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Nachleben, ova antropologia do tempo: Warburg com Tylor Esse outro tempo tem por nome “sobrevivencia™|Nachleben}. Gonhecemos= “expressao-chave, a misteriosa palavra de ordem de toda a empreitada war- 4 pesquisa arquivistica e a biblioteca tentaram reunir todos os materiais, a fim asmovimentagoesdeterrenos,.!'* E tam- lema fundamental que Warburg tentou confrontar no proprio campo — € no tempo curtissimo — de sua experiéncia indigena. Assim, antes de interrogarmos a ideia de sobrevivéncia no contexto de uma “ciéncia da cultura”, pacientemente elaborada por Warburg a partir das imagens da Anti- guidade e do mundo ocidental moderno, parece oportuno situarmos a emer- géncia experimental dessa problematica no terreno pontual e “deslocado” da viagem ao tertitério dos hopis. A fungao te6rica ¢ heuristica da antropologia — sua capacidade de desterritorializar os campos do saber, de reintroduzir a diferenga nos objetos e 6 anacronismo na historia — s6 fara aparecer isso com mais clareza. bém o probl ee weeds incon pn al — Ao deixar subitamente a Europa ¢ se dirigir ao Novo México, Warburg, em 1895, nao fez uma “viagem aos arquétipos” [a journey to the archetypes), como acreditou Fritz Saxl, mas uma “viagem as sobrevivéncias”; e seu refe- rencial tedrico nao foi James G. Frazer, como também escreveu Saxl,'!” mas Edward B. Tylor. aiba, os comentaristas de Warburg nao prestaram ateng? 10. essa Ao que eu fonte antropolégica. Quando muito, consideraram apenas as diferengas. Ernst imagem sobrevivente 43 Gombrich, por exemplo, afirmou que a “ciénci Tylor nao poderia ser bem vista por um discipulo de Burckhardt que se pre Cupava, acima de tudo, com a arte italiana...!° No entanto, essa “cigncia da sultura” [science of culture] imperou na abertura de um livro a tal ponto capi. tal ~ Cultura primitiva, publicado em Londres em 1871 ~ que a etnologia, no fim do século XIX, acabou sendo comumente chamada de “a ciéncia do Sf, Tylor”.!"" A notoriedade de um livro, mesmo imenso, como neste caso, decerto hao basta para garantir seu status de fonte tedrica, OPOWOUECOMENT Cg Kiltemeissenschati deWarburg exreiénciadacultera deTylorreside, SORE. do. no estabelecrmento de um vincuio particular entre historia ¢ antropologig, Ambaspeonveteit©, tinhamsosprojetoadenSUpCtats CEMMMOPOSIET — da qual Lévi-Strauss, um século depois, ainda faria a constatagao critica — emg a da cultura” reivindicada poy Wh Nu 5 Georges Bid 4. Pontas de flechas de obsidiana. México, pré-histéria. Segundo E. B. Tylor, Anabuac, Londres, 1861, p. 96. Mas a palavra havia surgido em sua pena, como que espontaneamente, num outro contexto, numa outra temporalidade de experiéncia: num desloca~ mento. Mais precisamente, numa viagem ao México. Entre marco e junho de 1856, Tylor havia cruzado 0 México a cavalo, feito observagées ¢ tomado milhares de notas. Publicou em 1861 0 didrio dessa viagem - sua versio dos Tristes tropicos -, no qual entraram em cena, alternadamente, como que para surpresa dele mesmo, mosquitos ¢ piratas, aligdtores ¢ padres missionarios, trafico de escravos ¢ vestigios astecas, igrejas barrocas ¢ costumes indigenas, tremores de terra ¢ uso de armas de fogo, normas de etiqueta 4 mesa e manei~ ras de fazer contas, objetos de museu ¢ combates de rua. Diante de tudo isso, Iylor teria descoberto a extrema variedade ¢ a vertigi- ‘nosa complexidade dos tatos culturais (0 que tambem se sente ao percorrer ‘Trazer), mas teria igualmente descoberto algo ainda mais perturbador (que nunca sentimos ao ler Frazeri: a a¢ao vertiginosa do tempo na atualidade, na superticie™ , Essa vertigem se expressa, inicial- Aimagem sobrevivente 45 », século XIX, Segundo E, B. 5. Aguilhdes para brigas de galo. Més Tylor, Anabuac, Londres, 1861, p. 254. dos. £ por isso que 0 etndlogo, aos olhos de Tylor, deve fazer-se historiador de cada uma de suas observagées. A complexidade “horizontal” do que ele vé decorre, antes de mais nada, de uma complexidade vertical — paradigmatica -do tempo: P . ns -_ on . = ami E caracteristico que esse exemplo de sobrevivéncia - um dos primeiros ofe- recidos em Cultura primitiva — diga respeito aos elementos formais de uma ornamenta¢ao, as “palavras primitivas” de qualquer ideia de estilo."”” E igual- 46 rges Didi- Huberman mente caracteristico que essasobrevivéncia das formas seja expressa em ter- mos de uma chancela [stamp].Dizer-que-o-presente-traz-a-marea-demiltiplos bck i ea tempo — ou dos tempos — nas proprias formas de nossa vida atual. Assim, Tylor fala da “tenacidade das sobrevivéncias” [the strength of these survivals] pelas quais, outra metdfora, “os*velhos*habitos*conservam'suas*raizes*num: solo-revolvido=por-umasnovaecultura®.'