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Transformando Sofrimento e Felicidade em Iluminação

por Dodrupchen Jigme Tenpe Nyima


Homenagem

Presto homenagem ao Noble Avalokiteśvara, relembrando suas qualidades:


Sempre feliz com a felicidade dos outros,
E mergulhado na tristeza sempre que sofrem,
Você percebeu totalmente a Grande Compaixão, com todas as suas qualidades,
E permanece, sem se importar com sua própria felicidade ou sofrimento![1]

Declaração de Intenção

Vou colocar aqui uma instrução parcial sobre como usar a felicidade e o
sofrimento como o caminho para a iluminação. Isso é indispensável para levar
uma vida espiritual, a ferramenta mais necessária dos Nobres e o ensinamento
mais precioso do mundo.

Existem duas partes:

1) como usar o sofrimento como caminho,


2) e como usar a felicidade como caminho.

Cada um é abordado primeiro pela verdade relativa e, depois, pela verdade


absoluta.

1) Como Usar o Sofrimento como o Caminho para a Iluminação

i. Por Meio da Verdade Relativa

Sempre que somos prejudicados por seres sencientes ou qualquer outra coisa, se
temos o hábito de perceber apenas o sofrimento, então, mesmo quando o menor
problema surgir, causará enorme angústia em nossa mente.

Isso ocorre porque a natureza de qualquer percepção ou ideia, seja felicidade ou


tristeza, é ficar cada vez mais forte quanto mais nos acostumamos com ela.
Assim, à medida que a força desse padrão aumenta gradualmente, em pouco
tempo descobriremos que quase tudo que percebemos se torna uma causa para
realmente atrair a infelicidade para nós, e a felicidade nunca terá uma chance.

Se não percebermos que tudo depende da maneira como a mente desenvolve esse
hábito e, em vez disso, colocarmos a culpa apenas em objetos externos e
situações, as chamas do sofrimento, carma negativo, agressão e assim por diante
se espalharão como fogo, sem fim. Isso é o que é chamado: "todas as aparências
surgindo como inimigas."

Devemos chegar a um entendimento muito preciso de que toda a razão pela qual
os seres sencientes nesta era degenerada estão atormentados por tanto sofrimento
é porque eles têm poderes de discernimento tão fracos.

Portanto, não se machucar com os obstáculos criados pelos inimigos, doenças ou


influências prejudiciais, não significa dizer que coisas como a doença podem ser
afastadas e que nunca mais ocorrerão. Em vez disso, significa simplesmente que
não serão capazes de nos impedir de praticar no caminho.

Para que isso aconteça, precisamos: primeiro, livrar-nos da atitude de não


estarmos totalmente dispostos a enfrentar qualquer sofrimento por nós mesmos e,
segundo, cultivar a atitude de realmente sermos alegres quando o sofrimento
surgir.

Abandonando a Atitude de Não Estar Totalmente Disposto a Sofrer

Pense em toda a depressão, ansiedade e irritação que nos colocamos por sempre
ver o sofrimento como algo desfavorável, algo a ser evitado a todo custo. Agora,
pense em duas coisas: como isso é inútil e quantos problemas causa. Continue
refletindo sobre isso repetidamente, até estar absolutamente convencido.

Então diga a si mesmo: “De agora em diante, seja o que for que eu tenha que
sofrer, nunca ficarei ansioso ou irritado”. Repasse isso repetidamente em sua
mente e reúna toda a sua coragem e determinação.

Primeiro, vamos ver como isso é inútil. Se podemos fazer algo para resolver um
problema, não há necessidade de nos preocuparmos ou ficarmos infelizes com
isso; se não pudermos, não adianta ficarmos preocupados ou infelizes com isso.

Então, o enorme problema envolvido. Contanto que não fiquemos ansiosos e


irritados, então nossa força mental nos permitirá suportar até o mais difícil dos
sofrimentos com facilidade; eles vão parecer tão frágeis e insubstanciais quanto
algodão. Mas, enquanto estejamos dominados pela ansiedade, mesmo o menor
problema se torna extremamente difícil de lidar, porque temos o fardo adicional
do desconforto mental e da infelicidade.

