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AULA 2 – Articulação e Mobilização de Recursos: uma perspectiva a partir do comum

Professor: Rodrigo Savazoni (SP)

Ementa: Desde as últimas décadas do século XX, o paradigma das redes vem se
consolidando em todas as esferas. Com as novas tecnologias de informação e
comunicação, multiplicam-se redes sociais, redes de instituições, redes de profissionais
e assim por diante. Estruturas em rede têm a vantagem de serem horizontais, de se
reconstruírem com facilidade quando um dos nós se desfaz, de agilizarem a transmissão
de conteúdos. Mas colocam também novos desafios e exigem novas habilidades,
justamente por seu caráter flexível, móvel, não-hierárquico, com múltiplos centros. Agir
em rede e pensar em rede são elementos incontornáveis da contemporaneidade, que
estão por trás de parte das atuais estratégias de mobilização e articulação. A discussão
sobre a sociedade em rede, o comum e sobre o impacto das novas tecnologias digitais
se fará presente no início deste módulo. Em seguida, a reflexão se concentrará em
diferentes modalidades de articulação e mobilização que viabilizam a atuação do
gestor/produtor cultural. Se articular com outros agentes e organizações é uma maneira
de suprir suas próprias lacunas, de potencializar ações e resultados. E mobilizar recursos
não significa apenas captar verbas, mas também compartilhar equipamentos e know-
how, conseguir ajuda de pessoas mais experientes em determinada área, emprestar
espaços, entre tantas outras possibilidades. Analisar as novas institucionalidades que
surgem e a organização de novos arranjos produtivos.

ARTIGO

Tem um livro de que gosto muito escrito por um jornalista divulgador científico
dos Estados Unidos chamado Steven Johnson. Ele é um desses caras sabidos, que se
utiliza de conhecimentos de diferentes disciplinas para formular uma visão disruptiva da
realidade. A bem da verdade, gosto de todos os livros dele, mas o que quero citar aqui
é um que se chama “De onde vêm as boas ideias”, no qual ele vai atrás de nos mostrar
o que é preciso para que uma boa ideia semeie e ganhe vida. Se vocês quiserem ler esse
livro inteiro, a partir desta aula que eu estou dando, fiquem à vontade. Creio que não
irão se arrepender. Se alguém já o leu pode compartilhar o que aprendeu com os
demais, no fórum de discussão.

Certa altura, mais exatamente na página 86 do livro, Steven Johnson escreve


assim: “em certo sentido, os sonhos são a sopa primordial da mente: o meio que facilita
as colisões serendipitosas do insight criativo. E as intuições se assemelham àqueles
primeiros átomos de carbono, buscando novos tipos de conexões para ajudá-los a
formar novas cadeias e anéis de inovação.” Vamos decompor essa frase em três
palavras e uma expressão e colocar uma lupa nelas. As palavras sonho, serendipitosas,
que vem de serendipidade (serendipity) e intuição. E a expressão sopa primordial.

Comecemos pelo sonho. Quando a gente pensa em projetos, naquilo que


queremos fazer, e nos recursos que temos para colocá-los em prática, a gente deveria
mesmo partir do sonho. Anos atrás, co-coordenei para o Ministério da Cultura o projeto
Produção Cultural no Brasil, uma série de 100 entrevistas em vídeo e texto, num website
super inovador (que ainda pode ser acessado no endereço
http://producaocultural.procomum.org). Nele estávamos em busca de formatar o que
chamávamos de bibliografia básica para o produtor de cultura, a partir do conhecimento
empírico e vivencial de nomes de destaque em diferentes áreas do nosso campo. Pois
bem, realizando ou lendo as entrevistas, com essas pessoas, era constante o elogio do
sonho, como um recurso básico para fazer algo bom de verdade. Algo relevante,
importante.

