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Fonologia Estruturalista Juliene Pedrosa Rubens M. Lucena O que é a Fonologia Estruturalista? O estruturalismo linguistico foi uma corrente tedrica que teve inicio na Europa, a partir das ideias formuladas inicialmente por Saussure (1995 [1916]) na primeira década do século xx, que propunha abordar a lingua como um sis- tema em que as relagées entre os elementos tém uma importancia fundamental. Dentro dessa visio, a lingua é compreendida como um sistema de relagdes estabelecidas a partir de oposigdes ou contrastes de formas. Nesse sentido, essa nova visio da lingua levou a um tipo de analise em que o estudo do sistema era o foco principal, distanciando-se da visdo essencialmente historica vigente em todo o século xix. Embora Saussure nao tenha discorrido de maneira mais detalhada sobre analise fonologica, sua visdo estrutural de Jangue fundou as bases para 0 desenvolvimento posterior de teorias fonolégicas a que se chamara, por falta de um termo mais adequado, de Fonologia Estruturalista, tendo em vista que o termo engloba abordagens essencialmente distintas. Ainda nas primeiras décadas do século xx, surgem outros tericos que poderiam ser considerados como fundadores da Fonologia Estruturalista. O primeiro deles foi Baudoin de Courtenay, que admitia uma distingiio entre os sons efetivamente emitidos e os sons que os falantes julgavam fazé-los. Percebe-se, portanto, um movimento no sentido de uma abstragao psiquica do som. Os primeiros (efetivamente emitidos) seriam objeto da investigagao fonética; os tltimos (os “intencionais”), a que ele denominou fonema, teriam um contetido mais ligado ao estudo do sistema, ou seja, a0 estudo da fonologia. Outro tedrico de grande relevancia nesse contexto foi 16 Fonologia, fonologias Nikolai Trubetzkoy que, juntamente com Roman Jakobson e Vilém Mathesius, funda, em 1926, o Circulo Linguistico de Praga. Trubetzkoy, que havia sido aluno de Baudoin de Courtenay, desenvolve 0 conceito de fonema, dando én- fase ao carater funcional de oposigo de dois sons distintivos em uma lingua. Sua obra (Principios de Fonologia) foi publicada postumamente e de forma inacabada em 1949. Associada a essa nova concepgao de fonema, baseada na distingaio entre som como realizagao ¢ som como representagao, foi pro- posta a criagdo de dois campos de estudos distintos (embora relacionados): a Fonética e a Fonologia. As ideias de Jakobson também tiveram grande impacto nas teorias fono- logicas posteriores. Ele foi um dos cofundadores do Circulo Linguistico de Praga, porém imigra em seguida para os Estados Unidos e sofre influéncia do estruturalismo norte-americano. Sua maior contribuigao foi com relagao ao estudo dos tragos distintivos. De fato, os fondlogos de Praga acreditavam que nao era suficiente tratar os fonemas como unidades indivisiveis, por isso os analisaram também a partir de suas propriedades distintivas, isto é, caracteristicas que seriam capazes de tornar os fonemas distintos dentro de um sistema, a exemplo de /pata/ e /bata/, em que o /p/e o /b/ t&m por trago distintivo a sonoridade, ja que é a mudanga de [-sonoro] para [+sonoro] a responsavel pela distingao entre esses dois segmentos, caracterizando-os como fonemas no sistema em anilise. Essa nova concepgaio pavimentou © caminho para a Teoria dos Tragos Distintivos proposta mais tarde por Jakobson, Fant e Halle.! Ainda dentro do estruturalismo, mas ja influenciado por outras ideias, 0 autor (1968) propde uma visao alternativa 4 concep- do do fonema enquanto unidade minima da fonologia, abrindo caminho, portanto, para o modelo gerativo, teoria que ser apresentada no segundo capitulo deste livro. O estruturalismo norte-americano teve inicio nas primeiras décadas do século xx e foi a abordagem