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A PRODUÇAO DA
CRENÇA
contribuição para uma economia
dos bens simbólicos
 PIERRE BOURDIEU

APRODUÇAO
DA CRENÇA
contribuição para uma economia
dos bens simbólicos

Tradução
Guilherme João de Freitas Teixeira

o COSTUREIRO
E SUA GRIFE
contribuição para uma teoria
da magia

MODOS DE
DOMINAÇAO

Tradução
Maria da Graça Jacintho Senon
I

copyright 2001 editora zouk (edição brasileira)

copyright 'i'J 1972,1975,1977 pierre bourdieu
est:l edição é publicada por acordo com a acres de la recherche en sâences
soâales, paris

capa: alexandre dias ramos

projeto gráfico: alexandre dias ramos & rogério de almeida Índice
revisão: alexandre dias ramos & rogério de almeida
trdução e revisão técnica: guilherme j. de frei tas teixeira & maria da graça
jacintho setton

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

(Departamento Nacional do Livro, Brasil) Apresentação 9
B769p
Bourdieu, Pierre. 1930-2002.
A produção da crença: contribuição para uma
economia dos bens simbólicos / Pierre Bourdieu. A Produção da Crença: contribuição para uma
- 3. ed. - Porto Alegre, RS: Zouk, 2006. economia dos bens simbólicos 17
ISBN 85-88840-58-8

1. Sociologia do conhecimento. 2. Cultura - Aspectos

sociais. 1. Título. o Costureiro e sua Grife: contribuição para uma teoria
da magia 113
Cl lI) - :JO(íA

Modos de Dominação 191

·~I. direitos reservados à

Di EDITORA ZOUK
~:
\\)1
C)
--.:.> r. garibaldi. 1329. bom fim.
90035.052. porto alegre. rs
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f. 51. 3024.7554 e 3012.0057

-2006-
 APRESENTAÇÃO

o livro A produção da crença: contrÍbuição para uma

economia dos bens simbólicos é o primeiro com textos de Pierre
Bourdieu, editado no Brasil, após sua morte, em Paris, no dia 23 de
janeiro deste ano (2002). Composto por três ensaios, escritos na
década de 70, e publicados na revista Aetes de la Recherche en SCÍences
Socíales, este livro reúne um dos melhores momentos da obra do
autor. São artigos que demonstram a sensibilidade e a originalidade
da sociologia de Bourdieu. Invocando clássicos da filosofia, da história,
eb antropologia e da economia, entre outras disciplinas, o autor
mostra, nesta coletânea, que para exercer seu ofício de cientista social
c' preciso articu lar conhecimentos interdisciplinares.
Atento leitor de Émile Durkheim, Marcel Mauss e Claude
Lévi-Strauss, Pierre Bourdieu registra, nestes artigos, a força da
academia francesa na ciência social contemporânea. Indo além das
contribuições desses clássicos, Bourdieu constrói ao longo de sua
experiência acadêmica uma nova forma de fazer sociologia.
Introduzindo temas, elegendo e legitimando como heurísticos novos
sujeitos de investigação ~ os costureiros, as grifes, as relações afetivas
e morais entre patrões e empregados, a criação e a consagração dos
bens culturais, etc. -, o autor apresenta-se como um representante
da heterodoxia, dentro de uma tradição intelectual. Só assin1 consegue
legitimar um vasto campo de investigação.
Relembrar o histórico de uma das primeiras publicações de
Pierre Bourdieu, no Brasil, há quase trinta anos, é um bom recurso
para explicitar os objetivos desta coletânea. Recuperar a conjuntura
que propiciou o lançamento do livro A Reprodução - elementospara
lima [corÍa do sistcma de ensino, em 1975, fornecerá pistas para
justificar a conveniência deste nosso empreendimento. Assim, seria

il I'rociuç'ilo d.l Crença

importante recordar que, ainda que o campo da Sociologia da Educação
(e disciplinas afins), no Brasil, estivesse em fase de consolidação, I
foi sensível à controvérsia sobre o caráter não democrático da escola,
dos currículos e sobretudo das práticas pedagógicas.
Não obstante, esse livro, escrito em parceria com Jean Claude
Passerron, foi introduzido aqui, nas Faculdades de Pedagogia, a partir
de um registro que não faz mais jus à obra deste autor. Pierre
Bourdieu passou a ser referência básica nas discussões relativas à
natureza conservadora do sistema de ensino. O mal-estar que a
denúncia desse livro causou teve uma repercussão bastante grande
entre educadores que marcam a história do pensamento educacional
no meio acadêmico brasileiro. Mesmo sendo reconhecido pela
originalidade de seu pensamento, mesmo tendo contribuído para
uma vasta tradição de estudos críticos e reflexivos sobre a escola,
aos poucos, sua obra foi sendo preterida em função de outros
referenciais. Enquanto Bourdieu ampliava o escopo temático de suas
pesquisas, o campo da Educação procurava alternativas teóricas à
sua produção na área. Não foram poucas as análises que consideraram
as contribuições de Bourdicu. No entanto, são em maior nlImero
aquelas que as deixaram de lado pois pouco ajudavam na prática de
uma educação para a democracia. 2
Diferente da alcunha de reprodutivista, considero importante
registrar que a originalidade do pensamento de Bourdieu consiste
precisamente em sua abordagem dialética do processo social. Para
ele, determinações materiais e simbólicas, numa complexa relação
de interdependência, agem sobre as estruturas sociais e psicológicas
dos agentes, em situações historicamente contextualizadas. A
sociologia de Bourdieu é mais que uma sociologia da reprodução, é
uma sociologia da produção dos conhecimentos e das práticas sociais.
Não obstante, foi a partir da década de 80, com a publicação
do livro Questões de SoâologÍa (1983) e do uso de duas coletâneas
de artigos do autor (Miceli, 1974, Ortiz, 1983),3 esforço empreendido
sobretudo por sociólogos, que Bourdieu passou a ser referência para
análises sócio-culturais mais amplas. Indo além das discussões
pjerre Bourdieu
relativas aos sistemas de ensino, Bourdieu pôde ser lido como
referência obrigatória nas análises relativas a outras esferas do mundo
social. Com uma capacidade crítica de longo alcance, respaldada por
uma legitimidade conquistada ao longo de uma trajetória premiada,
Pierre Bourdieu passou a ser lido, no Brasil, sobretudo como sociólogo
da cultura.
Os ensaios aqui publicados obedecem, pois, a um objetivo:
tornar acessível ao público brasileiro, principalmente aos educadores,
contribuições valiosas que ajudem a pensar a realidade da socialização
contemporânea a partir de conceitos originais. Pensamos na área da
educação, pois é a prática por excelência que difunde e legitima os
saberes culturais. É sabido que a família, a escola e mais recentemente
a mídia, cada uma à sua maneira, impõem, homeopaticamente, um
sistema integrado de referências e padrões identitários. A educação
inf:mtil, juvcnil e adulta está submersa numa realidade pluricultural
e faz-se necessário criar instrumentos para pensá-la.
A relevância desta publicação deriva também da ausência de
textos, no Brasil, onde o autor apresentasse na prática conceitos
chaves de sua obra. Violência simbólica, capital simbólico e capital
social (entre outros), desdobramentos dos recursos relati·:os ao capital
econômico e ao capital cultural, fazem parte do corpo conceitual de
uma teoria do pf(~)(esso social que muito pode nos auxiliar nas
pesquisas educacionais. Aliando sistematicamente a prática com a
teoria - muitos de seus conceitos foram forjados a partir de
inquietações empíricas - seria injusto com sua memória restringir
suas publicações a textos teóricos. O que já temos publicado sobre
eles são textos conceituais, essenciais, sem dúvida, mas que não
exploram o alcance prático de conceitos abstratos e pouco
mensuráveis. 4
É preciso ressaltar que nas praticas disciplinares, nos
conteúdos dos currículos, nos ditados populares, na música ou nos
programas de televisão, valores culturais são transmitidos. Como
instrumentos de comunicação e conhecimento, são responsáveis
também pela transmissão de um consenso a respeito do mundo social.
A Produção da Cren~'a

Buurdicu nos oferece aqui os instrumentos para estudar as maneiras
como os sentidos são mobilizados, nos auxilia a investigar como as
instâncias educativas - a família, a escola e a mídia - estruturam
uma forma de percepção dos sujeitos e suas ideologias.
Por exemplo, a partir do conceito de violência simbólica,
Bourdieu vai além da contribuição do pensamento clássico,
reintroduzindo a análise sobre o caráter político das instâncias de
socialização, produção e consagração cultural. Está aqui sem dúvida
a originalidade do conceito e sua importância ao explicitar as
articulações entre dominação cultural e dominação política. Segundo
o autor, a base por excelência do poder não deriva apenas da riqueza
material e cultural, mas da capacidade que estas têm em transformá-
lo em capital social e simbólico. Ou seja, põe em evidência um poder
sutil, uma forma desconhecida e oculta de outras formas de poder,
responsável pela manutenção da ordem. Na forma de crédito, o capital
simbólico é uma dádÍva atribuída àqueles que possuem legitimiebde
para impor categorias do pensamento e, portanto, uma vis~lo (l\-
mundo. Propriedade de poucos, o capital simbólico e o clpita\ suei:11
são recursos conquistados à custa de muito investinH'lllo, tempo,
dinheiro e disposição pessoal.
Articulando com maestria métodos e técnicas de pesquisa
aparentemente antagônicos - a estatística, própria das investigações
macro-sociológicas, e a observação de campo, própria das pesquisas
etnográficas - Bourdieu mostra aqui, como em vários outros
momentos, que para pensar o social é preciso ser um pouco artista,
um pouco ousado e, sobretudo, muito subversor. Afinal, a sociologia
é um esporte de combate. 5 É uma arma a favor do conhecimento, da
tomada de consciência e da transformação da ordem.
Saliento que, embora a análise sobre as instâncias de
consagração da cultura leve a uma visão pessimista da dinâmica da
reprodução da dominação, seria interessante considerar que para
Bourdieu todo conhecimento é uma forma de subversão. As
transformações políticas devem pressupor sempre urna subversão
cognitiva, uma transformação da visão de mundo naturalizada pelos
Pierre BourdÍeu
,
consensos. Para ele, só mudaremos a realidade social na medida cIll
que mudarmos a representação que temos dela. A ciência, como toda
prática educativa comprometida com a ordem democrática, deve servir
para desvendar as estratégias ocultas de dominação.
Para finalizar este argumento, gostaria de apontar algumas
questões a respeito da recepção dos discursos dominantes. Embora
seja possível apontar e analisar as características do processo de
produção do campo de consagração dos bens simbólicos, compreender
os mecanismos de apropriação das representações por ele veiculadas
remete a uma discussão mais ampla. Remete para a complexidade de
rc:ferências, conhecimentos e informações obtidos em outros espaços
produtores de cultura pelos sujeitos sociais. Bourdieu, nestes textos,
en focando a produção, nos fornece, em outros momentos, elememos
p~lra se pensa r a recepção di ferenciada das mensagens. li
/1 proclllÇJO di UCIJ,';I: cOf1rrÍblIÍção para lIma ecof1omÍa dos
he 'IJS siIllhej/icos, ensaio que d:i nome a esta coletânea, publicado em
1977, ofere~ce uma análise crítica sobre o processo de criação,
circulação e consagração dos bens culturais. Debruçando-se sobre 3
diversidade das categorias de percepção de críticos teatrais, a
diversidade dos estilos artísricos e/ou as diferentes estratégias de
comercialização editorial, Bourdieu explicita os conflitos internos
de cada espaço do social, a luta pela conquista de uma autoridade, as
estratégias de legitimação das "verdades". Afirmando que o princípio
da eficácia de todos os atos de consagração e legitimação está na
energia acumulada na história de cada campo, ajuda-nos a politizar a
esfera dos bens simbólicos. Desmistificando o caráter sagrado da
cultura, considera sua produção como resultado de um amplo
empreendimento de alquimia social, na qual colabora o conjunto
dos agentes envolvidos no campo da produção e circulação, ou seja,
artistas, escolas de pensamento, críticos, jornalistas, etc. Esse imenso
trabalho de promoção, divulgação e/ou publicidade produzido e
consumido por todos é o único capaz de anunCÍaro cn:ldor, consagrar
a autoridade da cdação. 7 Se não bastassem todas estas qualidades, é
..-1
,
possível acrescentar a atualidade deste ensaio. Ao desmascarar a magia
_ das estratégias de produção de sentido das instâncias de consagração
cultural- a escola e sobretudo agora a mídia -, a reflexão que ali se
encontra abre um espaço para a resistência aos produtos midiáticos.
O costureüo e sua grÍfe: contrÍbuição para uma teoria da
magia, escrito junto com Ivette Delsaut e publicado em 1975, é um
texto clássico e uma importante referência para o esclarecimento de
dois conceitos fundamentais de sua obra: campo e capital simbólico.
Bastante preso ainda às discussões com os estruturalistas, e talvez
como uma resposta a eles, o texto apresenta a dinâmica de
funcionamento de uma parte do espaço social - o campo da alta
costura -, as relações entre seus agentes, suas instâncias de
pertencimento, bem como suas tomadas de posição. É um texto que
evidencia a correspondência entre posição social e disposições
culturais. Em um segundo momento, tomando para a análise eSSl'
objeto de estudo pouco científico, os autores propõem disclIt ir, ;lt raVl'S
dos mecanismos de dominação simbólic;l da 1ll0d~l, a rorÇ~l da crença
coletiva. A partir deste argumento a prodllç~lo da grife lima
metáfora de outras mercadorias culturais, os autores denunciam o
exercício de uma violência simbólica, uma violência tênue e
desconhecida, que só existe na forma de dissimulação. O poder
simbólico é um poder invisível que só pode ser exercido com a
cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos
ou mesmo que o exercem.
Modos de dominaçãcf é um texto de início de carreira, em
que o autor reflete sobre a ambigüidade das relações pessoais e de
trabalho. Introdução a uma problemática cara a Bourdieu, trata
especificamente das relações arbitrárias do funcionamento das
formações sociais tradicionais ou capitalistas. Capital simbólico ou
poder simbólico são aqui apresentados como veículos desconhecidos
e desinteressados de acúmulo de riquezas e poder. As palavras
PÍerre BourdÍeu
desconhecimento e reconhecimento são reveladoras, pois aj udalll
nos a apreender o caráter ilusório, manipulador e por fim ideológico
das estratégias desinteressadas. Para ele, o poder simbólico não é
prerrogativa das sociedades pré-capitalistas; ao contrário, está
presente em todas as formações sociais, inclusive a contemporânea. 9
Propõe então fazer uma sociologia das trocas simbólicas, a única
capaz de apreender de maneira crítica, e na forma de denúncia, formas
de dominação que não usam a força física e brutal. A objetivação e
institucionalização dos mecanismos de dominação, como o sistema
jurídico, o sistema de ensino e o aparelho de Estado, são para o
autor formas eufemizadas, desconhecidas e legítimas, de dominação.
Nestes ensaios, Bourdieu explora sobretudo o caráter
arbitrário e mágico das representações coletivas. Preocupado em
compreender a lógica de funcionamento das relações sociais, as formas
de m;lnutenção das estruturas objetivas e subjetivas do social, torna-
se um mestre da investig;lção das formas de sociabilidade dos grupos.
Na realidade, todos os ensaios dialogam entre si. Não
precisam ser lidos na ordem da apresentação. São, antes de tudo,
momentos em que o autor registra sua concepção das relações sociais,
o jogo de forças e as oposições que estruturam a lógica das relações
entre os grupós. Analisando distintos objetos, os ensaios
demonstram a validade da homologia ou da correspondência entre as
hierarquias do campo da cultura e do campo das classes sociais. Para
os que já conhecem Bourdieu, esta coletânea representa uma referência
de uso prático de parte de seu corpo conceituaL Para os que ainda
não tiveram o prazer de sua leitura, estes ensaios certamente
encantarão por sua perspicácia.
la
Maria da Graça]acintho Setton
fevereiro de 2002
'rl
A Produçiío ó Crença
.. _ _- •....• _--_.- _.
 ,
•
Notas e Referências Bibliográficas f
(
1. Sociologia da Educação, disciplina clássica que analisa fatores extra-escolares no
desempenho e produtividade escolar, nesta época não fazia parte da grade curricular 4
dos cursos de Pedagogia.
2. Sobre a apropriação da obra de Bourdieu entre educadores, consultar CATANI,
Afrânio ec aI. Sociologia para educ.1dores, Rio de Janeiro, Quartel, 2001.
3. MICELI, Sergio (org.). A economia das uocas simbólicas. São Paulo, Perspectiva,
1974 e ORTIZ, Renato (org). Pierre Bourdieu, Coleção Grandes Cientistas Sociais.
São Paulo, Ed. Ática, 1983.
4. A este respeito procurar o livro Poder simbólico, Bertrand Brasil/Difei Portugal,
1989 e A economia das uocas lingüÍscicas - o que /alar quer dizer. Edusp, 1996.
S. Referência a uma entrevista de Pierre Bourdieu concedida ao jornalista Pierre
Carles. A entrevista chegou a passar no circuito de cinema alternativo francês e
posteriormente foi lançada em vídeo com o nome La sociologie esc un sport de
combac, 2001.
6. A este respeito, consultar BOURDIEU, Pierre. Un an moyen: les usages sociaux APRODUÇAO
de la phowgraphie. Paris, Les Éditions de Minuit, 1968 e "A escola conservadora:
as desigualdades frente à escola e à cultura" In: Escriws de Educaç§o. São Paulo,
Vozes, 1998 (org. Maria Alice Nogueira e Afrânio Catani).
DA CRENÇA
7. Ao utilizar palavras tais como, "anunciar", "criar" e "consagrar" es[()u chamando
atenção para o caráter mágico e arbitrário da crença com os quais flodcm se revestir
contribuição para uma economia
os discursos das "autoridades".
dos bens simbólicos l
s.É preciso esclarecer que existem dois textos do autor com o nome itfodos de
dominaç-;io. O primeiro foi publicado CUll10 capitulo, na primeira parte do livro Le
scns pratique, Les Éditions de 1vlinu;t, 1972; o segundo, publtcado na revista Aetes
de la Recherche en Sciences Sociales, em 1976, está sendo agora traduzido nesta
coletânea.
9. Ver Rocary C/ub: clubes de serviço ou clubes de capiral social e capital simbólico,
tese de doutoramento defendida na FFLCH-USp, 1996, em que trato especificamente
do processo de reconversão do capital econômico e capital culwral em capital social
e capital simbólico, a partir do estudo de uma prática de associativismo voluntário.
J O. Profa. Dra. da Faculdade de Educação da USP.

Piare Bourdieu
(

Uma vez mais, a paiavra empresááo me incomoda,

Sven Nielsen'

Em outra área, tenho a honra - para não dizer, o prazer - de pelder

dinheiro, ao encomendar a [radução dos dois voiumes monumencais sobre
Hemingway de Carlos Baker.
Robert Laffont 3

o comércio da arte - comércio das coisas de que não se faz

comércio - pertence à classe das práticas em que sobrevive a lógica
da cconomia pré-capitalista (à semelhança, em outro plano, da
economia das trocas entre as gerações) e que, funcionando como
se tratasse de denegações práticas, não conseguem fazer o que
fazcm a não scr procedendo corno se não o fizessem: desafiando a
lógica hahitual, essas duplas práticas prestam-se a duas leituras
opostas, mas igu:llmcnte f:llsas, que acabam desfazendo sua
dualidade e duplicidade essenciais, reduzindo-as, seja à denegação,
seja ao que é denegado, ao desinteresse ou ao interesse*, O desafio
desferido pelas economias fundadas na denegação do "econômico"
a toda a espécie de econornicismo reside precisamente no fato de
que elas só funcionam e, na prática - não somente nas
representações -, só podem funcionar mediante um recalcamento
constante e coletivo do interesse propriamente "econômico" e da
verdade das práticas desvendadas pela análise "econômica","

A Denegação da "Economia"

Neste cosmo econômico definido, em seu próprio

funcionamento, por uma recusa do comercial que, de fato, é uma
denegação coletiva dos interesses e ganhos comerciais, as
condutas mais "anti-econômicas", as mais desinteressadas
visivelmente, aquelas que, em um universo "econômico" habitual

, NT: No original, incérêc; em francês, significa também os juros obtidos em

aplicação financeira, A partir daqui, todas as notas de rodapé são do tradlltor. As
notas do autor vêm no final de cada ensaio.

11 Produção da Crença

seriam as mais condenadas sem o menor dó, conlêm urna forma
de racionalidade econômica (até mesmo, no sentido restrito) e,
de modo algum, excluem seus autores dos ganhos, inclusive
"econômicos", prometidos aos que se conformam à lei do
universo. Ou por outras palavras, ao lado da busca do lucro
"econômico" que, ao transformar o comércio dos bens culturais
em um comércio semelhante aos outros, e não dos mais rentáveis
"economicamente" (como nos é lembrado pelos mais experientes,
ou seja, os mais desÍntercssados dos comerciantes de arte), se
contenta em ajustar-se à demanda de uma clientela
antecipadamente convertida, existe lugar para a acumulaçiio do
capÍraJ sÍmbóJjco, como capital econômico ou político denegado,
irreconhecido e reconhecido - portanto, legítimo -, crédÍ{Q capaz
de garantir, sob certas condições e sempre a prazo, ganhos
"econômicos". Os produtores e vendedores de bens culturais,
empenhados em operações do tipo comercial, condenam-sl' a si
mesmos, e não somente de um ponto de vista ético ou eSll'lil:o,
porque privam-se das possibilidades oferecidas aqul'ks qUl', !'(1I
saberem reconhecer as exigências específicas elo universo, ou, se
quisermos, irreconhecer e fazer irreconhecer os inllTl'sses em
jogo em sua prática, utilizam os meios ele obter os ganhos do
desinteresse. Em suma, quando o único capital útil, eficiente, é
o capital irreconhecido, reconhecido, legílimo, a que se dá o nome
de "prestígio" ou "autoridade", neste caso, o capital econômico
pressuposto, quase sempre, pelos empreendimentos culturais
só pode garantir os ganhos específicos produzidos pelo campo -
e, ao mesmo tempo, os ganhos "econômicos" que eles sempre
implicam - se vier a converter-se em capital simbólico: a única
acumulação legítima, tanto para o autor quanto para o crítico,
tanto para o marchandde quadros quanto para o editor ou o diretor
de teatro, consiste em adquirir um nome, um nome conhecido e
reconhecido, capital de consagração que implica um poder de
consagrar, além de objetos (é o efeito de grife ou de assinatura)
ou pessoas (pela publicação, exposição, etc.), portanto, de dar
valor e obter benefícios desta operação.
o
('(
P/erre Bourd/cu
,
A denegação não é uma negação real do interesse
"econômico" que assombra continuamente as praticas mais
desÍnteressadas, nem uma simples dÍSsÍmulação dos aspectos
mercantis da prática, como chegaram a acreditar os observadores
mais atentos. O empreendimento econômico denegado do
marchand de quadros ou do editor, "banqueiros culturais" em quem
a arte e os negócios se encontram praticamente - o que os predispõe
a desempenhar o papel de bodes expiatórios -, só pode ser bem-
sucedido, até mesmo "economicamente", se não for orientado pelo
controle prático das leis de funcionamento do campo da produção
e circulação dos bens culturais, ou seja, por uma combinação
totalmente improvável - em todo caso, raramente bem-sucedida
, do realismo, que implica concessões mínimas às necessidades
"econômicas" denegadas e não negadas, com a convicção que as
exclui.' !'elo fato da denegação da economia não ser um simples
disfarce ideológico, nem um completo repúdio do interesse
econômico, é que, por um lado, novos produtores que têm como
único capital sua convicção podc'm impor-se ao mercado,
reivindicando valores em nome dos quais os dominantes
acumularam seu capital simbólico e, por outro, somente aqueles
que, entre eles, sabem acomodar-se às obrigações "econômicas"
inscritas na economia da má-fé poderão colher plenamente os
ganhos "econômicos" de seu capital simbólico.
Quem Cria o Criador?
A ideologia carismática que se encontra na própria origem
da crença professada no valor da obra de arte, portanto, do próprio
funcionamento do campo da produção e circulação dos bens
culturais, constitui, sem dúvida, o principal obstáculo a uma ciência
rigorosa da produção do valor de tais bens. Com efeito, é ela que
orienta o olhar em direção ao produwr aparente - pintor,
compositor, escritor - em poucas palavras, em direção ao autor,
impedindo o questionamento a respeito do que autoriza o autor,
/1 Produç.-Jo d:? CrL'{]~~3 r(
,
do que dá a autoridade de que o autor se autoriza. Se é por demais
evidente que o preço de um quadro não é determinado pela adição
dos elementos do custo de produção, matéria-prima, tempo de
trabalho do pintor, e se as obras de arte fornecem um exemplo
perfeito àqueles que pretendem refutar a teoria marxista do valor
trabalho (que, aliás, atribui à produção artística um estatuto de
exceção), é, talvez, porque se define mal a unidade de produção
ou, o que dá no mesmo, o processo da produção.
É possível formular a questão sob sua forma mais concreta
(sob a qual, às vezes, ela se apresenta aos agentes): Quem será o
verdadeiro produtor do valor da obra: o pintor ou o marchand, o
escritor ou o editor ou o diretor de teatro? A ideologia da criação,
que transforma o autor em princípio primeiro e último do valor da
obra, dissimula que o comerciante de arte (marchand de quadros,
editor, etc.) é aquele que explora o trabalho do crÍador fazendo
comércio do sagrado e, inseparavelmente, aquele que, colocando-
o no mercado, pela exposição, publicação ou encenação, C()flsap-a
o produto - caso contrário, este estaria votado a permanecer no
estado de recurso natural - que ele soube descobrir l' tanlo mais
fortemente quanto ele mesmo é mais consagrado." O comerciante
de arte não é somente aquele que outorga à obra um valor
comercial, colocando-a em relação com um certo mercado; não é
somente o representante, o empresário, que "defende, com se
diz, os autores que lhe agradam". Mas, é aquele que pode proclamar
o valor do autor que defende (cf. a ficção do catálogo ou do
comunicado destinado à imprensa) e, sobretudo, "empenhar, como
se diz, seu prestígio" em seu favor, awando como "banqueiro
simbólico" que oferece, como garantia, todo o capital simbólico
que acumulou (e, realmente, passível de ser perdido em caso de
erro).? Este investimento, cujos investimentos "econômicos"
correlatos não passam em si mesmos de uma garantia, é o que
leva o produtor a penetrar no ciclo da consagração. Penetra-se na
literatura não como se professa em uma ordem religiosa, mas como
se penetra em um clube seleto: o editor faz parte do número dos
pjerre Bourdjell
padrinhos prestigiosos (ao lado dos autores de prefácios, críticos,
etc.) que garantem os testemunhos obsequiosos de
reconhecimento. Ainda mais evidente é o papel do marchand que,
realmente, deve apresentar o pintor e sua obra a grupos sociais
cada vez mais seletos (exposições coletivas e/ou individuais,
coleções prestigiosas, museus) e introduzi-lo em locais raros e
cobiçados. No entan to, a lei do universo que pretende que um
investimento será tanto mais produtivo, do ponto de vista
simbólico, quanto menos for declarado, faz com que as ações de
valorização que, no mundo dos negócios, assumem a forma aberta
da publicidade, devem aqui eufemizar-se: o comerciante de arte
só pode servir sua "descoberta" se colocar a seu serviço toda a sua
convicção que exclui as manobras vilmente comerdais, as
manipulações e as pressões, em benefício das formas mais brandas
l' discretas das "relações públicas" (que, em si mesmas, são uma
forma altamente eufemizada da publicidade), recepções, reuniões
mundanas, confidências feitas da forma mais criteriosa possível.'
o Círculo da Crença
Mas, passando do criador ao descobrÍdor como criador do
criador, limitamo-nos a deslocar a questão inicial; neste caso,
restaria determinár de onde vem o poder de consagrar que é
reconhecido ao comerciante de arte. Ainda aqui, a resposta
carismática se oferece já pronta: os grandes marchands, os grandes
editores, são "descobridores" inspirados que, guiados por sua paixão
desinteressada e irrefletida por uma obra, "fizeram" o pintor ou o
escritor, ou então, permitiram-lhe que ele se fizesse, amparando-
o nos momentos difíceis, respaldados na fé que haviam colocado
nele, orientando-o com seus conselhos e livrando-o das
preocupações materiais. 9 Se pretendermos evitar o recuo, sem fim,
na cadeia das causas, talvez seja preciso cessar de pensar na lógica,
favorecida por toda a tradição, do "primeiro começo" que,
inevitavelmente, conduz à fé no criador. Não basta indicar, como
A Prodllçiío da Crença