Imagine, por exemplo, tentar livrar-se do desejo e do apego por alguém que
achamos atraente, enquanto continuamos a insistir o tempo todo em suas
qualidades atraentes. Tudo seria em vão. Da mesma forma, se nos concentrarmos
apenas na dor trazida pelo sofrimento, nunca seremos capazes de desenvolver
resistência ou a capacidade de suportá-la.[2] Então, como nas instruções
chamadas "Selando as Portas dos Sentidos", não se prenda a todos os tipos de
conceitos mentais sobre o seu sofrimento. Em vez disso, aprenda a deixar a mente
imperturbada em seu próprio estado natural, traga a mente para casa, descanse lá
e a deixe encontrar sua própria base.

Cultivar a Atitude de Estar Alegre Quando o Sofrimento Surgir

Vendo o sofrimento como um aliado para nos ajudar no caminho, devemos


aprender a desenvolver um senso de alegria quando ele surge. No entanto, sempre
que o sofrimento golpeia, a menos que tenhamos algum tipo de prática espiritual
para performar isso, que corresponda à capacidade de nossa mente, não importa
quantas vezes possamos dizer a nós mesmos: 'Bem, contanto que eu tenha mais
ou menos o método certo, poderei usar o sofrimento e obter tal e tal benefício', é
altamente improvável que tenhamos sucesso. Estaremos tão longe de nosso
objetivo, diz o ditado, quanto a terra está do céu.

Portanto, use o sofrimento como base para as seguintes práticas:

a. Usando o Sofrimento para Treinar na Renúncia

Ocasionalmente, então, use seu sofrimento para treinar sua mente na renúncia.

Diga a si mesmo: “Enquanto eu vagar, impotente e sem qualquer liberdade, no


samsara, esse tipo de sofrimento não é algo injusto ou injustificado. É
simplesmente a própria natureza do samsara.” Às vezes, desenvolva um profundo
sentimento de repulsa pelo pensamento; “Se já é tão difícil para eu suportar até
mesmo o pequeno sofrimento e dor dos reinos felizes, então o que dizer do
sofrimento dos reinos inferiores? Samsara é de fato um oceano de sofrimento,
insondável e sem fim!” Em seguida, volte sua mente para a liberação e
iluminação.

b. Usando o Sofrimento para Treinar em Tomar Refúgio

Diga a si mesmo: "Vida após vida, somos continuamente atormentados por esse
tipo de medo, e a única proteção que nunca pode nos falhar é o precioso guia, o
Buda, o precioso caminho, o Dharma e o preciosos companheiros de caminho, a
Saṅgha: as três joias. Portanto, é com eles que devo confiar inteiramente.
Aconteça o que acontecer, eu nunca vou renunciar a eles.” Deixe que isso se torne
uma firme convicção e treine na prática de tormar refúgio.

c. Usando o Sofrimento para Superar a Arrogância

Como expliquei antes, [enquanto estivermos no samsara] nunca seremos


independentes ou verdadeiramente livres ou no controle de nossas vidas. Pelo
contrário, estamos sempre dependentes e à mercê do sofrimento. Portanto,
devemos eliminar “o inimigo que destrói tudo o que é saudável e bom”, que é a
arrogância e o orgulho; e devemos acabar com a atitude perversa de menosprezar
os outros e considerá-los inferiores.

d. Usando o Sofrimento para Purificar Ações Prejudiciais

Lembre-se e perceba: "Todo esse sofrimento pelo qual estou passando, e


sofrimento que é ainda maior — todo o sofrimento sem limites que existe —
provém de nada além de ações prejudiciais e negativas."

Reflita, cuidadosa e minuciosamente, como:

1. o carma é certo — causa e efeito são infalíveis;


2. o carma multiplica enormemente;[3]
3. você nunca enfrentará os efeitos de algo que não fez;
4. tudo o que você fez nunca será desperdiçado.