dominante na fonologia realizada nos Estados Unidos até a década de 1950. A contribuigdo mais original dessa vertente teorica diz respeito a descrigao linguistica realizada a partir das linguas indigenas norte-americanas e conduzida por uma linha antropoldgica de estudos. Um dos fundadores dessa linguistica descritiva norte-americana foi Edward Sapir. Para Sapir, a natureza fundamental de um som da fala reside nos usos objetivados pela intengao do falante. Trata-se de uma realidade mental ao invés de fisica, como ja ventilada pela fonologia estruturalista Fonologia Estruturalista. 17 europeia. No entanto, embora tenha dado espago para uma concepgaio mais mental da realidade sonora, Sapir nao prescindiu de suas propriedades fisi- cas. De fato, em seus estudos descritivos, ele descreve os fonemas em seus aspectos articulatorios, propondo explicagSes para os processos fonologicos a partir de evidéncias fonéticas, ja que se pautava em analise de corpus Outro nome de grande importancia para a fonologia estruturalista norte-americana foi Leonard Bloomfield. Bloomfield teve formagio em Linguistica Neogramatica, no entanto, por influéncia do antropologo Franz Boas, interessou-se também por linguas indigenas norte-americanas. Em sua obra Language, observa que, de um ponto de vista fisico, se poderia registar uma série ilimitada de propriedades dos enunciados, porém ape- nas uma parte delas esta relacionada com significados e sdo essenciais para a comunicagio. Como pade ser observado, a Fonologia Estruturalista niio se constitui como uma perspectiva te6rica tinica, apesar de partir de concepgdes comuns em relagio ao fendmeno da linguagem. Cada corrente possui sua individualidade ao ponto de tornd-las distintas uma das outras. O que a Fonologia Estruturalista estuda? Como mencionado, Saussure nao tratou diretamente dos aspectos fono- légicos, mas proporcionou um viés cientifico ao estudo da lingua, a partir do momento em que explicita e delimita 0 objeto ¢ 0 método de estudo da linguistica e, consequentemente, dos estudos voltados aos componentes da estrutura da lingua, como a fonologia, a morfologia e a sintaxe Saussure define o signo linguistico como elemento principal para entender a estrutura da lingua (Jangue), j4 que a define como um sistema de signos partilhados socialmente. E, ao postula-la como objeto de estudo da linguistica, reforga que o linguista deve priorizar o sistema, a estrutura homogénea, em detrimento da fala (parole), que é realizagao, ou seja, a contraparte conereta da lingua e, por isso, passivel de interferéncias extemas que Ihe atribuem um carater heterogéneo. Por conseguinte, reforga a im- portancia dos estudos fonologicos em detrimento dos fonéticos. que foram 0 foco de atengaio do movimento histérico-comparativista do século xix. 18 Fonologia, fonologias As discussées sobre as dicotomias saussureanas sao utilizadas para dar corpo ao estudo estruturalista. O signo linguistico é definido como uma uni- dade composta de duas faces indissociaveis: o significante eo significado. A primeira é a imagem actstica do signo, enquanto a segunda, o sentido atribuido a ela. Aqui se chama atencao para o elemento sonoro que compde © signo, que mais a frente servird de base para os estudos funcionalistas da Escola de Praga, que se dedicaram com mais énfase a fonologia. Duas outras dicotomias: diacronia vs. sincroniae sintagma vs. paradigma também serdo muito importantes para a Fonologia Estruturalista. A primeira porque definira o método de andlise estruturalista europeia, priorizando a observagao da lingua em um estado temporal (sincronia), mais uma vez em detrimento do que vinha sendo feito nos estudos historico-comparativistas, que priorizavam observar as mudangas que ocorriam na lingua ao longo do tempo (diacronia). Também ¢ importante salientar que os funcionalistas reconhecem essa dicotomia saussureana, mas costumam trabalhar as duas perspectivas de observagao, ao invés de priorizar uma delas, pois acreditam que se complementam no mapeamento linguistico. ‘A segunda dicotomia estabelece que a lingua é estruturada de duas formas: por meio de uma selegio paradigmatica dos signos, em que uma escolha exclui a outra opgio; e de uma combinagio entre esses signos, resultando em uma relagao sintagmatica, em que os signos se associam linearmente, somando-se um a outro. Essas relagdes nao sé refletem como a lingua se estrutura como também permitem estuda-la, por isso essa provavelmente seja a dicotomia mais utilizada pelos estruturalistas norte-americanos quando buscaram descrever as muitas linguas indigenas Agrafas da América que careciam de um estudo descritivo. Além dos estruturalistas norte-americanos, Martinet, linguista da Escola de Paris, também utiliza as relagées paradigmaticas ¢ sintagmaticas a0 tratar da dupla articulagdo da linguagem, em que defende que a lingua é estruturada em dois niveis de articulagdo: o primeiro, que é significativo, cuja menor unidade de andlise é o morfema, e 0 segundo, distintivo, cuja menor unidade é 0 fonema. As duas articulagées sao estruturadas por meio das relagdes paradigmiaticas e sintagmaticas E importante salientar que o trabalho de Martinet influenciou o linguista portugués Jorge Morais Barbosa e o linguista brasileiro Joaquim Mattoso Camara Jr, responsavel pela primeira descrigao estruturalista da lingua Fonologia Estruturalista. 19 portuguesa com base no dialeto carioca, inegavelmente consistente e im- portante, servindo de fundamento aos estudos linguisticos (estruturalistas ou nao) até os dias atuais. O conceito de fonema foi-se construindo a partir do século xix até principios do inicio do século xx, a partir dos trabalhos de Baudoin de Courtenay, Saussure, Jakobson, Bloomfield e Sapir, dentre outros. Assim, ha um consideravel salto qualitativo na compreensio da abstragio ps quica do som, estabelecendo a concepgdo de que o fonema ¢ 0 elemento fonico de natureza essencialmente distintiva, ou seja, que opde formas da lingua entre si. Como dito, muito se deveu, para o desenvolvimento desse construto tedrico, as oposigdes propostas por Saussure entre langue (lin- gua) e parole (fala) e entre sintagma e paradigma. De fato, os fondlogos do Circulo Linguistico de Praga aplicaram parte da teoria saussuriana no desenvolvimento do conceito de fonema. Na visio desses tedricos, os sons da fala pertenceriam ao dominio da parole, enquanto que o fonema estaria ligado a langue. A partir desse raciocinio, comega-se a se desenhar uma forte diferenciagio entre o estudo fonético e 0 fonoldgico, jd que aquele estaria no Ambito da fala e este, da lingua. Nesse sentido, a unidade minima de analise da fonologia estrutural passa a ser o fonema. Assim, para apresentar a descrigdio fonologica de uma lingua, faz-se mister observar quais sons estio em oposigao fonologica Para isso, a fonologia estruturalista recorre 4 analise de pares minimos e€ de pares andlogos, a partir de sons foneticamente semelhantes (srs), com 0 intuito de identificagao dos fonemas e alofones de determinada lingua. Pares minimos sio duas palavras ou morfemas que dependem da troca de um tnico som para distinguir seu significado, como “mato” [matu] e“pato” [patu]. Assim, a troca de um som por outro, em um mesmo contexto, pro- voca uma alteragio no plano do contetido. Esta-se, portanto, diante de um fonema. Quando nao é possivel utilizar pares minimos para a identificagio de fonemas, recorre-se ao par andlogo, ou seja, aquelas palavras ou morfe- mas cuja oposigdo é estabelecida por mais de um segmento. O par analogo é menos seguro para a