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DOI: 10.4025/4cih.pphuem.

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IMAGENS DA CIVILIZAÇÃO: ENSINO DE HISTÓRIA LOCAL E FOTOGRAFIA -


MARINGÁ DÉCADA DE 1940-50

Rosana Steinke1
Maria Aparecida Leopoldino Tursi de Toledo2

O crescimento, a proliferação das cidades e suas conseqüências, marcaram


profundamente a escrita da história contemporânea. Na busca em compreender as redefinições
dos espaços, da vida política, econômica e cultural vigente nos novos centros urbanos, foram
se delineando novas temáticas como objetos da historiografia. Em decorrência da nova
dinâmica social gerada pelos efeitos da expansão capitalista percebe-se que o território urbano
sofreu uma série de transformações que foram determinantes na constituição de novos
hábitos, costumes e valores sociais (HOBSBAWM, 2003). Entendendo que é crucial avançar
nessas análises para a compreensão das mudanças na forma de viver, pensar e agir dos
sujeitos históricos, debruçar-se sobre a história urbana é temática candente para se
compreender a historiografia contemporânea.
No Brasil, a multiplicidade e complexidade dos temas e objetos de pesquisas sobre o
urbano trouxeram significativos estudos, principalmente ao abordar as transformações
ocorridas nas capitais, como os estudos dos impasses sociais e os custos da modernização em
importantes centros urbanos do país, principalmente entre a segunda metade do século XIX e
a Primeira República. Tais estudos têm mostrado, através de especificidades histórico-
culturais, um quadro de situações ambíguas e contraditórias da modernidade na experiência
histórica brasileira.
As transformações que sofreram as grandes cidades brasileiras no último século, o
crescimento horizontal, vertical e populacional, a diversificação dos grupos sociais,
incremento da velocidade dos transportes, foram tomados por uma pressa ingente de atingir as
benesses do “progresso” e da “civilização” brasileira (CHALHOUB, 1986). Nesse aspecto,
destaca-se a representação, pelos meios de reprodução, de tais transformações culturais, por

1
Graduada em História (UEM) e Ms. Arquitetura e Urbanismo (USP). Docente do Departamento de História
(UEM - Universidade Estadual de Maringá) e pesquisadora do Centro de Estudos das Artes e do Patrimônio
Cultural (CEAPAC/UEM) e do Grupo de Pesquisa Estudos históricos: memória, identidade e ensino de
História.
2
(Historiadora, Drª. em História da Educação (PUC-SP). Docente do Departamento de Teoria e Prática da
Educação (DTP-UEM) e líder do Grupo de Pesquisa Estudos históricos: memória, identidade e ensino de
História – UEM).
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meio da fotografia, cinema e televisão – como registros da modificação da paisagem urbana e