Então diga a si mesmo: “Então, se eu realmente não quero sofrer mais, devo
desistir da causa do sofrimento, que é a negatividade.”[4] Com a ajuda de 'Os
Quatro Poderes', faça um esforço para reconhecer e purificar todas as ações
negativas que você acumulou no passado e, então, resolva firmemente evitar
praticá-las no futuro.

e. Usando o Sofrimento para Encontrar Alegria em Ações Positivas

Diga a si mesmo: “Se eu realmente quero encontrar a felicidade, que é o oposto


do sofrimento, então devo fazer um esforço para praticar sua causa, que é uma
ação positiva.” Pense nisso em detalhes, de todos os ângulos, e concentre-se nas
implicações. Então, de todas as maneiras possíveis, faça o que puder para
aumentar suas ações positivas e benéficas.

f. Usando o Sofrimento para Treinar na Compaixão

Diga a si mesmo: “Assim como eu, outros também estão atormentados por
sofrimentos semelhantes, ou até pior…” Treine-se pensando: “Se ao menos eles
pudessem se livrar de todo esse sofrimento! Que maravilhoso seria!” Isso
também o ajudará a entender como praticar a bondade amorosa, onde o foco da
prática são aqueles que não têm felicidade.

g. Usando o Sofrimento para Estimar os Outros Mais do Que a Si mesmo

Treine-se para pensar: “A própria razão pela qual não estou livre de um
sofrimento como este é que desde tempos imemoriais só me preocupei comigo
mesmo. Agora, a partir deste momento, irei apenas estimar os outros, pois esta é
a fonte de toda felicidade e bem.”

É extremamente difícil usar o sofrimento como caminho quando ele já golpeou e


está nos encarando. É por isso que é crucial se familiarizar com antecedência com
as práticas específicas a serem utilizadas quando nos sobrevierem infortúnios e
dificuldades. Também é particularmente útil, e realmente contará, se usarmos a
prática que conhecemos melhor e da qual temos uma experiência pessoal clara.

Com isso, o sofrimento e as dificuldades podem se tornar uma ajuda para nossa
prática espiritual — mas só isso não é suficiente. Precisamos adquirir uma
sensação de verdadeira alegria e entusiasmo, inspirados por uma apreciação
completa por nossas realizações, e então reforçá-la e torná-la estável e contínua.

Portanto, com cada uma das práticas descritas acima, diga a si mesmo: “Este
sofrimento tem sido de grande ajuda; isso me ajudará a alcançar os muitos tipos
maravilhosos de felicidade e gozo que são experimentados nos reinos superiores e
na liberação do samsara e que são extremamente difíceis de encontrar. Também
de agora em diante, sei que qualquer sofrimento que esteja reservado para mim
terá o mesmo efeito. Por mais árduo que seja, por mais difícil que seja o
sofrimento, sempre me trará a maior alegria e felicidade, amarga e, no entanto,
doce, como aqueles bolos indianos feitos de açúcar misturado com cardamomo e
pimenta.” Siga essa linha de pensamento repetidamente, e com muito cuidado, e
se acostume com o estado de mente feliz que ela traz. Refletindo assim, nossas
mentes ficarão tão repletas de felicidade que o sofrimento que sentimos pelos
sentidos se tornará quase imperceptível e incapaz de perturbar nossas mentes.
Este é o ponto em que a doença pode ser superada por meio da paciência. É
importante notar que isso também é uma indicação de como as dificuldades
trazidas por inimigos, espíritos nocivos e assim por diante podem ser superadas.

Como já vimos, reverter a atitude de não querer sofrer é toda a base para
transformar o sofrimento em nosso caminho espiritual. Isso ocorre porque
simplesmente não seremos capazes de transformar o sofrimento no caminho
enquanto a ansiedade e a irritação continuarem a corroer nossa confiança e
perturbar nossa mente.

Quanto mais chegarmos a realmente transformar o sofrimento em caminho, mais


iremos aprimorar e reforçar todas as nossas práticas anteriores. Isso porque nossa
coragem e bom humor crescerão ainda mais, uma vez que podemos ver por nossa
própria experiência como o sofrimento faz com que nossa prática espiritual e
qualidades floresçam.

Diz-se que treinando gradualmente com sofrimentos menores, "passo a passo, em


etapas fáceis", então no final seremos capazes de lidar com grandes sofrimentos e
dificuldades também. Devemos fazer assim, porque é extremamente difícil ter
uma experiência de algo que está além do nosso nível ou capacidade.

Nos intervalos entre as sessões, ore ao Lama e às Três Jóias para que você possa
levar o sofrimento para o seu caminho. Quando sua mente ficar um pouco mais
forte, faça oferendas às Três Jóias e às forças negativas e insista: "Por favor,
envie-me infortúnios e obstáculos, para que eu possa trabalhar no
desenvolvimento da força de minha prática!" Ao mesmo tempo, esteja sempre,
sempre confiante, alegre e feliz.

