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Barack

Obama
e o futuro
Entrevista ao
A Revista do Expresso ex-Presidente
EDIÇÃO 2509
dos Estados Unidos
27/NOVEMBRO/2020 da América, que acaba
de lançar o primeiro
volume das suas
memórias. Apesar
de esperançoso,
teme as ameaças
e perigos com
que a democracia
se defronta

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PLUMA CAPRICHOSA

E NEM ISTO CONSEGUIMOS FAZER

T
O QUE SE PODE DIZER DO CONTROLE DA ÁSIA SOBRE A DOENÇA É QUE A ÁSIA DEMONSTROU
SUPREMACIA E MAIOR INTELIGÊNCIA COLETIVA DO QUE A EUROPA E OS ESTADOS UNIDOS
controlando gastos e orçamentos e a corrupção piqueniques durante a estação das cerejeiras em flor e
colateral. De um ano para o outro, o que estava quando se levantam nem um papel ou plástico ficou
terminado era o projeto japonês, fosse um edifício na relva. Nada se deita para o chão porque o chão faz
ou uma estrada. No Vietname, que sendo um país parte da natureza, do espaço público e da estética da
comunista não morre de amores pela China (o cidade. Tóquio está impecável, tão impecável que nem
comunismo vietnamita era pró-soviético e não se percebe como e quando o lixo é recolhido. Quando
maoísta), e luta para se libertar da garra predadora um estrangeiro desobedece às regras não escritas, por
chinesa na região do mesmo modo que lutou para exemplo, colocando um detrito no recetáculo errado,
escapar ao colonialismo milenar da China, o metro a reprovação é feita com o olhar. O japonês emenda
de Saigão, Ho Chi Min City, foi adjudicado a uma o ato e muda ele mesmo o lixo para outro recetáculo.
companhia chinesa e outra japonesa. A japonesa Aconteceu-me, por descuido lancei um plástico num
prosseguiu os trabalhos para os poder concluir recetáculo de papel. Um japonês foi buscar o detrito e
dentro do prazo, a chinesa ficou empatada em erros colocou-o no sítio certo.
técnicos e processuais, e em corrupção local. Para quem vai de um país desleixado e habituado
Em toda a Ásia, o Japão é o único país que contrapõe à constante improvisação e desculpa, à batotice e
óquio tem 37 milhões e 393 mil seres humanos que o poderio da grande China. Uma viagem dentro do à mentira para camuflar o erro ou a falta, visitar
a habitam. A Tóquio Metropolitana tem, até agora, Japão, ou dentro de Tóquio, ajuda a explicar tudo Tóquio é um exercício de distensão. Não se pode
38.060 casos de infeção e 468 mortes. O Japão é uma isto. O sucesso. A organização. E a competição. O improvisar. Tudo está pensado. Tudo está planeado
democracia. E controlou a pandemia. Tóquio tem Japão sofre hoje de um excesso de sucesso do estado e se soubermos o que vamos encontrar, nada corre
uma densidade populacional muito superior à de social, que gerou o envelhecimento populacional. mal. O coletivo exige inteligência e rigor individual,
Lisboa, parecida com a de Hong Kong ou Singapura, E do excesso de sucesso do sistema capitalista, que planeamento e propósito. Quem se der mal com isto,
dois territórios minúsculos muito povoados. gerou prosperidade em detrimento de tempos livres deve visitar antes o Brasil.
Singapura ou Hong Kong controlaram a pandemia. e procriação. As longas horas de trabalho a seguir Na estação de Quioto, encontrei uma excursão de
O que se pode dizer do controle da Ásia sobre a à guerra, no esforço da reconstrução, geraram um brasileiros de São Paulo, descendentes de japoneses,
doença é que a Ásia demonstrou supremacia e maior hábito integrado no processo produtivo e cultural. que visitavam o Japão pela primeira vez. São Paulo
inteligência coletiva do que a Europa e os Estados Apesar dos lugares-comuns sobre o país, que tem um bairro japonês, o da Liberdade, que hoje
Unidos. Na China, a ditadura do partido comunista estipulam que o Japão é um lugar de alienados e também alberga coreanos e chineses. A estação, um
explica o sucesso e a autoridade dos meios, do de escravos do trabalho, a realidade é diferente. milagre de arquitetura, design e tecnologia, pôs os
mesmo modo que a liberdade da democracia explica Os japoneses gostam de se divertir, têm sentido paulistas japoneses com lágrimas nos olhos. Um deles,
o fracasso, mas o sistema político ou a experiência de humor e em Tóquio a happy hour está cheia dizia, “meu Deus, visitar o Japão vindo do Brasil é
do SARS não explicam tudo. Certamente, não de assalariados, os salary men, que se divertem e como entrar no paraíso. Nem consigo acreditar que
explicam o sucesso do Japão e de Tóquio, onde os confraternizam antes de irem para casa. A cidade descendo desta gente. Todos os dias choro”.
transportes coletivos estão cheios à hora de ponta e é suprema, é um dos lugares mais agradáveis do Compreendo. Lembrei-me disto ao ver um grupo
nas casas e nas ruas vive e trabalha uma população planeta. E um dos mais bonitos. O perfeccionismo muito português de motoristas de transportes públicos
que é quase quatro vezes a de Portugal. aliado à cortesia, profissionalismo e delicadeza, a falarem uns com os outros, no Parque Eduardo VII
Todos os anos viajo para o Japão. É o país que mais produzem um efeito de calma, de ordem funcional e de Lisboa, onde estacionam as camionetas (o parque
admiro. É o país que me ajudou a perceber como amável, não forçada. A cortesia é o traço dominante. é o estacionamento?), ostensivamente sem máscaras.
somos desorganizados, descorteses, desviados, Ninguém levanta a voz, ninguém impõe, ninguém Ao ver um grupo de motoristas de táxis desocupados
desonestos e não competitivos. E pobres. De insulta. Ninguém buzina. Não existe o sistema da falaram uns com os outros, sem máscaras. Tão
todas as características do povo japonês, a mais gorjeta, considerado desonroso. Não há pobres simples, usar máscara quando não há distância. E
notável é o respeito pelo outro e pelo coletivo, que nem pedintes, quando muito um vagabundo com nem isto conseguimos fazer. b
raia o sacrifício se for exigido pelo bem maior. O ressaca. Podemos deixar uma carteira bem recheada
estoicismo com que o Japão enfrentou o tsunami e o esquecida em todo o lado, ninguém a levará. Não há
desastre de Fukushima só se explica pela coragem violência.
e a ideia de que, para evitar o colapso, alguns Nas estações, há letreiros que avisam que não se deve
terão de raciocinar pelo todo. Os trabalhadores correr para o comboio, antes planear a chegada com
voluntariaram-se para entrar no reator destruído antecipação, e aguardar a vez na fila. Nos comboios-
e começar a limpeza dentro da central nuclear. balas, os shinkansen, que são de século XXII, as
Nenhum outro país no mundo teria reagido assim. pessoas comem de uma bento-box um lanche ou

/ CLARA
O Japão sofreu com duas bombas nucleares que refeição, e não deixam cair uma migalha. Tudo está
pulverizaram Hiroxima e Nagasáqui e queimaram limpo e é deixado limpo, seria descortês não deixar as
e adoeceram a população durante mais de uma
geração. O Japão tem um clima e uma posição
coisas como as encontramos. As casas de banho são
templos de higiene. Ninguém usa o telemóvel em alta
FERREIRA
geográfica propensos a sismos e tsunamis, a voz, ou incomoda os outros. Os únicos autorizados a ALVES
tempestades brutais e a acidentes. Será dos países fazer algum barulho são as crianças. Os parques
que mais sofrerá com o aquecimento global. Será o e jardins são ilhas de sossego, silêncio e
país melhor preparado. E o que nunca se queixará. bem-estar, e os arranjos e ornamentação
No Afeganistão depois da guerra, o Japão era o são destinados a respeitar a comunhão
único país que ia desenvolvendo projetos para o com a natureza e a contemplação da
povo afegão, parte da sua política externa na região, beleza. Os japoneses fazem extensos

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SUMÁRIO
EDIÇÃO 2509 | 27/NOVEMBRO/2020

fisga +E Culturas Vícios

ALEX GOZBLAU
9 | Agricultura em Portugal
A urgente “renovação
geracional” só irá ser
alcançada com apoios
diferenciados para um país
que não é todo igual
24 | Islão
A França de Emmanuel
Macron a braços com
o mundo muçulmano ou
o mundo árabe e o fascismo
55 | “Mank”
Uma viagem nada doce aos
anos de ouro de Hollywood
pela mão de David Fincher
60 | Shirley Collins
79 | Geologia
Como era Lisboa há
100 milhões de anos?
A resposta está no Museu
Geológico do LNEG
28
Pandemia
Professores, psicólogos
34 | Cidadania Entrevista à primeira dama 82 | Receita
12 | Déjà Vu Direitos e deveres no da folk britânica, a propósito Por João Rodrigues e pais explicam porque
A feliz rotina da vitória comprometimento com de “Heart’s Ease” é fundamental deixar
Por Bruno Vieira Amaral a sociedade — eis a história 83 | Restaurantes
62 | Livros Por Fortunato da Câmara
as crianças correr riscos
da democracia
14 | Os Cadernos e os Dias “O Bom Soldado”, e superar o medo
Histórias amorosas 40 | Barack Obama de Ford Madox Ford 84 | Vinhos
Por Gonçalo M. Tavares Entrevista ao antigo Por João Paulo Martins
Presidente dos Estados 66 | Cinema
18 | Planetário Unidos sobre as suas “A Voz Humana”, 85 | Recomendações
O Booker Prize memórias no cargo, agora de Pedro Almodóvar De “Boa Cama Boa Mesa”
de Douglas Stuart transformadas em livro
Por Nuno Galopim 68 | Televisão “Gambito 86 | Moda
em “Uma Terra Prometida” Por Gabriela Pinheiro
de Dama”, de Scott Frank
e Allan Scott, na Netflix
87 | Design
70 | Música Por Guta Moura Guedes
Sérgio Godinho em disco
FICHA
com a Orquestra 89 | Passatempos TÉCNICA
Metropolitana de Lisboa Por Marcos Cruz
Diretor
João Vieira Pereira
74 | Teatro & Dança
Diretor-Adjunto
“Duas Peças de Xadrez”, Miguel Cadete
de Joãozinho da Costa mcadete@impresa.pt
Diretor de Arte
76 | Exposições Marco Grieco
“Great Moments...”,
de Eduardo Batarda Editor
Jorge Araújo
jmsaraujo@expresso.impresa.pt
Coordenadores
Ricardo Marques
rmarques@expresso.impresa.pt

CRÓNICAS Luís Guerra


lguerra@blitz.impresa.pt

3 Pluma Caprichosa por Clara Ferreira Alves | 20 Cartas Abertas por Comendador Marques de Correia Coordenadores Gerais de Arte
Jaime Figueiredo (Infografia)
54 Fraco Consolo por Pedro Mexia | 78 O Mito Lógico por Luís Pedro Nunes João Carlos Santos (Fotografia)
88 Diário de Um Psiquiatra por José Gameiro | 90 Que Coisa São as Nuvens por José Tolentino Mendonça Mário Henriques (Desenho)

FOTOGRAFIA DA CAPA: CHRISTOPHER ANDERSON/MAGNUM PHOTOS/FOTOBANCO.PT

E 6
EU E O EXPRESSO

“Desde que me lembro, o Expresso faz parte da minha casa e,


por isso, foi com imenso orgulho que comecei este ano,
semanalmente, a partilhar receitas, produtos e produtores
portugueses cujo trabalho admiro e respeito. Na edição de
hoje, reúno 20 receitas de petiscos e 20 produtos portugueses
que todos devemos conhecer melhor.”

João Rodrigues
fisga
“QUEM SABE TUDO É PORQUE ANDA MUITO MAL INFORMADO”

Terra velha
Nos últimos dias, Firmino Cordeiro tem estado a trabalhar
na apanha da azeitona. Não se pode dar ao luxo de confinar:
“Há pouca mão de obra, somos só dois mais duas pessoas da
família, tem sido difícil”, resumiu ao Expresso desde Trás-os-
Montes, no final do quarto dia de trabalho. Foi jovem, já não é,
e aos 51 anos continua a ser diretor da Associação dos Jovens
PORTUGAL TEM OS AGRICULTORES MAIS ENVELHECIDOS DA EUROPA Agricultores de Portugal (AJAP). O seu primeiro lamento vai
E POUCO SANGUE NOVO A PREPARAR O FUTURO. A URGENTE para o impacto da pandemia nos produtores e empresas que
perderam negócios cá dentro e viram as exportações caírem
“RENOVAÇÃO GERACIONAL” SÓ IRÁ SER ALCANÇADA COM por terra. Mas Firmino Cordeiro também avisa que a covid-19
APOIOS DIFERENCIADOS PARA UM PAÍS QUE NÃO É TODO IGUAL só veio dificultar no imediato algo que já era incerto a longo
— E INVESTIMENTOS QUE VÃO ALÉM DA AGRICULTURA prazo: a subsistência da agricultura portuguesa.
Os últimos dados mostram que em Portugal o número de
TEXTO TIAGO SOARES INFOGRAFIA CARLOS ESTEVES agricultores diminuiu cerca de 40% entre 1999 e 2016. Ainda
ILUSTRAÇÃO CRISTIANO SALGADO estamos acima da média dos países da União Europeia, mas

E 9
fisga

somos o país com menos futuro no sector: cerca quando não contam com o apoio dos familiares
AGRICULTORES COM MENOS DE 40 ANOS
de 52% dos agricultores portugueses têm mais com experiência na agricultura.”
Em %, por país da UE, em 2016
de 65 anos, a percentagem mais alta em toda a A agricultura faz-se cada vez mais com menos
UE; e só cerca de 4% têm menos de 40 anos — o 0 5 10 15 20 25 mão de obra e mais tecnologia, o que requer
segundo país mais velho, com menos de 11 mil Áustria mais formação. Atualmente 20% dos agricultores
profissionais. O Programa de Desenvolvimento Polónia em território nacional têm o ensino superior.
Rural 2020 (PDR) apoia-se nestes números Eslováquia Para Tomaz Dentinho, investigador de Ciências
para definir como um dos seus objetivos a França Agrárias na Universidade dos Açores, este é
“renovação geracional” dos trabalhadores da Estónia um ponto importante, mas que ganharia uma
terra, e na semana passada o Ministério da Luxemburgo outra dimensão com “aulas práticas junto das
Agricultura anunciou €10 milhões para apoiar Alemanha explorações agrícolas e agroindústrias, mesmo
jovens agricultores que se queiram instalar em Bulgária que para isso se pagasse ao agricultor e ao
territórios de baixa densidade: €2 milhões para Hungria industrial que dá a formação e faz a avaliação,
a instalação dos projetos, €8 milhões para as Lituânia até para selecionar os estudantes que melhor
operações. UE desempenho têm na ligação da teoria à prática”.
Firmino Cordeiro lembra que a agricultura Croácia A portaria que regulamenta os apoios a jovens
portuguesa deu um salto em muitas áreas — Rep. Checa agricultores refere a empresarialização, “mas
horticultura, fruticultura, pequenos frutos, olival Bélgica não premeia os projetos inovadores com maior
intensivo — o que se refletiu em qualidade, Suécia potencial de conseguirem ser sustentáveis”,
quantidade, e exportação. “Infelizmente muito Letónia afirma Lívia Madureira. A situação está
do nosso território fica de fora desta evolução Eslovénia estagnada e isso reflete-se no pessimismo em
positiva e essa parte também é Portugal”, Finlândia relação ao futuro da atividade. “Em Portugal, a
contrapõe. O diretor da AJAP diz que os apoios Países Baixos desvitalização demográfica e socioeconómica
do PDR têm de ser “diferenciados” e ter em conta Espanha crónica das zonas rurais, agravadas pelas
as regiões onde serão aplicados: na década de 80 Irlanda políticas de desinvestimento em equipamentos
isso acontecia, entretanto foi-se “desvanecendo”. Grécia e prestação de serviços públicos e sociais,
“É diferente instalar um jovem agricultor Itália torna-as muito pouco atrativas para a fixação de
no Ribatejo, em Alqueva ou no Oeste, em Roménia fixação de pessoas, em particular jovens”, diz a
comparação com a Serra Algarvia, Guarda ou Malta investigadora.
Bragança”, enumera Firmino. É uma questão Dinamarca O Estatuto do Jovem Empresário Rural (JER) foi
de conhecer as infraestruturas existentes e as Reino Unido finalmente criado em janeiro de 2019, mas os
dimensões das propriedades: “A legislação devia Portugal tipos de incentivos ainda não foram definidos.
adaptar-se aos territórios de baixa densidade”, Chipre Há caminhos possíveis: “Os incentivos ligados
apoiando de forma menos cega mas consoante FONTE: EUROSTAT à transição verde e digital”, por exemplo, diz
o tipo de projeto, a sua localização, inovação e Lívia Madureira. E antes de chamar quem
sustentabilidade. poderá ir, apoiar quem ficou: “Um dos grandes
Na opinião de Lívia Madureira, professora na equívocos do desígnio da fixação de pessoas no
Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro interior é ignorar quem já lá está, e não perceber
(UTAD) e investigadora no Centro de Estudos a importância das dinâmicas familiares e
Transdisciplinares para o Desenvolvimento, comunitárias”, aponta. Isto significa incentivar
devem ser encontradas outro tipo de soluções jovens famílias que se sentem atraídas pelo
além dos apoios executados pelo PDR: “Este estilo de vida do “campo”, mas que precisam
incentivo foi desenhado para um contexto de de ter perspetivas para si e para a educação
sucessão familiar de explorações agrícolas no dos seus filhos, precisam de serviços, cultura,
centro e norte da Europa, em países já com digitalização, internet — coisas que o litoral já dá
alguma dimensão e capitalização, e mesmo como garantidas.
assim não está a travar o envelhecimento dos EM PORTUGAL O NÚMERO O fosso “não se tem aligeirado no que respeita
agricultores”, garante. DE AGRICULTORES DIMINUIU à economia, ao desenvolvimento, às opções de
vida, à cultura, aos serviços sociais, escolares, de
INVESTIR EM “PERSPETIVAS DE VIDA”
CERCA DE 40% ENTRE 1999 justiça e aos serviços de apoio aos empresários”,
A especialista confirma que os critérios dos E 2016. ESTAMOS ACIMA resume Firmino Cordeiro. O futuro da agricultura
incentivos não têm sido os mais indicados, DA MÉDIA DOS PAÍSES DA UNIÃO não tem só a ver com agricultura, mas com tudo o
e realça outro problema antigo: o acesso ao resto, porque “um jovem da cidade com vontade
conhecimento. “Portugal tem negligenciado os EUROPEIA, MAS SOMOS O PAÍS COM de vir pensa bem no que as regiões lhe podem
incentivos à criação e partilha dos conhecimentos MENOS FUTURO NO SECTOR: oferecer.” Este agricultor conhece bem o JER, fez
na agricultura”, resume, apontando que o país CERCA DE 52% DOS a tese de mestrado sobre ele, durante quase uma
não é caso único. “Mas esta situação afeta de década contribuiu para que ele se tornasse uma
forma mais aguda os jovens agricultores sem ou AGRICULTORES PORTUGUESES realidade. “Agora só falta dar-lhe corpo e alma”,
com pouca experiência na atividade, sobretudo TÊM MAIS DE 65 ANOS conclui. b

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fisga
DÉJÀ VU
O FUTURO FOI ONTEM
tartarugas seculares, futebolistas de 70 contabilístico. É como se o mérito de Telma
anos e outros notáveis matusaléns. Mas a Monteiro fosse soterrado pela avalanche de
longevidade de Telma tem sido banhada medalhas que conquistou meritoriamente.
por metais preciosos com uma cadência Para dar o devido valor às conquistas da
POR que faz o português típico desconfiar da judoca, basta desviar o olhar das vitórias
BRUNO competitividade do desporto exótico em que e atentar nos raros fracassos, como o dos
VIEIRA ao tapete se chama tatami e em que tudo se Jogos Olímpicos de 2012, em que a atleta foi
AMARAL decide por waza-aris, yukos e ippons. Bem, porta-estandarte da delegação portuguesa
azar do português típico. Em 2019, quando e era uma das favoritas à medalha de ouro.

A feliz rotina trouxe ao peito a 13ª medalha consecutiva,


neste caso de bronze, em campeonatos da
Telma foi eliminada logo no primeiro
combate, e não faltaram críticas à judoca

da vitória Europa, a judoca disse, com muito juízo e


acerto, que as “pessoas veem bronze, mas
por vencer em todas as competições
menos na mais importante. Em alternativa,
eu vejo ouro”. Acontece que as pessoas, na podemos viajar até ao ano de 2004 e à
sua confortável e rotunda preguiça, acham capital da Roménia, Bucareste, onde se
sempre que é fácil, e casos de sucesso realizou o 15º Campeonato da Europa de
Telma Monteiro ganhou a medalha de crónico como o de Telma Monteiro, em vez Judo. Tudo começou aí. Na década de 90,
prata no Campeonato da Europa de Judo, de lhes suscitarem admiração, confirmam os judocas portugueses alcançaram os
e este feito já só provoca um bocejo nos as suas ideias feitas: “Isso não é nada de primeiros sucessos internacionais. Apesar
compatriotas, que se habituaram à dieta especial!” Olha-se para o opulento palmarés desses resultados encorajadores, a medalha
de ouro, prata e bronze servida pela da atleta — 13 medalhas em campeonatos da de bronze de Telma — a única que Portugal
judoca de Almada. Telma Alexandra Pinto Europa, cinco em campeonatos do Mundo, conquistou nesse certame — foi uma
Monteiro (sem relação de parentesco com três nos Jogos Europeus e a joia da sua coroa, surpresa. A atleta era uma jovem de 18 anos
um antigo procurador-geral da República) a medalha de bronze nos Jogos Olímpicos que começara a competir apenas há quatro.
começou a conquistar medalhas em de 2016 — e o que é uma autêntica gruta Hoje, 16 anos depois, período durante o qual
grandes competições internacionais há de Ali Babá, de infindáveis tesouros o talento e a perseverança transformaram a
16 anos e nunca mais parou. Por si só, a conquistados com suor e génio, em que cada surpresa em rotina, Telma é uma veterana
longevidade seria digna de registo, o tipo medalha esconde uma história de sacrifício e continua a subir ao pódio como se
de proeza assinalada pela imprensa com e superação, adquire a tonalidade baça das fosse fácil. Surpresa seria vê-la chegar ao
aquela curiosidade que traz para as notícias listas de compras ou de um frio balanço aeroporto sem uma medalha ao peito. b

2016

DAVID RAMOS/GETTY IMAGES

E 12
Temporada
20 / 21
jan — mar

Bilhetes
avulso
Por correspondência
30 nov — 02 dez

Disponível online
a partir de 21 dez

GULBENKIAN.PT
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fisga
OS CADERNOS E OS DIAS
HISTÓRIA FRAGMENTADA DO MUNDO

POR
GONÇALO
M. TAVARES

Histórias amorosas
1.
Histórias amorosas modernas, 2020 — na
Tailândia, um grupo dança na rua em frente ao
hospital para que o som da dança no chão ressoe
até ao fraco coração do moribundo e o salve.

2.
Histórias amorosas antigas. A história de Orfeu e Nada se vê, é preciso caminhar, ter confiança; fé, ignora-as, só pensa em Eurídice. Jurou nunca
Eurídice. portanto. mais amar ninguém.
Orfeu, filho de Apolo e da musa Calíope, portador Orfeu talvez tenha deixado de ouvir, primeiro As mulheres rejeitadas ficam loucas, possessas.
de uma lira que encanta todos os vivos, animais os passos e depois a respiração de Eurídice; fica Em bando e bêbadas vingam-se, desfazem o
e humanos, todas as baixas e altas montanhas, ansioso. Estará ela ainda atrás de mim, o que terá corpo de Orfeu, o corpo que as havia ignorado.
pequenos e longos rios e mares, frutuosas ou secas acontecido? “Um dia as desprezadas mães cícones
árvores e plantas. Tudo é seduzido pelo som de Orfeu. O silêncio atrás de Orfeu torna-se insuportável. contra ele se levantam nas sagradas
Há depois muitas variantes desta história, mas Ela segue-me ou não? festas e que celebram Baco, o despedaçam,
aqui vai uma possível síntese rápida: Orfeu Orfeu vira-se; erro definitivo: Eurídice estava lá, lhe dispersam os membros pelos campos.”
totalmente apaixonado por Eurídice, esta morre, atrás dele, seguia-o, silenciosa. Mas agora é tarde Escreve Virgílio, nas “Geórgicas”, na tradução do
mordida por uma cobra. demais. professor Agostinho da Silva.
Orfeu e Eurídice; Adão e Eva; e muitos outros Orfeu terá perdido a fé, por momentos, talvez E depois continua Virgílio, descrevendo este
casais míticos onde a cobra intervém com muitas tenha sido isso. Não olhar para trás, ter fé. Mas pormenor incrível:
maldades e bem más. Uma cobra quase sempre erro que envolve a morte é erro definitivo. “Mesmo quando a cabeça ia, arrancada,
na última sala dos medos mais humanos. Por causa disso, Eurídice não poderá sair do rolando na corrente de Hebro Eagro,
reino dos mortos. Era o compromisso, Orfeu não se lhe ouvia gritar gelada língua

3.
poderia olhar para trás. ‘Eurídice!’, teu nome, e repetia
Em muitos mitos e parábolas, esta questão do sua expirante boca um eco: ‘Eurídice’.”
Mas deixemos os muitos detalhes desta morte. A estranho pecado (talvez o oitavo) de olhar para Pois é isto, uma das mais potentes manifestações
mitologia tem desvios infinitos. trás. amorosas clássicas.
O importante aqui: Orfeu vai buscá-la ao mundo Viver sem olhar por cima do ombro. Viver sem Talvez não seja assim, mas eis como interpreto: a
dos mortos; é autorizado a isso. A sua música consciência da nuca. cabeça de Orfeu grita no último, último instante,
convence todos. O primeiro dos músicos: Orfeu “Pega no arado e não olhes para trás”, diz um antes de ser cortada, o nome de Eurídice. E
não argumenta, encanta. texto sagrado. Trabalhar sem hesitações, avançar já morto Orfeu, ouve-se ainda a sua voz, no
Mas o seu grande amor por Eurídice é o motivo sem receio. momento imediatamente a seguir, vinda do eco,
principal desta excepção radical na mitologia: gritar ainda: “Eurídice.”

5.
poder resgatar um morto e levá-lo de novo para o O já morto que ainda grita, com a sua voz, o nome
mundo dos vivos. da mulher que ama. A voz do morto ainda se escuta;
As ressurreições raríssimas, mesmo na infinita Orfeu sai de novo para a luz viva; está vivo, sim, o eco permite a última declaração de Orfeu.
imaginação dos gregos. mas sozinho; está, pois, desfeito. A sua vida em Senhor Orfeu, encantados estamos ainda, em
Como se fosse algo tão sagrado — um morto que pedaços (e em breve também o seu corpo). 2020, com as tuas canções. E mestre Virgílio,
ressuscita — que mesmo a imaginação tivesse Passam os dias e muitas mulheres o desejam, ele minha vénia e meu respeito, excelentíssimo.
algum pudor em relatar esse milagre.

6.
Uma condição foi posta: Orfeu, quando estiver no
mundo dos mortos, não poderá olhar para trás.
Se o fizer, Eurídice ficará morta, continuará morta E para terminar uma quadra quase amorosa
(continuar morto, expressão estranha, quase ORFEU E EURÍDICE; ADÃO E EVA; de Cesariny:
provocatória). “Passam aqueles
E MUITOS OUTROS CASAIS MÍTICOS com os aquelas
ONDE A COBRA INTERVÉM COM
4.
tanto sou deles
MUITAS MALDADES E BEM MÁS. UMA quanto sou delas.” b
Orfeu vai à frente, Eurídice atrás, os dois por um
corredor escuro que sai do mundo dos mortos COBRA QUASE SEMPRE NA ÚLTIMA Gonçalo M. Tavares escreve de acordo
para o mundo dos vivos. SALA DOS MEDOS MAIS HUMANOS com a antiga ortografia

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de um “Manual de Boas
solução que vai aumentar
a autonomia dos nossos

CAPACITAR
Práticas”, uma espécie de utentes. E não queremos
roteiro, onde se explicam que o projeto fique por
as atividades e os métodos aqui. O objetivo é evoluir
aplicados ao longo do e replicá-lo também

PARA A VIDA
projeto. para o contexto familiar,
Com sede em Faro, esta para que as pessoas com
instituição, fundada deficiência possam, em suas
em 2003, desenvolve próprias casas, pedir mais

AUTÓNOMA
diversas respostas sociais facilmente auxílio a quem
direcionadas para crianças, os acompanha”.
jovens e adultos com
trissomia 21 ou perturbações AJUDAR QUEM AJUDA
do desenvolvimento O Prémio Capacitar resulta
Os projetos financiados pelo Prémio BPI “la Caixa” Capacitar vão intelectual, como autismo, de uma iniciativa conjunta
hiperatividade e défice de do BPI e da Fundação
apoiar cerca de 1400 pessoas em situação de vulnerabilidade,
atenção, entre outras. ”la Caixa” e procura dar
este ano acrescida devido à situação pandémica da covid-19. resposta ao trabalho de
Conheça três dos 28 projetos distinguidos na edição de 2020 COMUNICAÇÃO MAIS EFICAZ muitos profissionais e
Potenciar ferramentas voluntários em entidades
para uma melhor e maior do terceiro sector, através
participação de todas as do apoio a projetos
Durante o confinamento incluem várias atividades: a independência, pessoas com deficiência é a destinados a promover
da primavera as escolas psicomotricidade para a autonomia e a grande aposta da Associação a melhoria da qualidade
fecharam e os mais jovens melhorar a funcionalidade autodeterminação destas do Porto de Paralisia de vida, a ocupação e a
ficaram em casa. Se todos se e, logo, as aprendizagens pessoas. Cerebral (APPC). Com uma autonomia de pessoas com
viram a braços com algum destas crianças e jovens; história que remonta a 1974, deficiência ou incapacidade
tipo de dificuldades, às apoio às atividades REDUZIR A EXCLUSÃO esta instituição tem vindo a permanente em situação de
crianças com deficiência escolares, em articulação LABORAL desenvolver um conjunto vulnerabilidade social.
faltou não só o apoio com os professores e a Acabada a escolaridade de respostas sociais Criado em 2010, em 11
dos professores como família, no sentido de obrigatória, é importante promotoras das capacidades edições este Prémio já
também dos técnicos, que colmatar as dificuldades ocupar e capacitar os destes indivíduos para que atribuiu cerca de 6,9
desenvolvem com elas um decorridas do período jovens com deficiência possam ter uma vida o milhões de euros a 219
trabalho importante para de confinamento para o mercado de mais autónoma possível. projetos, apoiando mais
o seu desenvolvimento e incrementar as trabalho. Este é o principal Em Valbom (Gondomar) de 42.900 pessoas com
funcional ao nível aprendizagens propósito do projeto Escola inaugurou, em 2003, a deficiência ou incapacidade
psicomotor. Foi, assim, na significativas, ou seja, Maior, desenvolvido residência Villa Urbana, permanente e contribuindo
sequência desta pandemia, aquelas que ficam para pela instituição algarvia que acolhe, em regime de para a construção de uma
que a APCAS, Associação a vida; treino físico, APATRIS 21 para promover habitação permanente e em sociedade mais inclusiva.
de Paralisia Cerebral de preferencialmente através as competências laborais, apartamentos individuais, A edição deste ano
Almada Seixal, desenhou o de exercícios conjuntos emocionais e sociais dos mais de 30 pessoas com distinguiu 28 projetos, entre
projeto “CASA!” O objetivo para pais e filhos; ações de seus utentes à saída da paralisia cerebral. O sistema 129 candidaturas, com
é capacitar, acompanhar, capacitação e sensibilização, escola, além de reduzir a de campainhas fixas, a um total de 750 mil euros,
sensibilizar e apoiar no tendo em conta temáticas exclusão laboral, apostando funcionar para pedidos cabendo, às três instituições
domicílio estas crianças e de relevância para os no acesso ao emprego como de assistência entre os aqui referenciadas,
também os seus cuidadores, beneficiários, cuidadores exercício de cidadania, de residentes com dificuldades respetivamente, os
no sentido de prepará-los e profissionais no participação e de igualdade de comunicação ou de montantes de 20.880 euros
para este novo contexto. âmbito da promoção da de direitos das pessoas com controlo de movimentos e (APCAS); 27.680 euros
A iniciativa, diz José Manuel funcionalidade e qualidade deficiência intelectual. o pessoal auxiliar e a equipa (APATRIS 21); e 25.220
Patrício, presidente da de vida na deficiência; “É uma iniciativa-piloto, técnica, tem demonstrado euros (Associação do Porto
instituição, “é inovadora e a elaboração de um diferenciada e de transição estar obsoleto e de difícil de Paralisia Cerebral).
porque grande parte das guia com atividades não ao preparar os jovens em acesso a quem não tem Esta iniciativa está
respostas do género para formais inclusivas (lúdicas, contexto real de trabalho”, destreza manual, pelo que inserida na política de
crianças em idade escolar artísticas, praticadas na destaca Emília Santos, a associação pretende agora responsabilidade social
encontram-se dentro natureza, entre outras) e membro da Direção. desenvolver um método do BPI e da Fundação ”la
da própria escola e não suas adaptações para que “Envolve”, acrescenta a de comunicação mais Caixa” que também inclui
em casa. Por outro lado, possam ser desenvolvidas, responsável, “atividades eficaz. O projeto chama-se os prémios Solidário,
dá ferramentas aos seus dentro ou fora de casa, de agropecuária, padaria e Access My Call e consiste na Infância, Seniores e Rural.
cuidadores, em geral a pelas famílias e pelos pizaria, artes e artesanato, aquisição de uma aplicação Nos últimos dez anos,
família, para lidarem profissionais. além de treino de escrita móvel, de dispositivos num total de 27 edições
melhor com elas em Fundada em 2011, a APCAS, e leitura, matemática e eletrónicos e interfaces de concluídas, estes prémios
situações como a que com sede no Seixal, surgiu informática”. Para o efeito, acesso aos mesmos que vão entregaram mais de 18
enfrentaram durante o para apoiar crianças e a associação dispõe de uma substituir as campainhas milhões de euros para
estado de emergência”. adultos com as mais quinta onde é possível fixas presentes em cada a implementação de
O projeto está programado diversas deficiências. Os praticar a agricultura, tratar apartamento para os 619 projetos de inclusão
para atuar em cinco projetos que desenvolve de animais e cozer massas pedidos de assistência. De social em Portugal, que já
eixos distintos, mas que destinam-se a promover frescas para pão e fazer acordo com Abílio Cunha, ajudaram mais de 140.000
se complementam e que a inclusão, a participação, pizzas. Faz ainda parte presidente da APPC, “é uma portugueses.
fisga
PLANETÁRIO
NO CAMINHO DAS ESTRELAS
POR NUNO GALOPIM

FLASHES LIVROS

Estreia
autobiográfica
EXPOSIÇÃO
O Museu Guggenheim de
dá o Booker a
Bilbau acolheu esta semana a
inauguração de uma exposição
dedicada a Kandinsky (1866-
1944), um dos grandes mestres
Douglas Stuart
do abstracionismo. A obra de
Kandinsky está muito ligada à
história da própria coleção de
Solomon R. Guggenheim, que A narrativa profundamente marcada por ecos eventualmente ser um caminho profissional para si.
começou a adquirir obras suas em autobiográficos que representou a estreia na escrita do Nascido em Glasgow em 1976, começou por definir
1929 e chegou a conhecê-lo na escocês Douglas Stuart venceu a edição 2020 do muito um rumo no mundo da moda. Formado pelo Scottish
Bauhaus, em Dessau (Alemanha), prestigiado Booker Prize. “Shuggie Bain”, que foca College of Textiles, com uma pós-graduação feita
no ano seguinte. atenções no quotidiano de um jovem homossexual, que depois no Royal College of Art em Londres, acabou por
vive com a mãe, alcoólica, na cidade de Glasgow durante atravessar o Atlântico e estabelecer-se em Nova Iorque,
os anos 80, foi descrito por Margaret Bushby, presidente trabalhando para marcas como a Calvin Klein ou a Ralph
MÚSICA
do júri, como um livro “íntimo” e “desafiante”. E da Lauren. “Shuggie Bain”, publicado em fevereiro, foi o
A cantora mexicana Natalia
personagem, que dá título ao romance, afirmou ainda seu primeiro livro e abriu portas a um reencontro com
Lafourcade, os espanhóis Alejandro
que será “inesquecível”. O livro, que será entre nós memórias dos dias vividos em Glasgow. Ao apresentar
Sanz e Rosalía e o rapper porto-
-riquenho Residente estão entre traduzido e editado pela Alfaguara em 2021, foi dedicado o livro ele mesmo vinca as experiências reais que o
os nomes mais destacados na pelo seu autor à memória da mãe, que morreu vitimada levaram a querer escrever, lembrando o alcoolismo e a
premiação dos Grammys Latinos por complicações ligadas ao alcoolismo quando Douglas morte da mãe, confessando: “Durante 30 anos carreguei
de 2020. Natalia Lafourcade tinha apenas 16 anos. essa perda, esse amor, esse sofrimento, e quis contar o
venceu o Álbum do Ano com “Un Douglas Stuart tem hoje 44 anos e em tempos que foi crescer como gay naquela cidade.” O livro terá
Canto por México, Vol 1”. certamente não imaginaria que ser escritor pudesse edição nacional em 2021 pela Dom Quixote. b

DISCOS
PHOTO
MATON
Black Friday fecha um ano
de edições especiais
Depois da divisão do Record Store versão em formato de LP do recente
Day em três datas, a Black Friday “Quickies” dos Magnetic Fields, “The
(organizada nos mesmos moldes) Herbie Hancock Trio” do Herbie
coloca hoje no mercado mais uma série Hancock Trio ou “Jarvis” e “Further
de edições especiais. Entre os novos Complications”, os dois primeiros
lançamentos (em vinil) encontram- álbuns a solo de Jarvis Cocker.
se discos como uma edição especial
de “Let It Bleed” dos Rolling Stones,
“Magic & Loss” e “Live at Alice Tully
Hall — January 27, 1973 — 2nd Show”
de Lou Reed (ambos em formato de
vinil duplo), uma edição que assinala
Personagem criada pelos belgas Greg e William Vance para um mundo de o 40º aniversário de “Boy” dos U2,
aventuras com elementos de ação e espionagem, que originalmente se deu um single com versões de ‘Cosmic
a conhecer na revista “Tintin” entre 1967 e 1977, Bruno Brazil tem agora uma Dancer’ e ‘Solid Gold, Easy Action’, dos
segunda vida com textos de Laurent-Frédéric Bollée e desenhos de Philippe T-Rex, respetivamente por Nick Cave
Aymond. Um segundo volume destas novas aventuras surge agora nas livrari- e Peaches, uma reedição do single ‘My
as portuguesas pela Gradiva. Sweet Lord’ de George Harrison, uma

E 18
C A RTA S A B E RTA S

RAZÕES NECESSÁRIAS, ATINENTES,


SUFICIENTES E PERTINENTES PARA
SE REALIZAR O CONGRESSO DO PCP

O
AVANTE, CAMARADAS, AVANTE! SE O PAÍS NÃO PERCEBE QUE O CONGRESSO
DO PCP É TÃO IMPORTANTE COMO O HORÁRIO DOS COMBOIOS, NÃO VALE A PENA

congresso do PCP, que alguns Aquele Marcelo, seráfico, reacionário, que no fundo é um
neo-nipo-nazi-fascistas seráfico-fascista, quase apelou à proibição do nosso evento.
conjugados com a Santa Madre Quem julga ele que é? O camarada Estaline? Não tem grandeza
Igreja e demais reacionários moral e, sobretudo, não tem mortos no currículo para que
queriam proibir, é uma nos possa meter medo. Não somos como o partido das
necessidade básica do país. carinhas larocas, que ao primeiro sinal de perigo adia as suas
Como a autoestrada para o atividades, só porque o arcediago Louçã, que no fundo é um
Algarve, o catamarã para o arcediago-fascista, é tu cá tu lá com a reação.
Barreiro ou o pequeníssimo ramal E nem falamos dos restantes! Do fascista Rio, que é um fascista-
de Braga (Fafe-Nine-Braga). fascista, ou do fascistíssimo Chicão, que é um fascistíssimo-
Sem ele, não nos orientamos, fascista, ou mesmo do Hitler desfardado que apareceu na
não sabemos o que fazer nem paisagem política portuguesa. Não há que dar troco a essa corja,
sequer o que sentir; sem ele, perdem sentido não só as greves salvo, claro está, no congresso do PCP, onde, de acordo com as
como o próprio conceito de trabalho, de trabalhador, de regras da DGS, reuniremos mais de meia centena de delegados,
operário, de vanguarda, de classe. É muito mau não haver para cada um dizer o que o coletivo o mandatou, sabendo-se
tal conclave, ainda que se pretenda que neste país, em vez que o coletivo diz o que manda o Comité Central, porque alguém
dos trabalhadores, a caminho do socialismo, seja o vírus, a tem de mandar, e nisso somos muito claros. Diremos, sem medo,
caminho de um pulmão alheio, a vingar, a indicar o certo e o o que nos vai no coração, que é de uma cor só: vermelho. Bem
errado, a estabelecer a ditadura do viraliado. sabemos que o coração dos fascistas também é vermelho, mas
Um rapaz, moço e estudante da Escola EB345C+1 de Paio o nosso é mais genuíno, porque combina com a cor do nosso
Santos ou de Mem Sanfins, ou lá de onde era, escreveu a este partido e da nossa bandeira. Digo-vos, queridos camaradas, que
respeito — e a pedido de um professor, que, por mero acaso, só não vos convido para estarem todos em Loures no congresso
nem é comunista, mas apenas dirigente da Fenprof (não é o por dois motivos:
Mário Nogueira) — a seguinte redação: 1) Porque as regras da DGS não aconselham a que esteja mais
“O Congresso do PCP gente do que aquela que nós próprios definimos;
Eu gosto muito do congresso do PCP. O congresso do PCP é 2) Porque certos momentos dos trabalhos do congresso são à
amigo do povo trabalhador e de todos os povos do mundo. O porta fechada, uma vez que nós ainda desconfiamos da reação
congresso do PCP é como um farol que brilha na noite escura e não sabemos quando o fascismo, sorrateiro, chegará e nos
do neoliberalismo e do conservadorismo neofascista, para meterá todos dentro.
indicar aos povos o caminho da liberdade, da igualdade e da De resto, somos um partido com paredes de vidro. Tudo é
solidariedade. O congresso do PCP dá emprego ao meu pai transparente e nada será tão luminosamente visível como o
quando a Câmara Municipal não tem vagas, e a minha mãe congresso. É que nem sequer é lúcido. É translúcido! b
é autorizada a ter uma rulote para vender matrioscas com a
cara da senhora deputada Rita Rato no interior do espaço do
congresso. Sem ele, o congresso do PCP, teríamos de aderir
a um partido burguês, porque não haveria nenhum partido
proletário; nem aquele — que no fundo é um conjunto de
carinhas larocas — que se chama Bloco de Esquerda. Por isso,
quem me tira o congresso do PCP tira-me tudo.”
Na mesma aula, o mesmo professor perguntou a alguns alunos
se gostavam mais do confinamento em casa ou do congresso do
PCP, e todos foram unânimes em preferir o congresso.
O dr. António Costa, que no fundo é um reacionário / COMENDADOR
empedernido disfarçado de socialista, ou seja, um
social-fascista, lá veio dizer que não podia fazer nada para
MARQUES
impedir o nosso congresso. Ó camaradas! Mas que raio de coisa DE CORREIA
é esta em que um Governo coloca sequer a hipótese de proibir
congressos de partidos de outros? Ainda se fosse um Governo
comunista, compreendia-se, mas numa democracia burguesa,
liberal e reacionária é impensável.

