exames com microscópio digital portátil foram feitos sobre a camada de
pintura para avaliar os danos, gerando fotomicrografias das áreas com
bolhas, perdas, riscos e desgastes (ver fotomicrografia ao final do texto).
Em princípio, acreditava-se que as áreas esbranquiçadas eram causadas
pelo depósito de sais da água na superfície da obra, porém, foi constatado,
que houve alteração do verniz e que em determinadas áreas foi removido
por completo. Aproveitando áreas de perdas, foram removidas amostras
a serem trabalhadas para análises dos materiais, etapa esta que ainda se
encontra em andamento (ver imagem 02). 137
Considerações finais
A pesquisa de mestrado, ainda em desenvolvimento, busca criar uma relação
entre as obras do acervo da instituição, incluídas no recorte deste estudo,
e a obraFonte das Nanas, de Niki de Saint Phalle. A importância da artista
no contexto da história da arte, além das escolhas e mudanças ao longo de
sua produção artística, principalmente no que se refere à incorporação de
materiais sintéticos as suas obras serão questões futuramente abordadas.

História da Arte Técnica


A problemática da conservação de materiais plásticos inseridos no contexto
de instituições culturais, como a Pinacoteca, levantam discussões do ponto
de vista da preservação material, no entanto, questões conceituais, que
abordam as intenções e os projetos idealizados pelo artista e muitas vezes
sua ausência na execução de suas criações, também serão abordadas na
dissertação. O contato entre conservador-restaurador e o artista ou com

Ciência & Conservação


sua fundação, como no caso de Niki de Saint Phalle, também é importante
ferramenta de suporte para qualquer intervenção.
A escolha da obra Fonte das Nanás, como estudo de caso, possibilita,
a partir do problema da deterioração material, reunir essas discussões
conceituais, tendo como embasamento a pesquisa sobre o processo de
criação em série dessas peçase a característica da obra como uma fonte de
água,as experiências e diferentes abordagens de conservação ou restauro
em obras similares, análises da composição dos materiais com técnicas
instrumentais, assim como o impacto e interferênciana leitura da obra pelo
espectador, causados pela mudança em sua superfície. A finalidade desse
estudo é cercar o objeto em diversos aspectos, criando subsídios para que
futuras intervenções de conservação e restauro possam ser propostas.

138
História da Arte Técnica
Ciência & Conservação
Imagem 01- A obra Fonte das Nanás de Niki de São Paulo, exposta na Pinacoteca do
Estado de São Paulo. Foto da autora.

139

Imagem 02- Remoção de amostras para análises da composição da camada de pintura e


do verniz de proteção. Foto da autora.
História da Arte Técnica
Ciência & Conservação
Imagem 1 e 2: sistema primário de acondicionamento

___________
Notas
1. Ocorrerá em março de 2012 o POPART Conference, para exposição de resultados e experiências
obtidas após quatro anos de projeto. Disponível em: www.popart.mnh.fr

2. Em visita a Paris, em maio de 2011, foi possível constatar que as obras da fonte Stravinsky foram
restauradas ao longo de 2009 e 2010.

3. A Pinacoteca do Estado é membro, do projeto INCCA- International Network for


theConservationofContamporaryArt, desde 2003, quando do início da gestão do atual diretor Marcelo
Mattos Araújo. Fundado e sediado na Holanda pelo NetherlandsInstitute for Cultural Heritage(ICN),
em 1999, o projeto tem por objetivo criar uma rede de profissionais e instituições para a troca de
informações e criação de um banco de dados sobre a conservação de obras de arte modernas e
contemporâneas. Disponível em:www.incca.org

4. A fundação da artista tem como responsabilidade a divulgação, empréstimo de suas obras,


autorização para exibições, como também para os processos de restauração, além de oferecer atestados
de autenticidade. Disponível em: www.nikidesaintphalle.org

5. Fonte de pesquisa: Núcleo de Gestão Documental do Acervo (NUGEDA) 140


___________
Referências
ARREOLA, Magali. Niki de Saint Phalle. A Arte como Exorcismo. In: PINACOTECA DO ESTADO
DE SÃO PAULO(Brasil).Niki de Saint Phalle: esculturas. São Paulo, 1997. p.23-26.

MORGAN, John. Membership and Aims of the Plastic Historical Society. In: SYMPOSIUM ’91:
SAVING THE TWENTIETH CENTURY: THE CONSERVATION OF MODERN MATERIALS,
1991, Ottawa. Ottawa: The Canadian Conservation Institute, Communications Canada (Org.),
Editadopor David W. Grattan, 1993. 440p.

História da Arte Técnica


PINACOTECA DO ESTADO DE SÃO PAULO (Brasil). Jornal das exposições paralelas: Niki de
Saint Phalle. São Paulo: Editora Gráficos Burti Ltda, 1997.

ROUKES, Nicholas. Sculpture in Plastics. Londres: Pitman Publishing, 1978. 192p.

SHASHOUA, Yvonne. Conservation of Plastics:is it possible today? In:PLASTICS: LOOKING AT


THE FUTURE AND LEARNING FROM THE PAST. Papers from the Conference held at the
Victoria and AlbertMuseum, Londres, 2007. Editadopor Brenda Keneghan e Louise Egan.Londres:

Ciência & Conservação


Archetype Publications, 2008. p12-19.

SHASHOUA, Yvonne. Conservation of Plastics: materials science, degradation and preservation.


Oxford: Butterworth-Heinemann, 2008. 285p.

WAENTIG, Friederike. Plastics in Art: A study from the conservation point of view. Editadopor:
Michael ImhofVerlag. Petersburg: GmbH & Co, 2008. 400p.

WINSOR, Peter; BALL, Stephen. Conservação de Acervos de Materiais Plásticos. In: MUSEUMS,
LIBRARIES AND ARCHIVES COUNCIL[tradução Maurício O. Santos e Patrícia Souza].
Conservação de Coleções. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: Fundação Vitae, 2005.
224pp.

141
Acervo do Artista: uma contribuição à
conservação da Arte Contemporânea

História da Arte Técnica


Tatiana Duarte Penna
Mestranda-PPGA-EBA-UFMG

Ciência & Conservação


Yacy-Ara Froner (orientadora)
PPGA-EBA-UFMG
Resumo
A arte contemporânea tem imposto ao conservador/restaurador vários desafios. A
dificuldade em sua preservação não resulta somente na durabilidade ou impermanência
dos materiais, mas também na complexidade de suas estruturas, na intenção do artista, na
sua conservação e nas formas de tratamento dos mesmos. O estudo de uma obra de arte
deve conter três saberes que se complementam e se entrecruzam: conservação, investigação
científica e história da arte. Nosso caminho em relação à obra de arte contemporânea seria
de estreitar nossa comunicação entre esses saberes, acelerando, ampliando e divulgando os
resultados de pesquisas que envolvam a sua preservação.
Palavras-chave: arte contemporânea, ciência e história
Abstract
The contemporary art has imposed on the conservative/restorative several challenges the difficulty in their
preservations does not result only in artist’s intention, in its conservation and ways to treat them. The study
of a work of art must contain three knowledge that complement each other and intertwine conservation,
scientific e research and art history. Our track for contemporary work of art would be to strengthen our
communication between this knowledge, accelerating the results of research their preservations.

Key words: contemporary art, science and history

Introdução
No final do ano passado fui solicitada como conservadora/restauradora
a conhecer o acervo do artista Pedro Moraleida composto de
aproximadamente duas mil e duzentas obras realizados sobre suportes
de papel, metal, tecido, serigrafias, de dimensões variadas, alguns deles 142
inacabados , além de esculturas em gesso,escritos, revistas em quadrinho
e vinhetas musicais. O acervo foi fotografado, digitalizado e catalogado
pelo Grupo Vem formado por seus amigos Chintia Marcelle, Sara Ramos,
Pedro Bozolla e Emílio Maciel com apoio dos pais de Moraleida no ano
de 2002. O tempo passou e algumas obras encontram-se em processo
de deterioração, acondicionadas de forma não adequada, o que vem
ameaçando sua preservação.

História da Arte Técnica


Situando um pouco o artista na história das artes ,Pedro é considerado
por muitos críticos como um dos melhores artistas de sua época.
Nasceu em 1977 e faleceu em 1999. Foi aluno da Escola de Belas Artes
da Universidade Federal de Minas Gerais. Durante os três últimos anos
de vida , produziu uma obra extensa. Suas pinturas são fortes, vibrantes,
carregadas de símbolos e conteúdos oníricos, em garatujas com grande

Ciência & Conservação


firmeza gestual. Uma arte que no primeiro contato causa um certo
estranhamento. Obra de grande impacto visual.
Ou seja, se num primeiro momento, pelo menos, tudo
poderia soar quase como uma bricolagem desenfreada, que
toma o espectador de assalto através de brutas torrentes de
energia, a um olhar vagaroso, entretanto, é como se o modo
que o artista manipula esses elementos fosse conferindo
evidencia a um claríssimo propósito...(MACIEL, 2002)
A conservação da obra de arte contemporânea tem sido um desafio ao
nós conservadores/restauradores. Além de assegurar que o acervo em
questão seja transmitido a gerações futuras enquanto legado de um artista
cujos vigor criativo, sensibilidade e inquietação o fazem ser considerado
um dos nomes mais importantes da geração de 90, o estudo desse acervo
nos dará suporte para intervenções futuras em outros acervos de arte
contemporânea no que diz respeito a sua conservação.
Durante a elaboração do projeto de mestrado e diante de uma obra de
tamanha complexidade cujo conteúdo poético sobrepõe muitas vezes
às questões inerentes à conservação do acervo, propuzemos algumas
questões que poderiam ser discutidas ao longo do trabalho.
Para um estudo aprofundado de tal acervo , inicialmente proponho um
retorno a história da arte moderna e contemporânea para localizar em que
contexto histórico, a obra de Pedro Moraleida foi elaborada, construída. 143
Uma obra de arte hoje apresenta uma profusão de estilos, formas, práticas
e Registros. Como observa ARCHER(2008), a arte recente tem utilizado
desde luz e sons e até mesmo pessoas. São inumeráveis as técnicas e os
métodos de trabalho. Porém, essa arte não surgiu do nada, nem de um
estado caótico de coisas, veio em resposta à produção artística dos últimos
quarenta anos. A riqueza e a diversidade da prática contemporânea
nasceram também da reinterpretação de alguns gestos da vanguarda

História da Arte Técnica


modernista e seu desenvolvimento.
Nos anos 60, houve um desafio à narrativa modernista da história da arte,
onde o significado de uma obra não estava contido somente nela mesmo,
mas emergia de dentro de um contexto em que ela existia. Poderia ser
tanto político e social, quanto formal, e a identidade, tanto cultural quanto
pessoal tornar-se ia aspecto básico para boa parte da arte produzida nos

Ciência & Conservação


anos 70.
No final da década de 70, várias teorias foram tornando-se importantes
para a formulação de um pós-modernismo crítico, cujo questionamento
seria em relação à natureza da arte. Porém, ao lado disso, segundo
ARCHER(2008), surge uma pintura tradicional, reação bastante
conservadora às expectativas das décadas de 60 e 70, sustentadas pela
explosão do mercado de arte nos anos 80.
Anne CAUQUELIN (2005) diz que a Arte Moderna, com seus movimentos
artísticos e criação centrada na estética, cede lugar a uma arte voltada para
a comunicação, a velocidade da transmissão e a ubiquidade do artista. Não
dispõe de um tempo de contribuição, de reconhecimento. Para apreender
a arte como contemporânea é necessário estabelecer alguns critérios que
não podem ser buscados somente no conteúdo das obras, mas onde estão
inseridos, em registros literários e filosóficos, ou numa sucessão temporal.
No Brasil, segundo ZANINI (1983), em meados de 1945, após a queda
do regime ditatorial imposto pelo Estado Novo, inicia-se uma época
democrática que se estenderia até 1964, A Arte, com a aceleração dos canais
de comunicação, inclina-se para soluções mais abstratas. Com a criação dos
Museus de Arte e da Bienal de São Paulo , em 1951, a arte moderna toma
impulso. A formação dos artistas, a maioria autodidatas, passa a contar
com vários cursos livres. Os movimentos artísticos foram ampliando- 144
se. Nas décadas de 60 e 70 surgem vários movimentos, concretistas e
neoconcretistas, cujos artistas enfatizavam a ideia de estrutura.
Nos anos 70, o que se viu foi a substituição do ativismo dos anos 60 pela
reflexão, da emoção para a razão, do objeto pelo conceito. A arte passa a
ser a ideia da arte. Com o impacto da repressão política e da promulgação
do AI-5, a arte apresenta características viscerais mais agressivas, como
as trouxas ensanguentadas e a queima de animais em alusão a presos

História da Arte Técnica


políticos, de Barrio e Cildo Meireles. Nos anos seguintes, surgem a arte
tecnológica, a vídeo-arte, o videotexto etc. Após esse período há o retorno
explosivo da pintura figurativa e gestual. Em 1988, um grupo de artista, no
Parque Lage, Rio de Janeiro, reivindicam uma arte menos fria e cerebral.
Nos anos 90, seguem as tendências do pós-modernismo, misturando
tradicionalismo e novidade, de formas contemporâneas de encenação e de

Ciência & Conservação


olhar na direção do passado.
Outra questão que coloco como fundamental na intervenção de um
acervo contemporâneo é saber quais são as bases teóricas que vão apoiar
ou nortear nossas ações. Segundo Cesare Brandi, a obra de arte é um
produto ou testemunho da atuação humana em certo tempo e lugar.
Uma intervenção deve se estruturar sobre duas instâncias: a estética e
a histórica podendo, em determinado momento, uma sobrepor a outra.
Com relação a adições ou remoções, utiliza o recurso do “juízo de valor”
que vai determinar a prevalência de uma instância sobre a outra.
Algumas proposições que são fundamentais na intervenção em uma obra
de arte segundo Brandi eram:
1- o restauro é um ato crítico, dirigido ao reconhecimento da obra de arte,
voltado à reconstituição do texto autentico da obra; atento ao juízo de
valor necessário para superar a dialética das duas instâncias;
2 - por tratar de obra de arte, deve ser privilegiada a instância estética;
3 - o restauro é considerado como intervenção sobre a matéria, mas como
salvaguarda das condições ambientais que assegurem a fruição do objeto.
Seria então necessário fazer um estudo mais aprofundado das teorias
clássicas da restauração, passando pelos seus principais teóricos,
procurando reconhecer fundamentos e princípios capazes de sustentar 145
ações de intervenções nesses acervos contemporâneos.
Outro fator a ser considerado é a participação do artista nas intervenções
de conservação e restauro. Quando o artista participa desse processo, vai
ser através dele que saberemos a respeito dos materiais que ele utilizou
como foi elaborada a obra( esquemas de montagem e registros) e, o mais
importante, a necessidade de se perceber de que maneira poderemos
conserva-la sem esbarrar na intenção do artista. A criação de uma ficha

História da Arte Técnica


técnica informando todos os dados coletados é de grande importância em
ações futuras.
Além disso, é fundamental o conhecimento dos materiais utilizados nas
obras. O acervo em questão é constituído basicamente de pintura. Os
suportes utilizados são diversos, com dimensões variadas. Papéis, tecidos,
colagens, fitas adesivas transparentes, metais, radiografias, gesso. O acervo

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é composto também de fotografias, artigos relacionados a obra de Pedro
e vinhetas musicais criadas por ele.
O conhecimento do material empregado é de grande importância, pois
materiais novos reagem de forma diversa, alterando-se mais rapidamente
do que imaginamos e reagindo de forma inesperada a determinadas
condições ambientais. Existem ainda aqueles que não foram feitos para
durar. Porém, muitas vezes são de difícil identificação e não sabemos quais
as transformações pelas quais eles irão passar.
Qual seria então a melhor maneira de conservar um acervo, composto de
diversos materiais e que se comportam de formas variadas em relação a
ação dos agentes de degradação ( luz, umidade, ventilação, insetos, etc),
armazenados em um ateliê-casa?
A investigação científica em relação a composição dos materiais tem
desenvolvido muito. Segundo AINSWORTH (2005), a partir da primeira
metade do século XX, o número de técnicas disponíveis para os cientistas
da conservação para o exame das obras de arte aumentou muito desde a
utilização do raio-x. A pesquisa sobre esses materiais ajudaria em muito na
sua conservação.
Para armazenagem e acondicionamento das obras seria necessário o estudo
mais aprofundado sobre o acervo ( quantidade, dimensões, tipologia) e se
possível o estudo do mobiliário e suporte adequados para garantir sua
146
preservação. Os princípios da conservação científica aplicados nesse
acervo seriam de grande importância.
Considerando que os estudos de um objeto ou de vários objetos que
compõem um acervo de arte seja ele contemporâneo ou não, deverá se
valer desses saberes que se entrecruzam, se complementam e muitas vezes
se fundem: a conservação, a investigação científica e a história da arte, o que
possibilitará uma compreensão maior sobre a atividade artística humana

História da Arte Técnica


e em especial sobre esse acervo e nos dará suporte para intervenções em
outros acervos.
De um modo geral, as paredes revestidas são caiadas de
branco. Quanto a isto, não podem haver dúvida, tendo em
vista a longa serie de depoimentos que só começam a variar
a partir do século passado. (VASCONCELLOS,1961).

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A utilização da cal também para a caiação, executada conforme os métodos
dos antigos mestres de obras, igualmente apresentam variações com
relação a inserção de aditivos como óleo de linhaça, caseína ou gordura
animal para acelerar a secagem ou facilitar a cobertura das superfícies.
A caiação é uma pintura a base de cal cujo processo de
formação de filme se dá pela carbonatação (reação química
da cal hidratada com o ar com perda de água e formação
do carbonato de cálcio). Tradicionalmente foi comum a
adição de ingredientes as misturas de cal, no entanto, alguns
aditivos podem modificar o mecanismo de endurecimento
da cal e resultar em um tipo de pintura a qual não será
apropriada para trabalhos de conservação e restauração
arquitetônica. (KANAN, 1999)
A caiação ou método similar de pintura, como no caso das tintas minerais a
base de silicato de potássio ou magnésio, devem garantir a permeabilidade
do conjunto a fim de melhor conservá-lo. Para Brandi (2005), noventa
e nove por cento dos casos de perecimento das pinturas murais é determinado pela
umidade e esta, seja por capilaridade, por infiltração ou por condensação, é quase sempre
ineliminável. Para evitá-la então é necessário observar se a quantidade de
aditivos a serem empregados como coadjuvantes na formulação de tintas
está conforme diretrizes fornecidas pelos órgãos de preservação. Ainda
segundo Brandi (2005), impedir a transpiração natural da superfície de uma
pintura mural é sempre um erro gravíssimo.
147
Novos materiais
A maior parte das tintas modernas, industrializadas, possui aditivos ou
aglutinantes plastificantes, empregados em sua composição para garantir
maior durabilidade quando aplicadas sobre superfícies impermeabilizadas,
ou demais superfícies onde não haja problemas com umidade ou infiltração.
Embora ofereçam alta durabilidade e qualidade sobre essas estruturas,
tornam-se prejudiciais quando aplicadas sobre edifícios de terra crua,
onde a troca de umidade com o ambiente é constante. Tal prática favorece

História da Arte Técnica


o aparecimento de manchas causadas por fungos manchadores e/ou
emboloradores, o desprendimento de seu filme plástico e o aparecimento
de eflorescências de sais solúveis. Embora a pesquisa e produção de novos
materiais reflitam a demanda do mercado e a necessidade de evolução
destes, sua utilização deve ser responsável nas obras de conservação de
edifícios históricos e estar sempre condicionada à execução de ensaios que

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comprovem sua eficácia e compatibilidade, e que garantam no futuro o
não aparecimento de novos danos.
Considerações finais
Para a avaliação da utilização de novos materiais nos processos de
conservação dos bens culturais, buscou-se junto às principais cartas
patrimoniais e teorias da restauração os conceitos e considerações de
seus autores com relação ao emprego destes nas obras de conservação/
restauração. Nota-se que, embora cada postura reflita o momento histórico
em que viveram e a respectiva condição sociocultural e econômica da época,
praticamente todas consideram o uso de materiais melhores, compatíveis,
mais resistentes e mais reversíveis, com o objetivo único de garantir a
sobrevivência do bem. Nota-se ainda que a especificidade de cada bem
cultural aponta os procedimentos mais adequados para sua conservação, e
que esse indica a necessidade de pesquisa sobre seus materiais originais e
do eventual emprego de novos materiais.
Complementando a parte inicial do desenvolvimento deste trabalho
foram apresentadas técnicas de construção com terra, sua relação com
os revestimentos ideais e seus requisitos básicos para adaptar-se a novos
materiais. Tal pesquisa visou identificar como um caso real, corriqueiro,
pode se relacionar às teorias de restauração com relação ao emprego
de novos materiais. Novamente as teorias e seus conceitos tornam- 148
se ferramentas para a discussão dos procedimentos a serem adotados,
direcionando a postura dos profissionais da área com relação à pesquisa e
utilização de novos materiais.
Por meio desta pesquisa é possível concluir que a síntese entre as bases
teóricas e os métodos analíticos experimentais nos fornece o meio mais
seguro para compreender, diagnosticar e proteger os bens culturais, e
que, mesmo em casos tão corriqueiros como a pintura de uma edificação,
a ação consciente e responsável dos profissionais envolvidos em todos

História da Arte Técnica


os processos contribui com o avanço e consolidação da conservação
enquanto ciência.