O sonho deve ser sempre nosso ponto de partida. Recorro a outro sujeito muito
inteligente, que vem lá da beira do rio doce, o Ailton Krenak. No livro “Ideias para Adiar
o Fim do Mundo”, na página 50 e 51, ele escreve assim:

“Quando eu sugeri que falaria do sonho e da terra, eu queria comunicar a vocês


um lugar, uma prática que é percebida em diferentes culturas, em diferentes povos, de
reconhecer essa instituição do sonho não como experiência cotidiana de dormir e
sonhar, mas como exercício disciplinado de buscar no sonho as orientações para as
nossas escolhas do dia a dia. Para algumas pessoas, a ideia de sonhar é abdicar da
realidade, é renunciar ao sentido prático da vida. Porém, também, podemos encontrar
quem não veria sentido na vida se não fosse informado por sonhos, nos quais pude
buscar os cantos, a cura, a inspiração e mesmo a resolução de questões práticas que não
consegue discernir, cujas escolhas não consegue fazer fora do sonho, mas que ali estão
abertas como possibilidades”.

A arte, a ciência e a inovação são filhas diletas da invenção, do impulso criador,


que todas e todos carregamos dentro de nós, da nossa capacidade de ter boas ideias. E
esse não é um lugar reservado exclusivamente aos seres geniais, mas a quem é capaz de
sonhar, ou seja potencialmente qualquer pessoa. Nossos sonhos são talvez o principal
recurso de que dispomos para poder fazer a diferença no mundo e por isso mesmo que
muitos projetos de poder tentam justamente impedir que nós os afirmemos ou
acreditemos nisso. Parece estranho falar que o sonho é um recurso que temos? Pois eu
diria que é um dos principais, e, como canta o músico argentino Kevin Johansen, “não
custa nada”.

Outra palavra que destaquei da frase de Johnson citada na abertura do texto é


intuição. Quantas vezes você esteve diante de uma situação que, racionalmente, era
difícil saber qual caminho escolher? Mas algo, lá no fundo, te dizia que a aparente
escolha racional não era a melhor para aquele caso. Essa voz que fala no nosso coração
é a intuição e é outro recurso que temos, todas e todos nós, para construir nossos
caminhos. Sonho e intuição são inseparáveis e eu diria que sem reconhecer a
importância dessas duas palavras e o impacto delas nas nossas vidas fica muito difícil
estruturar algum projeto de sucesso. Tente se recordar ao longo da sua trajetória de
uma situação em que a aparente escolha racional apontava para um caminho e a sua
intuição para outro. Qual foi a sua aposta? Qual o resultado obtido? Pense agora numa
situação reversa, que você não ouviu sua intuição e agiu com base exclusiva na razão.
Como foi? Foi melhor? Foi pior?

É importante destacar que não se trata de opor intuição e razão. Sem dúvida - e
ainda mais quando estamos criando ou realizando algo - a racionalidade é essencial. O
que ocorre é que em nossos tempos atuais há um desequilíbrio que parece
desconsiderar quaisquer outras formas de apreender algo que não as racionais, e é disso
que estou falando. Durante o restante do curso muitos outros colegas irão abordar
inúmeras técnicas, instrumentos e métodos para subsidiar as escolhas racionais de
vocês. Mas a mim coube justamente o papel de afirmar dimensões que têm sido
secundarizadas e que, a meu ver, reduzem a potência de muitas das iniciativas culturais
de nosso tempo.