identificagdo de fonemas, contudo se configura um procedimento valido, sobretudo quando se toma 0 cuidado de observar se 0 que é externo ao contexto andlogo nao é um fator condicionante para os sons em anilise. Palavras como “pata” [pata] e “meta” [meta], por exemplo, se distinguem por dois sons e nio ha nenhum indicio de que o ambiente 20 Fonologia, fonologias fonético em que se encontram exerga algum condicionamento para os dis- tintos sons bilabiais [p] —[m], tendo em vista que ambos esto em inicio de vocdbulo e antecedidos de uma vogal. A identificagao de fonemas através de pares andlogos foi muito recorrente na descrig&o de linguas indigenas, que contavam com um repertério limitado de dados Além do conceito de fonema, a Fonologia Estruturalista (se é que se podem abarcar todos os movimentos de cunho estruturalista em um unico termo) também apresentou 0 conceito de alofonia. Chama-se de alofone auma variante fonética de um fonema, resultado de distribuigo comple- mentar ou de variagao, a exemplo das africadas alveopalatais [tf] e [d3] que sio alofones das oclusivas dentais [t] e [d] no portugués brasileiro. Ha distribuigdo complementar quando se observa que 0 som $6 ocorre em determinados contextos. Em alguns dialetos do portugués brasileiro, as africadas palatais [tf] e [d5] esto em distribuicéio complementar com as oclusivas dentais [t] e [d], s6 ocorrendo diante da vogal coronal [i], como em “dia” [‘dgia] e “tia” ['tfia], a exemplo do que ocorre no dialeto cario- ca, ou ainda, como no dialeto paraibano, apés glide coronal [j], como em “doida” [dojdga] e “muito” [mujtfu]. Diante das demais vogais, sem 0 contexto seguinte ou precedente coronal, ocorre apenas a oclusiva dental como em “pata” ['pata]/*[‘patfa]. E importante salientar que a ocorréncia das africadas palatais ¢ variavel em alguns dialetos mesmo quando ha contexto de sua realizagio, ou seja, pode-se ter [t] ~ [tf] ou [d] ~ [dg]. As- sim, em resumo, [t] - [tf] ¢ [d] - [d3] estdio em distribuigdo complementar quando se opdem a depender da presenga ou nao da vogal [i] e do glide [j]: “mato” [mato] vs. “buriti” [buri'tfi] e “oito” ['ojtfu]; “dado” [‘dado] vs. “ditado” [dgi'tadu] e “cuidado” [kuj'dgadu], mas mesmo com a presenca do contexto coronal, ha um processo varidvel: “buriti” [buritfi] ~ [buri’ti] e “oito” [‘ojtfu] ~ [ojtu]; “ditado” [dgi'tadu] ~ [di'tadu] e “cuidado” [kuj‘dgadu] ~ [kuj‘dadu]. Os procedimentos de descrigio linguistica empregados pela fonologia estruturalista para levantamento do inventario fonologico de uma lingua passam necessariamente por técnicas de comutagdo (como propunha Hjelmslev, 1972) e oposigio (Trubetzkoy, 1964). Hjelmslev propés a prova da comutagao como forma de identificar as unidades linguisticas, estabelecendo que a mudanga de um elemento (fonolégico. por exemplo) por outro no plano da expresso acarretaria uma mudanga analoga no Fonologia Estruturalista, 21 plano do contetido, e vice-versa, como em: /p/ato - /b/ato - /d/ato - /A/ato - Ik/ato - /g/ato - /fiato - /3/ato - /m/ato - /n/ato - /Vato - /x/ato. De maneira semelhante, Trubetzkoy compreendia a oposicao fonolégica como uma diferenga existente entre duas unidades distintivas. A quest&o da oposi- go foi uma forte preocupacio da Escola de Praga, sendo as diferengas distintivas descritas em termos de relagdo, 0 que permitiu, com o passar do tempo, o desenvolvimento do conceito de trago distintivo. Como se vé, em ambas as técnicas apresentadas (comutagdo e oposi¢do), a rela- g4o é de ordem paradigmatica com efeito na cadeia sintagmatica, como propunha Saussure. Portanto, é na Escola de Praga que os estudos fonologicos ganham forga. Trubetzkoy e Jakobson foram os responsaveis por definir im- portantes conceitos para a fonologia, como a nogao de distintividade, que