°° Ele também compara a tenacidade das sobrevivéncias a “um rio que, havendo escavado um leito para si, correrd nele durante séculos”, Eeumemodo:de:expressary-sempresemetermos:demarca, a » 11 Mas isso nao é tudo. Tal permanéncia poderia ter-se expressado — como mui- tas vezes fez, no século XTX, em algumas antropologias filosoficas — em termos de “esséncia da cultura”. Ovinteresse fundamental do "pensamento tyloriano Mais que tudo, porém, Tylor interessou-se pelas sobrevivéncias sob 0 an- gulo mais especifico das supersticdes. A propria definigao do conceito antro- poldgico foi inferida por ele do sentido tradicional de superstitio em lati Poderiamos, nao sem razao, aplicar a tais fatos a qualificagdo de supersti- cdo, uma qualificagao que seria legitimo estender a uma profusao de sobre- vivencias, A etimologia da palavra superstigao, que originalmente parece : vivéncia je, €1 nto, esse termo Aimagem sobrevivente 47 48 E compreensivel, portanto, que a aniilise das sobrevivéncias em Culturg Primitiva culmine num longo capitulo dedicado & magia, 4 astrologia e a todas as suas formas aparentadas.'* Como nao pensar nesse auge da Nachleben dey Antike que é constituido, em Warburg, pela andlise das manipulagées astrol6- gicas nos afrescos de Ferrara, ou nos proprios escritos de Martinho Lutero?3s Nos dois casos - ainda nao estamos falando de Freud -, sao a falha na cons- ciéncia, a incorregao na légica, o contrassenso da argumentagao que, a cada vez, abrem na atualidade de um fato hist6rico a brecha de suas sobrevivéncias, Tylor, antes de Warburg e Freud, admirava nos “detalhes banais” [trivial de- tails] a capacidade de darem sentido - ou melhor, de gerarem sintomayorque’ ele-tambémechamavasde*landmarks-{marcos} — A sua propria insignificancia, Antes de Warburg e de seu interesse pelo “animismo” das efigies votivas, Tylor ~ entre outros, é verdade ~ tentara criar uma teoria geral desse poder dos sig- nos.'* Antes de Warburg e de seu fascinio pelos fendmenos expressivos do gesto, Tylor ~ igualmente entre outros — tentara uma teoria da “linguagem emocional e imitativa” [emotional and imitative language].'” Antessde-War Talvez reclamem que, no curso deste estudo consagrado ao que chamei de sobrevivéncias do antigo estado social, e que sao restos enfraquecidos da cultura das primeiras eras, (...) escolhi muitos exemplos referentes a coisas gue estio em desuso, coisas sem valor, frivolas, ¢ até de um absurdo que oferece perigos e de uma influéncia ruim. Mas preferi propositalmente esse tipo de provas, depois de ter podido assegurar-me, por minhas pesquisas, de quantas vezes nos sucede ter que agradecer aos loucos. Nada é mais curioso que ver, embora continuemos na superficie do assunto, quanto devemos 4 burrice, ao espirito conservador exagerado, 4 superstigdo obstinada, na preservagao dos vestigios da historia da nossa espécie, vestigios de que seria precipitado apagar, sem o menor remorso, o utilitarismo pratico.'* % Georges Didi-Huberman burg, como sabemos, interessava-se pelos vestigios da Antiguidade clissica: vestigios que nao eram redutiveis & existéncia objetal de restos materiais, mas ainda assim subsistiam nas formas, nos estilos, nos comportamentos, na psi- que. Podemos compreender facilmente seu interesse pelas survivals de Tylor. usoa(os boti florentinos, por exemplo, testemunhavam, no século XV, uma pratica jd isolada do presente e das preocupagdes “modernas” que fundaram a arte renascentista). Envsegundo ligar, as sobrevivericias, segundo Tylon, de- (dizer que o arco ea flecha das guerras antigas sobreviveram como brinquedos infantis é dizer, evidentemente, que seu status e sua significagdo se modifica- ram completamente). Nisso, a analise das sobrevivéncias se evidencia como a anilise de manifes- s fe : : etraly a sobrevivéncia astrolégica apareceria como um “fantasma” no discurso de Lutero, um fantasma cuja eficacia Warburg podia reconhecer através de sua natureza de intruso e de intrusio — de sintoma - na argumentacao légica do pregador da Reforma." Nao é de admirar que a fortuna tylorianas tenha concernido, ini tica das survivals almente, aos fendmenos da fé: esse conceito encontraria no campo da historia das religides as suas mais numerosas aplica- des." Alguns estudos arqueoldgicos de longa duragao, antecipando-se ao que André Leroi-Gourhan viria a chamar de “estereétipos técnicos”, teriam sabido, ainda assim, abordar a hist6ria dos objetos sob o Angulo dasurvival,' Aimagemsobrevivente 49

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