A terceira palavra que separei para iniciar essa conversa é serendipidade. Essa é
um pouco mais difícil e desconhecida, e além de tudo é um anglicismo. Mas tem a ver
com uma velha expressão senso comum que todos conhecemos: “a pessoa certa no
lugar certo”. Sabe quando o acaso atua e de repente uma sucessão de elementos se
coadunam de forma quase mágica gerando um resultado ao mesmo tempo inesperado
e esperado? Pois bem, isso é a serendipidade e tem a ver com a nossa capacidade de
estar aberto para receber o que a vida nos apresenta. Se não estamos abertos a deixar
que as conexões ocorram, se não temos o repertório certo para ler a realidade, o acaso
nunca vai agir, o que me leva a fazer uma afirmação que pode soar polêmica, mas que
tenho absoluta certeza que é válida para qualquer pessoa que queira construir um
projeto cultural potente: conectar ideias é mais eficiente que protegê-las. E construir
projetos abertos não depende só de vontade, mas de algumas técnicas essenciais, como
documentar o processo e não apenas o resultado; contar a história completa e não
apenas uma parte, aquela que consideramos ser a bem sucedida e vendável; partilhar
erros e dúvidas, e não apenas certezas; ser transparente e saber de fato acolher ideias
melhores que a sua oriundas dos colaboradores; criar protocolos claros de participação,
para que as pessoas saibam direitinho como podem contribuir. Essas são algumas dicas
de como estruturar um bom projeto colaborativo e aproveitar a inteligência coletiva
que nos circunda. Pode parecer estranho colocar o acaso, a serendipidade, como um
recurso a conquistar, uma vez que se trata do inesperado. E talvez seja. Mas o
importante aqui é lembrar que o mais importante recurso não monetário que temos é
o tempo, que jamais é dinheiro, porque não pode ser reduzido a uma forma de troca
tão elementar. Estimular o acaso tem a ver, muitas vezes, com interromper o que se
está fazendo para dar uma volta ou tomar um banho de cachoeira, sobretudo quando
as ideias parecem não se encaixar. Interromper-se é uma forma maravilhosa de abrir a
porta dos nossos cérebros para a possibilidade do encontro casual com uma resposta
há muito procurada mas que a vida agitada e a busca objetiva incessante não permitem
acontecer. Escapar para se encontrar é também preparar o terreno para as ideias
brotarem.

Além das três palavras também selecionei uma expressão: sopa primordial. Não,
ela não se refere a algum tipo de comida, mas às condições da origem da vida. Foi a
partir dessa sopa primordial que as moléculas de carbono começaram a se agregar, lá
no início dos tempos, e deram origem aos primeiros organismos complexos (que ainda
eram super simples). Desde então, no entanto, a ciência sabe que para a vida existir é
preciso uma sopa primordial, esse ambiente líquido, baseado essencialmente na água.
Separei essa ideia-força porque ela vai nos permitir a conexão com a próxima parte
desta aula, portanto deste texto, que tem a ver com a ideia, o conceito de comum, e
também dos espaços colaborativos de criação como o que nós criamos e mantemos em
Santos, Sâo Paulo, o LAB Procomum.

Mas o que a sopa primordial tem a ver com a elaboração de projetos culturais
ou, pior ainda, com a criação e gestão de um centro cultural colaborativo?

Ainda que possa parecer apenas uma metáfora, nós temos trabalhado com a
concepção de que boas ideias precisam de ambientes propícios para nascer, de uma
sopa primordial acolhedora e que produza fricções (as descargas elétricas) que sejam
geradoras de encontros e trocas capazes de gerar soluções e respostas, dando origem a
protótipos que podem virar bem sucedidos projetos. É uma aposta, não apenas nossa,
mas de inúmeros grupos culturais inovadores em muitas cidades do planeta. Os espaços
coletivos de trabalho e criação, também chamados de hubs criativos (no nosso caso
preferimos laboratórios cidadãos), se incumbem, muitos deles, de serem esse lugar
onde as ideias encontram abrigo para serem gestadas e desenvolvidas, e nos quais os
produtores culturais encontram pares e parceiros para fazerem de seu sonhos realidade.
Forjar em torno de seu projeto um ambiente gerador e potencializador da criatividade
é algo que tem menos a ver com dinheiro e mais com capacidade de gestão e abertura
real para trocas. Para isso, no entanto, precisamos muitas vezes mudar nossa forma de
pensar (e de sentir), desaprender algumas coisas e desprogramar alguns circuitos que
se desenvolveram em nossos corpos em função de nossa imersão nessa sociedade
competitiva e doentia. Essa desaprendizagem e desprogramação pode nos auxiliar no
enfrentamento de nossos temores e desconfianças e nos ajudar a estruturar relações
sadias com nossos pares e subordinados. A sopa primordial da cultura tem a ver com a
formação de uma rede de trocas essenciais. Dela, tudo pode brotar.