Quando você começa este treinamento, é vital se distanciar das atividades sociais
comuns. Caso contrário, preso nas preocupações e ocupações do dia a dia, você
será influenciado por todos os seus amigos mal orientados, fazendo perguntas
como: “Como você consegue suportar tanto sofrimento… tanta humilhação…?”

Além disso, a preocupação interminável com inimigos, parentes e posses vai


nublar nossa consciência e perturbar nossas mentes além de todo o nosso
controle, de modo que inevitavelmente nos extraviaremos, caindo em maus
hábitos. Então, além disso, seremos arrastados por todos os tipos de objetos e
situações que nos distraem.

Mas na solidão de um ambiente de retiro, uma vez que nada disso está presente,
sua consciência é muito lúcida e clara, e por isso é fácil fazer a mente fazer o que
você quiser.

É por isso mesmo que quando os praticantes de Chöd treinam em 'tripudiar em


cima do sofrimento', no início eles evitam a prática usando os danos causados
pelos seres humanos e em meio à distração, mas em vez disso fazem questão de
trabalhar com as aparições de deuses e demônios em cemitérios e outros lugares
desolados e poderosos.[5]

Resumindo: não apenas para que sua mente não seja afetada pelo infortúnio e
sofrimento, mas também para ser capaz de extrair felicidade e paz de mente
dessas mesmas coisas, o que precisamos fazer é o seguinte: Não veja os
problemas internos como as doenças, ou problemas externos como os adversários,
os espíritos ou as fofocas escandalosas, como algo indesejável e desagradável, mas
simplesmente se acostume a vê-los como algo agradável e delicioso.

Para conseguir isso, precisamos parar de considerar as circunstâncias prejudiciais


como problemas e fazer todos os esforços para vê-las como benéficas. Afinal, se
uma coisa é agradável ou desagradável depende de como é percebida pela mente.

Tomemos um exemplo: alguém que continuamente se aflige com a futilidade das


preocupações mundanas e comuns, ficará cada vez mais farto à medida que sua
riqueza ou círculo aumentam. Por outro lado, alguém que vê os assuntos
mundanos como significativos e benéficos buscará, e até orará, para aumentar seu
poder e influência.

Com este tipo de treinamento então:

* nossa mente e caráter se tornarão mais pacíficos e gentis;


* nos tornaremos mais abertos (e mais flexíveis);
* seremos mais fáceis de conviver;
* seremos corajosos e confiantes;
* seremos libertados de obstáculos que atrapalham nossa prática de
Dharma;
* seremos capazes de tirar vantagem de quaisquer circunstâncias negativas,
ter sucesso e trazer glória e auspiciosidade;
* e nossa mente estará sempre satisfeita, na felicidade nascida da paz
interior.

Para seguir um caminho espiritual nesta era degenerada, não podemos ficar sem
uma armadura desse tipo. Porque, se não nos atormentarmos mais com o
sofrimento da ansiedade e da irritação, não apenas outros tipos de sofrimento irão
desaparecer, como soldados que perderam suas armas, mas até infortúnios como
doenças irão, via de regra, desaparecer por conta própria.

Os santos do passado costumavam dizer:

“Se você não está infeliz ou descontente com nada, sua mente não será
perturbada. Visto que sua mente não é perturbada, a energia do vento sutil
(tib. lung) não será perturbada. Isso significa que os outros elementos do
corpo também não serão perturbados. Como resultado, sua mente não será
perturbada, e assim por diante, enquanto a roda da felicidade constante
gira.”

Além disso:

Cavalos e burros com feridas nas costas


São presas fáceis para pássaros necrófagos.
Pessoas com tendência ao medo,
São vítimas fáceis de espíritos negativos.
Mas não aqueles cujo caráter é estável e forte.

Assim é que o sábio, vendo que toda felicidade e sofrimento dependem da mente,
buscará sua felicidade e bem-estar dentro da mente. Uma vez que todas as causas
da felicidade estão inteiramente dentro delas mesmas, elas não dependerão de
nada externo, o que significa que nada, seja seres sencientes ou qualquer outra
coisa, pode lhes fazer mal. E mesmo quando eles morrerem, essa atitude
acompanhará, tal que eles sempre, sempre estejam livres e no controle.