E 20
QUADRO “Agar e Ismael
no Deserto” (1731-1732),
de Giambattista Tiepolo

E 24
À espera do
Islão das luzes
Cabe aos muçulmanos, e só a eles,
responderem às questões
com que se confrontam. Mas nada
proíbe que outros, seguros da sua
história singular, os encorajem a isso

TEXTO
GETTY IMAGES

BERNARD-HENRI LÉVY
FILÓSOFO E ENSAÍSTA, COLABORADOR
REGULAR DO EXPRESSO

E 25
T
Ocidente” a “o Islão” é um conceito mal construído, loucos de Deus em versão islâmica; e acolá, aqueles
que de maneira alguma dá conta nem de tudo o que dois responsáveis do Rassemblement National, os se-
está envolvido neste assunto, nem — o que é quase nhores Loustau e Chatillon [Axel Loustau e Frédéric
pior — das relações de força que é preciso instaurar Chatillon, ambos ligados à Frente Nacional, de Ma-
se quisermos verdadeiramente quebrar a vaga crimi- rine Le Pen], que se reclamam da defesa do Ocidente
nosa que se abate sobre o mundo. mas que, num vídeo exumado pelo sítio da internet
Que “civilização” comum, por exemplo, entre “La Horde”, reconhecemos a manifestarem-se ao
as personalidades muçulmanas que subscrevem no lado de Abdelhakim Sefrioui, o fundador do grupo
“Le Monde” uma declaração a reprovar o boicote dos Xeque Yassine que, poucos anos mais tarde, estará
produtos franceses e os bárbaros que, nesse mesmo na origem da caça ao homem que levou à decapita-
dia, semeiam o terror em Viena? ção de Samuel Paty.
Que “guerra” entre uma França que combate a O conceito, seja qual for a ponta por onde se lhe
vontade “separatista” dos islamistas e os muçul- pegue, não funciona.
manos curdos, os afegãos antitalibãs, ou os árabes, É um operador de confusão, de cegueira, de igno-
que escolheram o seu campo, condenam os apelos rância, que mistura aquilo que devia estar separado e
à morte contra o seu presidente e lutam connosco, separa aquilo que, na realidade, se mistura.
ombro a ombro, contra o inimigo comum jiadista? Quando um conceito é tão mísero, quando, obce-
E como não compreender que essa leitura da cado pelo uno, ele torna-se cego ao múltiplo, quan-
História em termos de “civilizações”, elas próprias do o que ele dá a ver é menos sensível do que o que
concebidas como uns blocos fechados sobre si, sem ele obscurece, quando, numa palavra, ele não tem
portas nem janelas, monolíticos, é um erro filosófico qualquer préstimo para nos orientar no pensamento
gravíssimo a impedir que se notem as que em cada nem na ação, não o retomamos, desfazemo-nos dele.
um desses dois conjuntos desfazem as unidades de

***
eve Emmanuel Macron razão no seu discurso dos fachada?
Mureaux [comuna francesa na região administrati- A guerra de civilizações, caso exista alguma, é
va da Île-de-France, no departamento de Yvelines], aquela que, no seio do próprio Islão, opõe os nostál- Bom conceito, em contrapartida, o de
ao defender o direito à caricatura e à crítica das reli- gicos de Averróis, de Avicena ou de Al-Kindi, esses fascislamismo.
giões? Sem dúvida nenhuma. pensadores árabes imbuídos de sabedoria e de raci- Porque se entende aí Islão — já lá irei.
Fez bem, perante a vaga de desinformação lan- onalidade gregas, e os herdeiros, salafistas ou outros, Mas também se entende fascismo — e essa é uma
çada no mundo árabe-muçulmano pelos pregadores dos fundamentalistas que, no século XII, começaram pista fecunda para os que decidirem pensar nos cri-
de ódio e pelos incendiários de espíritos do tipo de a extinguir as luzes de Bagdade. mes que se perpetram na basílica de Nossa Senhora
Erdogan, em ir seguidamente à Al-Jazeera recordar Uma outra guerra, se quisermos conservar o ter- da Assunção, em Nice, e em simultâneo no campus
que não havia, porém, “atacado o Islão” nem “in- mo, é aquela que fora do Islão opõe a cada novo ata- da universidade de Cabul ou nas proximidades de
sultado os muçulmanos”? Evidentemente que sim. que terrorista aqueles cujo primeiro reflexo é deitar uma sinagoga de Viena.
Tendo-se a estação televisiva do Qatar empenhado, ao rio as regras do direito, as leis de asilo e os valores Uma síntese de história.
nas horas seguintes, a multiplicar os cenários para fundadores da Europa, e os que, fiéis ao heroísmo da O mundo árabe-muçulmano alimenta, desde há
tentar baralhar a mensagem, não é certo que ela te- razão dos filósofos, ripostam com firmeza, nada con- três quartos de século, a ilusão de um furacão fascista
nha sido o melhor canal ; mas de que, sem ceder em cedem à cultura da desculpa e da ofensa, mas não que se teria abatido sobre o mundo mas que, tal como
nada e sem recuar um centímetro na frente da lai- cedem nem ao espírito de vingança nem à vertigem a nuvem de Chernobyl em Estrasburgo, se teria de-
cidade, ele tenha feito bem em se dirigir às opiniões do estado de exceção. tido milagrosamente nas suas fronteiras durante os
árabes para corrigir as declarações truncadas ou, por E a exata realidade, aquela que recobre o estere- anos 30 do século XX.
vezes, completamente inventadas, disso eu estou in- ótipo neo-spengleriano, é um jogo de aproximações, Esquece, ou finge esquecer, que formações ideo-
timamente persuadido. de alianças felizes e de solidariedades bem-vindas, lógico-políticas como os partidos Baas iraquiano e
A verdade é que ele se situou, e que todos nós que deslocam esses dois blocos tidos como hetero- sírio ou a Irmandade Muçulmana egípcia de Has-
nos situamos com ele, sobre uma linha de aresta — géneos contra um adversário do qual jamais se re- san Al-Banna foram, na época, explicitamente con-
a mais estreita que há, sem dúvida a mais perigosa, cordará em demasia que ele mata, à escala mundial, cebidas como réplicas árabes a esse sismo europeu,
mas que, no fundo, não é muito difícil de descrever: mais muçulmanos do que não-muçulmanos, ligam além de organizações de combate contra os impéri-
há que ter coragem, e sangue frio, bem como aquele os republicanos de todos os matizes, os resistentes os coloniais.
mínimo de rigor e de precisão na análise sem o qual de todos os horizontes, as almas livres de todas as Ora, existe uma lei que as democracias ociden-
nunca se vence uma batalha política desta dimensão. confissões. tais conhecem bem: esse tipo de amnésia paga-se
E são outras proximidades estranhas, vergonho- sempre, mais cedo ou mais tarde, com um regresso

***
sas, aparentemente contranatura, mas que nem por do recalcado; essa é até uma das explicações vul-
isso deixam de estilhaçar as linhas da frente da guer- garmente admitidas para a emergência, durante os
Antes de mais, a noção de “guerra de civilizações”. ra “civilizacional”: aqui uns “observadores da laici- anos 70, em Itália e na Alemanha, das Brigadas Ver-
É preciso dizê-lo e redizê-lo. Esta ideia, proposta dade” que, sob a pressão dos “descoloniais”, pre- melhas e do Grupo Baader-Meinhof, pelo que não é
há vinte e cinco anos por um ensaísta spengleriano tenderiam restaurar o delito de blasfémia ; ali, uma irrazoável formar-se a hipótese de que, dado as mes-
[De Oswald Spengler, autor em 1918 de “O Declínio extrema-esquerda que brande a sua herança anticle- mas causas produzirem os mesmos efeitos, o culto
do Ocidente”], de uma guerra metafísica a opor “o rical para desfilar, contra “a islamofobia”, ao lado dos da morte e do sangue, o desprezo pelas mulheres e

O mundo árabe-muçulmano alimenta,


desde há três quartos de século, a ilusão de um furacão
fascista que se teria abatido sobre o mundo
mas que se teria detido milagrosamente nas suas
fronteiras durante os anos 30 do século XX
E 26
Passei a minha existência, do Bangladesh
à Bósnia, da Argélia ao Curdistão, das montanhas
do Panchir aos desertos da Somália, a defender
a causa de povos muçulmanos oprimidos
pela liberdade, o ódio aos judeus, aos cristãos e aos verdade possa convencer as multidões que são leva- audaciosos para desradicalizarem a língua das suras,
muçulmanos laicos, em suma, os traços que nos das ao rubro pelos sermões assassinos do grande imã tal como Celan desnazificou a da Alemanha.
parecem próprios do jiadismo contemporâneo, têm da mesquita de Al-Azhar, no Egito, a respeitarem o Mesmo que saibamos bem que não existe, no Islão,
uma das suas origens nos fogos mal apagados desses imprescindível direito, na república francesa, de es- um regime de autoridade análogo àquele que rege a
tempos sombrios... carnecer das religiões. Igreja Católica, tem de se esperar que, apesar dos pro-
Não é mais do que uma hipótese, naturalmente. Mas as mulheres e os homens de boa vontade não cessos de ilegitimidade incessantemente instruídos
E deixa em aberto a questão de se saber o que foi, têm hoje muitas alavancas à sua disposição e — na contra eles pelos idiotas úteis do radicalismo, continu-
nos tempos mais antigos, a relação de força real entre condição de se ser sincero e de, como dizia no final em a erguer-se imãs tão corajosos como o de Drancy,
o Islão pietista e o Islão conquistador. da sua vida o filósofo e orientalista das Luzes Volney, Hassen Chalghoumi, ou o de Bordéus, Tareq Oubrou.
Mas, já que os alinha com a regra histórico- expulsar de si o espírito de malícia e de hipocrisia E, a menos que nos resignemos ao desastre, ou
-mundial, ela tem o mérito de não “estigmatizar” — o gesto de trazer o impensado ao pensamento e seja, uma e outra vez, ao separatismo e aos seus terri-
os muçulmanos. de fazer as pazes com um passado que não passa é tórios perdidos do pensamento, é preciso tentar ima-
Ela tem a vantagem de não “essencializar” o Is- sempre, em toda a parte, um bom método quando ginar o tipo de nós textuais que laqueiam a ligação so-
lão porque vê no seu encontro histórico — ou seja em se escolhe sair, de vez, das fileiras dos matadores. cial, que obstam à fraternidade republicana e que de-
parte, e por definição, contingente — com a ideologia veriam poder resolver um regresso à ijtihad, ou seja, à
mais mortífera do século XX uma das origens daqui-
lo a que o escritor Abdelwahab Meddeb, especialis-
ta em sufismo e desaparecido em 2014, chamava a
***
Tanto mais que em fascislamismo também se en-
livre interpretação, ou à glosa, da qual a História prova
que, pelo menos até Ibn Khaldoun, ela foi uma corren-
te possível do Islão.
sua “doença”. tende portanto Islão. A jihad, por exemplo, é um apelo à guerra ou à
Mas ela tem sobretudo como virtude indicar um E este composto teológico-político recorda, efe- ascese?
caminho: aquele que acabaram por seguir as me- tivamente, que há Islão e Islão ; fala da urgência de se O ‘direito islâmico’ é compatível, e a que preço,
lhores democracias da Europa quando, com os fi- fazer a triagem — em linguagem filosófica, a crítica com os direitos do homem?
lhos a instar os pais e historiadores intempestivos — daquilo que, nos próprios textos, pode justificar o E, uma vez que eles recusam, a justo título, ser es-
a romperem o silêncio culposo em que cada um crime e daquilo que pode interditá-lo; e fala bem da sencializados, porque é que os muçulmanos da Europa
se acomodava, elas empreenderam, quase contra dupla obrigação de não se confundir Islão e Islamis- não fariam ainda mais um esforço para serem verda-
vontade, levar a cabo o seu trabalho de memória mo (o célebre “nada de amálgamas” que é repetido, deiramente existencialistas e fundarem filosoficamen-
e de luto. e ainda bem, após cada atentado) e de não acalentar- te a sua inscrição na cidade?
Libertar-se do sectarismo da Irmandade Muçul- mos, tampouco, a ilusão de um Islão imunizado con- Cabe aos muçulmanos, e só a eles, responderem,
mana, da qual repito que foi levada à pia batismal por tra o pior (o não menos célebre “nada a ver com o Is- repito, a estas questões.
autênticos fascistas que, em 1928, desfilavam em ca- lão” que nos repetem, também esse, em cada ocasião Mas nada proíbe que outros, seguros da sua histó-
misas castanhas nas ruas do Cairo... mas que, infelizmente, não tem sentido). ria singular, os encorajem a isso.
Exorcizar o fantasma do grande mufti de Jerusa- Após a guerra, a Europa, e em particular a Alema- Nada impede que um Presidente da República
lém, Mohammed Amin al-Husseini, que continua a nha, encontrara-se, salvaguardadas as devidas pro- francesa lha coloque ao modo como, há pouco mais
inspirar os dirigentes palestinianos mais radicais e porções, em situações estruturalmente semelhantes. de 200 anos, um imperador colocou aos judeus do
sobre o qual não seria inútil ensinar, nos manuais de Havia pensadores que, como Adorno, julgavam Grande Sinédrio a questão de saber a lei deles era, ou
história, que ele foi um hitleriano fanático... que a grande língua alemã, a dos metafísicos e dos não, e mediante que esclarecimentos, compatível com
Recordar que as grandes narrativas — pantura- poetas caros a Heidegger se tinha comprometido ir- o contrato social.
niana, neo-hitita… — com que Erdogan alimenta remediavelmente com o mal. E uma coisa é certa: esse trabalho do texto sobre
a quimera neo-otomana que hoje em dia semeia o E lembro-me de, em França, o filósofo germanis- ele mesmo, esse esforço de pensamento e, no fundo,
terror entre o Alto-Karabakh, o Rojava e as ruas da ta Vladimir Jankélévitch ter ido tão longe nessa ocul- de desconstrução e de reconstrução, é uma condição
Viena francesa conheceram as suas melhores horas tação que fizera o juramento — mantido, aliás, até ao necessária para que a terceira religião do Livro encon-
no momento em que a Turquia, em plena Segunda fim — de nunca mais falar nem pensar na língua de tre o lugar que lhe compete na economia, para uns da
Guerra Mundial, balançava entre as potências do Goethe e de Hölderlin. redenção, para outros da nação.
Eixo e os Aliados... Ao que se opôs Paul Celan, que se salvou dos Respeito a sabedoria do Islão.
Ou então, o contrário: História contra História, campos mas passou a sua vida a defender que, se o Passei a minha existência, do Bangladesh à Bósnia,
e a crónica dos momentos de luz a vir oferecer con- alemão foi a língua dos assassinos, também foi a das da Argélia ao Curdistão, das montanhas do Panchir
traponto à dos tempos de trevas, opor a essas figuras vítimas, e que, mesmo que fosse só por isso, mes- aos desertos da Somália, a defender a causa de povos
os nomes de um antifascismo que também teve, no mo que fosse apenas em homenagem àqueles que, muçulmanos oprimidos.
mundo muçulmano, os seus títulos de nobreza — o até ao seu último fôlego, tentaram cavar um túmu- Mas quando Agar e Ismael regressam ao deserto,
rei de Marrocos, Mohammed V, justo entre as na- lo nas nuvens da palavra, um poeta autêntico devia quando as cabaças ficam vazias e eles andam às vol-
ções; aqueles goumiers e tabors marroquinos, e ou- dedicar-se a sarar, a reparar, a revitalizar uma lín- tas na noite, é a eles, e só a eles, que cabe neutralizar
tros infantes da liberdade que se ilustraram nos ba- gua em que a última palavra não deve jamais calhar a má-língua que os devora.
talhões gaullistas do Levante e mais tarde de Monte na morte. Reforma intelectual e moral.
Cassino; para não falar dos peshmergas a organiza- A amplitude do crime não é, decerto, compará- Islão das luzes, penúltima chamada.
rem, 30 anos depois da Shoah, a retirada dos últimos vel. E pode suceder, pelo contrário, que o recalca- Para os meus irmãos em Abraão, falta um minuto
judeus do Iraque... mento que anda a regressar ao imaginário da oum- para a meia-noite no século. b
Esses não são velhos debates, somente bons para ma seja mais antigo e esteja mais bem enraizado do
os especialistas. É, na tempestade, o próprio esto- que eu digo. e@expresso.impresa.pt
fo de que são feitos os sonhos, os pesadelos e o sono Mas o mundo, também aí, não tem escolha. Tem
dos homens. Não que esse trabalho de memória e de de apostar em sábios da religião suficientemente Tradução Jorge Pereirinha Pires

E 27
Numa sociedade
cada vez mais
sujeita àquilo
a que um
especialista
chama “pandemia
do medo”,
professores,
psicólogos e pais
explicam porque
é fundamental
deixar as crianças
correr riscos

TEXTOS JOANA STICHINI VILELA


ILUSTRAÇÕES ALEX GOZBLAU

E 28
Tablet
vs.
canivete

E 29
N
a extensa escala de terrores que assombram os pais
modernos existem poucas coisas piores do que a
ideia de ver um filho sofrer. É por isso natural que
uma pergunta como, “mãe, posso ter um canive-
te” provoque num progenitor desprevenido um es-
tremecimento da nuca aos pés. Até é provável que,
nesta forma económica que os miúdos agora têm de
falar, o pedido surja com um verbo a menos, “posso
um canivete?” A elipse ideal para dar asas a alguns
dos nossos mais íntimos receios: “arranhar-me”,
“cortar-me”, “mutilar-me”. “Posso?” Aqui che-
gados, como qualquer pai ou mãe de uma crian-
ça de seis anos sabe, só existe uma saída: empatar.
Na verdade, havia ao dispor uma resposta clara
e simples: “Não.” Mas não era essa a mensagem que
queria passar ao meu filho, quando, há poucas se-
manas, me interpelou no caminho para casa. Por-
que, sim, este dilema baseia-se, como se costuma
dizer, em factos reais. Aliás, quando a tentar ganhar
tempo lancei um “para quê?”, já intuía que situa-
ção suscitara aquele pedido sem precedentes. “Para
afiar paus, como o Nicolau.”
Tínhamos estado os dois a observá-lo no relva-
do junto à escola, o mesmo espaço onde a garotada
gasta mais algumas energias ao final do dia antes de
recolher aos seus apartamentos lisboetas. De joe-
lhos, com uma perícia admirável, sob o olhar intri-
gado de outras crianças e adultos, o miúdo de cinco
anos descascava um ramo de aloendro a golpes de
canivete suíço.
Mais tarde, já em conversa com a mãe, Joana
Gama, 42 anos, ficaria a saber que os canivetes fazem a vigilância dos pais. A ideia é formativa. “Gostam
parte das paixões do lado paterno da família. Sempre muito de brincar com velas ao pé da lareira.” De-
houve “um ou dois” na gaveta da cozinha. A tradu- pois de verem um programa televisivo “sobre pes-
tora jurídica nem percebe bem como começaram os soas que faziam facas mortíferas”, lá estavam eles
filhos a usá-los. “A mim também me faz confusão. “a tentar fazer facas mortíferas com paus fendidos
Sou uma pessoa que vê os perigos”, explicou. “Mas, e latas de Coca-Cola recortadas.” Uma vez, sem avi-
apesar do medo, não consigo achar benéfico impe- sar, o mais pequeno pôs-se a fazer ovos mexidos so-
di-los e então tento que os usem da forma mais se- zinho. Tinha três anos. A mãe tirou uma foto, postou
gura possível.” Ou seja, há regras: o movimento de na conta de Instagram onde costuma partilhar re-
corte é sempre para longe do corpo, não podem cor- ferências sobre pedagogia, e comentou, “a técnica
rer com eles na mão nem ir buscar um sem avisar. E de partir ovos ainda está em aperfeiçoamento. :)”
alguma vez se magoaram? “Nunca.” Na verdade, todas estas atividades se incluem
Embora tranquilizadoras, as respostas incluíram naquilo a que a especialista norueguesa em jogo
outras agravantes para uma mãe ansiosa. Acontece e motricidade infantil Ellen Sandseter apelida de
que o Crocodile Dundee do relvado é o mais novo de “jogo arriscado” (risky play). Defende que estas
seis filhos e costuma alinhar nos planos dos dois ou- são experiências fundamentais para aprender a
tros rapazes, de oito e nove anos. Esta é apenas uma gerir o medo e que, com a evolução das socieda-
das brincadeiras temerárias em que embarcam sob des ocidentais, estão a desaparecer. Entre as seis

E 30
Daí este glitch — palavra da moda para “anoma-
Há experiências fundamentais lia”, tão desconhecida dos miúdos da década de 80

para as crianças aprenderem como outro vocábulo hoje muito em voga — perigo.
Por que razão tinha o alarme do meu sistema ope-
rativo de mãe disparado face a uma situação que
a gerir o medo que, com eu tinha vivido sem sobressaltos enquanto filha?
Seria um problema do sistema ou do ambiente de
a evolução das sociedades trabalho? Teriam os miúdos de hoje perdido capa-
cidades ou os pais ganhado medo?
ocidentais, estão a desaparecer Depois de 11 anos a trabalhar em contextos de
creche e jardim de infância, quatro dos quais na di-
reção de uma IPSS, a psicóloga Ana Passos e Sousa,
39 anos, resolveu criar a Escola Lá Fora. O projeto
baseia-se no modelo pedagógico dinamarquês Fo-
rest School (Escola da Floresta) em que os miúdos
passam o dia inteiro ao ar livre. “As crianças pre-
cisam de mais liberdade e de se confrontarem com
um contexto natural desafiante”, defende. “Isso,
sim, é transformador.”
Este verão decorreram os primeiros campos de
férias na Quinta das Conchas, em Lisboa. Desde se-
tembro que um grupo de meninos entre os três e os
cinco anos passa ali os dias completos. A mata fun-
ciona como se fosse a sala de aulas, com regras bem
definidas em relação aos limites do recinto, subir às
árvores, paus soltos e ferramentas. Com estas ida-
des ainda não usam facas, mas já brincam com ra-
mos e descascadores de frutas e vegetais.
“Há uma desconstrução do que é brincar”, ex-
plica. Mesmo nos campos de férias de uma sema-
na recorda casos de miúdos que chegavam sem se
quererem sujar e saíam satisfeitos “com terra até
à testa”. A evolução é rapidíssima e a supervisão
permanente. “Depende imenso de cada criança,
se cresceu com mais ou menos autonomia. Mas se
por acaso a vemos a pôr-se em risco temos de in-
tervir logo.” Por outro lado, só a exposição ao risco
controlado permite a um petiz perceber os seus li-
mites. “Se não, vai pôr-se em perigo mais tarde.”
É um equilíbrio difícil. Joana Gama fala em
tensão, “entre o medo que nós temos e o risco de
que precisam”. Depois, há miúdos que têm mais
apetência para acidentes do que outros. De cada
vez que olho para a cicatriz na barriga do meu fi-
lho, recordo em câmara lenta o momento em que
há ano e meio o vi cair de uma árvore onde estava
empoleirado com os amigos. Ou, usando a termi-
nologia de Ellen Sandseter, onde se encontrava en-
volvido numa experiência formativa de risky play.
“Foi uma aprendizagem importante”, assegura Ana
Passos e Sousa. A psicóloga faz uma pausa e ata-
categorias, encontram-se coisas como “grandes al- lha: “Há risco em tudo. Os pais têm de saber gerir-
turas”, “ferramentas perigosas” e “elementos pe- -se. Se ficarem muito aflitos, é como diz o profes-
rigosos”. Também Joana Gama fala em aprendiza- sor Carlos Neto: confiar, olhar para o lado, e contar
gem. “Tem de haver uma exposição controlada ao até dez.” Corta para uma chamada telefónica com
risco, adequada à etapa de desenvolvimento. Dei- este decano da Faculdade de Motricidade Huma-
xá-los. Claro que com seis filhos é mais fácil, uma na, que acaba de lançar o livro “Libertem as Cri-
pessoa não tem tempo para andar em cima deles.” anças” (Contraponto Editores). “Ai, arranhou-se o
A verdade é que, em pequena, também eu tive menino, foi?”, provoca, jocoso. “Todos nós preci-
um canivete. Uma faquinha preta. Não sei bem samos de cair. Não há risco zero na Humanidade.
com que idade, apenas que a comprei com as mi- Nunca houve. O confronto com o risco é uma for-
nhas poupanças e a usava para fazer barquinhos ma de perceber os limites e ganhar controlo.” Para
com cascas de pinheiro em intermináveis férias de sintetizar: “A criança saudável é a criança com jo-
verão. Lembro-me de sentir algum orgulho nestas elhos esfolados.”
conquistas. Eram pequenas aventuras, em dias tão Professor desde 1976, Carlos Neto, 69 anos, tem
cheios de tédio como de emoção. Por coincidên- vindo a alertar para a imposição daquilo que ape-
cia, também eu sou a mais nova de muitos irmãos. lida “pandemia do medo”. Na sua opinião, “o pior
Nessa altura, todos eles felizes proprietários de be- vírus que está aí”. Um problema característico do
las navalhas amarelas — e de cinco dedos intactos sul da Europa, onde, apesar do “clima magnífico”,
em cada mão. se abandonou o contacto com a natureza. A questão

E 31
dos canivetes, contudo, atravessa fronteiras. E não partir do segundo ciclo, estão totalmente depen-
é unânime. dentes.” O psicólogo Eduardo Sá vai mais longe:
“Vou contar-lhe um episódio muito engraça- PARA O NATAL, “É altura de dizermos que há aqui interesses obs-
do”, arranca. Destino: Hong Kong. Foi lá que num
congresso da International Play Association (IPA)
DE PRESENTE, EU curos, que põem em causa a liberdade, que fazem
com que miúdos — adolescentes, então, de forma
assistiu a uma comunicação que dividiu o auditó- QUERO QUE SEJA inquietante — entre séries, YouTube e TikTok, es-
rio. Uma japonesa mostrava imagens de crianças tejam sempre agarrados ao telemóvel.” E avisa: “À
de três, quatro e cinco anos a brincar com canive- boleia da covid, há escolas a pedir às crianças pe-
tes e bambu. “Toda a gente ficou perplexa”, lembra. quenas que levem telemóveis para que fiquem ali
“Muitos especialistas criticaram-na. A outra parte Contra “o consumo exagerado em isolamento.” Um cenário de dependência to-
achava que os brinquedos bélicos não faziam mal de brinquedos pré-fabricados”, o lerado e até aceite por pais assustados, com medo
nenhum; aliás, que faziam bem.” especialista em motricidade infantil de exercer autoridade. “Não é dizer ‘não’ na versão
O uso de canivetes faz parte da cultura portu- Carlos Neto clama uma oportunidade gelatina Royal; é dizer ‘não’ de forma clara”, expli-
guesa, desenvolve. “Responde à necessidade an- para os “brinquedos simples”. Se ca. “No dia depois de amanhã tudo isto vai ter con-
cestral que todos temos de explorar.” O professor este Natal lhe coubesse oferecer um sequências dramáticas.”
acredita que a partir dos quatro, cinco anos, os ga- presente às crianças, “a primeira coisa Autor de livros como “Más Maneiras de Sermos
rotos já têm as condições cognitivas necessárias, seriam umas galochas e um kispo, para Bons Pais” (Lua de Papel), Eduardo Sá, 58 anos, fala
desde que supervisionados à distância pelos adul- andarem à chuva”. As outras opções em adultos “ingénuos”, “distraídos”, que “vivem
tos. Não ofereceria um, mas se houvesse em casa parecem saídas dos anos 70 e 80: num mundo que já não existe”. Os mesmos que não
disponibilizaria. “As crianças precisam de brinca- corda de saltar, bola, patins, arco (hoola deixam os filhos andar sozinhos na rua, mas não se
deiras hostis”, frisa, citando o psiquiatra e peda- hoop), trotinete. Depois, brinquedos preocupam se andam sozinhos nas redes sociais.
gogo João dos Santos. “São atividades simbólicas. de construção e jogos de tabuleiro. Que estão preocupados com bulhas e canivetes,
Provocar a morte para dar significado à vida. An- “Brincar é ser ativo, para serem mas são enablers de videojogos com eventuais con-
dar à bulha, por exemplo, é profundamente edu- cidadãos ativos”, defende. “Trabalhar sequências desorganizadoras do comportamento.
cativo — desde que seja a brincar.” Depois, o uso em grupo, resolver problemas que a Que querem saber quem são os amigos com quem
destes instrumentos trará outros benefícios a nível natureza nos apresenta, são esses os os miúdos vão lanchar, mas pouco se interessam
do desenvolvimento neurológico, motor e perce- grandes desafios do mundo do futuro, pelos “amigos” com quem interagem online. “São
tivo. “Quem diz um canivete diz um pincel. Mas que é incerto.” / J.S.V. dois pesos e duas medidas”, diz. “Já perdi a conta
um é considerado muito perigoso e o outro criati- aos miúdos abordados em chats por desconheci-
vo. Quando na nossa ancestralidade ambos eram dos. Há uma estranha condescendência em relação
igualmente importantes.” à forma como tudo isto acontece.” Para concluir:
Dizem os psicólogos que cada criança tem o seu Dilema das Redes Sociais” fez-nos perceber que “Face aos riscos disto tudo, a lâmina de um cani-
talento. O do meu filho, além de cair, será a capa- já somos todos pelo menos um bocadinho depen- vete é uma brincadeira de crianças.”
cidade para insistir sem desistir. Por exemplo, há dentes e que as crianças e adolescentes estão entre À insistência no tablet, o meu filho juntou a
meses, talvez anos, que insiste para ter um tablet. os mais vulneráveis. menção diária do canivete. Foi por isso uma tarde
“Posso um tablet?” Há amigos que têm tablets, fa- Por alguma razão, que talvez se resuma à força feliz aquela em que eu lhe estendi uma navalhinha
miliares que têm tablets, durante o confinamento do hábito ou à simples estupidez, a ideia de um ta- preta resgatada de uma caixa de tesouros esqueci-
até a escola e a socialização de muitos passou a ser blet não me deixou tão alerta como a de um cani- dos. Carlos Neto acusa a sociedade moderna de ter
via tablet. Com a data do sétimo aniversário a apro- vete. E não deixa de ser curioso que, por mais que apagado a infância da memória. Eduardo Sá arrisca
ximar-se, formulou, triunfante: “Mãe, já sei o que puxe pela cabeça, na oferta infindável de jogos e que uma das razões para termos tanto medo pelos
quero de presente, um tablet!” brinquedos para crianças, que se multiplica ainda nossos filhos é termos nós próprios corrido mais
Numa altura em que se teme uma recessão mais por altura do Natal, não me lembre de algu- riscos do que os nossos pais imaginam. Já a ciência
global, o mercado dos tablets para crianças deve- ma vez ter visto uma faca de bolso. Para compen- explica que nunca nos lembramos de um aconteci-
rá não só escapar incólume mas sair mais forte. sar, tablets e outros dispositivos eletrónicos são às mento tal e qual o percecionámos; estamos sempre
Prevê-se que em 2025 atinja os 32 mil milhões de dezenas. Vale-nos o Google, sempre solícito. Não a reescrevê-lo, que é como quem diz a reinterpre-
dólares americanos, mais do triplo dos 9 mil mi- só percebemos que não estamos sozinhos na in- tá-lo. Nestes caminhos intrincados da memória,
lhões de 2018. Os dados são da empresa de estudos quietação, como recebemos de imediato uma lista em que umas coisas ganham peso a mais enquanto
de mercado Market Research Future, que elenca dos melhores canivetes para miúdos (“Top 5 para outras se evaporam, os objetos acabam por ter uma
uma série de argumentos, incluindo: “As crian- 2020”). Há opções em madeira, com lâmina rom- estranha gravidade. Nenhum dos artefactos que re-
ças passam mais tempo em dispositivos móveis ba e os clássicos suíços da Victorinox. Nenhum traz encontrei naquela caixa de sapatos me pareceu tão
do que em atividades ao ar livre.” Com o cenário supervisão incluída. extraordinário como me lembrava. Mas o conjunto
de pandemia, junta-se a fome à vontade de comer. “Não podemos ser fundamentalistas em relação resulta impressionante. Quão diferente, de facto,
Por outro lado, multiplicam-se os alertas sobre os ao uso das novas ferramentas digitais”, defende foi crescer nos anos 80 face ao deslumbre tecnoló-
perigos do uso excessivo deste tipo de aparelho, Carlos Neto. “As crianças têm de ser crianças pes- gico do século XXI. Quanto ao canivete, precisava
desde a saúde física à saúde mental. Fala-se em quisadoras que, quando é preciso, vão ao computa- de ser afiado.
problemas de concentração e de relação, obesida- dor buscar conhecimento. Mas temos de controlar Sentado no chão da cozinha, com gestos lar-
de e sedentarismo. O documentário da Netflix “O o tempo que passam em frente aos ecrãs. Hoje, a gos e seguros, sempre para longe do corpo, o meu
filho de quase sete anos entreteve-se a descascar
um tronco que tinha trazido do relvado. Autointi-
tulou-se, não Tom Sawyer, mas “ninja do canive-

Professor desde 1976, Carlos Neto, te.” Quis saber se havia profissões em que se usas-
sem ferramentas daquelas. Pouco depois já era “o

69 anos, tem vindo a alertar para amigo da paz”. Porque tudo o que queria fazer com
aquela faca era descascar paus. E tinha uma ideia.
Ou melhor, um pedido: “Mãe, no meu dia de anos
a imposição daquilo que apelida os meus amigos podem brincar com o canivete?”
Mas aí já havia uma resposta bem clara e na ponta
“pandemia do medo”. Na sua da língua: “Não.” b

opinião, “o pior vírus que está aí” e@expresso.impresa.pt

E 32
VIDIGUEIRA - ALENTEJO
Cidadania
História de um pilar
da democracia

TEXTO LOURENÇO PEREIRA COUTINHO


DOUTORADO EM HISTÓRIA INSTITUCIONAL E POLÍTICA CONTEMPORÂNEA
E INVESTIGADOR INTEGRADO DO CHAM — NOVA FCSH

E 34
O exercício da cidadania funda-se em direitos,
como a liberdade individual e a igualdade perante
a lei. Mas, também, pressupõe deveres. Alguns
destes são formais, como o pagamento de
impostos, e outros são sobretudo morais, como
o desejável sentido ético e comprometimento com
a comunidade. Como surgiu, como se desenvolveu,
e em que consiste este conceito?