hábitos sociais.
Causando impacto à historiografia nacional na medida em que eles conduziram a
novas e várias interpretações, trazendo o conceito de “história no plural”, tais estudos
trouxeram diferentes contribuições sobre a identidade histórica nacional. Esses elementos
marcaram profundamente as tendências dos trabalhos regionais, principalmente a partir dos
anos de 1970. Um dos principais interesses na difusão da história regional, local e do
cotidiano se deve em muito ao fato reconhecido de que a visão oficial da história nacional
representou uma espécie de centralismo historiográfico que por décadas perdurou entre os
pesquisadores. Isso porque, até então, como se sabe, a historiografia brasileira, assim como a
francesa, que tanto a marcou, pode ser considerada uma história nacional, escrita sob a
perspectiva da nação (BORGES, 1996).
A nação que foi, durante os últimos duzentos anos, um elemento central em nossos
sistemas de representação cultural, visível, sobretudo, nos sistemas de ensino, atualmente, dá
espaço para novas interpretações sobre a questão das identidades. Por isso, pode-se ponderar
que a história regional e local, a história do cotidiano, se tem convertido em uma das
principais correntes historiográficas da atualidade devido, fundamentalmente, à riqueza de
objetos de estudos e a ampla gama de temas que nascem na utilização de fontes existentes nos
arquivos locais ou estatais e mesmo nacionais.
A relação entre espaço urbano e ensino de História ocupa um eixo de análise histórica
privilegiado no trato com as questões como modernização, cidade, espaço e memória. Da
mesma forma, a utilização de recortes específicos, com temáticas locais, são recursos dos
quais é possível alçar mão para melhor compreender o processo de urbanização não apenas de
grandes centros urbanos e capitais, mas também da história urbana de outros espaços,
pulverizados ao longo do território brasileiro. Tal exercício é uma sugestão de análise de
fontes no Ensino de História, partindo do particular para o geral. Para tanto, toma-se como
exemplo neste texto a análise de algumas imagens publicitárias, publicadas na Revista A
Pioneira. O respectivo periódico, cuja temática retratava o cotidiano do norte paranaense em
diversas nuanças, foi, entre os anos de 1940 e 1950, bastante divulgada no Paraná e no estado
de São Paulo, Minas Gerais, entre outros. Pensando nisso, objetiva-se traçar aqui algumas
relações entre imagem, memória e história local.
Pode-se ponderar a importância desses anúncios no referido periódico como veículo
de registro e divulgação com a intenção de “conformar o olhar” por meio das imagens por
eles produzidas. Nessas imagens encontra-se a representação da cidade por uma autoridade
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reconhecida nos círculos do poder à época. Em se tratando da revista A Pioneira, ela difundiu
não apenas o que deveria ser registrado, mas também sob que ângulos as ações e (quais)
atores sociais deveriam ser imortalizados em atitudes pioneiras, heróicas, de “modernidade”.
Uma modernidade que só era possível vencendo o inóspito sertão e implantando a civilização.
No caso de uma cidade planejada com os mais modernos recursos da planificação, era
necessário contrapor esses dois universos presentes na região.
O que se vê e lê nessas entrelinhas é que a mata cede lugar ao progresso, ou seja, a
mata é o atraso, a cidade é a modernidade. Um ideário que, na verdade, acabou servindo de
base para a apologia das companhias colonizadoras, justificando sua atuação, e contribuiu
para a construção do mito do pioneiro/desbravador a preencher e domar heroicamente tal
espaço.
As produções acadêmicas mais recentes, porém, imprimem um novo sentido a essa
visão, mostrando os inúmeros discursos elaborados ao longo do século XX sobre tal temática.
A presença de caboclos, safristas e posseiros, em período imediatamente anterior, denotam a
ocupação humana na região. Os conflitos pela posse da terra, acompanhados de sua violência
intrínseca, e a necessidade de constantemente garantir a regularidade dos títulos de
propriedade por parte das companhias colonizadoras, comprovam a presença humana e a
prática de atividades econômicas que já se desenvolviam na região, mesmo que de forma
isolada e de pouca expressão comercial.
Temos ainda os registros de séculos anteriores no qual figuram inúmeras expedições
que cruzaram a região onde hoje se situa o Paraná, em busca de riquezas minerais,
aprisionamento de índios e como caminho para atingir terras onde atualmente se situa o
estado do Mato Grosso, as terras paraguaias e as minas bolivianas e peruanas, então
pertencentes à Espanha. Seus registros materializaram-se, ainda no século XVI, na fundação
de cidades e na organização de várias reduções indígenas nos vales dos rios Ivaí, Tibagi,
Parapanema, Piquiri e Paraná (MOTA; NOELI, 1999; MOTA, 2005).
Conforme apontam estes mesmos estudos, é importante dizer que não há uma
continuidade étnica e cultural entre os maringaenses e as populações pré-históricas e
indígenas que viveram onde atualmente se encontram os limites do município. Para existir
Maringá e o “Norte do Paraná”, foi necessário expulsar, destruir e confinar as populações
indígenas que viviam nessas regiões (NOELLI; MOTA, 1999, p. 06). As evidências apontam,
portanto, dentro dessa discussão, na direção de que a idéia de “vazio demográfico” no Norte
do Paraná não pode ser assumida sem consideramos todos esses outros aspectos e que tal
construção do passado está determinada por ações de atores sociais comprometidos com a
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crença no progresso, com o passado como genealogia e como cronologia evolutiva, cuja teoria
supõe irrelevante a presença e a memória de outros atores sociais nesse processo.
Contrariamente a essa representação e uso do passado, podemos dizer que com a
expansão da economia capitalista no Brasil, a partir de 1930, de base industrial, exigia-se
igualmente a expansão da fronteira agrícola. Nesse aspecto, foi utilizada uma nova tática de
ataque às florestas, certamente mais rápida e mais completa: a divisão das terras em pequenas
propriedades e a ocupação de modo rápido e sistemático (DEAN, 1996). A cultura cafeeira
permitia, ainda, a produção de alimentos, cultivada entre as ruas de café. Essa produção foi
fundamental para a subsistência das famílias dos pequenos proprietários e colonos das
fazendas e gerava alguma renda com a venda dos excedentes nos núcleos urbanos, enquanto
os cafeeiros não se tornavam totalmente produtivos. Esses excedentes de alimentos foram
fundamentais para o abastecimento dos grandes centros e o controle da elevação de seus
preços, condições essenciais para a expansão do modelo de acumulação capitalista industrial
no Brasil.
Assim, a presença de pequenos agricultores no Norte do Paraná contribuiu e acelerou
o processo de devastação da floresta da região, mesmo que legalmente os contratos de compra
e venda de terras com as companhias colonizadoras exigissem a permanência de parte das
florestas como reserva. Na ânsia de modificar as difíceis condições de vida dos primeiros
agricultores, a derrubada da mata foi completa nas pequenas propriedades, o que explica o
fato dos remanescentes florestais estarem em grandes propriedades.
Um dos resultados desse grande desflorestamento foi que a grande oferta de madeiras,
nesses primeiros tempos, mantinha baixos os seus preços, ao ponto de, em certas épocas, o
preço da terra “limpa” ser maior do que o da terra com florestas. Peroba, cedro, pinho,
figueira, pau d’alho, caviúna, alecrim, canjarana e angico abasteceram as madeireiras que
acompanhavam a fronteira agrícola, além de um verdadeiro desperdício natural realizado, já
que se retirava apenas as espécies nobres, enquanto o restante apodrecia ou era queimado. Em
meio a tal contexto surge a cidade de Maringá. Fundada em 1947, é uma cidade nova
planejada, a exemplo de Belo Horizonte (1892), Goiânia (1933) e Brasília, em fins de 1950,
entre outras.
Do ponto de vista urbanístico, um outro aspecto da “modernidade” a ser considerado
nas publicações: o traçado desta cidade exibe referências clássicas como o boulevar e centro
cívico marcados pela monumentalidade. Já nos bairros residenciais a escolha recai para o
traçado informal de linhas orgânicas (STEINKE, 2007). O que se observa nas imagens
publicitárias analisadas é que Maringá é sempre referenciada como cidade construída com os
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modernos conceitos de planificação, entre outros, que muito colaboraram no conjunto de