É exatamente assim que os bodhisattvas alcançam sua estabilização meditativa


(samādhi), chamada de "arrebatar todos os fenômenos com gozo".

No entanto, as pessoas tolas perseguem objetos externos e circunstâncias na


esperança de encontrar a felicidade. Mas seja qual for a felicidade que eles
encontrem, grande ou pequena, sempre acaba como o ditado:

Você não está no controle; está tudo nas mãos dos outros.
Como se seu cabelo estivesse preso em uma árvore.

O que você esperava nunca acontece; as coisas nunca vêm juntas; ou então você
faz julgamentos errados, e há apenas uma falha após a outra. Inimigos e ladrões
não têm problemas para prejudicá-lo, e mesmo a mais leve acusação falsa o
separará de sua felicidade. Por mais que um corvo cuide de um filhote de cuco,
ele nunca poderá transformá-lo em um filhote de corvo. Da mesma forma, se
todos os seus esforços forem mal orientados e baseados em algo não confiável, só
trarão fadiga para os deuses, emoções negativas para os espíritos e sofrimento
para você mesmo.

Este "conselho do coração" reúne centenas de instruções essenciais diferentes, em


um ponto crucial. Existem muitas outras instruções essenciais sobre como aceitar
o sofrimento e as adversidades para praticar o caminho e sobre como transformar
doenças e forças destrutivas no caminho, como ensinado, por exemplo, na
tradição "Pacificadora". Mas aqui, de uma forma fácil de entender, dei um esboço
geral de como aceitar o sofrimento, com base nos escritos do Nobre Śāntideva e
seus sábios e eruditos seguidores.

ii. Por Meio da Verdade Absoluta

Por meio do raciocínio, tal como "a refutação da produção dos quatro extremos",
[6] a mente é atraída para o vazio, a condição natural das coisas, um estado
supremo de paz, e aí repousa. Nesse estado, tão-pouco as circunstâncias
prejudiciais ou sofrimento [existem], nem sequer seus nomes podem ser
encontrados.

Mesmo quando você sai desse estado, não é como antes, quando o sofrimento
surgia em sua mente e você reagia com pavor e falta de confiança. Agora você
pode superá-lo vendo-o como irreal e nada além de um rótulo.

Não entrei em detalhes aqui.


2. Como Usar a Felicidade como Caminho para a Iluminação

i. Por Meio da Verdade Relativa

Sempre que a felicidade e as várias coisas que a causam aparecem, se


desequilibramos sob seu poder, ficaremos cada vez mais convencidos,
presunçosos e preguiçosos, o que bloqueará nosso caminho espiritual e progresso.

Na verdade, é difícil não se deixar levar pela felicidade, como apontou Padampa
Sangye:

Nós, seres humanos, podemos lidar com muito sofrimento,


Mas muito pouca felicidade.

É por isso que precisamos abrir nossos olhos, de todas as maneiras que
pudermos, para o fato de que a felicidade e as coisas que a causam são realmente
impermanentes e são por natureza sofrimento.[7]

Portanto, tente o melhor que puder para despertar um profundo sentimento de


desencantamento e impedir sua mente de se entregar à apatia e negligência
usuais. Diga a si mesmo:

“Vejam: toda a felicidade e riqueza material deste mundo são banalidades e


insignificantes e trazem consigo todos os tipos de problemas e dificuldades. Ainda
assim, em certo sentido, tem seu lado bom. Buda disse que alguém cuja liberdade
é prejudicada pelo sofrimento terá grande dificuldade em atingir a iluminação,
mas para alguém que é feliz, é mais fácil alcançá-la.

“Que sorte então poder praticar o Dharma em um estado de felicidade como este!
Portanto, de agora em diante, da maneira que puder, devo converter essa
felicidade em Dharma, e então, a partir do Dharma, a felicidade e o bem-estar
surgirão continuamente. É assim que posso treinar para fazer com que o Dharma
e a felicidade apoiem um ao outro. Do contrário, sempre terminarei onde
comecei — como tentar ferver água em uma panela de madeira.”