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CIVILIZAÇÃO No século V a.C., o “século de ouro” de Atenas,


o grego distinguia-se dos bárbaros por se assumir como
um homem livre, e por viver numa sociedade que promovia
a participação na vida pública, e estimulava a discussão

E 35
procuravam, ou obtinham, um protagonismo ex- d.C., o imperador Caracala assinou um édito que

A
cessivo, punham em risco o equilíbrio da demo- reconheceu a cidadania romana a todos os habi-
cracia. Estes arriscavam-se a ser condenados ao tantes livres do império. Estes sucessivos alarga-
ostracismo, com a consequente perda de direitos mentos foram claramente benéficos para muitos
políticos. milhões de pessoas, mas, em simultâneo, inviabi-
A democracia ateniense foi, pois, um espaço de lizaram que os cidadãos continuassem a participar
comprometimento e, também, de igualdade entre diretamente no governo do estado. Tal como Platão,
os cidadãos e respeito pelas liberdades individu- também Cícero considerou que uma democracia
ais. Aristóteles foi um dos que defendeu que, des- alargada poderia resvalar para uma anarquia ti-
de que cumprisse as suas obrigações públicas, cada rânica, e defendeu a concentração do poder num
cidadão poderia viver na esfera privada de acordo homem providencial, ou príncipe. Esta foi uma das
com os seus critérios. Nem todos os gregos pensa- bases teóricas que justificou a emergência do impé-
vam desta forma. A cidade de Esparta não reco- rio (César Augusto), com o príncipe, ou imperador,
nhecia a mesma autonomia à esfera privada, e Pla- a concentrar os poderes político, militar e religioso.
tão desconfiava da democracia, pois considerava Contudo, pelo menos teoricamente, o impera-
que a liberdade poderia degenerar em anarquia. O dor ainda governava como representante do povo
pensamento platónico fez escola, e foi particular- romano, assumindo-se como o primeiro dos seus
mente influente após a queda do Império Roma- magistrados. Esta conceção sobre a origem do po-
o redor do século VIII a.C. começaram a surgir no no. Durante a Idade Média, o neoplatonismo seria der começou a modificar-se com a adoção do cris-
Mediterrâneo as primeiras cidades, ou estruturas mesmo uma das bases teóricas da construção de tianismo como religião oficial do império (séc. IV
físicas e sociais cuja finalidade ia além da mera uma sociedade hierarquizada e estruturalmente d.C.). Primeiro, São Paulo e, depois, Santo Agosti-
subsistência humana. Compostas por homens li- anti-individualista. nho, afirmaram que todo o poder advinha de Deus,
vres, integravam terrenos agrícolas e zonas centrais O legado político grego exerceu profunda influ- logo, e por consequência, não derivava do povo
de habitação e governo comum. Então, as cidades ência na república romana (sécs. VI a I a.C.). Tam- romano. O cristianismo dotou assim o império de
eram unidades territoriais pequenas e, generica- bém no caso de Roma, a cidadania não era univer- fundamentos morais, mas retirou aos cidadãos a
mente, assim continuaram por séculos, pois acre- sal, e pressupunha direitos e deveres: direitos polí- soberania, ainda que esta fosse unicamente teórica.
ditava-se que os grandes estados tinham de ser ticos como votar e ser eleito; direitos sociais, como A queda de Roma (476 d.C.), provocou o eclipse
governados de forma centralizada e hierarquizada. casar e constituir família; e direitos económicos, de grande parte das estruturas imperais do Ociden-
No espaço grego, a valorização da filosofia e do como comprar e transmitir património; por sua te, e significou o fim do seu mundo citadino. Entre
debate favoreceu o desenvolvimento da polis, ou vez, os deveres assentavam sobretudo nas obriga- os séculos VI e XII, os habitantes desta zona aban-
cidade, que se afirmou como a estrutura política ções fiscais e militares. No entanto, existia uma di- donaram as urbes, e abrigaram-se sob a proteção
nuclear do mundo helenístico. No século V a.C., ferença substancial entre a democracia ateniense e de mosteiros e castelos. Em paralelo, e tal como no
o “século de ouro” de Atenas, o grego distinguia- a república romana: enquanto os critérios políticos tempo romano, cresceu e consolidou-se uma nova
-se dos bárbaros por se assumir como um homem dos primeiros baseavam-se fundamentalmente em sociedade hierarquizada, mas intrinsecamente or-
livre, e por viver numa sociedade que promovia a princípios filosóficos e morais, os segundos racioci- gânica. Cada indivíduo era pertença de um grupo,
participação na vida pública, e estimulava a discus- navam sobretudo em termos legais. Tal como os an- e não tinha margem para questionar as ideias e re-
são. A liberdade do homem grego era enquadrada tigos gregos já suspeitavam, o alargamento de um gras tidas por imutáveis. Isto tanto era válido para
pela cidadania, ou conjunto de direitos e deveres, estado implicaria então a decadência da democra- o mundo cristão, quanto para o muçulmano, onde o
como a faculdade de participação política e de pos- cia. Foi o que acabou por acontecer em Roma que, Corão e a sunna (tradições do profeta) justificavam
se de bens materiais, e a obrigação do pagamento entre os séculos III a.C. e I a.C., cresceu desmesu- o enquadramento dos crentes num estado suprana-
de impostos e de combater pela defesa da comuni- radamente, passando de cidade-estado a império. cional (umma), e a obediência àqueles que tinham
dade. Claro que esta cidadania helenística não era Em Roma, os direitos de cidadania estavam re- recebido o poder diretamente de Deus.
universal. Era exclusivamente masculina e deixava servados originalmente aos descendentes dos fun- A partir do século XI, o fim das invasões “bár-
de fora a maioria dos habitantes do território gre- dadores da cidade, os patrícios. A partir de finais do baras” e a melhoria das técnicas agrícolas criaram
go, muitos deles amarrados à condição de escravos, século V a.C., estenderam-se aos plebeus e depois, condições para o crescimento populacional. Os ex-
mas consistia em algo de diferente da estrutura dos com o império, foram sucessivamente alargados cedentes agrícolas incentivaram o comércio e pro-
outros estados, onde, genericamente, o poder esta- aos povos conquistados. Finalmente, no século III vocaram uma maior ligação entre comunidades
va concentrado numa única entidade próximas que, durante séculos, quase não tinham
Os gregos chamaram “democracia” a esta forma comunicado entre si. No espaço italiano, onde as
de governo baseada no exercício da cidadania. Péri- estruturas do antigo mundo romano permaneciam
cles, pensador e estadista ateniense (495-429 a.C.),
impulsionou o alargamento e aprofundamento da A cidadania mais visíveis, as cidades continuavam a ser estru-
turas relevantes, e havia espaço para a contestação
democracia, pela defesa da extensão dos direitos
helenística era da autoridade do imperador romano-germânico, e
CARL MYDANS/THE LIFE PICTURE COLLECTION VIA GETTY IMAGES

de cidadania às classes baixas e, também, por es- para a autonomia local.


timular o interesse coletivo pelos assuntos do go-
verno. Para o “primeiro cidadão de Atenas”, quem exclusivamente Nas cidades italianas, francesas e imperiais,
consolidou-se então o juramento comunal, que es-
se alheava da vida pública não passava de um inú-
til, logo, de um ser dispensável. A democracia era, masculina tabelecia direitos e deveres, embora sem reconhe-
cer direitos políticos. Posteriormente, a carta de
pois, indissociável do compromisso cívico.
Mas a participação na vida pública não era me- e deixava de fora comuna, outorgada por um senhor, reconhecia à
comunidade o que esta decidira por si. Entre os sé-
dida por critérios de eficácia. O sofista Protágoras
(490-415 a.C.), por exemplo, considerava que o a maioria dos culos XI e XV, as cidades livres e o direito comunal
coexistiriam em paralelo com o mundo feudal. No
estado devia ser fonte de lei, mas, também, fonte
de moral. Assim, se a cidadania podia ser conquis- habitantes do mundo peninsular, as cartas de foral constituíram,
aliás, um modelo semelhante, embora, neste caso, a
tada por via meritocrática, por serviços relevan- iniciativa partisse do senhor e não da comunidade.
tes prestados à polis, também poderia ser perdida
por desonra: roubo, deserção do campo de bata-
território grego, A Idade Moderna (século XV), trouxe consi-
go o declínio das estruturas feudais, e o início do
lha, dívidas ao estado... De igual modo, em Atenas
não havia lugar para homens providenciais com
muitos deles processo de centralização dos grandes estados eu-
ropeus. Paradoxalmente, o movimento humanis-
egos desmedidos. Considerava-se que aqueles que escravos ta, que preferiu o indivíduo à comunidade, não

E 36
MUDANÇA Winston Churchill foi um
dos principais responsáveis pela
derrota do totalitarismo nazi e
representava uma nova era política

E 37
defendeu os seus direitos políticos. Muitos huma- du roi os deputados eleitos pelo clero e pela nobreza, soberano, depois delegado no rei e no parlamento.
nistas advogaram a concentração de poder no prín- dirigindo-se de seguida a outra sala, onde o espera- Décadas mais tarde, o barão de Montesquieu (1689-
cipe, ou homem providencial detentor do poder vam os representantes do povo (o “terceiro estado”). 1755), um nobre francês estudioso das estruturas
soberano por graça divina. O exemplo mais céle- Em finais do século XVIII, esta separação orgâ- políticas da Antiguidade Clássica, desenvolveu
bre, foi a apologia que Maquiavel faz de Lourenço nica por estados tornara-se já anacrónica. Os re- um pensamento iluminista de base aristocrática,
de Médicis, príncipe de Florença, uma república presentantes do chamado “terceiro estado” eram que advogava o equilíbrio e limitação de poderes,
aristocrática, a quem exortou a não dar ouvidos a sobretudo gente ilustrada, vários deles mais ricos, através do exercício da co-soberania por rei, aris-
idealismos, e a governar de acordo com princípios cultos e influentes que muitos membros do clero ou tocracia e povo, e repartido pelas funções executi-
de realismo político. da nobreza. Contudo, pagavam mais impostos do va, legislativa e judicial.
Décadas mais tarde, Martinho Lutero deu início que aqueles e, sobretudo, a sua importância econó- Por sua vez, Jean-Jacques Rousseau, e o seu ilu-
à reforma protestante (1517), e exortou os alemães mica e social não coincidia com a sua capacidade minismo de base igualitária, formaram o principal
a submeterem-se sem questionar à vontade dos política. Apesar da vontade do rei e do governo, a contraponto do iluminismo de base aristocrática
seus príncipes, condenando sem reservas a revol- política financeira e fiscal dificilmente poderia ser de Montesquieu. Rousseau identificou um deten-
ta camponesa de 1525. Este foi, inclusive, um dos alterada pelos estados gerais, pois as deliberações tor único da soberania, o povo, entidade coletiva e
motivos porque o luteranismo foi de imediato aco- eram então em separado, e as votações feitas por homogénea formada por cidadãos, e que seria dona
lhido pelos príncipes do Norte da Europa (alemães, “estado” (clero, nobreza e povo), e não por “ca- de uma vontade única, ou “vontade geral”. Nesta
suecos e dinamarqueses). A reforma protestante e a beça” (cada deputado com a mesma capacidade e conceção, o poder seria transferido condicional-
contra reforma católica (1517-1565) criaram então cada voto com o mesmo valor, independentemente mente pelo povo soberano, e por meio de um con-
condições para que a maioria dos estados da Euro- do estado de origem). trato social, para os executores da vontade geral, ou
pa ocidental concluíssem o seu processo de cen- Após o início dos trabalhos, intensificou-se a vontade da maioria. Na segunda metade do século
tralização, isto em simultâneo com a consolidação pressão de vários deputados (a maioria do terceiro XVIII, e apesar da crise financeira e social, Paris era
da autoridade dos seus soberanos. No entanto, não estado, mas também vários do clero e da nobreza) uma cidade efervescente, por onde circulavam de
deixaram de emergir (poucas) vozes discordantes para que as regras de deliberação e votação fossem forma mais ou menos velada as ideias iluministas,
contra a autoridade inquestionável do príncipe: do alteradas. Hesitante e mal aconselhado, Luís XVI e onde se discutiam teorias políticas antagónicas,
lado protestante, Jean Calvino considerava legíti- acabou por negar esta pretensão. Então, muitos como a separação de poderes, ou a vontade geral.
ma a resistência contra a tirania, princípio também dos deputados não se conformaram com a decisão Muitos dos deputados reunidos a partir de maio de
defendido pelos padres jesuítas Francisco Suárez e do rei, abandonaram os estados gerais, e resolve- 1789 em Versalhes conheciam estas ideias, e con-
António Vieira. ram reunir-se numa única assembleia na salle des sideravam-nas mais eficazes que as velhas fórmu-
Contudo, estas eram vozes que então pregavam Menus-Plaisirs, onde os votos seriam contados por las absolutistas consolidadas a partir do reinado de
no deserto. O absolutismo vivia o seu período áu- cabeça. Sobre proposta do conde de Mirabeau, um Luís XIV (1642-1715).
reo, e as ideias de cidadania e participação política aristocrata que tinha sido eleito aos estados gerais A 19 de junho de 1789, os cerca de 600 deputa-
eram conceitos que tinham ficado esquecidos na pelo braço do povo, resolveram que apenas as de- dos reunidos à parte dos estados gerais na salle des
Antiguidade Clássica. A partir de 1688, estes come- cisões ali aprovadas teriam validade. A Assembleia Menus-Plaisirs marcaram o corte definitivo com as
çaram a ser recuperados pelos ingleses, que, fun- Nacional acabava de declarar-se soberana. Come- ideias e práticas do antigo regime. Influenciados
damentados precisamente na ideia de legitimidade çava assim uma revolução política que viria a ter pelo pensamento do abade de Sieyès (1748-1836),
da resistência, afastaram o absolutismo de Jaime II um profundo impacto em todo o mundo ocidental. que teorizou a existência da nação, entidade fun-
Stuart, e iniciaram o processo de afirmação do seu A contestação feita por estes deputados à fór- dada no direito natural, pré-existente ao estado,
parlamentarismo representativo. mula anacrónica dos estados gerais não era motiva- e detentora do poder constituinte, estes deputa-
da apenas por questões de justiça fiscal. Baseava-se dos declararam-se representantes da nação fran-
O NASCIMENTO DA CIDADANIA MODERNA igualmente em décadas de pensamento político e, cesa e, porque reunidos numa assembleia nacio-
No final da década de 1780, o reino de França era também, nos exemplos e práticas do mundo anglo- nal soberana, decidiram discutir e aprovar uma
o mais rico e populoso da Europa. No entanto, vi- -saxónico. Em 1690, depois da “Revolução glorio- constituição. Poucos dias depois, esta assembleia
via mergulhado numa crise financeira grave, com sa” que destronou o absolutismo católico de Jaime nacional votou a declaração universal dos direi-
causas complexas, algumas estruturais e de longo II Stuart (1688), John Locke (1632-1704) teorizou os tos do homem e do cidadão. Apesar de já existente
prazo, como o sistema fiscal, a organização social, princípios do sistema representativo, depois apli- no modelo anglo-saxónico, na Grã-Bretanha e nos
e o impacto da perda de grande parte das colónias cados no parlamentarismo britânico, e identificou Estados Unidos da América, a cidadania moderna,
norte-americanas (para a Grã-Bretanha, na déca- os indivíduos como os reais detentores do poder baseada nas ideias de liberdade individual, igual-
da de 1760, e no contexto da Guerra dos Sete Anos). dade perante a lei, e universalidade da sua exten-
Após sucessivas tentativas de reforma do sistema são, acabava formalmente de nascer.
fiscal, e de uma luta inglória contra os parlamentos
UM REGRESSO ÀS ORIGENS?
(tribunais) regionais e contra as prerrogativas das
classes privilegiadas, o rei Luís XVI decidiu convo- Churchill, O percurso inicial da cidadania contemporânea
car os estados gerais para maio de 1789.
Antes da consolidação do absolutismo, era a Roosevelt não foi simples nem linear. Durante a Revolução
Francesa, o confronto do idealismo revolucionário
esta instituição, que reunia as três ordens do reino
sob a presidência do soberano, que o costume atri- ou Mandela com a realidade provocou a radicalização que levou
ao período do “terror” (1792-1795), e à posterior
buía a faculdade de autorizar o soberano a cobrar
impostos extraordinários. Muito tinha mudado, po- são exemplos emergência de um homem “providencial”, Napo-
leão Bonaparte (1799-1815). Após a derrota de Na-
rém, desde 1614, ano da última reunião dos estados
gerais franceses. A sua memória estava de tal forma de “cidadãos do poleão (1815), o caminho para a instauração de um
modelo representativo, aquele em que os cidadãos
perdida no tempo que os organizadores dos estados
gerais de 1789 tiveram de estudar a fundo o cerimo- mundo” e de uma delegam livremente a sua soberania nas institui-
ções que consentem ou elegem, ainda se apresen-
nial da reunião de 175 anos antes, pormenor impor-
tante numa época em que as aparências contavam. época áurea da tava incerto, e era contestado pelos que defendiam
a manutenção do sistema concentrado e orgânico
A 5 de maio de 1789, os representantes do clero, do Antigo Regime.
da nobreza e do povo, reuniram-se por fim na cidade
de Paris. Então, o rei ouviu missa na catedral de No-
cidadania que se A consolidação do modelo político liberal só
chegaria à maioria dos estados da Europa ociden-
tre Dame e, depois, escoltado pelos falcoeiros reais,
encabeçou a procissão que seguiu até à Igreja de São
foi estendendo tal com o andar do século XIX. O liberalismo polí-
tico enquadrava uma cidadania restrita, generica-
Luís. Já em Versalhes, Luís XVI recebeu no cabinet aos novos países mente reservada aos homens, e que comprovassem

E 38
rendimentos. No entanto, continha já os elemen- também totalitário, a União Soviética. Com a vitória Contudo, a História voltou a revelar-se imprevi-
tos base do atual sistema representativo: divisão dos Aliados, a segunda metade do século XX assistiu sível. Em muitos países, mesmo com a existência de
de poderes, eleições, partidos políticos, oposição, por fim, e gradualmente, à instauração nos estados eleições, de um sistema representativo, ou de ga-
debates, imprensa livre, opinião pública... A cida- ocidentais do modelo democrático, ou de sufrá- rantias fundamentais, o acesso à cidadania foi ape-
dania era entendida como na Antiguidade Clás- gio universal. Este implicava o aperfeiçoamento do nas teórico. A digitalização da sociedade contribui
sica, um privilégio e uma obrigação, e deveria modelo de cidadania. Se o século XVIII recuperou para generalizar o acesso à informação e para ligar
ser exercida de acordo com critérios éticos. Nes- a noção de “cidadão”, e o seu direito à liberdade e pessoas, mas trouxe, igualmente, desafios comple-
ta perspetiva, o cidadão tinha de gozar dos meios à propriedade; e se a cidadania política, ou a capa- xos. No século XIX, a imprensa livre foi fundamental
financeiros que, teoricamente, o tornassem tanto cidade de votar e de ser eleito, se desenvolveu ao para informar e formar cidadãos, assim como conti-
independente do estado, quanto imune à pressão e longo do século XIX e com o modelo liberal; o sé- nuaria a acontecer no século XX, então juntamente
à corrupção. Defendia-se então que a independên- culo XX, sobretudo a sua segunda metade, trouxe com rádio e televisão. Atualmente, as redes sociais
cia financeira proporcionava, também, o tempo de definitivamente para o espaço público a cidadania fornecem livre acesso a informação não escrutina-
ócio necessário para que o cidadão se pudesse de- social, ou o reconhecimento do direito universal à da, e a opiniões e correntes radicalizadas, que antes
dicar à leitura e reflexão dos temas públicos. Esta saúde, à educação e à proteção contra a exclusão. não tinham espaço nos media. Em apenas 15 anos,
era uma cidadania exigente, mas, como reverso, Esta nova era conheceu grandes referênci- entrou-se numa nova era, com os seus aspetos po-
não era inclusiva. Destinava-se apenas à elite que as, como Winston Churchill e Franklin D. Roo- sitivos mas, também, com muitas armadilhas. A in-
se assumia capaz de exercer cargos públicos e de sevelt, principais responsáveis pela derrota do formação credível é imprescindível, a opinião livre é
fazer escolhas conscientes. totalitarismo nazi, ou Nelson Mandela, que per- fundamental, mas o boato e os discursos de ódio são
Durante a segunda metade do século XIX, o sonificou a oposição determinada e consciente destrutivos e contrários aos valores democráticos.
progressismo e o socialismo não marxista (social- contra o modelo segregacionista do apartheid. Es- Hoje, a cidadania vive num paradoxo e numa
-democracia e socialismo democrático) pugnaram tes eram exemplos de “cidadãos do mundo”, e de encruzilhada. Por um lado, nunca foi tão alargada
pelo direito de protesto (manifestação e greve) e do uma época áurea da cidadania que, gradualmente, e inclusiva; por outro, está cercada pela desinfor-
alargamento universal da participação política. A se foi estendendo aos novos países que se tornaram mação e por uma preocupante radicalização, que
estes, juntou-se mais tarde a democracia cristã, a independentes. pode abrir um perigoso caminho para a emergên-
resposta humanista da Igreja aos desequilíbrios do cia de modelos musculados e homens providen-
modelo liberal, e aos desafios da segunda revolução ciais. O grande desafio da época contemporânea
industrial. Os elementos mais progressistas apon- passa, pois, por continuar a aprofundar o mode-
tavam então o sufrágio universal como a via para o
aprofundamento dos sistemas representativos. De A cidadania lo de cidadania, tornando-o plenamente inclusivo
e universal, e equilibrar as legítimas expectativas
acordo com as perspetivas evolucionistas então in-
fluentes, os regimes teriam um caminho natural de nunca foi tão individuais com o primordial interesse coletivo.
Também, por consciencializar os cidadãos da sua
evolução, e este seria o da passagem do liberalismo
de sufrágio censitário para a democracia de sufrá- alargada importância individual, e do seu papel fundamen-
tal no equilíbrio do modelo representativo, através
gio universal. Tal implicaria, também, garantir o
acesso de todos à educação e a uma vida condigna. e inclusiva. do voto, e de uma cultura cívica participativa, res-
ponsável e exigente.
Mas os percursos históricos não são óbvios. A gran-
de guerra de 1914-1918 colocou à prova as capaci- Mas está A cidadania é um exercício de direitos e tam-
bém de deveres. Confere liberdades individuais e
dades dos estados liberais, e o colapso económico
de 1929 fez o resto. Durante a década de 1930, parte cercada pela igualdade perante a lei, mas exige comprometi-
mento e ética. A corrupção, a desinformação e a ra-
da Europa ocidental tinha já substituído o regime
liberal. Não o fez pela democracia, o seu sucessor desinformação dicalização só podem ser combatidos eficazmente
se cada cidadão estiver consciente da importância
natural, mas sim por sistemas autoritários e tota- do seu contributo para a sociedade. Tal como acon-
litários, que restringiam, ou cortavam, os direitos
de participação política dos cidadãos.
e por uma tecia na Grécia Antiga e na sua democracia. A An-
tiguidade Clássica continua a trazer bons exemplos
A II Guerra Mundial foi uma batalha fatal entre
totalitarismos e regimes representativos, embo-
preocupante para o presente. b

ra estas tivessem, circunstancialmente, um aliado radicalização e@expresso.impresa.pt

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para alunos e docentes 3 636 M€ 68%
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reforço em mais de 100 M€ da dotação de FSE, no eixo
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Sem esse reforço a taxa de execução atingiria os 70%.
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A publicação da lista de candidaturas aprovadas, enquanto medida de transparência e publicidade destinada ao publico em geral, valor da dotação de fundo programada)
é uma das competências da Autoridade de Gestão do Programa Operacional Capital Humano.
Entrevista
Barack Obama

A estranheza
essencial da
presidência
é o isolamento”
São tempos estranhos os que se vivem nos EUA. Há um Presidente que parece
estar eleito, um Presidente que parece não querer deixar de o ser e um
ex-Presidente que acaba de lançar as suas memórias. São quase 800 páginas
— e é apenas o primeiro volume. Obama já está a trabalhar no seguinte
POR JEFFREY GOLDBERG/“THE ATLANTIC”
CHANDAN KHANNA/AFP VIA GETTY IMAGES

E 40
E 41
O
invulgarmente bem escrito. Em ter- — e nada nos últimos quatro anos pa- genuinamente importante para o mun-
mos gerais, o livro sofre por vezes de rece ter mudado a sua opinião. A elei- do, não por causa dos acidentes históri-
ter demasiadas coisas, e há passagens ção de Joe Biden prova que a América cos que nos tornaram a nação mais po-
áridas, embora, sejamos justos, ainda avança para a frente; a persistência do derosa da Terra, mas por ser a primei-
ninguém tenha inventado uma ma- animus racial e do populismo baseado ra experiência verdadeira de construir
neira de injetar poesia em explicações no ressentimento representa a dificul- uma grande democracia multiétnica
extensas do sistema de comércio inter- dade em manter o ímpeto. e multicultural. Ainda não há muitas
nacional de emissões, ou dos motivos A evocação achas-que-agora-é- dessas há tempo suficiente para dizer
de Mitch McConnell. -assim-tão-mau de Gengis Khan por com certeza que vai resultar.”
Cobrimos imenso terreno na nos- Obama foi suscitada por uma passa- As ameaças à democracia ameri-
sa discussão face a face, que teve lugar gem que lhe li alto. É uma breve pas- cana — e à causa mais ampla da liber-
numa quarta-feira e numa chamada de sagem com sugestões de Ozymandias dade — são muitas, acrescentou. Mos-
seguimento dois dias depois. O tema [alusão a um poema de Shelley onde trou-se severo em relação a Donald
mais amplo da nossa conversa foi o uma estátua de um faraó é usada para Trump, mas reconheceu que não é ele
arco do universo moral. Ainda se incli- falar da soberba e da transitoriedade a raiz do problema. “Não me surpre-
bama estava a descrever-me a forma na em direção à justiça? Existe de todo? da glória humana]. Durante uma visi- ende que alguém como Trump possa
como Gengis Khan, o imperador mon- Quando Obama foi eleito há 12 anos, o ta ao Egito, Obama, então no seu auge, conseguir tração na nossa vida po-
gol e inovador em crimes de guerra, arco parecia mais fácil de ver, pelo me- recorda ter meditado sobre o rosto de lítica”, disse. “Ele é tanto um sinto-
cercava uma cidade. “Dava-lhes duas nos para a faixa do país interessada em uma figura desenhada numa velha pa- ma como um acelerador. Mas se era
escolhas”, disse. “Se abrissem as por- ver alguém que não um homem branco rede — um rosto que se assemelhava ao para termos um populista de direita
tas, matava-os rapidamente e levava as ser eleito Presidente. Mas agora ele re- seu. “Tudo aquilo estava agora esqueci- neste país, eu esperaria alguém mais
mulheres deles e escravizava os filhos, conhece que a mudança que represen- do, nada importava, o faraó, o escravo e apelativo.”
mas não os massacrava. Se resistissem, tou espoletou uma reação quase ins- o vândalo tinham-se há muito conver- Trump, notou Obama, não é exa-
cozia-os lentamente em óleo e retira- tantânea, culminando na conspiração tido em poeira. Tal como cada discurso tamente um exemplo da masculini-
va-lhes a pele.” birther [a teoria de que Obama nasceu que fiz, cada lei que passei e cada de- dade tradicional americana. “Penso
Isto não era suposto ser um co- em África, e portanto não tinha direi- cisão que tomei seriam esquecidos. Tal no herói masculino clássico da cultu-
mentário à presidência Trump — não to legal a ser Presidente dos EUA] que como eu e todos os que amei um dia se ra americana quando eu e você está-
diretamente, pelo menos. Obama tem catapultou o seu principal protagonis- tornariam poeira.” Notei nessa passa- vamos a crescer: os John Waynes, os
mais respeito por Gengis Khan do que ta, Donald Trump, para a Casa Branca. gem a presença de uma certa autocons- Gary Coopers, os Jimmy Stewarts, os
por Donald Trump. Foi buscar o tema “O que acho indiscutível é que eu ciência paralisante (“É verdade”, disse Clint Eastwoods, já agora. Havia um
Gengis Khan para explicar um ponto representei uma alteração no poder. A ele), mas contou-me que tinha incluído código... o código da masculinidade
específico e muito à Obama: se acham minha mera presença preocupava as essa ruminação para dizer algo sobre a com o qual cresci, que remonta aos
que o mundo atual é sombrio, pen- pessoas, nalguns casos explicitamen- perspetiva a longo prazo. “Essa cena de anos 30 e 40 e até antes. Existe a noção
sem apenas como era há 800 anos nas te, noutros subconscientemente”, dis- eu a percorrer as pirâmides não é um de um homem que é fiel à sua palavra,
estepes da Ásia Central. “Comparem se Obama. “E havia gente a explorar exercício vazio, tem um propósito. Ser que assume responsabilidade e não se
o grau de brutalidade e venalidade e isso. Se um comentador da Fox News, otimista ou pessimista depende muito queixa, que não é um brutamontes —
corrupção e pura loucura ao longo da quando me vê e à Michelle a cumpri- da escala temporal”, disse, invocando na realidade, defende os vulneráveis
história humana com a forma como as mentarmo-nos com um ‘dá cá mais o espectro de Gengis Khan. “No que contra os brutamontes. E mesmo para
coisas são agora”, disse. “Nem sequer cinco’ ou um fist bump, pergunta: ‘Isso sempre acreditei foi que a humanida- alguém que se irrita com a wokeness e a
chega perto.” Sentávamo-nos em ex- é um fist bump terrorista?’, essa refe- de tem capacidade para ser mais gen- correção política e quer que os homens
tremos opostos de uma longa mesa na rência não é particularmente subtil. til, mais justa, mais equilibrada, mais voltem a ser homens e está cansado de
sua suíte de escritórios no distrito West Se há um cartaz contra a lei do siste- racional, mais razoável, mais tolerante. ver toda a gente a queixar-se da patri-
End de Washington. Os escritórios en- ma de saúde onde eu apareço vestido Não é inevitável. A história não se move arquia, eu pensava que o modelo não
contravam-se vazios, à exceção de um como um feiticeiro africano com um numa linha direta. Mas se houver sufi- seria Richie Rich — aquele tipo de fi-
par de assessores e de uma equipa dis- osso enfiado no nariz, isso não é difícil cientes pessoas de boa vontade dispos- gura que se queixa, mente e não assu-
creta do Serviço Secreto. Obama esta- de interpretar.” tas a trabalhar em prol desses valores, me responsabilidade de nada.”
va de bom humor, feliz por discutir o Para Obama, contudo, a história as coisas podem ficar melhores.” Dois temas que para Obama vão
trabalho que o consumiu ao longo de mais larga da América, e de toda a hu- O que o levou ao seu ponto cen- mais profundo do que as deficiências
mais de três anos: a escrita de “A Pro- manidade, é de progresso intermitente tral: “A América é uma experiência pessoais de Trump têm a ver com as
mised Land” (“Uma Terra Prometi-
da”, ed. Objectiva), as suas memórias
presidenciais — ou o que acaba por ser
(pois ele tem muito a dizer sobre mui-
tas coisas) o primeiro de dois volumes
das suas memórias. As 790 páginas do
primeiro volume levam-no desde a
infância até ao raide a Bin Laden em
2011. A data de publicação do próximo
volume, que deverá cobrir temas como
a guerra civil na Síria, a invasão russa
da Ucrânia e o acordo nuclear irania-
no, ainda não foi anunciada. A minha mera presença
preocupava as pessoas,
“Uma Terra Prometida” é um livro
de memórias presidenciais pouco co-
mum, em muitos aspetos: invulgar-

nalguns casos explicitamente,


mente interior e autocrítico, invulgar-
mente moderno (é a primeira memória
presidencial, acho, a usar o termo bis-
sexual etérea para descrever um inte-
resse amoroso não correspondido) e noutros a nível subconsciente”
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CHANDAN KHANNA/AFP VIA GETTY IMAGES
mudanças no Partido Republicano e Isto teria sido algo difícil para qualquer Uma das questões mais inquietantes
no movimento conservador mais em Presidente, e vimos países que agiram na atual situação é o tempo que se está
geral. “Não acreditei quão facilmente responsavelmente e deram todos os a perder devido à petulância de Donald
o establishment republicano, gente que passos certos e mesmo assim registam Trump e à indisponibilidade dos outros
estava em Washington há muito tem- uma subida, porque nunca tínhamos republicanos para o chamarem à razão.
po e que afirmava a sua fé em certos visto esta doença antes. É um vírus
valores e normas institucionais, sim-
plesmente se rendeu” ao populismo de
Trump, disse.
realmente bem engendrado para ma-
ximizar os danos. Não é tão mortífe-
ro como a ébola, não se transmite tão
2 SARAH PALIN LEVA
O NATIVISMO E O
CONSPIRACIONISMO PARA
Traça a evolução populista dentro rapidamente, mas é suficientemente A POLÍTICA MAINSTREAM
do Partido Republicano até à eleição
que o tornou Presidente. Foi Sarah Pa-
mortífero para ter custos enormes.
O que me parece justo é olhar para Falemos do livro. O que é que não sa- A questão
lin, a parceira de John McCain na cam- o que aconteceu no Canadá, onde tam- bia sobre a presidência até começar a
panha de 2008, quem ajudou a soltar
a onda populista. “O poder dos comí-
bém existem grandes problemas mas a
taxa de mortalidade per capita é cer-
escrever?
Tenho de dizer que quando cheguei
não é se
cios de Palin comparados com os de
McCain — veja-se o contraste de ex-
citação na base republicana. Acho que
ca de 61% mais baixa do que a nos-
sa. Há toda uma série de explicações
para isso — sistema de saúde univer-
ao fim do livro e olhei para trás, as mi-
nhas perspetivas sobre a presidência
eram surpreendentemente consisten-
as coisas
isso indicou até que ponto os apelos
em torno de políticas de identidade, de
nativismo, de conspirações, estavam a
sal no Canadá, e algumas áreas não
têm a mesma densidade populacional.
Mas é um país comparável no mesmo
tes. Quando comecei, tinha um senti-
do básico da trajetória da presidência e
da narrativa que queria escrever, e en-
podem
ganhar tração.”
Diz que a onda populista foi incen-
continente.
Existem poucas dúvidas de que se
quanto o fazia não dei comigo a pen-
sar: “Hum! Não tinha pensado nisso;
ficar
tivada pela Fox News e por outros ór-
gãos de comunicação de direita, e en-
corajada a espalhar-se por empresas
tivéssemos tido uma Casa Branca que
desde o início dissesse, ‘Sigamos a ci-
ência, levemos isto a sério’ — se tives-
refletindo agora, acho aquilo.” Aquilo
que me surpreendeu foi até que ponto
a corrente subterrânea de resistência à
melhores;
de redes sociais sem interesse em ex-
plorar o seu impacto na democracia.
“Não responsabilizo completamente
sem reforçado a mensagem que vinha
de pessoas como o dr. Fauci [diretor
do Instituto Nacional de Alergias e Do-
ideia da minha Administração remon-
ta a Sarah Palin durante a campanha,
e emerge através do Tea Party até ao
é quanta
as empresas de tecnologia, pois isto
antecede as redes sociais”, explica.
enças Infecciosas] e não politizassem
medidas preventivas básicas como a
fim do livro, que termina com o raide
a Bin Laden.
dor temos
“Já aí estava. Mas as redes sociais po- utilização de máscaras, se não tives-
tenciaram-no imenso. Conheço mui-
tas dessas pessoas. Falei com elas so-
sem querido apressar a reabertura e
menosprezado a severidade da pan-
Isso não era claro durante a sua
Administração?
de sofrer
bre isso. Não acho que seja sustentável
elas insistirem que são mais como uma
companhia telefónica do que como a
demia nos principais canais onde uma
grande parte do país vai buscar as suas
notícias, algumas vidas teriam sido sal-
Nessa altura, estávamos muito ocupa-
dos e concentrados. Também acho que
eu tinha interiorizado, e acreditava,
para
“The Atlantic”. Elas fazem escolhas
editoriais, estejam ou não enterradas
vas e teríamos controlado melhor isto.
Também acho justo dizer que se
que os presidentes podem queixar-se
em privado mas não em público. chegar lá”
nos algoritmos. A Primeira Emenda tivéssemos dado passos melhores na
não requer que as empresas privadas identificação de contactos e no esta- Multimilionários e presidentes.
forneçam uma plataforma a qualquer belecimento de protocolos para testes, As pessoas enfrentam dificuldades
opinião que haja por aí.” é provável que não tivéssemos visto muito mais sérias do que aquilo por-
Continuou: “Se não tivermos a ca- surtos severos por todo o lado, e talvez que estamos a passar. Todos tínhamos
pacidade de distinguir o que é falso do tivéssemos conseguido reduzir a se- interiorizado essa ideia. Mas quan-
que é verdadeiro, então por definição veridade da pandemia em certas zo- do escrevi sobre o incidente com Joe
o mercado das ideias não funciona. E nas do país. Wilson, um congressista a gritar “você
por definição, a nossa democracia não A boa notícia é que chefe de gabi- mente” no meio de uma sessão con-
funciona. Estamos a entrar numa crise nete de Joe Biden, Ron Klain, foi a mi- junta do Congresso...
epistemológica.” nha pessoa chave na ébola. Sabe como
Falámos sobre muito mais: as pri- lidar com estes grandes problemas Isso foi inédito...
márias no Iowa; as alterações climáti- de saúde pública. Eles já se rodearam Nunca tinha acontecido. Lembro-me do Partido Republicano ou do movi-
cas; a arte e a ciência de escrever me- com as pessoas certas, que vão aplicar que a nossa atitude geral foi “vamos mento conservador que sempre exis-
mórias presidenciais; os pontos de vis- a melhor ciência e tecnologia e medi- à questão seguinte”. Mas quando se tiu. Remonta aos birchers [membros
ta de Michelle sobre raça e otimismo. das organizacionais. A vacina parece escreve, pensa-se: aquilo foi uma in- da John Birch Society, uma associação
Está tudo aqui em baixo. O pergunta- esperançosa. Será um desafio distri- dicação de algo que estava a crescer? de direita fundada nos anos 50] e a ele-
-resposta é longo mas, acho eu, útil, bui-la e também ultrapassar alguma Escrevendo a meio da Administração mentos da campanha de Barry Gold-
nem que seja como uma lembrança de da desconfiança que a desinformação e Trump, vi que muitas das coisas que water, mas também sentimos que isso
como soa um Presidente ponderado. A as mensagens erradas geraram ao iní- aconteceram na minha presidência está tudo ultrapassado.
conversa foi editada com fins de clari- cio. Vamos superar isto, mas estamos anteciparam o que aconteceria na de
dade e precisão. a tornar a situação mais difícil do que Donald Trump. A sua presidência deveria ter provado,
devia ser. Teria sido sempre difícil, mas de certa forma, que a América seguira

1 OS CUSTOS DA PETULÂNCIA
DE DONALD TRUMP
tornámo-la mais difícil.

Fale das questões sobre a transição de


No livro fica bastante claro que para si
Sarah Palin foi o primeiro cavaleiro do
apocalipse, e Rick Santelli, o repórter
em frente.
Certo. Mas o que acontece é que estas
coisas soltam ou libertam alguma des-
Da morte e destruição a que temos poder. da CNBC que ajudou a espoletar o Tea sa energia. “O poder dos comícios de
assistido, sobretudo nos últimos cinco Apesar de todas as diferenças entre Party, foi o segundo cavaleiro. A par- Palin comparados com os de McCain
ou seis meses, após o início da pande- mim e George W. Bush, ele não podia tir daí o elenco cresce. — veja-se o contraste de excitação na
mia, quanto acha que é culpa do Pre- ter sido mais cortês e mais determina- Na altura em que está a acontecer, base republicana. Acho que isso indi-
sidente Trump? do a assegurar uma transição suave. tem-se a noção de que é uma corrente cou até que ponto os apelos em torno de

E 44
Na “The Atlantic”, Anne Applebaum
e outras escreveram sobre a questão
da cumplicidade. Pergunto-me o que
pensa de pessoas que são mais inteli-
gentes do que Donald Trump — Lind-
sey Graham, Marco Rubio, esse tipo de
políticos — e do seu papel em tudo isto.
Isso foi o que mais me surpreendeu ao
longo dos últimos quatro anos. O ca-
rácter e o comportamento de Donald
Trump não me surpreenderam. Era
tudo óbvio antes da eleição de 2016. Eu
não esperava que ele mudasse signifi-
cativamente. Nem acreditei na facili-
dade com que o establishment republi-
cano, gente que estava em Washington
há muito tempo e que afirmava a sua fé
em certos valores e normas instituci-
onais, simplesmente se rendeu. Pen-
samos em John McCain. Independen-
temente das minhas diferenças com
ele, não o imaginamos a desculpar
um Presidente tão simpático para com
Vladimir Putin, ou a preferir interpre-
tações russas de certos eventos às das
suas próprias agências de informações.
Ver figuras do Partido Republicano
dar voltas de 180 graus em relação a
tudo em que antes diziam acreditar é
perturbador.
Já disse isto antes: o problema que
se põe ao Partido Republicano, ao mo-
vimento conservador, como quiserem
chamar-lhe, tem a ver com as atitu-
des da sua base — atitudes que foram
formadas pelos media de direita. Por-
tanto, essencialmente, o que os repu-
blicanos eleitos fizeram foi dizer a si
mesmos: a fim de sobreviver, temos de
concordar com teorias da conspiração,
afirmações falsas, fantasias que Do-
nald Trump e Rush Limbaugh e outros
JOE RAEDLE/GETTY IMAGES

nessa câmara de eco desencantaram,


porque as pessoas acreditam nelas.