se faz habitualmente, que o "descobridor" nunca descobre nada
que já não tenha sido descoberto, pelo menos, por alguns, ou seja,
pintores já conhecidos por um reduzido número de pintores ou
conhecedores, autores "apresentados" por outros autores (por
exemplo, sabe-se que os manuscritos que serão publicados quase
nunca chegam diretamente, mas quase sempre por meio de
intermediários reconhecidos). Sua autoridade é, por si só, um valor
fiduciário só existente não só na relação com o campo da produção
em seu conjunto, ou seja, com os pintores ou escritores que fazem
parte de sua escuderia - "um editor, conforme dizia um deles, é
seu catálogo" - e com aqueles que estão fora e gostariam ou não de
fazer parte dela, mas também na relação com os outros marchands
ou editores que manifestam mais ou menos claramente a cobiça
por seus autores e escritores, além de terem maior ou menor
capacidade para açambarcá-los; na relação com os críticos, que se
fiam em maior ou menor grau em seu julgamento, falam de seus
produtos com maior ou menor respeito; na relação com os clientes,
que têm uma percepção mais ou menos nítida de sua 111.1/'-.1 "
depositam nele um maior ou menor grau de cOllri;lIl~-;I. FsL1
autoridade não é outra coisa senão um cu:dito junto a UIll conjunlo
de agentes que constituem re!:Jrôes tanIa mais preciosas quanto
maior for o crédito de que eles próprios se beneficiam. É por demais
evidente que os críticos colaboram também com o comerciante de
arte no trabalho de consagração que faz a reputação e - pelo menos,
a prazo - o valor monetário das obras: ao "descobrirem" os "novos
talentos". eles orientam a escolha dos vendedores e compradores
por seus escritos ou conselhos (eles são, muitas vezes, leitores ou
diretores de coleções nas editoras ou autores de prefácios,
contratados pelas galerias), por seus vereditos que, apesar de
pretenderem ser puramente estéticos, são acompanhados por
consideráveis efeitos econômicos (júris). Entre aqueles que fazem
a obra de arte, convém contar, por último, com os clientes que
contribuem para fazer seu valor, apropriando-se dela materialmente
(os colecionadores) ou simbolicamente (espectadores, leitores),
Pú"rre Bourdieu
f
além de identificarem subjetiva ou objetivamente uma parcela de
seu valor com tais apropriações. Em suma, o que fãz as reputações
não é, como acreditam ingenuamente os Rastignacs* provincianos,
a "influência" de fulano ou sicrano, esta ou aquela instituição,
revista, publicação semanal, academia, cenáculo, marchand, editor,
nem sequer o conjunto do que, às vezes, se chama de
"personalidades do mundo das artes e das letras", mas o campo
da produção como sistema das relações objetivas entre esses
agentes ou instituições e espaço das lutas pelo monopólio do poder
de consagração em que, continuamente, se engendram o valor das
obras e a crença neste valor. lO
Fé e Má-Fé
o prinCipIO da eficácia de todos os atos de consagração
não e outro senão o próprio campo, lugar da energia social
acuIllulada, reproduzido com a ajuda dos agentes e instituições
através das lutas pelas quais eles tentam apropriar-se dela,
empenhando o que haviam adquirido de tal energia nas lutas
anteriores. O valor da obra de arte como tal - fundamento do valor
de qualquer obra particular - e a crença que lhe serve de
fundamento se engendram nas incessantes e inumeráveis lutas
travadas com a finalidade de fundamentar o valor desta ou daquela
obra particular, ou seja, não só na concorrência entre agentes
(autores, atores, escritores, críticos, encenadores, editores,
marchands, etc), cujos interesses (no sentido mais amplo) estão
associados a bens culturais diferentes - teatro burguês ou teatro
Ínte/eccual, pintura estabe/eáda e pintura de vanguarda, literatura
acadêmica e literatura avançada -, mas também nos conflitos entre
agentes que ocupam posições diferentes na produção dos produtos I'
da mesma espécie - pintores e marchands, autores e editores, ,.
, PersollJgem concebida por Honoré de Balzac (1799-1850), cuja primeira aparição
acontece no romance O pai Goáot. tipo de oportunista elegante.
f
escritores e críticos, etc.: com tais lutas que, apesar de nunca
estabelecerem uma oposição clara entre "o comercial" e o "não-
comercial", o desjnteresse e o ânjsmo, empenham quase sempre
o reconhecimento dos valores últimos de desjnteresse através da
denúncia dos comprometimentos mercantis ou das manobras
calculistas do adversário, é a denegação da economia que é colocada
no próprio âmago do campo, na própria origem de seu
funcionamento e mudança.
É assim que a dupla verdade da relação ambivalente entre
o pintor e o marchand, ou entre o escritor e o editor, nunca se
revela tão bem quanto nas crises em que se desvela a verdade
objetiva de cada uma das posições e da relação entre elas, ao mesmo
tempo que se reafirmam os valores que se encontram na origem
de seu encobrimento. Ninguém está mais bem colocado do que o
marchand de arte para conhecer os interesses dos fabricantes de
obras, as estratégias utilizadas por eles para defendê-las ou
dissimular as próprÍas estratégias. Se ele forma um anteparo
protetor entre o artista e o mercado, é também ele quem o liga ao
mercado e quem provoca, por sua própria existência, os
desvelamentos cruéis da verdade da prática artística: será que,
para impor seus interesses, não lhe basta encerrar o artista em
suas declarações públicas de desjntcresse? Basta escutá-lo para
descobrir que - salvo algumas ilustres exceções, como que feitas
para fazer lembrar o ideal - os pintores e escritores são
fundamentalmente interesseiros, calculistas, obcecados pelo
dinheiro e dispostos a fazer seja lá o que for para serem bem-
sucedidos. Quanto aos artistas, que nem sequer podem denunciar
a exploração de que são objeto sem confessarem suas motivações
interesseiras, são os que se encontram mais bem colocados para
descobrirem as estratégias dos comerciantes de arte, o sentido do
investimento rentável (economicamente) que orienta seus
investimentos estéticos e afetivos. Adversários cúmplices, os que
fabricam as obras de arte e aqueles que as comercializam se referem,
como se vê, à mesma lei que impõe a repressão de todas as
manifestações diretas do interesse pessoal - pelo menos, em sua
Pierre Bourdieu
forma abertamente "econômica" - e apresenta todas as aparências
da transcendência, embora ela não seja senão o produto da censura
cruzada que pesa, quase de forma igual, sobre cada um daqueles
que sobrecarregam todos os outros com seu peso.
Um mecanismo semelhante acaba transformando o artista
desconhecido, desprovido de crédito e credibilidade, em um artista
conhecido e reconhecido: a luta pela imposição da definição
dominante da arte, ou seja, pela imposição de um estilo, encarnado
por um produtor particular ou um grupo de produtores, faz da
obra de arte um valor, transformando-a em uma aposta, no âmago
do campo da produção e fora dele. Cada um poderá recusar a
pretensão de seus adversários de estabelecerem uma distinção
entre o que é arte e o que não o é, sem nunca questionarem, como
tal, essa pretensão originária: em nome da convicção de que existe
boa ou má pintura é que os concorrentes se excluem mutuamente
do campo da pintura, prodigalizando-lhe assim a aposta e o motor
sem o qual ele não poderia funcionar. E nada poderá dissimular
melhor a colusão objetiva que se encontra na origem do valor
propriamente artístico do que os antagonismos através dos quais
ele se realiza.
Sacrilégios Rituais
A estas análises, poder-se-iam opor as tentativas que se
multiplicaram por volta da década de 60, sobretudo, no domínio
da pintura, para quebrar o círculo da crença, se não fosse por demais
evidente que essas espécies de sacrilégios rituais, dessacralizações
ainda sacralizantes que se limitam sempre a escandalizar os crentes,
estão votados a serem, por sua vez, sacralizados, e a fundarem
uma nova crença. Estamos pensando em Manzoni com suas linhas
dentro de caixas, suas conservas de "merda de artista", seus
pedestais mágicos capazes de transformar em obra de arte as coisas
colocadas em cima deles, ou sua assinatura escrita em pessoas
vivas, convertidas assim em obras de arte; ou então, em Ben que
A Produção da Crt'nça

multiplica os "gestos" de provoc:1ção ou desdém, tais como a
exposição de um pedaço de papelão coberto com a menção
"exemplar único" ou de uma tela com a inscrição "tela de 45 cm
de comprimento". Paradoxalmente, nada é mais bem feito para
mostrar a lógica do funcionamento do campo artístico do que o
destino dessas tentativas - na aparência, radicais - de subversão:
pelo fato de aplicarem ao ato de criação artística uma intenção de
escárnio já anexada à tradição artística por Duchamp, elas são
imediatamente convertidas em "ações" artísticas, registradas como
tais e, assim, consagradas pelas instâncias de celebração. A arte
não pode deixar manifestar-se livremente a verdade sobre a arte
sem a ocultar, fazendo desse desvelamento uma manifestação
artística. E é significativo, ao contrário, que todas as tentativas
para colocar em questão o próprio campo da produção artística, a
lógica de seu funcionamento e as funções que ele desempenha,
pelas vias altamente sublimadas e ambíguas do discurso ou ebs
"ações" artísticas, como em Maciunas ou Flynt, sejam não menos
necessariamente votadas a serem condenadas, ati' mesmo, pelos
guardiães mais heterodoxos da ortodoxia arlísliCl porquc', ;lO
recusarem entrar no jogo e contestar a arte nas regras, ou seja,
artisticamente, seus autores questionam não uma forma de entrar
no jogo, mas o próprio jogo e a crença que lhe serve de
fundamento, única transgressão inexpiável.
o Irreconhecimento Coletivo
A eficácia quase mágica da assinatura não é outra coisa
senão o poder, reconhecido a alguns, de mobilizar a energia
simbólica produzida pelo funcionamento de todo o campo, ou seja,
a fé no jogo e lances produzidos pelo próprio jogo. Em matéria de
magia, como Mauss já havia observado com justeza, a questão não
é tanto saber quais são as propriedades específicas do mago, nem
sequer operações e representações mágicas, mas determinar os
fundamentos da crença coletiva ou, ainda melhor, do
Plerre Bourdieu
f
irreconhedmcnto coletivo, coletivamente produzido e mantido,
que se encontra na origem do poder do qual o mago se apropria:
se é "impossível compreender a magia sem o grupo mágico" é
porque o poder do mago, cuja assinatura ou grife miraculosa não é
senão uma manifestação exemplar, é uma impostura bem
fundamentada, um abuso de poder legítimo, coletivamente
irreconhecido, portanto, reconhecido. O artista que, ao escrever
seu nome em um ready-ma de, produz um objeto, cujo preço de
mercado não tem qualquer relação com seu custo de produção é
coletivamente incumbido da execução de um ato mágico que nada
seria sem toda a tradição da qual seu gesto é o coroamento, sem o
universo dos celebrantes e crentes que lhe dão sentido e valor por
referência a essa tradição. É inútil procurar fora do campo, ou seja,
no sistema de relações objetivas que o constituem, nas lutas das
quais ele constitui o lugar, e na forma específica de energia ou de
capital que nele se engendra, o princípio do poder "criador", essa
espi'cie de Illana ou carisma inefável, celebrado pela tradição.
Como se vi::, i, verdadeiro e, ao mesmo tempo, falso, dizer
que o valor mercantil da obra de arte não tem qualquer relação
com seu custo de produção: verdadeiro, se levarmos em
consideração somente a fabricação do objeto material, da qual o
único responsável é o artista; mas, falso, se entendermos a
produção da obra de arte como objeto sagrado e consagrado, produto
de um imenso empreendimento de alquimia sodal na qual colabora,
com a mesma convicção e com benefícios bastante desiguais, o
conjunto dos agentes envolvidos no campo da produção, ou seja,
tanto os artistas e os escritores obscuros quanto os mestres
consagrados, tamo os críticos e os editores quanto os autores, tanto
os clientes entusiastas quanto os vendedores convencidos. Trata-
se de contribuições, incluindo as mais obscuras, ignoradas pelo
materialismo parcial do economicismo; no entanto, basta levá-las ) ;
em consideração para verificar que a produção da obra de arte, ou I
seja, do artista, não é uma exceção à lei da conservação da energia
I,
social. 11
 Dominantes e Pretendentes
Pelo fato de que os campos da produção de bens culturais
são universos de crença que só podem funcionar na medida em
que conseguem produzir, inseparavelmente, produtos e a
necessidade desses produtos por meio de práticas que são a
denegação das práticas habituais da "economia", as lutas que se
desenrolam aí são conflitos decisivos que comprometem
completamente a relação com a "economia": aqueles que acreditam
nisso e que, tendo como único capital sua fé nos princípios da
economia da má-fé, pregam o retorno às fontes, a renúncia absoluta
e intransigente dos começos, englobam na mesma condenação
tanto os vendilhões do templo que introduzem determinadas
pratIcas e interesses comeráais no terreno da fé e do sagrado,
quanto os fariseus que tiram benefícios temporais do capital de
consagração acumulado mediante a submissão exemplar às
exigências do campo. É assim que a lei fundamental do campo se
encontra, incessantemente, lembrada e reafirmada pelos novos
pretendentes que têm o maior interesse pela dcncgação do
in teresse.
A oposição entre o comercial e o "não comercial" encontra-
se por toda parte: ela é o princípio gerador da maior parte dos
julgamentos que, em matéria de teatro, cinema, pintura, literatura,
pretendem estabelecer a fronteira entre o que é arte e o que não o
é, ou seja, praticamente entre a arte burguesa e a arte intelectual,
entre a arte tradjeional e a arte de vanguarda, entre a rive droite e a
rive gauche* .12 Se esta oposição pode ter um conteúdo
substancialmente desigual e designar realidades bastante diferentes
segundo os campos, no entanto, permanece estruturalmente
invariante em campos diferentes e, no mesmo campo, em momentos
• Rive droite, rive gauche (literalmente: "margem direita", "margem esquerda"),
entenda-se do rio Sena ao atravessar Paris: a rive gauche é considerada o centro
cultural da cidade.
Pierre Bourdieu
diferentes. Ela estabelece-se sempre entre a produção restrita e a
grande produção (o comercial), ou seja, entre o primado atribuído à
produção e ao campo dos produtores ou, até mesmo, ao subcampo
dos produtores para produtores, e o primado atribuído à difusão, ao
público, à venda, ao sucesso avaliado pela tiragem; ou ainda, entre
o sucesso diferido e duradouro dos clássicos e o sucesso imediato e
temporário dos best-sellers, ou, por último, entre uma produção
que, fundada na denegação da "economia" e do lucro (portanto, da
tiragem, etc.), ignora ou desafia as expectativas do público
constituído e não pode ter outra demanda senão aquela que ela
mesma produz, embora a prazo, e uma produção que garante seu
sucesso e o lucro correlato, ajustando-se a uma demanda
preexistente. As características do empreendimento comercial e as
caracleríslicas do empreendimento cultural, como relação mais ou
menos dencgada ao empreendimento comercial, são indissociáveis.
As difercnças na relação com a "economia" e com o público formam
urna só coisa com as diferenças oficialmente reconhecidas e
idenlificadas pelas taxinomias vigentes no campo: assim, a oposição
entre a arte "verdadeira" e a arte comercial abrange a oposição entre
os simples empresários que procuram o lucro econômico imediato
e os empresários culturais que lutam para acumular um lucro
propriamente cultural, nem que fosse mediante à renúncia
provisória ao lucro econômico; quanto à oposição que é estabelecida
por estes últimos entre a arte consagrada e a arte de vanguarda ou,
se quisermos, entre ortodoxia e heresia, ela faz a distinção entre
aqueles que dominam o campo da produção e o mercado pelo capital
econômico e simbólico que eles haviam conseguido acumular no
decorrer das lutas anteriores, graças à uma combinação
particularmente bem-sucedida das capacidades contraditórias
especificamente exigidas pela lei do campo, e os novos pretendentes
que não podem, nem pretendem ter clientes diferentes dos de
seus concorrentes, ou seja, produtores estabelecidos, cujo crédito
fica ameaçado ao adotarem a prática de impor produtos novos ou
recém-chegados com quem rivalizam em busca de novidade.
A Produção da Crença

A posição na estrutura das relações de força,
inseparavelmente econômicas e simbólicas, que definem o campo
da produção, ou seja, na estrutura da distribuição do capital
específico (e do capital econômico correlato) orienta, por interm~dio
de uma avaliação prática ou consciente das oportunidades objetivas
de lucro, as características dos agentes ou instituições, assim como
as estratégias que eles acionam na luta que os opõe. Do lado dos
dominantes, todas as estratégias, essencialmente defensivas, visam
conservar a posição ocupada, portanto, perpetuar o status quo, ao
manter e fazer durar os princípios que servem de fundamento à
dominação. O mundo sendo o que deve ser, já que os dominantes
dominam e eles são o que devem ser para dominar, ou seja, o
dever-ser realizado, a excelência consiste em ser o que se é, sem
ostentação nem empáfia, além de manifestar a imensidade de seus
recursos pela economia de meios, recusar as estratégias chamativas
de distinção e a busca do efeito pelas quais os pretendentes traem
sua pretensão. Os dominantes têm compromisso com o silé'ncio,
discrição, segredo, reserva; quanto ao discurso ortodoxo, sl'Illprc
extorquido pelos questionamentos dos novos prc[cllden [l'S e
imposto pelas necessidades da retificação, não p~lssa nlInca da
afirmação explícita das evidências primeiras que são patentes e se
portam melhor sem falar delas. Os prohiL'lllas sociaÍs são relações
sociais: eles se definem no enfrentamento entre dois grupos, dois
sistemas de interesses e de teses antagonistas; na relação que os
constitui, a iniciativa da luta, os próprios terrenos em que esta se
trava, incumbe aos pretendentes a quebra da doxa, o rompimento
do silêncio e o questionamento (no verdadeiro sentido) das
evidências da existência sem problemas dos dominantes. Quanto
aos dominados, estes só terão possibilidades de se impor no
mercado através de estratégias de subversão que não poderão
prodigalizar, a prazo, os ganhos denegados a não ser com a condição
de derrubarem a hierarquia do campo sem contrariarem os
princípios que lhe servem de fundamento. Assim, são condenados
a promoverem revoluções parciais que deslocam as censuras e
transgridem as convenções, mas em nome dos próprios princípios
Pierre Bourdieu
,
rei\indicados por elas. É a razão pela qual a estratégia por excelência
é o rerorno às fontes que se encontra na origem de todas as
sub',ersões heréticas e de todas as revoluções letradas porque
permite voltar contra os dominantes as armas em nome das quais
eles haviam imposto sua dominação e, em particular, a ascese, a
audicia, o ardor, o rigorismo e o desinteresse. A supervalorização,
sempre um tanto agressiva, da exigência que pretende fazer lembrar
aos dominantes o respeito pela lei fundamental do universo - a
denegação da "economia" -, só poderá ser bem-sucedida se (
]:
conseguir confirmar, de forma exemplar, a sinceridade da
denegação.
Pelo fato de que elas se apOlam em uma relação com a
cultura que é, inseparavelmente, uma relação com a "economia" e
com o mercado, as instituições da produção e difusão de bens
! ,
culturais, tanto el11 pintura quanto no teatro, tanto em literatJra
quanto no cinema, tendem a organizar-se em sistemas que, entre
si, 5;10 homólogos de forma estrutural e funcional, além de
manterem uma relação de homologia estrutural com o campo das
fracôes ela classe dominante (na qual é recrutada a maior parte de
sua clientela). No caso do teatro, a homologia entre o campo das
in5:incia5 da produção e o campo das frações da classe dominante
é mais evidente. A oposição entre "teatro burguês" e "teatro de I
vanguarda", de que se encontra o equivalente em pintura ou em
literatura e funciona como um princípio de divisão que permite
classificar praticamente os autores, obras, estilos e temas, é fundada
na realidade: verifica-se tanto nas características sociais do público
dos diferentes teatros parisienses (faixa etária, profissão, domicílio,
freq üência da prática, preço desejado, etc.), quanto nas
características, perfeitamente congruentes, dos autores
rep~esentados (faixa etária, origem social, domicílio, estilo de vida,
etc.), das obras e das próprias empresas teatrais.
É, com efeito, simultaneamente sob todos esses aspectos
que o "teatro de pesquisa" se opõe ao "teatro de bulevar": por
um lado, os grandes teatros subvencionados (Odéofl, Théâtre de
i'Esr p:zrisicn, Théâtre NatÍonaJ PopuJilÍre) e os poucos pequenos
teatros da rive g:llIche ( VÍeux CoJombier, !vfofltpamasse, Gaston
,
Baty, etc.),13 empresas que, do ponto de vista econômico e
cultural, correm riscos, sempre ameaçadas de falência, e que
propõem, a preços relativamente reduzidos, espetáculos em
ruptura com as convenções (no conteúdo e/ou na encenação) e
destinados a um público jovem e Íntelectual (estudantes,
intelectuais, professores); por outro lado, os teatros burgueses
(ou seja, por ordem de saturação crescente em propriedades
pertinentes: Cymnase, Théâtre de ParÍs, AnwÍne,
Ambassadeurs, AmbÍgu, MÍChodÍf~re, VarÍétés) , empresas ;lUl;lPOW

comerciais comuns, preocupadas com a rentabilidade econômica

S.rn;lpBSSBq wv
são impingidas a utilizar estratégias culturais de extrema
prudência, que não correm riscos e evitam que seus clientes
venham a corrê-los, propondo espetáculos - já representados
(adaptações de peças inglesas ou americanas, reapresentações ü'"
'"
u
de c1ássÍcos do bulevar) ou concebidos segundo receitas seguras Ü
<li

e confirmadas - a um público adulto, burguês (executivos,

nâlqUlV
membros das profissões liberais e diretores de empresas),
disposto a pagar preços elevados para assistirem a um espetáculo
de simples diversão que obedece, tanto em seus meios quanto
em sua encenação, aos cânones de urna eSll-lica imutável dULlnle
os últimos cem anos. ll Situados entre o "teatro pobre", no sentido ,\)ES D ;lSSBU1BC!jUOW

econômico e estético, que se dirige às frações da classe dominante

l;lrqUloloJ xn;llA
mais ricas em capital cultural e mais pobres em capital econômico,
e o teatro rico, que se dirige às frações mais ricas em capital
(J)

econômico e mais pobres, relativamente, em capital cultural, os O

'U
teatros clássicos (ComédÍe françaÍse, Atelier) , que fazem troca CI:J
de espectadores com todos os teatros,15 constituem recintos v
...... dNl
C
neutros, cujo público é oriundo, quase de uma forma igual, de v
d31 ><
todas as frações da classe dominante, e propõem programas
neutros ou ecléticos, "bulevar de vanguarda" (segundo as palavras
de um crítico de La CraÍr) , cujo principal representante seria
Jean Anouilh, ou vanguarda consagrada 16

* Fundado em 1883, pelos assuncionistas, este jornal cotidiano publicado em

°
Paris, é principal órgão da imprensa católica. '

'n
Pierre Bourdieu .4 Produção da Crença M
 f

I-Lí cinqüenta anos, a CalerÍe DrOUdI1[,

'i

... Teatros de bulcvar • Te,,-:,:-os neutros

I. Marigny
2. Ambassadeurs. P. Cardin
1 ~t~b~~2ihamps Elysées
3. 347
3. lvladeleine 4. .\1ogador
~:
4. Charles de Rochefcrt
5. Michel Xfelf:r
7. ç:9mép)e Française
6. Mathurins 8. ",otheatre
7. Européen 9. Ih. du CMtelet
8. Athénée. Comédie Caumartin. Edouard VII lO. Th. de la ViIle

\ 9. Capucines 11. Récamier

IO.Daunou 12 .."cc AIIiance Française
11. Palais Roval
12. Michodiere
ft ~l~~~la~~asse
15.0uestParisien
13. Bouffes Parisiens
Galcrie 14. Th. de Paris. Théâtre modem e
15. Oeuvre
D T::?:ros intelectuais
I. T~rtre
16. Fontaine ~: t.l.~résent la ViIlette
Drouant 17. La Bruy"re. St Georges
18. Variétés
4.
5.
'.~ouffetard
;-;"chetre
6 5: andré des Arts
19. Nouveautés 7 C-déon
20. GYTImase 8. Ferir Odéon
21. Antoine 9. Ciré internationale
22. Renaissance 10. Poche montparnasse
23. Porte St Mactin li Drsay
12. \!écanique
24. Cyrano 13. T.N.P.
situada na rue du fáubourg Sajnc-Honoré, no 8' bairro de Paris, participa, por sua 25. Gaité Montparnasse
26. Le Luccrnaire
atividade, do prestígio universal desta artéria mundialmente conhecida. 27. Comédie Cham?5 Elysées

A Produção da Crença
,
RÍve droÍte e rÍve gauche
o fato de que as posições e as oposições constitutivas
dos diferentes campos se manifestam, muitas vezes, no espaço,
não nos deve induzir ao erro: o espaço físico não passa do suporte
vazio das propriedades sociais dos agentes e instituições que,
estando distribuídos por essa superfície, transformam-na em um
espaço social, socialmente hierarquizado: em uma sociedade
dividida em classes, qualquer distribuição particular no espaço
encontra-se socialmente qualificada por sua relação com a
distribuição no espaço das classes e frações de classe, assim como
de suas propriedades, terras, casas, etc. (o espaço social). Pelo
fato de que a distribuição dos agentes e instituições ligados às
diferentes posições constitutivas de um campo particular não é
aleatória, os ocupantes das posições dominantes nos diferentes
campos que tendem a orientar-se em direção a posições
dominantes (ou seja, ocupadas pelos dominantes) do espaço
social, as distribuições espaciais dos diferentes campos tendem
a sobrepor-se, como é o caso em Paris com a oposição, válida
praticamente para todos os campos (com exceção das editoras,
reagrupadas na úve gauche), entre a úve droirc e a riVe' g.wchc.
Estaríamos impedidos de compreender as propriedades mais
específicas da concentração no espaço das lojas de luxo (a me
du fallbourg Sainr-Honoré e a me Royalc ou, em Nova York,
Madison Avenue e Fjfrh Avenue) , se não observássemos, por
um lado, que as diferentes classes de agentes e instituições que
as constituem (por exemplo, os antiquários ou as galerias)
ocupam posições homólogas em campos diferentes e, por outro,
que o mercado com base local constituído pelo reagrupamento
dessas instituições oferece o conjunto dos bens (no caso
particular, o conjunto dos símbolos distintivos da classe)
correspondentes a um sistema de preferências. Em suma, a
representação cartográfica da distribuição no espaço de uma classe
de agentes e instituições constitui uma técnica de objetivação
bastante poderosa com a condição de que se saiba ler na planta
(da página 37) a relação construída entre a estrutura do sistema
das posições constitutivas do espaço de um campo e a estrutura
do espaço social, por sua vez, definido pela relação entre bens
distribuídos no espaço e agentes definidos por capacidades
desiguais de apropriação de tais bens. '
00
M pjerre Bourdjeu
No caso dos teatros e galerias, é que a distribuição no
espaço se aproxima de forma mais visível da distribuição no campo;
à semelhança dos editores, todos concentrados na Tive gauche
(com oposições, porém, entre o 6" bairro, mais inre1ecrual, e o 5°,
mais escolar), os órgãos de imprensa escapam à polarização pelo
fato de sua concentração no mesmo bairro (Bonne Nouvel1e), mas
observa-se que aqueles que estão implantados fora dessa zona
não se distribuem ao acaso: é assim que no 16" e 8° bairros se
encontram, sobretudo, os semanários especializados em economia
(L'Expansion, Les Échos) ou jornais de direita, enquanto nos
bairros periféricos do norte de Paris encontram-se, de preferência,
órgãos de imprensa de esquerda ou extrema-esquerda (Sécollrs
ROllge, La Pensée, NOllvelle Revlle Socialisre, etc.) e, na Tive
gallchc, os semanários e revistas inrelecruais. Quanto às lojas de
luxo, estas concentram-se em uma área bastante restrita em torno
da rue dll [/llbOllrg Sainr-Honoré, que reagrupa todas as instituições
que ocupam a posição dominante em seus respectivos campos
(unicamente na rue dll [wbollrg Sainr-HoJloré, é possível recensear
9 estabelecimentos de alta costura, 19 salões de cabeleireiro de
alto nível, 19 alfaiatarias e camiseiros, 37 institutos de beleza, 14
lojas de peles, 15 lojas de botas, 11 selarias e marroquinarias, 9
joalharias e ourivesarias, 28 antiquários, 25 galerias e marchands
de quadros, 17 decoradores, 13 artistas, 3 escolas de estética, 5
editores de luxo e de publicidade, 2 lojas de aluguel de material
de recepção, um banquete,iro, 2 salas de concerto, 2 escolas e
clubes de equitação, etc.). E, portanto, somente na relação com o
conjunto dos estabelecimentos de cada uma das categorias de
comércio que se pode compreender a simbólica da distinção que,
especificamente, caracteriza tais instituições: referência à unicidade
ou exclusividade da criação ("criador", "criador exclusivo", etc.) ,
muitas vezes, marcada pela evocação analógica da obra de arte ou
do criador artístico, afetação gráfica das tabuletas, invocação da
tradição (letras góticas, data da fundação da casa, "de pai para
filho", etc.), nomes nobres, uso de palavras e expressões inglesas,
tais como a inversão (o francês desempenhando o mesmo papel
em Nova York), emprego de parelhas nobres, muitas vezes,
tomadas de empréstimo ao inglês - hair-dresser ou salão de
cabeleireiro de alto nível (para dizer, salão de cabeleireiro); corte
sryling ou alta costura; shirrmarker (para dizer camiseira);
fabricante de botas; galeria (para dizer antiquário); butique (para
dizer loja); decorador (para dizer comerciante de móveis), etc.
A Produção da Crença