O ponto principal para chegar aqui é que qualquer felicidade, qualquer bem-estar,
que surja em nosso caminho, devemos uni-los à prática do Dharma. Esta é toda a
visão por trás da Guirlanda de Jóias de Nāgārjuna.[8]

Mesmo que possamos ser felizes, se não a reconhecermos, nunca seremos


capazes de fazer uso dessa felicidade como uma oportunidade para praticar o
Dharma. Em vez disso, estaremos sempre esperando que um pouco de felicidade
extra venha em nossa direção, e vamos desperdiçar nossas vidas em incontáveis
projetos e ações. O antídoto para isso é aplicar a prática onde for apropriado e,
acima de tudo, saborear o néctar do contentamento.

Existem outras maneiras de transformar a felicidade no caminho, especialmente


aquelas baseadas na lembrança da bondade de Buda, Dharma e Saṅgha, e nas
instruções para o treinamento em bodhichitta, mas isso servirá por enquanto. Tal
como acontece com o sofrimento como caminho, também com a felicidade, você
precisa ir para um ambiente de retiro solitário e combinar isso com práticas de
purificação e acumulação de mérito e sabedoria.

ii. A Dimensão Absoluta

É a mesma que transformar o sofrimento em caminho.

O Que Este Treinamento Traz

Se não podemos praticar quando estamos sofrendo por causa de toda a ansiedade
que passamos, e não podemos praticar quando estamos felizes por causa de nosso
apego à felicidade, então isso exclui qualquer chance de praticarmos o Dharma. É
por isso que não há nada mais crucial para um praticante do que este treinamento
para transformar felicidade e sofrimento no caminho.

E se você tem esse treinamento, não importa onde você more, em um lugar
solitário ou no meio de uma cidade; sejam quais forem as pessoas ao seu redor,
boas ou más; se você é rico ou pobre, feliz ou angustiado; tudo o que você tem
para ouvir, elogio ou condenação, palavras boas ou ruins; você nunca sentirá o
menor medo de que isso possa te derrubar de alguma forma. Não é à toa que este
treinamento é chamado de "Yoga Semelhante ao Leão".

Faça o que fizer, sua mente ficará feliz, em paz, espaçosa e relaxada. Toda a sua
atitude será pura e tudo sairá perfeitamente. Seu corpo pode estar vivendo neste
nosso mundo impuro, mas sua mente experimentará o esplendor de um gozo
inimaginável, como os bodhisattvas em seus reinos puros.

Será exatamente como os preciosos mestres Kadampa costumavam dizer:

Mantenha a felicidade sob controle;


Ponha fim ao sofrimento.
Com a felicidade sob controle
E o sofrimento posto um fim:
Quando você está sozinho,
Este treinamento será seu verdadeiro amigo;
Quando você está doente,
Será seu enfermeiro.
Os ourives primeiro removem as impurezas do ouro derretendo-o no fogo e, em
seguida, tornam-no maleável lavando-o repetidamente com água. O mesmo
ocorre com a mente. Se, ao usar a felicidade como caminho, você ficar cansado e
enojado com ela, e ao tomar o sofrimento como caminho, tornar sua mente clara
e alegre, então você alcançará facilmente o extraordinário samādhi que torna a
mente e o corpo capazes de fazer qualquer coisa que você desejar.

Essa instrução, creio, é a mais profunda de todas, pois aperfeiçoa a disciplina, a


fonte de tudo que é positivo e saudável. Isso porque o não apego à felicidade cria
a base da extraordinária disciplina da renúncia, e não ter medo do sofrimento
torna essa disciplina completamente pura.

Como dizem:

A generosidade é a base da disciplina;


E paciência é o que o purifica.

Ao treinar nesta prática agora, quando você atingir os estágios mais elevados do
caminho, será assim:

Você vai perceber que todos os fenômenos são como uma ilusão, e
Nascer de novo é como entrar em um lindo jardim.
Quer você enfrente a prosperidade ou a ruína,
Você não terá medo de emoções negativas ou sofrimento.[9]

Aqui estão algumas ilustrações da vida do Buda. Antes de atingir a iluminação,


ele abandonou o reino de um monarca universal como se fosse palha e viveu às
margens do rio Nairañjanā sem se importar com a dureza das austeridades que
estava praticando. O que ele mostrou foi que, para realizar nosso próprio
benefício último, o néctar da realização, devemos ter dominado o sabor único da
felicidade e do sofrimento.