No livro, descreve como “tretas”


aquilo que Santelli fez na CNBC — o
seu apelo a uma nova Boston Tea Party
[um dos eventos que levaram à re-
volução americana, quando colonos
ingleses, num protesto de natureza
políticas de identidade, de nativismo, Mitch McConnell, já tínhamos apren- da Fox News, Rush Limbaugh, todo o fiscal, atiraram ao mar o carregamen-
conspirações, estavam a ganhar tra- dido bem demais. Era difícil prever ecossistema dos media de direita, havia to de navios ancorados em Boston].
ção.” À medida que eu ia escrevendo, quão rapidamente McConnell e o grupo transformado de tal forma a base re- Percebemos isso se olharmos bem. Não
esses padrões tornavam-se mais cla- republicano no Senado parariam tudo, publicana que os republicanos eleitos é diferente do “Celebrity Apprenti-
ros. Uma preocupação correspondente e até que ponto esse tipo de obstrução sentiam que não podiam colaborar co- ce”. É entretenimento. Mas eu reparei,
enquanto escrevia era perceber que os pela obstrução se tornaria a norma. migo ou com os democratas. Não podi- quando vi esse clipe na altura e tornei
obstáculos estruturais no Senado ame- am assumir senão uma linha dura; ti- depois a vê-lo quando estava a escre-
ricano, em particular o filibuster [a re- Estou a pensar no momento em que nham de tolerar teorias da conspiração ver, que os comerciantes — Santelli
gra de costume que exige 60 votos para teve de demonstrar ao então senador que sabiam não ser verdade. fez a sua cena na Câmara de Comércio
aprovar legislação], estavam a impedir democrata, Max Baucus, que o sena- Obviamente, isso neste momento é de Chicago — acreditaram naquilo. O
grandes coisas de acontecer e a pro- dor republicano Chuck Grassley, do pertinente. Vemos o rescaldo de uma ressentimento, a noção de que “nós”
vocar um aumento do cinismo, uma Iowa, simplesmente não o ia apoiar no eleição na qual Joe Biden e Kamala — defina nós como quiser: america-
perceção de que mesmo após uma vi- sistema de saúde, independentemente Harris venceram decisivamente. Não nos brancos, americanos brancos de
tória esmagadora em 2008, ou no meio do que lhe concedesse. foi uma razia, mas foi uma vitória tão classe trabalhadora, conservadores —
de uma enorme crise, e com grandes Na altura em que percebi isso, Max clara como eu acabei por ter em 2012. somos a parte prejudicada e “nós” es-
maiorias no Congresso, é difícil fazer Baucus ainda não tinha percebido. E quase todos os eleitos republicanos tamos a ser vitimizados. Essa impres-
avançar uma agenda legislativa. Isso Foi algo que já sabia antes de come- o sabem. No primeiro dia ou dois nin- são é notória. Temos multimilionários
foi algo que em 2011, com o comporta- çar a escrever o livro, mas os exemplos guém uivou sobre irregularidades elei- e CEO que começam a achar que es-
mento do líder da maioria republicana depois não paravam. A combinação torais. Esperaram pelo sinal de Trump. tão a ser vitimizados. Foi interessante

E 45
reconhecer quão poderoso era esse seria Richie Rich — aquele tipo de fi- interessante. As pessoas têm escrito empenhado em restaurar um sentido
impulso, quão preparadas as pessoas gura que se queixa, que mente e que sobre o facto de Trump ter aumentado de significado e propósito e espiritua-
estavam para abraçar esse tipo de res- não assume responsabilidade de nada. o seu apoio entre negros na eleição de lidade... Uma pessoa que acredita em
sentimento e raiva que Palin e Santelli Acho que isto indica o poder da 2020, e sobre o ocasional rapper que conceitos como cuidar dos menos im-
promoviam. televisão na cultura. Às vezes escapa- o apoiou. Tenho de me lembrar que, portantes. Ela partilha isso com nós na
Portanto o Tea Party torna-se uma -me, porque não vejo muita televisão. quando ouvimos música rap, é tudo esquerda que temos os mesmos impul-
manifestação genuína disso. Tem raí- Certamente não vejo reality shows. E às sobre as joias, as mulheres, o dinheiro. sos não materialistas mas os exprimi-
zes em frustrações bastante reais das vezes perco coisas que são fenómenos. Uma data de vídeos rap usam as mes- mos num prisma não religioso.
pessoas com ordenados estagnados e Mas acho que houve uma mudança aí. mas métricas de sucesso que Donald Quando se olha para a geração mais
comunidades desindustrializadas. As De certa forma, escrevo sobre isso. Na Trump. É tudo revestido a ouro. Isso nova, a de Malia e Sasha, vemos isso
pessoas acham que os insiders estão realidade tenho grande admiração por insinua-se e infiltra-se na cultura. mais claramente. É com frequência
a aproveitar-se delas, e há um senti- muitas dessas tradições, aquilo que se Michelle e eu estávamos a falar so- mais articulado, o que eles querem da
do de perda de estatuto e de identida- considerava serem qualidades mascu- bre o facto de que, embora tenhamos vida. É muito menos provável sentirem
de. Muito cedo na minha presidência, linas. Quando se pensa na maior gera- crescido em lugares bastante diferen- a necessidade de estar em Wall Street
já era visível que se poderia pegar na ção, pensa-se em sacrifício. tes, ambos éramos da classe trabalha- na data X ou Y. Não é tanto assim que
raiva e na frustração e orientá-la para dora, classe média-baixa, em termos parecem definir-se a si próprios. Isso
aquilo que eu considero uma direção Um colega meu diz que de certa for- de rendimento. Não estávamos diari- deixa-me mais otimista.
muito pouco saudável. ma você é um conservador ‘never- amente sujeitos ao sentimento de que

3 TRUMP É RICHIE RICH,


NÃO JOHN WAYNE
-Trump’ [os republicanos que rejei-
tam categoricamente Trump].
Compreendo isso. Há um sentido de
se não possuíamos certas coisas, de
alguma forma não tínhamos valor. A
América sempre teve um sistema de
4 COMO O PODER
REALMENTE FUNCIONA

probidade, honestidade, responsabili- castas — ricos e pobres, não só racial- Quero falar um pouco sobre escrita e
Explicou a si próprio o fenómeno dade, valores simples, que eu admiro. É mente mas economicamente — mas escolhas autorais. A propósito, fui re-
Trump de uma forma que não o leve a o meu lado Kansas. A minha avó é uma não nos punham isso à frente da cara ler “Ulysses S. Grant” e ele decidida-
desistir dos americanos que votaram representante disso. As pessoas que co- a maior parte do tempo quando eu mente não usou a expressão “bissexu-
nele? memoramos na Normandia, incluindo estava a crescer. De repente começa- al etéreo” nestas suas memórias. Creio
Direi que não me surpreende que al- o meu tio Charlie, que foi membro de mos a ver “Lifestyles of the Rich and que é o primeiro Presidente a usar
guém como Trump possa conseguir uma das unidades que libertaram par- Famous”, com aquele sentido de que essa expressão.
tração na nossa vida política. Ele é tan- te de Buchenwald, eram homens que, ou temos ou somos uns falhados. Do- Talvez o último.
to um sintoma como um acelerador. quaisquer que fossem os seus limites, nald Trump simboliza esse movimento
Mas se era para termos um populista quaisquer que fossem os constrangi- cultural que está agora profundamente Deixarei os leitores do livro desco-
de direita neste país, eu esperaria al- mentos em termos das suas emoções arreigado na cultura americana. brirem por eles próprios a referência
guém um pouco mais apelativo. por causa do que lhes diziam que po- Mencionou há pouco que em al- a um bissexual etéreo. Em relação às
diam ou não sentir e ser como homens, gumas coisas eu sou um conservador opções de escrita, uma das minhas
Não um homem-criança? por quão distorcidas que pudessem ser never-Trump. Não é exatamente isso, questões tem a ver com a tremenda
Sim. Se pensarmos em populistas do as suas relações com as mulheres, sa- mas é verdade que temperamental- quantidade de contextualização que
passado, alguém como Huey Long — crificavam-se pelos outros. E nunca se mente tenho simpatia por uma certa faz, e especificamente com a forma
ele não era de direita; era um populista gabavam, nem jamais fariam de enga- corrente do conservadorismo, no sen- como contextualiza os seus oposi-
clássico, com raízes na terra; conhecia nar os outros ou tirar partido deles o tido de que não sou apenas um mate- tores. O livro parece uma dobradi-
as vidas das pessoas que estava a mo- seu cartão de visita. Portanto, a respos- rialista. Não sou um determinista eco- ça entre um passado político distan-
bilizar; compreendia-as genuinamen- ta à sua pergunta é que não me surpre- nómico. Acho que isso é importante, te e o presente político. Geralmente
te. Acho que não teria esperado que al- ende haver um mercado para o popu- mas há mais coisas além do dinheiro e apresenta as suas posições de forma
guém com um completo desdém pelas lismo, não só nos Estados Unidos como do rendimento — a crítica religiosa da contida; contextualiza tudo, incluin-
pessoas comuns pudesse conseguir a pelo mundo fora. O globalismo é... sociedade moderna, que diz que per- do as posições dos seus inimigos — de
atenção e a fidelidade dessas mesmas demos o sentido de comunidade. facto, é mais simpático para com os
pessoas. Apenas ficou surpreendido com o ca- Eis a minha perspetiva otimista. seus inimigos do que Trump é com
Também acho que me surpreen- valo que o populismo cavalgou. Dá-me alguma esperança que seja pos- os seus amigos. Será talvez um traço
deu, e isto não é um pensamento ori- Sim, isso remete para as tais partes da sível fazer causa comum com um cer- de carácter, ou talvez uma opção por
ginal da minha parte... Penso no herói cultura popular que me escaparam. É to tipo de evangélico ou conservador ser “presidencial” no seu estilo de
masculino clássico da cultura ame-
ricana quando eu e você estávamos
a crescer: os John Waynes, os Gary
Coopers, os Jimmy Stewarts, os Clint
Eastwoods, já agora. Havia um códi-
go. Isto é talvez o que eu enfatizo sem-
pre. Posso ser afro-americano mas sou
africano e americano. Isto faz parte de
mim. O código da masculinidade com
que cresci, que remonta aos anos 30 e
40 e até antes disso. Existe a noção de
que um homem é fiel à sua palavra,
que assume responsabilidade e não se
queixa, que não é um brutamontes —
Ver crianças de 6 anos
na realidade, defende os vulneráveis
contra os brutamontes. E mesmo para a serem abatidas na sala
alguém que se irrita com a wokeness e a
correção política e quer que os homens
voltem a ser homens e está cansado de
de aulas sem piedade? E nós
ver toda a gente a queixar-se da patri-
arquia, eu pensava que o modelo não literalmente não fizemos nada”
E 46
os republicanos não é eu não os ter
cortejado suficientemente. Convidá-
vamo-los para tudo: noites de cine-
ma, jantares de Estado, Camp David, o
que fosse. O problema não era falta de
graxa. Era eles acharem politicamen-
te vantajoso demonizarem-me a mim
e ao Partido Democrata. Isso era am-
plificado por órgãos de comunicação

Tal como cada discurso como a Fox News. Os eleitores acredi-


tavam nisso, e com o tempo os repu-
blicanos tiveram tanto sucesso na sua

que fiz, cada lei que passei demonização que se tornou muito difí-
cil para eles fazerem compromissos, ou
mesmo deixarem-se ver a ser cordiais.
e cada decisão que tomei Charlie Christ, da Florida, é um

seriam esquecidos” exemplo.


Isso acontece muito cedo. Perguntou o
que me surpreendeu mais quando es-
tava a escrever o livro. Já me tinha es-
quecido de quão rápido tudo acontece.
escrita? Estou a pensar naquela cena ser como escolho operar no mundo, que significa ter de conseguir 60 votos Eu presto juramento, e um mês depois
do dia da sua tomada de posse quando porque acho que o mundo seria me- para tudo. Isso foi verdade durante o passamos a Lei da Recuperação. Em
se encontra no carro com o Presiden- lhor se mais pessoas operassem dessa meu primeiro mês no cargo. Tínhamos dois ou três meses, tínhamos resgata-
te Bush, as pessoas estão a vaiá-lo, e forma. Às vezes não chego lá e fico de- uma crise económica enorme e ób- do a indústria automóvel e conserta-
sente simpatia por ele. siludido comigo mesmo, mas pelo me- via, e conseguimos extrair uns poucos do o sistema bancário de forma a não
Não há dúvida que um dos temas do nos acho importante ancorar o nosso votos republicanos para passar a Lei colapsar. Encontro-me com Charlie
livro é eu querer continuar a ser quem comportamento na ética e na mora- de Recuperação e Investimento. Um Christ, na altura um governador repu-
sou — a minha alma, o meu sentido lidade e na decência humana básica. desses republicanos, Arlen Specter, blicano bastante popular, conhecido
do certo e do errado, o meu carácter — Durante a minha presidência, as foi corrido do partido por ter votado por trabalhar com os dois partidos. A
enquanto funciono ao nível mais alto pessoas com frequência compreendi- a favor de um pacote de emergência imagem de eu a apertar-lhe a mão e a
da política. am mal o efeito de ter poder. Achavam ao qual, sabemos agora, os republica- dar-lhe um abraço tipo bro destrói-o
que fanfarronice e ser desagradável, de nos não se opunham ideologicamen- no partido. Isso foi um mês depois de
É a questão de quão humano perma- algum modo, permitia fazer mais coi- te, pois acabam de passar um pacote eu tomar posse, numa altura em que a
nece um Presidente, dada a natureza sas. E recordo partes da minha presi- de ajuda de dois mil milhões com um minha taxa de aprovação andava pelos
absurda do cargo. dência em que a minha própria base republicano como Presidente. 63,65%. Nesse momento sou um Pre-
Existe o pai, o amigo, o marido. O tí- se senti frustrada, pelo menos entre a sidente muito popular, a meio da sua
tulo da primeira secção é “A Aposta” intelligentsia. Contrastavam-me com A partir de 21 de janeiro, haverá um lua de mel, a congratular toda a gente
— estou a fazer uma aposta primeiro Lyndon Johnson: “Embora fosse um interesse renovado dos republicanos e a ser educado e cortês com eles. Crist
na natureza da América e no poder da filho da puta, conseguiu passar a Lei no défice. era uma pessoa cujo estado está em
democracia, uma crença de que é pos- do Direito de Voto”, e por aí fora. “É Absolutamente. Enquanto escrevia o hemorragia, e ele decide apoiar um pa-
sível um país grande, diverso, conflitu- como tens de ser, Obama, és demasia- livro, não houve uma altura em que, cote de resgate económico que vai sal-
oso, multirracial, multiétnico tornar do simpático.” pensando retrospetivamente, não var empregos e casas no seu estado. É
esta união um pouco mais perfeita e achasse que tinha sido demasiado imediatamente vilificado e corrido do
dar um exemplo ao mundo. A segun- Professor de Direito de Hyde Park. simpático aqui ou ali. partido. É o início da carreira de Mar-
da aposta é que posso participar nesse Sim, tudo isso. Não publicamente, mas co Rubio, atacar Charlie Crist como um
processo sem ser irremediavelmente em privado, eu lembrava às pessoas Devia ter sido apanhado a tentar RINO — “republican in name only” .
corrompido. Parte do que se vê no livro que Lyndon Johnson conseguia fazer mais? Mesmo um lugar-comum habitual
sou eu a defrontar as inevitáveis esco- coisas porque tinha os votos. Simples. O que quer dizer? que John McCain disse depois da elei-
lhas e compromissos que aparecem. Franklin D. Roosevelt conseguia fazer ção, “rezo pelo sucesso do Presidente
coisas quando tinha os votos. A verda- Quero dizer, bebendo mais frequen- Obama”, tem uma resposta imediata
A começar pela sua primeira de é que a maior parte das vezes aqui- temente com Mitch McConnell, tra- de Rush Limbaugh que ecoa pela es-
campanha. lo em que vemos como torcer o braço balhando a oposição. fera conservadora. A ideia de que isto
A começar pela minha primeira com- e intimidação resume-se a isto: temos Olhe, isto aparece mais no segundo não estava lá já, de que eu tivesse be-
petição política, quando tive que de- os votos? Quando se olha para a pas- volume, onde serei mais explícito, mas bido mais uns uísques com com Mitch
cidir se procurava afastar da votação sagem da lei do sistema de saúde, não veja por exemplo John Boehner (o an- McConnell ou Paul Ryan, isso teria
alguém que não cumpriu a palavra que só fazê-la passar no Senado como tra- tigo líder da Câmara dos Represen- resultado...
me tinha dado mas ao mesmo tempo balhar com Nancy Pelosi para conse- tantes). Ele e eu tínhamos uma rela-
não tinha as assinaturas necessári-
as para concorrer. É uma questão de
acesso ao escrutínio. As assinaturas
guir que a Câmara dos Representantes
aprovasse uma lei do Senado que não
achava suficientemente progressista,
ção perfeitamente boa, mas para o seu
grupo ele tinha de agir de uma certa
forma. Dizia-me mal de muitos deles
5 QUAL O PROBLEMA
DO IOWA?

eram usadas para ajudar os insiders a acho que trabalhei bem o meu grupo, e em privado. Tal como John McCain No texto é óbvio que tem um gran-
manter-se lá dentro. O que é que eu nem uma única vez agarrei em alguém fazia. A questão nunca era pessoal — de entusiasmo pelo Iowa. Foi o estado
acho? Isso continua até ao fim do livro, pela lapela num elevador ou usei uma Mitch McConnell não é compincha que realmente o lançou, mas é mais
e da minha presidência.. série de golpes sujos para conseguir com ninguém. Dá-me gosto ler ago- do que isso. É um momento que em
Parte do que sente aqui são alturas que alguém fizesse alguma coisa. ra que Joe Biden e Mitch são amigos parece que entramos numa fase di-
em que eu tomo a decisão de ser gra- Quando não consegui tudo o que desde há muito tempo. Tenho cita- ferente da história, e é também, pelo
cioso, quando presumo o melhor nas queria, teve a ver com os fatores que ções de Biden sobre as suas interações menos na minha leitura, um capítu-
pessoas, não por ser ingénuo mas por já discutimos — o filibuster no Senado, com Mitch McConnell. A questão com lo sobre o último período agradável

E 47
e sem sombras no caminho pa- Tornou-se um símbolo. South Side de Chicago e ficou pertur- muito difícil enfrentar coisas grandes.
ra a presidência e durante a própria David Axelrod chamava a isso, desde- bada com o que ele disse. É indicativo Torna-se difícil dizer: “Hey, temos aqui
presidência. nhosamente, “Obama, o Ícone”, pois de um ambiente mediático diferente. uma pandemia, é mortal, é séria. Va-
O Iowa é um momento dourado, quan- sabia que era perigoso. O que acon- Agora temos uma situação em que mos pôr de lado o partidarismo e ou-
do sentimos a política e a América tece é que eles veem-nos através dos largas faixas do país acreditam que vir Anthony Fauci porque ele anda a
como as queremos sentir. Comoveu- filtros e fontes noticiosas dominantes, o Partido Democrata é uma fachada estudar estas coisas há muito tempo.
-me. E o Iowa ainda me comove. Havia e essas fontes mudaram. Mesmo ain- para uma rede pedófila. Estas coisas Podemos não acertar exatamente em
um grupo de miúdos de todas as ori- da em 2008, tipicamente, eu ia a uma ganham raízes. Estive a falar com um tudo, porque a ciência funciona ite-
gens: miúdos negros de Brooklyn, asiá- terra pequena, há um jornal local, e o voluntário que andava porta a porta rativamente, mas vamos manter-nos
tico-americanos da Califórnia, miúdos proprietário ou diretor é um conser- em Filadélfia em comunidades afro- tão próximos dela quanto pudermos.
de quintas no Midwest. Deixávamo-los vador, talvez com cabelo à escovinha -americanas de baixos rendimentos, e Vamos fazer o que ela nos diz para sal-
com uma sacola ou uma data de peque- e lacinho. É republicano há anos. Não faziam-lhe perguntas sobre teorias da var vidas.” Isso torna-se difícil de fazer.
nas terras no Iowa — lugares que seri- tem muita paciência para liberais que conspiração do QAnon. O facto é que
am essencialmente parte da América querem taxar e gastar, mas aceita um ainda existe uma larga porção do país Responsabiliza as empresas?
vermelha [republicana]. Eles instalam encontro comigo, e escreverá um edi- que foi enganada por um pregador de Não as responsabilizo inteiramente,
mesas pequenas em frente a mercearias torial que diz: “É um advogado libe- carnaval. porque isto começou antes das redes
e vão aos clubes de Rotários, treinam a ral de Chicago, mas parece um tipo sociais. Já aí estava. Mas as redes soci-
Little League (campeonatos desporti-
vos de crianças), e conquistam uma ci-
dade simplesmente por escutarem e se
decente, tem algumas ideias boas”,
e a televisão local fará uma cobertura
normal. Vá a essas comunidades hoje
6 EMPRESAS TECNOLÓGICAS
VS. DEMOCRACIA
ais potenciaram-no imenso. Conhe-
ço a maioria dessas pessoas. Falei com
elas sobre isso. Não acho que seja sus-
importarem e estabelecerem conexões. e os jornais já não existem. Se a Fox Esta arquitetura de informação nova e tentável elas insistirem que são mais
Acabámos por criar um movimento News não estiver ligada em cada te- malevolente está a curvar o arco mo- como uma companhia telefónica do
com base na premissa da democracia levisão de cada barbearia e em cada ral afastando-o da democracia? que como a “The Atlantic”. Elas fa-
participativa. Foi esse movimento que salão de veteranos de guerra, será uma Acho que é a maior ameaça para a zem escolhas editoriais, estejam ou
me catapultou para me tornar um can- estação da Sinclair. Os preconceitos aí nossa democracia. Acho que Donald não enterradas em algoritmos. A Pri-
didato presidencial credível. sobre quem sou e aquilo em que acre- Trump é produto dela, mas não a criou. meira Emenda não requer a empresas
dito são tão fundamentalmente dife- Pode acelerá-la, mas ela precedeu-o e privadas que forneçam uma platafor-
O Iowa subsequentemente votou por rentes, mudaram tanto, que é difícil vai durar para lá dele. Estou profunda- ma a qualquer opinião que haja por aí.
Trump duas vezes. furar isso. mente preocupado com a forma como No final, vamos ter de descobrir uma
Não quero ficar cínico assim tão de- Depois de escrever este livro, preo- lidamos com isso, pois nesses velhos combinação de regulamentação pú-
pressa. Ganhei duas vezes no Iowa. Ga- cupa-me muito até que ponto não te- dias do Walter Cronkite... blica e práticas empresariais para li-
nhei lá quando o desemprego ainda era mos uma base factual comum e uma dar com isso, pois vai-se tornar pior.
8,5%, em 2012. A demografia do Iowa história comum. Não temos um Wal- Esqueça o Walter Cronkite. Que tal o Se se pode cometer mentiras e teori-
não mudou. A noção de que, de algu- ter Cronkite a descrever a tragédia do Iowa em 2008? Não estou certo de que as da conspirações loucas só com tex-
ma forma, tudo neste país virou — acho assassínio de Kennedy mas também a uma pessoa com o seu nome e back- to, imagine o que é possível quando se
que é mais complicado do que isso. dizer, quer a apoiantes quer a oposi- ground pudesse chegar hoje ao Iowa consegue fazer parecer que eu ou você
No Iowa foi a última vez que pude tores da guerra do Vietname, que ela e ter uma oportunidade justa para se estamos a dizer alguma coisa em ví-
interagir diretamente com votantes que não está a correr como os generais e a fazer ouvir. deo. Neste momento já chegámos mui-
não estariam imediatamente predis- Casa Branca nos dizem. Sem uma nar- É uma mudança bastante drástica. to perto disso.
postos a votar em mim. A primeira vez rativa comum, a democracia torna-se Parte da narrativa comum tinha haver
foi quando concorri ao Senado. O sul do muito difícil. com os três canais principais que ha- É a famosa estratégia de Steve Ban-
Illinois é como o Kentucky ou o sul do Lembre-se de que a minha candi- via e com uma mão-cheia de jornais non: inundar o terreno com merda.
Ohio, o Indiana ou boa parte do Iowa. datura sobrevive ao reverendo Wright. que eram desproporcionalmente in- Se não tivermos a capacidade de dis-
E eu descobri que nessa corrida ao Se- Foram dois minutos de vídeo em que fluentes. Não se pode voltar a meter o tinguir o que é verdade do que é fal-
nado — e isto repetiu-se duas vezes no o meu pastor surge em traje kente a génio na garrafa. Não vamos eliminar so, então por definição o mercado
Iowa — que podia ir a comunidades de amaldiçoar a América. O facto é que eu a internet; não vamos eliminar as mil das ideias não funciona. E por defi-
classe trabalhadora desproporcional- consegui fornecer contexto para isso, e estações que estão no ar com audiên- nição, a nossa democracia não fun-
mente brancas, culturalmente conser- acabei por conquistar uma vasta faixa cias de nicho concebidas para cada ciona. Estamos a entrar numa crise
vadoras, rurais ou de pequenas vilas, e do país que jamais tinha posto o pé no preferência política. Sem isso, torna-se epistemológica.
estabelecer uma conexão e ganhar es-
ses votos. A razão por que fiz isso é que
não havia um filtro entre mim e eles.
A noção de que eu era apenas uma
pessoa decente e cortês, contar às pes-
soas a minha história e ouvir a deles —
isso ainda era possível no Iowa, porque
ainda era tudo política a retalho. Isso
para mim faz parte da ironia, a ideia
de que eu não convivia o suficiente em
Washington. Provavelmente é verdade
que há um certo establishment em Wa-
shington ao qual não dei amor sufici-
ente, comparado com o amor que dei
Trump é sintoma e acelerador.
às pessoas no Iowa. Lembravam-me os
meus avós e os pais de Michelle. Há ali Se era para termos um
uma afinidade.
Pós-Iowa, o que descobri é que
concorremos a nível nacional. É ine-
populista de direita, esperaria
briante encher auditórios com 20 mil
50 mil pessoas. alguém mais apelativo”
E 48
Jamie Dimons, os líderes da indústria
financeira.
Sim, e eles não ficaram muito agrade-
cidos. Acho possível escolher ser oti-
mista sem ser naïve, e é assim que sou
em termos de temperamento. Michelle
tende a ser um pouco mais pessimista
em relação à natureza humana, con-
forme escrevo no livro.

Se não tivermos a capacidade Havai versus Chicago?


Pode ser. Também poderá ser simples-

de distinguir o que é falso do mente a forma como somos feitos. Fa-


lou de algo que tem a ver com a ques-
tão de saber se devo sentir-me oti-
que é verdadeiro, então a nossa mista ou pessimista, ou como o nosso
sistema pode ou não funcionar numa

democracia não funciona” economia global.


Uma das coisas que recordei ao es-
crever o livro foi quanto das minhas
primeiras escolhas teve como premis-
sa as circunstâncias muito específicas
Eu posso ter uma discussão consi- bom do que mau na história america- tolerante. Não é inevitável. A história de nos encontrarmos numa derrocada
go sobre alterações climáticas. Até pos- na, e que o amanhã pode ser melhor não se move numa linha direta. Mas financeira global e estarmos a tentar
so aceitar que alguém argumente que, do que hoje. Mas mesmo com a vitória se houver suficientes pessoas de boa evitar uma depressão, e o preço polí-
dado aquilo que sabemos sobre a natu- de Biden, como é que Trump enquan- vontade disposta a trabalhar em prol tico que paguei. Provavelmente faria
reza humana, é demasiado tarde para to fenómeno muda a sua perspetiva desses valores, as coisas podem ficar outra vez as mesmas escolhas, porque
fazer algo de sério a esse respeito — os daquilo que a América é? melhores. A América enquanto expe- evitar uma depressão é bom. Mas limi-
chineses não vão fazê-lo, os indianos Essa cena de eu a andar pelas pirâmi- riência é genuinamente importante tou-me. Por exemplo, eu acho de facto
não vão fazê-lo — e o melhor que pode- des não é um exercício vazio; tem um para o mundo, não por causa dos aci- que é completamente legítimo pressi-
mos fazer é adaptarmo-nos. Discordo, propósito. Ser otimista ou pessimista dentes históricos que nos tornaram a onar muito mais a China em assuntos
mas posso aceitar que é um argumento tem muito a ver com o quadro tem- nação mais poderosa da Terra, mas por comerciais. Não entrei no cargo com
coerente. Já não sei o que responder se poral. Se virmos ao longo de miléni- ser a primeira experiência verdadeira uma posição anticomércio automáti-
você apenas diz: “Isto é uma fraude que os, os humanos avançaram. Leia uma de construir uma grande democracia ca, mas se olharmos para os factos, a
os liberais cozinharam, e os cientistas biografia de Gengis Khan, que lide- multiétnica e multicultural. Ainda não China tem sempre levado a cabo polí-
estão a falsificar os registos. E aquelas rou uma superpotência durante muito sabemos se vai aguentar. ticas mercantilistas que violam as re-
imagens de glaciares a caírem das pla- tempo — eles foram uma superpotên- Não há muitas dessas democraci- gras internacionais de comércio para
taformas da Antártica e da Gronelândia cia durante mais tempo do que aquele as há tempo suficiente para dizer com ajudar a sua economia a crescer des-
são todas falsas.” Onde é que eu começo que a América tem. Sabe, quando cer- certeza que vai resultar, mas se re- de o fim dos anos 80 até hoje. E se não
a perceber onde fazer o quê? cavam uma cidade, davam-lhe duas sultar será uma coisa boa, pois temos estivéssemos a atravessar uma crise fi-
escolhas: se abrirem as portas, mata- quase mil milhões de pessoas no pla- nanceira, a minha postura em relação

7 O QUE GENGIS KHAN


NOS ENSINA HOJE
mos-vos rapidamente, levamos as vos-
sas mulheres e escravizamos os nossos
filhos, mas não vos massacramos. Se
neta, e por causa de toda a tecnologia,
e por causa dos stresses e das pressões
das alterações climáticas, vamos estar
à china teria sido mais explicitamen-
te contenciosa em matérias comerci-
ais. Mas não podia ter uma guerra co-
Fiquemos no tema do contínuo oti- resistirem, cozemos-vos lentamente todos em cima uns dos outros. Tere- mercial em 2009 ou 2010. Nessa altura
mismo-pessimismo. Só estou a tentar em óleo e retiramos-vos a pele. Com- mos de descobrir como viver juntos, precisava da cooperação da China e da
perceber onde você se situa. Às vezes pare-se o nível de brutalidade e vena- e como fazê-lo livres de sistemas de Europa e de qualquer outro potencial
é confuso. A certa altura, há aquele lidade e corrupção e pura loucura que casta e do inevitável conflito criado motor, só para fazer a economia mun-
momento Ozimandias. Está de visita vemos ao longo da história humana pelo tipo de estratificação social que dial voltar a arrancar.
ao Egito, olha para aquele gravura de com a forma como as coisas são agora. tem existido ao longo da maior parte
uma face que se parece vagamente
consigo, e escreve sobre a natureza
efémera de tudo: “Tudo estava agora
Nem sequer chega perto.
Vejamos em particular esta idade
de ouro a seguir à II Guerra Mundial,
da história humana. Esse génio está cá
fora. Passou o tempo em que um cam-
ponês num sistema feudal tinha fome
8 EXISTE UM ARCO MORAL
NO UNIVERSO, E INCLINA-SE
EM DIREÇÃO À JUSTIÇA?
esquecido, nada daquilo importava,o quando a América estava unificada e olhava para o palácio e havia algures
faraó, o escravo e o vândalo tinham- mas o resto do mundo estava em ruí- um rei e o camponês pensava, Sim, Tenho testemunhado desde há muito a
-se há muito convertido em poeira. nas. Todos os indicadores económicos está bem. Agora todos esses campo- sua discussão intermitente com o nos-
Tal como cada discurso que fiz, cada iam em trajetória ascendente. A vida neses têm telefones e podem ver como so amigo Ta-Nehisi Coates, a discus-
lei que passei e cada decisão que tomei de todos melhorava constantemente. come o senhor da terra, e alguns de- são sobre se o arco moral do universo
seriam esquecidos. Tal como eu e to- Mas talvez as coisas não parecessem les vão dizer: “Porquê ele e não eu?” se inclina em direção à justiça, ou se
dos os que amei um dia se tornariam assim tão boas para quem era negro A disponibilidade para aceitar o nos- existe sequer um arco moral discerní-
poeira.” Quer dizer, pondo de parte o ou mulher ou uma pessoa gay. As coi- so fado ou destino na vida por causa vel. A perspetiva de Ta-Nehisi, acho,
facto de este tipo de autoconsciência sas definitivamente parecem melho- da nossa cor da pele ou do género ou é que se existe de todo um arco, talvez
poder ser paralisante. res agora do que nessa idade de ouro. da religião ou da orientação sexual — se incline em direção ao caos. Ainda
Verdade. Muito do que parece otimista ou pes- para aceitar que somos menos do que estou a tentar situá-lo neste contínuo
simista depende daquilo contra o que outros — acabou. de otimismo-pessimismo. Quando
Continua a ser aquilo a que se pode é medido. estava na Casa Branca, era fácil ven-
chamar um otimista realista. No início No que sempre acreditei foi que a Há aqui uma pequena ironia. Escreve cer o argumento. Estávamos da sala
do livro deixa claro que não se desviou humanidade tem capacidade para ser sobre o primeiro ano da sua presidên- Roosevelt e você podia dizer: “A pro-
da crença de que a América é imper- mais gentil, mais justa, mais equilibra- cia, quando manteve à distância a bri- pósito, Ta-Nehisi, há um Presiden-
feita mas aperfeiçoável, que há mais da, mais racional, mais razoável, mais gada das forquilhas que à procura dos te negro.” Mas agora, na era Trump,

E 49
ir-se-ia que talvez Ta-Nehisi tivesse verdadeiras. Portanto a questão não é Existem momentos como este, nos os autocarros escolares como forma
mais razão. se as coisas podem ficar melhores; é quais pensamos não ter a certeza de de promover a integração racial nas
Em primeiro lugar, adoro Ta-Nehisi. quanta dor temos de sofrer para che- que as premissas básicas sob as quais escolas públicas] e por aí fora. É difícil
Adoro a sua escrita; gosto dele pes- gar lá. Quanto mais racismo, quanta operamos ainda são válidas. Mas então dizer claramente quanto de tudo isto
soalmente. é uma pessoa tão gracio- insensibilidade mais, quanta desilusão acontece algo onde podemos tornar é raça, por oposição a liberalismo. Os
sa, refletida, humilde. É uma pessoa mais, quantas mais vidas desperdiça- as coisas um pouco melhores. Alguém Clintons, por exemplo, geraram ata-
de bom coração, muito aberto, a ten- das, quanta reação mais? Quanto mais vem ter connosco e diz: “O meu filho ques venenosos similares. Muito disso
tar perceber as coisas. Penso o melhor disto teremos de suportar até as coisas tinha um emprego sem seguro de sa- tinha a ver com guerras culturais que
possível dele. ficarem melhores? úde, e o ACA [a lei do sistema de saúde datam dos anos 60 — Vietname, ma-
Penso que o diálogo que ele e eu Isso remete para a questão do en- de Obama] passa e eu chateio-o e ele rijuana, sexo, rock and roll, o debate
tivemos é aquele que eu tenho comi- quadramento temporal. Um afro- vai fazer um check-up e tem um tumor, entre Phyllis Schlafly e Bella Abzug.
go próprio. Ser otimista não significa -americano de 1966 talvez se sinta e é-lhe retirado e agora o meu neto vai O que acho indiscutível é que eu
que eu não diga cinco vezes por dia, otimista. Um afro-americano não se nascer na próxima semana.” representei uma alteração no poder.
“Estamos condenados.” Não estaría- sentirá tanto assim. Eis a questão. No A minha mera presença inquietava as
mos a prestar atenção se não nos pre-
ocupássemos com o que diabo vamos
fazer para evitar um desastre climá-
tempo que passamos aqui na Terra,
podemos manter as coisas a melhorar? 9 O PAPEL QUE O RACISMO
DESEMPENHA NA POLÍTICA
pessoas, nalguns casos explicitamente,
noutros subconscientemente. E havia
gente a explorar isso. Se um comen-
tico. Como é que alguma vez vamos Então não há nada que o leve a desistir No livro há um momento espantoso tador da Fox News, quando vê eu e a
perceber como fazer uma verdadeira da esperança? em que Michelle se vira para si e diz: Michelle a cumprimentarmo-nos com
avaliação das consequências da escra- Quer dizer, quem ler o livro reconhe- “É uma trip, não é? Eles têm medo de um ‘dá cá mais cinco’ ou um fist bump,
vatura e do Jim Crow e da segregação, cerá o stresse e o desencorajamento ti. Medo de nós.” pergunta: “Isso é um fist bump terro-
e providenciar oportunidades iguais às que às vezes sinto. Combato isso com A propósito, você dá sempre as me- rista?” A referência não é particular-
dezenas de milhões de crianças encur- humor macabro. Toda a minha equipa lhores frases a Michelle ou a Reggie mente subtil. Se há um cartaz contra a
raladas na pobreza por este país fora? na Casa Branca tinha um pouco disso Love, o seu guarda-costas. Michelle lei do sistema de saúde onde eu apare-
Não podemos simplesmente dizer com — usar o riso para afastar o desespero. tem sempre as melhores frases porque ço vestido como um feiticeiro africano
ligeireza: “Oh, havemos de resolver Isso aparece no segundo volume, mas ela tem grandes frases. Reggie tem as com um osso enfiado no nariz, isso não
isso”, sem olhar para todas as barrei- após Sandy Hook, quando o Congres- melhores frases embora sem consci- é difícil de interpretar. E olhe, já bem
ras económicas, estruturais e psico- so não fez nada, foi um daqueles mo- ência disso. É a diferença. a meio da minha presidência, republi-
lógicas que nos impedem de resolver mentos em que pensei, sabem, há algo canos eleitos foram apanhados a trocar
estes problemas. Se fizermos isso, es- aqui que eu não percebo. Talvez esteja A sua mulher sempre teve uma visão e-mails onde comparavam Michelle a
tamos numa terra de fantasia. apenas a bater à porta errada. um pouco diferente da saliência da ra- animais ou sugeriam que eu era o pro-
Aquilo que sempre disse a Ta-Ne- Em termos gerais, eu não podia ça, e este volume não se ocupa muito duto da bestialidade da minha mãe.
hisi, e que às vezes digo a Michelle e compreender uma sociedade que não de raça. Mas quanto da oposição a si Eram altos funcionários republicanos,
às minhas próprias filhas — a questão, respondia aos massacres a tiro que teve a ver com o facto de ser um de- não umas pessoas quaisquer. Portanto
para mim, é: podemos tornar as coi- acontecem. É suficientemente mau, o mocrata liberal versus ser um Presi- essa corrente está aí.
sas melhores? custo que impõe aos jovens negros do dente negro? Acho que foi determinante? Não.
Costumava explicar à minha equi- sexo masculino no interior das cida- Por acaso, escrevo sobre quão difícil é Penso que essas questões estão no co-
pa, depois de termos um longo deba- des, ou simplesmente a angústia acu- alocar percentagens aí, porque a histó- ração do debate deste país há muito
te sobre alguma política e termos tido mulada para famílias em todo o país. ria e a cultura americanas foram muito tempo, não só em torno de raça mas de
que tomar uma decisão sobre xis ou íp- Mas ver crianças de 6 anos a serem formadas pela nossa história racial. Se classe — embora não gostemos de fa-
silon. “Bem, se fizermos isto, percebo abatidas na sala de aulas sem piedade? alguém é a favor de “direitos dos es- lar de classe — de género. Em torno da
que não vamos conseguir tudo aquilo A polícia e as equipas de emergência tados”, é difícil desentranhar da raça noção de que certas pessoas são mais
de que tínhamos esperança, mas isto tiveram de tirar uns dias do trabalho e essa afirmação. Talvez a pessoa sim- americanas do que outras, mais dig-
é melhor?” Eles diziam que sim, e eu ter acompanhamento psicológico, só plesmente acredite no governo local, nas da cidadania do que outras. Quem
dizia: “Bem, melhor é bom. Nada de por haverem testemunhado o rescaldo. em controle local. Por outro lado, esse é que incluímos sob a etiqueta “We The
errado com melhor.” E nós literalmente não fizemos nada. A debate já remonta aos debates entre People?” [nós, o povo]. Isso foi sempre
A discussão que tive com Ta-Ne- minha Administração tentou fazer al- estados do norte e do sul e a manu- disputado, mesmo quando não havia
hisi, caracteristicamente, foi em tor- guma coisa através de ordens executi- tenção da escravatura, e o Jim Crow e um Presidente negro. Esses temas têm
no da crença básica de que, de facto, vas, mas em termos legislativos, nada. a oposição ao busing [a prática de usar imenso poder.
as coisas ficaram melhores. Isso não
é um motivo para complacência mas
um estímulo para a ação. E também
não significa que as coisas não possam
ficar piores.
Tiremos isto do contexto ameri-
cano. Quando eu assumi o cargo em
2008, mesmo no meio de uma crise
financeira e de uma recessão, o con-
tinente europeu desfrutava provavel-
mente um nível de paz e prosperidade
sem paralelo em qualquer grupo de
pessoas na história humana. Não po-
demos alegar que a Europa não está
A China tem políticas
melhor do que no século XIX ou em
1920. Isso não está em debate. Mas que violam as regras
também não nega o facto de que o
continente atravessou tragédias ini-
magináveis e angústia e loucura hu-
internacionais de comércio
mana antes de as coisas ficarem me-
lhores. Ambas as coisas podem ser para ajudar a sua economia”
E 50
preenche-me. Todas essas vozes tor-
nam-se partes de nós, se escutarmos. É
uma dádiva profunda, e é parte das ra-
zões do otimismo que continuo a sentir.

11 O MUNDO INTEIRO
É O LICEU

Na verdade, há um tipo de pessoa pelo

Chegamos ao Congresso qual parece ter verdadeiro desprezo.


Alguns em Wall Street durante a crise
financeira que já eram ricos e só que-

e ao G20 e temos a expectativa riam ficar mais ricos, na sua opinião.