Jogo de Espelhos
Esta estrutura não data de hoje: quando Françoise Dorin,
em Le Tournant*, um dos grandes sucessos do teatro de bulevar,
coloca um autor de vanguarda nas situações mais típicas do
vaudeville**, ela limita-se a encontrar - as mesmas causas
produzindo os mesmos efeitos - as estratégias que, desde 1836,
Scribe utilizava, em La Camaraderie***, contra Delacroix, Hugo e
Berlioz: com efeito, para tranqüilizar o bom público contra as
audácias e extravagâncias dos românticos, ele denunciava Oscar
Rigaut, célebre por sua poesia fúnebre, como um bonacheirão, em
suma, um homem como os outros, sem nenhuma condição para
apelidar os burgueses de épiciers****Y
Espécie de teste sociológico, a peça de Françoise Dorin,
que encena a tentativa de um autor de bulf'var para se converter
em autor de vanguarda, permite observar de que maneira a oposição
- que estrutura todo o espaço da produção cultural- funciona nas
mentes, sob a forma de sistemas de classificação e de categorias
de percepção, e, ao mesmo tempo, na oiJjetiviciac!c, através dos
mecanismos que produzem as oposições complementares entre
os autores e seus teatros, entre os críticos e seus jornais. É possívc1
extrair da própria peça os retratos contrastantes dos dois teatros:
por um lado, a clareza l ' e a habilidade técnica,19 a alegria, a leveza 2ü
e a desenvoltura,21 qualidades "bem francesas"; por outro, a
"pretensão camuflada sob um despojamento ostensivo",22 "o blefe
da apresentação",23 a seriedade, a ausência de humor e a falsa
gravidade,H a tristeza do discurso e dos cenários ("por melhor
* DOR[N, F. Le Toumant [A virada), Paris, Jul!iard, 1973.
** Comédia ligeira e divertida, de enredo fértil em Intrigas e maquinações, que
combina pantomima, dança e/ou canções.
*** Litera[mente, "sociedade de elogio mútuo". Eugêne Scribe (179[-1861), autor
teatral francês, membro da Academia Francesa; seus vaudevilles são Inspirados
nos conflitos sociais e morais da burguesia de seu tempo.
**** Literalmente, "comerciantes de especIarias" e, por extensão, proprietários de
mercearIa; em sentido pejorativo, trata-se de pessoas com espírito acanhado, cujas
idéIas não se elevam acima de seu negócio.
o -t
P/CITe !3ourdieu
,
que seja a fala, a cortina preta da boca de cena e o andaime ajudam
a criar o clima"25). Em suma, autores, peças, ailrmações, palavras
que são e pretendem ser "corajosamente leves", joviais, alegres,
vivas, sem problemas, como-na-vida, por oposição a "pensativas",
ou seja, tristes, enfadonhas, com problemas e obscuras. "Nossa
bunda era alegre, enquanto a deles era pensativa".26 Oposição
incontornável já que estabelece a separação entre intelectuais e
burgueses, inclusive nos próprios interesses que, da forma mais
manifesta, têm em comum. Todos os contrastes que Françoise Dorin
e os críticos burgueses acionam em seus julgamentos sobre o teatro
(sob a forma de oposições entre a "cortina preta da boca de cena"
e o "belo cenário", "as paredes bem iluminadas, bem decoradas",
assim como "os comediantes bem limpos, bem vestidos") e, de
forma mais geral, em toda a sua visão do mundo, encontram-se
condensados na oposição entre a "vida sombria"* e a "vida
prazerosa"; aliás, veremos que tal visão encontra seu fundamento
em duas maneiras bastante diferentes de denegar o mundo
s()ci.li. 2~'
Seríamos tentados a imputar, às regras da caricatura cômica,
a grosseria das oposiçôes utili=adas e a transparente ingenuidade
das estratéaias
b
acionadas, se n5.o encontrássemos no decorrer das
páginas o equivalente no discurso mais comum dos críticos bem-
educados: assim, tendo sido obrigado, excepcionalmente, a elogiar
um grupo teatral de vanguarda (Théâtre de l'Est parisien), Jean-
Jacques Gautier mobiliza o conjunto das oposições que organizam
a peça de Françoise Dorin: "É raro que um espetáculo montado
por um jovem animador, que trabalha em um centro cultural,
tenha este frescor, esta jovialidade. É raro ver alguém no início
de sua carreira deixar a linha fúnebre para se dirigir
deliberadamente em direção à alegria. De costume, o bom gosto
e o zelo servem um ideal que pranteia e chafurda no miserabilismo,
caro à esquerda de luxo. Aqui, pelo contrário, tudo é acionado
* No ori~inal v/e en no/r, literalmente, "vida no breu"; assinale-se que a cortina da
Doca de ~ena 'é noir, ou seja, preta. Ainda vale referir a frase seguInte: "vie en rose',
literalmente, "vida cor-de-rosa".
I
,
para homenagear a alegria de viver e engendrar o bom humor".2R
A seqüência do artigo permite constituir a série completa das
palavras-chave da estética "burguesa": jovialidade, alegria de viver,
bom humor, assim como, verve, animação, vivacidade,
engenhosidade ("espirituoso"), movimen to ("movimentado"),
ousadia, harmonia ("figurinos de linha harmoniosa"), cores ("cores
bem escolhidas"), sentido do equilíbrio, ausência de pretensão,
naturalidade, delicadeza, honestidade, graça, destreza, inteligência,
tato, vida, riso. Foi necessário à ComédÍe françaÍse um Cyrano de
Bergerac para que a axiomática do gosto burguês pudesse exprimir-
se sem segundas intenções: "admirável técnica", "engraçado",
"alegre", "encanto das palavras", "festa para os olhos, ouvidos e
coração", "jubilação", "enxurrada de invenções e achados", "pedaço
de alegria", "fastuosos acordos", "elegância cintilante", "ação
dinâmica", "ardor", "pureza", "frescor", "brilhante encenação",
"alegria e equilíbrio dos fastuosos cenários e adoráveis figurinos".
E como seria possível deixar de citar o hino final ao ideal realizado
do teatro burguês: "Trata-se de um festim de altivez, uma exibição
de talento, um festival de ardor, um balé de flamas romanescas,
um jato contínuo de alegria e fantasia, um fogo de artifício de
sagacidade, um arco-íris de bom gosto, um leque de verve, uma
fanfarra de cores, um encantamento lírico, um terno milagre em
que caracola e vibra a boa disposição da juventude de todos os
tempos"?29
As mesmas categorias de percepção e apreciação, embora
conduzindo a um veredicto negativo, estão em ação em um artigo -
escrito por outro crítico, Maurice Rapin, do mesmo jornal
cotidiano - sobre o Tartllffe, encenado por Planchon: "É difícil
mostrar, em um só espetáculo, um grau mais elevado de pretensão,
mau gosto e incompetência. Pretender ser original a qualquer preço
é uma tentação perigosa. Ao fazer tal exercício às custas de Marlowe
ou Brecht, trata-se ainda assim de um inconveniente sem
gravidade; no entanto, quando a vítima é MQliere, não seria possível
esperar a menor indulgência".30 Tudo o que a estética burguesa
pjerre Bourdúêu
detesta no "teatro de H.L.M. *" (Maurice Rapin fala de "Tartllffe
de H.L.M."), bom para pequeno-burgueses do subúrbio (a peça
de Vancovitz - sÍc - ou seja, o autor de vanguarda caricaturado por
Françoise Dorin, representava-se "em um galpão do Sudoeste
parisiense"3l) é a pretensão (estigmatizada também por Françoise
Dorin e Jean-Jacques Gautier), palavra-mestra do menosprezo
burguês em relação à "lentidão crispada" e "penosa afetação" da
profundidade ou originalidade, diametralmente opostas à
naturalidade e discrição de uma arte confiante de seus meios e
fins. 32
Colocados diante de um objeto tão claramente organizado
segundo a oposição canônica, os críticos - por sua vez, distribuídos
no espaço da imprensa, segundo a estrutura que se encontra na
origem do objeto classificado e do sistema de classificação que
eles aplicam - reproduzem, no espaço dos julgamentos pelos quais
eles o classificam e se classificam, o espaço no qual eles próprios
são classificados (círculo perfeito do qual só é possível sair,
objetivando-o). Dito por outras palavras, os diferentes julgamentos
proferidos sobre Le Toumant variam, em seu conteúdo e forma.
segundo o órgão de imprensa no qual eles se exprimem, ou seja,
desde a maior distância do crítico e de seu público ao mundo
intelectual até a major distância à peça de Françoise Dorin e a seu
público burguês e a menor distância ao mundo intelectual. 33
o Jogo da Homologia
As insensíveis evoluções do sentido e do estilo que, de
L'Aurore a Le FÍgaro e de Le FÍgaro a L'Express, conduzem ao
discurso neutro do Le Monde e, daí, ao silêncio (eloqüente) de Le
Nouvel Observateur, só se compreendem verdadeiramente se
* Sigla de Habjtatjon a Loyer Moderé, literalmente, "habitação com aluguel
moderado": organismo público destinado a ajudar as famílias de baixa renda a
encontrar uma moradia.
A Produçiío da Crenp
 f

soubermos que elas acompanham uma elevação contínua do nível ','j

(;
o
de instrução dos leitores (que constitui - aqui, como alhures - um u

bom indicador do nível de difusão ou oferta das mensagens

correspondentes), assim corno um aumento da representação das
frações, executivos do setor público e professores, que, por lerem
V
::l
mais em relação ao conjunto, se distinguem sobretudo de todas as O"
o
outras por uma taxa de leitura, particubrmente, elevada dos jornais ,"u-
que apresentam um nível mais elevado de difusão (Le Monde e
"6
';<
o
Le Nouvel Observa teur); e, inversamente, uma diminuição da Oi
"
representação das frações, grandes comerciantes e industriais, que, "6
::l
por lerem menos em relação ao conjunto, se distinguem sobretudo
por uma taxa de leitura relativamente elevada dos jornais com
nível mais baixo de difusão (France-SoÍr, LJAurare). O mesmo é
o
dizer, de forma mais simples, que o espaço dos discursos reproduz,
em sua ordem própria, o espaço dos órgãos de imprensa e dos
públicos para os quais são produzidos com, em unLl das
extremidades deste campo, os grandes comerciantcs c os
industriais (France-SoÍr e LJAurore) , e, na outra, os ('x('clIlivos di) ü
-;

setor público e os professores (/e Mond(' c /e NOII~'('1

.~

Observateur);l4 por sua vez, as posi(;ôcs Cl'nlLlis l'SLio ocupadas ,~ ,~

c: ~
pelos executivos do setor privado, cngcniIL'iros c mcmbros das
profissões liberais, e, em rclação aos órgãos de imprensa, Le FÍgara
S ~
CJ~
Cf) u

e, sobretudo, L'Exprcss quc, lido praticamente de uma forma igual v8

o
em todas as frações (com exceção dos grandes comerciantes),
constitui o espaço neutro deste universo. l i Assim, o espaço dos
julgamentos sobre o teatro é homólogo do espaço dos jornais para
o
os quais são produzidos e pelos quais são divulgados; e, também, .~
::õ
do espaço dos teatros e das obras a propósito dos quais eles são ';:I
o..
formulados. Neste caso, tais homologias e todos os jogos
autorizados por elas tornam-se possíveis pela homologia entre cada
um dos espaços considerados e o espaço da classe dominante.
Agora, podemos percorrer o espaço dos julgamentos
suscitados pelo estímulo experimental, proposto por Françoise
Dorin: passando da dÍreÍta, ou rive draÍte, para a esquerda, ou rive
gauche. Em primeiro lugar, L'Aurare:

..,. P/erre Bourdicu /I Pr(!dllç§o de! Crenp

,
'11. impertinente Françoise Dorin corre o risco de ter problemas com
nossa intelligentsia marxizantee esnobe- aliás, dois aspectos que andam
juntos. O motivo é que a autora de Un sale égoiste [Um egoísta cafajeste]
não testemunha nenhuma reverência pelo solene enJãdo, pelo profundo
vazio, pelo vertiginoso nada, que são caracteristicas de um grande número
de produções teatrais ditas de 'vanguarda'. Ela tem a ousadia de desmontar
com uma risada sacrilega a famosa 'incomunicabilidade dos seres' que é
o alfa e o ômega da cena contemporânea. E esta reacionária perversa, que
lisonjeia os mais baixos apetites da sociedade de consumo, longe de
reconhecer seus ertos e carregar com humildade sua reputação de autora
de peças de bulevar, permite-se preferir a fantasia de Sacha Guitry e as
tiradas eróticas de Feydeau aos luscos-fuscos de Marguerite Duras ou de
Arrabal. Trata-se de um crime que, dificilmente, lhe será perdoado; tanto
mais que é cometido com jovialidade e alegria, com todos os procedimentos
condenáveis que fazem os sucessos duradouros".)6
Situado na fronteira do campo intelectual, em um ponto
em que fala do assunto como se fosse quase um estrangeiro ("nossa
Ínteljjgentsú") , o crítico de L'AlIrore não tem papas na língua (cLi
o nome de reacionário a um reacionirio), lleJI1 dissinllrla suas
estratégias. O efeito retórico que consiste em fazer falar o
adversário, embora em condições tais que seu discurso, funcionando
como antífrase irônica, significa objetivamente o contrário do que
ele pretende dizer, pressupõe e coloca em jogo a própria estrutura
do campo da crítica, assim como a relação de conivência imediata,
fundada na homologia de posição que mantém com seu público.
De L'AlIrore, deslizemos para Le FÍgaro: em harmonia
perfeita, a dos habÍtlls orquestrados, com a autora de Le Toumant,
o crítico só pode ter a experiência do deleite absoluto diante de
uma peça tão perfeitamente conforme não só a suas categorias de
percepção e apreciação, mas também à sua visão do teatro e do
mundo. Todavia, tendo sido obrigado a utilizar um grau mais
elevado de eufemização, ele exclui os julgamentos abertamente
políticos para se limitar ao terreno da estética ou ética:
Pierre Bourdieu
'I
"Convém reconhecer que Mme Françoise Dorin é uma autora
1;
,
corajosamente leve, o que significa espirituosamente dramática , além de
i
tratar o sorriso com seriedade, desenvolta sem languidez, impelindo a j
comédia até o mais franco vaudeville, embora da maneira mais sutil
possivel; uma autora que manipula a sátira com elegância, uma autora
que, em todos os instantes, mostra uma virtuosidade desconcertante
(...). Françoise Dorin conhece muito melhordo que todos nós as molas
da arte dramática, os recursos do cômico, as vicissitudes de uma situação,
o poder divertido ou mordaz da palavra apropriada... Sim, que arte de
desconcertar, que ironia na utilização consciente da pirueta, que domínio
no emprego dos cordelinhos, mantendo um certo distanciamento?!
Existe em Le Toumanttudo o que é necessário para agradar, sem uma
polegada de complacência ou vulgaridade. Também sem qualquer
condescendência porque é certo que, na hora presente, o confonnismo
sc encontra inrt'Ír;I/llcnte do lado da vanguarda, o ridiculo do lado da
gravichell' l' a impostura elo lado do enfado. Mme Françoise Dorin vai
consol./r ulIIl'lÍblico equilibrado, reconduzindo-o ao equiiÍbriocom uma
S~llldá\'cl alegria (... ). Apressem-se em assistir ao espetáculo e, creio,
vocês h:To de {li com muito gosto a ponto de esquecerem de sonhar ao
que pode ter de angustiante para um escritor o fato de se perguntar se
ainda está em harmonia com o tempo no qual vive... Trata-se, finalmente,
de uma questão que todos os homens se formulam e da qual, aliás,
somente poderão 'livrar-se através do humor e de um incurável
otimismo' "37
De Le Fi'garo, passamos naturalmente para L'Express que
balança entre a adesão e o distanciamento, atingindo por este
motivo um grau de eufemização nitidamente superior:
"Eis algo que deverá obter imediatamente sucesso ... Uma peça astuciosa
e divertida. Uma personagem. Um ator que se encaixou no papel como
uma luva: Jean Piat (...). Com uma vinuosidade sem defeitos, apenas
algumas cenas um pouco longas, com uma inteligência libertina, um
perfeito domínio dos cordelinhos do offcio, Françoise Dorin escreveu
uma peça sobre a virada do Bulevar que, ironicamente, é a peça mais
tradicional de Bulevar. Somente os pedantes ranzinzas discutirão, no
A Produçiio da Crença

fundo, a oposiç§o dos dois rc:a[TOS, e a das duas concepções dI vida
po/írica e da vida pril'ada subfacenre. O diálogo brilhanre, replew de
palavras apropriadas e fórmulas, apresenta, muitas vezes, sarcasmos
vingadores. Mas, Romain não é uma caricatura, aliás, é muito menos
imbecil do que a média dos profissionais de vanguarda. Philippe
desempenha o melhorpapel porque se encontra em seu terreno. A autora
de 'Comme au théâtre' [Como no teatro] pretende insinuar, de forma
amável, que é no Bulevar que falamos, nos movimentamos 'como na
vida'; ora, isso é verdade, embora seja questão de uma verdade parcial e
não somente porque se trata de uma verdade de c1asse",)S Aqui, a
aprovação, que não deixa de ser total, já aparece matizada
pelo recurso sistemático a formulações ambíguas do próprio
ponto de vista das oposições em jogo: "Eis algo que deverá
obter imediatamente sucesso", "uma inteligência libertina,
um perfeito domínio dos cordelinhos do ofício", "Philippl'
desempenha o melhor papel", são outras tantas fórmuLls
que podem ser entendidas como pejorativas. E aClll1lece
mesmo que a gente possa sUSpeiLlr, atLlvl's da i/c'llc'c':.I(.io,
um pouco da outra verdade ("Somente os pedantes
ranzinzas discutirJo, no [lindo ... ") ou, até mesmo, da
verdade sem mais, embora dupLimente neutralizada, pela
ambigüidade e peLi del1egação ("e não somente porque se
trata de uma verdade cle classe"),
Por sua vez, o jornal Le Monde oferece um perfeito
exemplo de discurso ostensivamente neutro, não tomanclo
partido, como dizem os comentaristas esportivos, por nenhuma
das duas posições opostas, ou seja, o discurso abertamente
político de L'Aurore e o silêncio desdenhoso de Le Nouve!
Observateur.
"O argumento simples ou simplista complica-se por uma formulação
porparamares bastante sutil, como se houvesse sobreposição de duas
peças: uma, escrita por Françoise Dorin, autora convencional; e outra
inventada por Philippe Roussel que tenta pegar le toumanr ['a virada']
em direção ao teatro moderno, Esse jogo descreve, como um bumerangue,
Píerre R()[/u/icu
f
um movimento circular: Françoise Dorin expõe intencionalmente os
clichês do Bulevar, questionados por Philippe que, com sua voz, se pemlite
fazer uma veemente crítica da burguesia. No segundo patamar, ela
confronta seu discurso com o de um autor jovem, criticando-o com o
mesmo tipo de veemência. Por último, a trajetória reconduz a arma para
o palco do bulevar, as vaidades do mecanismo são desmascaradas pelos
procedimentos do teatro tradicional que, por conseqüência, nada
perderam de seu valor. Philippe pode declarar-se um autor 'corajosamente
leve', imaginando 'personagens que falam como todo o mundo'; ele
pode reivindicar uma arte 'sem fronteiras', portanto, apolítica, A
demonstração é, no entanto, totalmente falseada pelo modelo de autor
de vanguarda escolhido por Françoise Dorin. Vankovicz é um epígono
de Margllerite Duras, existencialista retardado, vagamente militante; é
l'X.lt;'~la(bll1ente caricatural, como o teatro denunciado na peça (11. cortina
pn'la d.l boca de cena e o andaime ajudam a crúr o clima" ou este título
dl' peç.!: 'Vous prl'l1drez biel1l1n peu d'infini dans votre café, monsieur
Karsov' [Senhor Karsov, com certeza, vai aceitar um pouco de infinito
em seu café]). O público jubila com essa pintura irrisória do teatro
moderno; sente-se provocado de forma agradável pela crítica contra a
burguesia na medida em que esta retoma vigor às custas de uma vítima
execrada que recebe dela o golpe de misericórdia (...). Na medida em que
reflete o estado do teatro burguês e deixa à vista seus sistemas de defesa,
o texto de Le Toumanrpode ser considerado como uma obra importanre.
São raras as peças que deixam filtrar tanta inquietação em relação a uma
ameaça 'exterior' e conseguem neurralizá-la com tamanha tenacidade
inconsCÍente".39
A ambigüidade já cultivada por Robert Kanters atinge, aqui,
seu ápice: o argumento é "simples ou simplista", à escolha do
lêitor; a peça desdobra-se, oferecendo ainda duas obras à escolha,
ou seja, "uma crítica veemente", embora "neutralizável", contra a
burguesia e uma defesa da arte apolítica, A quem tivesse a
ingenuidade de perguntar se o crítico é "a favor ou contra", se ele
julga a peça "boa ou ruim", poderia receber duas respostas: em
rrimeiro lugar, um esclarecimento do "informador objetivo" que,
 por amor à verdade, deve lembrar que o autor de vanguarda
representado é "exageradamente caricatural" e que o "público
jubila" (mas sem que se possa saber de que modo o crítico se situa
em relação a tal público, portanto, que sentido tem essa jubilação);
em seguida, no termo de uma série de julgamentos ambíguos, em
virtude de prudências, matizes e atenuações universitárias ("na
medida em que ... ", "pode ser considerado como... "), a afirmação
de que Le Toumant é uma "obra importante", mas - que fique
bem claro - como documento sobre a crise de civilização
contemporânea, à semelhança do que, sem dúvida, poderia ser
dito em ScÍences PO*.40
Apesar de, por si só, o silêncio de Le Nouvel Observatellr
significar, sem dúvida, alguma coisa, podemos ter uma idéia
aproximada do que poderia ter sido a posição desse semanário
relação a esse texto ao lermos a crítica, publicada nessa revista
sobre a peça de Félicien Marceau, La prellve par qll,/f['(', ou ;1 crítica
sobre Le TOllmant que Philippe Tesson, na época Chl'!l' dl' i'('d,lÇ';-l(}
de Combar, escreveu para Lc Cal/arei cllcÍJ;/II/(;' ':
"Não acho que seja necessário designar por teatro as rL'uIliôL'S lllundanas
de comerciantes e Ilwlheres de negócios no decorrer das quais um ator
célebre e rodeado por pessoas bem-educadas recita o texto laboriosamente
" '
r', espirituoso de um autor, igualmente, célebre, no meio de um dispositivo
l . cênico, ainda que fosse giratório e pincelado com o humor ponderado de
Folon... Aqui, nada de cerimônia, nem de catarse ou denúncia, ainda
menos, de improvisação. Simplesmente prato feito da cozinha burguesa
para estômagos que já têm assistido a um grande número de outras
C:J
coisas (...). A sala, como todas as salas de bulevar em Paris, estoura em
* Forma abreviada de Éco/r; de Sóences Po/iúques que, posteriormente, recebeu a
designação de Institut d'Etudes PoJitiques.
** Le Canard enchainé, literalmente, "O jornaleco acorrentado". Trata-se de um
semanário satírico ilustrado, fundado em Paris, erú 1916: com seus panfletos e
caricaturas, fustiga tanto os grupos políticos e financeiros, quanto os literários e
artísticos.
Pierre Bourdieu
risadas, quando é necessário, nas mais conformistas situações em que
opera o espírito de racionalista bonachão. A conivência é perfeita e os
atores são cúmplices. Trata-se de uma peça que poderia ter sido escrita há
dez, vinte ou trinta anos".41
"Françoise Dorin é uma grande malvada. Uma neurralizadora de
primeira ordem duplicada de uma afetação fora do comum. Sua peça,
Le Toum.wt, é uma excelente comédia de Bulevar, cujas molas essenciais
são a má-fé e a demagogia. A senhora pretende comprovar que o teatro
de vanguarda não passa de comida para gatos. Para fazer tal
demonstração, ela pega cordelinhos bem grossos e - inútil de dizer-
lhes - basta à escritora dar um nó para que o público morra de riso e
grite: mais um, ma's um l A autora, que não esperava outra coisa, acaba
el11
l'xagerando: coloel no palco um jovem dramaturgo esquerdista, batizado
com o nollll' de VaI1Kovicz - será necessário explicar? -, confrontado a
situaçôl's ridícuLls, desconfortáveis e bem pouco honestas, para
comprovar que esóc homenzinho não é menos interesseiro, tampouco
menos burguês, ào que vocês e eu próprio. Que bom senso, Madame
Dorin, que lucidez e que franqueza! A senhora, pelo menos, tem a
coragem de exprimir suas opiniões, aliás, opiniões muito saudáveis e
bem típicas dos fr anceses". 42
Pressupostos do Discurso e Afirmações Descabidas
A polarização objetiva do campo faz com que os críticos
dos dois lados possam colocar em relevo as mesmas propriedades
e, para designá-las, utilizar os mesmos conceitos (malvada,
cordelinhos, bom senso, saudável, etc.), mas que assumem um
valor irônico ("que bom senso" ... ) e, portanto, funcionam em
sentido inverso quando se dirigem a um público que não mantém
com eles a mesma relação de conivência, aliás, fortemente
denunciada ("basta que dê um nó para que o público morra de
riso"; "a autora que não esperava outra coisa"). O teatro, que só
A Produç50 da Crença

consegue funcionar respaldado na conivência total emre o autor e
os espectadores (eis a razão pela qual a correspondência entre as
categorias de teatros e as divisões da classe dominante é, neste
ponto, tão estreita e visível) constitui a melhor demonstração de
que o sentido e o valor das palavras (e, sobretudo, "palavras
apropriadas") dependem do mercado em que são colocadas; de
que as mesmas frases podem receber sentidos opostos quando se
dirigem a grupos animados por pressupostos antagonistas. Ao
apresentar diante de um público de bulevar as desventuras de um
autor de vanguarda, Françoise Dorin limita-se a explorar a lógica
estrutural do campo da classe dominante; assim, ela volta contra o
teatro de vanguarda a arma preferencialmente utilizada por este
contra a tagarelice "burguesa" e contra o "teatro burguês" que
reproduz seus truísmos e clichês (estamos pensando em Ionesco
ao descrever a CantatrÍce chauve ou jacques como "uma espécie
de paródia ou caricatura do teatro de bulevar, um teatro de bulevar
que se decompõe e se torna louco"): ao quebrar a relação de sil11bi()sc
ética e estética que une o discurso intelectual a seu público, ela o
transforma em uma seqüência de a{jrIlJ:Jç"ÔL'S d, 'SC.I hid.ls q Ul'
chocam ou provocam o riso porque não são prollllllciad;ls no [ligar
e diante do público convenientes, ou seja, no sentido verdadeiro,
uma paródia, discurso que só pode instaurar com seu público a
cumplicidade imediata do riso porque soube obter dele - se é que
de antemão já não tinha essa certeza - a revocação dos pressupostoS
do discurso parodiado.
Os Fundamentos da Conivência
Convém abstermo-nos de aceitar como explicação
suficiente a relação, termo a termo, entre o discurso dos críticos
e as propriedades de seu público: se a representação polêmica
elaborada por cada um dos dois campos a respeito de seus
adversários reserva tal lugar a esse modo de explicação é porque
permite desqualificar, por referência à lei fundamental do campo,
as escolhas estéticas ou éticas ao descobrir, em sua origem, o
Pierrc Bourdieu
f
•
cinismo calculista - por exemplo, a busca do sucesso a qualquer
preço, inclusive pelo uso da provocação e escândalo, argumento
preferencialmente da rÍvc droite; ou pelo servilismo interesseiro
com o tópico, de preferência, da rive gauche, do "criado da
burguesia". De fato, as objetivações parCÍais da polêmica
interesseira (da qual dependem quase todos os trabalhos
dedicados aos intelectuais) deixam escapar o essencial ao
descrever como o produto de uma premeditação consciente o
que é, de fato, o produto do encontro quase miraculoso entre
dois sistemas de interesses (que podem coexistir na pessoa do
escritor burguês) ou, mais exatamente, da homologia estrutural
e funcional entre a posição de determinado escritor ou artista
no campo da produção e a posição de seu público no campo das
classes e das frações de classe. Os pretensos "escritores de
serviço" têm excelentes razões para pensar e professar que,
propriamente falando, não servem a ninguém: objetivamente,
eles só estão a serviço porque servem, com toda a sinceridade e
pleno irreconhecimento de causa, seus próprios interesses, ou
seja, interesses específicos, altamente sublimados e
eufemizados, tais como o interesse por urna forma de teatro ou
de filosofia que está logicamente associado a uma certa posição
em um certo campo e que (salvo nos períodos de crise) é bem
feito para ocultar, aos próprios olhos de seus defensores, as
implicações políticas nele contidas. A lógica das homologias faz
com que as práticas e as obras dos agentes de um campo da
produçãO, especializado e relativamente autônomo, sejam
necessariamente sobredetermínadas; faz com que as funções
desempenhadas por elas nas lutas internas se dupliquem
inevi tavelmen te de funções externas, as que elas recebem nas
lutas simbólicas entre as frações da classe dominante e - pelo
menos, a prazo - entre as classesY O serviço prestado pelos
críticos a seu público é tanto mais precioso na medida em que
a homologia entre sua posição no campo intelectual e a posição
ele seu público no campo da classe dominante é o fundamento
ele urna conivência objetiva (fundada nos mesmos princípios
A Produçiio d:l Crença
em que se apóia a COnIvencia exigida pelo teatro, sobretudo,
cômico) que faz com que eles nunca defendam tão sinceramente
- portanto, com tanta eficácia - os interesses ideológicos de
sua clientela, quanto ao defenderem seus próprios interesses
de intelectuais contra seus adversários específicos, ou seja, os
ocupantes de posições opostas no campo da produçãoY
Concretamente, em vez de pronunciar um julgamento
sobre um espetáculo, o crítico de Le FÍgaro julga o julgamento
proferido pelo crítico de Le Nouvel Observateur que está inscrito
nele antes mesmo que o colaborador da revista o tenha formulado.
É raro que a estética dos burgueses que, neste terreno, estão em
posição dominada, possa exprimir-se diretamente, sem
arrependimento nem prudência, e o elogio do bulevar assuma,
quase sempre, a forma defensiva de uma denúncia dos valores
daqueles que lhe recusam valor. 45 Assim, em uma crítica da peça
de Herb Gardner, Des clowns par milliers, cuja conclusão é um
elogio saturado de palavras-chave ("Quanta naturalidade,
elegância, facilidade, calor humano, flexibilidade, fincza, vigor l'
tato, quanta poesia também, quanta arte"), Jean-Jacgues Gautier
escreve: "Ele faz rir, diverte, tem graça, o dom da réplica, o sentido
da gozação, ele alegra, alivia, ilumina, encanta; não suporta a
seriedade que é uma forma de vazio, a gravidade que é ausência
de graça (...); ele se agarra ao humor como se fosse a última arma
contra o conformismo; transborda de força e saúde, é a fantasia
encarnada e, sob o signo do riso, gostaria de oferecer a quem está
à sua volta uma lição de dignidade humana e virilidade; sobretudo,
ele gostaria que as pessoas que estão ao seu redor deixassem de
ter vergonha de rir em um mundo em que o riso é objeto de
suspeição".46
Trata-se de demonstrar que o conformismo está do lado
da vanguarda 47 e que a verdadeira audácia pertence a quem tem
a coragem de desafiá-lo, mesmo correndo o risco de receber,
assim, aplausos burgueses... Tal reviravolta do a fávor pelo contra
que não está ao alcance de qualquer burguês faz com que o
intelectual de direita possa viver a dupla meia-volta que o
Pierre Bourdieu
reconduz ao ponto de partida, mas distinguindo-o (pelo menos,
subjetivamente) do burguês, como o supremo testemunhado
da audácia e coragem intelectuais. 48 Ao tentar reverter a
situação, voltando contra o adversário suas próprias armas, ou
ao tentar, pelo menos, se dissociar da imagem objetiva que ele
reenvia ("impelindo a comédia até o mais franco vaudeville,
mas da forma mais sutil possível"), nem que fosse assumindo-
a resolutamente, em vez de simplesmente suportá-la
("corajosamente leve"), o intelectual burguês denuncia que,
sob pena de se negar enquanto intelectual, é obrigado a
reconhecer os valores intelectuais em seu próprio combate contra
esses valores.
Porque seus próprios interesses de intelectuais estão em
jogo, os críticos, gue têm como função primeira tranqüilizar o
público blIrgl/(~s, não podem se contentar com despertar nele a
imagem cstereotipada que tem do intelectual: com certeza, eles
não se privam de lhe sugerir que pesquisas propícias a levá-lo a
duvidar de sua competência estética ou as audácias capazes de
abalar suas convicções éticas ou políticas são, de fato, inspiradas
pelo gosto do escândalo e pelo espírito de provocação ou
mistificação quando não é, simplesmente, pelo ressentimento
do fracassado ou pela inversão estratégica da impotência e da
incompetência;49 apesar de tudo, eles não conseguem
desempenhar completamente sua função a não ser que sejam
capazes de falar como intelectuais que não se deixam levar por
balelas, que seriam os primeiros a compreender se houvesse algo
para compreenderlo e que não temem enfrentar os autores de
vanguarda e seus críticos em seu próprio terreno: daí, o apreço
que atribuem aos signos e insígnias institucionais da autoridade
in telectual, reconhecidos sobretudo pelos não-intelectuais, como
o pertencimento às academias; daí, também, entre os críticos de
teatro, os coquetismos estilísticos e conceituais destinados a
testemunhar que a pessoa sabe do que está falando ou, entre os
ensaístas políticos, a sobrevalorização de erudição marxológica. 51
A Produ pIO da Crença