___________
Referências

Ciência & Conservação


ARCHER, Michael. Arte contemporânea: uma história concisa. Tradução Alexandre Krug. São Paulo:
Martins Fontes, 2001;

BRANDI, Cesare. Teoria da Restauração. Tradução Beatriz Mugayar Kull.. 2º edição. Cotia: Atelie
Editorial, 2005;

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CAUQUELIN, Anne. Teorias da Arte. Tradução Rejane Janowitzer. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

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FRONER,Y.A; ROSADO,A; SOUZA,L.A. Tópicos em conservação preventiva. Belo


Horizonte:LACICOR-EBA_UFMG,2008

FRONER,Yacy Ara. Os domínios da memória: um estudo sobre a construção do pensamento


preservacionista no campi da museologia, Arqueologia e Ciência da Conservação. 2001 , 487 f. Tese.
Faculdades de Filosofia e Letras e Ciências Humanas. USP, São Paulo, 2001.

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_ newsletter 13.2 ( summer 1998) The conservation of 20th -century Art; Two cases studies
_ newsletter vol. 20 , n.1, 2005 . From connoisseurship to thecnical Art History; the evolution of the
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149
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VIOLLET LE DUC, Eugenne -tradução Beatriz Mugayar Kuhl. 3º edição- Cotia – São Paulo: Atelie
Editorial, 2006.

ZANINI,Walter. História geral da Arte no Brasil, São Paulo: IMS, 1983, 2 vol, 1116pgs.
Ciência & Conservação
150
Bens Culturais
Documentação Científica de

História da Arte Técnica


Geotecnologias na Gestão do Patrimônio
Ambiental, Histórico e Cultural

História da Arte Técnica


Ana Clara Mourão Moura
Departamento de Urbanismo-EA-UFMG
* Conferencista convidada

Resumo

Ciência & Conservação


Estudo de aplicações de recursos de geoprocessamento na gestão do patrimônio ambiental,
cultural e histórico e no planejamento e gestão da da paisagem. Enfoca como exemplo o
caso de Ouro Preto, Minas Gerais, cidade Patrimônio da Humanidade, apresenta estudos
de caso de atividades de mineração de ferro a céu aberto no estado de Minas Gerais, e
apresenta os potencialidades dos Sistemas de Informações Geográficas na estruturação de
banco de dados para gestão de patrimônio histórico. Desenvolve roteiro metodológico de
aplicação de estudos de eixos visuais, navegação virtual e simulação de transformações nas
paisagens urbanas e ambientais, e de estruturação dos Sistemas Geográficos de Informação
integrando a coleção de dados.
Palavras-chave: Navegação Virtual, tratamento gráfico da informação, simulação de
transformações da paisagem
Abstract
The study of geoprocessing resources applied to landscape planning and heritage management and the
planning of historical areas of cultural value. It focuses on the city of Ouro Preto in the state of Minas
Gerais, which has been granted world heritage status, presents case studies on mining activities in the state
of Minas Gerais in examples of open pit iron ore mining, and presents the potential of Geographic
Information Systems in the structuring of database management for historical heritage. It develops a
methodological plan on the application of studies on visual axis, virtual navigation, and simulation of
urban and landscape transformations, and structuring of Geographical Information Systems integrating
the data collection.
Key words: Virtual Navigation, graphic treatment of the information, simulation of landscape
transformations

Introdução
O termo Geoprocessamento, surgido do sentido de processamento de
dados georreferenciados, significa implantar um processo que traga um 151
progresso, um andar avante, na grafia ou representação da Terra. Não é
somente representar, mas é montar um sistema e associar a esse ato um
novo olhar sobre o espaço, um ganho de conhecimento, que é a informação.
As tecnologias integradas ao Geoprocessamento são a Topografia, a
Geodésia, o Sistema de Posicionamento Global (GPS), a Fotogrametria,
o Sensoriamento Remoto (SR), a Cartografia, a Ciência da Computação e
os Sistemas Informativos Geográficos (SIGs, também conhecidos como
Sistemas de Informações Geográficos).
O Geoprocessamento tem papel significativo na nova visão de gestão da

História da Arte Técnica


paisagem, sobretudo no que se refere aos temas de patrimônio ambiental,
histórico e cultural. A informação organizada, correta e disponível de forma
ágil é um recurso estratégico e indispensável para tomar decisões adequadas
e em tempo hábil. Nesse contexto, o Geoprocessamento é importante
ferramenta de gestão, pois é um conjunto de tecnologias para processamento
da informação cuja localização geográfica é uma característica inerente,

Ciência & Conservação


indispensável para análise.
Observa-se hoje uma grande difusão do SIG na produção de inventários
e apoio à prática do planejamento, uma vez que permite a definição física
e a análise quantitativa dos componentes ambientais‚ mesmo análises
qualitativas, atribuindo pesos às características identificadas dentro de uma
escala de valores estabelecida.
Entre os recursos disponíveis no geoprocessamento e no emprego das
geotecnologias, temos produzido produtos de navegação virtual que se
destinam à comunicação visual interativa de áreas de diversos interesses,
desde o ambiental até o histórico e cultural, além de simulações de
intervenções na paisagem. A sensação é de inserção na paisagem, pois o
produto final explora efeitos de campo de visada do observador e de seu
posicionamento no espaço.
Temos nos empenhado na elaboração de metodologias de aplicação de
recursos de Geoprocessamento e Realidade Virtual para gestão da paisagem,
testadas em estudos de caso de paisagens mineradas e em sítios urbanos
históricos. Entre os exemplos desenvolvidos, destaca-se o aplicativo para a
promoção de Simulação de Intervenção na Paisagem em minas de ferro a
céu aberto (Mina de Capão Xavier – Nova Lima e Mina do Pico – Itabirito,
áreas de exploração mineral da empresa MBR - Minerações Brasileiras
Reunidas, Grupo CAEMI, controlada integral da CVRD) cujo estudo 152
foi publicado por Moura e Amorin (2007); além de vários exemplos de
gestão da paisagem urbana de Ouro Preto – MG para apoio a atividades
de manutenção e proteção da paisagem histórica (Moura, 2003). Foram
desenvolvidos também aplicativos de estruturação de banco de dados e
gerenciamento de documentação eletrônica (GED), na forma de aplicação
dos princípios de Sistemas de Informações Geográficas para cidades
de patrimônio histórico (Moura, 2003). Entre os exemplos de aplicação

História da Arte Técnica


do gerenciamento de dados citamos o apoio recentemente realizado em
colaboração à Tese de Doutorado de Marcela Moura que identifica, mapeia
e elabora uma proposta de plano-referenciamento de informações sobre
o material pétreo da Chácara do Barão do Serro (Moura et al., 2011), e
citamos também o estudo de caso de montagem do SIG para caracterização
do patrimônio cultural nacional nos municípios de Porto Seguro e Santa

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Cruz Cabrália na Bahia (Ferreira et al, 2011).
No presente artigo são apresentadas as três metodologias, através de
exemplos de alguns estudos de caso, quais sejam: geoprocessamento
para definição das áreas de alcance visual e de interesse para a gestão
da paisagem, geoprocessamento para a simulação de intervenção na
paisagem e representação em realidade virtual do ambiente analisado, e
geoprocessamento na montagem de Sistema de Informações Geográficas
para gerenciamento e análise da coleção de dados sobre um ambiente
escolhido.
Para a exemplificação dos estudos de alcance visual são escolhidos o caso da
Mina de Capão Xavier e o da mancha urbana histórica de Ouro Preto (MG).
Como exemplos dos estudos de simulação de intervenção na paisagem é
apresentado o caso da Mina do Pico do Itabirito. Como exemplo do estudo
de organização da coleção de documentação em formato SIG (Sistema de
Informações Geográficas) para fins de caracterização e análise de áreas de
patrimônio histórico é apresentado o caso da Chácara do Barão do Serro
(MG).
Caracterização dos estudos de caso de aplicação das geotecnologias
Localizada nas margens da BR040, que liga Belo Horizonte ao Rio de
Janeiro, e nas proximidades do bairro Jardim Canadá, em Nova Lima, a
mina de Capão Xavier é considerada a última grande reserva de minério 153
de ferro de alta qualidade no entorno da capital mineira. A mina entrou
em operação em junho de 2004, precedida por complexos estudos de
impactos ambientais, entre os quais se abordou a questão da transformação
da paisagem. O objetivo era construir clara visão do que seriam as etapas de
lavra do ponto de vista da composição da paisagem, assim como promover
estudos que apoiassem as escolhas sobre localização de atividades e de
recuperação da cava paralelamente ao processo de exploração.
A mina do Pico encontra-se aos pés do Pico do Itabirito, importante

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referência geográfica, histórica e econômica para Minas Gerais. Localizada
no município de Itabirito e próximo à rodovia BR356, que liga Belo
Horizonte a Ouro Preto, ela se localiza na borda leste do Sinclinal de
Moeda. O Pico do Itabirito é tombado como patrimônio nacional desde
1962, e pelo patrimônio estadual desde 1989, por ser fortemente vinculado à
paisagem mineira desde a chegada dos primeiros bandeirantes na região, que

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se deslocavam no território usando-o como marco referencial de localização.
Além da função de orientação, o Pico do Itabirito se incorporou à paisagem
como valor de mineiridade, pois está associado, nos mapas mentais, à região
das minas de ouro. O valor do minério extraído da área foi tão expressivo
que dele veio o nome “itabirito”, pois inicialmente a região se chamava
Itabira do Campo.
As transformações na paisagem em função da mineração fazem parte
do cotidiano e dos mapas mentais do mineiro que vive na região do
Quadrilátero Ferrífero, pois a ocupação do território sempre esteve atrelada
a esta atividade. Reconhecendo o território como um palimpesto de formas
que registram a passagem do homem sobre a Terra, não se pode dizer que
uma época da história seja mais importante que outra, mas o conjunto deve
manter os registros dos diferentes olhares que fizeram parte da ocupação
mineira. Diante da importância de atuar na paisagem com consciência, para
que ela seja um livro de registros de valores de diferentes épocas, podem-
se utilizar recursos de geoprocessamento para construir as simulações de
intervenção na paisagem e atuar em estudos preditivos desta transformação.
Ouro Preto, cidade Patrimônio da Humanidade pela Unesco desde 1980, é
interessante área-piloto para aplicação das metodologias de análise e gestão
da paisagem urbana devido à sua importância histórica para a formação da
vida urbana brasileira e pela complexidade espacial que hoje a caracteriza. 154
Trabalhar em Ouro Preto é abordar desafios de toda natureza: desde
os estudos de potencial à expansão exigidos pela dinâmica urbana, até a
construção de métodos de análise que permitam o julgamento do delicado
processo de intervenção no patrimônio histórico. A gestão da dinâmica
urbana passa, necessariamente, pelo estudo dos impactos da expansão e das
mudanças da ocupação na paisagem da cidade.
Estudar eixos visuais em uma cidade como Ouro Preto é compreender o
significado do espaço urbano barroco e comprovar como a linguagem do

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espaço traduz os valores do Brasil colonial. A malha urbana barroca é um
conjunto interconectado de eixos divergentes e convergentes, e sua estrutura
consiste de um conjunto de pontos nodais simbolicamente importantes e
visualmente dominantes, distribuídos ao longo da área urbana. Destaca-se
o grande referencial simbólico promovido, pois nos pontos focais, para os
quais se dirigiam os principais eixos visuais, foram implantados os principais

Ciência & Conservação


monumentos da arquitetura institucional e da religiosa.
A Chácara do Barão foi o estudo de caso escolhido por Marcela Moura
como parte de sua Tese de Doutorado (orientação Gilberto Costa –
Geologia – IGC-UFMG). Realizamos o apoio para que a pesquisadora
elaborasse a demonstração do processo de plano-referenciamento de
informações das aplicações pétreas em monumentos históricos, pelo uso
da lógica de SIG na modelagem e gestão da informação para o patrimônio
cultural. Segundo Moura et al. (2011) a Chácara do Barão do Serro é uma
edificação do século XIX, localizada na cidade de Serro, província de Minas
Gerais, região sudeste do Brasil. Esta cidade foi importante centro cultural
no passado e a primeira cidade brasileira a ser tombada pelo Instituto do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, em 1938. A Chácara do Barão
de Serro pertenceu originalmente a um comerciante de diamantes e coronel
da Guarda Nacional – o Barão do Serro. Construída na segunda metade do
século XIX, a chácara apresentada requintado trabalho em cantaria, com
elegantes balaustres e poltronas esculpidos em carbonato-talco xistos.
Metodologias de representação, gerenciamento e simulação de
transformação da paisagem cultural e histórica
A classificação das áreas segundo o valor para o conjunto cênico está
relacionada ao sentido de “genius loci”, que significa o “espírito do lugar”,
pois os espaços mais dotados da essência do que representa um ambiente 155
são os importantes para uma comunidade. O termo “genius loci” foi
proposto por Norberg-Schulz (1975) para denominar o caráter especial de
um espaço, baseado em elementos naturais, expressões culturais e interação
cultura e meio-ambiente.
A identificação de características e lugares simbólicos do espaço dos
ambientes naturais e construídos, assim como a utilização desses conceitos no
planejamento, iniciou-se na década de 60, com os estudos de comportamento

História da Arte Técnica


ambiental. Desta época, merece destaque o trabalho de Lynch (1960), “The
image of the city”, no qual são apresentados os conceitos de legibilidade,
identidade e unicidade, que são características que fazem do espaço um
lugar especial, dotado de caráter próprio. Naquela época foi construído o
conceito, mas não existiam técnicas para apoiar a representação e a análise
da paisagem. As perguntas que o presente artigo visam responder colocam

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como inquietude: Se fosse necessário escolher um ou alguns pontos para
representarem a visão de uma paisagem, quais seriam eles? Quais seriam
capazes de retratar em síntese o genius loci, a identidade e unicidade de uma
paisagem? Como gerenciar e simular as transformações em uma paisagem?
Assim, diante do reconhecimento do valor da paisagem, as metodologias
aqui apresentadas se destinam à caracterização da paisagem, à promoção
de formas de comunicação de suas realidades espaciais e à gestão de suas
transformações.
. Metodologia de interpretação da paisagem por eixos visuais e
navegação virtual
O objetivo da análise é a construção de mapa que classifique os diferentes
segmentos de uma paisagem segundo o grau de visibilidade. Através da
classificação, é possível responder às questões: De uma localidade no espaço,
o que é visto? De onde é vista uma determinada localidade no espaço?
No estudo de caso da Mina de Capão Xavier foram identificados os pontos
do território de onde a intervenção seria mais visível, neste caso contando
com sugestões de técnicos e de conhecedores da área. Uma vez identificados
os pontos de visada, foram gerados mapas com as manchas das superfícies
visíveis, pois estas respostas dariam subsídios para escolhas, por exemplo, de
localizações de cortinas de vegetação e posicionamento de outros elementos
amenizadores do impacto visual. 156
Foi gerado modelo digital de elevação da região de estudo, assim como da
mina nas diferentes etapas de lavra. A topografia da área foi cuidadosamente
analisada, o que foi auxiliado por modelos em 3D e por estudos de efeitos
de sombras em diferentes horas do dia. Foram escolhidos pontos de visada
a partir dos quais foram calculadas manchas de visibilidade.
O procedimento é baseado na elaboração de perfis topográficos em eixos
radiais a partir do ponto de visada, deslocados de 6 em 6 graus. Traçados

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todos os perfis, são reconhecidas as interseções entre o os eixos visuais do
observador e linha de perfil do terreno, definindo as áreas de “sombra”
(não visíveis), conforme exemplificado na Figura 1. Isto significa traçar
uma coleção de eixos saindo do ponto de observação, até que estas linhas
interceptem o desenho do perfil. Em cada interseção é marcado o ponto
de início e o ponto de final da sombra. Na seqüência, são ligados todos

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os pontos de início de sombra e todos os pontos de final de sombra, e o
resultado são superfícies (shapes) definidoras de manchas de áreas visíveis
a partir da posição do observador, conforme retratado na Figura 1. O
processo de ligação de pontos é feito tendo como material de conferência o
desenho em 3D. A conferência final é obtida por colocação da mancha em
3D encaixada no modelo digital de elevação
Além do cálculo das manchas de visibilidade, é elaborado sistema de
navegação virtual. O objetivo é que o usuário, além de saber de onde cada
ponto é visto e o que é visto de cada localidade, se localize virtualmente no
conjunto e reconheça a paisagem objeto de estudo. A navegação virtual é
montada por coleções fotográficas que se sobrepõem em 50% da cena como
se conformassem um cilindro. A captura das fotografias é realizada com o
apoio de teodolitos para controle preciso dos deslocamentos angulares entre
as fotos. As fotos são mosaicadas por procedimento que aplica o processo
de estereoscopia por efeito do campo de visada (field of view) que resulta na
sensação de realidade e de imersão na paisagem. (Moura, 2003).

157
História da Arte Técnica
Ciência & Conservação
Figura 1 - A partir do olhar do observador, definição das interseções entre
planos zenitais e perfil, para definição de áreas de “sombra” (em perfil) e
ligação dos pontos e destaque das áreas visíveis e não-visíveis (em planta).