representações da memória da cidade, que permanece até os dias atuais e que foi largamente
utilizado nos anos 1940 e 1950.
A região onde se situa Maringá fez parte do território comercializado por uma
companhia imobiliária de capital inglês, fundada na década de 19203. Antes ainda da
implantação do projeto urbanístico, foi estabelecido no futuro perímetro urbano de Maringá
um pequeno povoado no local, hoje denominado Maringá Velho. A criação dessa vila ocorreu
enquanto se esperava pelo definitivo traçado da ferrovia que iria estabelecer o local exato da
nova cidade. Os dados mostram que, desde 1938, a colonizadora vendia lotes nas glebas que
futuramente circundariam Maringá. Conforme os livros de registro de vendas, até 1942 a
referida companhia imobiliária já efetuara 496 transações imobiliárias, representando 12,2%
das propriedades rurais da área que, num momento posterior, corresponderiam ao município
de Maringá. Como se verifica, as imagens fotográficas das cidades em construção estão longe
de esgotar a historicidade das relações sociais cotidianamente vivenciadas pelos diferentes
sujeitos sociais envolvidos nesse processo.
Desde o final da década de 1980, novos enfoques e questionamentos têm sido lançados
sobre a atuação da C.M.N.P. Instiga alguns pesquisadores o imaginário consensual construído
deliberadamente acerca da positividade da atuação da referida companhia, como, por
exemplo, a realização de uma propalada reforma agrária promovida pela empresa. Um
consenso tão poderoso que acabou por identificar toda a área do Norte do Paraná com os
domínios da C.M.N.P., quando “(...) essa companhia apenas participou da (re)ocupação de
20% do território em estudo (...)” (TOMAZI, 1999, p. 78).
Conforme Gonçalves (1999), uma vigorosa ação publicitária orquestrada contribuiu na
divulgação de algumas idéias que contribuíram para uma imagem auto-elogiosa da
companhia, como, por exemplo, a pretensa competência da mesma em instalar uma estrutura
fundiária de pequenas e médias propriedades quando, no belicoso período da década de 1930
e 1940, crescia os questionamentos sobre os latifúndios de propriedade de estrangeiros, a
manutenção de contínua expansão da lavoura cafeeira como base da atividade geradora de
riquezas por meio de gestões junto às autoridades políticas para a liberação do plantio de
cafeeiros e a negação da participação do Estado no processo de desenvolvimento da região,
numa verdadeira ode à iniciativa privada e ao liberalismo. Tais atribuições aferem o