o Poder da Convicção
A sinceridade (que é uma das condições da eficácia
simbólica) só é possível - e se realiza - no caso de um acordo
perfeito, imediato, entre as expectativas inscritas na posição
ocupada (em um universo menos consagrado, dir-se-ia, "a
definição do posto") e as disposições do ocupante. Não podemos
compreender o ajustamento das disposições às posições (que
serve de fundamento, por exemplo, ao ajustamento do jornalista
ao jornal e, ao mesmo tempo, ao público desse jornal, ou o
ajustamento dos leitores ao jornal e, ao mesmo tempo, ao
jornalista) se ignorarmos o fato de que as estruturas objetivas do
campo da produção estão na origem das categorias de percepção
e apreciação que estruturam a percepção e a apreciação de seus
produtos. É, assim, que pares antitéticos de pessoas (todos os
mestres influentes) ou de institllições, jornais (Le Fig:no/ rI'
iVouvel Observateur ou, em outra escala, por referência a outro
contexto prático, Le Nouvel Observac('ur/ L'HulIl,lIliu;', etc),
teatros (Rive droice/Rive gauche, privados/subvencionados, etc.),
galerias, editoras, revistas, costureiros, podem funcionar como
esquemas classificatórios que só existem e são significativos em
suas relações mútuas, além de permitirem a identificação dos
interlocutores e de se situarem com precisão. Como se vê melhor
do que alhures, no caso da pintura de vanguarda, somente o
domínio prático dessas referências, espécie de sentido de
orientação social, permite a movimentação em um espaço
hierarquizado em que os deslocamentos contêm sempre a ameaça
de uma desclassificação, em que os lugares, galerias, teatros,
editoras, fazem toda a diferença (por exemplo, entre a pornografia
comercial e o erocismo de qualidade) porque, através deles, um
* Jornal cotidiano, fundado em 1904, por Jean Jaures, líder do socialismo francês;
depois do congresso de Tours, em 1920, tornou-se o órgão de imprensa do Partido
Comunista.
P/erre Bourd/cu
,
público se designa que, na base da homologia entre campo da
produção e campo do consumo, qualifique o produto consumido,
contribuindo para transformá-lo em raridade ou vulaaridade b
(tributo devido à divulgação). É esse domínio prático que permite
sentir e pressentir, fore? de qualquer cinismo calculista, "o que há
a fazer" e onde fazê-lo e a maneira como e com quem -
considerando tudo o que foi feito, tlldo o que se faz, todos aqueles
que o fazem e onde o fazem. 52 A escolha de um lugar de
publicação, editor, revista, galeria, jornal, só é tão importante
porque, a cada autor, a cada forma da produção e do produto,
corresponde um lugar natural no campo da produção; além disso,
os produtores ou os produtos que não estão no devido lugar,
mas, como se diz, "deslocados", estão mais ou menos condenados
ao fracasso: todas as homologias que garantem um público
ajustado, críticos compreensivos, etc., àquele que encontrou seu
lugar na estrutura funcionam, pelo contrário, contra aquele que
se desviou de seu lugar natural. Do mesmo modo que os editores
de vanguarda e os produtores de besc-sellers estão de acordo
para afirmar que, inevitavelmente, haveriam de se dirigir para o
fracasso se se aventurassem a publicar obras objetivamente
destinadas ao pólo oposto do espaço da edição - best-selJers na
editora de Lindon, nouveau roman na editora de Laffont - assim
também, segundo á lei que pretende que não se prega senão a
convertidos, um crítico só pode exercer ÍnfluênCÍa sobre seus
leitores na medida em que estes lhe atribuem tal poder porque
estão estruturalmente afinados com ele em sua visão do mundo
social, suas preferências e todo o seu habÍtus. Jean-Jacques
Gautier descreve muito bem essa afinidade eletiva que une o
jornalista a seu jornal e, através dele, a seu público. Um bom
diretor de Le Figaro, que se escolheu a si mesmo e foi escolhido
segundo os mesmos mecanismos, escolhe um crítico literário
p:ua Le Figaro baseado nestes critérios: "possui o tom que convém
para se dirigir aos leitores do jornal"; sem ter feÍro de propósito,
"fala naturalmente a língua de Le FÍgaro"; e haveria de ser "o
leitor-tipo" desse jornal. "Se amanhã, em Le Figam, eu começar
a falar a linguagem da revista Les Temps Modemes, por exemplo,
ou da SdÍntes Chapelles des Lettres, deixarei de ser
compreendido e lido, portanto, escutado, porque estarei apoiado
em certo número de noções ou argumentos que constituem
motivo de escárnio para o leitor."53 A cada posição corresponde
um certo número de pressupostos, uma doxa, e a homologia das
posições ocupadas pelos produtores e seus clientes é a condição
dessa cumplicidade que é tanto mais fortemente exigida quanto,
à semelhança do que se passa no teatro, o que se encontra
engajado for mais essencial e estiver mais próximo dos
investimentos decisivos. Pelo fato de que o domínio prático das
leis do campo orienta as escolhas pelas quais não só os indivíduos
se agregam a grupos, mas também os grupos cooptam indivíduos,
é que se realiza com tanta freqüência o acordo miraculoso entre
as estruturas objetivas e as estruturas incorpoLlcbs que permitc
aos produtores de bens culturais a produl,':ll), com lOlb a liberebdc
e sinceridade, de discursos objetivamcntc necessários e
sobredeterminados.
A sinceridade na duplicidade e eufemização que faz a
eficácia propriamente simbólica do discurso ideológico resulta, por
um lado, do fato de que os interesses específicos - relativamente
autônomos em relação aos interesses de classe -, que estão
associados a determinada posição em um campo especializado, só
podem ser satisfeitos legitimamente - portanto, com eficácia -,
mediante a submissão perfeita às leis específicas do campo, ou
seja, no caso particular, mediante a denegação do interesse em
sua forma habitual; e, por outro, do fato de que a relação de
homologia que se estabelece entre todos os campos de luta,
organizados na base da distribuição desigual de determinada
espécie de capital, faz com que as práticas e os discursos altamente
pjerre Bourdíeu
censurados, portanto, eufemizados, que são assim produzidos por
referência a fins puros e puramente internos, estejam sempre
predispostos a desempenhar, por acréscimo, funções externas, o
que acontece de uma forma tanto mais eficaz porque eles as ignoram
e porque seu ajustamento à demanda não é o produto de uma
busca consciente, mas o resultado de uma correspondência
estrutural.
Tempo Longo e Tempo Curto
É: ainda nas características dos bens culturais, e do
mcrcado onde são oferecidos, que reside o princípio
fundamcntal das diferenças entre os empreendimentos
CUlllcrcu/s e os empreendimentos culturaÍs. Um
empreendimento encontra-se tanto mais próximo do pólo
comercial (ou, inversamente, mais afastado do pólo cultura!),
quanto mais direta ou cOD1pletamente os produtos oferecidos
por ele no mercado corresponderem a uma demanda
preexistente, ou seja, a Ínteresses preexistentes, e a formas
preescabelecidas. Assim, temos, por um lado, um ciclo curto
de produção, fundado na preocupação de minimizar os riscos
por um ajustamento antecipado à demanda identificável e dotado
de circuitos de comercialização, além de procedimentos de
valorização (camisetas mais ou menos chamativas, publicidade,
relações públicas, etc.) destinados a garantir o retorno rápido
dos ganhos por uma circulação rápida de produtos votados a
uma rápida obsolescência e, por outro, um dela longo de
produção, fundado não só na aceitação do risco inerente aos
investimentos culturais,54 mas, sobretudo, na submissão às leis
específicas do comércio de arte: não tendo mercado no presente,
A Produçiío da Crença
 f
f

esta produção inteiramente voltada para o futuro pressupõe Crescimento comparado das vendas de três obras
investimentos de elevado risco que tendem a constituir estoques publicadas por ÉditÍons de Minuit
de produtos em relação aos quais não se pode saber se voltarão
ao estado de objetos materiais (avaliados como tais, ou seja, Número acumulado
por exemplo, ao peso do papel) ou se terão acesso ao estado de dos exemplares vendidos

objetos culturais, dotados de um valor econômico

desproporcionado relativamente ao valor dos elementos materiais 100.000
que entram em sua fabricação. 55
A incerteza e as vicissitudes que caracterizam a produção 70.000
dos bens culturais lêem-se nas curvas das vendas de três obras 60.000
publicadas por Édjtions de ]vJjnuj{:56 um "prêmio literário"
50.000
(curva A) que, depois de uma acentuada venda inicial (em 6.143
40.000
exemplares difundidos em 1959, 4.298 foram vendidos em 1960,
30.000
depois de feita a dedução dos não-vendidos), passa a ter, a partir
LO.OOO
desta data, uma vendagem anual reduzida (da ordem de 70 por
1',000
ano, em média); Laja!ousje (curva B), romance de i\Llin ]{obllL'-
Gril!et, publicado em 1957, que nesse ano vendeu ;l[1l'IL1S 74G 10.000

exemplares e que só ao cabo de quatro anos (em 1%0) alcança

o nível de venda inicial do romance premiado, mas que, graças A
a uma taxa de crescimento constante das vendas anuais a partir
5.000
de 1960 (29% ao ano, em média, entre 1960 e 1964; 19% entre
1964 e 1968), atinge em 1968 a marca acumulada de 29.462
exemplares vendidos; En attendant Godot (curva C), de Samuel
Beckett que, publicado em 1952, só ao cabo de cinco anos é que
consegue chegar aos 10.000 exemplares, mas que, pelo fato de 2.000 C
que, a partir de 1959, a taxa de crescimento se mantém
praticamente constante (com exceção das vendas em 1963) em
torno de 20% (a partir dessa data, a curva ganha aqui, também,
r--- o N \D r--- 00 C',
um valor exponencial), chega em 1968 (ano em que são vendidos r<)
U')
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L")
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U') U')
00
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Cf'>
U') \D \D \D
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O'ó O'ó O'ó O'ó

14.298 exemplares) a um volume acumulado de vendas de 64.897 '" '" '" '" '" '" '" '" '" '" '" '"
~ ~ ~ ~
'"
exemplares. Fonte: Éditions de Minuit.

Pierre Bourdieu A Produ pio da Crenp

o Tempo e o Dinheiro
Assim, é possível caracterizar as diferentes editoras, em
conformidade com a soma dos investimentos de risco a longo prazo
(Godot) e com os investimentos seguros a curto prazo,57 e, ao
mesmo tempo, em conformidade com a proporção, em relação a
seus autores, entre escritores de longa duração e escritores de
curta duração, jornalistas que prolongam sua atividade habitual
por meio de escritos de atualidade, personalidades que confiam
seu testemunho em ensaios ou relatos autobiográficos, ou escritores
profissionais que se dobram aos cânones de uma estética já
comprovada (literatura propositalmente preparada para concorrer
a prêmios, romances de sucesso, etc.). 58
Características dos dois pólos opostos do campo da atividade
editorial, a editora Robert Laffont e as Éditions de Minuit permitem
apreender, na multiplicidade de seus aspectos, as oposições que
separam os dois setores do campo. Por um lado, uma ampla empresa
(700 empregados) que, anualmente, publica um considerável
número de novos títulos (cerca de 200) e, abertamente, orientada
para a busca do sucesso (para 1976, ela anuncia sete tiragens
superiores a 100.000 exemplares, catorze de 50.000 e cinClüenta ele
20.000), o que pressupõe importantes serviços ele p;omoção,
consideráveis despesas com a publicidade e relações públicas (em
particular, direcionadas para os livreiros) e também uma verdadeira
política de escolhas guiadas pelo senso da aplicação segura (até
1975, quase metade das obras publicadas consistiu em traduções
de livros que haviam obtido sucesso no exterior) e a busca do best-
seller (no ranking que o editor opõe àqueles que "ainda se obstinam
a não considerarem sua editora como literária", é possível registrar
os nomes de Bernard Clavel, Max Gallo, Françoise Dorin, Georges
Emmanuel Clancier, Pierre Rey). No lado oposto, as Editions de
Minuit, pequena empresa artesanal que, empregando uma dezena
de pessoas, lança menos de vinte títulos por ano (ou seja, para os
romances ou o teatro, uns quarenta autores em vinte e cinco anos)
e reserva uma ínfima parcela de seu orçamento para a publicidade
(chegando mesmo a tirar um partido estratégico da recusa das formas
mais grosseiras de relações públicas), já está habituada às vendas
pjene Bourdjeu
inferiores a 500 exemplares ("o primeiro livro de P. a superar a marca
dos 500 exemplares foi o nono") e a tiragens inferiores a 3.000 cópias
(segundo um balanço realizado em 1975, em 17 novas obras lançadas
depois de 1971, ou seja, em três anos, 14 haviam atingido um número
inferior a 3.000, e as outras três não haviam superado os 5.000
exemplares). Sempre deficitária, se nos limitarmos a considerar as
novas publicações, a editora vive de seu acervo, ou seja, dos ganhos
que, regularmente, lhe são garantidos por aqueles lançamentos que
se tornaram célebres (por exemplo, Godot, que - tendo vendido
menos de 200 exemplares em 1952 - atingiu, vinte e cinco anos
depois, uma tiragem global de 500.000 exemplares).
Essas duas estruturas temporais correspondem a estruturas
econômicas muito diferentes: tendo assumido o compromisso,
perante os acionistas (no caso particular, Times-Life) , de conseguir
lucros - apesar da soma considerável das despesas fixas -, Laffont
(à semelhança de todas as outras sociedades de ações, Hachette ou
Presscs de la Cit(~ tem a obrigação de fazer circular rapidamente
um capital essencialmente econômico (sem tomar o tempo
necessário para a reconversão em capital cultural); pelo contrário,
as É(fjtions de Minuit não têm de se preocupar com os lucros
(redistribuídos, em parte, pelos empregados) e reinvestem, em
empreendimentos de longo prazo, os ganhos que lhes advêm de
um acervo cada vez mais importante. O tamanho da empresa e o
volume da produção não orientam somente a política cultural através
do peso das despesas fixas e da preocupação correlata com o
rendimento do capital, mas afetam diretamente a prática dos
responsáveis pela seleção dos manuscritos: diferentemente do
grande editor, o pequeno pode conhecer pessoalmente, com a ajuda
de alguns conselheiros que, ao mesmo tempo, são autores da editora,
o conjunto dos livros publicados. Em suma, tudo se conjuga para
impedir que o responsável por uma grande empresa, voltada para a
atividade editorial, proceda a investimentos de risco e a longo prazo:
a estrutura financeira de sua empresa, as obrigações econômicas
que lhe impõem a rentabilização do capital, portanto, de pensar
antes de tudo nas vendas, além das condições em que ele trabalha
e que, praticamente, impedem seu contato direto com os
manuscritos e os autores. 59 Por sua vez, o editor de vanguarda só
A Produção da Crença

pode enfrentar os riscos financeiros (em todo caso, objetivamente,
menores) corridos ao investir (no duplo sentido) em
empreendimentos que, no melhor dos casos, não podem render
senão benefícios simbólicos, com a condição de reconhecer
plenamente os desafios específicos do campo da produção e, à
semelhança dos escritores ou ÍntelectuaÍs lançados por ele, perseguir
o único lucro específico concedido pelo campo, pelo menos, a curto
prazo, ou seja, o "renome" e a "autoridade intelectual"
correspondente. 6o As próprias estratégias utilizadas por ele em suas
relações com a imprensa são perfeitamente adaptadas (sem terem
sido necessariamente pensadas como tais) às exigências objetivas
da fração mais avançada do campo, ou seja, ao ideal Íntelectual de
denegação que impõe a recusa dos comprometimentos temporais e
tende a estabelecer uma correlação negativa entre o sucesso e o
valor propriamente artístico. Com efeito, enquanto a produção de
ciclo curto, à maneira da alta costura, é estreitamente tributária de
um verdadeiro conjunto de agentes e instituições de promoçiio
(críticos dos jornais e semanários, do rádio e da televisão, etc.) que
devem ser constantemente informados e periodicamente
mobilizados (os prêmios desempenham uma função análoga ;\ (L1s
coleções) ,61 a produção de ciclo longo que 11;10 Sl' 1lL'lleCicia
praticamente da publicidade gratuita, rl'IHeselltada pelus artigos
de imprensa suscitados pela corrida aos prêmios e pelos próprios
prêmios, depende completamente da ação de alguns descobridorc:s,
ou seja, autores e críticos de vanguarda que fazem a editora de
vanguarda, dando-lhe crédito (pelo fato de publicarem nela,
confiarem-lhe seus manuscritos, falarem de maneira favorável dos
autores que são lançados por ela, etc.) e que esperam que venha a
merecer a confiança deles, evitando desacreditar-se por sucessos
temporais demasiado estrepitosos ("A editora Jvfjnuit seria
desvalorizada para a centena de pessoas que circulam por Saint-
GermaÍn se ela viesse a ganhar o prix Goncourt"") e, ao mesmo
tempo, lançar o descrédito sobre aqueles que são publicados por ela
ou aqueles que elogiam suas publicações ("os prêmios desvalorizam
• É o prêmio literário mais cobiçado pelos romancistas: desde 1903, após um
almoço tradicional no restaurante Drouant, em Paris, é conferido, anualmente,
pelos 10 membros da Academia dos Goncourt, sociedade literária instituída, em
1896, por Edmond Huot de Goncoun (1822-1896).
Pierre Bourdieu
f
4
os escritores junto aos intelectuais"; "para um jm'em escritor, u
ideal é fazer urna carreira lenta") .62 Ela depende também do sistema
de ensino, único capaz de oferecer devotos e fiéis em condições de
reconhecerem as virtudes daqueles que pregam no deserto.
A oposição, total, entre os best-seJIers sem futuro e os
clássicos, best-sellers de longa duração que devem ao sistema de
ensino sua consagração, portanto, seu mercado ampliado e
duradouro,63 encontra-se na origem não só de duas organizações da
produção e comercialização totalmente diferentes, mas também de
duas representações opostas da atividade do escritor e, até mesmo,
do editor, simples marchand ou descobridor audacioso, que só terá
a possibilidade de ser bem-sucedido se souber pressentir as leis
espeefficas de um mercado ainda por vir, ou seja, acomodar os
interesses e as exigências daqueles que farão tais leis, os escritores
lançados por ele. 64 Duas representações opostas também em relação
aos critérios de sucesso: para os escritores burgueses e seu público,
o sucesso é, por si só, uma garantia de valor. Eis o que faz com que,
neste mercado, o sucesso conduza ao sucesso: uma das contribuições
para Ca:er os bCSI-scllcrs é o elevado número de exemplares por
tiragem; ali:ís, a melhor ajuda dos críticos a um livro ou peça consiste
em predizerem seu sucesso ("Isso deveria obter um sucesso
imediato", R. Kanters, in L'Express, 15-21 janeiro de 1973; ''Aposto
de olhos fechados no sucesso de Lt' Toumanf', Pierre Marcabru, in
France-SoÍr de 12 de janeiro de 1973). O fracasso, evidentemente,
é uma condenação sem apelo: quem não tem público, não tem
talento (o mesmo Robert Kanters fala "de autores sem talento e
sem público, à maneira de Arrabal").
Quanto à visão do campo oposto que considera o sucesso
como suspeit0 65 e que faz da ascese neste mundo a condição da
salvação no além, ela encontra seu princípio na própria economia da
produção cultural ao pretender que os investimentos só terão retorno
se forem operados, de alguma forma, a fundo perdido, à maneira de
um dom, que só pode ter a certeza do contra-dom mais precioso,
ou seja, o reconhecimento, se vier a se aceitar como sem retorno; e,
como no dom que ele converte em pura generosidade ao ocultar o
contra-dom por vir, desvelado pela sincronização do "toma lá dá
cá", é o tempo Ínterposto que serve de anteparo e dissimula o lucro
prometido aos investimentos mais desinteressados.
A Produç:Jo da Crença
•
Um empresário"
Ao conduzir sua empresa como homem de negócios, de
tal modo que a transformou em um verdadeiro império financeiro
por uma série ininterrupta (entre 1958 e 1965) de compras e
fusões, ele fala a linguagem - sem rodeios, nem eufemismos - do
gestor e do organizador: "Tenho afirmado simplesmente aos
diretores das editoras: Vamos aliar-nos para tentarmos desenvolver,
de comum acordo, nossos negócios. (...) Cada editor pretendia
abranger vários setores. Uma vez que o grupo se formou, acabamos
por nos especializarmos. Por exemplo, Amiot-Dumont tinha os
autores André Castelot e Alain Décaux que são historiadores com
grande audiência. Foram dirigidos para a editora de Perrin que,
por nosso intermédio, se especializou em história". "Algumas
editoras integraram-se no nosso grupo, tendo-se tornado nossos
departamentos internos. (...) Em relação às outras, possuímos a
maioria absoluta. (... ) Entre essas empresas distintas que, de
alguma forma, se tornaram filiais, procedemos a fusões." O editor
encomenda livros, sugere temas, escolhe os títulos: "Pensamos
que a faceta criadora do editor aumentou bastante nos anos
posteriores à guerra. Neste campo, eu poderia relatar-lhe ullla
infinidade de histórias. A última diz respeito ao livro dL' Emile
Servan-Schreiber. (... ) Trata-se de um amigo, UIll homem
charmoso, depositário de lembranças que não acabam mais. Eu
disse-lhe: 'Escreva tais lembranças do jeito como as relata"'.
"Quanto a Rémy? Em primeiro lugar, pedi-lhe um prefácio para
um volume sobre o Muro do Atlântico. Algum tempo depois,
apresentou-me um manuscrito. Certo dia, veio visitar-me à procura
de um tema; propus-lhe 'a linha de demarcação'. Acabou
escrevendo dez volumes; todos eles best-sellers". A encomenda
é, muitas vezes, acompanhada por adiantamento financeiro: "Um
escritor vem visitar-me; traz dentro de si um livro e entrega-me
uma sinopse. A gente acha que é interessante. Ele acrescenta:
'Preciso de um adiantamento para viver enquanto o livro não for
escrito'. (...) É assim que, na maior parte do tempo, o editor se
transforma em banqueiro. (...) Às vezes, as contas de adiantamento
dos autores já consagrados são bastante impressionantes". Atento
à demanda, o editor tira partido das oportunidades oferecidas
pela atualidade e, em particular, pela ação dos grandes meios de
comunicação: "Mostre fotografias de Hong Kong e, imediatamente,
um fazendeiro que nunca tinha ouvido faL>r dessa cidade e a quem
Pierre Bourdieu
você acaba de abrir a porta do mundo desanda à procura de um
livro sobre Hong Kong. A televisão traz-lhe uma imagem de sonho;
ora, nós limitamo-nos a completar esse sonho". Para atrair o cliente,
ele não recua diante dos procedimentos habituais de valorização
utilizados no comércio: "A apresentação é, contudo, um elemento
de venda muito importante porque, atualmente, no período
superexcitado em que vivemos, é necessário chamar a atenção do
olhar. Seja qual for o livro, este deve, portanto, ser apresentado
como uma espécie de cartaz que imanta o público". "É claro,
GalJjmard chegou a criar um gênero chique com suas capas brancas
brochadas, bordadas com um fio encarnado - estilo camisola; quem
mais poderia utilizar um método semelhante?" Para permitir que
cada categoria de produto encontre facilmente seus clientes, ele
deve proceder a uma marcação clara de seus produtos, portanto,
a uma especialização das unidades de produção: "É necessário
que, ao pensar em memórias ou biografias, o público pense em
Plon. Literatura moderna: julJjard Para um autor, eu diria quase
membro de academia: PerrÍn. (... ) Esporte, televisão ou
atualidades: Solar. Livros infanto-juvenis e para adolescentes:
Arrima. Grandes romances e documentários: Presses de la CÍté.
Se o leitor pretende um livro de bolso, ele deverá pensar Presses-
PucJ:cr. Existe, inclusive, igualmente os lançamentos de vanguarda
com ChristÍan BourgoÍs. Vamos chegar a este ponto: ao passar
diante da vitrine, o comprador eventual irá reconhecer cada uma
de nossas coleções. Muito mais do que se possa crer, o público
anda atrás da marca de uma editora". Nada esclarece melhor a
maneira como Sven Nielsen concebe o papel do editor do que
seu projeto para o livro de bolso: "Em primeiro lugar, lança-se
um livro por quinze francos com apresentação agradável, que
chama a atenção no bom sentido da palavra, ou seja, ilustrativo
do conteúdo e da editora que o publica. Após dois anos, quando a
tiragem normal estiver esgotada, então, a gente elabora um livro
de bolso por um preço ainda mais barato, praticamente pelo preço
do jornal - papel e capa simples. Se necessário, com publicidade
no interior. Um objeto que, depois de ter sido lido, pode ser
jogado no lixo. Com efeito, também em casa, o livro de bolso por
dois francos toma o lugar de uma obra que custa quinze. Por
último, conviria encontrar um circuito paralelo de distribuição,
diferente do circuito de distribuição do livreiro. É claro, cada
tiragem seria calculada em conformidade com o nível de venda
prevista. E nada de reposição; à semelhança do que acontece com
os jornais, os não-vendidos são considerados papel velho".
A Produção da Crença