Os estudos de eixos visuais e de navegação virtual pelo espaço de estudo


resgatam o valor do olhar nas análises urbanas. Acreditamos que nossa
proposta metodológica possa incorporar esse valor na gestão e planejamento
urbanos. Hissa (2002, p.187) desenvolve a questão do olhar para a análise
geográfica resgatando o valor da percepção do uso, dos lugares simbólicos
na paisagem, muitas vezes difíceis de serem mensurados:
Espaço e território são imagens, visuais e não visuais.
Formas, volumes e fluxos. Processos visíveis e invisíveis.
Mas as imagens não são produto exclusivo das estruturas
visuais, com as quais se tem contato direto. Elas também são
processadas através de experiências cotidianas desenvolvidas
158
ao longo da história, a partir de vários olhares que ultrapassam
e exclusivamente “visual”.

A soma dos vários mapas de visibilidade, gerados por diferentes pontos


de observação, produz o “Mapa Síntese de Eixos Visuais”, que indica o
grau de visibilidade de cada segmento do espaço analisado. Quando
o trabalho é feito a partir de modelos topográficos, ele corre o risco de
ignorar elementos construídos da paisagem, como os grandes edifícios e

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monumentos. Contudo, hoje este problema é resolvido com a aplicação de
produtos obtidos por captura laser do ambiente, que resultam na geração de
modelos digitais de elevação e não somente modelos digitais topográficos.
No estudo de caso de Ouro Preto foram selecionados 80 pontos de referência
na malha urbana da área histórica da cidade e suas vizinhanças, e em cada
ponto foram elaborados os perfis topográficos e cálculo das manchas

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de visibilidade segundo o procedimento explicado. Uma vez elaborado
o conjunto de alcances visuais na forma de 80 camadas de informação,
elas foram combinadas e o resultado foi a identificação das regiões onde
coincidem muitos campos de visada, assim como os que apresentam poucas
camadas de manchas de visibilidade, de modo que o mapa final produzido
representa níveis de visibilidade na paisagem. O mapa pode ser usado como
referência para o nível de exigência na avaliação das transformações da
paisagem.
Além de informar ao usuário o quanto a intervenção espacial que ele está
planejando é visível no conjunto, o sistema também o informa de onde a
intervenção será vista, o que favorece que a elaboração de estudos sobre
as composições arquitetônicas e paisagísticas que se contextualizem com o
conjunto da paisagem.
. Metodologia de simulação de intervenção na paisagem
O objetivo é realizar a inserção de uma transformação na paisagem com a
aplicação de uma metodologia baseada em critérios reproduzíveis, ou seja:
que se possa afirmar com segurança, diante de estudos preditivos, qual será
o resultado de uma intervenção no ambiente. Visa criar condições para que
se responda às questões: Como mensurar o valor da paisagem? Como prever
as conseqüências de uma intervenção no conjunto paisagístico? Como ter
critérios reproduzíveis para analisar a paisagem? 159
Segundo Moura (2003), a simulação das intervenções na paisagem permite
que órgãos de controle ambiental ou institutos de proteção ao patrimônio
histórico julguem com maior segurança novos projetos. O procedimento
facilita, sobretudo, o diálogo entre os diferentes segmentos da sociedade,
entre os quais estão os técnicos, os administradores e os moradores de uma
região. Em desenhos de plantas, cortes, ou mesmo perspectivas isoladas da
paisagem, é muito difícil perceber o real impacto da intervenção no conjunto

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paisagístico; mas pela simulação do encaixe do volume no conjunto, é
possível julgar sua adequabilidade.
O estudo de caso da Mina do Pico, em Itabirito, se aplicou essa metodologia
com o objetivo de simular as possibilidades de recuperação da cava e suas
proximidades. A empresa responsável apresentou plano de recuperação
da paisagem da cava e criação de um parque na área. O estudo cuidadoso

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justifica-se, sobretudo, porque o Pico do Itabirito é tombado como
patrimônio nacional desde 1962, e como patrimônio estadual desde 1989,
além de ser forte referencial da paisagem mineira desde os princípios da
ocupação do território.
A primeira etapa de trabalho foi composta pela modelagem digital de
elevação da área a partir de curvas de nível geradas pela captura laser, o
que resultou em representação de alta resolução da paisagem da área. Em
seguida, foram estudados os modelos de representação da topográfica em
3D da área segundo vários pontos de visada, objetivando o reconhecimento
de sua constituição paisagística. Estes estudos serviram, também, como
apoio para a definição das propostas de recuperação da cava.
Como o objetivo da simulação é estudar as possibilidades de transformação
de uma paisagem, foi necessária a busca de representações da área anteriores
à atividade mineradora. Foram então obtidas duas imagens: um desenho
de F.J. Stephan (1840), Litografia de A Brandmeyer, (In Martius, 1906) e
uma fotografia do acervo do IEPHA. Foram então realizados trabalhos de
campo com o apoio de GPS (Global Positioning System) com o objetivo de
identificar a posição de onde estas imagens foram registradas, pois seriam
realizadas simulações de transformação que seriam comparadas com a
realidade antes, durante e após a atividade de mineração.
Uma vez identificadas as posições das imagens na paisagem, foram 160
conferidas as posições de representação e estudados os contatos entre a
encosta existente e o pico, e a encosta minerada e o pico. Reconhecidas as
posições, foi estudado no modelo digital de elevação a exata posição x/y/z
de onde estava o observador, tanto na produção do desenho e da foto,
como das fotografias recentes da cava. O objetivo era colocar o modelo
em condições de se iniciar as simulações de intervenção na paisagem e já
aplicá-las em uma visão que permitisse o acompanhamento das propostas
de transformação.

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Nesta etapa, foram indicadas possibilidades de recomposição da cava e da
encosta pela equipe técnica da empresa, e nosso papel foi simular diferentes
possibilidades de transformação da topografia. Foram estudas diferentes
cotas de preenchimento da cava, assim como diferentes ações na encosta
visando a recuperação da superfície, ambos seguidos de simulações dos
resultados na paisagem.

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Do ponto de vista da modelagem, houve uma preocupação especial na
composição das texturas de representação de superfícies, de modo a garantir
um tratamento gráfico o mais real possível. O conceito empregado foi o de
modelagem fractal dos componentes da textura, tanto na escolha de grãos
como de cores.
Como resultados, como exemplificado na Figura 2, foram propostos
cenários possíveis para recuperação da cava, sem prejuízo para outros que
possam surgir e que terão condições de serem também simuladas pelo
procedimento.

161

Figura 2 – Estudo de uma das simulações de recuperação da paisagem – a etapa de atividade


e a proposta de recomposição.
. Metodologia de estruturação de SIG para gestão de dados de
patrimônio histórico e cultural

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Segundo Moura et al. (2011) no estudo de caso da Chácara do Barão do
Serro a investigação dos elementos de cantaria foi dividida em duas etapas:
uma etapa de campo e uma etapa em laboratório. No levantamento in situ foi
realizada a descrição petrográfica macroscópica, mapeamento das formas e
intensidades de meteorização e documentação fotográfica. Em laboratório
foram realizadas descrições petrográficas em microscópio óptico de luz

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polarizável, análises químicas de rocha total e ensaios de caracterização
tecnológica. Após as etapas de campo e laboratório, os dados obtidos foram
consolidados em um SIG.
O SIG foi estruturado na forma de gerenciamento eletrônico de documentação
associada a bases georreferenciadas (plantas baixas e imagens de satélite)
e associada a bases planas (fachadas), o que justifica a denominação do
trabalho de “plano-referenciamento”, além de “georreferenciamento”. No
conjunto de dados foram incorporados arquivos vetoriais relativos a plantas
e fachadas da edificação, além de tabelas de dados espaciais e alfanuméricos
do mapeamento petrográfico e de patologias e os dados de gestão. Os dados
de gestão foram obtidos no Inventário de Proteção do Acervo Cultural
de Minas Gerais – IPAC/MG, na categoria de bem cultural material, em
sistema disponível para consulta pública no site do IEPHA (2010). Destaca-
se, ainda, a inclusão de modelo de navegação virtual em áreas da edificação,
com o objetivo de facilitarem a compreensão e interpretação do conjunto de
dados, favorecendo que o usuário de situe virtualmente no espaço.
Os arquivos vetoriais da planta baixa foram inseridos como shapes
georreferenciados em datum SAD69. Na posição da fachada foi associada
shape que permitiu a consulta a dados plano-referenciados nesse elemento.
O objetivo era de permitir a consulta a dados específicos, mas também acesso
a informações do contexto da área e a construção de análises integradas a 162
outras bases de dados regionais e estudos sobre a influência de condições
climáticas (exposição solar, variação térmica) sobre os elementos de cantaria.
Tanto na base georreferenciada (plantas), como na plano-referenciada
(fachadas), foram registrados atributos no banco de dados, onde, para cada
elemento de cantaria mapeado, foram associados descrições petrográficas
macroscópicas e valores das variáveis forma e intensidade de intemperismo.
O resultado é um sistema complexo de gerenciamento de dados de diferentes
naturezas, organizado para favorecer o acesso simultâneo às diferentes

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coleções de dados e dar apoio à tomada de decisões na gestão do patrimônio
histórico (Figura 3).

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Figura 3 – Exemplo de consulta no SIG a partir da fachada e da planta – associações de
tabelas, fotografias e navegação virtual na paisagem.

Considerações finais
As aplicabilidades da metodologia aqui apresentada são muitas, desde
os estudos ambientais, até os estudos urbanos e de patrimônio histórico
e cultural. Já foram produzidas experiências em áreas urbanas, sobretudo
no núcleo histórico de Ouro Preto, e em áreas de mineração, conforme 163
alguns exemplos aqui mencionados. Destacam-se como pontos relevantes
nos procedimentos adotados o fato de apresentarem critérios reproduzíveis,
que dão veracidade nas simulações construídas e afastam os riscos do
subjetivismo nos julgamentos e tomadas de decisão sobre as transformações
da paisagem.
Do ponto de vista do apelo da comunicação, as representações basearam-
se em processo fotográfico, modelagem digital de terreno e de elevações

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seguidas do estudo das texturas de tratamento gráfico da informação,
objetivando que as imagens se assemelhassem à realidade, evitando ruídos
de comunicação entre técnicos e outros grupos de usuários.
Relacionado ao mesmo objetivo de comunicabilidade da informação, optou-
se pela visão perspectiva de representação da realidade pela altura e olhar de
um observador, em eixo azimutal e não zenital. Isto porque não são todos

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os usuários que conseguem fazer a conexão entre representação cartográfica
vista de topo (zenital) e realidade observada (azimutal).
A técnica empregou recursos de cartografia digital 3D e modelagem de
elevação, explorou a composição fractal de texturas, e promoveu ainda a
montagem de uma navegação virtual nas áreas de estudo, o que favorece as
apresentações públicas do trabalho. Os produtos elaborados são bases para
decisões de projetos e avaliação dos possíveis caminhos nas transformações
de uma paisagem ambiental, histórica e cultural.
___________
Referências
FERREIRA, Fernanda C., LEITE, Débora V.Brier, MOURA, Ana Clara M., OLIVEIRA, Laila
F., QUEIROZ, Gabriela C., TOFANI, Frederico. O papel do geoprocessamento na preservação
do patrimônio cultural nacional nos municípios de Porto Seguro e Santa Cruz Cabrália, Bahia:
procedimentos e desafios. Anais XV Simpósio Brasileiro de Sensoriamento Remoto - SBSR, Curitiba-
PR, Brasil, 30 de abril a 05 de maio de 2011, INPE p.4102-4109.

HISSA, Cássio E. V. A mobilidade das fronteiras. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002, 316p.

IEPHA/MG - Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais. Disponível


em: <http://www.ipac.iepha.mg.gov.br/>. Acesso em: 11.abr.2010.

LYNCH, K. The image of the city. Massachusetts: M.I.T. Press, 1961. 202 p.

MARTIUS, C.F.P. 1906. The journey of von Martius - Flora Brasilienses, Vol. I. Editora Index, 1966.

MOURA, Ana Clara Mourão. Geoprocessamento na gestão e planejamento urbano. Belo Horizonte,
Ed da autora, 2003. 294 p. 164
MOURA, Ana Clara M., AMORIN, Leandro Quadros. Simulação de transformação nas paisagens de
mineração de ferro a céu aberto – metodologia de análise e simulação de gestão de paisagens. Anais
XIII Simpósio Brasileiro de Sensoriamento Remoto - SBSR, Florianópolis-SC, Brasil, 21-26 de abril
de 2007, INPE p.4073-4080.
Projeto panorâmica virtual para cidades
históricas –

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cidade virtual

Marcelo de Miranda Coelho


EPCAR-UFMG

Ciência & Conservação


Arnaldo de Albuquerque Araújo
IECEx-UFMG
Marcelo Bernardes Vieira
UFJF
* Conferencistas convidados

Resumo
O projeto Cidade Virtual foi iniciado em 2007 com o objetivo de coletar vídeos de
Ouro Preto para, posteriormente, oferecer um passeio virtual nessa cidade, com o uso
de um aplicativo para a Web. Após intenso planejamento, as filmagens foram realizadas
contemplando, além de Ouro Preto, mais três cidades: Congonhas do Campo, São João
del Rei e Tiradentes. Atualmente, o processo de geração da interface para o passeio virtual
encontra-se em andamento, já tendo sido produzidos os primeiros protótipos. A massa
de dados acumulada foi responsável pelo desdobramento do projeto em duas pesquisas: a
busca por imagens semelhantes a uma dada imagem de consulta e a busca semântica por
estilos arquitetônicos. As técnicas usadas para a recuperação de informação visual e os
resultados obtidos são discutidos detalhadamente no texto.
Palavras-chave: Clusterização, Recuperação de Informação Visual, Preservação do
Patrimônio Cultural, Realidade Virtual
Abstract
The Virtual City project was started in 2007 and its main goal is to record movies from Ouro Preto and
to make available a virtual tour through that city by using Web applications. After an intensive planning
phase, the movies were also taken in three other cities, besides Ouro Preto: Congonhas do Campo, São
João del Rei e Tiradentes. Currently, the process of the interface construction is ongoing and the first
prototypes were already done. Two other research options arose from the huge volume of data gathered:
visual information retrieval using a given image as example and the semantic search for architectonic styles. 165
Techniques used for both are deeply discussed in the text and the results are presented.
Key words: Clustering, Visual Information Retrieval, Cultural Heritage Preservation, Virtual Reality

Introdução
Esse trabalho se insere no contexto das aplicações que exploram o
potencial trazido pelas bases de dados de fachadas urbanas (Nokia, 2009).
Uma aplicação ilustrativa é oferecer a uma turista a descrição completa de

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uma construção que acaba de ser fotografada através de seu celular. Outra
aplicação, mais ousada, é permitir que o usuário descreva conceitualmente
o que precisa encontrar. Por exemplo, as construções que apresentem um
determinado estilo arquitetônico, sendo possível a seguinte indagação: ``--
Gostaria de ver as fachadas de prédios que contenham traços do estilo
barroco’’.

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Antes do cumprimento dessas metas, é importante salientar que na área
de recuperação de informação visual baseada em conteúdo existem, hoje,
vários desafios a serem suplantados. Entretanto, dois deles se destacam
dada a enorme variedade de bases de dados visuais disponíveis: recuperar
imagens semelhantes a partir de um exemplo visual e permitir a pesquisa
semântica de objetos que compõem as imagens.
O primeiro tem sido amplamente abordado na literatura e faz uso de
descritores que possibilitam a análise estatística das imagens, contribuindo
para a comparação entre as mesmas. A partir da descrição, pode ser feito
um pareamento bruto entre os pontos descritos ou, adicionalmente,
a aplicação de restrições geométricas para filtrar as respostas recebidas.
Outra técnica bem difundida é a de realizar, a partir da descrição da imagem
em baixo nível, uma quantização dos elementos encontrados gerando uma
representação por histogramas. Essa forma de análise recebe os nomes
de Bag-of-Visual-Features ou Bag-of-Words (Sivic, 2003), (Sivic, 2005) e
(Lopes, 2009a).
Ao mesmo tempo, o problema da busca semântica exige uma interpretação
em alto nível da imagem para que sejam reconhecidos, de forma automática,
os objetos que a compõem. A presença ou não desses objetos interfere
diretamente na classificação que tal imagem recebe. São comuns os
trabalhos que descrevem a segmentação como forma de isolar os objetos 166
constituintes da imagem, visando um posterior reconhecimento (Russell,
2009), (Liu, 2009) e (Snavely, 2006).
Para este trabalho, podem ser elencados quatro objetivos principais, que
são:
. Coletar imagens de Ouro Preto, criando-se, assim, uma base de imagens
de cenas urbanas;
. Recuperar da base de dados, imagens semelhantes a uma dada imagem

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de pesquisa;
. Permitir a pesquisa por imagens contidas na base, através de conceitos
semânticos; e
. Criar uma interface de navegação para acesso às imagens capturadas.
Além desses objetivos técnicos, pode-se acrescentar a fomentação do

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turismo nas cidades históricas brasileiras e a oferta de uma interface de
navegação virtual alternativa ao Google Street View.
Captura das imagens em Ouro Preto
Com a aprovação do Projeto Cidade Virtual, MCT/CNPq/CT-INFO
nº 07/2007 -- Proc. 55.0914/2007-2, pelo CNPq, em 2007, iniciou-se o
planejamento do processo de captura das imagens de Ouro Preto. Questões
como: a forma de coletar as imagens; o formato de armazenamento a ser
utilizado – vídeo ou imagens –; a forma de acoplamento do dispositivo
de captura ao veículo; a maneira de tratar o problema da inclinação nas
ladeiras de Ouro Preto; o volume de dados a ser gerado e a calibração
necessária para o sistema de captura, começaram a ser levantadas.
Optou-se, então, pela aquisição da câmera Ladybug2, da empresa canadense
Point Grey Research, por ser um sistema integrado de seis câmeras e
oferecer uma interface pronta de captura dos vídeos, além de permitir
a personalização dos parâmetros de captura através da modificação de
parâmetros ou da criação de métodos específicos.
Após um intenso período de pesquisa, foi criado um suporte para adaptar
a câmera a um veículo e estabelecidos os equipamentos necessários ao
acompanhamento da filmagem: baterias de alimentação, inversor de
voltagem, notebook, discos externos para armazenamento e receptor 167
GPS para o georreferenciamento.
As filmagens de Ouro Preto ocorreram nos dias 22 e 23 de março de 2010
e o know-how estabelecido permitiu, ainda, a digitalização de importantes
pontos de mais três cidades: Congonhas do Campo, São João del Rei
e Tiradentes. A captura das imagens de Ouro Preto é exemplificada na
Figura 1.
Uma vez coletadas as imagens e estruturada a base, deseja-se recuperar

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informação visual automaticamente entre os dados armazenados.

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Figura 1: Exemplo da tela de captura do software que acompanha a câmera Ladybug2.