Se voltar a ler essas secções, sou sim-
pático com eles. Mas eles estão a ser
de que as coisas sejam mais insensíveis. Explico que trabalharam
duro, que jogaram pelas regras tal

refinadas. Mas é como no liceu” como as entendiam, mas há um sen-


tido de que não compreendem como
vive o resto do mundo, nem lhes inte-
ressa. A falta de curiosidade aí é frus-
trante e perigosa. Um exemplo é o ex-

10 PORQUE É QUE O LIVRO


DEMOROU TANTO
A ESCREVER
do livro onde sacrifico explicitamen-
te algo do fluxo narrativo porque pre-
ciso de explicar aquilo tão claramente
é de facto envolver-me em cálculos po-
líticos. A coisa simpática de ser um ex-
-Presidente é que essas coisas realmen-
-líder da BP durante o derramamento
de petróleo a dizer que tudo o que quer
é voltar à sua vida. Ele diz isto ao mes-
quanto possível. E há partes em que te não importam. Não quero que o leitor mo tempo que a sobrevivência econó-
O livro demorou-lhe mais tempo a eu tinha uma descrição realmente boa diga simplesmente que aquele tipo e mica dos pescadores está a ser destru-
escrever por ser autoconscientemente que queria deixar e o editor pergunta- Obama eram antagonistas, e como es- ída, que a costa está a ser destruída. Há
um escritor? va se precisávamos mesmo daquilo, e tou a ler o livro do Obama tomo o seu aí uma falta de noção.
Quando eu estava a escrever, houve eu dizia, “eu gosto, desculpe, é mesmo partido e o outro tipo deve ser um com- Mas acima de tudo, quis que este
uma altura em que me repreendia por uma descrição gira e quero deixá-la”. pleto idiota. Quero que leiam isto e di- livro fosse um modo de as pessoas po-
ficar obcecado com um parágrafo du- gam, percebo como é que os israelitas, derem compreender melhor os mun-
rante um dia inteiro. Percebi que não A porcaria das canetas do G20. dado o mundo em que se encontram, a dos da política e da política externa,
tinha tempo para aquilo, que tinha Estamos no G20 a fazer o que temos história que experienciaram e as genuí- que parecem opacos e inacessíveis.
de parar. de fazer, mas também a pensar: como nas ameaças que os rodeiam, se podem Parte do meu objetivo foi descrever
é que isto funciona? Há um bloco e um virar para uma figura que representa peculiaridades, bem como o passado
Quando escreve sobre o mercado de lápis comemorativos, há os chocolates, força de um determinado tipo, como é familiar das pessoas, só para lembrar
emissões de carbono, disse a si pró- e depois há aquelas canetas dececio- que isso pode entrar em conflito com que são seres humanos e que podemos
prio. OK, isto aqui vai ser só prosa, nantes. Eu disse isto porque estamos no as perspetivas de Obama sobre certas compreendê-los e fazer juízos.
nenhuma poesia? Não que fosse pos- G20 e há toda aquela pompa — na rea- coisas. A minha esperança é que haja É interessante. Estamos no liceu e
sível fazer poesia sobre o mercado de lidade, muitas das convenções não são algum futuro político em Israel que leia vemos todas as cliques e a brutalização
emissões. assim tão diferentes da feira comercial este livro e o leia por esse contexto, e e a injustiça e a superficialidade. E pen-
O que tento fazer neste livro é tanto no centro de convenções em Dubuque. veja que eu presto atenção ao contexto. samos: quando for crescido, não terei
História como uma história. Há certas Há as bugigangas e a foleirice. Eu pus de lidar mais com isto. E então che-
coisas que, se eu estivesse apenas a es- tudo lá para tornar as coisas reconhe- Acha que captou bem a bizarria cós- gamos à assembleia estadual e vemos
crever uma narrativa, teria deixado de cíveis às pessoas. Não quero que elas mica de ser Presidente? Alguma vez se todo o nonsense, a estupidez, a peque-
fora. Se estivesse apenas a escrever uma pensem que tudo aquilo é estrangeiro. sentiu constrangido pelo facto de isto nez. A seguir chegamos ao Congresso
história, não precisava de entrar nos É discernível e compreensível. serem umas memórias presidenciais? e depois ao G20, e em cada nível temos
detalhes do cap-and-trade [o mercado A estranheza essencial da presidência a expectativa de que as coisas sejam
de emissões de carbono]. Não preci- Estou a guardar a maior parte da con- é o isolamento, tanto por questões de mais refinadas, mais sofisticadas, mais
sava de me aventurar nos detalhes de versa sobre política externa para o segurança e pela natureza do trabalho refletidas, rigorosas, desinteressadas,
Dodd-Frank [uma lei sobre o sistema próximo livro, o que é uma forma de — de repente, não podemos ir dar um e verificamos que é tal como no liceu.
financeiro]. Mas enquanto historiador, notar que passámos quase duas ho- passeio, sentarmo-nos num parque a A dinâmica humana é surpreendente-
preciso de fornecer esses detalhes. Isto ras sem falar de Bibi Netanyanu. Mas comer uma sandes ou ir a um concer- mente constante. Assume formas dife-
é a minha melhor oportunidade para queria fazer-lhe uma pergunta de to. Eu falo sobre um sonho recorrente rentes. Acontece que as mesmas forças
dar aos futuros autores e historiadores e escrita sobre ele e outras pessoas de que tinha durante a presidência, que que as pessoas têm, as mesmas falhas
académicos pelo menos alguma noção quem não gosta. Achei que foi cali- era simplesmente eu a andar por uma e vulnerabilidades, atravessam cultu-
do que estava a sentir. É a minha ver- brado na sua escrita sobre Bibi, Mc- rua e ninguém saber quem eu era. Acho ras e fazem parte da política. Isto de-
são dos acontecimentos, e quero garan- Connell e alguns outros, dando muita que não apreciamos completamente o via fortalecer e dar poder às pessoas. O
tir que as pessoas compreendem isso. contextualização extra. valor do anonimato até o perdermos meu leitor ideal é um jovem de 25 anos
Inversamente, se eu estivesse ape- Não é segredo que Netanyahu e eu não — simplesmente não sermos objeto de que está a começar a sentir curiosida-
nas a tentar fornecer uma crónica dos partilhamos a mesma visão do mundo. atenção. E olhe, isto é um problema de de e quer fazer algo que tenha algum
eventos, não me preocuparia tanto a O mesmo com McConnell. Mas acho classe alta que eu tenho. Não me estou significado. Quero que leia isto e diga:
terminar um capítulo em suspenso que Bibi é um personagem fascinante, a queixar. É uma experiência invulgar. “OK, não é ciência espacial. É algo para
para fazer as pessoas virarem a pági- do mesmo modo que Putin é um per- Dito isso, um Presidente, ou alguém que o qual eu posso contribuir, e onde pos-
na, ou com saber se apanhei bem cer- sonagem fascinante. Acho que não po- concorre à presidência, tem a dádiva de so fazer uma diferença.” b
to tique de um líder mundial que faz demos compreendê-los, ou a Rússia e a ver uma amostra maior do país, conhe-
essa pessoa parecer mais vívida e real. Israel, sem olharmos para a história de cendo mais pessoas e adquirindo um e@expresso.impresa.pt
O que me fez demorar tanto tempo foi onde vieram, que os formou. Fornecer melhor sentido da diversidade do nos-
tentar fazer as duas coisas. Há partes essa noção do contexto, para mim, não so povo e do que temos em comum. Isso Tradução Luís M. Faria

E 51
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HOJE PRÓXIMA SEMANA 12 DEZEMBRO

RODRIGO CASTELO MICHELE MARQUES

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CARNES S O B R E M E SA S
Rodrigo Castelo Michele Marques

19 DEZEMBRO 24 DEZEMBRO
FRACO CONSOLO

Os discursos radiofónicos que


De Gaulle fez a partir de
Londres são tão importantes
como a sua acção política

CORBIS HISTORICAL/GETTY IMAGES


ACTOS E
PALAVRAS

O
CHARLES DE GAULLE É AINDA HOJE UM EXEMPLO DE UNIÃO
ENTRE O HOMEM DE PALAVRA E O HOMEM DE ACÇÃO

itenta anos após o apelo de 18 de anunciavam já um homem disponível para enfrentar a catástrofe. Por
Junho de 1940, e 50 após a sua isso, durante a guerra, o general declarou “eu sou a França”, arrogância
morte, em Novembro de 1970, desmedida que serviu de fundamento ao seu inquebrantável ânimo, à
Charles de Gaulle é ainda hoje um sua coragem e obstinação. É verdade que parecia gostar mais da França
exemplo de união entre o homem de do que dos franceses, que estava ligado a “uma certa ideia da França”
palavra e o homem de acção. que talvez fosse um “país imaginário” (na expressão de Bernard Frank);
Os discursos radiofónicos, como mas foi essa arrogância ou esse acto de imaginação que permitiu que
os que fez a partir de Londres, as um homem antigo, burguês austero e católico, partidário da ordem e do
memoráveis aparições televisivas patriotismo, se confundisse com a França contemporânea. A imagem
e as colossais “Memórias” são tão dessa nação reinventada sobreviveria até aos sobressaltos de 1968,
importantes como a sua acção quando De Gaulle, ainda que triunfante, descobriu que vivia num país
política, ou antes, não se distinguem que já não compreendia.
dessa acção. Como escreveu Maurice Druon: “Ninguém confiou tanto Os escritores não ficaram indiferentes à personagem, como documenta
na escrita como modo de governo. As suas acções historicamente mais uma antologia agora reeditada (“De Gaulle vu par les écrivains”).
decisivas foram, antes de mais, textos. Fosse a França que, em Junho de Alguns faziam pouco dele ou detestavam-no (Sartre à esquerda, Jacques
1940, se desmoronava perante a invasão hitleriana, fosse, em Maio de Laurent à direita, obviamente Céline), outros eram entusiastas (do
1958, a iminência de uma guerra civil, fosse, em Abril de 1961, a sedição “gaullista de esquerda” Malraux ao gaullista de direita Mauriac). E
de uma parte do exército, fosse uma insurreição, em Maio de 1968 (...), muitos viam-no como um dos seus, devoto do cânone, atencioso com os
De Gaulle pedia uma tarde, uma noite, um hiato de 24 horas. ‘Falarei vivos, empenhado numa prosa que uns comparavam a Bossuet, outros a
amanhã.’ Quer dizer: ‘Depois de ter escrito.’” De Gaulle não está no Montesquieu, outros a Chateaubriand. Mas até os escritores sabiam que
Panteão, nem era essa a sua vontade, mas está na Bibliothèque de la a palavra de De Gaulle estava ligada à acção. O gaullismo, disse Malraux,
Pléiade. não é uma doutrina, mas um “acto histórico”. E os actos, mesmo quando
Encontramos ainda, meio século depois, uns quantos herdeiros sobrevivem, não se repetem. b
do “gaullismo”, um conservadorismo carismático, soberanista, pedromexia@gmail.com
um republicanismo monarquizante e de travo autoritário, um Pedro Mexia escreve de acordo com a antiga ortografia
“bonapartismo”. E vemos a política francesa ainda alinhada com a
solidariedade franco-alemã, o europeísmo prudente, a desconfiança face
ao eixo anglo-americano ou o desenvolvimentismo apreensivo quanto
ao capitalismo. Mas o que mais importa no pensamento de De Gaulle
é a noção essencialmente histórica de que, depois de 1870, de 1914, de
1940 (e, mais tarde, da Indochina), a grandeza da França tinha de ser
resgatada. Por isso, quando o militar inconformado reagiu à derrota
em 1940, reagia sobretudo à desonra. E se, enquanto Presidente, não se
manteve fiel ao “je vous ai compris” que lançou aos franceses argelinos,
foi porque percebeu que a descolonização não significava o fim da
influência francesa nas antigas colónias, bem pelo contrário.
De Gaulle leu na juventude os grandes autores da direita reaccionária, e
/ PEDRO
mostrou-se sensível aos seus tópicos decadentistas; mas, respondendo às MEXIA
circunstâncias, converteu a decadência em esperança, o pessimismo em
voluntarismo. Não foi, nem pouco mais ou menos, um herói acidental.
Os seus livros militares e estratégicos, que pressentiam uma catástrofe,

E 54
O homem
por trás da lenda
Uma viagem nada doce aos anos de ouro de Hollywood pela mão
NIKOLAI LOVEIKIS/NETFLIX

de David Fincher. “Mank” centra-se na figura de Herman J. Mankiewicz,


que escreveu “O Mundo a Seus Pés”, a obra-prima de Orson Welles
TEXTO FRANCISCO FERREIRA

E 55
O
que é “Mank”, novo filme de
David Fincher, se não um sonho
acordado sobre Hollywood? Ou
será um ensaio, polémico como se
esperava, sobre o meio em que os
sonhos se fabricam? A realidade,
e disso não restam dúvidas após o
visionamento, sonhou-a Fincher
também nas gamas daquele preto e
branco que apela à idade dourada do
cinema americano dos anos 30 e 40,
refletindo o que se fez ontem no que
é tecnicamente possível apresentar
hoje num ecrã caseiro com Netflix.
“Mank” é um filme disposto a abrir
a caixa de Pandora de um maiores
mitos daquela era. Aquele que, em
certa medida — e embora dispense
apresentações —, permanece o
mais secreto dos filmes: “O Mundo
a Seus Pés” (“Citizen Kane”, título
em inglês, de 1941), obra-prima de
Orson Welles. É uma história longa
e complicada de desenlear. Favorece
imensamente os espectadores que
já ultrapassaram o “no trespassing”
do portão de Xanadu, o castelo
fantástico de Charles Foster Kane.
Tanto assim é que, aos ‘felizardos’
que não fazem ideia do que Xanadu
significa, muito se recomenda que
NETFLIX

vejam “Citizen Kane” pela primeira


vez (e o choque tremendo dessa
descoberta mantém-se intacto hoje
como há 80 anos) antes de entrarem argumentista que escreveu “Citizen Mayer. Herman conhecia desses poder capaz de ditar o êxito ou o
em “Mank”, sob pena de ficarem Kane” da primeira à última página, todo-poderosos a coragem e as fracasso da classe política — e que o
pelo caminho, isto na melhor das Herman J. Mankiewicz (1897–1953), virtudes, mas também a ganância e diga o democrata e socialista Upton
hipóteses. doze anos mais velho que o outro outros podres vícios, numa relação Sinclair, que saiu derrotado das
É que o filme de Fincher ganha Mankiewicz de Hollywood bem de amor-ódio cheia de sapos que eleições de 1934 para Governador
toda a sua força ao ser visto como mais conhecido, o seu baby brother ele nem sempre conseguiu engolir da Califórnia, na corrida contra o
um contracampo histórico e Joseph L. (o autor de “The Ghost e que “Mank” não vai deixar de republicano Frank Merriam. Nesses
político do filme de Welles. E desde and Mrs. Muir”, “All About Eve”, esgravatar. Falta ainda acrescentar tempos, o comunismo na América
já se sublinha, em jeito de aviso “Cleopatra” e tantos outros). No ano que Herman também conhecera era visto como uma ameaça muito
à navegação, que “Mank” nada de 1940 em que “Mank” começa (o em tempos Marion Davies, atriz do mais grave para o país do que a
tem de documentário embora se título vem da sua alcunha), Herman mudo que perdera quase todo o box recente ascensão de Hitler ao poder
tenha documentado a preceito era uma estrela cadente que já tinha office appeal nos sonoros anos 30, na Alemanha. Nos seus flashbacks
e saiba muito bem do que está tratado por tu todos os magnatas e amante de longa data do famoso sucessivos que arrancam sempre de
a falar. É uma ficção de meias- dos maiores estúdios de Hollywood. magnata William Randolph Hearst, 1940 para a década anterior, “Mank”
verdades que não têm no ecrã uma A sua pluma inspirada fizera-o que em vão investiu milhões para vai incidir especialmente naquelas
superioridade hierárquica sobre as conhecer David O. Selznick lhe reabilitar a carreira. eleições e no comportamento
meias-mentiras. E ambas ecoam na Paramount, que lhe pagara Hearst, por seu lado, é outra peça escorregadio, quase sempre ácido
com estridência no presente, com fortunas pelos seus guiões. Gozara essencial deste xadrez. Dono de e não poucas vezes cínico, daquele
toda a liberdade criativa a que um de uma aura de protégé de Louis metade dos jornais da América que testemunhou aquele e tantos
grande cineasta como Fincher tem B. Mayer, o patrão da MGM, em falida da pós-depressão de 1929, outros episódios da vida política
direito. Por isso preferimos falar de amizade que, tal como Fincher havia construído um império e cinematográfica da América:
sonhos. Ou de realidades sonhadas. a mostra, foi de cortar à faca, e colossal e era o homem a quem Herman J. Mankiewicz.
O protagonista de “Mank” picava-se frequentemente com ninguém dizia ‘não’, estúdios de Foi Herman quem se lembrou
não é Orson Welles mas sim o Irving Thalberg, braço-direito de cinema incluídos. Detinha um da ideia de produzir filmes

E 56
Gary Oldman (à frente)
como Herman Mankiewicz
e Amanda Seyfried, de
branco, no papel
da atriz Marion Davies

de novidade, com um prestígio de


“narrador formidável”, em tudo
estratosférico para a sua idade.
Não tinha tido ainda qualquer
contacto com o cinema, salvo uma
experiência que deveria ter sido
usada numa peça teatral (“Too
Much Johnson”, 1938). Mas o
cinema estava prestes a dar-lhe de
mão beijada aquilo que jamais dera
a alguém. A R.K.O., que era então
dirigida por George J. Schaefer e
lutava para se salvar da bancarrota,
decidiu apostar tudo num só cavalo,
chegando-se à frente.
E não se limitou apenas a passar
um ‘cheque em branco’ a Orson
Welles: deu-lhe também autonomia
criativa absoluta para ele fazer o
filme que quisesse, como quisesse e
com quem bem desejasse, e direito
a um final cut sem supervisão, luxo
até então nunca visto e não mais
repetido naquela era. E Welles fez
o filme que se sabe, em quatro
meses de rodagem lançada no fim
de 1940 e envolta no maior segredo.
Estreava-se também como ator no
papel principal, e com ele vieram
Joseph Cotten, Ray Collins, Agnes
Moorehead, Paul Stewart ou Ruth
Warrick, todos eles oriundos do
Mercury Theatre que Welles fundara
dois anos antes em Nova Iorque com
John Houseman — e todos eles eram
ilustres desconhecidos na Califórnia.
O filme de Fincher publicitários pró-republicanos
que, veio-se a saber, prejudicaram
argumentista, e que só mais tarde
(com “Dragonwyck”, de 1946), se
A curiosidade e a ciumeira causadas
pela aparição do ‘novo génio’
é uma ficção gravemente Sinclair nas mesas de tornaria um senhor realizador. pararam Hollywood por instantes,
de meias-verdades voto. E no entanto a imagem que
Fincher nos dá do protagonista é a NA ANTECÂMARA DE
até à estreia de “Citizen Kane” a 14
de fevereiro de 1941. Toda a gente
que não têm de um filantropo atento ao mundo “CITIZEN KANE” quis ver o resultado daquele filme
que o rodeava, curioso pelas ideias “Mank”, como se disse, fixa- de novatos e sem vedetas, em que
no ecrã uma antissistema de Sinclair e logo se em 1940 e é aqui que entra Gregg Toland, ilustre diretor de
superioridade arrependido por ter contribuído
para a sua derrota. Em 1940, porém,
“Citizen Kane”, que também é
um filme único pela história dos
fotografia, era o nome mais sonante
da ficha técnica, isto para não falar
hierárquica sobre já quase todos se haviam afastado seus bastidores. Um rapaz que no veterano argumentista de má
de Herman. A sua atração suicida então contava apenas 24 anos, com fama que Orson Welles chamou para
as meias-mentiras. pelo álcool e pelo jogo compulsivo uma voz grave e inconfundível, o projeto: Herman J. Mankiewicz.
Ambas ecoam não lhe dera apenas uma reputação e que já levara à cena “Macbeth” “Mank” termina na antecâmara
de infrequentável: minara-lhe e “Júlio César” em Nova Iorque, da verdadeira polémica que
com estridência por completo a carreira. Herman tinha assustado a América na noite só então estava a começar em
no presente parecia talhado para ser, mais do
que um desmancha-prazeres, um
de Halloween de 1938, com uma
narração radiofónica assombrosa
torno de “Citizen Kane”, quando
ficou subentendido que Charles
desmancha-poderes. Incorrigível, de “A Guerra dos Mundos”, Foster Kane, o protagonista, era
caíra num buraco sem fundo. de H. G. Wells. Não foram poucos os um retrato dos pés à cabeça de
Amparava-o ainda, com paciência que se convenceram que New Jersey William Randolph Hearst e, mais
de santa, a mulher Sara, incansável estava a ser invadida naquela noite do que isso, um espelho da sua
curadora de tantas bebedeiras, por marcianos. Em agosto de 1939, arrogante megalomania. Louis B.
e o irmão Joseph, também ele partiu para uma Hollywood ávida Mayer chegou a oferecer a Schaefer

E 57
O ator e realizador Orson
Welles (1915-1985) no set de
“O Mundo a Seus Pés” em 1941

uma soma astronómica e superior


ao próprio custo do filme, se ele
aceitasse destruir os negativos
e todas as cópias de “Citizen
Kane”, varrendo-o para sempre
do mapa. Fê-lo por fidelidade
a Hearst, temendo represálias
contra os estúdios e quem sabe
se a seu mando. Um processo
em tribunal deste último contra
Welles esteve quase a concretizar-
se (Hearst desistiu do mesmo),
mas a impiedosa influência do
magnata não deixou de ter efeitos:
após a estreia, todos os jornais da
sua cadeia boicotaram qualquer
referência à obra, que os críticos
não hesitaram em eleger como a
melhor do ano. E até a Academia,
que a nomeou para nove Óscares
e temeu consequências, não lhe
deu mais do que um: o de Melhor
Argumento Original, que Herman e
APIC/GETTY IMAGES

Orson partilharam ex-aequo, como


se mostra no único flash forward que
“Mank” nos dá no final.
Os Óscares de Melhor Filme
e de Melhor Realizador desse
ano foram parar a “How Green
Was My Valley”, de John Ford num papel quase episódico). história de que Herman ditou o
— e convenhamos, premiaram
O protagonista Curiosidade ou maldição: nem argumento de “Citizen Kane” para
igualmente um filme gigante. Mas de “Mank” não um nem outro jamais voltariam uma datilógrafa, acamado que
a escolha da Academia pareceu a ganhar qualquer Óscar após estava com uma perna partida após
condicionada pelas mesmas razões é Orson Welles, “Citizen Kane”. Foi sob pressão, e um acidente de automóvel (e assim
subterrâneas que, dois anos depois,
agitaram intrigas e conseguiram
deixado por após violar cláusulas contratuais
que enfureceram o realizador, que
o vemos nas cenas de 1940), e nada
disso foi verdade, é mera fantasia
afastar Schaefer da R.K.O. — assim Fincher na sombra. Herman, inicialmente contratado de Fincher: o acidente ocorreu,
como Welles, que desde então como script doctor, exigiu assinar mas Herman já estava recuperado
ficou com a carreira amaldiçoada. O foco está sozinho — e por fim coassinar quando se pôs ao trabalho.
As bilheteiras da época também em Herman J. com Welles — um argumento Em 1971, a crítica de cinema da
não ajudaram “Citizen Kane”, que, supostamente, só o primeiro “The New Yorker” Pauline Kael pôs
que não foi um fiasco mas ficou Mankiewicz, escreveu. Ora, quem escreveu de mais lenha na fogueira e, num longo
muito longe do êxito esperado: a
audiência deixava a sala perplexa
o argumentista facto o quê e o que passou para
a versão final tem sido matéria
ensaio em duas partes que deu água
pela barba (e tanta deu que dava
pelas revoluções narrativas e que escreveu alimentícia para biógrafos ao outro artigo do tamanho deste),
cinematográficas nunca vistas, longo de décadas e também aqui “Raising Kane”, defendeu que a
e ainda mais apardalada ficava “O Mundo a Seus retornamos às meias-verdades e às verdadeira autoria e a força motriz
com os seus mistérios, dos quais Pés” da primeira meias-mentiras de “Mank”. de “Citizen Kane” pertenciam a
a origem da palavra “Rosebud” (e É justa a revelação de que Welles, Mankiewicz, não a Welles. Foi uma
Fincher sabe num diálogo viperino à última página uma vez o guião concluído, ofereceu acusação controversa, que obrigou
de “Mank” que ela não é apenas o 10 mil dólares a Herman para que Welles a reagir (pela voz de Peter
nome do trenó de Kane na infância) este o deixasse assiná-lo sozinho, Bogdanovich). Afinal, foi ele quem
se tornou a mais célebre. vergando-o assim à humilhação de realizou o filme. Foi ele quem o
um ghost writer? “Mank” diz-nos interpretou. Disso não há dúvidas.
UMA GUERRA DE EGOS que sim, que foi verdade. Welles E tudo aquilo que ele deixou ao
Mas voltemos ao Óscar ex-aequo de sempre o negou a vida inteira, cinema após “Citizen Kane” bastava
Herman e de Orson pois também afirmando que o guião final era para o manter no firmamento.
aqui há uma querela histórica entre uma amálgama do trabalho de Contudo, quer para a pluma de
os dois artistas e da qual Fincher ambos — só que John Houseman Kael quer para “Mank”, Welles
toma claro partido do primeiro em contestou-o, afirmando que Welles apropriou-se de talento alheio,
“Mank” (Welles, de resto, é deixado jamais escreveu uma palavra. Mas ficando mal na fotografia. De facto,
por Fincher na sombra, encerrado “Mank” também vai inventar a só Herman tinha conhecido Hearst

E 58
ao ponto de o conseguir diabolizar só poucos leram era também
na sua mais profunda solidão e com biográfico, focava-se em Howard
tanta mestria, atrás do disfarce de Hughes e esteve para servir de
Charles Foster Kane. Tal como não é base a “The Aviator”, que teve
improvável que a fúria consequente um processo de desenvolvimento
de Hearst, sentindo-se traído pelo complicadíssimo e um número
homem que o magnata tantas vezes invulgar de pretendentes. Mas esse
recebera à mesa no seu castelo em guião acabou por ser rejeitado em
San Simeon, se tenha manifestado favor de outro escrito por John
contra Herman acima de qualquer Logan. E foi o guião de Logan que
outra pessoa. Em 1985, outro livro Martin Scorsese acabou por filmar.
sobre o assunto foi publicado a Por que motivos caiu o texto de Jack
contrariar a teoria de Pauline Kael e Fincher não se sabe ao detalhe, o
em defesa de Welles: “The Making que se sabe é que também aquele
of Citizen Kane”, de Robert L. era um projeto em torno de um
Carringer. tycoon – e um guião, tal como
De um ponto de vista analítico, “Mank”, não necessariamente
“Mank” é um filme com uma impermeável à especulação. Mas
inteligência, um ritmo e uma não tem sido a especulação uma das
respiração invulgares nos tempos armas do Fincher-+cineasta que
que correm. Sabe dar tempo ao conhecemos?
tempo que os seus momentos Aproximar “Mank” do universo de
graves exigem, é ágil e ritmado Fincher, isto é, de jogos meticulosos
como uma screwball nas cenas e de personagens ambíguas, com
mais loquazes de Herman. A frequência presas a jogos perigosos
fotografia old fashioned de Erik que elas não conseguem controlar,
Messerschmidt coloca o nome não deixa de ser estimulante e
de um novo técnico no mapa. E o ainda mais se torna quando nos
elenco é um triunfo. Gary Oldman apercebemos que aqueles anos 30
faz um Herman extraordinário em são um espelho contundente da
performance muito superior à do América egomaníaca e sociopata
seu oscarizado Churchill. Tuppence pós-2016. É que também “Mank”,
Middleton (Sara Mankiewicz) e que agora se inscreve numa longa
Amanda Seyfried (Marion Davies) linha de 'antiépicos' há muito
asseguram interpretações femininas traçada pelo realizador de “Se7en”,
de grande nível. John Houseman “Fight Club” e “Panic Room”, é
e Rita Alexander, o sócio de uma esplendorosa viagem no tempo
Welles do Mercury Theatre e a sua recheada de ambientes tóxicos, de
secretária-datilógrafa, dão papéis desgostos fedentos e de facadas nas
sólidos a Sam Troughton e Lily costas que, quando não mataram,
Collins. São eles os anjos da guarda deixaram remorsos impossíveis de
que velam pela estabilidade do apagar; e pouco se aproveita que
protagonista naquele desterro do enalteça, de facto, as qualidades da
deserto de Mojave em que Herman é espécie humana. A prova disso é a
'confinado' para poder trabalhar em cena daquele escandaloso jantar em
paz, longe do álcool de preferência. que Herman entra de rompante no
Já o veterano Charles Dance, castelo dos sonhos e evoca Quixote
destacado nos créditos do filme, dá mas sai derrotado pela parábola
a Hearst um porte aristocrático que do macaco do tocador de realejo
este não tinha, cabendo a Tom Burke que Hearst lhe conta. É uma cena
o papel de um Orson Welles que não de uma amargura terrível. Depois
sai favorecido. Hearst fecha-lhe (e fecha-nos) a
Nunca saberemos ao certo se a porta. E é um momento autêntico
gloriosa Hollywood dos anos 30 que deste filme de pântanos, em que
deu origem a tantos filmes sublimes tantas outras coisas, como Orson
foi a Hollywood envenenada que Welles disse um dia (do cinema),
“Mank” nos mostra, tão-pouco se talvez não passem de um “F for
o próprio Herman, que é um poço fake”. b
de conflitos interiores, desdenhava
assim tanto o poder instalado que
o elevou aos píncaros da hierarquia
de argumentistas (e depois o
condenou). O guião de “Mank” MANK
foi escrito por Jack Fincher (1930- De David Fincher
2003), pai de David, jornalista Com Gary Oldman, Amanda Seyfried,
da revista “Life” e ocasional Tuppence Middleton, Lily Collins (EUA)
argumentista. O guião anterior Drama biográfico M/13
de Jack que se conhece mas que Netflix, estreia sexta-feira, 4 de dezembro
A
Aos 85 anos não está
desconfortável com
o confinamento: “Desde
há muito que vivo sozinha,
já estou habituada”

pós 38 anos sem gravar um disco, a


primeiríssima dama da folk britânica,
Shirley Collins, regressou, inespera-
damente, em 2016, com o belíssimo
“Lodestar”. A disfonia que a afetara
aparentemente vencida, reincide,
agora, com “Heart’s Ease” (Domino),
outra pérola do reportório folk que,
aos 85 anos nos oferece, não demasi-
adamente desconfortável com o con-
finamento (“Desde há muito que vivo
sozinha, já estou habituada”) mas
tremendamente furiosa com o rumo
que o Reino Unido tomou: “Boris
Johnson, que homem horrível! Como
é que a Inglaterra pode ter chegado a
este ponto! Eu sou europeia...”

Em “Electric Eden”, Rob Young cita-


-a: “Sempre soube que esta música
tinha nascido em mim. Sabia como
cantá-la e nunca me iria afastar daí.”
Foi, de facto, assim?
Durante a II Guerra Mundial, era eu
ainda criança, vivíamos em Hastings,
na costa Sul de Inglaterra. Havia,
frequentemente, raides aéreos e
tínhamos de correr a refugiar-nos em
abrigos onde os meus avós canta-
vam para mim e para a minha irmã,
ENDA BOWE

Dolly. Só mais tarde percebi que o


que nos cantavam eram canções folk,
música tradicional. Canções que eles,

De bem viva voz


naturalmente, cantavam e que faziam
parte da vida diária. Creio que come-
çou tudo aí: adorava os meus avós,
sentia-me segura junto deles, muito
cedo essas músicas entraram em mim
e nunca mais saíram.

No início do folk revival havia Shirley Collins, a primeiríssima dama da folk britânica, editou mais um
aquela atitude militante de recolha
e preservação da “música do povo”, disco, “Heart’s Ease”, assegura que não tenciona deixar de lutar pela
levada extremamente a sério por
gente como Alan Lomax (com quem
preservação das tradições musicais e confessa estar a ler Saramago
viajou aos EUA numa expedição de ENTREVISTA JOÃO LISBOA
recolha) ou Ewan MacColl... Como
lidava com isso?
Até certo ponto, compreendo-a, uma não podia ser cantado. Não gostava Mas essas tradições musicais es- música ótima mas, no seu caminho,
vez que se trata de algo importante nada dele, por isso também não li- tavam, realmente, moribundas e esmaga tudo, nada resta das mú-
que deve ser preservado. Mas é uma guei muito ao que dizia. Pareceu-me necessitavam de ser preservadas? sicas originais que fazem parte da
forma um bocado agressiva de lidar sempre um bocado falso, não era ge- Era necessário mantê-las vivas História e das tradições dos povos.
com a música. Prefiro que as pessoas nuíno. Já o Alan Lomax era diferente, porque estavam a ser exterminadas É terrível mas não tenciono deixar
se sintam livres para fazer o que tinha consciência da importância pela grande máquina da indústria de lutar.
gostam sem necessitarem de regras de salvar do esquecimento a música musical que nos atira a mesma
estabelecidas por outros. O Ewan tradicional de todos os países e do música para cima, seja qual for o Na viagem aos EUA, com Alan
MacColl foi o pior de todos nessa orgulho que as pessoas deveriam lugar do mundo onde nos encon- Lomax, sentiu-se um pouco como
atitude de ditar aquilo que podia e sentir na sua herança musical. tremos. Claro que também produz um Colombo “ao contrário”, indo

E 60
descobrir na América aquilo que já que não lia música. Respondeu-me:
conhecia em Inglaterra? “Não há problema. Durante muito
[risos] Sim, sobretudo nas montanhas tempo, eu também não li música e,
Apalaches e Ozark, no Kentucky e no quando andei pela América Central,
Arkansas, onde encontrámos canções fui apanhando tudo de ouvido!” Era
originalmente inglesas, irlandesas e um músico extraordinário e foi o
escocesas. Era fascinante escutar, em grande responsável da redescoberta
versão americana, canções que eu e do interesse pela música antiga. A
conhecia das coleções do Cecil Sharp. verdade é que tenho tido muita sorte
Evidentemente, ao longo dos anos ti- com todos os extraordinários músicos
nham-se transformado gradualmen- com que me fui cruzando.
te. E pude cantar algumas das versões
que conhecia que as pessoas de lá Também teve sorte por ter consegui-
receberam com a alegria de constata- do recuperar a voz...
rem que, como diziam, “back in the É verdade. O David Tibet, dos Current
old country”, ainda eram conhecidas. 93, veio visitar-me durante o período
em que eu tinha deixado de cantar e
Aos seus olhos, Fairport Conventi- disse-me que adorava os meus álbuns
on, Steeleye Span, Pentangle, foram e que gostava que eu cantasse uma
bem-vindos? ou duas coisas num álbum dele. Ao

TERRA SUSPENSA
Foi fantástico, de um modo geral, fim de anos a tentar convencer-me,
foi muito bom. A música era muito falou-me de um concerto que iria dar
bem tocada, eram todos músicos na Union Chapel de Londres e, depois
que conheciam bem aquilo com que de tanto tempo a dizer não, disse que
estavam a lidar, não era uma moda de sim... E cantei mesmo. MUSEU DO ORIENTE EXPOSIÇÃO COLECTIVA DE ARTISTAS DE MACAU
que, mais tarde, se iriam arrepender. www.museudooriente.pt
Acreditavam no que estavam a fazer.
Era claro que, por exemplo, os álbuns
Surpreendeu-se ao descobrir, em
“Shirley Inspired”, que tinha tantos
16 OUTUBRO ‘20 A 17 JANEIRO ‘21
mecenas principal seguradora oficial co-organização patrocínios
de morris dances, nunca iriam ser novos fãs como Lee Ranaldo, Meg
populares. Mas era uma questão de Baird, Rozi Plain, Bonnie Prince Billy?
manter viva aquela música, de uma Sim! Foi uma grande surpresa ver
forma fresca e que não a rebaixava aquela enorme variedade de músicos INFORMAÇÕES | Av. Brasília Doca de Alcântara (Norte) | 1350-352 Lisboa | Tel. 213 585 200 | info@foriente.pt
nem insultava. pegarem nas minhas canções. Não é
uma questão de falsa modéstia mas
Como foi a experiência de, com a sua tenho consciência que a música que
irmã Dolly, colaborar com David faço se destina a um pequeno nicho.
Munrow e o Early Music Consort em
“Anthems in Eden” (1969) e “Love, Qual a sua opinião sobre gente re-
Death and the Lady” (1970)? cente como as Unthanks, Stick in the
Devem ter sido os momentos mais Wheel...
emocionantes da minha vida musical! Para ser honesta, as Unthanks fazem
Além de, como já lhe contei, os meus música lindíssima mas parecem-me
avós nos ensinarem canções tradici- demasiado repetitivas, prefiro um
onais, o meu tio Fred fazia-nos ouvir pouco mais de substância. E os Stick
muitos discos de Monteverdi. Apren- in the Wheel dão-me a sensação de
di, assim, a adorar também a música estarem a cantar sempre a mesma
antiga. Conheci o David Munrow música. Mas adoro os Lankum — a
em Londres, com a Dolly. Fomos ter Radie Peat é uma cantora extraordiná-
com ele ao Early Music Center porque ria — e o Alasdair Roberts.
adorávamos o trabalho dele, cheio de
vida e energia. Passado algum tempo, Tanto em “Lodestar” como em “He-
surgiu a possibilidade de gravarmos art’s Ease”, o processo de seleção do
“Anthems in Eden” e o David aceitou reportório foi o que sempre utilizou?
interpretar os arranjos da Dolly com o Sim, e não foi difícil encontrar as can-
Early Music Consort. Ele era imensa- ções. Poderia gravar mais 20 álbuns
mente entusiástico, estar ao pé dele se fosse necessário. O essencial é que
era como estar ligado a uma central os arranjos nunca se sobreponham à
elétrica. Não duvidava que esta mú- canção. Os músicos com que tenho
sica deveria ser tocada e interpretada trabalhado são perfeitos para mim,

TERESA CORTEZ
de uma forma rigorosa. Mas era tão compreendem instantaneamente o
gentil, o género de pessoa com quem que cada canção pede. São pessoas
nos apetece estar sempre... Eu não lia inteligentes, divertidas... e leem livros!
música (e continuo a não ler), o que, [risos] Já agora, tenho de dizer-lhe que
ao entrar para estúdio, me deixou
um bocado nervosa. A Dolly tinha
a minha filha deu-me a conhecer a
obra do José Saramago. Comecei por
MUSEU DO ORIENTE
www.museudooriente.pt
UM MUNDO LÚDICO À ESPREITA
partituras para todos e, quando ele
me disse que a minha entrada era no
“A Jangada de Pedra” e, agora, estou a
ler o “Manual de Pintura e Caligrafia”.
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sexto compasso, tive de lhe confessar É extraordinário! b seguradora oficial
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Li Aquilo que
vros queremos
Coordenação Luciana Leiderfarb O prolífico Ford Madox Ford escreve uma história, nem
lleiderfarb@expresso.impresa.pt
oitocentista nem vanguardista, feita de segredos e boatos,
violências inesperadas e inocências improváveis
TEXTO PEDRO MEXIA

O
que quer esta gente? O prolífico Ford Madox Ford (1873- Não posso evitá-lo. Agarrei-me à
“Leonora queria Edward e 1939), amigo de Joseph Conrad, minha ideia de estar numa casa de
tem Rodney Bayham (...). com quem escreveu três livros, campo com um ouvinte silencioso
Florence queria Branshaw e fui compagnon de route dos modernistas que, entre as rajadas de vento e os
eu que a comprei a Leonora. (...). anglo-americanos, publicou “O ruídos do mar distante, escuta a
Edward queria Nancy Rufford e Bom Soldado” em 1915. Já não era história à medida que ela me vai
eu é que a tenho. (...) Estranho um romance oitocentista, de tão ocorrendo. E, quando se discorre
e fantástico mundo. Porque não fragmentado e pouco confiável, sobre um assunto, um assunto longo
podem as pessoas ter aquilo que mas também não se queria um e triste, anda-se para trás, anda-se
querem?” Leonora é a mulher texto vanguardista, tantas as para a frente. Lembramo-nos de
de Edward Ashburnham, bom peripécias que lembravam, até em coisas já esquecidas e explicamo-
soldado, bom desportista, bonito termos sociais, Henry James, ou um las com tanto mais minúcia quanto
homem. E Florence é a mulher do romance setecentista de sofisticadas reconhecemos ter-nos esquecido
narrador, o americano John Dowell. especulações morais. Quando, a de as mencionar no lugar próprio
Os dois casais convivem, todos os certa altura, o narrador pergunta se e que, ao omiti-las, podemos ter
anos, numas termas alemãs, mas a um romancista “tem por ofício fazer dado uma falsa impressão. Consolo-
geografia humana torna-se instável ver as coisas muito claramente”, me pensando que se trata de uma
à medida que cada um deles deseja o que se pode dizer é que John história verdadeira e que, afinal,
outras pessoas ou é desejado por Dowell não faz nada disso. Toda as histórias verdadeiras são mais
elas, os homens atarefados em ceder a sua narrativa está carregada de bem contadas se o forem ao jeito
aos instintos, as mulheres tentando circunlóquios, cláusulas dubitativas, de quem conta um conto. Ficam a
salvar os casamentos e as finanças, contradições. E até o coloquialismo, parecer muito mais reais.”
enquanto aparecem e desaparecem que torna o discurso fluido, tende a Há três ou quatro tragédias, no
pretendentes, tentações, deslizes. divagações descosidas, como uma sentido clássico do termo, em “O
Esta não é “a mais triste história conversa pela noite dentro: “Tenho Bom Soldado”. Mas o relato é ex post
jamais contada”, como se anuncia a noção de ter contado esta história facto, digressivo e incerto, e mais do
logo no início; mas os quatro de um modo muito divagante, por que tragédias, vislumbram-se umas
amigos, e todos aqueles que a eles isso será difícil encontrar o caminho “sombras trágicas” que envenenam
se associam, podem ser vistos como no meio desta espécie de labirinto. qualquer possibilidade de narrar
gente de que vale a pena ter pena, esta história feita de segredos e
indivíduos lânguidos e ociosos, boatos, violências inesperadas e
tão depressa displicentes como em inocências improváveis. A ideia
êxtase romântico, gente de bem de maus castigados e de bons
a fazer coisas más, gente que se recompensados, mencionada já
conhece e afinal se desconhece, O próprio Ford quase no fim, não corresponde ao
pessoas cultas e elegantes, um
pouco aborrecidas e um pouco
Madox Ford diz, num destino das personagens, até porque
temos dados a mais ou a menos, ou
neurasténicas, exaltando virtudes texto introdutório, fora do sítio, e esta gente parece-
imaginárias, evitando os cônjuges, nos umas vezes decente, outras
inventando doenças, vivendo as
que alguém (ele indecente, outras à deriva. Tendo
QQQ afinidades sem verdadeira amizade, mesmo?) considerou em conta o gosto destes ingleses
O BOM SOLDADO atribuindo responsabilidades aos e destes americanos expatriados
Ford Madox Ford costumes ingleses ou às convicções este livro “o melhor pelo lazer e pelos jogos, a imagem
Relógio D’Água, 2020, trad.
de Telma Costa, 240 págs., €18
católicas, ou seja a que for, excepto
aos seus próprios pensamentos e
romance francês mais adequada, também ela surgida
no último capítulo, parece a mais
Romance palavras, actos e omissões. em língua inglesa” certeira; trata-se da imagem de

E 62
Ford Madox Ford (1873-
-1939) nasceu em Londres.
Amigo de Joseph Conrad, foi
autor de cerca de 60 títulos,
entre romances e ensaios

“volantes”, ou seja, os projécteis


usados no badminton: “E repetiu
as palavras ‘volantes’ três vezes.
Sei o que passava pelo seu espírito
(...), pois Leonora contou-me que,
uma vez, a pobre rapariga disse que
se sentia num jogo de badminton,
atirada para a frente e para trás
entre as violentas personalidades de
Edward e da sua mulher. Leonora,
dissera ela, estava sempre a tentar
passá-la a Edward, e Edward, tácita
e silenciosamente, devolvia-a com
toda a força. E o estranho é que o
próprio Edward pensava que as
duas mulheres o usavam a ele como
volante.”
Isto, como se vê, não é Joyce,
nem Conrad, mas também não é
James, muito menos Jane Austen.
O próprio Ford Madox Ford diz,
num texto introdutório, que alguém
(ele mesmo?) considerou este livro
“o melhor romance francês em
língua inglesa”, talvez por causa
da desproporção entre a acção e
as considerações sobre a acção.
Lido hoje, é menos estranho do
que seria naquela época, porque a
desagregação da alta burguesia foi
dissecada uma e outra vez e porque
já interiorizámos a cronologia
desconjuntada. O interesse actual
de “O Bom Soldado” está por isso na
intensidade que, em muitos casos,
os factos não justificam, enquanto
noutros episódios, mais graves,
os comentários matter-of-fact,
inglesíssimos, parecem chocantes.
O outro achado, que sobreviveu
bem, é a utilização de um
narrador hesitante, atreito a
lapsos, generalizações, confusões,
desconversas. De modo que nunca
sabemos se John Dowell é um
sujeito honrado maltratado por
terceiros, um passivo-agressivo,
E. O. HOPPE/HULTON ARCHIVE/GETTY IMAGES

um mitómano ou um homem que


faz pouco e fala muito porque, a
acreditarmos em alguém, temos de
acreditar nele. Na década seguinte,
Ford Maddox Ford escreveria uma
importante tetralogia, “Parade’s
End”, mas manteve-se fiel à tese de
que a vida não é uma narração, é
uma impressão. b

Pedro Mexia escreve de acordo


com a antiga ortografia

E 63
“Vem aí a macacoa, a miséria?
Adília Lopes, Por enquanto ainda tenho paz.”
pseudónimo de Embora seja garantido que os
Maria José da habituais detratores adilianos irão
Silva Viana ver em ‘Quarentena’ nem sequer
Fidalgo de um poema, talvez ele possa ser
Oliveira, nasceu entendido como a lapidar banda
em Lisboa, sonora desse isolamento forçado:
em 1960 “Estar em casa/ estar e estar/ dias
e dias.”
QQQQ
Também como todos nós, a não DEZ LIÇÕES PARA
ser que morramos antes, Adília UM MUNDO PÓS-PANDEMIA
Lopes fez 60 anos, que são neste Fareed Zakaria
livro devidamente celebrados Gradiva, 2020, trad. Inês Fraga
(e celebração é bem o termo). e Sara Lutas, 290 págs., €16,50
Ensaio
Leia-se, por exemplo, a propósito
de um velho pombal remendado
com cola: “Só agora aos 60 anos Dar um passo atrás para olhar o lugar
descobri que o pombal tem um onde estaremos depois de controlada
apito, é um apito. Apitei. Apito. a pandemia é o exercício que Fareed
Há descobertas que só se fazem Zakaria faz neste livro. Não há traço de
tarde. Não acho que seja tarde.” adivinhação nem de futurologia nesta
Estas páginas, tão desirmanadas análise do que vai resultar da aceleração
e intensas como o agridoce fundo provocada pela pandemia de covid-19.
musical que nomeiam (e que Uma das caras mais conhecidas da
pode ir da Antena 2 ao talvez mais CNN, não só por ser o anfitrião do pro-
aliciante ruído de “alarme e vidros grama “GPS” mas pela análise política
a cair no vidrão”), confrontam- projetiva a que nos habituou, Zakaria é
nos, no fundo, com uma ele próprio um exemplo da “narrativa
inquietante aceitação da idade e alternativa” que propõe: reconhecendo
do estado do mundo, sugerindo a multiplicidade de pontos de vista que
novamente uma inesperada defesa coexistem no país que o acolheu, che-
da alegria: “Não se podem contar gado de Bombaim nos anos 70, escolhe
histórias assim tão prazenteiras? a América aberta e disponível à aber-
D.R.