determinava que os fonemas se distinguiam por um ou mais tragos (caracteristicas articulatérias e/ou actisticas) que os compunham, a exemplo do fonema /p/ que se distingue do fonema /b/ pelo trago de sonoridade (vozeamento), sendo o /p/ surdo (-vozeado) e 0 /b/ sonoro (+vozeado), j que os demais tragos so comuns aos dois fonemas (oclu- sivos e bilabiais).? Essa ideia de tragos distintivos vai ser retomada por Noam Chomsky e Morris Halle (1968), no gerativismo, ao proporem um estudo sobre 0 inglés, intitulade The Sound Pattern of English (sve), assim como pelas teorias nao lineares, como a Teoria Autossegmental (Goldsmith, 1976) ¢ passa, entio, a ser 0 objeto dos estudos fonolégicos, substituindo o fonema. Esse nao foi o unico conceito importante trabalhado na Escola de Praga. O conceito de neutralizagdo foi proposto por Trubetzkoy para discutir casos em que um fonema perde a distintividade que s6 volta a ser atribuida no contexto de uso, a exemplo do acontece com 0 trago de ponto de articulagio das consoantes nasais na lingua portuguesa em posigio de coda,? ja que esse trago s6 é especificado no contexto por assimilagio do trago de ponto da consoante que inicia a silaba seguinte 4 coda, como em ma|N|to > ma[n]to; ma|N|bo > ma[m]bo; ma|N| ga > ma[n]ga. Esse conceito reflete bem a postura funcionalista, que defende a importancia dag questées contextuais para a descrigdo da estrutura de uma lingua. Associado ao conceito de neutralizago esta o de arquifonema. Por isso, como por neutralizag’io se compreendia a cessagio de uma oposigio 22 Fonologia, fonclogias fonoldgica como resultado de certas condigées fonéticas, o arquifonema seria ent’o uma unidade fonologica que consiste num conjunto de tragos distintivos comuns a dois ou mais fonemas da lingua. O arquifonema era usado pelos fondlogos de Praga para representar os tragos partilhados por dois sons neutralizados, utilizando, como notagio, letras maitiscu- las. Outro exemplo do portugués é a descrigao proposta por Camara Jr. para a neutralizagao das vogais atonas finais, que passa de um quadro de sete fonemas vocilicos em posigio ténica para um quadro com trés fonemas em posigao posténica final, /i/, /e/, /e/, /a/, /ol, /o/, /u/ > |i), /a/, |u|, como por exemplo em: fome — fom[e] ~ fom[I], casa > cas[a]. bolo > bol[o] ~ bol[U]. Outra formulagio proposta por Trubetzkoy foi a nogio de marcagdo, ainda atrelada 4 distintividade, e utilizada para determinar quando um fonema era mais marcado ou no do que outro. Como os fonemas eram apresentados através de uma relagdo binaria de presenga [+] ou auséncia [-] de tragos, seriam mais marcados os fonemas que tivessem 0 trago distintivo mareado positivamente. E importante destacar que a nogiio de marcagiio foi revisitada por outras teorias e que nem sempre o que foi proposto por ‘Trubetzkoy foi reafirmado, a exemplo da Teoria da Otimidade (or)! (Prince e Smolensky, 1993; McCarthy e Prince, 1993), em que a marcagiio ganha status relativo, atrelado 4 comparagao entre formas. A corrente estruturalista norte-americana tem nos estudos de Sapir e de Whorf a base para uma proposta descritiva e, embora nao tenham focalizado o aspecto fonologico, ao proporem uma descrigao das linguas, observam todos os seus elementos componentes: fonologia, morfologia e sintaxe. Um reforgo a andlise formal e aos procedimentos objetivos é atribuido a Bloomfield, que consegue dar um carater bastante cientifico e procedimental ao estudo linguistico, nio sendo diferente, portanto, com a fonologia. Sao inegaveis, portanto, as contribuigdes que o estruturalismo trou- xe aos estudos fonoldgicos, desde a delimitagao do campo de estudo da Fonética e da Fonologia, da releitura do objeto de estudo da Fonologia, que sai do fonema e repousa nos tragos distintivos, até a disponibilizagao de procedimentos metodoldgicos objetivos para uma anilise descritiva consistente que pode ser usada como base, inclusive, para outras teorias, pritica observada nos dias atuais. Fonologia Estruturalista. 