Recuperação de Informação Visual por Exemplo Visual


Durante o levantamento bibliográfico deste trabalho, verificou-se que
nos trabalhos de (Valle, 2009) e (Picard, 2009), mesmo tendo sido usados
algoritmos de casamento de imagens já validados pela literatura, os autores
relatavam o baixo grau de acerto dos algoritmos, em uma base específica,
devido à ocorrência de obstáculos como árvores e sombras nas imagens
da base.
Procurou-se, então, validar a hipótese através do uso de algoritmos de
clusterização em subespaço com o objetivo de tentar identificar os pontos
que provocavam esse equívoco no pareamento das imagens e, excluindo- 168
os do processo de busca, melhorar o ranque médio de acerto do algoritmo.
Resultados promissores dessa técnica podem ser encontrados em (de
Miranda Coelho, 2011).
Os clusters detectados foram medidos de várias maneiras, em busca de
alguma característica que denunciasse aquele que poderia melhorar os
resultados do casamento entre imagem de busca e imagens da base. Como
nenhuma alteração marcante foi encontrada, os clusters passaram a ser

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investigados individualmente, com os algoritmos de casamento, até que
se detectasse aquele que oferecia o melhor desempenho em relação à base
original.
Entretanto, como surgiu a suspeita de que outros pontos, além dos
relacionados às arvores e sombras, também provocavam confusão no
casamento das imagens, o conjunto de busca também foi clusterizado e

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usado novamente, para se ratificar ou refutar a suspeita.
A confirmação dos resultados veio com a utilização de uma segunda base
de dados, que apresentou comportamento semelhante à primeira, mesmo
possuindo certas características distintas.
Recuperação de Informação Semântica usando Segmentação
Neste trabalho, diferentemente do proposto em (Russell, 2009), o objetivo
é conseguir uma segmentação mais fina da imagem, onde possam ser
destacados os elementos constituintes das construções, como: portas,
janelas, telhados, escadarias etc. Assim, pretende-se associar conceitos
estilísticos a esses elementos, como por exemplo, o estilo arquitetônico
presente neles e, ao final, será possível definir qual o estilo empregado na
construção de um determinado edifício, casa ou igreja.
Para isso, pretende-se aplicar a técnica de segmentação citada em
(Russell, 2009) em camadas e agrupar as regiões usando um algoritmo
de clusterização mais robusto, como o FINDIT (Woo, 2004) ou o MSSC
(Gan, 2007).
Além disso, deseja-se substituir o uso do descritor Gist para elaboração
da pilha de imagens semelhantes, pela técnica de casamento de imagens
com a separação de descritores pela clusterização em subespaço. A ideia
por trás dessa substituição é a incorporação do registro de imagem para 169
permitir o refinamento da segmentação proposta em (Russell, 2009).
Em seguida, a partir de uma base anotada, será feita a transferência de
anotações para os objetos descobertos (Liu, 2009), (Oliva, 2001) e (Zhang,
2010) e a imagem será classificada quanto ao seu estilo arquitetônico.
Testes inicias, feitos a partir do algoritmo usado em (Russell, 2009),
mostram que a segmentação interfere diretamente na busca por imagens
similares. Esses testes foram realizados a partir do código original

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disponibilizado e deve ser observado que apenas a imagem de busca que
também está na base é emparelhada.
Após o profundo entendimento do código disponibilizado, foi necessária
a mudança na parametrização do segmentador e do descritor Gist, para
que ambos funcionassem com a base de Ouro Preto. Assim, foi possível
obter melhores resultados.

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Com essas alterações, foi possível submeter uma imagem de consulta
que não estivesse presente na base e recuperar imagens semelhantes que
fizessem parte da mesma.
Pode-se perceber, executando alguns testes com o algoritmo de
segmentação, que a política de fazer o casamento das imagens usando o
padrão de segmentação da imagem de busca cria a necessidade de uma
imagem da base com segmentação muito parecida à imagem de busca,
não sendo admitidas quaisquer variações, o que torna o algoritmo sensível
às mesmas.
O objetivo, a partir desses primeiros resultados, passa a ser a ``re-
segmentação’’ das imagens, com o intuito de identificar componentes dos
estilos arquitetônicos presentes nas edificações. A expectativa é encontrar
um número maior de regiões e, talvez, aplicar um dos algoritmos de
clusterização em subespaço estudados anteriormente. Além de substituir a
técnica de casamento de imagens usada internamente no algoritmo.
Interface
O protótipo gerado, O Visualizador de Vídeos 360 graus (Figura 2), é uma
interface específica para navegação em cidades utilizando mapas e vídeos
de 360 graus. O usuário pode escolher no mapa qual o local que deseja
visualizar e, se no local houver vídeo 360 graus, reproduzir o vídeo. No 170
modo de reprodução, a localização da cena é atualizada continuamente no
mapa da cidade. A visualização do vídeo permite ao usuário girar seu ponto
de vista, aproximar e afastar, para analisar elementos da cena. O registro
e sincronização do mapa com o vídeo é realizado através da informação
GPS obtida ao longo da filmagem. Se não houver essa informação, o
usuário pode visualizar o vídeo normalmente, porém sem sua localização
no mapa. O software gráfico tem versões para Linux e para Windows.
Resultados

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Os experimentos de casamento de imagens foram baseados
no algoritmo de busca visto em (Valle, 2009) e (Picard, 2009),
que tem como objetivo a localização de uma imagem tirada por
um telefone celular em uma base de dados de cenas urbanas.

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Figura 2: Visualização do protótipo de navegação em 360 graus gerado.

Resumidamente, o algoritmo usa vetores de características extraídos pelo


algoritmo SIFT (Lowe, 2004):
1. Inicialmente, o algoritmo procura por pontos do banco de dados que
são os vizinhos mais próximos dos pontos de uma imagem de busca,
usando o algoritmo de indexação Multicurves (Valle, 2008). 171
2. Um casamento simples das imagens é realizado, apenas contando a
quantidade de pontos de interesse da imagem da base que são relacionados
aos pontos da imagem de busca.
3. As imagens da base são colocadas em ordem decrescente de acordo
com a contagem vista no item anterior, isto é, a imagem da base com
a maior quantidade de pontos similares em relação a imagem de busca
específica é colocada em primeiro lugar no ranque de similaridade para

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essa consulta e assim por diante. Portanto, cada imagem de busca tem
associada a ela uma lista contendo imagens similares da base de dados
ordenadas da mais próxima, ranque baixo, à menos similar, ranque alto.
Esse método de casamento das imagens é citado em (Valle, 2009) como
Votação Bruta.
4. O passo dois é refinado através do uso do algoritmo RANSAC para

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verificar a consistência geométrica entre os pontos selecionados. Assim,
são descartadas respostas com alta incidência de pontos similares, mas que
não apresentam a mesma semelhança geométrica com a imagem de busca.
5. Uma nova lista é criada para cada imagem de busca, contendo as imagens
da base em ordem crescente de similaridade. Esse método de casamento
de imagens é citado em (Valle, 2009) como RANSAC.
Duas bases de dados foram analisadas em (Valle, 2009) e (Picard, 2009):
uma com 82 imagens e 354.841 descritores; e outra com 300 imagens e
3.476.087 descritores. Para cada uma delas foi criada uma base de imagens
de busca, sendo 11 para a primeira e 10 para a segunda. A base menor é
considerada pelos autores como sendo uma base ``fácil’’ para execução
da busca, pois todas as suas imagens são bem definidas e não apresentam
obstáculos como sombras e árvores. Para ela, foi obtido um ranque médio
de 1,1 – ou seja, para cada imagem de busca, a primeira imagem da base
retornada, segundo o ground-truth, é a correta em dez, das onze imagens
de busca. Nesse caso, é importante ressaltar que quanto menor o ranque,
melhor a resposta do algoritmo, pois indica que as primeiras imagens
retornadas são as mais relevantes para a consulta feita. Já a segunda base
de dados é classificada pelos autores como sendo ``difícil’’, pois apresenta
imagens distantes das construções e obstruídas por árvores e sombras.
Para essa base, foi usado um conjunto de consulta composto por 101.480 172
descritores e, após o processamento através do algoritmo proposto nos
artigos, foram retornados os ranques médios de 98,8 para a Votação Bruta
e 34,4 para o RANSAC (Valle, 2009) e (Picard, 2009).
Posto isso, apenas a segunda base foi analisada pela técnica proposta neste
trabalho, pois pode-se considerar que, para a base pequena, o problema
está praticamente solucionado. Entretanto, os valores a serem melhorados
serão aqueles obtidos nos experimentos feitos, já que os algoritmos
usados em (Valle, 2009) e (Picard, 2009) são bastante sensíveis à variação

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de parâmetros, ou seja, o ranque médio de 106,9 para a Votação Bruta e o
de 39,4 para o RANSAC (Tabela 1). Nota-se que um valor zero, associado
a alguma imagem de busca, significa que não houve imagem similar da
base que estivesse no ground-truth da respectiva imagem de pesquisa e,
portanto, tal imagem é desprezada no cômputo do ranque médio.

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Tabela 1: Valores originais para o resultado do casamento de imagens de busca com a base
de dados original de Paris.

A partir da aplicação da técnica proposta de separação dos descritores de


baixa qualidade com o uso da clusterização em subespaço, conseguiu-se a
melhoria dos valores iniciais alcançados.
Para a base de Paris, após a aplicação dos algoritmos MSSC e FINDIT,
pode-se verificar a acurácia média alcançada na Tabela 2.

Tabela 2: Resultado do pareamento das imagens de busca após a aplicação dos algoritmos
de clusterização em subespaço, mostrando um ganho significativo em relação aos valores
de referência.

Para validar a hipótese que outros pontos, além daqueles localizados 173
em oclusões, são responsáveis por confundir o pareamento de imagens,
aplicou-se o algoritmo MSSC sobre as imagens de busca e o resultado
pode ser visto na Tabela 3.
Tabela 3: Valor do ranque médio de classificação após a clusterização das imagens de
busca pelo MSSC, comprovando que há outros pontos que confundem o pareamento de
imagens, uma vez que as imagens de busca não possuem obstruções.
História da Arte Técnica
Os resultados foram comparados com a base de dados coletada em Ouro
Preto, onde a Tabela 4 apresenta os valores iniciais do casamento das
imagens de consulta com as da base.

Ciência & Conservação


Tabela 4: Valores de referência para o casamento de imagens na base de Ouro Preto.

Após a separação da base original em clusters, foram obtidos os valores


destacados na Tabela 5.
Tabela 5: Ganho no casamento de imagens após a aplicação dos algortimos de clusterização.

Procurando limitar o número de imagens de consulta, as 38 imagens


foram divididas em 3 subconjuntos. Comparando as imagens de busca
de cada subconjunto com os clusters obtidos, os resultados foram, ainda,
mais promissores (Tabela 6).
Tabela 6: Aplicação da técnica de separação dos descritores nas imagens de busca de Ouro
Preto subdivididas em grupos menores. 174
Um exemplo visual do ganho da aplicação da clusterização como etapa

História da Arte Técnica


prévia ao casamento de imagens pode ser visto na Figura 3, onde a linha
superior apresenta uma consulta onde a imagem correta é retornada
na posição 209. Após o uso dos algoritmos de clusterização, a primeira
imagem correta retornada é a segunda.

Ciência & Conservação


Conclusões
O planejamento necessário à tarefa de construção das bases de cenas
de cidades históricas foi conduzido durante alguns meses e, ao final, foi
possível expandir a missão de coleta a outras três cidades.
A aplicação da técnica de clusterização em subespaço se mostrou viável
e eficiente, no que diz respeito à melhoria da acurácia na recuperação de
imagens semelhantes a uma dada imagem de busca.
Na base de Paris, conseguiu-se uma melhoria de 40%, ao passo que, na
base de Ouro Preto, chegou-se a um ganho de 62,12%.
Os próximos passos pretendidos são a identificação automática do cluster
responsável pela melhoria no casamento das imagens e uma comparação
com a base usada em (Turcot, 2009), onde os autores conseguem melhorar
o casamento de imagens usando 4% dos pontos da base original. Neste
trabalho, o número de pontos selecionados pela clusterização que
produzem uma melhoria na recuperação das imagens, gira em torno de
1%.

175

Figura 3: Exemplo visual da aplicação dos algoritmos de clusterização em subespaço antes


de realizar o casamento de imagens. A linha superior mostra a busca original e a linha
inferir, a busca
A construção da interface de visualização 360 graus das imagens coletadas
continua em andamento e os próximos passos incluem a sincronização

História da Arte Técnica


com os dados geográficos coletados e um mapa geral da cidade navegada.
______________
Referências
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Ciência & Conservação


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177
Métodos eletroquímicos de análise como
ferramentas auxiliares na restauração de

História da Arte Técnica


bens culturais em metal

João Cura D’Ars de Figueiredo Junior


EBA-UFMG

Ciência & Conservação


Resumo
Bens culturais feitos com materiais metálicos estão sujeitos a diversos mecanismos de
deterioração. Em relação aos processos químicos, o principal mecanismo é a oxi-redução,
que leva a corrosão do metal e é acentuada pelos poluentes atmosféricos e pH do meio.
Ao se restaurar e estudar a composição química dos metais dessas obras, os métodos
eletroquímicos de análise se tornam uma útil ferramenta ao restaurador. Nesse texto
são discutidos os princípios de alguns ensaios eletroquímicos (cronopotenciometria e
voltametria linear) e termos comuns como densidade de corrente, potencial de corrosão,
polarização e passivação. Aplicações diretas desses métodos em processos de limpeza de
obras metálicas e na redução e passivação de superfícies são também apresentados.
Palavras-chave: Restauração de Metais, Eletroquímica, Cronopotenciometria, Voltametria
Linear
Abstract
Metallic cultural heritage can suffer deterioration through many different mechanisms. The major chemistry
mechanism is oxi-reduction that is more intensified with atmospherics contaminants and environmental
pH. The electrochemical methods are useful tools in restauration work. In this paper are dicussed the most
commom electrochemical essays (cronopotenciometry and linear voltametry) and common therms as current
density, corrosion potential, polarization and passivation. Direct applications of these methods in cleaning,
reduction and passivation of metallic cultural heritage are also discussed.
Key words: Metal Restauration, Electrochemistry, Cronopotenciometry, Linear Voltametry

Introdução
Bens culturais feitos em metal são muito comuns. A siderurgia é uma das
atividades mais antigas da humanidade e logo diversos utensílios como
ferramentas e obras de arte foram produzidas com materiais como aço, 178
bronze, prata, ouro etc.
Estes metais estão todos sujeitos à deterioração e o principal mecanismo
é o de oxi-redução em reações eletroquímicas que consistem na trans-
formação do metal em produtos como óxidos e sulfetos. Os diferentes
meios nos quais os bens se encontram são responsáveis por estes produ-
tos. Meios urbanos possuem altos teores de óxidos de S e de N. Meios
rurais são mais ricos em CO2. Os produtos formados, por sua vez, po-
dem ser pulverulentos e possuir uma estética diferenciada o que dificulta a

História da Arte Técnica


apreciação do bem cultural ou causar danos estruturais que levam a perdas
do suporte.
Define-se por reação eletroquímica qualquer reação que envolva a trans-
ferência de elétrons por uma distância finita maior que a distância intera-
tômica (WOLYNEC, 2003, 22). Desse modo haverá uma reação de oxi-
-redução global obtida de duas semi-reações (oxidação e redução) na qual

Ciência & Conservação


haverá a passagem da corrente elétrica.
A semi-reação de oxidação pode ser representada, genericamente, pela
seguinte equação:

O Rn+ + ne-

A semi-reação de redução, por sua vez, pode ser representada da se-


guinte forma:

Rn+ + ne-  O

Cada uma dessas duas semi-reações induz um valor de potencial de ele-


trodo. No eletrodo anódico ocorrem as semi-reações de oxidação e no
eletrodo catódico as semi-reações de redução. Os potenciais de eletrodo
podem sofrer alterações em seus valores por diversos motivos, entre estes
uma reação de corrosão. Quando ocorre uma alteração no potencial de
eletrodo diz-se que o mesmo sofreu polarização e a medida dessa polari-
zação é a sobretensão, n.
Numa reação de corrosão, ocorrem polarizações nos eletrodos anódico
e catódico. Consideremos, para motivos de exemplificação, um metal M 179
sofrendo corrosão em meio ácido desaerado. As semi-reações podem ser
descritas da seguinte forma:

M  Mn+ + ne-
2n H+ + 2 ne- n H2
A semi-reação de oxidação somente prossegue se houver uma semi-reação

História da Arte Técnica


de redução que receba os elétrons fornecidos na primeira. Esta transfe-
rência de elétrons, que depende das velocidades das reações, consiste em
uma corrente elétrica que é mais comumente denominada como densida-
de de corrente, i/A (onde A é a área). Caso a velocidade da semi-reação de
oxidação seja diferente da velocidade da semi-reação de redução teremos
diferentes densidades de corrente, ou seja, elétrons serão fornecidos sem

Ciência & Conservação


que haja sistemas que possam recebê-los e vice-versa. Este problema é
contornado com a polarização de ambas as reações. Os potenciais anódico
e catódico são alterados, pelas próprias reações, até que alcancem um valor
de potencial no qual a densidade de corrente é igual tanto para a semi-
-reação de oxidação quanto para a semi-reação de redução (WOLYNEC,
2003, 30). Este potencial é denominado potencial de corrosão, Ecorr.
Bens culturais em metal que sofreram processos de corrosão podem ser
restaurados através de um processo eletroquímico. Neste processo aplica-
-se um potencial e corrente, de valores específicos que dependem do metal
ou liga metálica a ser restaurada (bronze, prata ou aço), ao bem cultural.
Dessa forma, consegue-se forçar a reação de redução do metal, voltando-
-o ao estado anterior da corrosão.
Normalmente estes processos são feitos com a peça imergida em uma so-
lução de um eletrólito e ligada a uma fonte elétrica. A solução de eletrólitos
mais usada é a de sesquicarbonato de sódio, uma mistura 1:1 de NaHCO3
e Na2CO3. Simplesmente ligar a peça a fonte elétrica na solução de eletró-
lito não nos diz a eficiência do processo e nem se o mesmo está completo,
ou seja, se conseguiu reduzir totalmente o bem cultural. Uma avaliação es-
tética pode nos informar das alterações superficiais, mas não nos informa
das cavidades internas do bem cultural corroído. Este tipo de informação
pode ser conseguida através de ensaios eletroquímicos de análise. Estes
ensaios são feitos através de potenciostatos, equipamentos que registram
as variações de potencial e densidade de corrente. Dentre as análises que
podem ser realizadas, daremos atenção a cronopotenciometria e às curvas 180
de polarização.
A montagem genérica de um bem cultural ligado a um potenciostato está
representada na figura 1. Nesta figura vemos que o potenciostato geral-
mente funciona com um sistema de três eletrodos: um eletrodo de referên-
cia (que pode ser de Ag/AgCl, calomelano etc), um contra eletrodo e um
eletrodo de trabalho, que é o eletrodo no qual ocorrem as reações de cor-

História da Arte Técnica


rosão. No caso específico de bens culturais, a obra é o eletrodo de trabalho.

Ciência & Conservação


FIGURA 1 – Representação genérica de um potenciostato ligado a um sistema com três ele-
trodos. Para a restauração de bens culturais, o bem cultural atua como o eletrodo de trabalho.

Métodos de análise
. Cronopotenciometria
A cronopotenciometria consiste em se registrar a variação do po-
tencial de corrosão, E, do sistema em função do tempo. A va-
riação desse potencial nos mostra se o metal está sendo mais
corroído ou menos. Na figura 2 vemos duas curvas de cronopo-
tenciometria para uma situação de passivação e outra de corrosão.

FIGURA 2 - Curva genérica das possíveis variações do potencial de corrosão, Ecorr..em


função do tempo.