3
Em 1925 é fundada, por um grupo de investidores ingleses, a C.T.N.P. Companhia de Terras Norte do Paraná,
sob os auspícios do governo de Arthur Bernardes. Durante a Segunda Guerra Mundial a empresa passa a ser de
acionistas brasileiros e seu nome é mudado para C.M.N.P. Companhia Melhoramentos Norte do Paraná. Ao
todo, tal empreendimento comercializou 545 mil alqueires de terras na região norte paranaense.
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planejamento privado como elemento superior às incompetências da administração pública.


Da mesma forma, cria-se o imaginário de uma cidade que nasce sob o signo da modernidade
por trazer um plano urbanístico previamente traçado.
Em tal aspecto é que se considera importante problematizar a memória presentificada
na fotografia. Ela registrou, pela intervenção de autoridades locais, a duração do tempo e a
sucessão dos eventos com o fim de assinalar a participação do Paraná no progresso do país,
bem como os pioneiros desse trajeto.
O uso da fotografia disseminou-se no século XX, e passou a ser utilizada como
registro dos mais diversos acontecimentos. De um acontecimento social e familiar, onde havia
todo um ritual para tirar o “retrato” até os dias atuais, onde a imagem digital a todo instante
captura o fugaz, a fotografia tem percorrido um grande caminho e registrado momentos
considerados históricos e também momentos da vida privada como casamentos, nascimentos,
bodas, aniversários, enfim, a história do cotidiano. A utilização da imagem na publicidade é
outro aspecto com inúmeras possibilidades de abordagens para o historiador (MAUAD, 1996;
BURKE, 2004). Conforme aponta Burke, as imagens interessam ao historiador, tanto pelo que
elas deixam transparecer quanto ao que ela omite (BURKE, 2004).
A pluralidade de um documento iconográfico, como a fotografia, permite abordagens
múltiplas. Durante muito tempo privilegiou-se a utilização da fonte escrita, mas há algum
tempo que os historiadores vêm desenvolvendo trabalhos com imagens. Da mesma forma que
as fontes escritas, as imagens e neste caso, a fotografia, podem ser tomadas como mais um
instrumento da compreensão histórica e como qualquer outra fonte ela deve ser questionada,
analisada e confrontada. Para o historiador “(...) utilizar a evidência de imagens de forma
segura, e de modo eficaz, é necessário como no caso de outros tipos de fonte, estar consciente
das suas fragilidades” (BURKE, 2004: p.18). Ela em si não é neutra: a fotografia fala, tem um
discurso que deve ser visto e revisto dentro de um contexto em que ela foi produzida.
É, portanto, necessário termos em conta esse aspecto ao utilizar a fotografia como
fonte histórica. Sua utilização requer do historiador a análise do documento em seu caráter de
reprodução do real, ou seja, a fotografia é uma representação do real, revela, portanto, uma
não neutralidade, uma determinada visão sobre o momento captado pela lente fotográfica.
Para entendê-la, é necessário procurar desconstruí-la, observando o papel do autor, a escolha
do espaço, a postura das pessoas e objetos, a luminosidade, os ângulos. Não há neutralidade,
uma imagem é produzida com uma intenção, com objetivos pré-determinados, que revela sua
historicidade conforme os questionamentos que se lhe façam.
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Em meados do século XX, ao folhear as páginas da revista A Pioneira, o leitor é