Um descobrÍdor 7
"Certo dia, em 1950, um dos meus amigos, Robert
Carlier, disse-me: 'Você deveria ler o manuscrito de um
escritor irlandês que escreve em francês. Ele chama-se Samuel
Beckett; já foi recusado por seis editores'. Havia dois anos
que eu era diretor das ÉditÍons de Jvfinui( Algumas semanas
depois, encontrei três manuscritos em cima de uma mesa do
escritório: lvfolloy, Malone meurt, L'lnnommable, com esse
nome de autor desconhecido e, aparentemente, já familiar.
A partir desse dia, eu soube que seria, talvez, um editor,
quero dizer, um verdadeiro editor. Desde a primeira linha -
'Estou no quarto de minha mãe. Sou eu quem, agora, mora
aí. Nem sei como isso aconteceu' - desde a primeira linha,
fiquei impregnado pela beleza esmagadora desse texto. Em
algumas horas, li lvfolloy, aliás, nunca havia lido um livro desse
modo. Ora, não se tratava de um romance publicado em uma
editora de meus confrades, uma dessas obr:!s~rriIllas
consagradas, à qual, como editor, eu j:!mais teria :HTSSO: era
um manuscrito inédito, e não somente inl'd i[o: !"l'UI sado p( 11'
vários editores. Eu não est:!va conseguindo ,1credil:H nisso.
No dia seguinte, ao encontrar SUZ:1Il1H', SII.I lllulher, disse~
lhe que eu gostaria ele l:!nçar esses três livros o mais
rapidamente possívl'l, mas que cu não era muito rico. Ela
encarregou~se de leV3r os contratos a Samuel Beckett e
devolveu-me os documentos assinados. Era o dia 15 de
novembro de 1950. Algumas semanas depois, recebi Samuel
Beckett no meu escritório. Em seguida, Suzanne contou-me
que ele tinha voltado para casa com aspecto bastante sombrio.
Como ela tivesse mostrado espanto, temendo que este
primeiro contrato com o editor tivesse decepcionado o marido,
este respondeu-lhe que, pelo contrário, havia achado todos
nós muito simpáticos, mas sentia-se desesperado só de pensar
que a publicação de J'vfolloy pudesse levar a editora à falência.
O livro foi lançado em 15 de março. O impressor - um
alsaciano, católico -, temendo que a obra viesse a ser
processada por atentado contra os bons costumes, havia
omitido, precavidamente, seu nome no final do volume."
Pierre ROllrdiell
,
•
Ortodoxia e Heresia
•
4
Princípio da oposlçao entre arte de vanguarda e arte
(
burguesa, entre ascese material, garantia da consagração espiritual,
e o sucesso mundano, marcado, entre outros sinais, pelo l
reconhecimento das instituições (prêmios, academias, etc.) e pelo (
êxito financeiro, esta visão escatológica contribui para dissimular a
l
verdade da relação entre o campo da produção cultural e o campo
(
do poder ao reproduzir, na lógica específica do campo intelectual,
ou seja, sob a forma transfigurada do conflito entre duas estéticas, a
oposição (que não exclui a complementaridade) entre as frações
dominadas e as frações dominantes da classe dominante, ou seja,
entre o poder cultural (associado à menor riqueza econômica) e o
poder econômico e político (associado à menor riqueza cultural).
Os conflitos propriamente estéticos sobre a visão legÍtÍma do mundo,
OI! seja, l'Ill última análise, sobre o que merece ser representado e
sobre a Ill:1l1eira corret:! de fazer tal representação, são conflitos
políticos (suprernamente eufemizados) peh imposição da definição
dominante da realidade e, em particular, da realidade social.
Construída segundo os esquemas geradores da representação reta
(e de direita) da realidade - e, em particular, da realidade social, ou
seja, em poucas palavras, da ortodoxia -, a arre da reproduçãej8
(cuja forma, por excelência, é o tearro burguês) é apropriada para
proporcionar, àqueles que a percebem segundo esses esquemas, a
experiência tranquilizadora da evidência imediata da representação,
ou seja, da necessidade do modo de representação e do mundo
representado. Esta arte ortodoxa escaparia ao tempo se não fosse
continuamente remetida ao passado pelo movimento introduzido
no campo da produção pela pretensão das frações dominadas em
utilizar poderes que lhes são atribuídos para modificar a visão do
mundo e derrubar as hierarquias temporais e temporáúas às quais
es tá enganchado o gosto burguês. Detentores de uma delegação
(sempre parcial) de legitimidade em matéria cultural, os produtores
cultur:!is e, em particular, aqueles que produzem unicamente para
os produtores tendem sempre a desvjar em seu benefício a
autoridade de que dispõem, portanto, a impor como única legítima
sua variante própria da visão dominante do mundo. No entanto, a
contestação das hierarquias artísticas instituídas e o deslocamento
herético dos limites socialmente admitidos entre o que merece ser
conservado, admirado e transmitido, por um lado, e, por outro, o
que não tem tal merecimento, só poderá exercer um efeito
propriamente artístico de subversão se reconhecer tacitamente o
fato e a legitimidade dessa delimitação, ao transformar o
deslocamento de tais limites em um ato artístico e ao reivindicar,
assim, para o artista o monopólio da transgressão legítima dos limites
entre sagrado e profano, portanto, das revoluções dos sistemas
artísticos de classificação.
O campo da produção cultural é o terreno por excelência
do enfrentamento entre as frações dominantes da classe dominante
- que combatem aí, às vezes, pessoalmente e, quase sempre, por
intermédio dos produtores orientados para a defesa de suas id6a5
e para a satisfação de suas prefêrêndas - e as frações dominacL1s que
estão totalmente envolvidas neste combate.';" Por mcio dcsse
conflito, consuma-se, em um único e mesmo campo, a integração
dos diferentes subcampos socialmente especializados, mercados
particulares completamente separados no espaço social e, até
mesmo, geográfico, em que as diferentes frações da classe dominante
podem encontrar produtos ajustados a seu gosto, tanto em matéria
de teatro, como em matéria de pintura, costura ou decoração.
A visão polêmka que, na mesma condenação, engloba todas
as empresas poderosas do ponto de vista econômico ignora a distinção
entre as empresas que, ricas somente de capital econômico, tratam
os bens culturais - livros, espetáculos ou quadros - como produtos
comuns, ou seja, como uma fonte de lucro imediato, e as empresas
que tiram benefício econômico, às vezes, muito importante, do capital
cultural acumulado por elas, na origem, por estratégias fundadas na
denegação da "economia". As diferenças no tamanho da empresa,
avaliada pelo faturamento ou pelo númerú de empregados, são
PÍerre BourdÍeu
confirmadas por diferenças, também decisivas, na relação com a
"economia" que separam, entre as empresas de fundação recente e
de pequeno porte, as pequenas editoras comerciajs, muitas vezes,
destinadas a um rápido crescimento, tais como La três, simples
Laffont no início, ou Orban, Authjer, Menges/o e as pequenas
editoras de vanguarda, muitas vezes, votadas a um rápido
desaparecimento (Gafjfée, France AdeJe, Enrente, Phébus) , do
mesmo modo que, na outra ponta do espectro, tais diferenças
estabelecem uma distinção entre as grandes edjtoras e as enormes
e&toras, entre o grande editor consagrado como Gallimard e o imenso
"marchand de livros" como Nielsen.
Sem entrarmos em uma análise sistemática do campo das
galerias que, pelo fato da homologia com o campo da atividade
editorial, cairia em repetições desnecessárias, podemos observar
somente que, ainda aqui, as diferenças que separam as galerias
segundo sua antigüidade (e notoriedade), portanto, segundo o
grau de consagração e o valor mercamil das obras que possuem,
são confirmadas por diferenças na relação com a "economia".
Desprovidas de escudeáa própria, as galeáas de venda (por
exemplo, Beaubourg) expõem, de maneira relativamente eclética,
pintores de épocas, escolas e idades bastante diferentes (tanto
abstratos, quanto pós-surrealistas, alguns hiperrealistas europeus,
novos realistas), ou seja, obras que, tendo sido produzidas em
número reduzido (em razão de sua canonização mais avançada ou
de suas disponibilidades decoraúvas) podem encontrar
compradores além dos colecionadores profissionais e semi-
profissionais (entre os "executivos ainda jovens, ricos, elegantes
e ociosos" e os "industriais da moda", como afirma um informante);
assim, elas estão em condições de idemificar e atrair uma fração
dos pintores de vanguarda já reputados, oferecendo-lhes uma forma
de consagração um tanto comprometedora, ou seja, um mercado
em que os preços são muito mais elevados do que nas galerias de
vanguarda. 7I Pelo contrário, as galerias que, à semelhança de
Sonnabenc/, Denise René ou Durand-Ruel, marcam datas da história
A Produçiío da Crença

dJ pintura porque, cada uma em sua época, souberam reagrupar
uma escola, caracterizam-se por uma escolha sistemátÍca. 72 Assim,
é possível reconhecer, na sucessão dos pintores apresentados pela
gJleria Sonnabenef, a lógica de um desenvolvimento artístico que
conduz da "nova pintura americana" e da Pop art - com pintores,
tais como Rauschenberg, ]aspers ]ohns, ]im Dine - aos Oldenburg,
Lichtenstein, Wesselman, Rosenquist, Warhol, às vezes,
classificados sob o rótulo de lvIinÍlnal Art, e às pesquisas mais
recentes da arte Povera, da arte conceitual ou da arte por
correspondência. Do mesmo modo, é evidente o vínculo entre a
abstração geométrica, que fez a reputação da galeria Denise René
(fundada em 1945 e inaugurada por uma exposição com obras de
Vasarely) e a arte cinética; por sua vez, a ligação entre as pesquisas
visuais do entre-guerras (sobretudo, as da Bauhaus) e as pesquisas
ópticas e tecnológicas da nova geração foi efetuada, de alguma
forma, por artistas, tais como Max Bill e Vasarely.
As Maneiras de Envelhecer
A oposição entre as duas economias, ou seja, entre as duas
relações com a "economia", assume assim a forma da oposição
entre dois ciclos de vida da empresa da produção cultural, dois
modos de envelhecimento das empresas, produtores e produtos. 73
A trajetória que conduz da vanguarda à consagração e a que leva da
pequena empresa à grande empresa excluem-se totalmente: a
possibilidade da pequena empresa comercial tornar-se uma grande
empresa consagrada pode equiparar-se à do grande escritor
comercial (como Guy des Cars ou Cécil Saint-Laurent) vir a ocupar
uma posição reconhecida na vanguarda consagrada. No caso das
empresas comerciais que, fixando-se como finalidade a acumulação
de capital "econômico", só podem crescer ou desaparecer (por
falência ou absorção), a única distinção pertinente diz respeito ao
tamanho da empresa que tende a crescer com o tempo; no caso
das empresas definidas por um elevado grau de denegação da
pjerre Bourdú:u
,
"economia" e de submissão à lógica específica da economia dos
bens culturais, a oposição temporal entre os recém-chegados e os
antigos, os pretendentes e os atuais titulares, a vanguarda e o
clássico, tende a confundir-se com a oposição "econômica" entre
pobres e ricos (que são também os grandes), o barato e o caro -
neste caso, o envelhecimento é acompanhado quase
inevitavelmente por uma transformação "econômica" propícia a
determinar a transformação da relação com a "economia", ou seja,
do afrouxamento da denegação da "economia" que mantém uma
relação dialética com o faturamento e o tamanho da empresa: a
única defesa contra o envelhecimento é a recusa de crescer pelos
ganhos e para o lucro, de entrar na dialética do lucro que, ao
aumentar o tamanho da empresa, portanto, as despesas fixas, obriga
a buscar o lucro e traz em seu bojo a divulgação, sempre
acompanhada peb desvalorização implicada em toda vulgarização.'"
A editora que entra na fase de exploração do capital cultural
acumulado faz coexistir duas economias diferentes: uma, voltada
para a produção, autores e pesquisa (na editora Gallimard, é o
caso da coleção de George Lambrichs); enquanto a outra é orientada
para a exploração do acervo e para a difusão dos produtos
consagrados (através de coleções, tais como La Pléiade e, sobretudo,
Folio ou Idées). É fácil conceber as contradições que resultam das
incompatibilidades entre as duas economias: a organização que
convém para produzir, difundir e valorizar uma categoria de
produtos é totalmente in adaptada para a outra; além disso, a
sobrecarga que as obrigações da gestão e difusão fazem pesar sobre
a instituição e os modos de pensamento tende a excluir os
investimentos de risco, quando os autores que poderiam ocasioná-
los não são, de antemão, desviados para outros editores pelo próprio
prestígio da editora (quando não é, simplesmente, pelo fato de
que as coleções de pesquisa tendem a passar desapercebidas quando
se inserem em conjuntos em que elas se encontram deslocadas,
até mesmo, são incongruentes - como, no caso limite, L'Ecart ou
CfJ:l1lgc na editora La/Tont). Pelo fato de tal processo estar inscrito
na lógica do desenvolvimento das empresas de produção cultural,
 é evidente que o desaparecimento do fundador não basta para
As galerias e seus pintores
explicá-lo, embora possa acelerá-lo.
As diferenças que separam as pequenas empresas de Data de nascimento
vanguarda das grandes empresas e grandes edÍtoras se sobrepõem antes de 1900 1900-1909 1910-1919 1920-1929 1930-1939 1940 e depois
àquelas que podem ser estabelecidas, em relação aos produtos, entre
o novo, provisoriamente desprovido de valor "econômico", o velho,
definitivamente desvalorizado, e o antigo ou o clássko, dotado de Galeria Son nabend

um valor "econômico" constante ou constantemente crescente; ou,

ainda, àquelas que se estabelecem, relativamente aos produtores,
h § 1rrrTI==1
entre a vanguarda, que é recrutada de preferência entre os jovens
(do ponto de vista biológico) sem estar circunscrita a uma geração,
Galeria Terr plon
os autores ou os artistas acabados ou ultrapassados (que podem ser
I
biologicamente jovens) e a vanguarda consagrada, os clássÍcos. Para
nos convencermos disso, basta considerar a relação entre a idade
§ lllt3 ~
Galeria Bea ~bourg
(biológica) dos pintores e sua Ídade artÍstka, avaliada pela posição
inseparavelmente sincrônica e diacrônica que lhes é atribuída pelo
campo em seu espaço-tempo em função de sua estrutura c das leis ==
de transformação de sua estrutura, ou, se preferirlllos, l'lll fUIl\';lll ~~ II
11-----1
lmT6 ~ ~
de sua distância em relação ao presellte na hisu'Hi;l l'SIll'cíficl
I~ .rnTf'E3 I I I Galeria Je nne Bucher
engendrada pelas lutas e revoluções artísticas qUl" akís, balizam
suas etapas. Os pintores das galerias de vanguarda opõem-se tanto
II lia III~ ,I! IIL fTm lTTn

aos pintores de sua idade (biológica) que expõem nas galerias de I Galeria IDenise René

L
rÍve droÍte, quanto aos pintores muito mais idosos ou já falecidos
que são expostos em tais galerias: separados uns dos outros pela I~ ~
111116
11--1 lTTT1--.
Ídade artÍstÍca que se avalia também em gerações, ou seja, em I
revoluções artísticas, eles têm em comum, com os primeiros, apenas
,------ I I
a idade biológica e, com os segundos, a quem se opõem, o fato de Gale ia Drouant

ocuparem uma posição homóloga daquela que haviam ocupado em 1===

r==
estados mais ou menos antigos do campo e estarem votados a ocupar
posições homólogas em estados ulteriores (como é testemunhado
1=
1= mm rnn .,-
I
I
pelos indícios de consagração, tais como catálogos, artigos ou livros
Galeria Jurand-Ruel

~
já associados à sua obra).
Se considerarmos a pirâmide das idades do conjunto dos lr-n-r1 h:rr I
pintores retidos75 por diferentes galerias, observamos, em primeiro [[]]] Número global de catálogos a Número global de artigos
D Número global de livros D Número total de pintores da faL'Ca etária

Pierre Bourdieu A Produção da Crença


lugar, uma relação bastante nítida (visível também em relação aos
escritores) entre a idade dos pintores e a posição das galerias no
campo da produção: ao abranger, para a Galeria Sonnabcnd, o período
1930-1939 (e o período 1920-1929 para a Galeria Tcmplon) , como
galerias de vanguarda, e se referir ao período 1900-1909 para a
Galeria Denise Renê (ou a Galerie de France), como galerias de
vanguarda consagrada, a idade modal situa-se no período anterior
a 1900 para a Galeria Drouant (ou a Galeria Durand-Rue!) , enquanto
outras galerias, tais como Beaubourg (ou Claude Bernard), que
ocupam posições intermediárias entre vanguarda e vanguarda
consagrada, assim como também entre galeria de l'cnda e escola,
apresentam uma estrutura bimodal (com um modo antes de 1900
e outro no período 1920-1929).7 6
Concordantes no caso dos pintores de vanguarda (expostos
por Sonnabend ou Templon), a idade biológica e a idade artística·
para ambas, a melhor avaliação seria, sem dúvida, a l'pOC,l da
aparição do estilo correspondente na história rc'i;llivallll'llll'
autônoma da pintura - podem ser discordantl" 110 C.1Sl) dos
pintores ainda vivos, continuadores acadl~llliClh de todas as
maneiras canônicas do passado que, ao lado dos mais famosos
pintores do século passado, são expostos nas galerias da rÍve droite
- muitas vezes, situadas na área dos comércios de lu.\:o - tais como
Drouant ou DUr<Znd-Ruel, "o marcham! dos impressionistas".
Espécie de fósseis de outra era, esses pintores que fazem no
presente o que fazia a vanguarda do passado, apresentam uma
arte que não é, se podemos nos exprimir assim, de sua época.
I
Para o artista de vanguarda que considera a idade artística como a
medida da idade, o artista burguês é velho, seja qual for sua idade
biológica, como é velho o gosto burguês por suas obras. No entanto,
I
a própria idade artística, que se denuncia através da forma de arte
praticada, é uma dimensão de uma verdadeira maneira de viver a
j Vida de artÍsta e, em particular, a denegação da "economia" e dos
comprometimentos temporais que a define de modo específico.
,! Inversamente aos artistas de vanguarda '<'lue, de alguma forma, são
duplamente jovens - pela idade artística, é claro, mas também
I '-C
t'-- Pierre BOllrdiell
,
pela recusa (provisórÍa) das grandezas temporais por onde c1wga
o envelhecimento artístico -, os artistas fósseis são, de alguma
forma, duplamente velhos, pela idade de seus esquemas de
produção, é claro, mas também por um verdadeiro estilo de vida
que, entre outras dimensões, se manifesta pelo estilo de suas obras,
além de implicar a submissão direta e imediata às obrigações e
gratificações do século. 77
Colocada à parte a consagração propriamente artística e
os elevados lucros garantidos pela clientela burguesa, os pintores
de vanguarda têm muito mais aspectos em comum com a
vanguarda do passado do que com a retaguarda dessa vanguarda:
e antes de tudo, a ausência de marcas de consagração extra-
artística aLI, se quisermos, temporal, de que são abundantemente
dotados os artistas fósseis _. pintores qLIe já usufruem de uma
silua~';lo l'slável, quase sempre, oriundos das escolas de Belas-
J\ r I e s, rcc ilc ad llS d l' P 1'0 m ios, mern bras de academias,
condecorad()s com a comenda da l.(;gioIJ d'honneur, fartamente
abasrecidos com encomendas oficiais: como se o pertencimento
ao século, ou seja, ao tempo do modo econômico e político, e o
pertencimento ao campo artísrico fossem mutuamente
excludentes. Se excluirmos a vanguarda do passado, observaremos
que, de fato, as características apresentadas pela maior parte dos
pintores expostos pda Galeria Drouant são, em todos os pontos,
opostas à imagem do artista reconhecidas pelos artistas de
vanguarda e por aqueles que os homenageiam. Na maior parte
das vezes, originários ou, até mesmo, residentes na Província,
esses pintores têm, quase sempre, como principal ponto de
sustentação na vida artística parisiense o fato de fazerem parte
dessa Galeria que descobriu um grande número deles; em suas
dependências, vários fizeram suas primeiras exposições e/ou foram
lançados pelo Prix Drouant destinado à pintura jovem. Tendo
passado, sem dúvida, com mais freqüência do que os pintores de
vanguarda, pelas Escolas de Belas Artes (cerca de 1/3 estudaram
na ÉcoJe des Beaux-Arts e na École des Ares Appliquêes ou Arts
Décoralifs, em Paris, na Província ou em seLIS países de origem),
/1 !)rodll~-jo d:z CrCf)l:'
t'--
t'--
consideram-se, naturalmente, alunos deste ou daquele pintor e "Nascido em 1909. Pintor de paisagens e rerratos. Executou o retrara de
praticam uma arte acadêmica em seu estilo (quase sempre, pós- S. S.]oão XXIll, assim como os das celebridades de nossa época (Cécile
impressionista), em seus temas (maánas, retratos, alegoáas, SoreI, Mauriac, etc.) apresentados na Galerie Drollant, em 1957 e 1959.
cenas campestres, nus, paÍsagens de Pro vence, etc.) e em Laureado do Pá, des Peinrres Témoins de leur Temps. Participa dos

determinadas oportunidades (cenários de teatro, ilustrações de
livros de luxo, etc.) que, muitas vezes, lhes garante uma
verdadeira carreira, balizada por diversas recompensas e
promoções, tais como prêmios e medalhas (66 laureados em um
total de 133), e coroada pelo acesso a posições de poder nas
instâncias de consagração e legitimação (um grande número deles
são sócios, presidentes ou membros do comitê dos grandes salons
tradicionais) ou nas instâncias da reprodução e legitimação
(diretor de École des Beaux-Arts na Província; professores em
Paris, na École des Beaux-Arts ou Arts DécoratÍfs, consen-ador
de museu, etc.). Dois exemplos:
"Nascido em 23 de maio de 1914, em Paris. Freq üen ra a Eco/,' des
Beaux-Arts. Exposições individuais em Nova York e Paris. Faz as
ilustrações de duas obras. Participa dos (;rallds Sa/OllS de' P.llis.
Prêmio de desenho no Concollrs Généra/rJe 1932. 1vkcLJlh:llk PUla
Grands Salons, dos quais é um dos organizadores. Participado Salon de
Pansorganizado pela Galerie Drouant, em Tóquio, em 1961. Suas telas
figuram em numerosos museus da França e coleções do mundo inteiro."
"Nascido em 1907. Começou por expomo Sa/on d'Auromne. Sua primeira
viagem na Espanha deixou-lhe marcas bastantes fortes; além disso, o
Premier Grand Prix de Rome (1930) acabou detenninando sua longa
estada na Itália. Sua obra está associada, sobretudo, aos países
mediterrâneos: Espanha, Irália, Provence. Aurar de ilustrações para livros
de luxo, assim como de cenários para teatro. Membro do Institut de
France. Exposições em Paris, Londres, Nova York, Genebra, Nice,
Bordeaux, Madri. Obras em numerosos museus de arte moderna e
coleções panicuLnes na França e no exterior. Oficial da Légion
d'!JOllllt'IIl:" ;.
Falsificações ou fósseis?
Reproduções do Catálogo da C:tlérie Drou;]m, 1967

na IV Bienal de Menron - 1957. Obras nos 11Iuseus e colc>çiíes

particulares."

"Nascido em 1905. Esruda na Éco/c des Bcallx-Artsde Paris. Sócio dos

Salons des IndépendaIlts e do Sa/on d'AlIromne. Em 1958, obrém o
Grand Prix de J'Éco/e des Beaux-Arts de la Ville de Paris. Obras no
Jvfllsée d'Art JvJodemede Paris e em numerosos museus franceses e do
exterior. Conservador do Museu de Honfleur. Numerosas exposições
individuais no mundo inteiro."

Por último, um grande número desses pintores receberam

as marcas menos equívocas da consagração temporal,
tradicionalmente excluídas do estilo da vida de artista, tais como
a comenda da LégÍon d'honneur, sem dúvida, como contrapartida
de uma inserção no século, por intermédio dos contatos polírico- 0, Carmen - Nascida em Nice, vive em Veneza. Expõe no Sa/on des Indépel}dants
e participa dos Sa/ons franceses e iralianos, Exposições em Paris, Roma, erc. Ulrima
administrativos que fornecem as encomendas ou relações exposição em Paris, na Ga/erie Drollanr (1966). Telas em numerosos museus e
mundanas, implicadas na função de "pintor oficial". coleções particulares.

Pierre Bourdieu A Produção da Crenp!

 ,
•
Best-sellers e sucessos intelectuais
1.1 Quin2;lin('
L'f\prt'ss Jiut!r,úrc
Para constituir a população dos Data de nascimento N': 92 N: 106
autores reconhecidos pelo Nascidos antes de 1900 4 7
grande público intelectual, 1900-1909 lO 27
consideramos o conjunto dos 1910·1919 17 t5
1920-1929 33 28
autores franceses ainda vivos 1930-1939 11 15
que, entre 1972 e 1974, foram ~~l~ e depois 5 5
citados na rubrica mensal" La 12 9
Qlúnzaine recomenda",
publicada pela revista La Literatos 35 32
Quinzaine Jiuéraire. No que diz Professores universitários 5 48
respeito à categoria jornali3tas 26 6
Psicanalista, Psiquiatra 2
socioprofissional dos autores Outros 10 7
para grande pClblico, NR 16 11
consideramos os escritores
franceses e ainda vivos, cujas ·Local de residência
Província dos quais 5 13
obras obtiveram as maiores - Arredores de Paris 2 5
tiragens em 1972 c 1973 e cuja - Sul 1 4
list:l, b:1se:lda nas inforrn:lções - Outro local 2 4
_Exterior 2 4
I'm nec id '1 S I'0r 2'J g nndc s · PJris e Subúrbio 62 57
livTt'ircls fr:1Jll~l':)t'S dt' Paris l' de dos
l'rnvíllCi;1, t' rl':;lJhrrncllrc 19 19
I'lIbli,·ad.l 1',,1.1 revis':l IF.Il'rt'ss. I õ' / Subúrbio Oeste 23 11
10 / ti' /15' II 11
J\ sell'ç:'IO dI' 1:1 Qllill:".:lill<' - Outros b:lirros d~ Paris 7 9
lillt'r./Ír<' reSl'rva li/na I'arte · Subúrbio (salvo Oeste) 2 7
i,ll!'()/t:mte :ls tr.1dllç{,,:s de obras NIZ 23 32
cSlnngeiras (·U":, dos títlllos
eirados) e às reedições de autores 0Iáo laureados 28 68
canônicos (por exemplo, Laureados 48 31
Colerte, Dostoiévski, Bakunin, dos quais
- Renaudot
Rosa Luxemburgo), esforçando- - Goncourt
se assim por acompanhar a - Interallié 25 6
atualidade, bastante prticular, do - Fémina
- ~lédi(i.s 4
mundo intelectual; pOl sua - Nobel 2
vez, a lista de L'Express NR 16 7
apresenta somente 12% de Condecoracões
traduções de obras estrangeiras Nunca receberam 44 79
que são outros tantos besc- Já receberam 35 22
seJlers internacionais dos qU:lis Légion d'honneur
(Desmond Morris. Mickev ou Ordre du mérite 28 18
Spillane, Pcarl Euck, etc). .
13 3
Editores"·
Gallim:u 8 34
Le Seuil 7 12
Denoel 3 6
, N, número de obras listadas por FlammJrion 11 5
I:Llprcss ou se lecionadas por La Grasser 14 8
QuifJ;:aufJc' !i[[érairi!. Stock 11 1
Laffonr 18 3
O. Henri (1877-1927) - Começa a expor no SaJon de la Libre EsthétiqllE, em " Sil',la de NJo Resçoscas. Plon 1 4
Bruxelas, em 1904. Participa do Salon des Indépendantse do SaJon d'AllCOITlne. da 5 4
". O total é superior a N, na I 2
NationaJe des Beallx-Arcs e das Tu!herias. Expõe regularmente na Ga/erie Drouant. 5
Illcdida em que o nlcsmo autor
As obras deste pintor prestigioso figuram em numerosos museus e coleções 11 33
pode tn I'llblicado obras em dos
particulares do mundo inteiro.
edirurl's diferentes. quais lI/f/fluir. 8

Pierre Bourdieu x
 A mesma observância das regras estabelecidas verifica-se o espaço dos escritores
entre os escritores. É assim que os intelectuais que têm obtido
sucesso intelectual (ou seja, o conjunto dos autores mencionados,
no período de 1972 a 1975, na "seleção" de La Quinzaine littéraire)
são mais jovens do que os autores de best-seJIers (ou seja, o conjunto
dos autores mencionados, no período de 1972 a 1974, no ranking
semanal de L'Express) e, sobretudo, são laureados com menos
freqüência pelos júris literários (31 % contra 63%) e, especialmente,
pelos júris mais "comprometedores" no entender dos intelectuais,
assim como menos freqüentemente reconhecidos com
condecorações (22% contra 44%). Enquanto os best-sellers são
editados, sobretudo, por grandes editoras - Grasset, Flammarion,
Laffont e Stock - especializadas nas obras de venda rápida, os autores
que têm obtido sucesso intelectual são publicados, em número
superior a 50%, por três editores - Gallimard, Le Seuil e ÉditioIls fl

de Jvfinuit-, cuja produção é orientada exclusivamente para o público

intelectual. Estas oposições são ainda mais marcantes se compararmos
populações mais homogêneas, a saber: os escritores publicados por
Laffont e Jvfinuit. i\itidamente mais jovens, estes últimos só
raramente são contemplados com prêmios (se excetuarmos o Plix
lYfédicis, ou seja, o mais intelectual, entre todos os prêmios
literários) e, sobretudo, muito menos freqüentemente agraciados
com condecorações. De fato, trata-se de duas categorias de escritores,
reagrupados pelas duas editoras, que, na prática, não podem ser
comparados: por um lado, o modelo dominante é o do escritor puro, VII
comprometido em pesquisas formais e sem relação com o séculO; o
por outro, o primeiro lugar cabe aos escritores-jornalistas e aos
jornalistas-escritores que produzem obras "em que existe uma
sobreposição da história e do jornalismo", "incluindo a biografia e a
sociologia, o diário íntimo e a narrativa de aventura, o corte
cinematográfico e o depoimento de ação judicial":79 "Se observo a
lista de meus autores, vejo, de um lado, aqueles que passaram do
jornalismo para o livro, tal como Gaston Bonheur, Jacques Peuchmard, "" Escritores publicados por EdJúons Laf[~Jn[
Henri-François Rey, Bernard Clavel, O:ivier Todd, Dominique [J Membros da AL-adémie lrançaise
Lapierre, etc., e, do outro, aqueles que, tendo sido professores • Escritores publicados por Edirions de :l!inui[