Exigem-se cacos. Isso tudo é tura ao exterior. A ideia fundamental do


uma pose. Conheço pessoas livro é que está a acontecer um “rea-
com vidas muito mais regaladas linhamento político fundamental”. Tal

Ainda não é tarde do que a minha que se estão


sempre a lamuriar.” Torna-se,
aliás, irresistível lembrarmo-nos
como disse em entrevista ao Expresso:
“Estamos a passar da velha política de
esquerda-direita, que se organizava em
de Fernando Assis Pacheco, sentido lato em torno da economia, e

H
á ironias assim: após um descoberto no confinamento quando este escreve: “Os poetas dirigimo-nos para uma política dividida
livro intitulado “Estar insuspeitadas alegrias: “Cozinhar lamentam-se de mais./Gastam-se entre abertura e fechamento.” Para o
em Casa”, Adília Lopes tem sido alucinante para mim, por vezes num choro muito fino.” jornalista e cientista político, é evidente
teve mesmo, como quase todos uma terapia. Vem aí a macacoa, Talvez a ausência de pose seja que a tensão dos próximos tempos será
nós, de ficar em casa durante um a miséria? Sem esparguete, sem uma das lições a retirar destes atualizada entre as “pessoas que que-
longo período. Dito isto, convém coronavírus, a vida não é divertida. fragmentos errantes e completos rem manter o mundo aberto a produtos,
sublinhar que a recente pandemia, Por enquanto divirto-me.” Existe que, ao insinuarem que a literatura é ideias, pessoas, culturas” e as “pessoas
que tão má e oportunista literatura mesmo uma espécie de estribilho, o menos, não deixam de lhe prestar que o querem fechar, ter um mundo
tem espoletado, está longe de ser potencialmente catastrófico, mas banalíssima homenagem: “Aprendi mais protegido”. Não restam dúvidas
o “tema” deste livro, que pode aqui aflorado com uma suavidade num poema de Fleur Adcock que ao autor de que a China será um grande
ser lido como um mosaico em hedonista que tem perfeita podia comer pão com queijo e desafio para quase todos os países
que recordações de infância se consciência do quanto é precária: tomate. Nunca tinha experimentado do mundo e que a melhor maneira de
entrecruzam com experiências acrescentar tomate ao pão com preparar o futuro de forma competi-
muito posteriores. Em todo o queijo. A literatura ensina-me tiva passará por haver governos com
caso, é explicitamente nomeada tudo.” Literatura à parte, somos abertura ao multilateralismo que sejam
a vivência da “quarentena do fulminados com uma frase que capazes, ao mesmo tempo, de proteger
coronavírus”, mas com matizes vem, na sua aparente simplicidade, os seus povos. Proteger no sentido de
que nos poderão surpreender: desafiar o “pacto autobiográfico” os munir com instrumentos capazes
“É a quarentena do coronavírus. à francesa e suspender, de algum de absorverem o impacto de grandes
Não devo sair de casa. Tenho 60 modo, esse “jogo bastante perigoso” alterações futuras, isto é, educação e
anos, hipertensão e diabetes. Vivo que nos habituámos a tratar por formação. Pelo caminho, passam pela
sozinha. Não tenho net, não tenho Adília Lopes: “Chamo-me Maria análise fina de Fareed Zakaria as causas
televisão. Nem um candeeiro tenho QQQQQ José.” E também não será por acaso que desembocaram nas dualidades
para ler e escrever. Os trocos são DIAS E DIAS que a última frase deste livro é: radicais do presente e na crescente
poucos. Mas sou feliz.” É como se Adília Lopes “Tenho 60 anos adolescentes.” desigualdade do mundo que, diz, “está a
Adília Lopes, ao contrário de tantos Assírio & Alvim, 2020, 64 págs., €13,30 Parabéns, Adília. Ou Maria José, se tornar-se bipolar”. Livro de leitura alta-
contemporâneos seus, tivesse Poesia preferir. / MANUEL DE FREITAS mente recomendável. / CRISTINA PERES

E 64
E ainda...

QQQ NÃO MAIS AMORES


UM CRIME Javier Marías
DA SOLIDÃO Alfaguara, 2020, 408 págs., €23,50
Andrew Solomon Todos os contos do grande escritor
Quetzal, 2020, trad. de Constança Paiva espanhol, desde os já anteriormente
Boléo, 159 págs., €16,60 antologiados à mistura com textos
Ensaios
inéditos. Para quem ainda não leu o
autor, esta pode ser uma excelente
“O suicídio é o fracasso de mil oportu- porta de entrada na sua obra.
nidades para ajudar”, escreve Andrew
Solomon a propósito dos sentimentos
de culpa que podem surgir quando uma AS PLANTAS E A
pessoa próxima de nós se mata. Como
ALIMENTAÇÃO
MUNDIAL
tudo o que envolve esse tema extrema-
José Eduardo
mente delicado, as emoções tendem a
Mendes Ferrão
ser complexas e contraditórias. Solomon, FFMS, 2020,
de quem saíram anteriormente duas 180 págs., €35
grandes obras em Portugal, recolhe neste
pequeno volume um conjunto de peças O professor catedrático jubilado
soltas, abordando o suicídio essenci- de 98 anos lança este volume que
almente como efeito da depressão. A retrata as plantas da nossa iden-
eutanásia ou o suicídio assistido apare- tidade coletiva bem como alerta
cem na história da sua mãe, que tinha um para a necessidade de gerirmos os
cancro terminal e se matou na presença recursos alimentares do planeta.
dos filhos, algo que ele já tinha contado
em “O Demónio da Depressão”, de onde Top Livros Semana 46
é extraído o capítulo relevante. Quanto De 9/11 a 15/11
Ficção
aos restantes, surgiram inicialmente em
Semana
publicações como a “New Yorker”, o anterior

“New York Times” e a “Out”. Alguns refe- O Manuscrito de Birkenau


1 -
rem-se à história do autor ou de pessoas José Rodrigues dos Santos
próximas dele, outros a casos nas notícias, O Mágico de Auschwitz
2 2 José Rodrigues dos Santos
seja o do jovem que cometeu um mas-
sacre (“homicídio-suicídio”) numa escola 3 -
Mulheres da Minha Alma
primária, o do chefe Anthony Bourdain ou Isabel Allende
o de Robin Williams. Neste último caso, o 4 1
O Diário de Um Banana 15
Jeff Kinney
texto precedeu a revelação de que o ator
sofria de uma grave doença degenerativa As 100 Melhores Crónicas
5 - Miguel Esteves Cardoso
que o desesperava, informação que con-
As categorias consideradas para a elaboração deste top
vinha ter incluído agora, nem que fosse foram: Literatura; Infantil e Juvenil; BD e Literatura Importada
em rodapé. Uma limitação de perspetiva
produz frases como a seguinte: “A reali- Não ficção
dade (...) não é a que as pessoas pobres Semana
anterior
estejam geralmente deprimidas porque
1 5 A Grande Escolha
são pobres, mas que, pelo contrário, são Adolfo Mesquita Nunes
pobres porque estão muito deprimidas.” História Global de Portugal
Que pensar dos milhares de camponeses 2 1
V.A.
que se matam todos os anos na Índia e Libertem as Crianças
3 -
noutros países por motivos económi- Carlos Neto
cos? Isto dito, para o público a que se Rezar de Olhos Abertos
4 -
destina (i.e. de que largamente fala), o José Tolentino Mendonça
livro tem muito de interessante. Até em Pensa como Um Monge
5 3 Jay Shetty
aspetos inesperados, como a referência
à forma como as notícias podem afetar As categorias consideradas para a elaboração deste top
foram: Ciências; História e Política; Arte; Direito,
as pessoas: “Sentimos tanto a nossa Economia e Informática; Turismo, Lazer e Autoajuda

angústia como a angústia do mundo. Há Estes tops foram elaborados pela GfK Portugal, através
do estudo de um grupo estável de pontos de venda
uma escassez de empatia, até mesmo de pertencentes a dois canas de distribuição: hipermercados/
supermercados e livrarias/outros. Esta monitorização
bondade, no debate nacional.” é feita semanalmente, após a recolha da informação
eletrónica (EPOS) do sell-out dos pontos de venda.
/ LUÍS M. FARIA A cobertura estimada do painel GfK de livros é de 85%
Tilda Swinton brilha numa
curta de neuroses domésticas

Ci
e confinamentos forçados

ne
ma
Coordenação João Miguel Salvador
jmsalvador@expresso.impresa.pt

Pedro & Tilda


Há muito tempo
P
eça de teatro e monólogo de episódio, adaptava a peça em produz todos os seus filmes desde
um só ato, “A Voz Humana”, causa. Quase toda a crítica se “A Lei do Desejo”, precisamente).
que o cineasta de Jean Cocteau, apresentou- esqueceu ou passou ao lado disso Com 30 minutos de duração, chega
se pela primeira vez na Comédie- quando “A Voz Humana” se estreou agora às salas com o bónus de uma
espanhol dialoga Française em 1930 e foi desde em setembro passado, fora de entrevista ao realizador e atriz.
então levada à cena inúmeras concurso, no Festival de Veneza. É importante notar como “A Voz
com a peça de Jean vezes e nas mais variadas línguas, E muitos se esqueceram também Humana”, que foi rodado já com a
Cocteau e agora firmando a universalidade de um que, já a meio dos anos 80, década pandemia da covid-19 em curso,
texto que também deu azo a peças de criatividade prodigiosa para o se torna no filme das neuroses
adaptou-a ao radiofónicas e múltiplas adaptações espanhol, Almodóvar inscreveu a domésticas e dos confinamentos
ao cinema e à televisão. É um drama peça de Cocteau na sua filmografia, forçados, abrindo o palco a uma
cinema, oferecendo pungente, história de um amor não encarnando-a (ao som de ‘Ne me Tilda Swinton esplêndida e a solo,
um papel soberbo correspondido que chega ao fim nas
hesitações e nos balbucios de uma
quitte pas’, de Brel) na mulher
abandonada e atriz transgénero
ao lado de um cão nervoso e de
livros de arte, pinturas e DVD de
a Tilda Swinton. conversa telefónica interrompida, que Carmen Maura interpretava no filmes caros a Almodóvar (Douglas
ansiosa, e em que as palavras sublime “A Lei do Desejo” (1987), Sirk, por exemplo), à espera que o
Estreia-se na esbarram contra o espectro do outro ao lado de Eusebio Poncela e do telefone toque e traga notícias do
próxima quinta-feira lado da linha. Dessa conversa em
que “o telefone é por vezes mais
ainda jovem Antonio Banderas. A
ideia do machado que Tilda Swinton
amante negligente, desaparecido
há três dias. É certo que o filme
TEXTO FRANCISCO FERREIRA perigoso do que o revólver”, assim compra numa loja para descarregar fará figura de intermezzo na obra
escreveu Cocteau, é a voz dela que frustrações vem, aliás, dessa cinematográfica em que se insere.
se escuta, a voz que ama e deixou de personagem de Carmen Maura. E a Mas é um belo ‘momento de pausa’,
ser amada; “solo de voz humana” mudança de género da protagonista isso é. Ou um ponto de rutura no
(ainda Cocteau) escrito para uma sugerida naquele filme seria percurso de um artista que sempre
atriz em papel curto, contudo também concretizada em português, teve o fantasma do teatro a rodeá-lo
exigente e muito complexo a nível noutro tempo e noutro contexto, de perto e que agora decidiu abraçá-
emocional. no belíssimo “O Que Arde Cura” lo por inteiro, sem rodeios, usando
Pedro Almodóvar, que há muito faz (2012), curta de João Rui Guerra da com um propósito dramático as
a corte ao melodrama e também Mata, inspirada na mesma fonte. entranhas dos seus bastidores.
adora telefones — vermelhos Este “A Voz Humana” de 2020 é Não é a realidade dos nossos dias,
QQQ garridos de preferência — anda o primeiro trabalho em inglês do muitos podem dizer. Mas é real o
A VOZ HUMANA às voltas com a peça de Cocteau cineasta espanhol e mais uma poder da representação da atriz e,
De Pedro Almodóvar desde os anos 70 da sua cinefilia, aventura de estúdio e de inegável no espelho retrovisor imaginário
Com Tilda Swinton (Espanha) no dia que viu Anna Magnani bom gosto, rodada na El Deseo, nos dessa representação, mais do que a
Drama/Classificação a definir em “L’Amore” (1948), filme de bastidores da empresa de Pedro peça de Cocteau, todo o cinema de
(estreia dia 3 de dezembro) Rossellini que, no seu primeiro e do seu irmão Agustín (que lhe Almodóvar se descobre refletido. b

E 66
E ainda...
GRETEL & HANSEL
De Oz Perkins
TVCine Top, domingo, 21h30
A CAMAREIRA
QQ Q De Lila Avilés
Nova e aterradora versão da
aventura clássica de dois irmãos que
DREAMLAND: SONHOS PROTÓTIPO Drama mexicano que oferece um vagueiam no bosque e vão parar à
E ILUSÕES De Gavin Rothery olhar diferente sobre a vida de uma casa de uma bruxa.
De Miles Joris-Peyrafitte Com Theo James, Stacy Martin, Rhona Mitra jovem camareira que trabalha num
Com Finn Cole, Margot Robbie, (Reino Unido/Hungria/EUA) dos hotéis mais luxuosos da Cidade
Travis Fimmel (EUA) Drama/Ficção Científica M/14 do México. Nos cinemas.
Drama M/12

ESTREIA “Dreamland” tenta ativar as ESTREIA A sequência inicial de “Protóti-


nossas saudades de um género defunto: po” segrega uma sensação de isolamen-
o melodrama clássico americano. Fá-lo, to, recortando em planos médios o corpo
aliás, desde a primeira sequência, que re- do protagonista (George/James) contra
corre a uma narradora delegada (a meia- um décor agreste e desabitado: o de uma BELEZA NEGRA
-irmã do protagonista) para enquadrar a montanha japonesa coberta de neve. UNCLE FRANK De Ashley Avis
De Alan Ball Disney +, estreia hoje
história em flashback. De facto, é através Nela, encontra-se a estação de pesqui-
Amazon Prime Video, em streaming
da sua voz off que aterramos no Texas do sa científica, onde — por razões nunca O romance de Anna Sewell, escrito
início dos anos 30, para seguir um rapaz explicadas — George trabalha sozinho, Comédia dramática sobre uma so- no século XIX, sobre um Mustang
na casa dos 18 (Cole) que, como muitos criando robôs dotados de inteligência brinha, Beth Bledsoe (Sophia Lillis), nascido livre no Oeste americano,
dos seus vizinhos, só pensa em abandonar artificial para uma empresa privada (o ano que ajuda Frank (Paul Bettany), o ganha nova vida.
a sua comunidade rural: uma terra onde em que a ação decorre é o de 2038). As seu tio gay, a enfrentar o passado.
nunca chove, onde nada cresce, e que é suas únicas companhias são os dois robôs
regularmente fustigada por tempestades que já fabricou e o Archive: um dispositi-
de areia. Atendendo ao carácter inóspito vo que preserva a consciência dos seres
do décor, percebe-se que ele dedique humanos após a morte, permitindo assim
uma boa parte dos seus dias a sonhar com que os vivos contactem com os que já
a recompensa que foi prometida a quem partiram. No caso: a mulher do prota-
encontrar uma assaltante de bancos gonista (Martin) que, como ficaremos a
(Robbie) que, alegadamente, se refugiou saber através de uma série de flashbacks, PRIMEIRO AMOR O FAROL
nas redondezas. O rapaz cedo a desco- morreu num acidente de carro. Pouco De Takashi Miike De Robert Eggers
TVCine Top, amanhã, 21h30
brirá escondida no celeiro da sua casa, preocupado em detalhar os pressupostos Thriller nipónico-britânico centrado
caindo de pronto no conto do vigário que científicos sobre os quais trabalha, o filme num jovem pugilista que se Robert Pattinson e Willem Dafoe
ela lhe vende (dizendo-lhe que nunca depressa nos diz que o sinal que assegura apaixona por uma acompanhante protagonizam um filme sobre o
matou ninguém e que partilhará com ele a ‘ligação’ de George com a mulher está toxicodependente envolvida num isolamento, sobre dois homens
o seu saque se ele a ajudar a fugir). Neste à beira de expirar — motivo que o levará a esquema com a Yakuza. Nas salas. levados aos limites da insanidade.
quadro, o que mais se nota é o modo transferir a informação contida no Archi-
como o filme é incapaz de dar vida ao seu ve para a IA de um robô de aparência hu-
par romântico, formado por duas figuras- mana. Eis a base de uma sci-fi minimalista ESTRELAS DA SEMANA
-tipo (a da femme fatale e a do rapaz in- e de ‘baixo ritmo’, que se destaca pelo Jorge Vasco
Francisco
génuo) entre as quais não consegue criar modo inteligente como emprega os seus Ferreira
Leitão Baptista
Ramos Marques
um verdadeiro diálogo emocional: embo- limitados recursos, tentando por exemplo
ra não se canse de enunciar visualmente condensar ao máximo o espaço da ação, Amor Fati QQQ QQQ
a paixão dele por ela, o espectador nunca que se desenvolve quase inteiramente Até às Estrelas QQQ
chega a senti-la — muito por culpa da na estação de pesquisa. Porém, como a Ava QQ
monocórdica interpretação de Finn. Esse maioria das obras que têm abordado a
está longe de ser o único problema de questão da IA, “Protótipo” exibe mais do Casa Grande QQQQ
um filme cujo argumento tem dificuldade que interroga, confrontando-nos com A Cidade Onde Envelheço QQ QQQ QQ
em justificar as ações das personagens, uma personagem que nunca coloca Dreamland: Sonhos e Ilusões QQQ QQ
e cuja realização cede a floreados. Aqui, em causa as consequências dos seus
Gabriel e a Montanha QQQQ
pensamos naqueles planos malickianos atos. Essa omissão retira peso ao filme,
que recortam os corpos contra uma transformando-o num vulgar melodrama Lamento de Uma América em Ruínas QQ
paisagem subitamente embelezada, mas romântico sobre fundo científico. Daqui O Nosso Cônsul em Havana QQ
sobretudo nos tiques experimentais da não viria mal ao mundo se, na sequência
Notre Dame de Paris QQ Q
montagem, que por vezes intercala entre final, Gavin Rothery não nos impusesse
as sequências uma série de planos breves um twist narrativo que, embora simule Pinóquio QQ QQ
que sugerem o desejo de evasão do pro- reenquadrar tudo o que antes vimos, dei- Protótipo Q
tagonista. O enxerto é supérfluo e não xa absolutamente inalterado o sentido da Uma Vida à Sua Frente QQ
casa bem com um filme que vale pela história, constituindo assim uma solução
sua vontade de brincar aos clássicos. espaventosa que para nada serve. A não A Voz Humana QQQ
/ VASCO BAPTISTA MARQUES ser para estragar tudo. / V.B.M. DE b MÍNIMO A QQQQQ MÁXIMO EXPRESSO

E 67
Glória
mental, mas não é muito boa a
relacionar-se com os outros ou a
suportar-se a si própria.
Como é possível que uma série que
gira em torno de um assombroso

e insânia
talento para o xadrez seja um
sucesso? Porque, deveras, o xadrez
não é o tema, o xadrez é um
MacGuffin. O termo, forjado (ou,
pelo menos, enunciado) por Alfred
Hitchcock, designa um dispositivo
ficcional que parece estar no centro
dos acontecimentos, mas que, no
fundo, interessa nada. Deve interessar
Coordenação João Miguel Salvador
“Gambito de Dama” é um sucesso improvável ao espectador, claro, é como um
isco arpoado no anzol, é atrás dele
jmsalvador@expresso.impresa.pt
na Netflix. E não é preciso gostar de xadrez que vamos. E deve interessar aos
para que nos envolva irremediavelmente personagens, é o que os move.
Mas, de facto, o mais importante é
TEXTO JORGE LEITÃO RAMOS outra coisa, como, de algum modo
obscuro e inconsciente, o espectador
sabe. Um exemplo clássico de

Q
uase no início do sexto MacGuffin é o urânio traficado em
episódio desta série, há uma “Notorious”/“Difamação”, filme
cena definidora. No fim do que Hitchcock fez logo a seguir
episódio anterior, Benny, um antigo à guerra, em 1946. É pelo urânio
oponente de Beth, convence-a que se organiza a rede nazi, é
a vir com ele para Nova Iorque, para a desmantelar que a contra-
treinar intensamente antes dela espionagem americana manda o Cary
ir ao torneio de xadrez de Paris, Grant e a Ingrid Bergman infiltrar
onde espera desforrar-se do russo essa rede. Na realidade, o que importa
Borgov que lhe infligira humilhante não tem nada a ver com urânio, o
derrota. No termo de uma viagem que importa é que Cary Grant meta a
de 12 horas num Volkswagen que mulher que ama na cama do espião
já teve melhores dias, Beth olha e que este, apaixonado por ela, se
o perfil noturno de Manhattan deixe perder por amor. Em última
visto do lado oeste e percebemos o instância, o MacGuffin poderia ser
seu maravilhamento. É o topo do uma não-existência, como Hitchcock
mundo. Quando chegam a casa de contava na célebre anedota em que
Benny, ela faz menção de subir a dois homens vão no comboio e um
pequena escada que conduz à porta deles leva um grande embrulho.
de entrada, antes dele apontar para E dialogam: O que leva aí?; Um
baixo. Benny mora numa cave, MacGuffin; O que é um MacGuffin?;
um espaço aberto sem paredes É um aparelho para caçar leões nos
NETFLIX

Anya Taylor-Joy no
papel de um prodígio interiores, uma espécie de toca Adirondacks; Mas nos Adirondacks
do xadrez com uma muito longe da iridescência dos não há leões!; Então não é um
vida pessoal atribulada arranha-céus que víramos antes. MacGuffin.
É um buraco, é o fundo do mundo. Em “Gambito de Dama”, o xadrez é a
“Gambito de Dama” é toda assim. vocação obsessiva de uma miúda que
Ora vai acima, ora vai abaixo, a descobre o jogo com o misantropo
vida de Beth é aos solavancos que encarregado da manutenção do
avança — e talvez seja a brutalidade orfanato e que vive na cave. Logo
desses solavancos o que atrai os percebemos, todavia, que o jogo
espectadores que estão a fazer é mais um meio de fuga a um
de “Gambito de Dama” uma das quotidiano que ela detesta que um
séries mais vistas da Netflix. Isso e a desígnio real. E durante toda a série,
personalidade da protagonista com à medida que os objetivos sobem
quem não há quem não empatize, de patamar — ganhar um torneio
que todos queríamos ser e ao mesmo em Las Vegas, derrotar os russos no
tempo não ser, porque entre ter os México, ser campeã americana, ter
dons que ela tem e pagar o preço uma vingança em Paris, obter o título
que ela paga, o negócio é de risco. mundial em Moscovo no próprio
Beth vai de órfã numa instituição terreno do grande adversário —, o
austera na América profunda a que a ficção arquiteta é a maceração,
campeã do Mundo de xadrez a maturação, daquela jovem mulher
em Moscovo — e quase deixa para ganhar equilíbrio, para sair da
a sanidade como moeda vertigem. No fim da linha, o xadrez
de troca. Beth é um génio poderá ser um simples prazer de

E 68
relacionamento. A cena terminal
< dezembro 2020 >
E ainda...

de “Gambito de Dama” é isso que


concretiza.
É porque o xadrez é um MacGuffin
que não é preciso conhecer o jogo
para seguir a trama da série. Beth
poderia jogar póquer, dedicar-se a
resolver enigmas matemáticos ou
estar obcecada na escrita do romance
perfeito, seria igual. Ao espectador só FOR LIFE
interessa saber que Beth é superdotada, De Hank Steinberg
AXN, estreia quinta, 22h45
mas que não basta o génio, há
(Temporada 2)
também muito que trabalhar, longa e
aplicadamente. Como estamos no reino Drama jurídico sobre Aaron Wallace
do xadrez, lá vêm defesas e ataques (Nicholas Pinnock), um homem pre-
que até têm nomes e que a protagonista so por um crime que não cometeu.
precisa de identificar e desenvolver.
E lá vem o facto de o xadrez se jogar
dentro da cabeça, no que o fantasma
noturno do tabuleiro gigante no teto do
quarto é feliz materialização (e, ainda
por cima, verdadeira: quem tenha
praticado xadrez com algum grau de
perseverança e de profundidade sabe
ser comum sonhar com situações para
resolver).
E depois, “Gambito do Dama” está PRIVATE EYES
cheia de seduções. Daqueles anos De Tim Kilby e Shelley Eriksen
FOX Life, quintas, 22h20
50/60 um bocadinho exóticos,
(Temporada 4)
definidos mais em termos de
design que de vivências, a dar uma O ex-jogador de hóquei Matt Shade
aura de estranheza, um efeito de e a detetive privada Angie Everett
distância, sem grandes âncoras regressam com novos casos.
assinaláveis; de uma miríade de
personagens secundários dos quais
nunca saberemos muito, mas que
nos interessam num processo de
atração e de opacidade, revelações
e mistérios; de uma atriz brilhante
— Anya Taylor-Joy — que ora se
abre, ora se fecha, ora nos pede
proximidade, ora nos empurra; de
um argumento que recusa todo e
qualquer estereótipo e que, a uma A GENERALA
narrativa explícita, prefere a secritude De Patrícia Müller e Vera Sacramento
OPTO, em streaming
ou o sussurro (vejam-se todas as
(Temporada 1)
cenas que respeitam à relação de Beth
com a mãe biológica, flashbacks em História baseada em factos verídi-

REVISITAR OS GRANDES GÉNEROS


farrapos, ferida funda que só pouco cos sobre uma rapariga açoriana que
a pouco nos concede conhecer); e, assume uma nova personalidade

A COMÉDIAࡪ O RISO
sobretudo, de uma realização (de masculina no continente.
Scott Frank) onde a elegância e a
eficácia se conjugam, onde a beleza
de um travelling ou a intensidade
de um grande plano acrescentam O QUE QUERO VER
emoções e mesmo a simplicidade de
um campo/contracampo nunca é
A CINEMATECA COM OS ENCONTROS CINEMATOGRÁFICOS
rotina sintática. b HOMENAGEM A JOSÉ LOPES
BERNARDO SANTARENO E O CINEMA
DEXTER IN MEMORIAM CRUZEIRO SEIXAS
De James Manos Jr.
GAMBITO DE DAMA HBO Portugal, em streaming CINEMATECA JÚNIOR
De Scott Frank e Allan Scott (Temporadas 1 a 8)
Com Anya Taylor-Joy, Chloe Pirrie, COM A LINHA DE SOMBRA
Moses Ingram Série icónica, sobre um especialista
Netflix, em streaming forense que é também serial killer, ANTE-ESTREIAS
(Temporada 1) que está agora disponível na íntegra.
O DIA MAIS CURTO
òŔȍŔ¡ࡲbƢȍǫˉèǫŹơǫɭȶ
ɢɭȶnjɭŔȟŔƇŴȶơƃȍŔɽɽǫljǫƃŔƇŴȶơʋŖɭǫŔƎơƃŔƎŔɽơɽɽŴȶơȟˁˁˁࡲƃǫȥơȟŔʋơƃŔࡲɢʋ
èʠŔ%ŔɭŔʋŔòŔȍnjʠơǫɭȶ࡫ࠂࠈ•ǫɽŹȶŔ
Coordenação Rui Tentúgal
rtentugal@expresso.impresa.pt

Irrepetível
vezes quatro
Em julho de 2018,
A
pesar da longa e aplaudida sinfónica. A química com os familiaridade com os palcos, com as
discografia, Sérgio Godinho músicos da Metropolitana de Lisboa, tábuas.”
Sérgio Godinho considera-se uma criatura e mais tarde com os espectadores Satisfeito com o carácter “coeso
de palco. É lá que sente a energia dos quatro espetáculos, foi imediata e consistente” das gravações,
colmatou “uma do público, a música a crescer, o e palpável. “Sentimos logo que Sérgio Godinho quis editar este
lacuna no prazer”: seu universo artístico a expandir-
se. Não será por acaso, de resto,
estava a ser especial, de certa forma
irrepetível. Bem, foi irrepetível
espetáculo por entender que o
mesmo “engloba várias vertentes”
dar um concerto que “Ao Vivo no São Luiz”, o disco quatro vezes”, ri-se o autor, numa da sua obra, a saber: “o trabalho
gravado naquele teatro da capital entrevista por telefone. “Acho que com os Assessores [a banda que o
(ou quatro) com com a Orquestra Metropolitana de é no palco que as coisas acontecem. vem acompanhando nos últimos
uma orquestra Lisboa dirigida por Cesário Costa, é
já o sexto álbum ao vivo do escritor
Onde se mostra, onde se pratica,
onde há a reação do público: o
anos], que estão menos presentes
neste álbum, mas estão lá; o
sinfónica. O disco de canções português, sucedendo a que eles nos mandam a nós, o que Filipe Raposo, que já trabalhou
títulos tão apreciados como “Noites nós mandamos para fora. É aí que muito comigo nos concertos
ao vivo com a OML, Passadas”, de 1995, ou “Nove e Meia a canção se consuma”, ilustra. de piano e voz, não só é um
no São Luiz, está aí no Maria Matos”, de 2008. No verão
de 2018, o autor de ‘Só Neste País’
“Sempre fui uma pessoa de palco.
Tive também aquela pré-educação
magnífico pianista como fez as
belíssimas orquestrações para a
TEXTO LIA PEREIRA pôde colmatar aquilo a que chama no musical ‘Hair’, [em cujo elenco Metropolitana”, e o próprio São
uma “lacuna no prazer” e atuar pela estive] dois anos [no final dos Luiz, sala que lhe lançou o convite
primeira vez com uma orquestra anos 60], o que me deu uma certa e com a qual vive uma história de

E 70
Sérgio Godinho com partiu para os ensaios com vontade sendo consecutivamente uma casa
a OML e os Assessores e deixou-se contagiar pela alegria,
“Há muitas prisões, minha”, resume, enaltecendo a
sua e dos outros. “A orquestra teve eu não vou dizer liberdade que a direção do teatro
alguns ensaios só com o Filipe sempre lhe ofereceu.
Raposo e depois fizemos dois ou que não caí em No São Luiz ou no Maria Matos, onde
três ensaios no próprio local do
crime, no São Luiz. E via-se que
algumas. Mas eu deu recentemente seis concertos de
celebração do seu 75º aniversário,
havia um certo prazer: porque [os tenho uma ânsia Sérgio Godinho regozija com o
músicos da orquestra] têm prazer toque humano de uma atuação
e até necessidade de pisar outros de liberdade que ao vivo. A série de espetáculos de
territórios. De dia para dia, e ainda me atravessou aniversário, diz, “foi-se vendendo
mais nos dias dos concertos, havia e esgotando num fósforo. Esgotar,
uma alegria”, recorda, partilhando a vida inteira” agora, tem de ser com meias
um pormenor curioso sobre a lotações [devido à pandemia], mas
formação da orquestra. “Muitos SÉRGIO GODINHO nem se sentia muito. Sentia-se
deles são músicos estrangeiros, que a sala estava cheia, somehow:
como sempre [acontece] nestas havia um calor! Isto tem dois
orquestras, então muitos nem lados”, argumenta. “Nós estávamos
sabiam quem eu era, e de repente ansiosos por voltar aos palcos.
estavam surpresos. Eu também Mas as pessoas também estavam
dou o estímulo”, salienta. “Não sou ansiosas por verem concertos ao
aquela pessoa que chega lá e nem vivo e participar. No primeiro
olha para eles, então eles sentem cantaram-me logo os ‘Parabéns
que fazem parte de um todo”, extraordinário — e moderno! — do a Você’ — foi no dia dos meus 75
explica, contando que os membros Camões, como pela música do Zeca anos. E no dia seguinte também
de Metropolitana de Lisboa foram Afonso.” cantaram, espontaneamente.
“instados a participar [em canções] Espécie de talismã no seu caminho Estavam contentes, felizes, porque
como ‘Grão da Mesma Mó’ ou ‘Só pós-Revolução dos Cravos, o Teatro esta seca de espetáculos é muito
Neste País’, e estavam contentes por São Luiz é, “sem dúvida”, a sala dura. Não é só alegria, isto dá uma
cantar”. onde Sérgio Godinho atuou mais grande energia às pessoas — e a nós
Numa carreira que celebra por vezes. “Em 1974, logo no princípio também.”
estes dias 50 anos, escolher a setlist de maio, pouco depois do 25 de De volta ao elegante disco ao vivo já
de um concerto pode ser “uma Abril, estive em Portugal dez nas lojas, poderá a letra de ‘Mariana
dor de cabeça”, reconhece Sérgio dias”, recorda. “Depois voltei para Pais, 21 Anos’, da autoria do amigo
Godinho. A deste disco ao vivo Vancouver e em setembro voltei já desaparecido José Mário Branco,
mistura clássicos como ‘Com um definitivamente [para Portugal]. ganhar uma nova aceção em
Brilhozinho nos Olhos’, ‘Lisboa que Em Vancouver, eu fazia parte de 2020, ano de todas as prisões? “Eu
Amanhece’, ‘A Noite Passada’ ou ‘O um grupo de teatro, com quem remato essa canção com ‘os meus
Primeiro Dia’ com várias canções estava a ensaiar uma peça, mas sonhos são de laços e também são
do álbum que saíra naquele ano eles disseram: ‘Vai lá!’ Eu expliquei de liberdade’. Ou seja, precisas de
(“Nação Valente”, aqui representado que era importante”, ri-se. Dois ter laços com os outros, mas esses
por ‘Noite e Dia’, ‘Grão da Mesma dias depois de aterrar em Lisboa, o laços não podem estrangular a
JOSÉ FRADE/EGEAC

Mó’, ‘Tipo Contrafação’ e ‘Mariana jovem cantautor estava a participar tua liberdade. E é nesse equilíbrio
Pais, 21 Anos’). Num alinhamento num dos primeiros “cantos livres” pessoal, afetivo e social que eu e
de 15 temas, sobrou ainda espaço naquela sala. “Foi o meu primeiro muitas pessoas nos movemos. Há
para recordar ‘Endechas a Bárbara grande momento de comunicação muitas prisões, eu não vou dizer
Escrava’, versão de José Afonso em Portugal”, escreve no texto que que não caí em algumas. Mas há
sobre poema de Luís de Camões, acompanha o disco, desenvolvendo também uma ânsia — eu tenho
amor pelo menos desde 1974. Mas já que Sérgio Godinho gravou em ao Expresso: “Estava toda a gente uma ânsia de liberdade que me
lá vamos. 1989 no álbum “Aos Amores”. no palco, toda a gente ao molho. atravessou a vida inteira. E tenho
Depois de ao longo das décadas “As canções ‘batem’ nas pessoas Cada um ia-se levantando e isso como uma vertente muito
ter atuado ao vivo com banda, de maneiras diferentes. Algumas cantando duas canções. Alguns já intuitiva, uma respiração.” b
em formato de voz e piano, com fazem parte de certo período da se foram... estava lá o Zeca, essa lipereira@blitz.impresa.pt
a Orquestra Jazz de Matosinhos e sua vida, ou relacionam-se com o gente toda.” A essa experiência
até mesmo com uma Orquestra que estavam a viver. Mas eu gosto iniciática seguir-se-iam numerosos
Filarmónica, Sérgio Godinho de tirar a poeira a coisas que estão espetáculos temáticos, como
aceitou de braços abertos o repto na prateleira e que há muito tempo “Troca por Troca”, em 2005, no
para se juntar à Metropolitana não são mexidas. Não foi por acaso qual cantou John Lennon, Boris
de Lisboa. “Gosto de formações que cantei no São Luiz — e abri Vian ou David Byrne; “Liberdade”,
diferentes, porque dão-me os concertos do Maria Matos [este por ocasião dos 40 anos do 25 de
estímulos diferentes. Tenho uma ano] — com ‘O Velho Samurai’. É Abril, em 2014; a estreia ao lado
grande capacidade de adaptação, uma canção que acho especial e que de Filipe Raposo, em “Estar em
portanto estou à vontade com tinha ficado adormecida.” Quanto a Casa”, dois anos depois, e também
vários universos”, congratula- ‘Endechas a Bárbara Escrava’, surge o concerto parcialmente registado QQQQ
se. Confiante com os arranjos de naturalmente nos alinhamentos em “Noites Passadas”, disco ao AO VIVO NO SÃO LUIZ
Filipe Raposo — “que seguem o quando Filipe Raposo se senta ao vivo de 1994, que inclui também Sérgio Godinho & Orquestra
fluxo das canções e não se lhes piano. “É tão linda”, emociona-se o canções gravadas no Coliseu dos Metropolitana de Lisboa
sobrepõem, não as abafam” —, veterano. “Tanto por aquele lirismo Recreios. “Portanto, o São Luiz foi Universal

E 71
Doug e Jean
Carn nos
anos 1970 QQQQQ QQQQ
CHARPENTIER: MESSE BY ORDER
À QUATRE CHOEURS OF MAYOR PAWLICKI
Ensemble Correspondances, Pere Ubu
Sébastien Daucé (d) 2 CD Cherry Red/Popstock
Harmonia Mundi

Em subtítulo, lê-se: “Carnets de voya- Em 2015, os Pere Ubu iniciaram a reedi-


ge d’Italie”, mesmo que não se saiba ao ção em vinil da sua discografia até 2002
certo quando Marc-Antoine Charpentier dividida por quatro caixas e, em 2016,
(1643-1704) partiu, por onde andou, o que fizeram uma digressão para promover

Segunda vaga viu ou o que alcançou — isto é, que refe-


rentes estéticos veio a interiorizar. Do que
não há dúvidas é que, entre os seus, no es-
as duas primeiras: “Elitism for the People
1975-1978” e “Architecture of Language
1979-1982”. A tour chamou-se “Coed