181
História da Arte Técnica
Ciência & Conservação
Na passivação ocorre a formação de espécies protetoras sobre o metal,
como uma camada de óxido, que impede que o mesmo fique em con-
tato com o meio corrosivo. Esta camada pode ser obtida em trabalhos
de restauração pelo mergulho do bem cultural a ser restaurado em um
banho com hidróxidos. Normalmente soluções de KOH ou NaOH são
usadas. Por exemplo, para objetos em aço, a reação dos hidróxidos leva à
formação das espécies Fe(OH)2 ou Fe(OH)3 que desaceleram a corrosão
do bem. Diz-se então que estas soluções são estabilizadoras. Ao se co-
nectar um potenciostato ao bem cultural imerso em uma dessas soluções,
pode-se retirar a mesma do banho quando a curva cronopotenciométrica
mostrar um potencial de corrosão que aumenta em função do tempo e se
torna constante (patamar na curva). Esta técnica é muito útil quando se
trabalha com peças que estavam imergidas em lagos ou regiões marítimas
e que não podem ser expostas à atmosfera até que estejam estabilizadas.
As curvas cronopotenciométricas mostram em qual momento elas podem
ser retiradas após o banho de estabilização.
Caso as curvas cronopotenciométricas variem de forma negativa, apre-
sentando uma queda nos valores de Ecorr, o processo de corrosão do bem
cultural continua e é mais acentuado quanto maior for a variação na curva.
Para interromper o processo, deve-se mudar a solução do banho que deve
conter substâncias oxidantes. Esta situação é muito comum para bens cul-
turais retirados de regiões marítimas. Os cloretos dissolvidos nessas águas
continuam a corroer os metais. Retirar os bens dessas águas e expô-los
182
à atmosfera é extremamente danoso, já que a concentração de oxigênio
aumenta consideravelmente acelerando muito a reação de deterioração. É
possível que um bem cultural retirado dessas águas seja totalmente destru-
ído ao ser exposto à atmosfera se ainda estiver rico em cloretos. Ao se tro-
car continuamente a água do banho no qual se encontra o bem cultural até
que as concentrações de cloretos, e outras substâncias oxidantes, chegue a
praticamente zero, observa-se que a curva cronopotenciométrica tem seu
sentido invertido, saindo da situação de corrosão.

História da Arte Técnica


. Curvas de polarização
As curvas de polarização consistem em se variar o potencial de um sistema
para acima e abaixo do potencial de corrosão, Ecorr, e registrar a corrente
que surge em função dessa mudança. Para tanto utiliza-se o potenciostato
para forçar esta variação de potencial.

Ciência & Conservação


Na figura 3 vemos que o potencial do eletrodo anódico sofre uma polari-
zação anódica (adquirindo valores de potencial maiores) e o potencial do
eletrodo catódico sobre uma polarização catódica (adquirindo valores de
potencial menores) até que ambos possuam um valor de potencial no qual
a densidade de corrente é a mesma.

αzFη -(1-α)zFη
RT RT
i = io e -e
FIGURA 3 - Esquema genérico da polarização das semi-reações de oxidação e redução
em um processo de corrosão. Ecorr e i* são, respectivamente, os potenciais e densidade de
corrente de corrosão.

A relação entre a densidade de corrente, i, e a sobretensão, η, é dada pela


equação abaixo denominada equação geral da cinética de eletrodo, tam-
bém conhecida como equação de Butler-Volmer.

183

Nesta equação i é a densidade de corrente após a polarização, i0 a densi-


dade de corrente inicial, a é o coeficiente de transferência, R a constante
universal dos gases perfeitos, Z a carga, F é a constante de Faraday e T a
temperatura em Kelvin.
A equação de Butler-Volmer é complexa e, por esse motivo, ela foi sim-
plificada. Tafel simplificou a equação de Butler-Volmer considerando uma

História da Arte Técnica


margem de valores de η. Para η anódico, ηa, maior que 0,03 V e η catódico,
ηc, menor que 0,03 V, o segundo termo se torna desprezível para ηa e o
mesmo acontece com o primeiro termo para ηc. Aplicando o logaritmo
nos termos não desprezíveis a equação assume a seguinte forma:

Ciência & Conservação


η = a + b log i

Esta equação é conhecida como equação de Tafel. Pode-se observar que


a equação de Tafel é linear. Uma curva de polarização na qual estejam
plotados os valores de potencial (que indicam, também, a sobretensão, η,
que o sistema sofreu) versus o logaritmo natural da corrente apresentará
trechos lineares que obedecem à equação de Tafel, desde que estejam nos
limites citados anteriormente de 0,03 V. É importante citar que a equação
de Tafel não se aplica a todos os sistemas eletroquímicos de corrosão. O
seu uso só é possível se a curva de polarização apresentar, no mínimo, um
trecho linear bem definido (WOLYNEC, 2003, 36).
Na figura 3 há duas regiões distintas: abaixo de Ecorr é a região catódica
na qual ocorrem reações de redução e na região acima de Ecorr é a região
anódica na qual ocorrem reações de oxidação.
O trecho catódico é o de maior interesse para o restaurador (DEGRIG-
NY, 2010, 354). Neste trecho podemos ver os sinais relativos à redução
dos metais presentes nos bens culturais. Obras em aço, que contêm Fe
como elemento principal, apresentam o sinal de redução catódico em –
0,85 V em relação ao EPH (eletrodo padrão de hidrogênio). Ao se ligar o
sistema, como indicado na introdução, e começar a redução das espécies
metálicas, pode-se acompanhar o processo pela presença do sinal catódi-
184
co. Enquanto houver este sinal haverá espécies metálicas oxidadas. Quan-
do as espécies metálicas estiverem reduzidas, o sinal não aparece na curva
de polarização e a redução pode ser interrompida. Além do aço, outros
metais também podem ser tratados da mesma forma, como cobre e prata.
Para estes os sinais catódicos se encontram em -0,1 V e - 0,75 V vs EPH
respectivamente.
Conclusões

História da Arte Técnica


Os métodos eletroquímicos de análise são muito eficientes como auxilia-
res na restauração de bens culturais em metal. Ao permitirem um moni-
toramento do processo de restauração por redução eletroquímica ou ao
permitirem um monitoramento das reações eletroquímicas, eles dão ao
restaurador uma metodologia segura em seu trabalho.

Ciência & Conservação


_________
Referências
DEGRIGNY, C. J Solid State Electrochem (2010) 14:353–361

GENTIL, V. Corrosão. Editora LTC. Rio de Janeiro, 2003.

WOLYNEC, S. Técnicas eletroquímicas em corrosão. Edusp. São Paulo, 2005

185
Amidos Pré-Históricos em mós do Sítio
Arqueológico Caixa D’água, de Buritizeiro/Mg:

História da Arte Técnica


abordagem Arqueobotânica no Cemitério do
Holoceno Médio

André Prous - FAFICH-UFMG e Mission Archéologique Française du


Minas Gerais; Dr. Fábio Freitas - pesquisador da Embrapa; Luiz Antônio

Ciência & Conservação


Cruz Souza - EBA-UFMG; Maria Jacqueline Rodet - FAFICH-UFMG;
Selma O. G. da Rocha - técnica do LACICOR; Gabriel Sousa de Pádua -
graduando em Ciências Sociais, FAFICH-UFMG

Resumo
Apresentaremos aqui a metodologia e análise de peças líticas identificadas como mós do
sítio arqueológico “Caixa d’Água”, às margens do Rio São Francisco no município de
Buritizeiro, estado de Minas Gerais, que foram escavadas pelo Setor de Arqueologia do
Museu de História Natural (MHNJB-UFMG) e analisadas no Laboratório de Ciências da
Conservação (LACICOR, EBA – UFMG). As mós, encontradas em estruturas funerárias
datadas por volta de 6.400 e 5.000 AP¹, foram utilizadas por populações pré-históricas
e apresentaram vestígios vegetais, com destaque para o amido. São, portanto, um dos
mais antigos registros de micro-vestígios alimentares na pré-história do Brasil. Amostras
precedentes de tais mós foram observadas em microscópio de luz polarizada e também
em microscópio eletrônico de varredura, evidenciando presença de vários tipos de amidos.
Os grãos de amido possuem características distintas para os diferentes tipos de espécies
vegetais, tornando possível identificar espécies coletadas, manejadas, cultivadas ou de outra
forma trabalhadas por aqueles grupos humanos.
Palavras-chave: pré-história; arqueologia; arqueobotânica; amido
Abstract
We present here the methodology and analysis of lithics identified as grindstones from the “Caixa d’Água”
archaeological site, located aside the Sao Francisco River in Buritizeiro town, Minas Gerais state, which
whom were excavated by the Prehistoric Archaeology Sector of the Natural History Museum from the
Federal University of Minas Gerais (MHNJB-UFMG), and were analyzed in the Conservation Sciences
Laboratory (LACICOR). The grindstones, found in burial structures dated from around 6,400 – 5,000
BP, were used by the prehistoric populations and presented plant remains and traces, especially starch.
They are, therefore, one of the most ancient records of alimentary micro-vestiges in Brazilian prehistory. 186
Samples from that grindstones were observed in polarized light microscope, and also in scanning electron
microscope, showing us the presence of a variety of starches, making it possible to identify the species
collected, manipulated, cultivated or somehow managed by those human groups
Key words: prehistory; archaeology; archaeobotany; starch
Introdução
O sítio arqueológico Caixa d’Água situa-se no município de Buritizeiro,

História da Arte Técnica


Minas Gerais (região centro-norte), na margem esquerda do Rio São
Francisco (em seu curso alto-médio, a 50 km de onde o Rio das Velhas
reforça-o). Na margem oposta temos a cidade de Pirapora. O sítio está
próximo às corredeiras do rio, num topo de soerguimento de arcósio,
protegido das cheias. O Setor de Arqueologia Pré-Histórica do Museu
de História Natural e Jardim Botânico, da Universidade Federal de Minas

Ciência & Conservação


Gerais, realizou escavações arqueológicas no local entre os anos de 2005
e 2009. O sítio Caixa d’Água, a céu aberto, revelou um cemitério pré-
histórico onde foram exumados 44 sepultamentos, datados entre 6 400
a 5000 Antes do Presente¹, situando-se no período do Holoceno médio.
Grupos humanos que ali viveram aproveitavam as rochas disponíveis
localmente em várias atividades diferentes, podendo empregá-las em sua
indústria lítica, em seus rituais funerários, etc. Vários tipos de artefatos
foram encontrados, também feitos em diferentes matérias primas, como no
caso das pontas de osso. Blocos de arcósio acompanhavam os esqueletos,
sendo os mesmos dispostos na parte superior da sepultura chamados de
“lajes”. Nas fossas dos sepultamentos, destacam-se alguns instrumentos
líticos depositados com os mortos que apresentam marcas evidentes de
trabalho humano, como depressões, picoteamento ou polimento, podendo
ter sido utilizados como bigorna ou mó, para processar alimentos e outros
usos.
Nossos objetivos ao investigar em laboratório as peças líticas arqueológicas
provenientes dos sepultamentos são determinar seu uso e conhecer mais
da alimentação desses grupos pré-históricos. Para isso, a análise é toda
feita no Laboratório de Ciências da Conservação (LACICOR), da Escola
de Belas Artes da UFMG. É importante aqui ressaltar que as peças líticas
selecionadas não foram lavadas e permaneceram reservadas no MHNJB 187
após a escavação, e quando manipuladas no LACICOR trabalhamos em
ambiente sem contaminação, com mãos limpas e luvas sem presença de
talco.
Metodologia
Amostras procedentes de várias peças foram estrategicamente
selecionadas, havendo coleta de material por raspagem, montando-se
dispersões em lâminas de vidro a fim de observação em microscópio de

História da Arte Técnica


luz polarizada, e também em microscópio eletrônico de varredura, onde o
material foi retirado das mós através de decalque. A partir das observações,
investigamos os grãos de amido.
. Etapas do procedimento
Para observação no microscópio eletrônico de varredura:

Ciência & Conservação


1) Retirada do material aderido às mós, através de decalque;
2) Observação do material aderido ao decalque em microscópio
eletrônico de varredura, onde observamos os grãos de amido
tridimensionalmente, podendo observar sua forma e tamanho, podendo-
se assim inserir a espécie de planta mais provável a que pertence;
Para observação no microscópio ótico de luz polarizada:
1) Retirada através de raspagem de camadas gradativas de sedimento
da superfície das mós, a fim de confirmação da presença de amido aderido
as mós e descarte de contaminação.

2) Observação de amido em microscópio ótico de luz polarizada, o


qual permite identificar padrões típicos de alguns amidos (observação de
cruzeta no meio do grão).
. Montagem de dispersões
A montagem de uma dispersão consiste em suspender as partículas que
se quer analisar em um meio resinoso transparente com índice de refração
conhecido, preparada numa lâmina de vidro própria para microscopia.
Existem vários tipos de materiais que podem ser analisados através dessa
técnica, que é correntemente utilizada no LACICOR, e de acordo com 188
SOUZA (1986).
Neste trabalho com as mós, o sedimento aderido às peças arqueológicas
foi pontualmente retirado apara análise, em uma escolha estratégica
que leva em consideração aspectos da forma da mó, com atenção para
os estigmas de trabalho humano, como picoteamento, polimento, e é
claro, as depressões. Trabalhando sob um estereomicroscópio, escolhe-
se o ponto de retirada e parte-se para a raspagem do sedimento, camada
por camada, usando um micro-bisturi e uma espátula metálica de ponta

História da Arte Técnica


fina. Podemos pensar aqui numa micro-estratigrafia do sedimento. Feito
isso, o sedimento coletado é então colocado sobre uma gotícula de resina
termoplástica numa lâmina de vidro. Assim depositados, a lâmina é
colocada sobre uma chapa aquecida para que a resina se funda englobando
os vestígios sedimentares. Sobre a resina é colocada uma lamínula de vidro
para observação microscópica, e a resina se espalha, por capilaridade, no

Ciência & Conservação


espaço lâmina-lamínula, e ainda, pressionamos ligeiramente a lamínula
com um lápis-borracha, formando-se assim uma dispersão do sedimento
no meio resinoso. Após o resfriamento (e, portanto, solidificação da
resina), os micro-vestígios estão prontos para serem observados sob um
microscópio de luz polarizada.
. Materiais e equipamentos utilizados
Placa aquecedora (mantida a 90-95°C)
Bisturi de ponta fina
Agulha de fio de tungstênio
Lâminas de vidro para microscopia
Lamínulas para microscopia
Resina Aroclor ou resina Cargille Meltmount para dispersão
Espátula metálica de ponta fina
. A observação no microscópio de luz polarizada
Com este tipo de análise, podemos observar os micro-vestígios
nas dispersões montadas. Existe uma grande variedade de material
sedimentar, que no momento não são de maior interesse para uma
análise arqueobotânica. Uma característica do amido é que sob o recurso 189
de polarização cruzada, o mesmo fica em evidência na amostra quando
a grande maioria dos outros tipos de matéria não é observável. Assim,
facilita-nos a localização e observação do amido, que possui uma cruzeta
no meio do grão como um de seus padrões típicos. Este microscópio
possui lentes com variados aumentos, e utilizamos os seguintes: 10x, 20x
e 40x.
Comparamos as imagens selecionadas dos amidos encontrados com
imagens de bancos de dados arquebotânicos e outros, nacionais e

História da Arte Técnica


internacionais. A literatura especializada nos dá um aporte em praticamente
todas as etapas desse processo de investigação.
Resultados
Feita a retirada gradativa de camadas da superfície das mós, foi gerada uma
lâmina com dispersão para cada camada. Não foi observado amido nas

Ciência & Conservação


camadas mais externas, então se pode descartar contaminação de fonte
externa para a presença de amido nas peças. O amido foi observado nas
camadas mais internas, sendo assim oriundo de manipulação antiga. As
mós foram utilizadas para manipulação de espécies vegetais, e o amido
presente deve ser melhor identificado no futuro.

190
Fig1. Foto de uma mó (notar concavidade característica)
História da Arte Técnica
Ciência & Conservação
Fig2. Imagens de grãos de amido feitas no microscópio eletrônico de varredura

Fig3. Amido observado no microscópio de luz polarizada, com o polarizador cruzado

Conclusões
As superfícies das mós, utilizadas para trituração de gêneros alimentícios, 191
apresentaram vestígios vegetais, particularmente, amido. A forma e o
tamanho de grãos de amido possuem características distintas para as
diferentes espécies vegetais, tornando-se possível, a partir deles, identificar
as espécies coletadas, cultivadas ou de maneira geral manipuladas por
aquelas populações pré-históricas.
Ou seja, vemos aqui um dos mais antigos registros de micro-restos
vegetais alimentares da Pré-História brasileira, em níveis que datam em

História da Arte Técnica


mais de 5.000 anos.
___________
Referências
BABOT, María del Pilar. Tecnología y utilización de artefactos de molienda en el noroeste prehispánico.
Tese de doutorado em Arqueologia, Universidad Nacional de Tucumán, Argentina, 2004.

Ciência & Conservação


PERRY, Linda. Protocolo para extração de grãos de amido de vestígios arqueológicos. Laboratório de
Arqueobotânica,Smithsonian National Museum of Natural History, EUA.

PROUS, André. Arqueologia Brasileira. 2ª edição, Ed. UNB, 2003.

SOUZA, Luiz A. C. Evolução da Tecnologia de Policromia nas Esculturas em Minas Gerais no Século
XVIII: O interior inacabado da Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição, em Catas Altas do Mato
Dentro, um monumento exemplar. Tese de doutorado em Química, ICEx-UFMG, 1986.

MAZOYER, Marcel & ROUDART, Laurence. História das agriculturas no mundo. Ed. UNESP, 2009.

192
Documentação Científica por Imagem de
Bens Culturais: Estudo de Caso dos Painéis

História da Arte Técnica


Guerra e Paz de Candido Portinari

Alexandre Cruz Leão

Ciência & Conservação


EBA-UFMG

Hélio Alvarenga Nunes Doutorando


PPGA-EBA-UFMG

Bárbara Mesquita dos Santos Gomes; Flávia Alves de Alcântara; Nathália Vieira Serrano
Graduandas EBA-UFMG
Resumo
A documentação científica por imagem abrange a geração de imagens por meio de diversas
técnicas, a saber: luz visível com gerenciamento de cores, fluorescência de ultravioleta,
infravermelho, radiografia X e outras. Esse artigo trata da geração de imagens digitais em alta
resolução utilizando luz visível com gerenciamento de cores realizada nos painéis Guerra
e Paz de Candido Portinari, do processamento dos arquivos por meio de computadores
e softwares específicos, do armazenamento e da disponibilização das mesmas por meio
eletrônico ou impresso. Em todas as etapas o uso de ferramentas de gerenciamento de
cores foi adotado com o propósito de garantir consistência cromática do objeto original
(bem cultural) e a imagem geradas.
Palavras-chave: documentação, fotografia, alta resolução, gerenciamento de cores, Guerra
e Paz, Portinari
Abstract
The cientific idocumentation by imaging covers various techniques: visible light with color management,
Ultraviolet fluorescence, infrared, x-ray X and others. This article deals with the generation of high
resolution digital images using visible light with color management held in the painting War and Peace of
Candido Portinari, by the processing of files by means of computers and software, storage and provision of
the same through electronic or printed. At all stages the use of color management tools was adopted with
the purpose of ensuring the object’s original chromatic consistency (and cultural) and the generated image
Key words: documentation, photography, high resolution, color management, war and peace, Portinari.
193
Introdução
A documentação cientifica por imagem1 é um instrumento de trabalho que
vem sendo usado pelos Conservadores-Restauradores não só como uma
forma de registro documental, mas como um meio de análise, reflexão e
tomada de decisões sobre a obra em questão. Dentre as diversas técnicas
de documentação esse artigo aborda a geração de imagens digitais por
meio da luz visível e com o uso de gerenciamento de cores, tendo a obra
Guerra e Paz de Portinari como estudo de caso. As imagens digitais podem

História da Arte Técnica


ser obtidas por diferentes dispositivos de aquisição, tal como câmera
fotográfica ou scanner; visualizadas em monitores de computadores,
e por fim impressas, conforme Figura 1. Para cada uma dessas etapas
é fundamental o uso de ferramentas de gerenciamento de cores com
o propósito de manter as cores consistentes ao longo do processo em
relação ao objeto original.