Mais uma vez, pode até parecer óbvio isto que estou dizendo,, mas quando
estamos refletindo sobre os recursos que temos ou precisamos para estruturar um
projeto cultural bem sucedido, são questões que reputo serem essenciais e que,
costumeiramente, não são abordadas em processos, por assim, dizer, mais
mecanicistas. Aliás, relendo essa frase que escrevi, recordo que é preciso, inclusive, que
discutamos o que é o bem sucedido. Para esse debate, retomo com vocês o texto
Afterword: Have you Had a Productive Day?, da Binna Choi e da Annette Krauss, em que
elas sistematizam a experiência do Site for Unlearning (Art Organization), o processo de
desaprendizagem artística que conduziram no CASCO, centro cultural em Utrecht, na
Holanda. O CASCO1 é um centro de arte de mais de trinta anos que há coisa de cinco
iniciou um processo profundo de revisão de suas características, tendo como referência
o conceito de comum (que iremos discutir um pouco mais adiante).

Um dos conceitos principais com o qual a Binna Choi, que é a curadora desse
centro de arte contemporânea trabalha, é justamente o de desaprendizagem
(unlearning), e é importante que a gente reflita um pouco sobre esse conceito. Elas
buscam na feminista indiana Gayatri Spivak a referência de "desaprender nossos
privilégios", para chegar em algo, que eu entendo como sendo desaprender a viver sob
o imperativo do capital. Sim, o capital, como construção simbólica, em sua dimensão
relacional e essencial. Costumamos sempre pensar no que precisamos aprender. No que
não sabemos e que o mundo ao nosso redor exige que saibamos, para sermos mais
“eficientes”. Mas que coisas gostaríamos de desaprender para poder se conectar melhor

1
Sugiro fortemente a leitura desse relato escrito pela co-fundadora do Instituto Procomum Georgia
Nicolau, sobre sua experiência no Casco Art Institute - Working for the Commons:
https://www.procomum.org/2017/08/04/estetica-imaginacao-e-experimentacao-a-arte-e-comum-
dossie-iasc-2017-uma-viagem-pelo-comum/ Uma experiência de ponta e pioneira.
com as outras pessoas e viver com mais qualidade. Por exemplo: desaprender a medir
meu sucesso pelo dos outros. Isso foi algo que, com certeza, aprendemos algum dia.
Mas que leva, inevitavelmente, à insatisfação permanente. Como fazer para
desaprender isso? E assim abrir novos espaços no nosso corpo para outras informações,
relações e atravessamentos?

Voltando ao ponto sobre o que é sucesso e ao artigo da Choi e da Krauss, gosto


muito do uso que elas fazem da obra do J.K. Gibson-Grahan e do texto Wellbeing: The
Five Essential Elements, de Tom Rath and Jim Harter. O que é uma boa vida, afinal? "Tem
a ver com a combinação de nosso amor pelo que fazemos diariamente, a qualidade de
nossos relacionamentos, a segurança de nossas finanças, a vibração de nossa saúde
física e o orgulho que carregamos a partir de nossa contribuição para as nossas
comunidades. Mais importante, tem a ver como esses cinco elementos interagem". Ou
seja, tem a ver com amor, relacionamentos, dinheiro, saúde e nosso lugar em nossa
comunidade. Vejam que o dinheiro - que costumamos entender como o recurso central
para nossas atividades - é apenas um dos aspectos de uma boa vida, e aqui estendo para
dizer de um projeto bem-sucedido. Não estou aqui, de forma alguma, fazendo uma
apologia da pobreza e da precarização. Pelo contrário, entendo ser essencial que
contemos com todo dinheiro necessário para que possamos, todas e todos, ter vidas
confortáveis e protegidas. Apenas que esse não é o único aspecto a ser levado em
consideração na construção de nossos projetos. Por isso, volto à pergunta: o que alguém
precisa para desenvolver um projeto bem sucedido? Eu diria que essa resposta passa
por amar, profundamente, cada pessoa que se acerca de nós, e amando-a estabelecer
um lugar de encontro que nos permita vislumbrar uma outra forma de viver, produzir,
se relacionar e, portanto, se sentir satisfeito e feliz.