01
cc Pierre Bourdieu
/1 {'rodllí"/i1J d:z Crc'JJç:z

universitários, tais como Jean-François Revel, Max Gallo, Georges
Belmont, percorreram o caminho inverso. Em literatura, resta pouco
espaço para a vida de reclusão". Btl A essa categoria de escritores,
muito típica das editoras comerCÍaÍs, seria necessário acrescentar
os autores de testemunhos que escrevem por encomenda e, às vezes,
com a assistência de um jornalista-escritor. 81
Conseqüência das análises propostas mais acima a respeito
da distribuição dos teatros no espaço, o valor social da residência
privada só se define por referência às características sociais do
bairro onde ela se situa e das características sociais da população
dos moradores (efeito de clube), assim como das características
sociais dos lugares públicos, profissionais, Bolsa de Valores,
escritórios de empresas, escolas, locais elegantes onde convém
ser visto, teatros, hipódromos, galerias, calçadões. Sem dúvida, o
valor social dos diferentes bairros depende também da
representação que os agentes têm do espaço social; por sua vez,
tal representação depende não só de sua posição na classe
dominante, mas igualmente de sua trajetória snci~ll. Para
compreender a distribuição no espaço de UIlLl 11()11l1Ia~·~jll
escritores, é necessário fazer in tervir, além dn p~ll rimul1 iu e dus
recursos financeiros, todas as disposições que se exprimem também
no próprio estilo da obra, assim cornu a maneira panicular de
realizar a condição do escritor: por exemplo, a preocupação de sê-
lo que pressupõe que se possa tirar partido continuamente dos
encontros, ao mesmo tempo, fortuitos e previsíveis, garantidos
pela freqüentação dos lugares bem freqüentados. A proximidade
no espaço físico permite que a proximidade no espaço social
produza todos os seus efeitos ao facilitar e favorecer a acumulação
de capital social (relações, ligações ... ).
Os membros das academias moram quase todos nos bairros
mais tipicamente burgueses (8°, 16°, 7° e 6° -- e, precisamente, no
Faubourg SaÍnt-CermaÍn: ruas de Varenne, Bonaparte, du B:1L~ de
SeÍne, de CreneJle). No lado oposto, os autores de ÉdÍúons de
}YfinuÍtS2 e, particularmente, os ÍntelectuaÍs (por oposição aos
romancistas que, em grande parte, têm preferência pelo 7°, 6" e
Picrrc BOllrdicll
,
16"), encontram-se, em sua maioria, nos bairros da região Sul de
Paris (14°, 13", 12°, 5°) e, sobretudo no subúrbio (Sul e no setor
menos chÍque do subúrbio Oeste). Apesar de serem, sem dúvida,
os mais dispersos, os autores da editora Laffont são localizados, ao
mesmo tempo, no 16° e subúrbio Oeste cllÍque (e, embora mais
raramente do que os membros das academias, também no 6°) e nos
bulevares ou bairros excêntricos, habitados também pelos intelectuais
(14°, 15°); oposições que, segundo parece, correspondem a
subpopulações, atual ou potencialmente, distintas, ou seja, as dos
escritores em via de consagração e a dos jornalistas escritores. 33
Clássicos ou Desclassificados
É claro que o primado atribuído pelo campo da produção
cultural à juventude remete, lima vez mais, à relação de denegação
dll poder e da "economia" que está em sua origem: se, por seus
atributos associados à indumentária e por toda sua heXÍS' corporal,
de os ÍnreieclUais e os artistas tendem sempre a colocar-se do lado da
juventude é porque, tanto nas representações quanto na realidade,
a oposição entre jovens e velhos é homóloga da oposição entre o
poder e a seriedade burgueses, por um lado, e, por outro, a
indiferença ao poder ou ao dinheiro, assim como a recusa Íntelectual
do espírito de seriedade, oposição que a representação burguesa -
que avalia a idade pelo poder e pela relação correlata ao poder -
retoma por sua conta quando identifica o Íntelectual com o jovem
blllgllês em nome do estatuto comum a ambos de dominanres-
dominados, provisoriamente afastados do dinheiro e do poder. 8-l
No entanto, o privilégio consentido à juventude e aos
valores de mudança e originalidade aos quais ela está associada só
poderá ser compreendido cabalmente a partir da relação dos artÍstas
com os burgueses, ele exprime também a lei específica da mudança
• COj~j u nto de propriedades associadas ao uso do corpo em que se excerioriza a
poslçao de classe de uma pessoa_

do campo da produção, a saber: a dialética da distinção que vota as
instituições, escolas, obras e artistas - que, inevitavelmente, estão
associados a determinado momento da história da arte, que fizeram
época ou ganharam notoriedade - a caírem no passado, tornarem-
se clássicos ou desclassificados, serem lançados para fora da história
ou "passarem à história", ao eterno presente da cultura em que as
mais incompatíveis tendências e escolas "em atividade" podem
coexistir pacificamente por terem sido canonizadas, academizadas,
neutralizadas.
o envelhecimento advém também às empresas e autores
quando umas e outros permanecem apegados (ativa ou
passivamente) a modos de produção que, sobretudo se haviam
feito época, estão inevitavelmente datados; quando se confinam
em esquemas de percepção ou apreciação que, sobretudo, ao se
converterem em normas transcendentes e eternas, impedem de
perceber e aceitar a novidade. É assim que o marchznd ou o editor
descobridor pode deixar-se confinar no conceito insl ifllc/o/l.J!ic./(!o
(tal como nouveau roman ou "nova pintura americana") que ele
próprio ajudou a produzir, na definição social em relação à qual
terão de se posicionar os críticos, os leitores e também os autores
mais jovens que se contentam em acionar os esquemas produzidos
pela geração dos descobridores e que, por este motivo, tendem a
confinar a editora em sua imagem:
"Eu pretendia algo de novo, afastar-me das veredas já trilhadas. Eis a
razão pela qual, escreve Denise René, minha primeira exposição foi
consagrada a Vasarely: tratava-se de um pesquisador. Em seguida, em
1945, expus Atlan porque ele era também insóJjto, djferente, novo.
Certo dia, cinco desconhecidos - Hartung, Deyrolle, Dewasne,
Schneider, Marie Raymond - vieram apresentar-me suas telas. Em uma
piscadela, diante dessas obras estrÍtas, austeras, tive a impressão de
que minha via estava traçada; havia aí bastante dinamÍ[e para provocar
a paixão e colocarem questão os proble~as artísticos. Organizei, então,
Pierre Bourdieu
a exposição 'Jeune peinture abstraite' Uovem pintura abstrata] Qaneiro
de 1946). Para mim, começava o tempo co combate. Em primeiro
lugar, até 1950, para impor a abstração em seu conjunto, dermbar as
posições tradiâonaisda pintura figurativa qL:e, na época - apesar de ser
um aspecto não sufiâentemente lembrado heje em dia - era amplamente
majoritária. Em seguida, em 1954, ocorreu o maremoto informal:
assistiu-se à geração espontânea de grande quantidade de artistas que
se deixavam atolar complacentemente na m2téria. A galeria que, desde
1948, combatia em favor da abstração, recusou a paixonite geral e
Jjmitou-sea uma escolha estrita, a saber: o aestrato construtivo oriundo
das grandes revoluções plásticas do início do século e, atualmente,
desenvolvido por novos pesquisadores. Arte nobre, austera, que afinna
continuamente toda a sua vitalidade. Por que motivo, aos poucos,
acabei por dcknder exclusivamente a arte cc'nstmÍda? Se procuro tais
razões em mim mesma é porque, segundo rr,e parece, nenhuma outra
consegue exprimir melhor a conquista do artista em um mundo
amcapdo de decomposição, um mundo em perpétua gestação. Em
uma obra de Herbin, Vasarely, não há lugar pra forças obsCllras, para
o atolamento, o mórbido. Esta arte traduz. com toda a evidência, o
controle toral do criador. Uma hélice, um espigão, uma escultura de
Schoffer, um quadro de Monensen ou de Mondrian: eis outras tantas
obras que me inspiram confiança; pode-se ler nelas, de fonna obcecante,
a dominação da razão humana, o triunfo do homem sobre o caos. Eis,
para mim, o papel da arte. A emoção encontra aí seu pleno deleite".'"
Por ser revelador dos princípios de funcionamento do
campo, este texto mereceria ser comentado linha por linha. Com
efeito, mostra de que maneira a decisão que se encontra na origem
das escolhas iniciais, ou seja, o gosto pelas construções "estritas"
e "austeras", implica recusas inevitáveis; de que maneira, ao serem-
lhe aplicadas as categorias de percepção e aprêciação que tornaram
possível a "descoberta" da novidade, qualquer novidade nova é
rejeitada do lado do informe e do caos; finalmente, de que maneira
a lembrança dos combates travados para impor cânones
considerados, em outro tempo, heréticos, legitima o fechamento
à contestação herética do que se tornou uma nova ortodoxia.
A Produção da Crença
A Diferença
Não é demais afirmar que a história do campo é a história
da luta pelo monopólio da imposição das categorias de percepção
e apreciação legítimas; é a próprÍa luta que faz a história do campo;
é pela luta que ele se temporaliza. O envelhecimento dos aucores,
obras ou escolas não é, de modo algum, o produto de um deslize
mecânico para o passado, mas a criação continuada do combate
entre aqueles que fizeram época e lutam para que esta perdure,
por um lado, e, por outro, aqueles que, por sua vez, não podem
fazer época sem remeter para o passado os que têm interesse a
interromper o tempo, a eternizar o estado presente; entre os
dominantes que estão comprometidos com a continuidade, a
identidade, a reprodução, e os dominados, os recém-chegados,
que estão interessados na descontinuidade, ruptura, dil-erença,
revolução. Fazer época é impor sua marca, fazer reconhecer (no
duplo sentido) sua dÍferença em relação aos outros produtores e.
sobretudo, em relação aos produtores mais c()l1sagrac!os; é,
inseparavelmente, fázer exÍstÍr uma nova flosiç-.l(! para além (1:1s
posições ocupadas, à frente dessas posições, lU vanguarda.
Introduzir a diferença é produzir tempo. Compreende-se o lugar
que, nesta luta pela vida, pela sobrevivência, cabe às marcas
dÍstÍntÍvas que, na melhor das hipóteses, visam idemificar, muitas
vezes, as mais superficiais e visíveis das propriedades associadas
a um conjunto de obras ou produtores. As palavras, nomes de
escolas ou de grupos, nomes próprios, só têm tama importância
porque eles fazem as coisas: como sinais distintivos, eles produzem
a existência em um universo em que existir é diferir, "fazer-se um
nome", um nome próprio ou nome comum (a um grupo). Falsos
conceÍtos, instrumentos pr:ftÍCos de classificação que estabelecem
as semelhanças e as diferenças, nomeando-as, os nomes de escolas
ou de grupos que têm florescido na pintura recente - pop art,
mÍnimal art, process art, land art, bodyart, arte conceitual, arte
povera, Fluxus, novo realismo, nova figuração, suporte-superfície,
op art, cinética - são produzidos na luta pelo reconheCÍmento pelos
Pú!rrc Bourdieu
próprios artistas ou por seus cnncos titulares, e desempenham a
função de sÍnaÍs de reconheCÍmento que distinguem as galerias,
os grupos, assim como os pintores e, ao mesmo tempo, os producos
que eles fabricam ou propõem. Só
A única atitude que resta aos recém-chegados é remeter
contÍnuamente para o passado - no próprio movimento pelo qual
eles têm acesso à existência, ou seja, à diferença legítima ou, até
mesmo, por um tempo mais ou menos longo, à legitimidade
exclusiva - os produtores consagrados a quem eles se medem e,
por conseguinte, seus produtos e o gosto daqueles que
permanecem apegados a isso. É assim que as diferentes galerias
ou editoras, à semelhança dos diferentes pintores ou escritores,
distribuem-se em cada instante segundo a respectiva idade artística,
ou seja, segundo a antigüidade de seu modo de produção artística
e segundo o grau de canonização e secularização desse esquema
gerador que, ao mesmo tempo, é esquema de percepção e
apreciJção; o campo das galerias reproduz, de alguma forma na
sincronÍa, a história dos movimentos artísticos desde o final do
século XIX: cada uma das galerias importantes jei fôÍ uma galerÍa
de vanguarda em um tempo maÍs ou menos longínquo e é tanto
mais consagrada e capaz de consagrar (ou, o que dá no mesmo, ela
vende tanto mais caro), quanto mais afastado estiver no tempo
seu produto, quanto mâis amplamente for conhecida e reconhecida
sua marca (o abstrato geométrÍco ou o pop amerÍcano), mas também
quanto mais definitivamente estiver confinada nesta marca
("Durand-Ruel, o marchand dos Impressionistas"), nesse falso
conceito que é também um destino.
Em cada instante do tempo, seja qual for o campo de luta
(campo das lutas de classe, campos da classe dominante, campo
da produção cultural, etc.), os agentes e as instituições envolvidos
no jogo são, ao mesmo tempo, contemporâneos e temporalmente
discordantes. O campo do presente não passa de outro nome do
carn['o de lutas (como é demonstrado pelo fato de que um autor
do ['Jssado está presente na exata medida em que ele está em
jogo) e a contemporaneidade como presença ao mesmo presente,
 ao presente dos outros, só existe praticamente na própúa luta que distâncias entre os estilos ou os estilos de vida é,
sÍncronÍza tempos discordantes (é assim que, como será inquestionavelmente, em termos de tempo.88
demonstrado alhures, um dos principais efeitos das grandes crises
históricas, dos acontecimentos que fazem época, consiste em
sincronizar os tempos dos campos definidos por durações A temporalidade do campo da produção artística
estruturais específicas); no entanto, a luta que produz a
contemporaneidade como confronto de tempos diferentes só
geração /
poderá ser travada porque os agentes e os grupos que ela opõe não -artÍstica- / /
estão presentes no mesmo presente. Basta pensarmos em um --_ f---- -,1/ _
campo particular (pintura, literatura ou teatro) para verificarmos / A2
'b-/ /

~'b-~/_~///
que os agentes e as instituições que se enfrentam nesse campo -
pelo menos, objetivamente, através da concorrência ou do conflito _ _ _ e- _ _ _
- estão separados pelo tempo e sob a relação do tempo: uns, que J"/ AI/AI

se situam, como se diz, na vanguarda, não têm contemporâneos

A /
"",.,(
/1
! P
r
v / \.
/
f,-" /
/ /

que eles reconhecem e por quem são reconhecidos (além dos outros
produtores de vanguarda), portanto, não têm público a não ser no
futuro; os outros, que são chamados comumente os conservadores,
não reconhecem seus contemporâneos a não ser no passado (as
linhas pontilhadas horizontais do diagrama ao lado mostram essas
contemporaneidades ocultas) Y O movimento temporal produzido
pela aparição de um grupo capaz de fazer época ao impor uma
posição avançada traduz-se pela translação da estrutura do campo
do presente, ou seja, das posições temporalmente hierarquizadas
que se opõem em determinado campo (por exemplo, pop art, arte
cinética e arte figurativa); assim, cada uma das posições encontra-
tI t2 t3
se defasada de uma fila na hierarquia temporal que, ao mesmo
tempo, é uma hierarquia social (as diagonais pontilhadas reúnem
as posições estruturalmente equivalentes - por exemplo, a
vanguarda - em campos de épocas diferentes). Em cada instante,
a vanguarda está separada por uma geração artística (entendida Além de dominarem o campo da produção, os autores
como a diferença entre dois modos de produção artística) da consagrados dominam também o mercado; não são somente os
vanguarda consagrada que, por sua vez, está separada por outra mais caros ou os mais rentáveis, mas também os mais legíveis e os
geração artística da vanguarda já consagrada no momento de sua mais aceitáveis porque, no termo de um processo mais ou menos
entrada no campo. É o que faz com que, tanto no espaço do campo longo de familiarização, associado ou não a uma aprendizagem
artístico, quanto no espaço social, a melhor forma de medir as específica, acabaram por se banalizar. O mesmo é dizer que, por

o
.0'. pjerrc Bourdjcu

seu intermédio, as estrateglas dirigidas contra sua dominação
atingem sempre, por acréscimo, os consumidores distinguidos de
seus produtos distintivos. Impor ao mercado, em determinado
momento, um novo produtor, um novo produto e um novo sistema
de preferências, é fazer deslizar para o passado o conjunto dos
produtores, dos produtos e dos sistemas de preferências
hierarquizados sob a relação do grau de legitimidade adquirida. O
movimento pelo qual o campo da produção se temporaliza define
também a temporalidade da preferência. Pelo fato de que as
diferentes posições do espaço hierarquizado do campo da produção
(que são identificáveis, indiferentemente, por nomes de
instituições, galerias, editoras, teatros ou por nomes de artistas
ou escolas) são, ao mesmo tempo, preferências socialmente
hierarquizadas, qualquer transformação da estrutura do campo
acarreta a translação da estrutura das preferências, ou seja, do
sistema das distinções simbólicas entre os grupos: as o[1osiçóes
homólogas daquelas que se estabelecem atualmente enlrl' () ~',(),IO
dos artistas de vanguarda, o gosto dos jr]tc/ccru:lis, o gosto hIJl:~I!(:s
avançado e o gosto burguês provinciano, além de l'llcorll Llrl'nl
seus meios de expressão nos mercados simbolizados IlL'ias galerias
Sonnabend, Denise Ren(.; ou Dur<lllel-Ruel, tui:lIll conseguido
exprimir-se de forma tão eficaz em 1945, em um espaço em que a
vanguarda era representada por Dcnisc Rcm; ou, em 1875, quando
esta posição avançada era mantida por Durand-Ruef.
Esse modelo impõe-se, atualmente, com uma clareza
particular porque, em virtude da unificação quase perfeita do campo
artístico com sua história, cada ato artístico que faz época ao
introduzir uma posição nova no campo desloca a série inteira dos
atos artísticos anteriores. Pelo fato de que toda a série dos golpes
pertinentes está presente praticamente no último, à semelhança
dos cinco algarismos já discados no aparelho telefônico estão
presentes no sexto, um ato estético é irredutível a qualquer outro
ato situado em outra fila na série; aliás, a própria série tende para
a unicidade e a irreversibilidade. Assim, se explica que, conforme
I Pierre Bourdieu
,
observa Marcel Duchamp, os retornos a estilos passados nunca
tenham sido tão freqüentes quanto no decorrer destes tempos de
pesquisa exasperada de originalidade:
"A característica do século que termina consiste em ser como um duplo
barrcl/cdgun: Kandinsky, Kupka inventaram a abstração. Em seguida, a
abstração morreu. Ninguém mais falaria no assunto. Trinta e cinco anos
depois, eb ressurgiu com os expressionistas abstratos americanos. Pode-
se dizer que o cubismo voltou a aparecer sob urna forma empobrecida
com a Éco/c de Palisposterior à grande guerra. Da mesma forma, o Dada
ressurgiu. Dupla chama, segundo fôlego. Trata-se de um fenômeno
próprio ao século. Isso não existia no século XVIII ou XIX. Após o
RonnntislTlo, apareceu Courbet. E o Romantismo nunca mais voltou.
Nem sl'quer os pré-rafaelitas poderão ser considerados uma nova moagem
dos rtllll:inrims".'c,
Ik LiIO, esses retornos SJO sempre aparentes já que estão
sl'p;n;ll!os do qlll' l'lIContram pela referência negativa a alguma
coisa que, por sua vez, era a negação (da negação da negação, etc.)
do que encontram (quando n.1O é, simplesmente, pela intenção
de pastiche, de paródia que pressupõe toda a história
intermediária)."O No campo artístico, no atual estágio de sua
história, não há lugar para os ingênuos; além disso, todos os atos,
todos os gestos, todas as manifestações, são, como afirma
perfeitamente um pintor, "uma espécie de piscadela, no interior
de determinado ambiente*":91 essas piscadelas, referências
silenciosas e ocultas a outros artistas, presentes ou passados,
afirmam nos e pelos jogos da distinção uma cumplicidade que
exclui o profano, sempre votado a deixar escapar o essencial, ou
seja, precisamente as inter-relações e as interações das quais a
obra não passa do vestígio silencioso. Nunca a própria estrutura
elo campo esteve praticamente tão presente em caela ato de
produção.
. No urigirl<l!. [niliell.
o paradoxo de Bem, o artista:
será que a arte pode dizer a verdade da arte?

"A situação novo realista, a situação pop, é a situação

Duchamp (... ). O que procuramos é uma sÍruação pós-
Duchamp. Uma sÍtuação pós-Duchamp só pode ocorrer quando
nos damos conta da situação e tentamos modificá-la" (... ).
"Em Mozart, a novidade é que era o belo; em Wagner, a
novidade é que era o belo quando ele surgiu (... ); na arte, a
novidade é que é belo (... ). Todos os quadros, sem exceção,
em um salon pretendem dizer 'Olhem para mim, por
gentileza' ... já que são diferentes uns dos outros. Então, certo
dia, pediram-me um quadro em uma exposição de grupo (... ).
Então, (... ) escrevi: 'Olhem para mim, por gentileza, não
olhem para os outros' (... ). Há um que diz: 'Todos os quadros
são azuis'. Outro que fala: 'Melhor do que isso: enquanto VOcl'
fez um traço, eu nem preciso fazer traços'. Um outro que diz:
'Ainda melhor do que isso: faço uma merda qualquer em
madeira'. 'E melhor do que isso: não faço absolutamente
nada'. 'Então, o que é que cu poderia fazer melhor do que Gesto: DIZER A VERDADE. 1971
nada? Mato todos os espectadores'. 'Ainda melhor do que isso,
faço explodir o planeta'. Trata-se de uma coisa impossível de
parede, é olhar para ela: mas, agora, qual é a parte que deve
fazer (... ). A arte é um jogo de megalomania: quero ser sempre
ser modificada para mudar a arte, para contribuir com algo,
o melhor (... ). Apercebemo-nos de que, para sermos mais
porque nunca quesúonei a noção de beleza, de criação (... ).
fortes do que os outros, temos que ser menos fortes.
Para fazer algo de novo, deve-se evitar de fazer algo de novo;
Apercebemo-nos de que, para sermos os maiores, convém
mesmo assim, é para fazer algo de novo que não convém fazer
que não sejamos grandes. Porque todo o mundo quer ser
algo de novo, não há dúvida (... ). Quando alguém é artista,
grande (... ). O que existe em uma obra de arte? Há madeira,
não pode deixar de ser artista. É isso o que me interessa (... ).
então, utilizo madeira. Há chassi, então, coloco chassi. Há
Não é possível que alguém consiga modificar-se, eis o mea
tela, então, utilizo tela. Há pintura, então, uso pintura. Há
culpa que enviei para Roma sob a forma de autocrítica. Isso é
cor, então, utilizo cor. Mas, existe também o artista; então,
lamentável porque eu nem deveria ter participado da
coloco o artista. Há sua mãe, suas alianças, suas influências, a
exposição. "
ideologia, a política, o país. Há tudo. Utilizei tudo. Há seu
ciúme, suas ambições (...). O que é interessante é dizer, uma
vez que se conseguiu tudo o que está na arte traçada na parede,
uma vez que se conseguiu tudo o q!1e está na arte traçada na (Entrevista televisiva de Ben Vautier, 1975)

Pierre Bourdieu 11 Produçiio da Crença


Também a irredutibilidade - operada pelo artista - do trabalho
da produção à fabricação nunca apareceu de maneira tão evidente.
Em primeiro lugar, porque a nova definição do artista e do trabalho
artístico aproxima o trabalho do artista do trabalho do intelectual e
o torna, mais do que nunca, tributário dos comentários intelectuais.
Crítico, mas também chefe de escola (no caso, por exemplo, de
Restanye dos novos realistas) ou companheiro de identificar a criaç§o
com a introdução de distâncias, perceptíveis unicamente aos
iniciados, em relação a formas e fórmulas conhecidas por todos. O
surgimento desta nova definição da arte e do ofício de artista não
poderá ser compreendida independentemente das transformações
do campo da produção artística: a constituição de um conjunto,
sem precedentes, de instituições de registro, conservação e análise
das obras (reproduções, catálogos, revistas de arte, museus que
expõem as obras mais modernas, etc.), o aumento do pessoal
dedicado, em tempo completo ou parcial, à celebraçJo da obra lk
arte, a intensificação da circulação das obras c dos artistas, mIl] as
grandes exposições internacionais e a multiplicWl() d;lS i,,;l!ITi;lS mll1
múltiplas sucursais em diversos países, ele., tlldo cOlltribui para
favorecer a instauração de uma rel:1ç:1o sem pl'l'cedl'fltes, análoga
àquela que conhecem as grandes tradições esotéricas, entre o corpo
dos intérpretes e a obra de arte. Dl' modo que será necessário tornar-
se cego para não enxergar que o discurso sobre a obra não é um
simples acompanhamento, destinado a favorecer sua apreensão e
apreciação, mas um momento da produção da obra, de seu sentido
e de seu valor. No entanto, bastará citar, uma vez mais, Mareei
Duchamp:
"- Para voltar a seus ready-made, eu julgava que R. Mua, assinatura da
Fountain, era o nome do fabricante. Mas, em um artigo de Rosalind
Krauss, li o seguinte: 'R. ivlutr, apun on the German, Armur, orpovert;!.
Com o título 'Pobreza', o sentido da Fountain teria sido totalmente
diferente.
- Rosalind Krauss A moça ruiva? Isso não é verdade. Pode desmentir.
7 como re-criação, dissimula, pelo quase desvelamento que, muitas
Muttvem de Alott Works, nome de uma grande empresa de louça sanitária.
Pierre Bourdicu
,
No entanto, a palavra lHoaera muito parecida; então, inventei Alua
porque, nessa época, eram publicadas, diariamente, histórias em
quadrinhos com o título Mua andjef, conhecidas por todo o mundo.
Portanto, desde o início, havia uma ressonância. Alua, um gordinho
brincalhão, eje!, um magro bem alto... Eu queria um nome diferente. E
acrescentei Richard .. Richard, nome apropriado para um mictório! Veja
só, o contrário de pobreza... Mas, nem era isso, somente R.: R.Alua.
- Qual seria a interpretação possível para a Roue de Bicyc/eae [Roda de
bicicletaF Será que se pode ver nisso a integração do movimento na obra
de arte? Ou um ponto de partida fundamental, a exemplo dos chineses
que inventaram a roda 7
1\ única intenção dessa máquina é a de me desembaraçar da aparência
da ohra dé ar té. 'li'atava-se de uma fantasia. Eu nem a chamava de 'obra de
:lIll". Eu pl,·téndia acahar com a vontade de criar obras de arte. Por que
111' ltivo :1, obus dewlll Sl'r estáticas? A coisa - a roda de bicicleta - existia
antes d:1 ide'ia. Sem intenção dé colocar isso em e\'idéncia, nem querer
dizer': 'Fui l'U quem fiz isso e, antes de mim, ninguém ainda havia feito
tal coisa'. Aliás, os originais nunca chegaram a ser vendidos.
- E o livro de geometria exposto às intempéries 7 Será que se pode dizer
que havia a idéia de integrar o tempo no espaço? Ao brincar com a
expressão 'geometria no espaço' e com a palavra 'tempo', chuva ou sol,
quem viria transformar o livro 7
- Nada disso... do mesmo modo que não havia a idéia de integrar o
movimento na escultura. Isso não passava de uma forma de humor.
Apenas humor e só humor, Para denegrir a seriedade de um livro de
princípios" .
Nesse depoimento, apreende-se, diretamente desvelada,
a injeção de sentido e valor operado pelo comentário e o comentário
elo comentário - para o qual, por sua vez, contribuirá o
desvelamento, ao mesmo tempo, ingênuo e libertino, da falsidade
elo comentário. A ideologia da obra de arte inesgotável, ou da leitura
veZL:S, SL: observa nas coisas da fé, que a obra é bem feita não duas