T
endo em conta as notícias, da escravatura. Mas os discos pouco paço de uma geração, foi o único compo- Jail” e teve um alinhamento restringido a
e passando em revista têm de panfletário — a principal sitor francês a visitar Itália, trazendo nessa essa “era histórica” da banda, “aquela que
o punhado de títulos da revolução que desencadeiam é perspetiva à memória o “velho francês que a falange de criptofãs diz ser o melhor
Black Jazz que a Real Gone Music no cânone musical do Ocidente não sabe italiano, se sente completamen- período da nossa carreira”, ironiza David
acabou de colocar no mercado, e a herança que recusam é a do te à deriva e (…) não sabe o que fazer”, com Thomas num vídeo promocional de “By
seria de esperar que as atenções formalismo, pondo em prática o qual, mais de um século depois, o Goe- Order of Mayor Pawlicki”, o álbum que
se desviassem para “2nd Wave” protocolos de descontinuidade the de “Viagem a Itália” se cruzou — “Foi regista a passagem dessa digressão por
(1975), de Roland Haynes. De com a estética dominante. Neste uma delícia poder encontrar no estran- Jarocin, na Polónia. A discografia ao vivo
facto, neste contexto, e aos olhos jazz de abandono extático que geiro um autêntico espécime da fauna de dos Pere Ubu é um monstro ao qual con-
de um supremacista branco, por se diria dançar com os corpos Versalhes. Eles também viajam!”, reparou. tinuam a crescer membros. Este tem a
exemplo, quem se mostrasse capaz celestes, nomes como Jean Carn, Ou seja, o Ensemble Correspondances faz particularidade de ser muito bom porque
de conjugar a vivência mais sofrida George Harper, Garnett Brown, aqui uma reconstituição das notas de vi- a banda estava verdadeiramente irritada.
com a memória mais profunda, Earl McIntyre, Charles Tolliver e agem que Charpentier não redigiu, suge- A viagem foi um desastre e o soundcheck
quem apelasse à reorientação Alphonse Mouzon, no primeiro, rindo paragens em Bolonha (com Maurizio correu tão mal que David Thomas quase
radical do papel do indivíduo e Ken Chaney, Ari Brown, Frank Cazzati), Veneza (com Francesco Cavalli), se metamorfoseou no Crocus Behemoth
na sociedade e em simultâneo Gordon, Steve Galloway e Reggie Cremona (com Tarquinio Merula) e, so- da sua juventude. No seu gabinete na Câ-
se batesse pela transformação Willis, no segundo, para melhor bretudo, Roma (com Francesco Beretta, mara Municipal fronteiro à praça, Pawlicki,
sistémica da economia, teria de ser fitar o firmamento, cercavam-se de cuja técnica contrapontista Charpentier edil de uma terra com tradições rock (em
visto como uma virose. E poucos apitos, sinos, pífaros e chocalhos estudou), promovendo no espírito a ideia tempos de Cortina de Ferro teve um raro
discos articularam tão bem a e aperfeiçoavam um idioma que de que qualquer uma destas escalas po- festival anual de punk-rock), ouviu os ru-
segunda vaga do nacionalismo remontava à tomada de consciência deria ter sido fundamental no amadureci- gidos, apercebeu-se que estavam a lidar
negro quanto “Spirit of the New da espécie — consigo, se não estava mento do seu estilo. Quer dizer, na pior das com Beemote e Leviatã juntos, e deu
Land” e “Hear, Sense and Feel”, a Humanidade inteira, devia ter hipóteses, volte-se a Goethe: “Não tive ordens para que todas as vontades de
frutos de uma ação “gerida estado. / JOÃO SANTOS ideias novas, não achei nada propriamen- Thomas fossem satisfeitas. Mesmo assim,
por negros, dirigida a negros”, te estranho, mas as antigas tornaram-se os problemas técnicos prolongaram-se
conforme anúncio na “Billboard”. tão precisas (...) que poderiam passar por concerto adentro e ficaram gloriosa-
Ambos de 1972, eram um livro de novas”, escreveu o alemão, que, no entan- mente preservados no disco por ordem
cânticos para gente destituída, to, veio a reconhecer que embora tenha do presidente Ubu. Num palco polaco,
desfavorecida, desprotegida e continuado a “ser o mesmo”, era atingido numa digressão que celebrava o início da
desprivilegiada, condenada, por “uma transformação até à medula”. De discografia dos Pere Ubu, era evidente
como se lia na “Bíblia”, a errar facto, comparando com a produção gálica que Thomas iria tocar o primeiro single,
pelos desertos, montes, covas e do seu tempo, só em Itália encontraria ‘Heart of Darkness’, de 1975, e referir-se à
cavernas da Terra, mesmo sem QQQQ Charpentier um vocabulário tão expressi- nacionalidade polaca de Joseph Conrad,
ter pecado: “Ergue-te e brilha, SPIRIT OF THE NEW LAND vo quão versátil, tão avesso à convenção, “o melhor escritor em língua inglesa”. De-
gente bonita/ A tua hora chegou/ Doug Carn como uma recomposição caleidoscópica pois, avisa o mayor Pawlicki (na assistên-
Regressa à religião antiga/ Liga-te Black Jazz/Real Gone Music do léxico de que dispunha. Não admira cia) que vai fumar um cigarro em palco.
à visão do que passou”, ouve-se que, de regresso a Paris, ao serviço da A edição em CD inclui um segundo disco
num; “Alegrem-se/ Uma nova duquesa de Guise, antes dos goûts-réunis com encores de 2018 (‘Kick Out the
era começou/ Uma era de beleza, de François Couperin, a sua obra, numa Jams’, ‘Sonic Reducer’, [um cheirinho de]
realização pessoal e encanto”, expressão feliz da musicóloga Patricia ‘Smells Like Teen Spirit’ e ‘Final Solution’
escuta-se no outro. No fundo, Ranum, tivesse alimentado um “radical — Thomas: “Queria fazer um set com os
era como se tentassem compor foyer de italianismo”. Ilustra-o a prodigiosa maiores hinos rock de sempre, depois
o hino para aquela República da e exuberante “Missa para Quatro Coros” dei-me conta de que tinha escrito dois
Nova Áfrika de que na altura se QQQQ — tridimensional, do tanto de Monteverdi deles”) e de 2013 (com ‘Merch Hypno-
falava, espécie de terreno virgem e HEAR, SENSE AND FEEL que devora, e prova que, tal como Goethe, tism’, ou seja, Thomas a promover a sua
inexpugnável em que encontraria a The Awakening também Charpentier se abriu ao mundo parte preferida do concerto, “a banca do
liberdade quem recusasse a herança Black Jazz/Real Gone Music para ir ao encontro de si. / J.S. merchandising”). / RUI TENTÚGAL

E 72
MUSEU DO ORIENTE DEZEMBRO 2020
E ainda...

QQQQQ EXPOSIÇÕES
AURELIE RAIDRON
O TEMPO NA MÚSICA
E NA CIÊNCIA
Pinto-Ribeiro ATÉ 17 JANEIRO ‘21
Cinema São Jorge, Lisboa, dia 10 TERRA SUSPENSA
Pinto-Ribeiro, Moraguès, EXPOSIÇÃO COLECTIVA DE ARTISTAS
Poltéra, Ferschtman POULENC: DE MACAU
Teatro Académico Gil Vicente, Coimbra, dia 19 LA VOIX HUMAINE
Orquestra Gulbenkian, Viotti (d) ATÉ 14 FEVEREIRO ‘21
Num ciclo de três espetáculos em
Gulbenkian, Lisboa, quinta, 20h30, TERESA CORTEZ: UM
Lisboa, Coimbra e Porto (este dia 24)
e sexta, 4 de dezembro, 19h
MUNDO LÚDICO À ESPREITA
com programas bem cinzelados e mar- Estreia na Gulbenkian da meio-so- RETROSPECTIVA 45 ANOS
cados por obras intemporais, o DSCH prano Marina Viotti (na foto) como 4 E 18 DEZEMBRO | GRATUITO
— Schostakovich Ensemble tem atuado protagonista da tragédia lírica “La Visita orientada com o curador
em recintos repletos de vibrante público, voix humaine” (1958) de Francis
ATÉ 13 DEZEMBRO | ENTRADA LIVRE
exibindo-se após as conferências de Poulenc. O irmão de Marina, Lorenzo
Vítor Cardoso, Álvaro Garrido e Sara Viotti, dirige a Orquestra Gulbenki- XIII FESTA DO LIVRO
Magalhães, os professores convidados an. Encenação e espaço cénico de
pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Vincent Huguet.
Ensino Superior para uma reflexão sobre
o tempo na música e na ciência. O co-
missário do ciclo foi Filipe Pinto-Ribeiro,
MUSSORGSKY: QUADROS
DE UMA EXPOSIÇÃO
criador e diretor do DSCH, o agrupamen-
Orquestra Sinfónica do Porto
to de geometria variável que lidera des-
Casa da Música, Brönnimann (d)
de 2006. O pianista foi o protagonista do Casa da Música, Porto, hoje, 19h30,
espetáculo inaugural em que se escuta- e domingo, 11h
ram a “Sonata nº 23” opus 57 (“Appas-
sionata”) de Beethoven e “Quadros de A obra-prima de Mussorgsky, aqui
Uma Exposição” de Mussorgsky, obras com orquestração de Walter Goehr.
de fôlego para um intérprete admirável No primeiro dia será acompanhada
pela concentração espiritual, precisão e pela “Sinfonia de Câmara” de Franz
souplesse. Em Coimbra, o fervor católico Schreker e “Tzigane”, de Maurice
de Messiaen conflui com a profunda Ravel. No segundo dia será um con-
espiritualidade em ebulição de compo- certo comentado por Rui Pereira.
sitores como o neobizantino Taverner, o
neopalestriniano Pärt e o neogregoriano
Gorecki. Escutar o “Quarteto para o Fim ESPECTÁCULOS SERVIÇO EDUCATIVO
do Tempo” ao vivo é uma experiência
fascinante, momento em que toda uma 3 DEZEMBRO | 19.00 | AUDITÓRIO WORKSHOP PRESENCIAL E ONLINE
alma agonística se exprime numa obra
DUPLEX: JOÃO BARRADAS 5 E 12 DEZEMBRO
VERA MARMELO

cujo título remete para o décimo capítu-


lo do Livro do Apocalipse. A dificuldade E RICARDO TOSCANO CHI - SENTIR A ENERGIA
prodigiosa da peça que dura 45 minutos
MISTYFEST VITAL NO NOSSO CORPO
expõe os quatro instrumentistas a oito 11 DEZEMBRO | 19.00 | AUDITÓRIO E NOS ESPAÇOS
M/17 ANOS
partes muito desiguais com momentos
de imenso protagonismo nos ‘Louvores’ TIAGO SOUSA ADRIANO JORDÃO
Lux, Lisboa, quarta, 19h; CONCERTO DE PIANO SOLO VISITA PRESENCIAL | 13 DEZEMBRO
e no ‘Abismo dos Pássaros’. A derradeira
secção (‘Louvor à imortalidade de Je- Casa da Cultura de Setúbal, 15 DEZEMBRO | 19.00 | AUDITÓRIO EM CONVERSA COM…
FÁBIO ZANON
11 de dezembro, 22h
sus’) é particularmente sujeita a imper- O BOM PASTOR
feições, escutando-se o penar do violino Tiago Sousa apresenta “Oh Sweet CONCERTO DE GUITARRA PARA CRIANÇAS [M/6 ANOS]
da holandesa Liza Ferschtman e o endu- Solitude”, o seu novo disco que 46º FESTIVAL ESTORIL LISBOA
recimento do seu legato. Dito isto, há um reúne um conjunto de peças para 18 DEZEMBRO | 19.00 | GRATUITO OFICINA PRESENCIAL | 19 DEZEMBRO
investimento musical, uma coesão e um
equilíbrio muito convincentes e o público
piano solo. Em Lisboa o concerto é
no âmbito do programa TBA no Lux. ENSEMBLE SYNDESI A ESTRELA DE NATAL
QUARTETO DE CORDAS E CLARINETE PARA CRIANÇAS [3-5 ANOS]
coimbrão assistiu em respeitoso silêncio CICLO CONCERTOS ANTENA 2
à execução de uma peça sombria, es- WORKSHOP PRESENCIAL
ECE CANLI 27 A 30 DEZEMBRO | SALÃO MACAU | 19.00
treada em janeiro de 1941, num barracão 21,22, 23, 28 E 29 DEZEMBRO
do campo de prisioneiros onde estava Rivoli, Porto, hoje, 18h
HEDDA GEBLER COMO FAZER STORYBOARDS
detido Messiaen. Impressionou o timbre DE HENRIK IBSEN
muito claro e brilhante do clarinete
Estreia da vocalista e compositora
Ece Canli, que edita no mesmo dia ENCENAÇÃO DE BERNARDO BEJA PARA CINEMA E TELEVISÃO
M/14 ANOS E ADULTOS
de Moraguès que conheceu pessoal- “Vox Flora, Vox Fauna” na Lovers &
mente Messiaen e tem o autógrafo do Lollypops. Sairá em CD e digital e
compositor na partitura do “Quarteto”. como uma publicação em serigrafia
Folha de sala sóbria, informada e bem da Oficina Arara que inclui o código museudooriente.pt
conseguida. / ANA ROCHA para download dos temas. mecenas principal mecenas espectáculos seguradora oficial bilheteira online

CONTACTOS Av. Brasília Doca de Alcântara (Norte) | Tel. 213 585 200 | info@foriente.pt | BILHETEIRA Tel. 213 585 244 | bilheteira@foriente.pt
Aquilo que somos
As histórias pessoais que contamos aos outros.
Ou a partilha da memória das raízes
TEXTO CLAUDIA GALHÓS

A
ssim nascem as novas estrelas. a sua obsessão pela pesquisa na ficam de pé durante tanto tempo
Num misto de um circuito internet por ilhas desabitadas) e sem ruir”, conta Joãozinho. Quando
Coordenação Cristina Margato alternativo e institucional, Filipe Pereira (de quem cresceu em abandona o curso, no segundo ano,
cmargato@expresso.impresa.pt vão sendo reveladas a um público Fátima, entre procissões, o despertar envolve-se com o teatro, no Centro
cada vez mais vasto as qualidades da sexualidade e os arranjos florais), de Experimentação Artística do
específicas de um artista. É assim e o teatro de Joãozinho da Costa, bairro, onde vem a conhecer Rui
que Joãozinho da Costa, nome encontramos uma linha de tendência Catalão, e a explorar possibilidades
próprio, chega aqui: esta semana, nas artes vivas contemporâneas: a mais contemporâneas do teatro,
no espaço Rua das Gaivotas, 6 — reivindicação de um lugar de fala, nomeadamente a autoficcção,
antiga escola primária que é casa de onde as narrativas se contam a partir na encruzilhada entre a história
artes performativas do Teatro Praga, da legitimidade da vivência própria biográfica e a ficção, o documental
programado por Pedro Barreiro cuja do que é partilhado. e o imaginado. Foi também com
missão passa por ser voz alternativa Joãozinho da Costa chegou a Portugal Rui Catalão que experimentou uma
e complementar aos espaços mais vindo da Guiné-Bissau com o início expressão física, no espetáculo mais
institucionais — estreia-se como do novo século, tinha 11 anos. Sempre dançado “Último Slow” (2018).
criador, encenador e autor de “Duas se interessou pelas artes, começou Começaram aí as perguntas se era
Peças de Xadrez”. pelo desenho, que o levou a estudar bailarino, e Joãozinho a responder
Esta semana (quinta e sexta, dias 3 e arquitetura na universidade. No Vale sempre que não, “sou descoordenado,
4 de dezembro), há Praga na Rua das da Amoreira (Moita) onde cresceu, foi não tenho noção de ritmo”. O certo
Gaivotas, 6, ou seja, duas peças de ganhando consciência do território é que a coreógrafa Marlene Monteiro
criadores numa produção do Teatro construído em seu redor. “A minha Freitas o convidou para a última
Praga (já estreadas no Teatro do Bairro observação sobre o quotidiano, criação, “Mal — Embriaguez Divina”
Alto): Pedro Penim com “Nisto” e sobre o bairro, ou sobre as cidades (estreada mundialmente em agosto,
Joãozinho da Costa chegou Filipe Pereira com “Arranjo Floral”. foi aumentando juntamente com a em Hamburgo). Joãozinho aceitou,
a Portugal aos 11 anos, A partir de biografias radicalmente minha curiosidade sobre os edifícios, pelo desafio, e ainda deu mais nas
vindo da Guiné-Bissau. distintas, entre as conferências- de como são planeados e construídos, vistas. Agora, a peça que escreveu e
No seu teatro está quem ele é performances de Pedro Penim (e e como eles se sustentam, como encena tem teatro, dança e música.
Joãozinho da Costa já andava a pensar
que queria saber mais sobre um
familiar, “alguém muito próximo”,
quando Pedro Barreiro o convidou a
avançar com um projeto em nome
próprio, depois de o ver como ator na
performance “Não, Somos Daqui”,
de Welket Bungué (2019), a partir
da história verídica de Cláudia da
Silva Ferreira, moradora da favela
de Congonhas (Rio de Janeiro)
mortalmente baleada por polícias
militares numa manhã de 2014. A
partir daí, pôs-se a investigar e a
escrever. O resultado é “Duas Peças
de Xadrez”, história dos irmãos
Celestino e Platino cuja perda da
figura paterna lança no submundo do
crime e das drogas. Neste teatro está
a partilha da memória das suas raízes
e a riqueza cultural de Joãozinho da
Costa — e está também quem ele é. b
ALÍPIO PADILHA

DUAS PEÇAS DE XADREZ


De Joãozinho da Costa
Rua das Gaivotas, 6, Lisboa, hoje

E 74
E ainda...
MIGUEL RIBEIRO FERNANDES

VERA MARMELO

PAIXÃO SEGUNDO JOÃO


De Pedro Lacerda
ATLÂNTICO Novo Negócio, Lisboa,
De Tiago Cadete até 11 de dezembro
Teatro Nacional D. Maria II, Lisboa,
O espaço de artes performativas
de 3 a 13 de dezembro
da ZDB renasce esta semana num
armazém em Marvila. A inauguração
Entre Portugal e o Brasil está o Atlân- faz-se com este texto de António
tico, como todos sabemos; estava lá Tarantino, encenado por Pedro
há 500 anos, quando Pedro Álvares Lacerda, que relata o caminho para
Cabral terá chegado ao Brasil, quando a santidade de “um doente mental
Pero Vaz de Caminha escreveu ao rei D. que se toma pelo filho de deus, per-
Manuel I a sua famosa “Carta” sobre o corre a sua via sacra acompanhado
“achamento do Brasil”. Sempre que se por um funcionário da instituição”.
vai até ao Brasil, até ao Rio de Janei-
ro, por exemplo, é costume apanhar
um avião. Queixamo-nos do espa- EMPOWERBANK
ço, das horas na cadeira, das pernas De Plataforma 285
Festival Temps d’Images, Lux-Frágil,
dormentes — eventualmente. Mas é
Lisboa, até domingo
uma banalidade. Foi talvez por causa
desta atitude trivial que Tiago Cadete Sobre “a obsessão contemporânea
começou, justamente, a pensar no que pelos movimentos que promovem a
eram as coisas antes de serem assim ideia de salvação — do mindfulness
tão simples. Pensou nas viagens que se às experiências de ‘conhece-te a ti
faziam em 1500, em naus e caravelas; próprio’”. É a nova criação da Plata-
pensou nas pessoas que iam nesses forma 285, com direção artística e
barcos, que hoje nos parecem tão pe- texto de Raimundo Cosme e Cecília
quenos, frágeis, mal equipados; pensou Henriques.
nas razões que levaram essas e muitas
outras pessoas, desde essa altura, a
atravessar o Atlântico, a ir de Portugal
para o Brasil; pensou nos tratados entre
Portugal e Castela, sobre a divisão e a
posse do mundo; pensou nos escravos
e em viagens que também incluíam
África. Pensou em razões económicas,
políticas, científicas. Pensou na escrita e
na construção da História e na necessi-
dade de interrogarmos aquilo que está
feito, de corrigir coisas, de entender-
JOCELYN MICHEL

mos melhor o que foi e o que é. Pensou


em viajar de barco para o Brasil, e foi
num cruzeiro que durou duas semanas.
Com piscina a bordo, variedades, festas
temáticas, ementas variadas, milhares
de pessoas. Sobrepôs os barcos de DOUBLE TROUBLE
ontem e os barcos de hoje, as experiên- Teatro Rivoli, Porto, hoje
cias de outros e as suas experiências de O nome diz tudo: “Double Trouble”
hoje, utilizou uma câmara de filmar para é um novo programa do Teatro Ri-
escrever um diário de bordo. E refletiu a voli que combina numa sessão dois
partir da comparação de experiências artistas desafiadores das normas e
diversas. Fez “Atlântico”, para tentar das convenções, com trabalho “em
perceber alguma coisa do mundo a torno das políticas do corpo, da re-
partir da mistura de factos e de ficções. lação entre sexualidade e poder”. O
Criação, texto, vídeo e interpretação confinamento do fim de semana al-
de Tiago Cadete. Figurino de Carlota terou as agendas e só é possível ver
Lagido, luz de Rui Monteiro, música hoje “Bitcho”, de Susana Chiocca, e
de Bruno Pernadas, voz off de Leonor “Cutlass Spring” (na foto), de Dana
Cabral. / JOÃO CARNEIRO Michel. Mas para o ano há mais.
Coordenação Alexandra Carita
acarita@expresso.impresa.pt

“Com as Fardas Em
Farrapos”, uma aguarela de
Eduardo Batarda realizada
entre 1979 e 1980

Guerrilha gráfica
A década feroz
A
o visitarmos a exposição que já haviam começado a ao mesmo tempo e também isso
a exposição de Eduardo desenhar-se nos acrílicos de apela a um tipo de comunicação
de Eduardo Batarda: Batarda na Fundação Arpad meados de 60, como os da série mais complexa do que parece,
Szenes, que João Mourão e Luís Silva “Dedicated Follower of Fashion”, mas que estava perfeitamente
sexo, arte, guerra organizaram, é difícil que não nos nomeadamente a ironia ácida e assimilada pelo grande público
e dissolução assalte uma pergunta que excede
sobremaneira o âmbito da mostra:
o gosto por uma certa figuração
monstruosa, estes trabalhos em
de então, imerso em banda
desenhada e ilustração. Num
moral povoam que tempo é este que recebe estas aguarela e tinta-da-china dos anos certo sentido, são como puzzles
obras, em alguns casos, 50 anos 70 trazem esses ingredientes a um ou minuciosas cartografias para
as aguarelas depois da sua criação? Na medida em contexto muito mais complexo. cuja eficácia contribui a enorme
dos anos 70 que o acerto destas revisitações, não
exatamente antológicas, passa quase
Hiperpovoadas por sinais, objetos,
figuras, mensagens encriptadas,
inteligência gráfica de Eduardo
Batarda, que se manifesta tanto
TEXTO CELSO MARTINS sempre pelo sentido de oportunidade com frequência dirigidas ao meio nas despojadas composições do
contextual, poderíamos dizer que o luso das artes ou como comentário início da década que parecem
nosso tempo extremista, neobárbaro, à situação política de então (a preparar as “páginas” para o que
politicamente caricatural, quando ditadura, a guerra colonial), elas virá a seguir, como nas intrincadas
não vil, estava mesmo a pedi- pedem-nos tempo, bem mais constelações figurativas onde
las. Talvez as novas gerações não tempo do que aquele que gastamos o espaço visual é labiríntico,
reconheçam todas as referências diante da maioria das outras definido por descontinuidades
históricas, os nomes dos vilões, dos obras de arte ou de qualquer outra agudas de planos, por uma
brutos e dos ratos, os acontecimentos imagem. conotativa utilização da cor
e contextos podres da política Atravessada por uma liberdade (vejam-se os verdes-tropa que
QQQQ doméstica ou internacional de de citação ao quotidiano enxameiam quadros nos quais
GREAT MOMENTS: então, mas nas aguarelas de Eduardo de proveniência pop mas a guerra colonial está sempre
EDUARDO BATARDA Batarda descobrirão violências contaminadas por uma latente) ou por uma obsessiva
NOS ANOS SETENTA que lhes são familiares porque na vernacularidade verbal e visual economia do pormenor que
Eduardo Batarda verdade nunca se dissiparam e que mantém ainda intacta a sua mantém colado a elas o visitante.
Fundação Arpad Szenes-Vieira da Silva, conhecem agora erupções grotescas. vitalidade, o seu sarcasmo e ironia, E também isso rima com o nosso
Lisboa, até 17 de janeiro de 2021 Prolongando características esta é uma pintura para ler e ver caótico tempo. b

E 76
indivíduo e a sua ação se comportam DILEMA DE SER E PARECER

E ainda...
como elementos estranhos, e os animais Museu Nacional de Arte

ANTÓNIO JORGE SILVA


são também seres sem liberdade. Uma Contemporânea — Museu do Chiado,
aranha presa por um fio (“Spider”), ou um Lisboa, até 18 de abril de 2021
cardume de peixes dentro de um tanque
(“Saint Peter’s Fish”) são o testemunho Centrada no retrato, a exposição
de um mundo em estado de alienação. mostra o género na pintura, na foto-
No sentido dessa confirmação vêm grafia e na escultura. O período é o
fotografias como “Protest I” e “Protest que vai de 1850 a 1916. Obras da co-
II”, numa desolação que se contempla A MONOTONIA É FIXE leção da casa com curadoria de Maria
no comportamento humano face ao
[MONOTONY IS NICE] de Aires Silveira e de Emília Tavares.
Fernanda Fragateiro
urbano e ao natural. Mais a fundo, o tema
Galeria Filomena Soares, Lisboa,
estampa-se em “Pokémon Go”, onde
hoje e amanhã
todos os homens se ignoram e ignoram
o que os rodeia com os olhos postos no Construindo um pensamento crítico
QQQ telemóvel. A presença da floresta e da sobre o passado, Fernanda Fragateiro
ECLIPSE cidade é também um adensar da tem- traz para o centro do seu discurso vo-
António Júlio Duarte poralidade no momento que corre. Não zes de mulheres artistas que questio-

BRUNO LOPES
Galeria Bruno Múrias, Lisboa, tenhamos dúvidas de que estas fotogra- naram os limites da sua participação
até 30 de dezembro fias são um retrato de hoje, mesmo que e integração no mundo da arte.
a intervenção do homem no ambiente
O homem vive em completa desade- tenda a ser mais intemporal e se denote
quação com a natureza. Esse desajuste é ainda em imagens como a de uma luva RED LIGHT CONTRATO NATURAL
a âncora da primeira exposição individu- com garras agarrada a uma árvore. A es- Centro de Arte Oliva, São João Maus Hábitos, Porto,
da Madeira, até 14 de março de 2021 até 30 de dezembro
al de António Júlio Duarte (n. 1965) na perança está num olhar que se dilui entre
Galeria Bruno Múrias. São nove fotogra- a orientalidade e o pensamento europeu São 100 obras da Coleção Norlinda Coletiva de escultura, fotografia,
fias com origem em territórios diferentes e que se traduz no voo livre, o único, de e José Lima, da autoria de mais de vídeo e performance, reúne nomes
— Taipei (Taiwan), Hong Kong (China) um pássaro em Taipei. Nem a exaustão 70 artistas nacionais e internaci- como Andreia Santana (“Soul Hou-
e Colorado (EUA) — que colaboram do homem o atira para a rutura severa, onais, dos mais consagrados aos se”, imagem em cima), Jaime Lauri-
umas com as outras, ora mais, ora menos num mundo que está em desencontro emergentes, que falam da sexuali- ano, Jérémy Pajeanc, Yuri Firmeza,
agressivamente, num espaço onde o com o sistema. / ALEXANDRA CARITA dade e da relação entre os corpos. Diana Policarpo e Salomé Lamas.
O MITO LÓGICO

O SOFÁ É A TRINCHEIRA

J
DIZ O GOVERNO ALEMÃO QUE PERCEBE DE GUERRA.
E QUE SE MEDALHEM OS ESTAFETAS QUE TRATAM DOS MANTIMENTOS

á se ouviram todo o tipo de teses antropoculturais os estafetas da Uber Eats e da Glovo. No primeiro sábado deste
sobre o coronavírus. A verdade é que não estava novo “fecho” tive de atravessar Lisboa de carro à noite e a cidade
preparado para esta: a pandemia provoca sentido de é deles. Parecem enxames nos semáforos a fazer um serviço que
humor nos alemães. Mas é a conclusão que tiro da consideramos indispensável, exigimos irrepreensível e nem perdemos
campanha governamental para convencer os seus um minuto a pensar como é miseravelmente pago. Não pensamos,
concidadãos a ficar em casa e que se chama “O Sofá mas assumimos como incontestável e imprescindível. Nem colocamos
como Trincheira” e é assinada pelo departamento a hipótese de estas plataformas deixarem de existir, embora pelos
da Graças Freitas deles. Tenho um spot favorito. A vistos abusem das taxas que cobram aos restaurantes. Mas se esta
estética é a de documentário atual sobre antigos pandemia tivesse ocorrido há uma década não havia estes estafetas
soldados da II Guerra Mundial. Passa-se num (ou havia a uma escala muito reduzida) nem a Netflix e a Amazon não
qualquer futuro, mas o entrevistado veste-se e fala seria a empresa que mais está a lucrar com a pandemia. Podemos não
como suma estética de avozinho de hoje na sua estar a comprar em lojas físicas, mas alguém está em casa a ter fúrias
sala em casa a recordar o inverno de 2020, quando “todos os olhos consumistas, a fazer “terapia de compras” online, para que os ganhos
estavam postos em nós” (música epopeica de fundo). Ou seja, é um da empresa de Jeff Bezos tenham disparado este ano e feito com que
velhote a falar de 2020 mas vestido com um blazer e uma gravata. ele seja a primeira pessoa a valer mais de 200 mil milhões de dólares.
Planos intensos de documentário modernaço. “Tinha acabado É muita massa.
Engenharia quando chegou a segunda vaga.” Há silêncios, violinos a Num documentário de vários episódios, “The Food That Built
aumentar a intensidade narrativa a prever o pior. “Aos 22 queres festa, America”, traduzido obviamente para português para “A Comida
ir beber copos com amigos, mas a vida tinha planos diferentes: um Que Mudou o Mundo”, ficamos com a noção da carga de trabalhos
perigo invisível que colocou em causa tudo em que acreditávamos; inimaginável que foi alcançar coisas que temos por garantidas. Os
subitamente, o destino do país estava nas nossas mãos, tínhamos de flocos do pequeno-almoço, o chocolate de leite — que levou Milton
mostrar coragem e fazer o que esperavam de nós [pausa dramática]. Hershey a construir uma cidade na Pensilvânia onde se produzia
E fizemos [corta para ele em jovem no sofá, com ar entediado e de leite, já que o cacau se transportava mais facilmente. O drama de
comando de TV na mão, a comer fast food e absolutamente farto, ora se conseguir ultracongelar alimentos sem que estes se estragassem
sentado, ora de pernas para o ar, em cuecas].” E diz em tom jocoso: no processo. Ou ainda a patética história dos McDonald’s, que
“Nada! Absolutamente nada. Dias inteiros com os rabos sentados.” inventaram a fast food — a “construção” em linha de um hambúrguer
E continua: “O sofá foi a linha da frente [o jovem levanta-se e cai de numa cozinha de bar de estrada — mas que não ficaram com nada.
novo esparramado no sofá no meio de lixo, latas e caixas de comida]. Nada disto parece “incrível” agora. É-nos banal. Mas bem me lembro
A paciência foi a nossa arma. Nós fomos os heróis do inverno de de que, quando apareceram os estafetas de comida tipo Uber, muita
2020”, diz o velhote a sorrir, nostálgico e orgulhoso. Há mais uns gente não percebeu o conceito. Hoje, na guerra em que os sofás são as
quantos spots, todos dentro desta linha. Os heróis do inverno de 2020 trincheiras, eles são os homens da logística. E Napoleão soube, soube
foram aqueles a quem foi pedido que não fizessem nada e usassem a qualquer centurião de Roma ou general de Moscovo a travar os nazis,
arma da paciência. que não se ganha uma guerra sem uma retaguarda que mantenha
Atualmente, nada se faz sem uma barragem de críticas e aberta uma linha de provisões. E não tinham Uber Eats nem Glovo. b
“whataboutismo/entãoismo”. Primeiro disseram que era uma estética lpnunesxxx@gmail.com
colada aos documentários sobre a II Guerra Mundial (assunto sensível
na Alemanha). E a resposta foi que sim, que a comparação era mesmo
essa: colocar as coisas em perspetiva. Confrontar o sacrifício pedido
a jovens injustamente chamados para morrer e ficar estropiados em
guerras com este caso. Mas a outra questão é que estava a dirigir-se
apenas a jovens privilegiados, quando muitos não tinham emprego ou
dinheiro ou modo de sustentar esse estilo de vida de “trincheira de
sofá”. Ao que os autores da campanha responderam que pelo menos
assim chegavam a estes. Não há como chegar a todos. E para isso
havia outras campanhas direcionadas.
/ LUÍS
Há, portanto, vários spots desta campanha “sofá como trincheira” PEDRO
e “heróis de 2020” em que passa a intrépida ideia que basta ficar
no sofá. É o que me está a acontecer este fim de semana — em que
NUNES
me arrastei a custo dois metros para vir aqui escrever. Curioso foi
ver que nos vídeos aparecem sempre caixas de fast food junto aos
heróis enfastiados. Ou seja, está adquirido que não saíam de casa mas
que alguém lhes teria levado uns caixotes da KFC. Esta pandemia,
pelo menos nas grandes cidades, seria outra coisa qualquer sem

E 78
vícios
“PESSOAS SEM VÍCIOS TÊM POUCAS VIRTUDES”

Quando havia
crocodilos em Chelas
Como era Lisboa há 100 milhões de anos? A resposta está no Bairro Alto, no
Museu Geológico do LNEG (Laboratório Nacional de Engenharia e Geologia).
Entre fósseis e vestígios arqueológicos, minerais raros e cartas geológicas, uma
viagem no tempo e uma homenagem aos pioneiros da geologia em Portugal
TEXTO RUI CARDOSO FOTOGRAFIAS JOSÉ FERNANDES

E 79
H
á 13 milhões de anos, o lugar a que hoje cha- dirigida por Filipe Folque inicia a cartografia do país antigo Convento de Jesus, partilhadas com a Aca-
mamos Lisboa era muito diferente, cheio de e, dentro desta, o levantamento geológico. Neste tra- demia das Ciências, começará a acumular-se uma
zonas alagadiças, onde viviam animais ines- balho distinguir-se-á Carlos Ribeiro, oficial de ar- coleção de milhares de peças, entre fósseis, restos
perados, desde caranguejos de grande porte (nas tilharia que, tendo estado do lado derrotado da re- arqueológicos e amostras de minerais.
traseiras do atual Palácio de São Bento), a tartarugas, volução da Maria da Fonte, teve que enveredar por Em 1899 surge a segunda edição da carta, já
crocodilos e elefantes primitivos. É um destes seres novos caminhos, coadjuvado por outro oficial, Nery impressa, que foi usada até 1950. “Ainda foi por ela
de outros tempos que nos recebe no Museu Geoló- Delgado. que estudei”, recorda o geólogo Miguel Magalhães
gico, no Largo da Academia das Ciências, ao Bairro A pé, a cavalo ou de carroça, que outros meios Ramalho, coordenador do museu. Nery Delgado,
Alto. Ou, melhor dizendo, o que dele resta: um enor- não havia, vão percorrer o país e fazer um traba- que ascendera à patente de general, morrerá em
me crânio. De tal forma surpreendente que Almada lho notável que culminará em 1867 com a primeira 1909 na serra do Buçaco, não numa nova batalha
Negreiros o resolveu desenhar. Desenho e restos fos- carta geológica do reino, ainda desenhada à mão contra os invasores, mas durante trabalhos de cam-
silizados abrilhantam a sala de entrada deste museu, mas julgada suficientemente credível para mere- po. No bolso do casaco tinha notas de viagens an-
dedicada a 100 milhões de anos da história de Lisboa. cer um prémio internacional. Nas instalações do teriores para comparar com as novas observações.
Os restos do crocodilo foram encontrados num É ao labor destes pioneiros que não eram apenas
areeiro da Quinta da Farinheira, em Chelas, perto cientistas (portugueses e estrangeiros) mas inclu-
da atual Zona J. “Muito do que hoje sabemos sobre íam uma legião de técnicos de laboratório, pessoal
o passado da região resultou de levantamentos fei- auxiliar e coletores de amostras em todo o país, a
tos em locais de extração de materiais de constru- quem era dada formação, que se deve este museu.
ção, fossem cal, pedra e areia, fossem inertes para Um espaço não muito diferente do que era retrata-
misturar no betão armado”, explica Jorge Sequei- do em 1888 numa gravura da “Revista Ocidente” e
ra, engenheiro que trabalha no Museu Geológico. onde uma das raras notas de modernidade é dado
pelos QR Codes existentes nas vitrinas. Já as estan-
PIONEIROS DA GEOLOGIA tes envidraçadas junto às paredes, onde se guarda
A sala em causa é uma das mais recentes do museu, material não diretamente exposto, são, ainda, as de
cuja história se confunde com a criação da Comis-
Não perca a exposição origem, o que levou à classificação do museu como
são Geológica do Reino, em 1857. Era uma época de dedicada a Lisboa há património de interesse público.
grandes mudanças no Portugal oitocentista, uma
vez alcançada a estabilidade política com a regene- 100 milhões de anos, DINOSSAURO A CAMINHO
ração (1851) e iniciado um ciclo de modernização e
obras públicas do qual foi figura central Fontes Pe-
cuja peça central é Afinal, um museu não tem que ser forçosamente
uma feira multimédia e o registo aparentemente
reira de Melo. Uma elite de engenheiros militares o crocodilo de Chelas antiquado pode ser uma vantagem. “Ao contrário

E 80
entre esta e a geologia, pelo menos no que respei-
ta aos trabalhos de campo. Carlos Ribeiro estudou,
por exemplo, as comunidades da transição do Pa-
leolítico para o Neolítico que ficaram conhecidas
como Concheiros de Muge (Salvaterra de Magos).