Ciência & Conservação


Figura 1. Dispositivos de aquisição de imagem digital (digitalização), visualização e
impressão.

A compreensão de alguns conceitos e o entendimento das principais


variáveis que compõem o Sistema de Gerenciamento de Cores é
fundamental para um bom resultado, a saber: formato de arquivo, modelos
e espaço de cores, a composição básica do gerenciamento de cores e a
geração de perfis de cores.
Formatos de arquivos
O formato do arquivo é a primeira etapa para qualquer processo de
digitalização. Quando as imagens são capturadas, é importante gerar
arquivos digitais com a melhor qualidade possível, vislumbrando aplicações
futuras. Falhas nessa etapa poderão, certamente, comprometer a qualidade
de todo o processo e a única forma de recuperar a qualidade é refazendo
todo o processo.
Os formatos mais comumente adotados pelos equipamentos fotográficos
são: RAW, TIFF e JPEG, sendo o RAW e JPEG mais utilizados. O
formato RAW está em expansão por possibilitar melhor aproveitamento 194
dos dados capturados na etapa de processamento e também permite o
processamento não destrutivo do arquivo original.
Modelo e espaço de cores RGB
O modelo de cor permite especificar numericamente os atributos
percebidos da cor (LEÃO, 2005). Por exemplo, no modelo de cores
RGB2 cada cor é definida em termos de três números: o primeiro é a
quantia de R (vermelho), o segundo de G (verde) e o terceiro de B (azul)
(FRASER, 2005). Cada modelo de cores, como RGB, Lab3 ou CMYK4

História da Arte Técnica


representa um método diferente para descrever a cor. O espaço de cores
é uma variante de um modelo de cores e tem um gamut5 específico de
cores. Por exemplo, no modelo de cores RGB, há dois modelos mais
utilizados pelas câmeras fotográficas, como: sRGB e Adobe RGB (1998).
Cada dispositivo, como equipamentos de digitalização, monitores ou as
impressoras, tem um espaço de cores próprio. Quando uma imagem é
enviada de um dispositivo para outro, as cores podem ser alteradas, porque
cada dispositivo interpreta os valores RGB ou CMYK de acordo com o seu

Ciência & Conservação


próprio espaço de cores. O uso de gerenciamento de cores pode garantir
que a maioria das cores sejam as mesmas, ou semelhante o suficiente, de
forma a manter a consistência cromática entre os dispositivos (ADOBE,
2008)
O modelo de cor uniforme CIELAB foi definido pela CIE (Comission
Internationale de l’Eclairage, ou International Commission on
Illumination, ou ainda Comissão Internacional de Iluminação) como
tentativa de aumentar a uniformidade das cores percebidas pelo sistema
visual humano. O modelo de cor CIELAB funciona como um tradutor
universal de línguas entre os dispositivos, permitindo controlar as cores
que passam de um dispositivo para outro, correlacionando os valores em
RGB ou CMYK com os valores em L* a* b*. A Figura 2 representa o
modelo de cor CIELAB.

195
Figura 2. Modelo de cor CIELAB.

A Composição Básica do Gerenciamento de Cores


- Espaço de conexão de perfis (PCS – Profile Connection Space): é
o padrão para medir e definir a cor utilizada nos modelos de cores. É
fornecido à cor um valor numérico não ambíguo dentro do modelo de
cor, que é independente da maneira utilizada pelos dispositivos para

História da Arte Técnica


reproduzirem as cores.
- Perfil: descreve a relação entre os valores numéricos do sinal em RGB
ou CMYK e os valores correspondentes para o espaço de cor L*a*b*, ou
seja, ele define os valores em CIELAB correspondentes aos valores de
RGB ou CMYK.
Os perfis de dispositivos são divididos em três classes:

Ciência & Conservação


- Perfis de entrada: para dispositivos como os scanners e câmeras digitais.
- Perfis de exibição: para dispositivos como os monitores e projetores.
- Perfis de saída: para dispositivos como as impressoras jato de tinta,
impressoras a laser, copiadoras, gravadoras de filme e impressoras gráficas.
- Módulo de Gerenciamento da Cor (CMM - Color Management Module):
é a parte do Sistema de gerenciamento de cores que realiza a conversão
dos valores de RGB ou CMYK usando os dados contidos nos perfis.
- O objetivo de acabamento (Rendering Intents) define a forma de
conversão das cores que estão dentro e/ou fora do gama de cores do
dispositivo de destino.
• Geração de Perfis de Cores:
Para Monitores:
O processo de geração de perfil do monitor é feito pela comparação de
valores conhecidos com os valores medidos. As cores são enviadas para o
monitor pelo programa de geração de perfil com valores RGB conhecidos
e os compara com os valores obtidos pelos dispositivos de medição,
conforme Figura 3.

196

Figura 3. Colorímetro para geração de perfil em monitores.


Para Aquisição de Imagens:

História da Arte Técnica


A geração de perfil de entrada é dividida em dois grupos: scanner e
câmeras fotográficas digitais.
A geração de perfil de entrada depende sempre de duas componentes:
- A cartela física de referência de cores.
- Um arquivo com descrição da cartela (TDF – Target Description File),

Ciência & Conservação


contendo os valores de referência para cada amostra de cor da cartela.
As cartelas de referência mais comuns para câmeras digitais são as
ColorChecker com 24 amostras, conforme Figura 4.

Figura 4. ColorChecker 24 amostras.

Para Impressão:
A geração de perfil para impressão possibilita descrever o comportamento
do dispositivo, considerando o tipo do papel, as características das tintas,
a temperatura ambiente, umidade relativa do ar e a fonte de luz na qual a
imagem será observada.
Com o uso de programa específico é possível gerar o perfil de cores
para impressão a partir de diferentes padrões de amostragem de cores,
conforme Figura 5.
197
História da Arte Técnica
Ciência & Conservação
Figura 5. Padrões de impressão de amostras de cores para geração de perfil de cores.

Estudo de Caso: Guerra e Paz


Na documentação cientifica por imagem dos painéis Guerra e Paz de
Candido Portinari, foi criada uma metodologia de tratamento específica
em virtude das características dos painéis, dos problemas gerados por essas
características e pelo espaço onde estes foram fotografados. Os painéis
foram pintados pelo artista entre os anos de 1952 e 1956, no estado do Rio
de Janeiro, Brasil. A técnica construtiva é óleo sobre contraplacado naval e
as dimensões do painel Guerra são 1400 x 1058 cm e do Paz é 1400 x 953
cm. Estes possuem uma particularidade em sua construção: cada painel é
dividido em 14 sub-paineís, totalizando juntos 28 sub-painéis. Os painéis
Guerra e Paz foram doados à ONU após sua execução e atualmente
são expostos no salão de entrada da sua sede em Nova York, Estados
Unidos. Porém, para sua restauração, eles foram trazidos ao Brasil, sob
responsabilidade do Projeto Portinari. A restauração aconteceu entre os
meses de fevereiro e maio de 2011, no mezanino do Edifício Gustavo
Capanema, Rio de Janeiro. Na metodologia criada para a documentação
cientifica por imagem dos Painéis os mais importantes processos
aplicados durante o tratamento foram o gerenciamento de cores, o ajuste
de luminosidade na obra e a correção da mesma no processamento. Este
artigo se refere à documentação realizada após o término da restauração 198
dos referidos painéis, em Maio de 2011.
. Trabalho de Campo
Para o trabalho de documentação a equipe do iLAB - Laboratório de
Documentação Científica por Imagem da UFMG foi até o Rio de Janeiro,
levando todos os equipamentos necessários. O trabalho de captura das
imagens foi feito no mesmo local da restauração.
As câmeras utilizadas foram a Nikon D700, 12,8 Mega pixels; e a
BetterLight, 384 Mega pixels. Esse artigo apresenta informações de

História da Arte Técnica


geração de imagens referentes às duas câmeras, sendo, portanto a etapa
de processamento apresentada especifica das imagens obtidas pela Nikon
D700.
Ao chegar ao mezanino, um setup foi montado de acordo com as
exigências requeridas pelo trabalho e os equipamentos a serem usados.
Esse setup consistiu em adaptações no local de geração de imagens. A
primeira adaptação foi criar barreiras que impedissem a entrada de excesso

Ciência & Conservação


de luz. Isso acontecia porque em toda a extensão do mezanino havia janelas
que iam do chão ao teto. Essas barreiras foram feitas com estruturas de
madeira sobre as paredes existentes e posteriormente cobertas, junto
com as paredes, por TNT preto. Outra adaptação foi a cobertura do chão
imediatamente abaixo do painel a ser fotografado com TNT preto para
impedir reflexos indesejáveis vindos de seu brilho.
Por medida de segurança, cancelas de metal e placas de aviso foram
posicionadas nas entradas do espaço para diminuir a circulação de pessoas
no local de documentação. O público que frequentava o mezanino, uma
vez que a restauração foi aberta a visitação, foi orientado a não usar flash ao
fotografar, pois essa incidência de luz repentina interferia no processo de
escaneamento quando se utilizava a câmera com o dispositivo BetterLight.
A equipe de conservação também recebeu orientações sobre como agir
durante o processo, como não circular no local de documentação sem
a devida autorização e não posicionar luzes (utilizadas no trabalho de
restauração) na direção do espaço de geração de imagens.
Antes da documentação dos sub-painéis houve uma preparação dos
equipamentos usados. Para a movimentação dos sub-painéis, antes,
durante e depois de serem fotografados, foi usado um carrinho – estrutura
de metal com rodas – que já era de uso dos restauradores. Esse carrinho
teve de ser adaptado para o uso da equipe de documentação. A fixação dos
sub-painéis à estrutura foi feita através de fitas-lacre e travas de madeira
foram presas ao carrinho para garantir seu nivelamento na posição vertical,
conferido posteriormente com auxilio de um nível. É importante ressaltar
que todo o trabalho de movimentação dos sub-painéis foi realizado pela 199
equipe de restauração presente.
Devido ao tamanho dos sub-painéis, 200 x 500 cm aproximadamente,
estes foram fotografados em fatias. Cada sub-painel foi fotografado em
4 fatias unidas posteriormente durante o processamento. Essa união
dependia de áreas de sobre posição em cada fatia. Cálculos prévios foram
feitos para estabelecer o tamanho necessário dessas áreas de sobreposição.
Estabelecidas essas medidas, foram feitas marcações no chão e no
carrinho de modo que a movimentação do sub-painel para o próximo
ponto de fotografia pré-estabelecido fosse rápida e precisa, mantendo o

História da Arte Técnica


alinhamento com as câmeras.
A iluminação dos sub-painéis foi feita com dois tripés de luz, sendo que
cada tripé continha três cabeças de luz e cada cabeça seis lâmpadas de
5000 kelvin6 . Esses tripés foram posicionados nas laterais do sub-painel
sendo fotografado, num ângulo de 45º, proporcionando uma iluminação
cruzada na qual o tripé esquerdo iluminava o lado direito do sub-painel e
o tripé direito iluminava o lado esquerdo.

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Para o alinhamento da câmera com centro da fatia a ser fotografada foi
usado um laser. O equipamento era posicionado no centro da fatia, e o
facho de luz que saia deste deveria ir ao centro da objetiva da câmera e
por reflexão, retornar ao local de incidência. A câmera era ajustada pelas
regulagens do tripé de forma que o facho encontrasse o centro da objetiva.
O centro e as extremidades de todas as fatias foram fotometrados de
forma a certificar a homogeneidade da distribuição da luz ao longo da
área a ser fotografada.
Por fim, a cartela de referência cromática ColorChecker7, produzida
pela X-Rite, era posicionada no centro da área fotografada, sendo uma
fotografia com a cartela e outra sem. A imagem com a cartela funciona
como referencia para ajustes cromáticas e geração de perfil, sendo esses
processamentos aplicados em seguida na imagem sem a cartela.
Depois de todas essas adaptações e preparações, todos os sub-painéis
foram fotografados no Rio de Janeiro, finalizando assim, o trabalho de
captura das imagens que se estendeu por dez dias. A partir daí começou a
etapa de processamento das imagens no iLAB na UFMG.
Metodologia de processamento das imagens
Para o processamento das imagens foram utilizados dois computadores
preparados para tratamento de arquivos de grande tamanho em bytes. Os
monitores dos dois computadores foram submetidos à calibragem com
equipamento Eye one Pro.
A primeira parte do processamento foi realizada no software ACR - Adobe 200
Camera Raw, parte do Photoshop 32 Bits.
As imagens, em formato NEF (formato RAW das câmeras Nikon), foram
abertas no ACR através da aplicativo Bridge (Br) do programa Photoshop,
pelo atalho em sua barra superior. Este programa possibilita o acesso aos
arquivos de acordo com sua organização em disco.
Para iniciar o processamento foi selecionada a imagem em NEF da
primeira fatia do sub-painel que continha as cartelas de referência. Então
foram conferidos os dados na base da interface do programa, sendo que a

História da Arte Técnica


configuração ajustada foi a seguinte: Imagem 300 ppi, 16bits, Adobe RGB
(1998).
O próximo passo foi o ajuste de Balanço de Branco8. Para essa etapa a
visualização da imagem foi ajustada para 100% e a ferramenta “Conta
Gotas” foi acionada. O procedimento consistiu em clicar sobre o quarto
cinza da cartela de referência, contando da esquerda para a direita, para um
ajuste automático do programa.

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Posteriormente, através das ferramentas Exposure, Blacks e Brightnes é
feito um ajuste do Preto em 52 e do Branco em 243, ambos priorizando
o canal G (Green). A conferência dos valores foi feita posicionando o
mouse, ainda com a ferramenta “Conta Gotas” acionada, sobre e Branco
e posteriormente sobre o Preto para que os números alcançados fossem
mostrados no alto do canto direito da interface do programa. A variação
aceitável para essas cores era: 51 a 53 para o Preto; e 242 a 244 para o
Branco.
Para o ajuste de distribuição de luz foram marcados cinco pontos sobre a
imagem usando a ferramenta “Color Sample”. Esses pontos deveriam ser
escolhidos de áreas brancas sem sujidades ou brilho especular no centro
e nas extremidades da imagem. Para facilitar o trabalho e garantir áreas
de referência de branco, foram utilizadas as áreas brancas das cartelas de
foco da câmera Beterlight, presentes na imagem junto com a cartela de
referência Colorchecker. A correção foi aplicada utilizando a ferramenta
“Lens Correction”, com “Amount” em +15 e “Midpoint” 0.
Outro ajuste de distribuição de luz foi aplicado, agora utilizando a
ferramenta gradiente. Com essa ferramenta foram criados quatro
gradientes diagonais, sobre os quatro cantos da imagem, começando
pela extremidade até chegar próximo ao centro, sem contudo atingir a
porção central que continha a cartela de referência. Então a “Exposure”
foi ajustada até que os valores RGB dos pontos de referência marcados
nas cartelas das extremidades da fatia atingissem os valores encontrados
no ponto central.
Nesse momento todas as alterações foram salvas num arquivo de pressets,
201
na pasta “ACR Settings”. Para finalizar foi escolhida a opção “Done” e o
programa ACR foi fechado.
A próxima etapa foi a Sincronização das imagens ajustadas que continham
as cartelas de referência e as imagens sem cartela, novamente pelo ACR.
Para tal ação foram selecionadas todas as imagens relacionadas ao sub-
painel em tratamento, com e sem cartela de referência de cor. Então
foram selecionadas as opções “Open” – “Select All” – “Syncronize” –
“Everything”. Dessa maneira todos os ajustes feitos na primeira fatia

História da Arte Técnica


que continha a cartela de referência foram aplicados às demais imagens
referentes ao mesmo sub-painel.
Todos os sub-painéis apresentavam uma fatia com borda bege
correspondente à moldura bege apresentada pelo Painel unido. A etapa
seguinte do processamento foi a conferência de distribuição de luz nessa
borda pela marcação de três pontos, um na parte superior, um no centro
e um na parte inferior da borda, com a ferramenta “Color Sample”. Se na

Ciência & Conservação


comparação dos valores desses pontos acusasse uma diferença além do
limite de R: entre 232 e 234, G: 226 e 228, B: 215 e 217, essa era corrigida
através de um dos gradientes diagonais criados nos primeiros ajustes.
Durante a geração das imagens foi percebida uma variação na distribuição
de luz sendo esta mais intensa no lado esquerdo da imagem gerada. Para
corrigir essa alteração foi criado um gradiente horizontal do lado esquerdo
com “Exposure” a (-0,20), ou no valor necessário, sobre todas as fatias sem
cartela de referência, com exceção da primeira do sub-painel em questão.
A terceira etapa do processamento consiste na Geração de Perfil de Cor.
Para isso as imagens que já estavam abertas no ACR foram abertas no
Photoshop.
Foi feita uma redução de saturação inicial. Esse procedimento foi realizado
selecionando as opções “Image” – “Adjustments” – “Hue/saturation”, e
atribuindo o valor (-3).
Para geração do perfil de cor foi selecionada apenas a porção da imagem
que continha a cartela de referência através da ferramenta “Crop”. As
cores da cartela foram verificadas para conferir se possuíam algum tipo de
sujeira ou algo que poderia interferir na leitura. Caso algo fosse encontrado
a ferramenta “Clone” seria utilizada para homogeneizar a referência de
cor a partir de uma parte desta que não apresentasse problema. Então
foi selecionada a ferramenta “InCamera” a partir do menu “Filter” –
“PictorColor”. Após o ajuste dos campos de referência o programa gerava
o perfil automaticamente e esse perfil era salvo na pasta correspondente
sob o nome de “GuerraPaz_Apos Rest_nome da fatia do subpainel”, ex: 202
GuerraPaz_D700_AposR_G10-1. O arquivo com a cartela de referência
em evidencia não foi salvo. Foram gerados 4 perfis de cor para cada sub-
painel, um para cada fatia.
A aplicação do perfil foi realizada ainda no programa Photoshop 32 bits.
As fatias sem cartela de referência foram abertas nesse programa e foi
selecionado o perfil correspondente através do menu “Edit” – “Assign
profile”. Então o perfil assimilado foi convertido através do menu “Edit”
– “Convert to profile” para o espaço de cor Adobe RGB (1998).
As fatias já com perfil aplicado foram cortadas em cima e em baixo com a

História da Arte Técnica


mesma sobra de fundo em relação à extremidade do painel, entre 1 e 2 cm
de acordo com a sobra disponível.
Os arquivos foram salvos no formato TIFF nas pastas correspondentes,
no caso “C:\GuerraPaz_AposRest_CopiaTrabalho\D700_TIFF_perfil\
D700_G(ouP) xx_TIFF_perfil”, sob o nome de GuerraPaz_D700_painel-
sub-painel_perfil. Exemplo: GuerraPaz_D700_G10-2_perfil.