vezes, mas cem, mil vezes, por todos aqueles que se interessam
por isso e encontram um benefício material ou simbólico em lê-la,
classificá-la, decifrá-la, comentá-la, reproduzi-la, criticá-la, combatê-
la, conhecê-la, possuí-la. O enriquecimento acompanha o
envelhecimento quando a obra chega a entrar no jogo, quando se
torna um desafio e, assim, incorpora uma parcela da energia
produzida pela luta da qual é o objeto. A luta, que remete a obra
para o passado, é também o que lhe garante uma forma de
sobrevivência: arrancando-a ao estado de letra morta, de simples
coisa do mundo votada às leis comuns do envelhecimento, ela
garante-lhe, no mínimo, a eternidade triste do debate acadêmico. 92
Notas e Referências Bibliográficas
L "La production de la croyance: contribution à une l'cononlil' dl's hil'ns
symboliques" in Acres de la recherche en sciefl,-e,," socialc,,", n" U. revnei,,) d,'
1977. p. 3-43. Tradução de Guilherme João de Freitas T('ixeiLl. rl'vis,-l() 11","i,';1 li<'
Maria da Graça Jacintho Setton.
2. P.D.G. (Presidente Diretor-Geral) ,LI FdiloLI /'/('ss,',," d,' /1 !'il,'
3. Proprietário de é~fitions N. lallilfli.
4. Daqui em diante, :lS aspas indicucll) que SL' [rala de "economia" no sentido
restrito de economicismo.
5. O grande editor, à semelhança do grande marchand, associa a prudência
"econômica" (muitas vezes, é escarnecido por sua gestão de "pai de família") à
audácia intelectual, distinguindo-se assim daqueles que se condenam, pelo menos.
"economicamente", porque empenham a mesma audácia ou a mesma desenvoltura
no negócio comercial e no empreendimento intelectual (sem falar daqueles que
combinam a imprudência econômica com a prudência artística: "Um erro em
relação ao preço de custo ou à tiragem poderá desencadear uma verdadeira catástrofe,
ainda que as vendas sejam excelentes, Quando Jean-Jacques Pauvert iniciou a
reimpressão do Líttré [NT: Trata-se do mOnLlmental Dicionário da língua fi-ancesa
(4 volumes e I suplemento; 1863-1873), dirigido por Émile Littré (1801-1881),
lexicógrafo francês e membro da Academia Francesa. cf. Pequeno Dicionário
Enciclopédico, Koogan Larousse, Rio de Janeiro, Editora Larousse do Brasil Ltda.,
1987], o negócio anunciava-se bem auspicioso em razão do número inesperado de
subscritores, Mas, no lançamento, tornou-se claro que um erro de estimativa do
preço de custo significava a perda de quinze francos por exemplar. O editor foi
obrigado a ceder a operação a um confrade." (DEMORY, B. "Le livre à l'àge de
l'industrie" in L'Expansion, outubro de 1970. p. J lO). Deste modo, compreende-
se melhor que Jérôme Lindon possa congraçar os sufrágios, ao mesmo tempo, do
Pierre Bourdieu
grance editor comercial e do pequeno editor de vanguarda: "Um ediwr, com uma
equipe e despesas fixas reduzidas, pode viver plenamente impondo sua
personalidade. Isso exige dele uma disciplina bastante estrita porque se encontra
imprensado entre o equilíbrio fin:lnceiro a ser assumido e a tentação do crescimento.
Admiro profundamente Jérôme Lindon, diretor das Édi[jons de Minuit, por ter
conseguido manter esse difícil equilíbrio ao longo de sua v'ida de editor. Soube
fazer prevalecer o que ele amava e nada mais do que isso, sem se deixar distrair no
decorrer do tempo. Temos necessidade de editores como ele para que surja o novo
romance, mas também é preciso editores como eu para refletir as facetas da vida e
da criação" (LAFFONT, R. Editeur, Paris, Laffont, 1974. p. 291-292). "Era a época
da guerra da Argélia e posso di:er que, durante três anos, vi\'i como um militante
do EL.N. [NT: Sigla de Front de Libération Nationale (Frente de Libertação
Nacional), movimento argelino que assumiu a insurreição dos nacionalistas
durante a Guerra da Argélia (1954-1962). cf. Le Petit Larousse illusué, Paris,
2000], ao mesmo tempo que me rornei editor. Como diretor de Editions de Minuit,
Jérôme Lindon - que, para mim, nunca deixou de ser um exemplo - denunciava as
torturas" (MASPERO, F. "Maspero entre tous les feux" in Le Nouvel Observateur,
17 de setembro de 1973).
6. Esta análise que, prioritariamente, se aplica às obras novas de autores
deswnh('cidos é válida tarnbl'lT1 para as obras irreconhecidas ou desclassificadas e,
alé l'll'SIl1<l, [-/.íssí[':I,,", que 1"J,1cm sempre ser objeto de "redescobertas",
"rL"lj''''SL'IlLlÇ'-'('S'' e "rc!eituras" (dai, o grande número de produções filosóficas,
lr[l'r:íri:ls, teatrais incl:lssilicáveis. cujo paradigma é a encenação vanguardista dos
[('Xl[" tradici"llais).
7. NclU é um acaso se o papel de caução que incumbe ao marchand de arte é,
parri..:ularmente, visivel no domínio da pintura em que o investimento "econômico"
do cO:11prador (o colecionador) é, incomparavelmente, mais importante do que em
matéria de literatura ou, até mesmo, de teatro. RaJ'mond 1vloulin observa que "o
contrato assinado com uma galeria importante tem valor comerciai" e que o
marchmd é, para os amadores, o "fiador da qualidade das obras" (MOCLlN, R. Le
Marcf:é de la peinture en France, Paris, Ed. de Minuit, 1967. p. 329).
8. É evidente que, segundo a posição ocupada no campo da produção, as ações de
valorização podem variar desde o recurso aberto às técnicas publicitárias (publicidade
na imprensa, catálogos, etc) e às pressões econômicas e simbólicas (por exemplo,
sobre os júris que distribuem os prêmios ou sobre os críticos) até a recusa altaneira
e um tanto ostensiva de qualquer concessão a uma época que pode ser, afinal de
contas, a forma suprema da imposição de valor (acessível somente a alguns).
9. A representação ideológica transfigura funções reais: o editor ou o marchand,
que consagra o essencial de seu tempo a essa atividade, é o único que tem a
possibilidade de organizar e racionalizar a difusão da obra que - sobretudo, talvez,
para a pintura - é um empreendimento considerável, pressupondo informação
(em relação aos locais de exposição in[eressantes, sobretudo, no exterior) e recursos
materiais. Mas sobretudo, ele é o único que, atuando como intermediário e écran,
pode permitir que o produtor mantenha uma representação carismática, ou seja,
inspirada e "desinteressada", de sua pessoa e de sua atividade, evitando-lhe o
contato com o mercado e dispensando-o das tarefas, ao mesmo tempo, ridículas,
desmoralizantes e ineficazes (pelo menos, do ponto de vista simbólico), associadas
à valorização de sua obra. (É pro'.-ável que o oficio de escritor ou pintor, assim como
as representações correlatas, fossem toralmente diferentes se os produtores tivessem
A Produção da Crença
dt' t~,II";llltir pur si rnl'slllOS (1 c()IlH~rcialjzaçJ.o de seus prudutos e Sê dcpendessCl11,
dirl't;llnentc, em suas condições de existência, das sanções do mercado ou de
instúncias que se limitam a conhecer e a reconhecer tais sanções, como as editoras
"comerciais").
10. Aqueles que, a estas análises, não deixarão de opor a representação irênica das
relações "confraternais" entre produtores, conviria lembrar todas as formas de
concorrência desleal, das quais o plágio (mais ou menos habilmeme dissimulado)
não passa da mais conhecida e visível; ou, ainda, a violência - totalmente simbólica,
é claro - das agressões pelas quais os produtores visam des3.ueditar seus
concorrentes (não se pode deixar de mencionar a história recente da pintura que
fornece inumeráveis exemplos - um dos mais típicos, para citar apenas pessoas já
falecidas, foi a relação entre Yves Klein e Piero Manzoni).
11. Estas análises prolongam, especificando-as, aquelas que haviam sido propostas,
não só a respeito da alta costura em que as implicações econômicas e, ao mesmo
tempo, as estratégias de denegação são muito mais chamativas (cf. BOURDIEU,
P. e DESAULT, Y. "Le couturier et sa griffe: contribution à une théorie de la magie"
in Aetes de la recherche en sciences sociales, n" 1, janeiro de 1975. p. 7-36), mas
também a propósiLO da filosofia; neste caso, a ênfase é colocada na contribuição
dada pelos intérpretes e comentaristas ao reconhecimento como re-
irreconhecimento da obra (cf. BOURDIEU, P 'Tontologie politique de Martin
Heidegger" in Aaes de la recherche en sciences sociales, n° 5-6, novembro de
1975. p, 109-156). Em vez de aplicar a novos campos o conhecimento das
: propriedades gerais dos campos que, evemualmente, pudessem ter sido estabelecilbs
alhures, aqui, trata-se de tentar elevar, a um n/vel maior de e:pliciraç';io é gcncralid:uic,
as leis invarhlJ1tes do funcionamento e mudança dos camp,Js dé luta rclo conFronto
de vários campos (pintura, teatro, literatura, jornalismo) em que, por razões que
podem referir-se, seja à natureza dos dados dis[1oníveis, seja a propriedades
específicas, as diferentes leis não se manifestarTI com a rnesrna clareza. Esta tent3.tiva
opoe-se tanto ao formalismo teoreticista que é seu próprio objeto, quanlü ao
empirismo idiográfico, votado à acumulação escolástica de proposições refutáveis.
12. Entre uma infinidade de afirmaçoes, eis alguns exemplos: "Conheço um
pintor com qualid?de no que diz respeito ao ofício, matéria, etc., mas o que faz é,
para mim, totalmente comercial; ele mantém uma fabricação, como se fizesse
pãezinhos (".). Quando os artistas se tornam muilü conhecidos, quase sempre,
têm tendência a se deixarem arrastar pela fabricação em série" (trecho de entrevista
de um diretor de galeria). Muitas vezes, a única garantia de convicção oferecida
pelo vanguardismo é sua indiferença pelo dinheiro e seu espírito de contestação:
"Para ele, o dinheiro não conta: além, até mesmo, do ser;iço púbiico, ele concebe
a cultura como um instrumento de contestação" (BAECQUE, A. de. "Faillite au
théàtre" in L'EJ<pansion, dezembro de 1968).
J 3. Para permanecermos dentro dos limites da informação disponível (fornecida
pela belíssima pesquisa feita ror GUETTA, Pierre. Le Théàtre et son publlC,
mimeografado, Paris, Ministêre des affaires culturelles, 1966, 2 vaIs.), cItamos
apenas os teatros levados em consideração por esse estudo, Em 43 teatros parisienses
(excluindo os subvencionados), recenseados em 1975 nos jornais especializados,
29 (ou seja, 2/3) oferecem espetáculos que têm a ver claramente com o teatro de
bulevar; 8 apresentam obras clássicas ou neutras (no sentido de "não marcadas")
e 6, situados na rive gauche, arresentam obras que podem ser consideradas como
pertencentes ao teatro intelectual.
pjerre BOllrdieu
I·L Aqui, C(~ll1U no liL'U)lrt'l" di) !l':dl), "htlJ:.~I'("· I' Illrl.l (",!l'III>}',II!I,1 ,li' li I,,'"
clur11inantes da classe dOlllinallte" LjlLllhlt) () I ('j"JllO (', til ill :.11 11) (( 11111) '.1111',I.lllll\-11
ou quando é adjetivo "estrururalmenre associa,!o :1 1:\1', 1['[1"'''''' 1',1[ ',I[ [ I":
"intelectual" funciona da mesma forma para "(r:lç,')e, c1"[lli[\.ld,\., d,[ (\.[".".
dominante".
15. O estudo da distribuição da clienteiJ entre os diferentes teatro, CO[II'I1l1.1 l'sl:1.'
an.ilises: em uma extremidade, o TEp, que recruta perto da metade de' sua cli,'!l(e!:l
nas fraçoes dominadas da classe dominante, compartilll3 seu público com os
ourros teatros jmeleetuais (TNP, Odéon, Vi'cux ColombiN, Athénéc); !la outra
extremidade, os teatros de bulevar (Anwine, v:zriétés) , cujo pLlblico é com rosto
quase 50% por diretores e executivos classe A e por suas esposas; entre os dois, a
Comédie frafll,:aise e o Atelier "fazem troca" de espectadores com todas as outras
salas de teatro.
16. Uma an:ilise mais fina revelaria um certo número de oposições (sob os diferentes
aspectos considerados mais acima), no ãmago do teatro de vanguarliJ ou, até
mesmo, do teatro de bulevar. É assim que uma leitura atenta das estatísticas de
freqüência sugere que é possível opor um teatro burguês "chique" (Th~;úrc de
P'lris, Ambassadellrs, que apresentam obras - Commenr réussir en aff:úres et
Pnoto-finish, de P Ustinov, elogiadas por Le Figaro de 12/02/1964 e 06/01/1964
- e até mesmo, em relação ao primeiro teatro mencionado, por Le NOllvcl
Observatellr de 05/03/1964) que acolhe um público de burgueses cultos, em sua
maioria, parisienses, e assíduos freqüentadores do teatro, e um teatro burguês, de
préferência, "grande público", que apresenta espetáculos "parisienses" (Michodierc
- La prclIve par qU:ltrc, de Félicien Marceau; Antoine - Mar}; Alar}; Variétés - Un
h(l,~,'IllC comblé, de J. Deva!), criticados com violência (o primeiro por Le Nouvd
O.~-'cna{Clir de 12/02/1964; e os outros dois pc'r Lc Fljpro de 26/09/1963 e 28/
12/1964) e acolhe um público mais provinciano, menos habituado a freqüentar o
teatro e mais pequeno-burguês (os executivos da classe média e, sobretudo, os
artesãos e comerciantes são os mais representados), Apesar de não ser possível
verificar estatisticamente (à semelhança do que já foi tentado em relação à pintura
e à literatura), tudo parece indicar que os autores e os arores dessas diferentes
categorias de teatros se opõem sempre segundo os mesmos princípios. Assim, em
1972, as grandes vedetés das peças que fazem sucesso nos teatros de bulevar
(quase sempre pagas também com uma porcentagem da receita) poderiam ganhar
até 2.000 francos por noite, e os atores conhecidos de 300 a 500 francos por
representação; enquanto isso, os atores da Comédie française (sócios, sócios
honorários e pensionistas), menos bem pagos por representação do que os artistas-
estrela dos [eatros privados, beneficiam-se de um salário mensal fixo ao quai se
acrescentam complementos para cada representação e, em relação aos sócios, uma
parcela do lucro anual que varia segundo a antigüidade. Por sua vez, os atores das
pequenas salas da rive gauche estão votados à instabilidade do emprego e a
remunerações extremamente reduzidas.
17. cf. DESCOTES, M. Le Public de thédtre et son histoire, Paris, PU.F., 1964. p.
298. Esse gênero de caricatura não seria tão freqüente nas próprias obras teatrais
(estamos pensando, por exemplo, na paródia do nouveall roman em Haute-fidélité
de ~,lichel Perrin, 1963) e, ainda mais, nos escritos dos críticos, se os autores burgueses
não tivessem a certeza de encontrar a cumplicidade do pLlblico burguês quando, ao
acenarem suas contas com os autores de vanguarda, eles trazem seu reforço intelectual
aos burgueses que se sentem desafiados ou condenados pelo teatro jnteleetua!
c>
A Produç/io da Crença
 18. DORlN, F op. cit. p. 47
19. lbid. p. 158
20. Ibid. p. 79, 101
21. Ibid. p. 10 1
22. Ibid. p. 67
23. lbid. p. 68
24. Ibid. p. 80, 85
25. [bid. p. 27 e 67
26. Ibid. p. 36
27. Para fornecer uma idéia do poder e pregnância de tais taxinomias, vejamos um
só exemplo: sabe-se pela pesquisa estatística sobre os gostos de classe que as
preferências dos intelectuais e dos burgueses podem organizar-se em torno da
oposição entre Goya e Renoír; ora, tendo sído levado a descrever os destinos
contrastantes de duas filhas de zelador de prédio - uma, votada a 'casar-se na área
de serviço', enquanto a outra se tornou proprietáría de um 'sétimo andar com
terraço' -, Françoise Oorin compara a prímeira a um Goya e a segunda a um Renoir
(cf. OORIN, F. Le Toumant, op. cit. p. 115).
28. In Le Figaro de 27 de março de 1964.
29. [n Le FÍgaro de 15 de fevereiro de 1964.
30. [n Le Figaro de 1[ de março de 1964.
31. [bid. p. 27
32. Jean Outourd que, durante muito tempo, foi crilico dl' /-I,/II,,'-SOl!; l.iLI "illli.t
com mais clareza: "Procurar em janeiro, :ls oilo horas da Illlil", "11"vi's ,L" vi"I:ls
cobertas de neve, a j\[:ziSOfl de I:i Cu/une de Nallll'rll', C()UIIll'UVl', ,\ulll'lviliIL'rs,
Boulognc, trata-se de urna tristeza sem noml'. lillllo Illais LJue, de alllelll:!o, salwmos
o que nos espera: n:!o uma festa, um espetáculo charmoso representado por
pessoas sagazes, mas exatamente o contrário, a saber: algum lLlgubre patronato
[ai co, urna peça simploriamente progressista, gaguejada por amadores, um público
de pequeno-burgueses e comunistas do pedaço, escutando com boa vontade, mas
pouco descontraído no entreato" (OUTOURO, J. Le Paradoxe du critique, Paris,
Flammarion, 1971. p, 17). (A estatística fornece uma base objetiva à relação,
percebida pela polêmica burguesa, entre teatro de vanguarda - ou seja, do subúrbio
ou da rive gauche - e público pequeno-burguês e suburbano - i. e., de esquerda e
da n've gauche: os operários, contramestres e agentes técnicos - que represencam
4% somente do público dos teatros em seu conjunto -, os empregados e os
executivos da classe média; por último, os professores não se distribuem ao acaso
entre os diferentes teatros) Mesma intenção, guiada unicamente pela intuição
social, entre aqueles que entendem lembrar que, se os museus são acessíveis aos
professores, somente as pessoas "chiques" freqüentam as galerias.
33. Não se compra um jornal, mas um princípio gerador de tomadas de posição
definido por uma certa posição distintiva em um campo de princípios geradores
institucionalizados de tomadas de posição: e pode-se afirmar que um leitor irá
sentir-se tanto mais completa e adequadamente identificado quanto mais perfeita
for a homologia entre a posição de seu jornal no campo dos órgãos de imprensa e
a posição que ele próprio ocupa no campo das classes (ou das frações de classe),
fundamento do princípio gerador de suas opiniões.
<')
o
Pierre BourdÍeu
34. A análise da dis:ribuição de clientela confirma que Fr:1l1L-e-Soir se encontra
bastante próximo de L'Aurore; que Le Figaro e L'Express estão a urna distância
quase igual de todos os outros (Le Figaro inclinando-se, de preferência, para
France-Soir, enquanto L'Express se volta para Le Nouvel Observateur); e que,
finalmente, Le Monde e Le Nouvel Observatellr formam um último conjunto.
35. Os executivos do setor privado, engenheiros e prOfIssionais liberais distinguem-
se por uma taxa média de leitura global e por uma taxa de leitura de Le Monde
nitidamente mais elevada do que os comerciantes e os industriais (os primeiros
permanecem mais próximos dos industriais pelo peso das leituras de baixo nível -
France-Soir, L'Aurore - no conjunto de suas leituras, e, também, por uma forte
taxa de leitura dos órgãos de informação econõmica, tais como Les Echos,
lnformation, Entreprise; enquanto os últimos aproximam-se dos professores por
sua taxa de leitura de Le NOllvel Observatellr).
36. GUILLEM[NAUD, Gilbert. in L'Allrore de 12 de janeiro de 1973.
37. GAUTIER, Jean-Jacques. in Le Figaro de 12 de janeiro de 1973.
38. KANTERS, Robe~;. in L'Express de 15-21 janeiro de 1973.
39. OANOREL, Louis. in Le Monde de 13 de janeiro de 1973.
40. Essa arte da conciliação e do compromisso alcança a virtuosidade da arte pela
arte com o jormlisla ~e La Cmi.\", cuja aprovação incondicional é acompanhada por
CllllsideraçJo 1:10 sut:':m'tl[c articubda, por litotes em duplas-negações, por matizes
l'ltl resl'I"vas l' Cllrr,'·:ClCS a si mesmo, que a conciliatio opposirorllm final, tão
ill!:l'lll[;lllll'lllt: jl'SUí;:,"l "fUlldo e forma", segundo ele -, parece quase evidente:
"ri' /i'urn,lllr, Clltlhl Fi disse, parece-me urna obra admirável, considerando seu
l'Ulld" L' furllLl. CllL'.~m que se diga que ela irá enraivecer um bom número de
espectadores. Pusici,;,;ndo, por acaso, ao lado de um supporrer incondicional da
vanguarda, percebi ~crante toda a representação sua cólera enrustida. Nem por
isso tiro a conclusão:e que Françoise Oorin foi injusta em relação a certas pesquisas
respeitáveis - até r;-,esmo se estas são, muitas ve=es, enfadonhas - do teatro
contemporâneo (...). E se a conclusão da peça - tal alusão é leve - comemora o
triunfo do 'Bulevar' - embora de um bulevar em si mesmo de vanguarda - é
porque, precisameme, um mestre como Anouilh já se havia colocado, há muito
tempo, como guia r:1 encruzilhada desses dois caminhos" (VIGNERON, Jean. in
La Croixde 2l de j,,--,eiro de 1973).
41. P[ERRET, M. in Lr: Nouvel Observateur de 12 de fevereiro de 1964, a propósito
de La preuve par qL',,:re de Félicien Marceau.
42. TESSON, PhiliF~e. in Le Canard enchainé de 17 de março de 1973.
43. A lógica do fun:'onamento dos campos da produção de bens culturais como
campos de luta que ;'avorecem as estratégias de distinção faz com que os produtos
de seu funcionamer::o, quer se trate da criação de moda ou de romances, estejam
predispostos a funcionar diferencia/mente, como instrumentos de distinção, em
primeiro lugar, entre as frações, e, em seguida, entre as classes.
44, Podemos dar cré:ito aos críticos mais reputados por sua conformidade com as
expectativas de se',: público quando eles garantem que, além de nunca se
identificarem com 2 opinião de seus leitores, muitas vezes, chegam a combatê-la.
Assim, Jean-Jacques Gautier (GAUT1ER, J,-J, Théàrre d'alljourd'hui, Paris, Julliard,
1972. p. 25-26) af'~:na com justeza que o princípio da eficácia de suas críticas
reside não em um a~~lStamento demagógico ao público, mas em um acordo objetivo
A Produç:io da Crc'-;ca

que, entre o crítico e o público, permite uma perfeita sinceridade, indispensável
também para ser acredjtado, portanto, eficaz.
45. Neste aspecto, entre os dois pólos, a simetria não é perfeita; além disso, os
intelectuais no sentido habitual (ou seja, grosso modo, os produtores que produzem
- principalmente - para outros produtores) podem ignorar, mais facilmente, as
posições opostas, embora - pelo menos, corno contraste e testemunha de um
estado "ultrapassado" - estas orientem ainda negativamente o que eles designam
por sua "pesquisa".
46. In Le hgaro de 11 de dezembro de 1963.
47. Situando-se na mesma posição em urna estrutura homóloga que engendra as
mesmas estratégias, A. Drouant, o marchand de quadros, denuncia os "bombeiros
de esquerda, os falsos gênios para quem a falsa originalidade faz as vezes de
talento" (Galerie Drouant, Catalogue, 1967. p. 10).
48. É interessante que, segundo a observação de Louis Dandrel em sua crítica
sobre Le Toumant, essas estratégias até então reservadas às polêmicas filosófico-
políticas dos ensaístas políticos, mais diretamente confrontados com urna crítica
objetivante, façam hoje sua aparição no palco dos teatros de bulevar, lugares por
excelência da segurança e tranqüilidade burguesas: "Reputado terreno neutro ou
zona despolitizada, o teatro de bulevar arma-se para defender sua integridade. A
maior parte das peças apresentadas neste início de temporada evocam ternas políticos
ou sociais aparentemente explorados corno se fossem molas quaisqul'r (:lduitl'rios
e outras situações) do mecanismo imutável do estilo cômico: fl:1 peia de Fl'li,i"11
Marceau, serviçais sindicalizados; em Anouilh, grevistas; nos texlos ,i<- lod" "
gente, jovem geração liberada" (in Le Munde de l:\ de j:ul<'iJ<> d(' 1'17\) () hlo d,·
que, segundo é mostrado muito bem por /.t' Ti)/lnJ,lIll, " "['"si"j,, ('1111(' ft'I.l::U.lld.1
e vanguarda, forma eufemÍstica da oposii:1o ('111ft' dileil:l e t'squeld.I, 5('):1 vivid:1 5,,!l
a espécie da oposição entre o moderno (qll('III-vive(()ln-seu-tempo) e o
ultrapassado, ou seja, entre os jovclls e os velil"s, illdir:1 'lUt' a illquietai')O capaz de
suscitar essas estratégias defellsivas intrnulIZiu-sc por intermédio da geração jovem,
diretamente atingida pelas tr:1IlSI{lrm;liÓes do mod() de reprodução em vigor.
49. "Trata-se ai de urna espécie de talenw que difama o novo cinema, o qual imita
neste ponto a nova literatura, hostilidade fácil de compreender. Quando uma arte
pressupõe determinado talento, os impostores fingem menosprezá-lo, achando-o
demasiado árduo; os medíocres escolhem as vias mais acessíveis (CHAUVET,
Louis. in Le Fjgaro de 5 de dezembro de 1969).
50. "Um íilme não é digno do novo cinema se o termo 'contestação' não figurar na
exposição dos motivos. Indiquemos com precisão que, no caso concreto, ele não
significa absolutamente nada"(CHAUVET, Louis. in Le hgaro de 4 de dezembro
de 1969).
51. "Não será verdade que, além de acumular as maís grosseiras provocações
erótico-masoquistas anunciadas pelas mais enfáticas profissões de fé lirico-
metafísicas, seu prazer consiste em ver a pseudo-intelügentsia parisiense desmaiar
diante dessas sórdidas banalidades?" (B., C. in Le fIgaro de 20-21 de dezembro de
1969).
52. "Não é desse jeito que se é informado, mas trata-se de algo que se sente... Eu
não sabia exatamente o que estava fazendo. Existem pessoas que enviam
informações, mas eu não sabia disso (... ). A informação é sentir vagamente, ter
Pi('rrc Bnllrdi(~u
1
vontade de dizer as coisas e encontrá-las... Trata-se de um mamão de pequenas
coisas, de sentimentos e não de informações" (Entrevista concedida por um pintor).
53. GAUTIER, J.-j. op. cir. p. 26. Os editores têm, igualmente, plena consciência
de que o sucesso de um livro depende do lugar de lançamento: sabem o que é e não
é "feito para eles", além de observarem que tal livro "que era para eles" (por exemplo,
Gallimard) foi um fracasso em outro editor (por exemplo Laffom). O ajustamento
entre o autor e o editor, em seguida, entre o livro e o público é, assim, o resultado
de uma série de escolhas em que intervém sempre a imagem de marca do editor: é,
em função, dessa imagem que os autores escolhem o editor que, por sua vez, os
escolhe em função da idéia que ele próprio tem de sua editora; por sua vez, os
leitores, na escolha de um autor, fazem intervir também a imagem que têm do
editor (por exemplo, "São difíceis as obras lançadas por J'.fjnuh") , o que contribui,
sem dúvida, para explicar o fracasso dos livros deslocados. É esse mecanismo que
leva um editor a afirmar, com justeza, o seguinte: "Cad2. editor é o melhor em sua
categoria" .
54. Conta-se que Jean-Jacques Nathan (leia-se, Editora Femand Nathan) ,
conhecido por ser, antes de tudo, um gestor, define a atividade editorial como um
"ofício altamente especulativo": com efeito, as vicissitudes são imensas e ínfima a
possibilidade de recuperar os gastos quando se edita um escritor jovem. Um
romance que nãu ubtém sucesso consegue uma vigência (a curto prazo) que pode
ser infl'I';or a três semanas; em seguida, são os exemplares perdidos, rasgados ou
d('lllasiadll suj"s para serem devlllvidos, e os que voltam encontram-se no estado
de papel $l'lll v:ll,,[, Em ca.';() de sucesso médio a curto prazo, uma vez subtraídos os
gastos de E1bricação, os direitos de autor e a despesa com a difusão, sobra à volta de
20% do preço de venda ao editor que deve amortizar os não-vendidos, financiar seu
estoque, pagar as despesas fixas e impostos. Mas, quando um livro prolonga sua
carreira para além do primeiro ano e entra no "acervo", ele constitui um "capital de
giro" que fornece as bases de urna previsão e de uma "política" de investimentos a
longo prazo: como a primeira edição amortiza as despesas fixas, o livro pode ser
reimpresso com preços de custo consideravelmente reduzidos e, assim, garante
receitas regulares (diretas e também direitos anexos: traduções, edições em livro de
bolso, venda pela televisão ou cinema) que permitem financiar investimentos de
maior ou menor risco que, por sua vez, garantem, a prazo, o aumento do "acervo".
55. As extensões bastante desiguais da duração do ciclo da produção fazem com
que a comparação entre os balanços anuais de diferentes editoras não tenha sentido:
o balanço anual dá uma idéia tanto mais inadequada da situação real da empresa
quanto mais afastados estivermos dos empreendimentos de rápida rotatividade,
ou seja, à medida que a parcela dos produtos de ciclo longo cresce no conjunto da
empresa. Com efeito, tratando-se, por exemplo, da avaliação dos estoques, pode-se
levar em consideração, seja o preço de fabricação, seja o preço de vencia, aleatório,
seja o preço do papel. Esses diferentes modos de avaliação aplicam-se de forma
bastante desigual já que a situação das editoras "comerciais", para quem o estoque
volta rapidamente ao estado de papel impresso, é diferente das editoras para quem
ele constitui um capital que tende a alcançar um valor cada vez mais elevado.
56. Seria necessário acrescentar o caso, que não pode ser mostrado no diagrama, do
fracasso puro e simples, ou seja, de um Codot, cuja carreira teria sido interrompida
no final de 52, deixando um balanço fortemente deficitário.
57. Entre os investimentos seguros a curto prazo, é necessário contar também
V)
o
/1 Prodll,',10 da Crença
com rodas as estratégias editoriais que permitem explorar um acervo: reedições, é
claro, mas igualmente a publicação de livros em formaro de bolso (por exemplo, na
editora Callimard, a coleção Folio) ,
58. Apesar de ser impossível pretender ignorar o efdto do l'urta-cor que tende a
produzir em todo campo o fato de que as diferentes estruturações possív'eis (aqui,
por exemplo, segundo a antigüidade, tamanho, grau de vanguardismo Folítico e /
ou estético, etc.) nunca coincidem perfeitamente, ocorre que se pode, sem dúvida,
considerar o peso relativo dos empreendimentos a longo prazo e a curtO pra=o
como o princípio dominante de estruturação do campo: sob esse aspecto. é pOSSllel
observar a oposição entre as pequenas editoras de vanguarda - Pauverr, Maspero,
Minuir (às quais poderíamos acrescentar Bourgois, se este não ocupasse uma
posição ambígua, tanto no plano cultural, quanto no plano econômico pelo faro
de sua ligação a Presses de la Cite) - e as grandes editoras, tais como Lal'l'o[]r,
Presses de la Ciré, Hacheue. Por sua vez, as posições intermediárias são ocupadas
por ediroras, tais como Flammarion (na qual se encontram, lado a lado, coleçôes
de pesquisa e publicações coletivas por encomenda); Albin Michel, Ca/man-Lé:r,
antigas editoras de tradição, mantidas por herdeiros que, em seu patrimônio,
encontram uma força e um freio; e, sobretudo, Crasser, antiga grande editora,
atualmente englobada no império Hacheue; além de Callimard, antiga editora de
vanguarda, tendo alcançado na atualidade o apogeu da consagração, que reúne u:n
empreendimento voltado para a gestão do acervo e outros empreendimentos a
longo prazo (cuja possibilidade de existência se deve à acumulação de um capil.11
cultural, ou seja, o Chemin, Bibliotheque des sciences humaincs). Quanto ao
subcampo das editoras voltadas, preferencialmente, para a produção a l'"lgo I":CO
- portanto, para o público intelectual -, ele se polariza em tlm\ll d:l 0l" hi(lo. 1,,)1
um lado, entre l\faspero e /Vlinllit (que representa a v,lllgll:lr<i:1 ,'lll vi.1 ,i,'
consagração) e, por outro, Callim:ud, situad:l eIll I,osiçáo d"ulill:lllt", I,' ."·lIil. ':li"
representa o lugar neutro do campo (à seulelir:lrlça de (;,i/ilm.lld, cujos autor,·s.
como v'eremos, estão representados n:l lista dos besl-sel/crs e. igualnll'!ltc, !la ii'éa
dos best-sel/ers intelectuais, constitui o lugar neutro do campo em seu conjunto).
O domínio prático desta estrutura que orienta também, por exemplo, os fundadores
de um órgão de imprensa quando eles sentem que "existe um lugar a ser ocupado"
ou "visam os segmentos de mercado deixados vagos" pelos meios de expressão
existentes, exprime-se na visão rigorosamente topológica do jovem editor, De!orme,
fundador da editora Éditions Calilée, que tenta encontrar seu lugar "entre as
Éditions de Minuit, Maspero e Le Seui/' (afirmações relatadas por JOSSIN, J. in
L'Express, 30 de agosto - 5 de setembro de 1976).
59. É bem conhecido no "meio" [No original, milieu] que o diretor de uma Cas
maiores editoras francesas não lê, praticamente, nenhum dos manuscritos que
publica; além disso, passa seu tempo em tarefas de pura gestão (reuniões do comitê
de fabricação, encontro com os advogados, com os diretores das filiais, etc.).
60. De fato, seus atos profissionais são atos intelectuais análogos à assinatura de
manifestos literários ou políticos, ou de petições (com, em suplemento, alguns
riscos - basta pensar, por exemplo, na publicação de La question) que lhe rendem
as gratificações habituais dos intelectuais (prestígio intelectual, entrevistas, debates
radiofônicos, etc.).
61. Robert Laffont reconhece essa dependência quando, para explicar a diminuição
do número de traduções relativamente às obras originais, invoca, além do aumenco
da soma dos adiantamentos devidos aos direitos de tradução, "a inf1uência
Pierre Boure/ieu
determinante da mídia, particularmente, da televisão e rádio, na promoção dc Ulll
livro": "A personalidade e a elocução natural do autor constituem um elemento de
peso na escolha dessa mídia e, portanto, na expectativa do público. Neste domínio,
os autores estrangeiros, com exceção de alguns monstros sagrados, são
naturalmente desfavorecidos" (Vient de paraftre, Boletim de informação das
Éditions Roben Lal'font, n° 167, janeiro de 1977).
62. Ainda aqui, existe convergência entre lógica cultural e lógica "econômica":
como é demonstrado pelo que se passou com as Éditions du Favois, um prêmio
literário pode ser catastrófico, de um ponto de vista estritamente "econômico",
para uma pequena editora que está iniciando sua atividade e, de repente, é obrigada
a enfrentar os enormes investimentos exigidos pela reimpressão e difusão, em
grande número, do livro premiado.
63. Isso é visível de maneira particularmente clara em matéria de teatro: o mercado
dos clássicos ("as matinês clássicas" propostas pela Comédie française) obedece a
leis bem particulares pelo fato de sua dependência em relação ao sistema de ensino.
64. A mesma oposição se obsct\'a em todos os campos. E André de Baecque
descreve, assim, a oposição que, em sua opinião, caracteriza o campo do teatro,
entre os "homens de negócios" e os "militantes": "Os animadores de teatro são
pcssoas de toda a espécie. Têm em comum o seguinte: em cada criação, arriscam
qUZlse sempre um importante investimcnto de dinheiro e talento em um mercado
imprevisível. M:I, a sernelh:lIlça tiLa por aí: suas motivações são extraídas de todas
as ideologias. !':rr:l llns, o teatro ê uma especulação semelhante às outras, mais
I'itorescl talvez, lIlas a sl'lviço da mesma estratégia fria em que se misturam
tornadas de opçôes, riscos calcui:ldos, finais de meses difíceis, exclusividades
lH'gociacia" :15 vezes, acima das fronteiras. Para outros, traca-se do veiculo de uma
mensagem, ou o instrumento de uma missão. Às vezes, um militante chega
mesmo a fazer bons negócios ... " (BAECQUE, A. de. op. cit.)
65. Sem chegar ao ponto de transformar o fracasso em uma garantia de qualidade
como pretende a visão polêmica do escritor burguê,~ "Agora, para ser bem-sucedido,
é necessário sofrer fracasssos. O fracasso inspira confiança, enquanto o sucesso
parece suspeito" (DORIN, F. op. cit. p. 46).
66. Todas as citações são extraídas de uma entrevista concedida por Sven Nielsen,
P.D.G. da editora Presses de la Ciré, in PRIOURET, R. La Fr,wce et le management,
Paris, Denoel, 1968. p. 268-292.
67. Este texto de Jérôme Lindon sobre Samuel Beckett, dado à estampa in Cahiers
de l'Heme, em 1976, foi escrito originalmente para uma coletânea em homenagem
ao dramaturgo, publicada por John Calder, em inglês, por ocasião da atribuição do
prêmio Nobel, em 1969.
68. "Ai de mim! Limito-me a reproduzir, concertando, adaptando, o que vejo e
ouço. Que falta de sorte I O que vejo é sempre lindo, o que ouço é. quase sempre,
divertido. Vivo no meio do luxo e da espuma de champagne" (DüRIN, F. op. cit.
p. 27). Não há necessidade de evocar a pintura de reprodução, encarnada atualmente
pelos impressionistas, que, segundo se sabe, fornecem todos os best-sellers (exceto
a Monalisa) aos editores especializados na reprodução de obras de arte: Renoir (La
jeunc filie aux t?eurs, Le Moulin de la Calette); Van Gogh (L'église d'Auvers);
1\\onet (Les coguelicots); Degas (La répétition d'un ballet); Gauguin (Les
paysannes) - informaçôes obtidas junto à Canerie do Louvre, em 1973. Em relação
aos livros, igualmente, estamos pensando na imensa produção de biografias,
ç
il ProduçJo da Crença