23 Como analisar fenémenos da lingua usando a Fonologia Estruturalista? Aanilise de fenémenos fonologicos a partir de uma perspectiva estru- turalista se fundamenta essencialmente em técnicas de descrig&o em que a estrutura linguistica ocupa um lugar central. Jé mencionamos que Camara Jr. foi um dos pioneiros a fornecer uma analise fonol6gica estruturalista para o portugués brasileiro, Em 1953, em seu Para o estudo da fonémica do portugués, o estruturalista descreve a lingua portuguesa em seu aspecto fonologico, mostrando o inventario e 0 comportamento de fonemas de acordo com a posig’o que ocupam na silaba. Em sua obra, Camara Jr. se utiliza dos aportes tedricos do Circulo Linguistic de Praga e dos ensinamentos de Sapir e Bloomfield, aplicando- os aos fendmenos do portugués brasileiro. Em 1970, traz um estudo que abrange tanto a primeira articulagao (mor- fologia) quanto a segunda (fonologia) da lingua portuguesa. No capitulo destinado 4 Fonologia, detalha a silaba como “uma divisio espontanea e profundamente sentida, na segunda articulagio. Os seus tipos de estrutura marcam caracteristicamente as linguas. Nao é, a bem dizer, o fonema, mas a silaba que é ‘a estrutura fonémica elementar’ (Jakobson 1967: 133)” (Camara Jr., [1970] 2004: 53). Do ponto de vista fonético, cada silaba tem um pico de sonoridade, isto é, um segmento que é mais proeminente do que os segmentos vizinhos, e, por isso, é 0 responsavel pelo elemento silabico. Jespersen (1904), quando propés a sua escala de sonoridade,* observou a posigdo que os segmentos ocupam na silaba e a relag’io com seu aspecto sonoro ou audivel. Para Camara Jr. (1970), 0 aclive é um movimento ascendente que inicia a silaba e, por isso, seria a posig&io menos sonora, ou seja, ocupa- da, preferencialmente, pelas consoantes hierarquicamente mais baixas em relagdo a escala de sonoridade. Esse aclive culmina em um pico de sonoridade, ou seja, 0 centro silabico. Devido as vogais serem ineren- temente mais sonoras do que as consoantes, em muilas linguas, s6 elas constituem 0 pico silabico, como € 0 caso da lingua portuguesa. Apos atingir 0 pico sonoro, pode ocorrer um declive de sonoridade, isto é, um movimento descendente, considerado um travamento silabico. Essa 24 Fonologia, fonologias posigio é, na maioria das vezes, ocupada por consoantes mais sonoras e pelo glide. Sendo assim, em termos de sonoridade, a representagio silabica pode ser expressa da seguinte forma: @ Apice ee —, Aclive Declive As posigdes que ladeiam o centro da silaba so consideradas por Camara Jr. margens silabicas, sendo 0 centro o elemento indispensavel a silaba e as margens, elementos possiveis, mas dispensdveis. E acrescenta: Se chamarmos simbolicamente V 0 centro da silaba ¢ c um elemento mar- ginal, teremos 08 tipos silabicos: v (silaba simples), cv (silaba complexa crescente), cVve (silaba complexa crescente-decrescente), Conforme a auséneia ow a presenga (isto é, ve cv, de um lado, e, de outro lado, ve cVc), temos a silaba aberta, ou melhor, livre, ea silaba fechada, ou melhor, travada. (Camara Jr, 1970: 54) Assim, a partir do reconhecimento dessa estrutura silabica e do fato de ela ser percebida como base para os processos fonoldgicos e seu estudo, 0 molde silabico passa a ser tomado como parametro de diferenciagao entre as linguas, provendo a tipologia linguistica em teoria pos-estruturalista.