convidado a visitar uma cidade ainda em construção. A imagem exibida em primeiro plano
não é da cidade. A antiga fotografia deixa revelar o que restou de um vazio no meio da
floresta, depois de uma “derrubada” seguida de “queimada”, prática comum nesse período.
Visualiza-se a presença de alguns troncos de árvores, uns mais reconhecíveis, outros menos,
posando para as lentes, absolutamente carbonizados. Pelo chão, as reminiscências do que fora
o lugar ora transformado em uma mistura de cinzas e terra. Terra ocre. Terra vermelha, cujo
tom, misturado às cinzas, não se distingue na foto em preto e branco, datada de 1948.
Nesta mesma imagem, em segundo plano, a terra arrasada vai dando lentamente
espaço à cidade. Um crescente núcleo urbano é o pano de fundo da foto, em meio a recém
derrubada floresta. A urbanidade aqui está representada por meio de uma série de edificações
em madeira, salpicadas em um terreno arruado de modo cartesiano.
Tanto no primeiro plano contemplado na fotografia descrita acima, como no segundo,
que chamamos aqui de pano de fundo, estão representados a modernidade e o progresso. O
proposital “deixar-se revelar” da mata recém derrubada e a nascente cidade delineada ao
fundo, formam uma singular conjuntura simbólica da expansão de fronteiras na metade do
século XX no Brasil. A cena instantânea captada pela lente do fotógrafo soma-se a um texto
publicitário, exaltando a cidade nova planejada que cresce vertiginosamente. Abaixo da
imagem, lê-se a legenda da promoção de vendas de lotes urbanos e rurais em Maringá e
cercanias. Com tal perspectiva, a propaganda veiculada procurava convencer o leitor da idéia
de modernidade em meio ao sertão.
Esta era a mensagem que juntava o recurso da imagem (fotografia, no caso) e da
palavra escrita, num discurso simbiótico. Tal simbiose figurava na contracapa da revista A
Pioneira, em 1952. O “passado formalizado” nas imagens da revista remete à gradual
construção da memória local, que valoriza a memória coletiva a um ideal de presente/futuro
(HOBSBAWM, 2003). Os novos moradores (auto intitulados pioneiros) fazem parte também
da construção desta memória, sedimentada na luta travada com a floresta, na expansão de
fronteiras e na fundação de cidades.
Para procurar entender melhor a campanha publicitária empreendida a partir de 1930
na promoção e vendas de terras no norte paranaense, elegemos como recorte específico, neste
artigo, uma série de publicações contempladas na contracapa da referida revista e que exibem
a cidade de Maringá como tema. Buscamos apontar como a idéia de modernidade está
relacionada com a idéia de planejamento urbano e a abertura de novas fronteiras, criando
discursos significativos pela fala disseminada na voz de diferentes atores sociais.
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Partindo de tal discussão, delimitamos o estudo das referidas contracapas na busca de