Ainda no texto supracitado, as autoras fazem uma crítica muito interessante


sobre o "Business" que virá "Busyness". O trocadilho me parece impossível de traduzir
para o português, então, em um texto interno que escrevi para a equipe do Instituto
Procomum, propus uma transcriação, com base no Oswald de Andrade, que bolou a
equação negócio = negação do ócio. O negócio que é negação do ócio, o culto a estar
sempre ocupado, medindo com os outros o quanto eu trabalhei. Trabalhar com e para
o comum não significa trabalhar menos, mas trabalhar melhor. Lembrando, como diz a
Choi, que essa opção carrega a dificuldade adicional de gerar nas pessoas o desejo de
nos “ver falhar” para depois poderem dizer: viu, é impossível fazer diferente! Não dá,
são sonhadores. Mas é disso mesmo que se trata, do que comecei defendendo no início
do texto: de acreditar nos sonhos. Afinal, se há algo falho ao nosso redor é o sistema-
mundo hegemônico.

***

Uma das razões de ser desta aula é justamente discutir o conceito de comum
(commons), que tem ganhado maior projeção nos últimos tempos. Há cinquenta anos,
um biólogo evolucionista chamado Garrett Hardin escreveu um artigo para a revista
Science que se tornaria extremamente influente. Esse texto se chama “The Tragedy of
the Commons”, ou seja, “A Tragédia do Comum”. Hardin era um sujeito preocupado
com a explosão demográfica - o que de fato é um problema sério considerando que
nossa espécie cresceu sete vezes em apenas um século e continua se multiplicando em
alta velocidade -, e com a possível escassez dos recursos naturais - o que é outro
problema central de nosso tempo, uma vez que já atravessamos aquilo que Fritjof Capra
chama de ponto de não-retorno, ou seja, o ponto em que o consumo humano dos
recursos naturais somados supera a capacidade de o planeta regenerá-los. Ao
correlacionar esses dois aspectos, no entanto, Hardin desenvolve uma tese central
bastante radical: a de que toda e qualquer experiência humana de comum, ou seja, de
gestão comunitária de um recurso, leva fatalmente à tragédia, ou seja, à destruição
completa desses recursos.

Hardin, então, defende, que a única forma de evitar essa tragédia é fortalecendo
a propriedade privada sobre os bens comuns ou a forte regulação estatal. De
preferência, privatização. Acredito que muitas e muitos de vocês já tenham ouvido esse
discurso, e não é à toa, como podem ver. Trata-se de uma ideia-força central, construída
a partir de uma visão extremamente pessimista da capacidade humana de dialogar e
construir colaborativamente soluções para seus problemas coletivos. Na década de
1970, porém, uma cientista política dos Estados Unidos, chamada Elinor Ostrom, iniciou
um trabalho de pesquisa muito sério e sólido que tinha como objetivo verificar se a tese
de Hardin estava correta. Ela intuía que não, mas para provar seus argumentos, passou
a fazer estudos empíricos em comunidades que geriam coletivamente seus recursos, e
construiu uma enorme rede de pesquisadores ao redor do mundo que atualmente se
articulam em uma associação chamada International Association for the Study of the
Commons (IASC-Commons). Com base em todo esse esforço de pesquisa, Ostrom lançou
em 1990 um livro chamado Governing the Commons, que infelizmente ainda não foi
traduzido para o português. Nessa publicação, ela afirma que a ideia da tragédia não se
aplica e ainda diz exatamente o contrário: que em muitos casos a gestão comuneira dos
recursos é mais eficiente que a gestão privada e/ou estatal. Que a colaboração efetiva
é a forma mais potente de usufruir e preservar um determinado bem, como um rio, um
lago, uma floresta, um pasto. Ostrom desenvolve os princípios (design principles)2 para
o manejo de um conjunto de recursos comuns (common pools resources - CPR). No
centro de sua formulação está justamente a conclusão de que as comunidades, a partir
de um sistema de auto-organização e de cooperação, fazem, ao longo dos anos, uma
gestão mais eficiente dos recursos do que quando seguem as normas impositivas de
algum agente exterior.