® Pode me dar um exemplo? Em relagao aos segmentos, Camara Jr. (1953, 1970) apresenta uma sis- tematizagiio tanto das consoantes como das vogais do portugués, tomando a posigio do fonema na silaba e também o contexto do segmento ou da silaba dentro da palavra. Sobre o inventario das consoantes, inicia observando a posigio pré- vocilica, ou seja, 0 aclive silabico. Observa, ainda, se 0 aclive esté no inicio da palavra /kas.ka.ta/ ou se no meio da palavra e, se nesta posigio, delimita se é um contexto intervocalico /kas.ka.ta/ ou nao-intervocdlico /kas.Ka.ta’. Fonologia Estruturalista, 25 Ele menciona um quadro de 19 consoantes, separando as plosivas e fri- cafivas em surdas e sonoras: /p/:/b/ — roupa:rouba; /t/:/d/ — rota:roda; /k/:/g/ — roca:roga; /f/:/v/ —mofo:movo; /s/:/z/ — ago:azo; /f/:/3/ — acho:ajo; /m/:/n/:/p/ —amaozano:anho; /I/:/A/ — mala:malha; /x/:/r/ — erra:era (Camara Jr., 1970: 48). Essas consoantes poderiam figurar em posigio intervocalica como contexto mais favoravel para a sua realizagio plena. Ainda segundo Camara Jr., 0 quadro proposto seria reduzido drastica- mente quando a consoante é 0 segundo elemento de um grupo consonantico pré-vocalico. Nesse contexto, so figurariam a lateral e a vibrante anterior, isto é, /I/ e /t/: plano, atlas; cravo, dentro. Por fim, para o quadro das consoantes pos-vocalicas, o autor elenca quatro possibilidades, utilizando-se do conceito estruturalista de arqui- fonema: o travamento nasal /N/ (a partir da neutralizago do ponto de articulagao assimilado da consoante seguinte: ca[m]po, ca[n]to, ma[n] ga), o arquifonema /S/ (a partir da neutralizagao da sonoridade das quatro sibilantes portuguesas: ca[s]ca, me[z]mo; ca[flca, me[s]mo), a liquida nio palatalizada /I/ (na maior parte do territorio nacional realizada de forma semivocalizada: sa[w], ma[w]dade) e /r/ (realizada de forma velar ou faringea: ma[x]:ma[h]; ca[x]ta:ca[h]ta; co[y]da:co[fijda). E importante compreender que o arquifonema esta no plano fonologico, abstrato, e as diferentes realizagdes relacionadas aos arquifonemas, no plano fonético, concreto. Para as vogais do portugués brasileiro, Camara Jr. utilizou-se do “sistema vocalico triangular” proposto por Trubetzkoy. Assim, apresenta um quadro a partir da elevago gradual da lingua, na parte anterior ou na parte posterior, classificando os segmentos vocalicos em altas, médias de primeiro grau (abertas), médias de segundo grau (fechadas) e baixa. Quadro 1 ~ Vogais ténicas (Camara Ir, 1970) altas fw ii! médias (2° grau) fol Jel médias (1° grau) Jol Je! baixa al posteriores central anteriores 26 Fonologia, fonologias Ainda dentro de sua andlise, Camara Jr. propée que a oposigao do sistema de sete vogais delineado anteriormente nao é constante e que seus graus de abertura s6 se opdem, de forma plena, em posigio ténica. Assim, em posig4o atona, ha alteragdes no quadro por conta do fendémeno da neutralizagio. Nesse ponto, cita novamente Trubetzkoy, utilizando-se do conceito classico de Aufhebung (neutralizagao). proposto pelo linguista russo. Sempre a partir do dialeto social culto falado no Rio de Janeiro, propée trés quadros para as vogais dtonas, apresentados a seguir: Quadro 2 — Vogais preténicas (Camara Jr, 1970) altas iy médias /or Jel baixa a posteriores central anteriores Quadro 3 — Vogais postanicas (Camara Jr, 1970) altas jw iy média e) baixa a posteriores central anteriores Quadro 4 ~ Vogais dtonas finais (Camara Jr, 1970) altas fw ju baixa fal posteriores central anteriores Ao serem observados os quadros de 1 a 4, percebe-se que o ntimero de fonemas vocilicos se reduz bastante, passando de sete fonemas na posigao tonica a trés fonemas na posigao atona final. Por fim, entende-se que, com essa descrigdo fonolégica, Camara Jt. deixa um importante legado para a pesquisa com a lingua portuguesa, servindo de base para qualquer estudo que pretenda analisar o sistema fonolégico do portugués. Fonologia Estruturalista. 