Então, depois que ele atingiu a iluminação, os chefes dos humanos e deuses, até
os reinos mais elevados, mostraram-lhe a maior reverência, colocando seus pés no
topo de suas cabeças e se oferecendo para servi-lo e honrá-lo com todos os tipos
de prazeres. No entanto, um brâmane chamado Bhāradvāja abusou dele e o
criticou centenas de vezes; ele foi acusado de má conduta sexual com a filha
atrevida de outro brâmane; ele viveu de forragem de cavalo podre por três meses
na terra do rei Agnidatta, e assim por diante. Mas ele permaneceu sem a menor
flutuação em sua mente, nem exultante nem abatido, como o Monte Meru
inabalável pelo vento. Ele mostrou que, para alcançar o benefício dos seres
sencientes, novamente precisamos ter dominado o gosto igual de felicidade e
sofrimento.
Posfácio

Um ensinamento como este realmente deveria ser ensinado pelos mestres


Kadampa, cujas próprias vidas promulgaram seu ditado:

“Sem queixas quando há sofrimento,


Grande renúncia quando há felicidade.”

Mas se é alguém como eu quem explica isso, então tenho certeza de que até
minha própria língua vai se cansar e se encolher de vergonha. Ainda assim, com o
único objetivo de provar todas as preocupações do mundo[10] minha segunda
natureza, eu, o velho mendigo Tenpe Nyima, escrevi isso, aqui na floresta de
muitos pássaros.

| Esta edição foi preparada especialmente para Lotsawa House por Adam
Pearcey, 2006, com base em versões anteriores da Rigpa Translations.

Notas:

1. Por Candragomin.

2. bzod sran: a capacidade de suportar o sofrimento — tolerância, resistência,


paciência, fortaleza e estabilidade.

3. Alak Zenkar Rinpoche: "Você pode reclamar: 'Eu não fiz nada de ruim, ou
muito pouco, nesta vida, então por que eu passo por tanto sofrimento?' É fácil
para o carma aumentar. Assim como de uma pequena semente na terra, muitos
frutos podem crescer. Os resultados de uma ação (carma) podem se multiplicar
enormemente, pois eles próprios geram consequências adicionais, como uma
árvore genealógica.”

4. Qual é a diferença entre ações prejudiciais (sdig pa) e negatividade (mi dge
ba)? ‘Negatividade’ é um termo geral para denotar o que não é virtuoso e imoral.
A ‘ação prejudicial’ é mais intensa; essas ações não são apenas não-virtuosas, mas
também destrutivas e causam danos. Ter um pensamento não-virtuoso está
apenas na mente e não é necessariamente encenado. Em geral, "ação prejudicial"
está conectada à ação física.

5. gnyen sa: os lugares misteriosos do Tibete, onde as pessoas teriam medo de


causar qualquer tipo de perturbação. Por exemplo, no topo de uma alta montanha,
onde você não ousaria fazer barulho por medo de ofender os espíritos do lugar.
6. As coisas não são produzidas por si mesmas, por algo diferente de si mesmas,
por ambas ou sem causas. Veja Mipham Rinpoche, Os Quatro Grandes
Argumentos Lógicos do Caminho do Meio.

7. Esta é uma referência ao "sofrimento da mudança". Quando uma situação


agradável muda, ela se torna uma fonte de sofrimento. Considere, por exemplo, a
tristeza causada pela morte de um filho. É porque éramos tão felizes quando a
criança estava viva que sua morte nos causa tanta dor.

8. Nāgārjuna escreveu a Guirlanda de Jóias (Ratnāvalī) como conselho para seu


amigo que era um rei que vivia em grande luxo, então ele sugeriu como usar sua
situação e transformá-la no caminho do Dharma.

9. Maitreya, Ornamento de Sūtras Mahāyāna (Mahāyānasūtrālaṅkāra). A primeira


linha está conectada com sabedoria, a segunda com compaixão.

10. As "oito preocupações mundanas" de felicidade e sofrimento, louvor e


censura, ganho e perda, fama e insignificância.

Fonte:
https://www.lotsawahouse.org/tibetan-masters/dodrupchen-III/transforming-
suffering-and-happiness

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