UM AMIGO PRÉ-HISTÓRICO
Um esqueleto numa vitrina desta sala conta-nos a
história comovente do cão de Muge. O enterramen-
to, feito com todo o cuidado, do animal sugere uma
relação afetiva com este ou, por outras palavras, es-
tarmos perante um dos primeiros casos de domes-
ticação: o bicho partilharia a vida movimentada e
perigosa dos seus parceiros humanos, os ditos con-
cheiros, cujos restos de crânios e outros ossos mos-
tram sinais de traumatismos, doenças ou interven-
ções cirúrgicas arriscadas como trepanações. Outros
testemunhos do Neolítico são peças em cerâmica
primitiva, uma das quais figurando um porcino.
Para o coordenador do museu, trata-se de uma
coleção “só superada pela do Museu Nacional de
Arqueologia”. E outro ponto forte desta terceira sala
são os vestígios da atividade mineira romana. A at-
mosfera relativamente estéril das antigas galerias
conservou curiosidades como a sola da alpergata de
um mineiro ou o gorro respetivo. Além de restos de
cordas, pequenos cestos para o carregamento verti-
cal do minério ou escadas laboriosamente talhadas
em troncos de árvores. “Somos levados a supor que
estes mineiros, podendo não ser homens livres, tam-
bém não seriam maltratados como escravos sem va-
lor, porque possuíam um saber sem o qual o império
não podia passar”, aventa Jorge Sequeira.
Testemunho da burocracia de um império que
se estendia da Península Ibérica à Ásia Menor, a
chamada Tábua de Vipasca, placa de bronze regula-
mentando o dia a dia de uma comunidade mineira
de Aljustrel e que, entre outras coisas, determinava
que homens e mulheres frequentassem os banhos
termais a horas diferentes mas que estas últimas
pagassem mais pelo serviço, porventura por os seus
hábitos de higiene serem mais exigentes.
Uma última sala é dedicada à mineralogia e à
exploração mineira em Portugal, sendo expostos
os minerais mais diversos, desde as volframites co-
biçadas no tempo da II Guerra Mundial ao lítio de
Trás-os-Montes ou ao urânio da Urgeiriça.
Visitar este museu é, de facto, saber mais. Não
Este é um museu dedicado a 100 milhões se intimide o leitor pela dificuldade em estacionar
de anos da história de Lisboa se porventura é daqueles que querem levar o carro
para todo o lado: há parques no Largo de Jesus, na
doutros museus, não nos importamos que os visi- répteis. Ao lado destes portentos, arrumadas em su- Calçada do Combro ou no Largo de Camões. Mas
tantes toquem nas peças expostas fora das vitri- cessivas vitrinas, restos de seres tão humildes como melhor será usar o Metro para o Rato e o elétri-
nas como os grandes ossos fossilizados de répteis antigos e preciosos para o conhecimento do passa- co para o jardim do Príncipe Real, descendo a pé a
ou mamíferos. Se aguentaram umas dezenas de do: trilobites, insetos, plantas primitivas, etc. Rua do Século. Espera-o, a dois passos do Tribunal
milhões de anos e mais século e meio de museu, Aqui se descobre que aquilo a que hoje chama- Constitucional, um museu “à antiga” mas fasci-
não se hão de estragar por isso”, comenta Jorge mos Portugal chegou a estar no centro de um conti- nante por isso mesmo e que tem outras vertentes,
Sequeira. nente primitivo; que, depois disso, Trás-os-Montes desde o apoio ao ensino à investigação nacional e
Contudo, uma novidade está na forja: a mon- e Alentejo chegaram a pertencer a continentes se- estrangeira com base no espólio armazenado. b
tagem do esqueleto praticamente completo de um parados; ou que, no Sueste alentejano, minas como
dinossauro da Lourinhã (em Lisboa parecem não Neves Corvo ou São Domingos testemunham ati-
ter deixado marcas), no caso um estegossauro. O vidades vulcânicas submarinas doutras eras. “Esta Museu Geológico
que implica a montagem de uma armação em fer- é, sem dúvida, a maior e mais completa coleção de Rua da Academia das Ciências, 19, Lisboa
ro para o segurar, porque se há ossos as cartilagens paleontologia de Portugal”, diz Miguel Magalhães (à Rua do Século)
já lá não estão... Ramalho. Tel. 213 219 730 / 213 463 915
Na segunda sala do museu, dedicada à paleonto- O museu não se fica por aqui. Uma terceira sala Aberto de 2ª a 6ª das 10h às 18h. Bilhete base: €5
logia e à estratigrafia, somos recebidos pela mandí- é dedicada à arqueologia, porque para os cientistas (Vigoram descontos diversos)
bula de uma baleia primitiva e por ossos de grandes do século XIX não havia uma distinção tão vincada

E 81
R ECE I TA
POR JOÃO RODRIGUES
(PROJECTO MATÉRIA)

PRODUTOS
& PRODUTORES
Farinhas
Paulino Horta
“Bem-vindos à terra do vento!”
As rajadas fortes que nos
recebem na pequena aldeia de
Cabeços, perto de Alenquer,
justificam a mensagem de
boas-vindas de Paulo Horta.
Não foi por acaso que aqui se
instalaram muitos dos moinhos
que, durante séculos, abaste-
ceram a região de farinhas. O
moinho de vento das farinhas
Paulino Horta, na família há
quatro gerações, foi um deles.
“Tem características do início
de 1800. Em princípio, já cá
estaria nas Invasões Fran-
cesas”, garante Paulo, que
acrescenta outra explicação
para a tradição local: “Não era
só pelo vento, aqui sempre
houve boa terra, que dava bom
cereal.” Apesar de a empresa
ter apenas 18 anos com este
TIAGO MIRANDA

nome, a família sempre foi de


moleiros. “Para ser moleiro era
preciso saber de carpintaria, de
alvenaria, de meteorologia, de
tudo. Era muito complexo, por
isso o conhecimento passava
de pai para filhos”, explica Paulo

Brioche e creme ácido de baunilha Horta. Atualmente, a produção


chega a atingir as 20 tonela-
das de farinha por dia, e pode

Tempo de preparação 6 horas | Tempo de confeção 40 minutos


encontrar-se todo o tipo de
farinhas — trigo, milho, centeio,
arroz, aveia, alfarroba e outras
BRIOCHE frio. Fazer bolas de 50 a 80 g, depen- iogurte e bater mais um minuto, com — com venda direta no site e
270 g de farinha T65 /160 g de manteiga/155 g dendo das formas, e deixar levedar até cuidado para que não se quebrem to- entrega em casa.
de ovo/33 g de leite/30 g de açúcar/7 g de duplicarem de tamanho. Pincelar com talmente. Retirar e reservar. Rua Aniceto Costa, 6
fermento fresco/6 g de sal/Gema de ovo q.b. gema de ovo e cozer a 180 graus Celsius 2580-346 Alenquer
Usando a raquete da batedeira, bater em forno preaquecido. PARA TERMINAR Tel. 263 759 700
todos os ingredientes, exceto a man- Colocar o brioche no fundo do prato, Mail
teiga, para formar uma massa. Quando CREME ÁCIDO DE BAUNILHA abrir a meio e adicionar uma boa colher info@farinhaspaulinohorta.com
descolar da cuba, adicionar a mantei- 250 g de natas/135 g de açúcar/1 vagem de creme. Cortar uns gomos de maça e Site
ga aos poucos até incorporar inteira- de baunilha/80 g de iogurte grego colocar por cima. Pode terminar com www.farinhaspaulinohorta.com
mente. Retirar e deixar descansar pelo Bater as natas com o açúcar e a bauni- caramelo líquido, calda de açúcar, ma-
menos durante quatro a cinco horas no lha até ficarem montadas. Adicionar o ple siroup ou mesmo mel, se preferir. b

PROJECTO MATÉRIA É um projeto sem fins lucrativos, desenvolvido pelo chefe João Rodrigues, que pretende promover os produtores nacionais com boas práticas agrícolas
e produção animal em respeito pela natureza e meio ambiente, enquanto elementos fundamentais da cultura portuguesa. Ler mais em projectomateria.pt

E 82
R ESTAU RAN T ES
POR FORTUNATO DA CÂMARA

Cozinha viva ou museologia? peixe, sobre fatias de pão ‘dormido’.


O mesmo que também foi base da boa
“Sopa de cação” (€14) com o caldo
ACEPIPE
Num ano difícil, ‘a casa’ da cozinha alentejana de vinagre balanceado. Servida fria, a
“Perdiz à ‘Convento da Cartuxa’1/2”
Um
celebra um aniversário e avança com o legado (€14,50) trazia o molho do estufado retalho de
e as cebolinhas inteiras, ao redor da
metade da ave, de sabor agradável e a
sabedoria
delir-se dos ossos, com uma pera avi- Na caixa, arrisco a pergun-
nagrada em vinho tinto a dar contras- ta: “Como é que costuma
fazer a costela mendinha?”
te, e boas chips de batata. “Pezinhos
A senhora, bem-parecida
de porco de coentrada” (€4) de cáte- e de cabelo em mise — que
dra com a carne gelatinosa no piso de adivinho octogenária e de
coentros. Na “Perna de cabrito” (€23) mão segura na cozinha —
má experiência num jantar de sema- levanta o olhar atrás dos
na, com o prato a chegar mal aque- óculos, e atira assertiva:
cido nas batatas sem viço, com par- “Um nadinha de sal por
tes da carne quentes e outras mornas. cima, que ela já é muito
gostosa, umas ‘falhinhas’
A regeneração alimentar existe, sem
de alho, dá-lhe um estalo
dramas (até em restaurantes Miche- a 250°C no forno, logo ao
lin), se é algo que se espera num local princípio, depois baixa para
como O Fialho?... Melhor a repetição, 150°C, e deixa estar um
numa segunda visita de almoço de fim bom bocado. Tem de assar
de semana, com a perna suculenta e as muito devagarinho e ir vi-
PEDRO NUNES

batatinhas reluzentes no molho viço- rando, para ficar tenrinha!”


so. Muito boa a “Perdiz de escabeche — concluiu com ar dócil.
“Isto é o que eu aprendo
desossada” (€20), pela grande qua-
com esses chefes jovens
lidade do escabeche, com cravinho, que são aqui clientes do

S
ão 75 anos que lhe dão o raro es- Évora apenas para esse fim, e prosse- aros gordos e sedosos de cebola, alhos meu marido, que eu nunca
tatuto de restaurante institui- guiram com a boa surpresa de o achar encamisados e confitados em bom fui grande cozinheira. Mas
ção. Évora, o Alentejo e Portugal mais valioso quando o euro entrou em azeite, além da boa fruição sem ossos. não me tem saído mal...”
não seriam os mesmos sem O Fialho. circulação, pois todos os maus res- A lista de vinhos traz o melhor da O episódio, verídico,
A casa, sempre a mesma, com talhas taurantes especularam os preços e ali região em variedade assinalável, para passou-se no verão, num
de vinho, que Manuel Fialho abriu em mantiveram a qualidade fazendo ape- todas as bolsas. O serviço oscilou entre talho de uma cidade nor-
tenha, onde sem espa-
1945 sob o lema “Para beber, há que nas a conversão. eficiente, seco e impessoal, com a casa vento se vendem carnes
comer!”. Os executores desta máxi- A sala mantém-se com o charme vazia em dia de semana, e um pouco certificadas (maronesa,
ma ao longo dos tempos, com papéis rústico elegante de há uns anos a esta mais afável, na sala da cave, num dia arouquesa, barrosã, etc.),
distintos, foram os seus três filhos. Na parte, e em duas visitas gostei de re- mais concorrido. Bem bom o “Pão de tratadas a preceito por
cozinha, Gabriel foi criando o desfile ver o Sr. Amor Fialho, o primogénito rala” (€6,50) com a cobertura de mas- mãos experientes. A tirada
de saladinhas e petiscos quentes que dos três irmãos, a receber os clientes à sapão macia e o recheio cremoso. Me- final deixou-me rendido. A
fizeram o nome da casa, e que são há porta. Na mesa a icónica “Empadinha nos felizes os “Ovos moles ferrados” ternura da explicação e a
simplicidade socrática de
décadas o cartão de visita de muitos de galinha” (€2 a unidade), boa no re- (€4,50) com a elegância do creme de
alguém com aparência e
outros restaurantes alentejanos. Na cheio generoso e massa dourada, de- ovos a perder-se ao sentir-se uma aci- vida para passar por grande
sala, Amor Fialho, com o irmão Ma- pois a saladinha de “Favas com enchi- dez intensa sob a capa de açúcar quei- matriarca da cozinha, reco-
nuel numa fase inicial, foi também dos” (€3,50) de leguminosas grandes mado (tipo leite-creme), ficando agua- nhecer que aprende com
ajudando a construir a identidade da (pele rija) e tempero desequilibrado, do. Impecável o “Fidalgo” (€7) com as os jovens cozinheiros. Esta
casa e criando laços com clientes de- com a hortelã muito presente e o alho camadas de folhas de ovos (que envol- lição de humildade sincera
votos do mundo inteiro. agressivo, valendo a linguiça de bom vem trouxas deles) queimadas no topo. não vem nos livros. Sai-
O timoneiro da cozinha, Gabriel, fumeiro. Carnuda a “Salada de pimen- O Fialho criou um estilo que foi bamos apreendermo-nos
em sabedoria mútua, sem
partiu em 2013, e já em março deste tos” (€4,50) só de lascas vermelhas, replicado um pouco por todo o lado,
olhar a gerações. Renovar
ano foi Manuel, que teve grande rele- impregnadas de bons azeite e vina- e esse é o grande elogio que lhe deve a nossa cozinha tradicional
vância na recolha de receitas e como gre. Agradáveis os “Espargos bravos ser sempre feito. Manter a sua cozinha sem a desvirtuar é feita
divulgador gastronómico da região. As com ovos” (€14), apresentados com viva e de qualidade, sem estar preso a destes retalhos de sabe-
minhas memórias do Fialho vêm de a textura fofa, e não cremosa, e com uma memória museológica é o desa- doria. E se há geração bem
‘investimentos’, em escudos, para ir a guarnição espargal visível. De quali- fio atual. Já foi incomparável, mas hoje preparada em técnicas e
dade regular a “Farinheira de porco há outros lugares comparáveis. Quem conhecimento é esta, a de
preto assada” (€8) a exalar notas de quiser explorar o que é a cozinha alen- cozinheiros que temos aí.
fumo na brasa. tejana deve começar por aqui. b
O FIALHO Nos pratos, a “Sopa de peixe à
Travessa das Mascarenhas, 16, Évora alentejana com garoupa” (€18) com Desde 1976, a crítica gastronómica
Tel. 266 703 079 ou 919 916 123 a posta do pescado a ser desespinha- do Expresso é feita a partir de visitas
Encerra à segunda-feira (salvo normas DGS) da na mesa, resultando na agradável anónimas, sendo pagas pelo jornal
combinação do tomate estufado e do todas as refeições e deslocações

E 83
VI N H OS
POR JOÃO PAULO MARTINS

GETTY IMAGES
Brancos que recuperam tradições
Apostas destas há agora em várias regiões

O
tema de hoje são os brancos com ida- de colheitas diferentes. De seguida há que es- e alguma compota, de resinas, cera de abelha,
de. Não brancos quaisquer nem idade colher as percentagens de cada ano, visando algum mel, mas tudo num ambiente complexo
certa. Do que se trata aqui são vinhos um lote final que, no fundo, se espera que seja e rico; o longo estágio em madeira usada não
que, em virtude de resultarem de um lote de melhor que cada uma das partes. Foi na Quin- induz aromas de madeira e, se o vinho os tinha
várias colheitas, não apresentam data de co- ta dos Carvalhais, então pela mão do enólogo em novo, eles vão-se dissipando com o tempo.
lheita. A ligação entre vinhos de colheitas di- Manuel Vieira, que este tipo de vinho se co- Já na boca temos sempre um vinho de grande
ferentes não é novidade e mesmo nos vinhos meçou a fazer, recuperando técnicas antigas estrutura, volumoso, rico, cheio, que enche o
que têm data no rótulo — a esmagadora maio- que estavam em desuso. Depois, e bem, outros palato e dá uma excelente prova, sobretudo se
ria do que encontramos no mercado — a lei produtores e de outras regiões perceberam que tiver boa acidez, algo que é muito frequente em
autoriza que se incorpore uma pequena per- este era um modelo que poderia ser replicado, regiões como o Dão, por exemplo. Até se pode
centagem de vinhos de outra colheita. Se to- correspondendo também a alguma maturida- dizer que estamos perante um tinto vestido de
marmos o exemplo do vinho de 2020, o pro- de do mercado consumidor, agora mais dis- branco, um vinho totalmente afastado do que
dutor pode juntar até 15% de vinho de 2019, posto a aceitar tipos e modelos de vinho que se faz no mercado. Num dos casos sugeri sopa
por exemplo. Isso poderá ajudar em anos me- se afastam das regras e das modas. No fundo, de peixe, porque já fiz essa experiência (na mi-
nos bons, quando ao lote juntamos vinho de atendendo a que estamos a falar de vinhos que nha versão “estupidamente picante”) e o re-
melhor qualidade, mas também pode ajudar estiveram vários anos em casco, o que é que sultado foi uma incrível ligação que convenceu
a escoar stocks. Podem assim ser várias as ra- é suposto encontrarmos? Normalmente, são o painel de provadores. Estes são vinhos caros
zões. Mas não é o caso de hoje. Aqui estamos vinhos bem mais carregados de cor, a mos- mas com toda a justificação: são difíceis de fa-
noutro registo: os produtores foram deixando trar alguma oxidação, mas a cor não deverá ir zer e a possibilidade de falhar ao longo do pro-
em cada vindima alguns vinhos em pipa que além do dourado porque poderá então revelar cesso é enorme. Por isso mesmo temos de fazer
não engarrafaram e fizeram o mesmo nos anos uma oxidação excessiva que já não se conside- jus a esse esforço e bebê-los com a atenção que
seguintes. Quando chega a hora da decisão, o ra muito positiva; depois, no aroma, vamos en- merecem. E voltamos a tema recorrente: entre
enólogo tem à disposição vários lotes de vinho contrar sobretudo notas de fruta bem madura três amigos divide-se a despesa e… tá feito! b
A VALORES DE MERCADO)
(OS PREÇOS, MERAMENTE INDICATIVOS, CORRESPONDEM

Villa Oliveira 2ª Edição Quinta dos Carvalhais Guru NM No Millésime


Região: Dão — Serra da Estrela Branco Especial Região: Douro
Produtor: Casa da Passarella Região: Dão Produtor: Wine & Soul
Casta: Encruzado Produtor: Sogrape Vinhos Castas: Viosinho, Rabigato,
Enologia: Paulo Nunes Castas: Encruzado, Gouveio, Códega do Larinho e Gouveio
PVP: €75 Sémillon e outras Enologia: Wine & Soul
O lote junta vinhos de 2015 a 2019. Enologia: Beatriz Cabral de Almeida PVP: €70
O estágio muito prolongado teve lugar PVP: €33 Deste vinho, lote de várias colheitas,
em barricas de 600 litros, uma por cada Já foram feitas várias edições deste fizeram-se apenas 1500 garrafas.
ano. Para o futuro espera-se um branco Branco Especial, as datas das colheitas É a primeira vez que a Wine & Soul
deste tipo mas com castas misturadas. vêm no contrarrótulo. Usam-se vinhos até se abalança a este projeto.
Sem data ainda prevista. 8 colheitas diferentes. Dica: Bem mais fino e elegante do
Dica: Resultou muito rico e complexo, com Dica: Vigoroso e cheio de classe, um que se poderia pensar, é um vinho
a madeira perfeitamente integrada. Fruta branco que não se esquece, com imensa de requinte que (também pelo
exuberante, tenso e com muito volume, polivalência à mesa, das sopas de peixe preço) não deve ser bebido
um grande branco de uma grande região. até aos queijos. distraidamente. Uma aposta ganha.

E 84
as nossas recomendações Saiba mais sobre estas e outras sugestões em
boacamaboamesa.expresso.pt

brunch Zenith
Praça de Carlos Alberto, 86,
MAAT Café Porto. Tel. 220 171 557
Avenida Brasília, Lisboa.
Tel. 910 583 759
O brunch inclui croissant folhado
de sementes e simples, pão bran-
co, pão de sementes, manteiga,
fiambre, queijo, doces, Nutella,
um iogurte grego com fruta, mel e
granola e um doce. Estão também
contemplados ovos e uma bebida. Ovos Zenith ou os famosos
Tem ainda um bilhete de oferta Benedict, Banana Bread, o Bur-
para o museu. A partir de €17. guer Vegan, nove variedades de
panquecas, bagels para todos os
Restaurante Citrus gostos, bowls doces ou salgadas,
Lisbon Marriott Hotel, Avenida tapiocas e tostas, entre outras
dos Combatentes, 45, Lisboa. propostas, que variam todas as
Tel. 914 391 060 semanas, acompanham cafés de
especialidade que aquecem ma-
nhã e tardes de outono-inverno. A
partir de €15.

Nicolau Porto
Largo Alberto Pimentel, 4, Porto.
EVA Senses Hotel Tel. 222 082 406
Avenida da República, 1, Faro. Tel. 289 001 000 É um dos café mais trendy da nova
Pode escolher entre o Alice Abraçado pela marina e pela paisagem deslumbrante da Ria Formosa, é um marco da hotelaria algarvia geração, muito procurado para um
Brunch e o Chapeleiro Louco. e da cidade de Faro. Recentemente renovado, oferece 134 elegantes quartos (a partir de €56), a maior brunch apetitoso. Servido a toda a
Há uma Welcome Drink, Hatters parte com vista para a marina de Faro. Agora com brunch ao fim de semana, serve comidas mais leves, hora, leva ovos à escolha, iogurte
Salad, Trio de Humus, Shakshuka, como frutas laminadas, pães e croissants, panquecas, batidos naturais e sumos de fruta, e outras, como com fruta e granola caseira ou
Bruschetta e tosta de abacate. A pizza bolonhesa, ravioli de espinafres, bacon beans com cogumelos e, ainda, ovos com bacon. panqueca clássica e café america-
partir de €30. no ou chá. A partir de €15.

Este Oeste Dr. Bernard Boeira Garden Hotel Camélia – Brunch Garden Attytude
Centro Cultural de Belém, Praia do CDS, Costa da Caparica. Rua Teixeira Lopes, 114, Vila Nova Rua do Passeio Alegre, 368, Rua Direita, 58, Esposende.
Praça do Império, Lisboa. Tel. 212 911 045 de Gaia. Tel. 969 500 358 Porto. Tel. 226 170 009 Tel. 910 064 916
Tel. 914 914 505 Todos os sábados e domingos de Sugere-se ovos Benedict, french À carta, pode servir-se de pan- O Brunch with Bubbles by Möet
São três menus: Japonês, Italiano manhã serão dedicados ao Brunch toast, panquecas, sumo de laranja queca salgada, bowls, tapiocas, Chandon serve pratos da casa
e Este Oeste. Do Japonês desta- With a View. Há iogurte Bowl com e espumante, a que acrescem pão, tostas e hambúrgueres. No que em miniatura, com destaque para
ca-se o Doroyaki e o Oniguiri. Do granola e fruta da época, panque- croissants, compota e manteiga respeita a opções vegetarianas, os coloridos hambúrgueres, mas
Italiano, a focaccia caseira. E do ca, torrada de ovos mexidos com caseira. Para os mais gulosos há o destaque vai para a Tapioca da também pizzas, salgadas e doces,
Este Oeste, o Doroyaki. A partir cogumelos e queijo parmesão e sanduíche de salmão e creme de Terra, o Veggie Burger, e as Bowls saladas, quesadillas, tacos, browni-
de €15. Breakfast Burrito. A partir de €15. abacate. A partir de €25. Vegan. A partir de €15. es e fruta. A partir de €30.

“BOA CAMA BOA MESA” NA SIC NOTÍCIAS: Break


A BELEZA DOS LAGOS DO SABOR Rua da Saudade,
2, Lisboa.
Com estreia este sábado na Tel. 962 694 364
SIC Notícias, e repetições ao As panquecas podem
trazer iogurte, mirtilos e
longo da semana também na
suspiro. Há rabanadas, aqui como
SIC Mulher e na SIC Internaci-
tosta francesa, e outras com nomes
onal, este programa convida-o de cidades, como Oslo, com salmão
a descobrir um segredo nos com queijo creme, cebola rocha e
confins do Douro. Em Trás- alcaparras, Marselha, com abacate
-os-Montes existem “lagos” e património natural, incluindo com coentros, molho tahini, grão
ligados por gargantas e pe- santuários de vida selvagem. torrado e ovo escalfado, ou a Bife
nhascos, que “nasceram” com Conheça Foz do Sabor, a últi- e Pimenta, com bife do lombo
a construção da barragem do ma e única aldeia piscatória do com rúcula, lascas de parmesão e
Baixo Sabor. Os territórios de interior norte, e prove as migas pimenta. Preço médio: €20.
Alfândega da Fé, Macedo de de peixe com ovas no restau-
Cavaleiros, Mogadouro e Torre rante O Lameirinho. Imperdível SELO DE QUALIDADE Em parceria com o Recheio, este
de Moncorvo convidam à é o baloiço do Miradouro de símbolo é a garantia de que o restaurante em destaque utiliza
produtos das melhores origens e criteriosamente selecionados
descoberta de gentes, cultura São Lourenço.

E 85
M O DA
POR GABRIELA PINHEIRO

Dicas & Regras

A moda funcional
A moda é hoje menos abstrata e tem um papel
cada vez mais relevante nas nossas vidas

E
mbora a estética, aliada ao corte da moda utilitária, e que nesta tempo-
e ao conforto, seja uma das gran- rada volta à ribalta, é o colete com múl-
des preocupações da indústria da tiplos bolsos, que, em tempos de pande-
moda, cada vez mais ela se preocupa mia, vem mesmo a calhar: uma saída,
em ser uma mais-valia para quem a usa. por mais pequena que seja, requer que
Não é que tenha deixado de surpreender tenhamos o gel desinfetante e a máscara
— aliás, os desfiles continuam a ser uma sempre à mão, entre outros objetos que
montra para a criatividade do sector —, se tornaram, entretanto, indispensáveis.
mas tem hoje mais significado, quer seja Um estilo mais funcional não se tra-
porque dá voz a diferentes causas como duz, porém, em looks enfadonhos. Mui-
a sustentabilidade ou a igualdade de gé- tas vezes são mesmo os aspetos funcio-
nero, por exemplo, ou porque tem cada nais que ‘animam’ estas peças, como a
vez mais em consideração o nosso dia a repetição excessiva de elementos como
dia. É o caso da chamada moda funcio- bolsos ou um volume desproporcional
nal, que, como o nome indica, cumpre em relação ao resto da roupa. Noutros
efetivamente uma função. Muito inspi- casos, são os padrões divertidos que sur-
radas na roupa usada pelos militares ou preendem. Optar por um estilo funcional
operários, como os macacões e as famo- da cabeça aos pés é possível, e até dese-

FOTOGRAFIAS GETTY IMAGES


sas calças cargo, são normalmente pe- jável em regime de teletrabalho, mas, se
ças que surgem em cores neutras, cortes quiser ir mais além, opte por contrastes
masculinos e com volume extra. inteligentes: use um macacão com uns
Na moda masculina não faltam peças brincos sofisticados e repletos de brilho
com detalhes técnicos a cumprir as mais ou um colete oversized por cima de um
variadas funções, em calças, calções e vestido mais elegante. Mais uma vez, há
casacos. Outro dos exemplos clássicos detalhes que fazem toda a diferença. b

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E 86
D ESI GN
POR GUTA MOURA GUEDES

Louisa Calder, mulher Simone de Beauvoir tinha


de Alexander Calder, a usar uma colecção de várias
um dos vários colares obras de Calder.
que Calder lhe fez.

As escalas de Calder
Assinou um tipo de joalharia feita para o corpo, mas A actriz Anjelica Huston com
sem o propósito de o adornar ou facilitar o seu uso o colar “The Jealous Husband”
de 1940, da colecção do

H
Metropolitan Museum of Art.
á mais ou menos um ano fui à memória, de um modo ou outro, as suas
inauguração de uma exposição so- encantatórias esculturas kinéticas, que
bre Alexander Calder no Centro nos fazem duvidar da razão da gravida-
Botín, em Santander. Escrevi aqui sobre de e da existência do peso. Menos conhe-
essa ida, acima de tudo, sobre o edifício cidas serão, no entanto, as suas obras de
do centro, uma obra prima de Renzo Pi- joalharia, mais de 1.800 peças únicas que
ano, que por si só justifica a visita a esta criou ao longo da vida, sendo que as pri-
muito especial cidade espanhola. Quan- meiras foram feitas com 6 anos de idade,
do estávamos na visita inaugural, em que em arame, para as bonecas da sua irmã.
o comissário Hans-Ulrich Obrist explica- A forma como sempre dominou um ele-
Em cima Peggy Guggenheim va passo a passo a sua perspectiva sobre mento tão simples como o fio de metal,
na preparação de a obra de Calder, entrou na sala principal que levava sempre nos bolsos, levou-o a
uma exposição de obras o neto de Calder, Sandy Rower, e a sua dizer “I think best in wire.” Quando casa Brooke Shields, em 1985,
de Calder, em baixo com mulher. Lembro-me de estar nesse mo- em 1931 com a que se tornou sua mu- a usar um colar de Calder
os seus brincos “Móbile” mento precisamente debaixo de uma das lher e que sempre foi sua musa, Louisa numa produção de moda
feitos pelo artista. grandes peças balançantes deste escultor James, sobrinha-neta do escritor Henry para a “Vogue”.
americano, que morreu em 1976, debaixo James, desenha-lhe o anel de noivado e
de um dos seus maiores móbiles, que se em breve todo o art world começa a usar
agitava só com a nossa respiração, algo de as várias peças que fazia, algumas delas
improvável para um sistema organizado que eram estudos para as peças maiores
de objectos tão pesado. A mulher de San- que mais tarde produzia. Usar um Cal-
dy Rower trazia sobre a blusa preta assi- der abriu todo um novo capítulo de um
métrica que usava uma joia esplendorosa. tipo de joalharia feita para o corpo mas
E de repente, ao nos cumprimentarmos sem o propósito de o adornar ou facilitar
debaixo da escultura de Calder, aconteceu o seu uso. As peças de Calder eram mui-
um daqueles momentos difíceis de repe- tas das vezes quase incómodas — mas
tir: a jóia que ela usava tinha sido tam- quem as usava passava para um estatu-
bém criada por Calder e, de uma forma to próximo da arte e mais: permitia-lhe
A pintora Georgia O’ Keeffe ímpar, relacionava-se formalmente com a uma interacção com o mundo diferente, Imagem da primeira exposição
a usar um broche obra que estava suspensa sobre as nossas acrescentadora. É isso que a arte tam- sobre a joalharia de Calder
desenhado por Calder em 1940. cabeças. Uma enorme, a outra pequena, bém faz, independentemente da escala em Londres em 2016.
ambas a revelarem a genialidade do au- em que opera. b
tor, em escalas tão distintas.
Calder é um artista mundialmen- Guta Moura Guedes escreve de acordo
te conhecido. Todos nós, temos de com a antiga ortografia

E 87
DIÁRIO DE UM
PSIQUIATRA
POR JOSÉ GAMEIRO

O injetor castigado
UM VINHO ÚNICO Nunca, nos países ocidentais, o essencial
No Douro encontramos, no coração da
dos direitos fundamentais foi posto em causa

C
Quinta Vale D. Maria, uma vinha com mais
de 60 anos. As 41 castas – entre as quais
ito uma mensagem do diretor do Sector Golden Sping, Campo de
Rufete, Tinta Amarela, Tinta Francisca,
Kudinov, para o diretor-geral das Minas.“De acordo com o seu
Seja responsável. Beba com moderação.

Sousão, Touriga Franca, Touriga Nacional e


pedido de explicações para a paragem de seis horas da quarta
brigada de prisioneiros, no sector das minas de ouro, passo a reportar. A
Tinta Roriz –, plantadas de forma misturada
temperatura do ar, de manhã, era de 60° negativos. O nosso termómetro
e com diferentes exposições solares, estão na
foi quebrado pelo supervisor, no entanto, foi possível medir a temperatura,
origem do vinho Quinta Vale D. Maria Douro
porque uma cuspidela gela, antes de cair no chão. A brigada chegou a
tinto 2018. É precisamente esta diversidade
horas ao trabalho, mas não conseguiu trabalhar, porque o injetor de água
que o torna profundo e intenso, com aromas
quente, que aquece o solo, recusou-se a funcionar. Avisei diversas vezes o
de cereja, ameixa e amora silvestre, típicos do
engenheiro da manutenção que o injetor já estava a operar mal, mas não
ˡƺǼƳƫǼƺȇƳ
Ƴ que forma o Quinta Vale D. Maria
foram tomadas medidas. O engenheiro recusa substituí-lo por um novo.
Douro tinto 2018.
Os trabalhadores ficaram parados muitas horas, sempre ao frio, porque não
aveleda.com
foram autorizados a fazer fogo de chão, nem a regressar às barracas. Escrevi
a todas as autoridades, desde há cinco anos, esclarecendo que não podia
continuar a trabalhar com um injetor destes. O engenheiro chefe não liga
PEDALAR COM AJUDA nenhuma e exige que a produção se mantenha.”
Resposta do diretor de Minas.“Por se recusar a trabalhar mais de cinco
ÈȸƫƏȇJǼǣƳƺǼƏȇƯȒɖƏ0ƫǣǸƺ‫ِג!ٮ‬0ɀɎƏȇȒɮƏƫǣƬǣƬǼƺɎƏ dias e causar uma quebra da produção do sector, o prisioneiro Injetor deve
elétrica com vocação citadina possui uma autonomia ser detido durante 72 horas e não deve ser autorizado a ir trabalhar. Será
colocado num pelotão com tarefas, em condições intensivas. O caso deve
ser investigado. Irei notificar o engenheiro chefe de que há uma ausência
de disciplina na produção. Recomendo a substituição do prisioneiro Injetor,
por outro trabalhador.”
Estas mensagens são da obra “Contos de Kolimá”. O autor foi o escritor
russo Varlám Chalámov, que cumpriu pena, por duas vezes, no total de 20
anos, a trabalhar 16 horas por dia, em minas de carvão e de ouro. Foi detido
uma primeira vez por imprimir panfletos contra Estaline e uma segunda,
mais longa, por atividades trotskistas, contrarrevolucionárias, sendo então
enviado para a região de Kolimá, na Sibéria. Quando regressou a Moscovo
começou a escrever os “Contos”, num total de duas mil páginas, publicados
em seis volumes.
O absurdo do injetor que é detido não é, obviamente, suficiente para
mostrar a violência da vida no Gulag. Muito menos para revelar a violência
institucional que a raça humana, quando tem poder discricionário, é capaz
de exercer sobre os seus. Mas serve para exibir a subserviência e a cobardia
de quem, provavelmente, para salvar a pele e ter algumas benesses, é
capaz de mandar prender uma peça mecânica, tão habituado a deter tudo
e todos.
Muito se investigou sobre os limites de um grupo de pessoas, dirigentes
CONTRA e não dirigentes, nas suas capacidades de prender, torturar, matar e mandar
matar. A Alemanha nazi, a União Soviética e os Balcãs, mais recentemente,
A VIOLÊNCIA foram os “laboratórios”, onde se tentou compreender até onde, em
DOMÉSTICA determinados contextos políticos, a raça humana é capaz de ir, na sua
agressividade. Quando se pretendem justificar os Gulags, com as melhorias
s hipermercados E.Leclerc do nível de vida de um povo, usando a velha frase ‘os fins justificam os
ntaram-se à Comissão para meios’, estão a tentar branquear-se os assassínios em massa, em zonas
Cidadania e a Igualdade de de oposição ao regime, assim como as execuções seletivas de possíveis
énero numa campanha contra concorrentes de Estaline.
violência doméstica, um crime Com o declínio da importância das humanidades e a instauração do
ue se agravou em tempos de capitalismo desregulado, iniciado por Reagan e Thatcher, o fosso entre ricos
andemia. Esta ação solidária irá e pobres aumentou. E também se cometeram muitas atrocidades, em nome
ƺƬȒȸȸƺȸƏɎƻƏȒˡȇƏǼƳȒƏȇȒƏɎȸƏɮƻɀ da democracia. Mas apesar desta evolução, nunca, nos países ocidentais, o
a venda de orquídeas e suculentas essencial dos direitos fundamentais foi posto em causa. Não matamos e não
os hipermercados E.Leclerc. Os prendemos injetores... De vez em quando, convém relembrar. b
lores, de €2,5 e 50 cêntimos, josemanuelgameiro@sapo.pt
spetivamente, revertem a favor
as vítimas de violência doméstica.
leclerc.pt
PASSAT E M POS
POR MARCOS CRUZ

Sudoku Fácil Palavras cruzadas nº 2344

7 9
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11
6 1 8
5 3 8 1
4 5 6 3
2
9 3 1 8 7 5 6 4
4 1 3 9 3
6 1 2
4
7 9 5
2 4 5

Sudoku Difícil 6
4
7
2 6 8 3
7 9 8
5 6 9
9
8 1 5 2
3 4 10
7 5
4 3 8 1 11
2
Horizontais Verticais Soluções nº 2343
1. Há quem a faça num copo de água 1. O Cabo da Boa Esperança antes HORIZONTAIS
Soluções 2. Filho do deus do céu e da deusa da de o ser 2. Não traz nada de novo. 1. laranjeira 2. ilações;
Fácil Difícil terra, segundo os gregos. Corta-se Velocidade náutica. Em desgraça, era 3. suínas; lira
1 7 9 3 4 5 6 2 8 3 7 4 9 8 2 1 5 6
para inaugurar 3. Grande quantidade. ninguém quer 3. Harmonia de sons. 4. Bazaruto 5. ode;
5 3 6 8 9 2 7 1 4 5 1 8 7 6 3 9 4 2
A explicação que se percebe 4. Poeta Duquesa do Luxemburgo 4. Apanha Iago 6. EOS; Atlanta
8 2 4 1 6 7 5 9 3 6 2 9 1 5 4 3 7 8
7 8 2 9 3 1 4 6 5 9 4 5 6 3 8 2 1 7 latino, autor de “Metamorfoses”. Fica lixo. Meio voto. Onde a covid faz mais 7. ts; trair; rn 8. ressaibos
9. Sião; tona 10. OS;
4 6 5 7 2 8 1 3 9 7 6 2 5 4 1 8 9 3 perto 5. Forra o interior do coração vítimas 5. Carta papal 6. Une para ficar
cósmico 11. afetuoso
9 1 3 6 5 4 2 8 7 1 8 3 2 9 7 4 6 5 6. Meia noite. Também emite terço e inteiro. Animais que o homem cria
6 4 7 2 8 3 9 5 1 2 9 1 3 7 6 5 8 4
missa 7. Crocodilo americano 7. Entra no nome de muitas VERTICAIS
2 5 8 4 1 9 3 7 6 4 3 7 8 1 5 6 2 9
8. Há mais de 2020 anos. Escola companhias aéreas. Gosta muito 1. lisboetas 2. aluados;
3 9 1 5 7 6 8 4 2 8 5 6 4 2 9 7 3 1
de Platão 9. Consagrado ao culto. 8. Na Grécia espalhava amor e Io 3. raízes; rasa 4. acna;
Preposição 10. Enfureça-se. Erva beleza. Cede ao centro 9. O tempo teo 5. noar; ARS; cê
que condimenta 11. Tem sujeito e de uma rotação. Fim grego 10. Tudo 6. jesuítas; ot 7. es; Tália;
predicado. O primeiro a não obedecer o que queria era ir para casa. Apoia su 8. logaritmo 9. rei; on;
Palavras Cruzadas Premiados do nº 2342 bois 10. arre; tronco
em subidas e descidas 11. A dos
“Quem É Amado Nunca Morre”, de Victoria Hislop, 11. aa; mansão
Namorados esteve em Aljubarrota
para Maria Teresa Portugal, de Castelo Branco;
“O Voluntário”, de Jack Fairweather, para António
Ferreira, de Castelões; “Paranoia”, de Lisa Jackson,
para Nuno Barreiros, de Lisboa. Participe no passatempo das Palavras Cruzadas enviando as soluções por correio para
Rua Calvet de Magalhães, 242, 2770-022 Paço de Arcos ou por e-mail para passatempos@expresso.impresa.pt

E 89
QUE COISA SÃO AS NUVENS

ESFREGAR O
SEGUNDO DEGRAU

Q
NO PROCESSO PURGATÓRIO QUE NOS HABILITA A ENTRAR PELA “PORTA
ESTREITA” HÁ UM PRÉVIO PERCURSO POR TRÊS DEGRAUS, TODOS DIFERENTES

uem se aventurou alguma vez por A iniciação a esse trabalho é o argumento de um dos livros
essa destemida peregrinação interior mais amados do cânone bíblico: o Livro dos Salmos. Obra
que é “Um Diário de Preces” (Relógio que se pode abordar como texto literário, pois certamente
D’Água, 2014), que a romancista está entre os cimeiros da literatura universal. Numa das suas
Flannery O’Connor escreveu quando cartas, São Jerónimo dizia que David (a quem a tradição
tinha 20 anos, aprendeu a desconfiar atribui a autoria dos salmos ou de parte deles) é, com justa
das soluções instantâneas no que razão, “o nosso Simónides, o nosso Píndaro, o nosso Alceu,
à experiência de fé diz respeito. o nosso Horácio, o nosso Catulo...”. Mas Nietzsche trouxe
É verdade que, numa página do uma precisão, porventura surpreendente, às palavras de
diário, Flannery declara: “Neste Jerónimo, defendendo que “entre aquilo que sentimos ao ler
momento sou um queijo, faz de mim os salmos e aquilo que experimentamos na leitura de Píndaro
uma mística, imediatamente.” Mas e de Petrarca é a mesma diferença que existe entre a pátria
ela sabe que não se pode agarrar e qualquer terra estrangeira”. A verdade é que a posteridade
ao passe de mágica do advérbio. espiritual dos salmos está carregada de surpresas destas.
De facto, há de voltar a essa prece Penso, por exemplo, no seu impacto na cultura portuguesa. O
refazendo-a deste modo: “Quero ser erudito ensaio do jesuíta Mário Martins, “A Bíblia na Literatura
uma mística e sê-lo imediatamente. Apesar disso, querido Deus, Medieval Portuguesa”, mostra como, desde as Cantigas de
indica-me um lugar, por pequeno que seja, e faz com que eu o Amigo, o Saltério tem sido um código da nossa literatura. Entre
respeite. Se me estiver destinado ser aquela a quem compete os contemporâneos, temos múltiplos e distintos casos. Desde
esfregar cada dia o segundo degrau, faz-mo saber, e faz com a inesquecível forma como Herberto Helder traduziu alguns
que eu o esfregue com um coração transbordante de amor.” salmos a este livro comovente e singularíssimo que a Editorial
A norte-americana era uma leitora assídua de Dante. E aí ela Caminho acaba de publicar, intitulado “Do Livro dos Salmos”,
aprendeu que, no processo purgatório que nos habilita a entrar da autoria de Mário Castrim. Autor que teve, como se sabe,
pela “porta estreita”, há um prévio percurso por três degraus, uma vida entregue aos jornais, nomeadamente como crítico
todos diferentes. O primeiro deles é branco, de mármore de televisão, foi presidente da assembleia-geral do Sindicato
límpido. Nele podemos olhar o nosso rosto como ainda não o dos Jornalistas, militante do Partido Comunista e cristão. Não
havíamos contemplado. O último é uma soleira de diamante, é por acaso que um homem com o percurso de Mário Castrim
que flameja como uma labareda, e nele está sentado o anjo de se abeira dos Salmos e da sua espiritualidade profundamente
Deus. O degrau intermédio, o segundo nesta ordem, é “escuro inscrita na história, com as suas lutas, paixões, demoras.
mais que pez/ de pedra áspera e seca, apresentando/ fissuras de Habitar os salmos, parafraseá-los ou reinventá-los como ele o
comprido e de través”. Os orantes sabem que, na maior parte do faz, é ter compreendido que esperar em Deus não nos dispensa
tempo, a oração é essa tarefa repetida, que pode até parecer rasa, em cada hora de esfregar o segundo degrau. Mas desse modo,
inglória e desinteressante, mas que requer de nós uma humilde como promete Castrim a Deus, “hei de fazer ao longo do meu
fidelidade ao trabalho sobre o segundo degrau. dia/ a casa que será tua morada”. b

A ORAÇÃO É ESSA TAREFA


REPETIDA, QUE PODE ATÉ
PARECER RASA, INGLÓRIA
E DESINTERESSANTE,
MAS QUE REQUER DE NÓS
UMA HUMILDE FIDELIDADE / JOSÉ
AO TRABALHO SOBRE O TOLENTINO
SEGUNDO DEGRAU MENDONÇA

E 90

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