compreender a construção da memória da cidade de Maringá por intermédio das imagens
nelas veiculadas nos idos de 1940. Conforme aponta Mauad, a fotografia deve ser considerada
como produto cultural, fruto de trabalho social de produção sígnica (MAUAD, 1996). Dentro
desta perspectiva, a fotografia pode, por um lado, contribuir para a veiculação de novos
comportamentos e representações da classe que possui o controle de tais meios, e por outro,
atuar como eficiente meio de controle social, através da educação do olhar (MAUAD, 1996).
Nesse sentido, se toda a produção da mensagem fotográfica está associada aos meios
técnicos de produção cultural, pode-se considerar que a ocupação do norte pioneiro
paranaense e a produção econômica efetivada com a cultura cafeeira, bem como a atuação da
Companhia Melhoramentos Norte Paraná, que retalhou e vendeu lotes urbanos e rurais e a
cidade de Maringá como cidade nova, planejada e palco dessas representações, fazem parte de
um produto cultural com seus respectivos signos.
Ao articular as imagens produzidas e divulgadas na revista com o discurso
“formalizado” no documento, relacionam-se imagem e discurso na produção da memória e na
conformação do conhecimento do passado, sinalizando para a importância de problematizar a
memória presentificada no ideal de modernidade nas décadas iniciais do século XX no
Paraná.
No caso das imagens publicitárias analisadas aqui, podemos destacar, como já foi
ressaltado neste artigo, a imagem da mata derrubada cedendo lugar à cidade, símbolo de
civilidade e progresso. A primeira sempre tida como sinônimo de atraso e a segunda como
modernidade e conforto. As palavras do citado reclame corroboram com tal discurso, como
pode ser observado ao trazer em letras garrafais o título “MARINGÁ CONQUISTA A
MATA”. Em seguida, o texto informa sobre a mesma dizendo que “a cidade que em apenas
cinco anos apresentou o impressionante número de 3.000 prédios e 20.000 habitantes, não
pára de crescer”. E emenda: “A foto tirada a Oeste de Maringá mostra uma derrubada recente
para dar expansão à cidade, da qual se vê parte”.
Como apontam alguns estudos recentes, o norte paranaense, desde o final do século
XIX até a década de 1950, ou grande parte dele, é representado como um grande “vazio
demográfico”, uma extensa faixa de terras, ressaltando a ausência de representações que
indiquem a presença humana, especialmente da constituição de núcleos urbanos. Contudo,
essa idéia do “vazio demográfico” foi sendo edificada ao longo do referido período por
diversos atores sociais. Mota mostra que tal representação é uma visão que os conquistadores
fizeram de si mesmos. Geógrafos, historiadores, sociólogos, representantes da burocracia e
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empresas colonizadoras difundiram a noção dessa região lugar desabitado, lugar de terras
virgens e intocadas, terras devolutas e desconhecidas, vasto sertão, ilimitado deserto humano
e vazio absoluto (MOTA, 2005).
Outro exemplo é a contracapa de uma edição anterior, na qual se lê: “Sinta a alegria de
viver e prospere no Norte do Paraná” (A Pioneira, 1941). Mais emblemática ainda é a
contracapa da revista datada de 1951, cuja imagem de uma enorme figueira contrasta com a
escala humana, ao apresentar alguns homens em pé junto ao seu caule e, logo em seguida, o
destaque para o texto que exalta o porte da figueira branca e a associa ao padrão de terras
boas.
O reclame ressalta que “Nas matas virgens do Paraná, constituídas por árvores altas e
grossas, encontram-se em abundância as melhores terras boas (...)” (Revista A Pioneira,
1951). Por fim, dois textos, em pequenos quadros paralelos informam: 1) Vantajosa produção
de café, cereais, fumo, algodão, cana-de-açúcar, mandioca, trigo, etc.; 2) No assombroso e
rápido progresso da região se encontra a afirmação da fertilidade da terra.
Nas páginas publicitárias nas quais figuram imagens de Maringá, na sua grande
maioria, com a conotação de cidade que vinha crescendo rapidamente e sem precedentes
podem ser observados inúmeros dos discursos elaborados nesse ideário. Portanto, ao eleger as
imagens onde são exibidas árvores centenárias com bravios colonos as derrubando, clareiras
abertas na mata, o uso de fotografias panorâmicas que buscavam dar a impressão de uma
cidade nascendo, e, mais que isso ainda, em pleno crescimento, se pode ler nas entrelinhas o
discurso da modernidade.
Ao empregar a fotografia como documento para contar a história de uma cidade do
interior e consequentemente da região, é importante não perdermos de vista a intencionalidade
com que a fotografia foi produzida. A análise de tal documento poderá contribuir no
enriquecimento do trabalho com história local, pois a imagem tem a capacidade de instigar,
desafiar, de despertar algumas reflexões.
Pode-se considerar que a construção de um imaginário sobre a floresta contribuiu para
a radicalidade do desmatamento na região. A identificação da floresta como área inculta, não
zelada, como um “nada”, com sua “desorganização” natural foi associada ao atraso, à
preguiça, à falta de trabalho. Desmatar, limpar, era garantir o direito de posse e propriedade,
de exaltar a nobreza do trabalho, a vitória sobre o inóspito e a grandeza da racionalidade da
produção, da perspectiva de enriquecimento e de melhores condições de vida material
(CARVALHO; NODARI, 2007).
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Ainda hoje a mítica do pioneirismo é extremamente presente no cotidiano local, por