27 Quais sao as grandes linhas de investiga¢gao? Como jd se mencionou, o estruturalismo pode ser dividido em duas correntes: europeia e norte-americana. No entanto, é preciso evidenciar que os circulos linguisticos também devem ser evidenciados como uma subdivistio do estruturalismo, pois trazem consigo a ideia de estrutura, que 6 a base dessa perspectiva tedrica. Contudo, esses circulos apresentam uma caracteristica funcionalista que os une entre si e ao mesmo tempo os diferencia das correntes europeia e norte-americana E inegavel que a perspectiva saussureana proporciona aos estudos estruturalistas toda a base para uma andlise formal, ja que ¢ através dos postulados saussureanos que se t8m configurados 0 objeto e 0 método para uma pesquisa linguistica, atribuindo-Ihe todo o viés cientifico necessario. E, também, a partir dessa base formal que as primeiras descrigdes se tormam possiveis. Esse carater formal é visivel em toda a corrente europeia e, ape- sar de nos dias atuais no serem mais produtivas pesquisas estruturalistas formais, suas contribuigGes esto presentes em muitas pesquisas, ainda que sejam de uma perspectiva tedrica diferente Os circulos linguisticos ofereceram a possibil lade de se observarem 08 aspectos funcionais atrelados 4 estrutura e, dessa forma, permitiram que o contexto linguistico se tornasse importante para a analise da lingua. Pode-se dizer que as contribuiges mais consistentes para a Fonologia se deram a partir do Cireulo de Praga, mudando, inclusive, 0 foco da analise fonologica, isto é, saiu do fonema (da estrutura) para se voltar para 0 trago distintivo (0 aspecto funcional). Certamente essa linha de investigagdo mais funcional é ainda encontrada nas pesquisas atuais. muito embora estejam também ligadas a outras teorias linguisticas, a exemplo do proprio funcionalismo. A corrente norte-americana é, sem divvida, a que mais proporcionou descrigdes linguisticas. Por ter as linguas indigenas desconhecidas como objeto de andlise, adotou a utilizagio de corpus composto por dados de fala como base para o estudo da estrutura da lingua. Isso certamente esta- belece uma correlagao entre os aspectos estruturais e pragmiaticos, que na 28 Fonologia, fonologias Fonologia se configura através de uma correlagio com a fonética. Tem-se, dessa forma, 0 inicio da linguistica de corpus, ou seja, uma proposta que se configura mais pragmiatica e, consequentemente, abre precedente para © surgimento de outras perspectivas tedricas de mesmo cunho, a exemplo da Sociolinguistica. Notas "A Teoria dos Tracos ¢ apresentada e discutida neste livro no capitulo de Matzenauer e Miranda ‘Tanto para Martinet quanto para Jakobson, a unidade de anilise da fonologia seria 0 trago distintivo ¢ nfo mais © fonema. Segundo Camara Ir, # estrutura silica da lingua portuguesa pode ser definida por um movimento ascendente (ataque) de forga sonora até atingir um pico (nticleo) e, depois, tem-se a possibilidade de um movimento escendente (coda), que travaria a silaba, sendo o niicleo 0 tinico elemento obrigatério de ocorrer na silaba ‘Um exemplo em que todas as posigSes s30 preenchidas seria a palavra MAK, em que 0 M1 esti no ataque, 0 no nticleo € ok na coda A Teoria da Otimidade & tratada, neste livro, no eapitulo de Schwinat e Collischonn. * Acscala de sonoridade proposta por Jespersen (1904, apud Hooper, 1976) estabelece a seguiinte hierarquia para os segmentos em uma escala de [~ soante] a [+soante]: consoantes oclusivas ¢ fricativas surdas < ‘oclusivas sonoras < fricativas sonoras . Acesso em: 6 jul. 2016 Sart, Edward. Language: an Introduction to the Study of Speech. New York: Harcourt Brace, 1921 SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de Linguistica geral. Sio Paulo: Cultrix, 1995 ‘TeUBETZKoY, N. 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