Há um vídeo produzido por um coletivo alemão e traduzido para o espanhol pela


Guerrilla Translation, que se chama “Que son los bienes comunes?”, que vale assistir.
Nele, o narrador diz assim: “nossa existência depende dos recursos que não só incluem
a biodiversidade, como os espaços sociais em nossas vilas, bairros e cidades, a educação,
as ciências e todo o mundo digital. De fato, temos recursos suficientes para satisfazer
todo mundo. Mas o mundo não é assim. Há um processo de cercamento da natureza.
Os espaços sociais estão cada vez mais privatizados. O acesso à educação se converteu

2
Os oito princípios de Ostrom são: 1. fronteiras bem definidas; 2. coerência entre as regras de
apropriação e provisão com as condições locais; 3. arranjos de decisão coletiva; 4. monitoramento; 5.
sanções graduais; 6. mecanismos de resolução de conflitos; 7. reconhecimento mínimo de direitos de
organização; e 8. alinhamento e articulação intersetorial na gestão.
em um mero produto. E a liberdade do mundo digital está minguando para favorecer
monopólios privados. Há quem chame isso de: “direitos de uso”. É algo muito simples:
reduzir o fornecimento de um bem ou serviço provoca escassez. Quem fomenta a
escassez pode ganhar muito dinheiro. “É assim que as coisas são!”, dizem os que se
beneficiam desse arranjo. Em princípio, tudo parece bastante razoável. Porque o
raciocínio é o seguinte: o acesso irrestrito aos recurso pode levar a uma exploração
desmedida. Imagine...no pasto de uma vila, todos os pastores deixam as ovelhas
comerem à vontade. Mas? Quem vai se conformar com apenas uma ovelha? Se se pode
obter muito mais dinheiro tendo dez? Se todos os pastores atuassem dessa maneira, o
pasto se esgotaria em muito pouco tempo. Os aldeãos perderiam seu meio de
subsistência. Não é um cenário insensato, verdade? Ainda assim, as pessoas podem se
comportar de outras maneiras: falando, criando regras, se fazem responsáveis do
comum. E garantem sua conservação. Sabem que dependem uns dos outros. O benefício
de um é o benefício de todos. Essa é a essência do comum. São comunidades que criam
suas próprias regras para cuidar de seus bens comuns. Todos garantem que o comum
seguirá crescendo...e para todos. Seja na natureza, na sociedade, na educação, na
cultura ou na internet. É uma ideia que se pratica ao redor do mundo, dia a dia. E se nos
esquecemos dessa ideia, os temas mais importantes como a educação, a saúde, as
mudanças climáticas, a segurança alimentar global não terão uma solução viável.”

Para a maior apreensão dessas teorias, sugiro como leitura complementar


obrigatória o artigo que escrevi junto com Sergio Amadeu da Silveira para a revista LiinC,
chamodo “O Conceito de Comum: apontamentos introdutórios”3. No artigo abordamos
o conflito Hardin x Ostrom, mas também recuperamos outras linhagens que nos últimos
cinquenta anos passaram a trabalhar com esse conceito, com diferentes perspectivas.
Outra opção é que leiam o texto do pesquisador e ativista David Bollier que traduzi para
usufruto nosso, cujo nome é “O comum em poucas palavras”. Ele está publicado logo na
sequência. Com base nessas duas leituras, do meu artigo e de Bollier, no vídeo que já

3
O artigo pode ser baixado gratuitamente em .PDF neste link:
http://revista.ibict.br/liinc/article/view/4150
assistimos anteriormente, e das reflexões iniciais do texto, proponho então a realização
de dois exercícios, sem os quais essa experiência não terá o mesmo efeito:

O COMUM EM POUCAS PALAVRAS

Texto: David Bollier, em “Pensar desde los Comunes”