meio da imprensa e nas comemorações em geral. A cada ano na data em que se comemora a
emancipação do município há uma re-memoração desses valores. No entanto, para o olhar
curioso do historiador, as mesmas imagens publicitárias que reforçam esse discurso deixam
ler nas entrelinhas a ambigüidade que se formava em torno de tal discurso. O lado ambíguo
pode ser ouvido nos relatos orais, os quais não são trabalhados neste artigo, mas que registram
significativamente os diversos olhares sobre a ocupação da região. Igualmente nas campanhas
publicitárias, como as citadas, nas quais se buscava imprimir a idéia de modernidade, em
meio às dificuldades que o local visivelmente denotava, no acesso a estradas de rodagem ou
ferrovia.
Ao percorrermos os vários arquivos da cidade, bem como ao folhearmos as páginas de
revistas da época, encontramos inúmeros indícios da memória de Maringá como cidade
planejada e próspera. Nas entrelinhas, podemos ler os códigos culturais que vão se
sedimentando na memória local. A floresta, da mesma forma que necessitava ser domada,
também assegurava a fertilidade e salubridade. Era exaltada a presença de água de pureza
invulgar, da estrada de ferro e rodagem e, sempre frisando, títulos de posse absolutamente
seguros por parte da empresa colonizadora.
A imagem, compondo o discurso da modernidade, foi fundamental no processo de
ocupação do norte paranaense, figurando como um dos principais atrativos. No espaço da
revista, principalmente nas contracapas eleitas para esta análise, é visível como se podia
conduzir o leitor nos meandros de tal discurso, seja por meio do que ele ressaltava, seja por
meio do que ele omitia. A utilização da imagem não apenas tornava o norte paranaense
atraente aos olhos do leitor, ao ser evidenciado como lugar de progresso, terra da promissão,
mas também dava margem à promessa de uma vida melhor. Entretanto, não podemos perder
de vista que as articulações entre tradição e modernidade não se reduzem a um processo de
mão única.
Nesse sentido, o tema da memória, assim como o da “invenção das tradições”, assume
proporções renovadas quando examinado pela fonte imagética. No entanto, o que dizer do
título da revista?
Combinados em seu “sentido”, imagem, discurso e metáforas conformam certo modo
de ver a vida moderna. É possível conjecturar, por essa via, que A Pioneira serviu como um
veículo de representação significativo na constituição da memória local, em um momento no
qual desbravar a mata, plantar o café e fundar cidades era sinônimo de progresso e
modernidade. Percebe-se que a publicação deste periódico e especificamente as páginas
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publicitárias aqui analisadas, ajudam a conformar o discurso do pioneirismo e a criação da


memória local.
Assim, cabe aqui ressaltar que pelas imagens analisadas podemos também considerar a
fotografia como imagem/documento e como imagem/monumento, como sugere Le Goff. Se
por um lado a fotografia é tida como índice, como marca de uma materialidade passada, na
qual objetos, pessoas, lugares nos informam sobre determinados aspectos desse passado, no
segundo caso, ela é um símbolo. No caso das imagens citadas aqui, foram elas que, no
passado, a sociedade estabeleceu como as imagens a serem perenizadas para o futuro
(MAUAD, 1996; LE GOFF, 1994). Portanto, se todo documento é monumento, se a
fotografia informa, ela também conforma uma determinada visão de mundo e é isso que
buscamos mostrar por meio do estudo dos anúncios publicitários pesquisados.

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