Ciência & Conservação


A quinta e última parte do processamento das imagens realizada foi a
união das fatias para formação do sub-painel. Esse procedimento também
foi realizado no Photoshop através do menu “File” – “Automate” –
“Photomerge”. As imagens eram selecionadas por meio do Browse, a
alternativa de união escolhida após vários testes foi a “Cylindric”, e na
porção inferior da janela foram selecionadas as opções “Blend Image
Together” e “Geometric Distortion Correction”. O programa então fazia
a união automática das imagens a partir da sobreposição existente entre
elas, mantendo cada uma das fatias em layers separadas.
Foi feita uma avaliação da junção selecionando “layers” descontinuas nas
visualizações a 25, 50 e 100%, para conferir possíveis degraus no centro
e extremidades da união. O tamanho final do sub-painel foi fixado em 31
cm de altura e 74,8 cm de largura. Foram também posicionadas 4 linhas-
guia para delimitar a área do painel e para detectar possíveis inclinações e
deformações nas arestas da imagem formada.
Os sub-painéis enfim foram salvos com “layers” separadas na pasta
correspondente:“C:/GuerraPaz_AposRest_Copia Trabalho/D700_
TIFF_PaineisMontados” sob o nome de GuerrPaz_D700_ sub-painel_
PM. Exemplo: GuerrPaz_D700_G10_PM.

Gerenciamento de Dados
Durante todo o trabalho realizado, foi feito um gerenciamento de arquivos
rígido e minucioso. Um computador do iLAB foi levado para o Rio de
Janeiro para realização do descarregamento, definição de nomeclatura 203
e organização das imagens. Era de grande importância que cópias de
seguranças fossem mantidas e monitoradas constantemente. Três cópias
de segurança eram mantidas, sendo que uma permanecia no computador
em questão e as outras eram salvas em 2 HDs externos.
Devido ao grande volume de imagens geradas em campo – e tendo em
vista também a futura produção volumosa de novos arquivos durante
o processamento – foi desenvolvida uma nomenclatura específica para
os arquivos gerados. Um exemplo dessa nomenclatura é: “GuerraPaz_

História da Arte Técnica


D700_G04-2”, sendo que “GuerraPaz” diz respeito à obra documentada;
“D700” diz respeito à câmera utilizada para a captura da imagem; “G”
corresponde ao painel Guerra; “04” corresponde ao sub-painel e “2”
corresponde à fatia fotografada.
Esta nomenclatura era aplicada durante o descarregamento das fotos no
computador, realizado através do software Adobe Photoshop Lightroom9.
Nesta nomenclatura foram contempladas informações cruciais para que

Ciência & Conservação


as imagens fossem facilmente identificadas e organizadas, evitando ao
máximo o risco de sobreposição de imagens por nomeação inadequada. É
muito importante salientar que as fotos eram descarregadas do cartão de
memória para o computador e os HDs externos ao término da captura de
imagens de cada sub-painel. Esse procedimento foi tomado como medida
de segurança. Foi possível evitar, dessa forma, nomeações errôneas de
arquivos de sub-painéis diferentes e perdas de arquivos.
Foi desenvolvida também uma lista da ordem em que os sub-painéis foram
fotografados em relação ao dia de geração de imagem e ao sub-painel
anterior. Esta listagem demonstrou-se muito útil para análise posterior de
incidência de luz e sua intensidade, condições adversas de determinados
dias, etc.
No trabalho realizado em Belo Horizonte no iLAB, o gerenciamento de
arquivos foi realizado mantendo parâmetros similares aos utilizados no
trabalho desenvolvido no Rio de Janeiro. Algumas modificações foram
necessárias devido ao volume de arquivos trabalhados.
A primeira medida tomada foi a criação de cópias de trabalho. Foi
decidido que as três cópias de segurança mantidas no computador central
e nos dois HDs externos permaneceriam intactas. As alterações realizadas
nestas seriam apenas para atualização à medida que novos arquivos fossem
gerados. Essa cópia consistia nos arquivos gerados em campo com a
câmera D700, em formato NEF (RAW).
Na metodologia de processamento desenvolvida foi determinado que
as imagens seriam salvas em momentos diferentes do trabalho. Esse 204
procedimento aumentou em muito o número de arquivos criados e
movimentados, sendo necessária sua separação por pastas que, assim como
os arquivos, receberam nomenclatura específica, contendo informações
importantes para sua identificação e separação. Ao final existiam, então, 5
pastas correspondentes a estágios diferentes nos quais as imagens foram
salvas:
• GuerraPaz_D700_G04-2.NEF - nomenclatura das imagens geradas
em campo. A terminação “NEF” diz respeito ao formato da imagem.
• GuerraPaz_D700_G04-2_perfil.TIF – nomenclatura correspondente

História da Arte Técnica


à primeira versão na qual o arquivo original é salvo. Neste estágio, o
perfil de cores criado foi assimilado à imagem sem a cartela.
• GuerraPaz_D700_G04_PM.TIF – nomenclatura correspondente
ao sub-painel montado. Aqui as imagens sem a cartela de referência
de todas as fatias passaram por todos os estágios de processamento e
foram unidas.

Ciência & Conservação


• GuerraPaz_D700_G04_PM_FOCO_CORTE.TIF – nomeclatura
correspondente à imagem do sub-painel montado com os ajustes de
nitidez realizados depois da união dos painéis e com o corte final.
• GuerraPaz_D700_G04_Borda_Legenda.TIF – nomeclatura aplicada
ao arquivo que contem a imagem do sub-painel montado com os
ajustes finais, uma borda preta de 0,5 cm e legenda localizada abaixo
do sub-painel com informações sobre a foto em questão.
Num gerenciamento de dados é também importante ter-se conhecimento
da dimensão numérica do projeto com o qual se lida. Dessa forma, existem
como valores iniciais do trabalho:
• 2 painéis (Guerra e Paz)
• 14 sub-painéis (montagem de cada painel)
• 4 fatias para cada sub-painel.
• 2 fotos por fatia, com e sem cartela.
Ao término do trabalho no Rio de Janeiro, encontram-se os seguintes
dados numéricos referentes aos arquivos gerados em campo:

205

Ao fim do trabalho como um todo, incluindo o processamento de todas


as fatias, a geração e a aplicação de perfil, e a união dos sub-painéis e dos
painéis, temos:
• Total de arquivos (etapa após restauração): aprox. 800
• Espaço ocupado em disco: 75 GB

História da Arte Técnica


Conclusão
A documentação cientifica por imagem, mesmo se tratando da mais comum
fonte de luz, a visível, fica claro que o procedimento quando se pretende
registrar as imagens com precisão cromática é bastante complexo. Com o
intuito de gerar imagens científicas, vários conhecimentos foram utilizados,
tais como: conceitos fotográficos, geometria, perspectiva, equipamentos

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de processamento e software; conhecimentos tecnológicos na área de
geração de imagem digital e na área de software de gestão de arquivos e
processamento, colorimetria aplicada à imagem, como por exemplo, o uso
adequado da cartela de referência cromática junto à obra no momento da
fotografia. Outra questão percebido nesse projeto foi o tempo gasto nas
etapas, pois em geral gasta-se 25% do tempo total na captura, 60% no
processamento e 15% na impressão. Neste projeto, devido à complexidade
do processamento e a grande quantidade de imagens geradas, o tempo
gasto foi divido em 5% para captura, 85% para processamento e 10%
para impressão, o que resultou num prazo de entrega muito maior do que
o gasto tradicionalmente.
Por fim o resultado foi muito satisfatório e é possível afirmar pelo uso da
colorimetria que a imagem gerada da obra faz referência com precisão ao
objeto original, o que é efetivamente um dos objetivos da documentação
científica por imagem de bens culturais.
_________
Notas

1. A documentação cientifica por imagem envolve qualquer tipo de imagem gerada em torno de uma
obra ou objeto estudado a fim de aprofundar os conhecimentos sobre este. Ela pode ser realizada
utilizando luz visível posicionada de diferentes maneiras em relação ao objeto associada ao uso de
sistemas de gerenciamento de cores, fotografia de fluorescência de ultravioleta, infravermelho, Luz
monocromática como a de vapor de sódio, radiografia X e outras.
2. RGB, Red, Green e Blue; que em português significa: vermelho, verde e azul, respectivamente.
3. O valor de luminosidade L* representa a variação de branco a preto, o valor de a* a variação de
verde a vermelho e o valor de b* a variação de azul a amarelo; analogamente à percepção das cores 206
pelo cérebro, ou seja, cores-opostas.
4. CMY, Cyan, Magenta, Yellow e Black; que em português significam: ciano, magenta, amarelo e
preto, respectivamente.
5. Em português: Faixa ou Intervalo. Traduzido pela Adobe em seu site oficial no Brasil – www.adobe.
com/br/.
6. Essa medida de 5000 kelvin é a estabelecida como a temperatura de cor da luz solar, sendo usada
então como referencia de iluminação natural.
7. Essa cartela de cor é fornecida pela empresa Kodak para auxiliar no gerenciamento de cor realizado

História da Arte Técnica


durante o processamento das imagens geradas. Essa cartela contém dezoito referencias de cores va-
riadas e uma escala de cinza de 5 pontos partindo do branco até o preto. Essas referencias são feitas
através concentrações de pigmento com valores de colorimetria padronizados.
8. O Balanço de Branco é um tipo de correção realizado para garantir que todos os pontos brancos
da imagem sejam representados com essa cor, regulando possíveis desvios para o cinza ou amarelo
provocados pela luz do ambiente na qual a imagem foi gerada.
9. O software Adobe Photoshop Lightroom além de permitir a organização dos arquivos, possibilita

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uma visualização rápida destes sem a necessidade de seu armazenamento no computador utilizado.
Ele também permite correções nas imagens.

_________
Referências
ADOBE. Utilização do Adobe Photoshop CS4, 2008. Disponível em: <http://help.adobe.com/
pt_br/Photoshop/11.0/Photoshop_cs4_help.pdf>. Acesso em: 01 dez. 2010.
FRASER, Bruce; MURPHY, Chris; BUNTING, Fred. Real World Color Management. Second Edi-
tion. Estados Unidos: Peachpit Press, 2005. 582 p.
GERRITSEN, Frans. Theory and Practice of Color. English translation by Ruth de Vriendt. Estados
Unidos: Biblioteca do Congresso, 1975. 179 p. ISBN 0-442-22645-4.
GONZALES, Rafael C.; WOODS, Richard E. Processamento de Imagens Digitais. São Paulo: Ed-
gard Blucher, 2000. 509 p. ISBN 8521202644.
GRANDIS, Luigina De. Theory and Use of Color. Translated by John Gilbert. New York: Harry N.
Abrams, Inc., 1986. 159 p. ISBN 0-8109-2317-3.
ICC. Disponível em: <http://www.color.org/>. Acesso em: 12 abr. 2004.
KING, James C. Why Color Management?. Disponível em: <www.imaging.org>. 2001. Acesso em:
17 nov. 2004.
LEÃO, Alexandre C. Gerenciamento de cores para imagens digitais. 2005. Dissertação (Mestrado em
Artes Visuais) - Escola de Belas Artes, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte.
OPTICAL, Spyder with. User Guide. Color Vision Inc., 2002. 1 CD-ROM. 207
PEDROSA, Israel. Da Cor à Cor Inexistente. 3a edição. Rio de Janeiro: Léo Christiano Editorial Ltda,
1982. 224 p.
TASI – Technical Advisory Service for Images. An Overview of Color Management. Disponível em:
<http://www.tasi.ac.uk/advice/managing/pdf/colour_manage.pdf>. Acesso em: 15 jul. 2011.
X-RITE. The Color Guide and Glossary. Disponível em: <http://www.xrite.com/ documents/lite-
rature/en/L11_029_color_guide_en.pdf>. Acesso em: 03 set. 2004.
História da Arte Técnica
Ciência & Conservação
Técnicas analíticas avançadas para o
estudo de têxteis

Ms. Soraya A. A. Coppola


Doutoranda PPGA-EBA-UFMG

Dr. Luiz Antônio Cruz Souza (orientador)


PPGA-EBA-UFMG

Resumo
Bens culturais feitos com materiais metálicos estão sujeitos a diversos mecanismos
de Propõe-se apresentar uma proposta de percurso para o estudo de tipologias têxteis,
enfocado através da catalogação e investigação científica de objetos têxteis, práticas
necessárias ao conhecimento, valorização e justa preservação e conservação dos tecidos.
Neste sentido, o percurso se constrói a partir de processos de investigações coordenados
e por análise de diferentes áreas de conhecimento que têm como base de pesquisa os
objetos tridimensionais, enfatizando as técnicas analíticas avançadas para o estudo dos
têxteis desenvolvidas no Laboratório de Ciência da Conservação - LACICOR/UFMG,
sob o acompanhamento do Prof. Dr. Luiz Antônio Cruz Souza e da química Profa. Dra. 208
Isolda Maria Mendes.
Palavras-chave: tecidos; investigação científica de objetos têxteis
Abstract
This object of this paper is propose a methodology for the study of textile typologies, focusing on practices
considered fundamental to the understanding, appreciation and proper preservation of fabrics, through
the cataloguing and scientific investigation of textile objects. The methodology prizes the coordinated
investigation and analysis of different areas concerned with the research into three-dimensional objects,
and relies on advanced analytic techniques for the study of textiles developed at LACICOR/UFMG
(Laboratory for the Science of Conservation), under the supervision of Dr. Luiz Antônio Cruz Souza
and chemist Dr. Isolda Maria Mendes.

História da Arte Técnica


Key words: fabrics; scientific investigation of textile objects

Introdução
As técnicas analíticas avançadas para o estudo de têxteis envolvem
diversos procedimentos que serão sempre confrontados com uma

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pesquisa histórica consistente e com as técnicas de produção utilizadas e
desenvolvidas desde a antiguidade.
O percurso que se pretende apresentar tem como estrutura exemplificativa
o estudo comparativo dos acervos têxteis, compostos por paramentos,
pertencentes aos museus arquidiocesanos de Mariana/MG e São Luís/
MA, dos quais foram removidas amostras para serem analisadas junto
ao Laboratório de Ciência da Conservação - LACICOR/UFMG, sob a
orientação do prof. Dr. Luiz Souza e participação da química Dra. Isolda
Maria Mendes.
O desenvolvimento dos estudos realizados junto aos acervos acima
citados iniciou-se com sua catalogação e inventário técnico-artístico, sendo
acompanhado pelas pesquisas e análises históricas e artísticas sobre os
tecidos, buscando esclarecer algumas questões relevantes para a discussão
dos tecidos em geral no universo da Historia da Arte. Assim, levantaram-
se os seguintes pontos: os tecidos como produtos proto-industriais
e industriais; os processos de produção e a questão da mecanicidade;
a história dos tecidos em Portugal; a questão da circulação dos tecidos
(principalmente no século XVIII) e do conhecimento técnico de sua
produção; além da real verificação da presença e produção dos tecidos no
Brasil.
Referida pesquisa foi acompanhada pelo levantamento de dados históricos
junto aos arquivos das Arquidioceses de Mariana, São Luís e em diversos
209
acervos e arquivos de Lisboa, que permitiram fazer diversas reflexões em
relação à produção de paramentos sacros.
Em seguida foram recolhidas amostras de alguns paramentos do acervo
de Mariana e de São Luís, os quais devem ser analisados cientificamente
através de técnicas avançadas, utilizada para o estudo dos têxteis. Esse
processo se encontra em discussão e desenvolvimento junto ao orientador
das análises e a química responsável.

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Proposta de percurso para o estudo de tipologias têxteis: o caso dos
acervos têxteis Arquidiocesanos de Mariana/Mg e São Luis do Maranhão
O acervo têxtil do Museu Arquidiocesano de Arte Sacra de Mariana1
- MAAS2 foi objeto de inventário oficial3 , realizado a partir de 2005

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(juntamente com o acervo da Igreja do Pilar de Ouro Preto), tendo sido
coordenado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
– IPHAN/13ª SR/MG e pela Escola de Belas Artes da Universidade
Federal de Minas Gerais.
Assim, partindo do estudo detalhado do acervo têxtil do MAAS de
Mariana, composto por paramentos do século XVIII e XIX, criou-se
uma possibilidade de referência para estudos e análises comparativas com
outros acervos têxteis, privilegiando sua tipologia formal (paramentos) e
focando em sua estrutura têxtil (materiais, tecnologia empregada, razões
de produção e influências culturais).
Este estudo aplica-se a outros acervos específicos, uma vez que a história
da Arquidiocese de Mariana se entrelaça (ou é entrelaçada) na história de
outras Arquidioceses brasileiras, na segunda metade do século XVIII,
principalmente, à da Arquidiocese do Maranhão, cujo acervo foi catalogado
para esta pesquisa, sendo produzido um banco de dados.
Sua justificativa se dá pela necessidade de se pesquisar o valor histórico,
técnico e artístico destes acervos, que se propõe através da construção
de processos de investigações coordenados, pelo confronto de análise
de diferentes áreas de conhecimento, objetivando a sistematização do
estudo e catalogação de objetos têxteis e sua aplicação como medida
de preservação e conservação passível de ser introduzida nos museus
brasileiros, o qual passará pelo crivo dos diversos métodos e metodologias 210
aplicados em alguns museus internacionais.
Em cada acervo foi selecionado um conjunto de peças, escolhidas por
sua provável produção no século XVIII e com materiais encontrados em
ambos os acervos. Destas peças foram removidas amostras que foram
analisadas, estudadas e comparadas com o fim de apresentar informações
coesas à comunidade científica, histórica e técnica.
Para tanto, estaremos trabalhando dentro do universo da Conservação,

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da Restauração e da Ciência da conservação, partindo do eixo da História
da Arte, cujo ponto norteador é um de seus teóricos, Alois Riegl, de cuja
produção podemos conectar tanto à questão do estudo dos tecidos como
objeto artístico, através de sua ornamentação, material e técnica, bem
como, em continuidade, discutir a importância do processo de inventário
dentro de uma proposta de conservação, como base de conhecimento e

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valorização do acervo, no sentido do conhecer para conservar.
Riegl foi um teórico que em seu curto período de vida produziu um
conjunto denso de teorias e métodos de estudos dos objetos artísticos,
atuando na vida acadêmica como Catedrático da Escola de Viena e
como representante máximo da comissão de proteção dos monumentos
austríacos. Como estudioso das artes, inicia suas reflexões sobre os tapetes
orientas e a coleção de tecidos antigos do Oesterreichisches Museum -
MAK (Museu austríaco de artes aplicadas e arte contemporânea).
A publicação de O culto moderno dos monumentos4 (1903) marca a passagem
de Riegl da História da arte para os monumentos. O texto parte de um
projeto de reforma institucional da conservação austríaca, inédito até 1995
e que sem ele é difícil compreender o culto moderno dos monumentos,
onde o autor vê a tutela dos monumentos como disciplina autônoma.
Fazendo diferença entre Denkmalpflege (cura dos monumentos) e
Denkmalschutz (proteção dos monumentos) o autor nos apresenta
a sua teoria da conservação, que não se ocupa das obras de arte, mas
dos monumentos, ou seja, de todas as obras das mãos dos homens que
adquiriram um valor de herança cultural. Seu conceito de monumento está
ligado à noção de tempo, de transformação, de documento histórico.
Este valor de herança, na concepção de Riegl é um valor que somente no
presente, no tempo em que existe, pode ser reconhecido pela cultura que
nele reconhece seu valor, dentro do pensamento da estética da recepção,
211
levando em consideração a fruição, a recepção e percepção destes
monumentos que são suportes materiais da memória coletiva. Segundo
o teórico, “não é a destinação original que confere às obras a significação
de monumentos, somos nós, sujeitos modernos, que as atribuímos a eles.”
(RIEGL, 1903, p. 43).
Buscar os textos de Alois Riegl para esta presente reflexão é, no mínimo,
definir uma posição em relação ao tratamento que se dá ao acervo têxtil

