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JOSÉ LUÍS PEIXOTO

TUDO O QUE AS MÁQUINAS NÃO


SABEM
Às vezes, ouve-se mais música num gira-discos com meia dúzia de álbuns do que num
computador com toda a música do mundo. O dono do gira-discos escolhe o álbum, essa
decisão não é apenas um impulso; tem a oportunidade de prepará-lo debaixo da agulha,
o que antecipa e valoriza. Depois de escutar a primeira faixa, mais conhecida, escuta a
segunda, a terceira e a quarta. No fim do lado A, vira o disco para escutar o lado B.
Durante o mesmo tempo, o dono do computador ouviu xis metades de canção, não teve
paciência para esperar que terminassem, nenhuma era exatamente o que lhe apetecia
ouvir naquele momento.
Nestes dias, exige-se o imediato, sem se considerar as vantagens da expetativa.
Deslumbrámo-nos, encandeámo-nos com o potencial infinito da oferta que nos foi feita:
tudo multiplicado por todas as horas e por todos os lugares. Exemplo: toda a música na
minha sala ao meio-dia, todos os filmes no meu quarto às três da manhã. Fantástica
hipótese, teria eu exclamado nos anos noventa. Então, faltava-me o que sei hoje: só é
pena eu e o meu tempo não sermos igualmente infinitos.
Faz falta imprimir fotografias. Agora, já não temos de poupar no rolo, tiramos cada vez
mais fotografias e, no entanto, são cada vez menos importantes, ficam esquecidas na
memória das máquinas.
As crianças nasceram assim, este é o mundo delas, diz alguém que repete frases que
ouviu ou leu em alguma parte que já não consegue identificar. Ora são justamente as
crianças que precisam de se cruzar com o álbum de fotos de família, precisam de
edificar a sua identidade, entender o seu próprio nome. São justamente as crianças que
precisam de música que não lhes seja sugerida por algoritmos.
Ler um jornal não é o mesmo que passar os olhos por títulos de notícias na internet.
Assistir a uma longa-metragem no cinema não é o mesmo que ver vídeos no YouTube.
Ler um romance não é o mesmo do que ler frases inspiradoras ou engraçadas no
Facebook.
Não se pode voltar atrás. Há espaço para tudo. No entanto, o investimento tem sempre
um resultado, o desinvestimento também.

[Publicado originalmente na edição de 25 de setembro de 2016]

 http://www.noticiasmagazine.pt/2016/tudo-o-que-as-maquinas-nao-sabem/#ixzz4LOqMi4Oq

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