Tradução: Rodrigo Savazoni

O comum é…

- Um sistema social para a gestão sustentável dos recursos, que protege os valores
compartilhados por uma comunidade e sua identidade;
- Um sistema de auto-organização por meio do qual as comunidades gerenciam
recursos (tanto renováveis como não renováveis) com escassa ou nula
dependência do Estado e do mercado;
- A riqueza que herdamos ou criamos juntos e que deve chegar intacta ou
ampliada para nossas filhas e filhos. Essa riqueza coletiva inclui os dons da
natureza, a infraestrutura urbana, as obras culturais, as tradições e o saber;
- Um setor da economia (e da vida!) que gera valor de maneiras que costumamos
dar por certo, mas que tanto o mercado como o Estado muitas vezes põem em
perigo:

Não existe um inventário de todos os comuns, porque eles aparecem quando uma
comunidade decide que quer gerir um recurso de maneira coletiva, pondo especial
atenção na sustentabilidade e na equidade do uso e do acesso.
O comum não é um recurso em si. É um recurso unido a uma comunidade específica e
aos protocolos, valores e normas idealizadas por essa comunidade com a finalidade de
gerir determinados recursos de que necessitem. Muitos recursos, como a atmosfera, os
oceanos, o genoma e a biodiversidade necessitam urgentemente serem geridos como
comuns.

O comum é mais um processo coletivo que um objeto, ou seja, são as práticas e normas
sociais, que uma comunidade utiliza na hora de gerir um recurso para o benefício
coletivo. As formas de administrar o comunal variam porque a humanidade, em si, é
muito diversa. Portanto, não há uma fórmula única para gerir um comum, apenas
padrões e princípios compartilhados. Por isso, o comum deve ser concebido mais como
verbo que como substantivo. A participação de baixo para cima, a transparência e a
responsabilidade pessoal e coletiva autorregulada fortalecem sua gestão.

Um dos grandes e ao mesmo tempo pouco conhecido problema de nossos tempos é o


cercamento dos comuns, a expropriação e a comercialização dos recursos
compartilháveis, habitualmente para o benefício mercantil privado. Os cercamentos são
óbvios, entre muitos outros, nas patentes genéticas e biotecnológicas, na ampliação
excessiva dos direitos de autor, que inibe a criatividade e a cultura, na privatização da
água e da terra, nas tentativas de impor um mercado digital privativo e fechado no lugar
de uma internet aberta. Os cercamentos geram desapropriação. Privatizam e convertem
em mercadoria recursos pertencentes a uma comunidade ou a todo mundo, e
desmantelam a cultura baseada no comunitário (a coprodução e a governança
igualitária) para impor a ordem do mercado (relações e hierarquias produtor-
consumidor baseadas no dinheiro). Os mercados costumam ter um escasso
compromisso com o local, as culturas e os modos de vida de cada lugar, questões
indispensáveis para o comum.
Os comuns tradicionais são pequenos e se centram nos recursos naturais. Estima-se que
existam dois bilhões de pessoas cuja subsistência diária depende da gestão comunal de
florestas, áreas de pesca, aquíferos e outros recursos naturais. Mas existem outros bens
comuns nas cidades, como as universidades, as infra-estruturas e as tradições. Algumas
das formas de comuns mais produtivas são aquelas vinculadas à internet e às
tecnologias digitais, pois permitem às pessoas (comuneiros) criarem um valioso acervo
de conhecimento e criatividade compartilhado.

O grande desafio do nosso tempo para os comuneiros é encontrar novas estruturas


legais, institucionais e sociais que permitam que diversos tipos de comuns operem em
grande escala, que sejam protegidos dos cercamentos dos mercados e que assegurem
seu poder generativo.

São necessárias novas formas e práticas comunais em todos os níveis (local, regional,
nacional e global) e novos vínculos e modos de federação entre diferentes estratos do
comum. É preciso que, sobretudo, os comuns transnacionais incorporem a governança
com a realidade ecológica, e que fomente a cooperação transfronteiriça. Para fazer do
comum realidade e impedir os cercamentos provocados pelo mercado, necessitamos
inovações nos âmbitos do direito, das políticas públicas, da governança e da práticas
sociais e culturais. Todos esses esforços darão lugar a uma visão de mundo muito
diferente da dos sistemas de governo estabelecidos, em que prevalecem o peso do
Estado e do mercado.

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