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dentro do contexto das tipologias de acervos, principalmente no Brasil,
que caminha progressivamente na direção de poder contar uma sua
história dos tecidos e da conservação têxtil nacional e que, neste caminhar,
necessita de um projeto norteador, que possa incluir os tecidos em
exposições diferenciadas e específicas por todo o país.
À partir do conhecimento prático de acervos espalhados pelos diversos

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estados nacionais, podemos concretamente dizer que seus acervos
foram formados ao acaso, sem uma intenção prévia específica, ligada um
programa maior de formação de coleções gerais ou de significado local,
onde os têxteis eram inseridos. Mas esta mentalidade faz parte da história
da primórdia formação dos museus internacionais.
Muitos museus europeus, criados na metade do século XIX, buscaram
formar uma coleção têxtil com um acervo exemplificativo, contendo sedas
inglesas, francesas e italianas, com padronagens orientais ou exóticas. Estes
museus não tiveram como base as coleções de produções inusitadas e
revolucionárias do XIX, que não foram valorizadas, pois eram tidas como
naturalismo de imitação. Assim, vemos que os acervos criados seguiram
um gosto estético da época5 .
Segundo o prof. Ulpiano Bezerra de Menezes6 , os tecidos são a mais
extensa categoria imaginável da cultura material, possuindo em si fatores
de coletividade, devido a seu potencial de articulação, derivando daí a
riqueza de seu conhecimento e pesquisa. Os tecidos são parte fundamental
para uma série de instrumentos de socialização, tais como troca e
hierarquia, reciprocidade, classificação, gênero, etc. Uma visão unicamente
museológica não pode dar conta deste universo, já que os tecidos podem
entrar em qualquer tipo de museu (de arte, histórico, ciências sociais,
ciência e tecnologia, ciência e natureza e monográficos).
O grande gancho desta associação de “visões” é a sua interação histórica,
212
de associação com universos diversos, devendo, assim, serem tratados pela
sua materialidade e dimensão em relação à experiência humana. Segundo
Menezes, 2006, não há nada que escape à estética, portanto, as questões
sociais e históricas devem passar pela estética e serem devidamente
apresentadas, uma vez que a estética alarga o campo perceptivo dos
objetos (utilitários ou não). A estética deve ser explorada no contexto
destes objetos. As coleções têxteis podem e devem fazer a integração entre

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o fascinante mundo dos tecidos e o mundo dos homens, e podem ter um
papel fundamental nas exposições dos museus.
Os tecidos são documentos históricos, transformam as ações diárias
individualmente e une os tecidos culturais nos quais estamos inseridos.
Os tecidos são objetos utilitários, que acondicionados perdem sua função
primordial: revestir o homem, seu corpo e o ambiente em que vive. Desta

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forma, é através de sua materialidade, pelo processo de ver e penetrar em
sua tecitura, cores e formas, que entramos em contato com uma semântica
não encontrada em outras tipologias.
Alguns problemas dificultam o acesso a um conhecimento específico
nacional, tais como as questões ligadas ao consumo e descarte, quanto
às generalizadas condições brasileiras desfavoráveis à sua preservação,
quanto as associações ao corpo feminino e masculino (tipologia, forma e
tamanho), e quanto ao estudo da “representação” dos tecidos (pinturas e
fotografias) e não dos tecidos propriamente ditos.
Segundo Dinah Eastop7, o que é preservado, e como, depende do
curador, do que é encontrado e do que os conservadores pensam. Pode
ser tratado como lixo, material arqueológico, objeto etnográfico ou objeto
museográfico, sendo dentro desta materialidade que se identifica sua
cultura material, que se apresentará como interdisciplinaridade entre o
patrimônio e o público, possuindo propriedades materiais e valor social,
dinâmica que envolve física e socialmente os objetos.
As questões atuais sobre os tecidos, na esfera acadêmica, giram em
torno da importância deste estudo para as áreas de humanas, além das
indagações quanto a metodologia de estudo e as análises empregadas.
Diversos conservadores, restauradores e historiadores já expuseram, ao
longo destes anos, algumas colocações quanto à real importância de seu
estudo, principalmente para as áreas de ciências e humanas.
213
Daniel Roche8, entre outros, defende que as vestes e tecidos são uma
tipologia essencial para a área de historia econômica e social. Lou Taylor9,
critica a literatura que, apesar de acreditar ser o consumo deste artigo tão
constituinte das relações sociais quanto a sua produção, limita-se a usar
estes objetos como ilustrações de texto ou decoração para a fala. Daniel
Miller10 e July Attfield11 , ambos ingleses, e Jules Prown12 , dos EUA,
propõem seu estudo como cultura material, sendo esta a ferramenta, o

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método e o caminho para a compreensão da realidade dos sentidos.
A análise de um objeto13 pode dar evidências sobre a sua tecnologia de
construção uso da matéria, modelagem, qualidade, além das associações
que podem ser feitas com objetos semelhantes, da mesma coleção ou não.
Prown desenvolveu um método de análise que se baseia na observação
exaustiva dos aspectos físicos do objeto antes da pesquisa histórica,

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priorizando o próprio objeto têxtil como fonte histórica, implicando em um
reconhecimento do papel fundamental e nada marginal destes na história
e no cotidiano. Seu método consiste na análise do objeto através de 3
(três) fases: descrição, dedução e especulação. Sua diferença com métodos
de análises semelhantes, principalmente os da área de arqueologia, é que
ele admite uma interferência no processo que nasce da interação entre o
observador e o objeto.
Esta metodologia de Prown não é diversa daquela aplicada nos processos
de conservação e restauração de obras de arte, principalmente quando
estas apresentam problemas estruturais sérios. H. J. Plenderleith14 , um
dos primeiro teóricos a introduzir a discussão sobre a importância da
conservação preventiva, inovando ao dedicar um capítulo aos têxteis,
dentre outros argumentos apresentados, enfatiza a importância das
observações preliminares.
O autor nos adverte que, o momento ideal da observação é aquele inicial,
mesmo que o objeto se encontre muito sujo e não seja possível conhecer
os particulares, importante se faz obter, através da observação, o máximo
de informações que podem ser perdidas durante o processo de tratamento.
Adverte, ainda, que as observações preliminares é que determinarão ou
apontarão quais os métodos a serem adotados no tratamento.
Cada objeto de um acervo é, certamente, um documento do momento 214
em que foi confeccionado, é um “retrato” de sua época, do momento de
quem o confeccionou. Chegamos a um ponto importante: o objeto como
documento. Quantas informações podemos encontrar em um objeto!
Devemos, no entanto, aprender a olhar. O nosso modo de vê-lo determina
a sua correta leitura. Deve-se, de modo científico, buscar observar todos
os dados que se puder identificar. Neste processo de conhecimento, a justa
análise organoléptica e/ou científica do objeto, somada à precisa pesquisa
em fontes primárias e secundárias, bem como a observação do ambiente

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em que está inserido, vem a constituir a fase inicial de diagnóstico.
Mesmo sendo ele um objeto de estudo que pode ser abordado por
diferentes áreas, creditamos que como a conservação e a arqueologia, a
história da arte se aproxima profundamente dos objetos têxteis, uma vez
que tais áreas os estudam com a preocupação de entender a cultura de onde
eles provêem, resgatando através de seu fazer artístico, suas conexões com

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sua época e a produção local.
Nela encontra seu maior gancho, tornando-se, através desta, um produto
mediador para as outras áreas. Alois Riegl será, aqui, o norteador
fundamental desta interface entre a história da arte, o universo têxtil,
a conservação e a presente proposta de sistematização do estudo e
conhecimento dos acervos têxteis.
As análises científicas serão neste processo os meios que poderão certificar
estas hipóteses ou apresentar outras direções, podendo ser determinadas
pelos testes morfológicos e os testes dos materiais, precisando, os tipos de
fibras e dimensões dos fios, as técnicas de construção dos tecidos, as cores
e pigmentos, as torções, entre outros.
O conservador e restaurador têxtil, para o exercício consciente de sua
profissão, deve ser capaz de conduzir referidas análises, mesmo que não
seja sua função específica, como no caso das análises científicas. Deve,
principalmente, reconhecer os resultados e entender o sistema de conexão
entre os materiais, a estrutura e a história cultural do objeto, uma vez que
os têxteis levam consigo a possibilidade de estar associados a uma variada
gama de materiais que os completam, que os dão forma, tais como, o
couro, os metais, os papéis, a madeira, entre outros.
É interessante reproduzir as observações relevantes que nos coloca
Toledo, 199815, quando afirma que: 215
o estudo de qualquer artefato para fins de conservação
pressupõe um período mínimo de convivência com ele.
Examina-se cada detalhe, cada alteração ou dano sofrido,
olha-se, observa-se minuciosamente tudo. No caso dos
têxteis, quase sempre, gasta-se algum tempo para entendê-lo
como forma, como engenharia, até que num determinado
dia, olha-se para ele, mesmo quando muito fragmentado, e
tudo passa a fazer sentido.” (TOLEDO, 1903, p.85).
Neste tempo de observação, diversas perguntas vão sendo feitas e é através

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das respostas, quando as encontramos, ou através de outras perguntas que
nascem das primeiras, que vamos conhecendo o objeto, desvendando seus
mistérios, lendo-o com os olhos investigativos, escrevendo sua história,
valorizando-os e, assim, preservando-os. Os objetos apresentam uma
linguagem específica e o observador deve ser capaz de codificá-la.

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As técnicas analíticas avançadas para o estudo de têxteis
Os principais objetivos das técnicas analíticas para o estudo de têxteis
são: Conhecer a natureza e anatomia da obra, ou seja, analisar as técnicas
de construção (história da técnica: técnica do artista/produção); Auxiliar
na verificação da autenticidade da obra, através do cruzamento de dados
históricos dos materiais empregados pelo artista/produção e os dados
dos exames científicos analíticos; Conhecer o estado de conservação da
obra para a tomada de decisões quando da sua conservação e definição
das melhores condições para sua conservação; e Propor a intervenção,
reconhecendo a presença de intervenções anteriores alteradas ou
inadequadas e a verificação do material deteriorado.
No percurso proposto pelo prof. Dr. Luiz Souza e pela química Dra. Isolda
Maria Mendes temos a realização de testes microquímicos de solubilidade,
combustão e reações químicas para a identificação de fibras e tingimentos
(pigmentos, corantes e mordentes).
Em seguida, seguem alguns procedimentos de investigação científica
de materiais, aplicados aos têxteis, à partir dos resultados obtidos
anteriormente e das indicações históricas e de sua técnica de produção.
Neste sentido temos:
 A Microscopia Ótica, utilizada para a Identificação de fibras 216
(estrutura e cor) e que consiste na Microscopia de Luz Polarizada (PLM),
permitindo a identificação de materiais por meio da caracterização de suas
propriedades óticas, como por exemplo, cor, birrefringência, pleocroísmo,
extinção, entre outras.
 A Microscopia Eletrônica de Varredura, utilizada na Investigação
da deterioração dos tecidos (examinando a superfície). O SEM
(Scanning Electron Microscopy) ou MEV (Microscopia Eletrônica de

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Varredura) é uma análise preliminar, por não ser destrutiva. Podemos
identificar elementos de composição, obter análises semi-quantitativas e
determinar a topologia das amostras. O princípio de operação baseia-se,
fundamentalmente, na quantificação dos elétrons secundários emitidos
por uma amostra como resposta a uma excitação eletrônica incidente. Esta
medida de elétrons secundários (ES) permite uma definição qualitativa da

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morfologia e topografia da amostra.
 A microscopia de força atômica investiga a deterioração da
estrutura de superfície dos materiais e pode ser acoplada a outras técnicas
espectroscópicas de análise como o Raman.
 Espectrocospia no Infravermelho (FTIR), utilizada para
Caracterização de fibras naturais e sintéticas (identificação de componentes
orgânicos e inorgânicos), consiste na captura de um espectro vibracional
das moléculas presentes na amostra, fazendo-se incidir sobre ela um feixe
de ondas de infravermelho. A análise do espectro de infravermelho permite
a identificação do material pelo estudo das regiões de absorção através de
comparação com espectros de referência. Em geral, a técnica permite a
identificação dos materiais em termos das grandes famílias, permitindo
a diferenciação entre fibras, mordentes, corantes, gomas, resinas, colas,
pigmentos, etc. Um instrumento de FTIR pode ser usado em seqüência
com HPLC (High Performance Liquid Cromatograph/Cromatografia
Liquida de Alta Performance) ou GC (Cromatografia Gasosa), para a
análise de mordentes e corantes. A HPLC (Cromatografia liquida de alta
performance) é uma alternativa para o estudo de pigmentos, corantes e
mordentes naturais.
 A Espectrocospia RAMAN (Complementar à Espectroscopia
no infravermelho) é utilizado para a identificação de fibras e análise dos
corantes e pigmentos. Consiste na captura de um espectro vibracional das 217
moléculas presentes na amostra, através de um processo de espalhamento
de luz, fazendo-se incidir sobre ela um laser de comprimento de onda
específico. A análise comparativa do espectro de espalhamento Raman
permite a identificação de determinados materiais presentes na matriz. As
técnicas de Raman e FTIR são complementares.
 A Espectrocospia Ultravioleta e visível consiste na obtenção
de um espectro de eletrônico característico do corante ao pigmento.

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Identificação de corantes e pigmentos.
 A Espectrocospia de Fluorescência de Raios-X é utilizada na
identificação de pigmentos, mordentes e fibras. A técnica consiste na
captura de um espectro característico de elementos presentes na amostra,
fazendo-se incidir sobre ela um feixe de raios-x. A análise dos espectros
permite a identificação de vários elementos em uma matriz, pois cada

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elemento possui uma série única de níveis de energia em sua estrutura e
produz emissões de raios-x características, em uma série única de energias.

Conclusão
As análises cientificas aplicadas às obras artísticas não são meros
instrumentos exemplificativos, são metodologias científicas de identificação
de materiais constitutivos e técnicas de produção, informações primordiais
para a análise histórico-artística dos objetos antigos, principalmente
daquelas tipologias não privilegiadas no registro histórico ou econômico,
sobre seu universo de produção.
Devemos, no entanto estar atentos, pois nenhum método de exame pode
ser absoluto nem determinar por si só a natureza, composição e estrutura
do objeto. Faz-se necessário a criação de um roteiro específico, que pode
ser previamente determinado ou ser constituído no decorrer das análises,
segundo os resultados obtidos.
Neste sentido, o exame científico tão pouco é um fim em si mesmo, mas
permite adquirir dados para posterior análise. Através da colaboração
entre os diversos especialistas das diferentes disciplinas é que se tornará
proveitoso o exame cientifico dos objetos de interesse cultural.

__________ 218
Notas
1. Referido acervo foi objeto de estudo de mestrado realizado à partir de 2002 junto à Escola de
Belas Artes da UFMG, sob a orientação do químico e doutor em Ciência da conservação, professor
Dr. Luiz Antônio Cruz Souza. Ver: COPPOLA, Soraya Aparecida Álvares. “Costurando a memória:
O acervo têxtil do Museu Arquidiocesano de Arte Sacra de Mariana”, Dissertação de Mestrado em
Artes Visuais da EBA/UFMG, 2005.
2. Referido museu será indicado a partir de então pela sua sigla MAAS.
3. Projeto realizado no segundo semestre de 2005, contando com a equipe composta por especialistas
em conservação e restauração de bens culturais móveis, historiadores e renomado pesquisador do
IPHAN. O trabalho foi coordenado por Msc Antônio Fernando Batista dos Santos (Mestre em Artes

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Visuais, especialista em conservação e restauração de bens culturais móveis e fiscal do IPHAN) e
pelo professor Dr. Luiz Antônio Cruz Souza (Vice-diretor da Escola de Belas Artes da Universidade
Federal de Minas Gerais e Cientista da Conservação), gerenciado e realizado por Msc Alessandra
Rosado (Mestre em Artes Visuais e especialista em conservação e restauração de bens culturais
móveis) e pela equipe Helaine Dias e Lino Yunkes (Especialistas em conservação e restauração de
bens culturais móveis), Msc Lucienne Almeida Dias, Msc Soraya Coppola e Msc Dulce Consuelo
(Mestres em Artes Visuais e especialistas em conservação e restauração de bens culturais móveis),
Olinto Rodrigues dos Santos Filho (Pesquisador do IPHAN), Dr. Célio Macedo Alves (Doutor em
História), Cláudio Nadalin (Fotografo) e Gabriel Fernandes Santos (Assistente de Fotografia).

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4. RIEGL, Alois. “Il Culto Moderno dei Monumenti: Il suo carattere e i suoi inizi”. Org. Sandro
Scarrocchia. 3ª. Edição, Nuova Alfa Editoriale: Bologna, 1990.
5. Como na formação dos museus das artes industriais, como por exemplo, o South Kensington
Museum, criado em 1857 e renomeado Victoria and Albert Museum em 1899, quando a Rainha
Victoria colocou a pedra fundadora para a construção da nova sede. Seu processo de aquisição de
coleções têxteis visava a obtenção dos antigos tecidos estrangeiros (orientais, italianos, francês) e
não a produção nacional inglesa de seu tempo, produtos das Artes e Ofícios e da Art Nouveaut, que
foram adquiridos no século XX.
6. Em palestra conferida no Seminário internacional, “Tecidos e sua conservação no Brasil: museus
e coleções”. São Paulo: Museu Paulista da USP, 8-12 maio, 2006.
7. Seminário internacional, “Tecidos e sua conservação no Brasil: museus e coleções”. São Paulo:
Museu Paulista da USP, 2006, p.121.
8. Pesquisador e Professor “au Collège de France et à l’Université de Paris I”.
9. Professor of Dress and Textile History, University of Brighton.
10. PhD in Anthropology and Archaeology, Cambridge University, 1983. Professor of Material
Culture, Tutor for the MA in Material & Visual Culture of Cambridge University.
11. Winchester School of Art. Faculty: Law, Arts and Social Sciences.
12. Pesquisador e professor “ of Yale University. MA, Harvard University, Fine Arts (‘53), MA,
University of Delaware, Early American Culture (‘56), PhD, Harvard University (‘61), MA (Hon.),
Yale University (‘71), DFA (Hon.), Lafayette College (‘79).”
13. Um exemplo deste procedimento pode ser visto em Coppola, Soraya Aparecida Álvares. “Nossa
Senhora das Dores: aspectos científicos do estado de conservação de uma obra têxtil, complexidade
de materiais e critérios de intervenção”. Monografia orientada pelo prof. Dr. Luiz Antônio Cruz
Souza e apresentada no Cecor/EBA/UFMG, em julho de 2002.
14. Plenderleith, H. J. The conservation of antiquities and works of art: treatment, repair and
restoration. London: Oxford University Press, 1956.
15. PAULA, Tereza Cristina Toledo de. Tecidos no Brasil: um Hiato. Tese de doutorado. ECA/
USP, 2004.

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Referências

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intervenções. 2002. 235 f., enc. Manuscrito (Especialização) - Universidade Federal de Minas Gerais,
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