memórias, testemunhos que, de Laffom a Lartes, de Nje!sen a Orban, oferecem
aos leitores burgueses uma "vivência" alternativa (por exemplo, na editora La/fone,
a coleção vécu ["vivência"] - com "memórias" de Mme Emile Pollack ou i\lme
Maurice Rheims, do juiz Batigne ou de Marcel Bleusteín-B1anchet - ou Un homme
e[ son méúer ["Um homem e seu ofício"]).
69. Tanto na literacura como alhures, os produtores em tempo completo (e, a
forúoá, os produtores para produtores) estão longe de possuir o monopólio da
produção: em 100 pessoas mencionadas no Who's Who que produziram obras
literárias, um nllmero superior a um terço é não-profissional (14% de industriais,
11 % de funcionários de escalão superior, 7% de médicos, etc) e a parcela dos
produtores em tempo parcial é ainda maior no domínio dos escritos políticos
(43%) e de cultura geral (48%).
70. Entre esses últimos, ainda poderíamos distinguir, por um lado, aqueles que
chegaram à atividade editorial com um projeto propriamente comerdal - tais como
Jean-Claude Lattes que, tendo começado por ser assessor de imprensa na editora
Laffom, pensou seu projeto, na origem, como uma coleção (Édlúon spéda!e) da
editora onde trabalhava, ou como Olivier Orban (aliás, ambos apostam, de saída,
nas narrativas por encomenda) - e, por outro, aqueles que, depois de diversas
tentativas mal-sucedidas, se contentaram com projetos "alimentares", tais corno
Guy Authier ou Jean-Paul Mengês.
71. A mesma lógica faz com que o editor-descobridor esteja sempre ameaçado d.'
ver suas "descobertas" desviadas por editores mais bem instaladns nll Iluis
consagrados, que oferecem seu nome, notoriedade e intluênci:l snhr., "" jlJlis d.'
prêmios literários, além da publicidade e direitos de autor mais l'i,'\·".itlS
72. Por oposição à galeria Sonnabend, que congrega piJl!"res j"V"liS (" Imis \l'ilIn
tem 50 anos), embora já relativamente reconhecidns, L' :\ g:lkri:l /!IlUlltl-fillt'1 que
expõe somente pintores célebres e já falecidos, a g,ril'lia Ih'lIis,' Rt'lIé - que se
mantém neste ponto particular do espaço-tempo do campo aní,tico em que os
lucros, normalmente exclusivos, da vanguarda e Ih consagração chegam, durante
um instante, a se adicionar - acumuh um conjunto de pintores já fortemente
consagrados (abstratos) e um grupo de vanguarda ou de vanguarda anterior (arte
cinética), como se tivesse conseguido escapar, durante um lapso de tempo, à
dialética da distinção que arrasta as escolas para o passado.
73. A oposição estabelecida pela análise entre as duas economias não implica
nenhum julgamento de valor, embora ela nunca se exprima nas lutas comuns da
vida artística, a não ser sob a forma de julgamentos de valor; além disso, apesar de
todos os esforços de distanciamento e objetivação, ela corre o risco de ser lida
através das viseiras da polêmica. Como já foi demonstrado alhures, as categorias de
percepção e apreciação (por exemplo, obscuro/claro ou fácil, profundo/superficial,
originallbanal, etc) que funcionam no terreno da arte são oposições de apliC<J"çâo
quase universal fundadas - em última análise, por intermédio da oposição entre
raridade e divulgação, vulgarização, vulgaridade, entre unicidade e multiplicidade,
entre qualidade e quantidade - na oposição, propriamente social, entre a eljte e as
massas, entre os produtos de e/lte (ou de qua/ldade) e os produros de massa.
74. Este efeito é perfeitamente visível na alta costura ou na perfumaria em que as
empresas consagradas só podem manter-se durante várias gerações (corno Caron
ou Chanel e, sobretudo, Guerlain) mediante uma política que visa perpetuar
artificialmente a raridade do produto (os "contratos de concessão exclusiva" limitam
00
o
1
os pontos de venda a locais, por sua vez, escolhidos por sua raridade: lojas dos
costureiros de grande prestígio, perfumarias dos bairros chiques, aeroportos).
Como o envelhecimento é, aqui, sinônimo de vulgarização, as antigas grandes
marcas (Coty, Lancôme, Worth, Mo!yneux, BOllrjojs, etc) fazem uma segunda
carreira no mercado popular.
75. Estamos bem cientes do que pode haver de arbitrário em caracterizar uma
galeria pelas pinturas que ela detém - o que conduz a assimilar os pintores que ela
fez e segUT.1 com aqueles dos quais ela possui somente algumas obras sem ter seu
monopólio. O peso relativo dessas duas categorias de pintores é, aliás, muito
variável segundo as galerias e, sem dúvida, permitiria estabelecer uma distinção,
fora de qualquer julgamento de valor, entre galerias de venda e galerias de escola.
76. Tudo leva a supor que a clientela das galerias apresenta características homólogas
às dos pintores que elas expõem: as galerias de vanguarda, tais como Temp!on,
Sonnabend e Lambert (duas das quais situadas na r/ve gauche) que expõem a
extremidade avançada da vanguarda, ou seja, dos pintores jovens, cuja notoriedade
não vai além do círculo dos pintores e críticos profissionais, só vendem a um bem
reduzido número de colecionadores profissionais, em sua maior parte estrangeiros,
e recrutem seu público entre os pintores e jntelectuajs que lhes servem de
companheiros de estrada, críticos de vanguarda e professores universitários
mar[,illals. As galeria' da rive drojee têm, sem dúvida, dois públicos, correspondentes
,\s duas categoriclS de produtos que elas oferecem: por um lado, grandes
".,kcionadorcs muito al'ortullados, únicos a terem condições de comprar as obras
dos piJll<lfcS mais cunsagrados do século XIX; e, do outro, burgueses menos
afortun'ldos e mel1l)S cultos, médicos e industriais da provincia, que ficam
plenamcnce satisfeitos com a maneira canônica e a temática convencional dos
pintores acadêmicos, sobrewdo, quando estão acompanhadas pela "garantia preço
e qualidade", segundo a expressão utilizada pelo catálogo da Galeria Drouant,
oferecida pelas grandes galerias tradicionais.
77. É evidente que, como já foi demonstrado alhures, a "escolha" entre os
investimentos de risco, segundo a exigência da economia da denegação, e as
aplicações seguras das carreiras temporais (por exemplo entre artista e anista-
professor de desenho ou-entre escritor e escritor-professor) não é independente da
orígem social e da propensão para enfrentar os riscos que esta induz de uma forma
mais ou menos fácil, em conformidade com a confiança inspirada por ela.
78. cf Pelntres t7gurat/fs coneemporajns, Paris, Galerie Drouant, 4' trimestre de
1967.
79. LAFFONT, R. oI'. cit. p. 302
80. Ibid. p. 216
81. Menos de 5% dos jnte!eauais que têm obúdo sucesso jnte!eaua! se encontram
também no conjumo dos autores de best-se/lers (e todos eles são autores altamente
consagrados, tais como Sartre, Simone de Beauvoir, Soljenitsync, etc).
82. No caso dos autores de Jv[jnujt ou de LatTont, trata-se da fração (respectivamente,
os 4/5 e 1/2) que indicou o endereço.
83. Um dos traços distintivos dos membros da Académie Concourt consiste em
sua elevada taxa de provinciais (quase 50% contra menos de 115 de membros da
1L'3dc'rnie lraf]~-ajse e autores da editora La!làne, e 1/3 de autores de Édjúons de
Miflulr). Os que moram em Paris, estão distribuidos pelos bairros onde residem os
membros das academias.
.,10,'/ ( "/lC!
84. Podemos, assim, formular a hipótese de que o acesso aos indícios sociais da Porque já não está na moda; porque está associada ao conceitual de dois ou três
idade madura - que é, ao mesmo tempo, condição e efeito do acesso às posições de anos atrás". "- Quem é que poderia dizer o seguinte: quando observo um quadro,
poder - e o abandono das práticas associadas à irresponsabilidade adolescente (das não me interesso pelo que ele representa? - Atualmente, corresponde ao gênero de
quais fazem parte as práticas culturais - ou, até mesmo, politicas - "vanguardistas") pessoas pouco cultas em arte; trata-se de uma declaração típica de quem não tem
devem ser cada vez mais precoces quando passamos dos artistas para os professores, nenhuma idéia a respeito da arte. Há vinte anos, nem sei mesmo se há vinte anos,
destes para os profissionais líberais e destes para os patrões; ou, se quisermos, será que os pintores abstratos teriam proferido tal afirmação? Não creio. Trata-se
podemos formular a hipótese de que os membros da mesma faixa etária biológica exatamente do tipo que é ignorante e afirma: não sou um imbecil, o que conta é
- por exemplo, o conjunto dos alunos das Grandes écoles [NT: Instituições de que isso é lindo" (Pintor de vanguarda, 35 anos).
ensino superior, independentes do sistema universitário, que recrutam por 89. Entrevista reproduzida in VH 101, 3, outono de 1970. p_ 55-61.
concurso e se destinam a formar as elites intelectuais e dirigentes da nação.] - têm 90. É a razão pela qual seria ingênuo pensar que a relação entre a antigüidade e o
diferentes idades sociais, marcadas por diferentes atributos e condutas simbólicos, grau de acessibilidade das obras desaparece no caso em que a lógica da distinção
em função do futuro objetivo ao qual são destinados: o estudante da École des indu: um retorno (mantendo um certo distanciamento) a um modo antigo de
Beaux-Arcs tem o dever de ser mais jovem do que o normalien [NT: Estudante de expressão (como atualmente se passa com o neodadaísmo, o novo realismo ou o
uma Escola Normal que forma os professores para o ensino fundamental ou hiper-realismo) .
superior.] que, por sua vez, deverá ser mais jovem do que o estudante da École
91. Este jogo de piscadelas, que deve ser representado de forma rápida e com muita
poly[ecfJnique ou da ENA [NT: Sigla de École narionale d'administrarion:
naturalidade, exclui, de maneira ainda mais impiedosa, o fr3cassado que executa
estabelecimento público que recruta por concurso e se destina a formar os executivos
um gênero de golpes semelhante ao dos outros, mas em contratempo - em geral,
do escalão superior da administração pública na França. Por sua vez, a École
tarde demais -, e cai em todas as armadilhas, engraçadinho desastrado votado a
polytec.hnique reagrupa várias faculdades na área das ciências exatas.] De acordo
serviê'J da valorização daqueles que, apesar dele ou sem que o saiba, o consideram
com a nlesma lógica, seria necessário analisar a relação entre os sexos no interior
(OII1['.hlre, a llll'llOS que, compreendendo finalmente a regra do jogo, ele venha a
da fração dominante da classe dominante e, de forma mais precisa, OS el'ciloS na
Ir:\llsl'>rrll:Il' SI'11 ,'SI:llulo de fracassado em escolha e torne o fracasso sistemático
divisão do trabalho (particularmente, em matéria de cultura c dl' arte) d,] I'0si\-:ío
,'lU IlIn 11,11/1'<1" :lrtis!i,-o, (A prop,')sito de um pintor que ilusua perfeitamente esta
de dominante-dominado que incumbe às mulheres da bll'l;lIcsicl e qlll' :IS :1I"o,ill!.1
tr:]j,,[,"ria, uln llLltro alirrna de maneira admirável: "Antes, ele não passava de um
relaúvamente dos jovens burglleses e in [t'i'_'c"tIl,JiS, l'redisl'0IHlo:ls :1 IIIII 11;\[",/
I'illl,'r ruim que desejava ser bem-sucedido; agora, executa um trabalho a partir de
mediador entre as frações domin;)n[e c dOfllirl.ld,1 (:di'ls, 1'11",1 dl''''llll'l'ldl:ld"
um f'intor ruim que deseja ser bem-sucedido. Então, tudo bem".)
permanentemente por elas, em particIILlr, :11 r:Iv,'s dos s.i/O/ls)
92. Seria necess:irio mostrar o que a economia da obra de arte corno caso limite, em
85. RENÉ, Denise. Apresentação in CI!.I!I),t;IIC dll !<'I ,~:I!O/l illrcm.uiuna! dcs
que é possível observar com mais clareza os mecanismos de denegação e seus
Galeries pi!otes, Lausanne, MIIs"e CIll!o!l:d des Ik:lllx-Arts, 1'!li3. p. 150.
efeitos (e não corno exceção às leis da economia), traz à compreensão das práticas
86. A crítica universitária dedica-se a discussões sem fim sobre a compreensão e econômicas habituais em que se impõe também, com maior ou menor força
extensão desses falsos conceitos que, na maior parte das vezes, não passam de (como é testemunhado pelo recurso a um conjunto de agentes simbólicos), a
nomes que identificam conjuntos práticos, tais como os pintores agrupados em necessidade de dissimular a verdade nua e crua da transação.
uma exposição marcante ou em urna galeria consagrada, ou os escritores publicados
na mesma editora (e que não valem nem mais nem menos do que as associações
cômodas do tipo "Denise René é a arte abstrata geométrica", "Alexandre lolas é
Max Ernst", ou, ao lado dos pintores, "Arman e suas lixeiras" ou "Christo e suas
embalagens"). E quantos conceitos da crítica literária ou pictural não passam de
uma designação "erudita" de semelhantes conjuntos práticos (por exemplo,
"literatura objetaI" em vez de "nouveau roman" e este em vez de "conjunto dos
romancistas editados por Éditions de Minuir")?
87. Tal é o fundamento da homologia entre a oposição que se estabelece no campo
entre a vanguarda e a retaguarda, por um lado, e, por outro, a oposição entre as
frações da classe dominante: enquanto a apropriação das obras de vanguarda exige
um grau mais elevado de capital cultural do que de capital econômico e, portanto,
oferece-se de preferência às frações dominadas, a apropriação das obras consagradas
exige uma sorna mais elevada de capital econômico do que de capital cultural e,
portanto, é mais acessível (sempre relativamente) às frações dominantes,
88. Os gostos podem ser "datados", por referência ào que era o gosto de vanguarda
nas diferentes épocas: "- A fotografia está ultrapassada. - Por que motivo? -

Pif'rre }JollrdiclI
 •

o COSTUREIRO
E SUA GRIFE
contribuição para uma teoria
da magia!

Pierre Bourdieu com Yvette Delsaut

Se pudennos mostrar que, na magLI considerada em sua totalidade, reinam forç.-as
semelhantes àquelas que agem na religião, teremos demonstrado dessa maneira
que a magÍa tem um caráter coletivo idêntico ao da religião. Só nos restará, então,
fdzer ver como essas forç.-as coletivas tãram produzidas, não obstante o isolamento
em que, segundo parece, se encontram os magos, e seremos levados a conceber a
idéia de que esses indivíduos limitam-se a se apropriar dlS forç.-as coletivas.
MareeI Mauss'

o campo da alta costura deve sua estrutura à distribuição

desigual, entre as diferentes majsons*, da espécie particular de
capital que é o fator da concorrência neste campo e, ao mesmo
tempo, a condição da entrada em tal competição. As características
distintivas das diferentes instituições de produção e difusão, assim
como as estratégias que elas utilizam na luta que as opõe dependem
da posição que ocupam nessa estrutura.

A Direita c a Esquerda

É assim que as instituições que ocupam posições polares

neste campo, ou seja, de um lado as empresas dominantes em
determinado momento - como, atualmente, Dior ou Balmain - e,
de outro, as que mais recentemente entraram na concorrência -
tais como, Paco Rabanne ou Ungaro -, se opõem em quase todas as
relações designadas como pertÍnentes pela lógica específica do
campo.3 Por um lado, os muros brancos e o tapete cinza, os
monogramas, as vendedoras de uma certa Ídade, das velhas maÍsons
de prestígio e de tradição, situadas nos santuários da íÍve droÍCe,
tais como a me FrançoÍs J e a avenue },.fontaÍgne; por outro, o metal
branco e ouro, as formas e os volumes implacavelmente modernos,
além dos vendedores audaciosamente santropezianos** das
boutÍques de vanguarda, implantadas na área chÍque da íÍve gauche,

• Neste contexto, empresas comerciais de moda, ateliers de moda.

.. Referência à cidade de Saint-Tropez, à beira do Mediterrâneo, reputada estância
de férias.

o Costurt'iro e SUe! Grife


ou seja, rue Bonaparte e rue du Cherche-Midi. 4 Em um pólo, a
austeridade no luxo e a elegância sóbria, a grande classe, que convêm
ao capitalista da velha cepa - como disse Marx - e, mais
precisamente, às mulheres com idade canônica das frações mais
elevadas e estabelecidas, há mais tempo, na alta burguesia; no outro,
as audácias um tanto agressivas e espalhafatosas de uma arte dita
de pesquisa que, pela lei da concorrência - isto é, a dialética da
distinção -, pode ser levada a proclamar o ódio à perfeição e a
necessidade do mau gosto, por um desses exageros de artistas que
convêm a tal posição. Por um lado, a preocupação em conservar e
explorar uma clientela restrita e antiga que só se conquista pela
tradição; por outro, a esperança de converter novos clientes, através
de uma arte que pretende estar "ao alcance das massas" - isto é, e
ninguém poderá se enganar neste caso, ao alcance das novas frações
da burguesia ou, o que vem a ser quase o mesmo, que prelL'IH!c ser
cultural e economicamente acessível aos jovens das [[;1(:(')CS ;lnl it~;lS,
O fato de a ideologia populista ele abCrlu ra :IS 1I1.! ,','.IS S(,' ('11" )II[ r.lI
em um campo, onde o esquecimento d;lS Clllllli'Jll's d,' ;1,','SSl) ;lOS
bens oferecidos é mais elifícil qlle alhures, ll'\HiL' a sugerir que cla
deva ser sempre compreendida como uma estratégia nos conflitos
internos de um campo: os ocupantes de urna posição dominada em
um campo especializado podem tcr interesse, em certas conjunturas,
em utilizar a homologia estrutural entre as oposições internas de
um campo e a última oposição entre as classes para apresentar a
procura por urna clientela, no sentido econômico ou político do
termo (aqui, a das frações dominadas do subcampo dirigente da
classe dominante, nova burguesia e os jovens da antiga burguesia),
sob a aparência arrogantemente democrática de abertura às massas,
denominação eufemística e imprecisa atribuída às classes dominadas.
Entre o pólo dominante e o pólo dominado, entre o luxo
austero da ortodoxia e o ascetismo ostensivo da heresia, os
diferentes costureiros se distribuem segundo uma ordem que
permanece praticamente invariável, quando lhes aplicamos
critérios tão diferentes como antigüidade da maison e a importância
,
de seu faturamento, o preço dos objetos oferecidos e o número de
provas, a intensidade das cores e, hoje, o espaço reservado às calças
nas coleções. As posições na estrutura da distribuição do capital
específico se exprimem nas estratégias tanto estéticas, quanto
comerciais. Para alguns, as estratégias de conservação que visam
manter intacto o capital acumulado (o renome da qualidade) contra
os efeitos da translação do campo e cujo sucesso depende,
evidentemente, da importância do capital possuído e também da
aptidão de seus detentores, fundadores e, sobretudo, herdeiros,
em gerir racionalmente a reconversão, sempre arriscada, do capital
simbólico em capital econômico. Para outros, as estratégias de
subversão, que tendem a desacreditar os detentores do mais sólido
capital de legitimidade, a remetê-los ao clássico e, em seguida, ao
desc1.lssificado, colocando em questão (pelo menos, objetivamente)
slIas normas este,ticas c apropriando-se de sua clientela presente
011, ,'m todo caso, fUlura, por meio ele estratégias comerciais que
poderiam ser uti lizadas pelas maisons tradicionais, sem
ILlO
comprometerem sua imagem ele prestígio e exclusividade.
Entre todos os campos de produção ele bens de luxo, a alta
costura é aquele que deixa transparecer mais claramente um dos
princípios de divisão da classe dirigente - ou seja, o que estabelece
oposição entre difetentes faixas etárias, indissociavelmente
caracterizadas como classes endinheiradas e detentoras de poder -
, além de introduzir no campo da moda certas divisões secundárias.
Segundo uma série de equivalências que se encontram em todos os
dominios, jovem se opõe a mais idoso, como pobre se opõe a rico,
mas também como moderno se opõe a tradicional ou como aberto,
antenado politicamente, se opõe a conservador e tradicionalista, e,
finalmente, no domínio do gosto e da cultura, como intelectual se
opõe a burguês. Assim, à semelhança das grandes maisons de costura
ou dos salões de cabeleireiros de grande prestígio, os próprios
comerciantes de peles possuem quase sempre uma loja destinada
aos jovens que se distingue por praticar preços mais baixos ou mais
jovem~ como se diz, às vezes, nesse meio. A lógica do campo deixa
 claro o princípio de todas as equivalências, ou seja, a identificação
entre idade e dinheiro. De fato, a loja - destinada aos jovens - de
uma maison situada no pólo dominante apresenta quase todas as
características das lojas situadas no pólo dominado desse campo:
desde os espelhos e araras de alumínio até vendedoras
freqüentemente de shorr, tudo na maison de Miss Dior, como nas
de Ted Lapidus ou Paco Rabanne, tende a mostrar que se pode ser
"tradicional e, ao mesmo tempo, moderna, em suma, burguesa e
estar na moda", como afirma, sem ironia, um panegirista. 5
Segundo esta lógica, um burguês pobre, isto é, um
últelectual, seja qual for sua idade biológica, eqüivale a um jovem
burguês: aliás, eles têm muitas coisas em comum, audácias na
indumentária, hoje, cabelos longos, gostos fantasistas, idéias
políticas simbolicamente avançadas e, origem de tudo isso na
opinião do burguês, a falta relativa de dinheiro. Os jovens assim
definidos - isto é, grosso modo, o conjunto dos dominantes
dominados -, não conseguem negar a hierarquia do dinheiro e da
idade a não ser constituindo, de forma decisória, outras formas,
menos custosas, da vida de luxo. Mediante UIll considerável
investimento de tempo e de capital cultural, os artistas (e, em
menor grau, os intelectuais) podem se apropriar por um bom preço
- isto é, antes que tais formas sejam consagradas, portanto,
valorizadas do ponto de vista simbólico e, no fim, econômico, por
essa apropriação - de todos os bens da vanguarda, cafés ou
restaurantes populares, objetos antigos e, sobretudo, obras de arte,
espontâneas (as que encontramos no mercado das pulgas) ou
produzidas por profissionais, oferecendo assim aos produtores de
vanguarda uma fração de sua clientela em curto prazo. O estilo de
vida de artista que transfigura a pobreza em distinção e refinamento
encerra a negação do esrilo de vida burguês, desvalorizado por sua
própria venalidade; e o gosto de artista que transforma em obra de
arte tudo o que toca - nem que se trate, como ocorre nos dias de
hoje, de simples dejetos -, remete ao passado, ao ultrapassado, ao
démodé, ao velho (que não é o antigo), com seus aws de violência,
Pierre Bourdieu
o gosto burguês contra o qual se coloca. Isto significa que, uma vez
mais, as faixas etárias constituem, à semelhança de qualquer sistema
de classificação, fatores de disputa simbólica entre as classes ou,
pelo menos, como vemos aqui, entre as camadas de classe que, de
forma bastante desigual, têm interesse no triunfo dos valores
freqüentemente associados à juventude e à velhice.
No campo da moda, como em todos os outros campos, são
os recém-chegados que, à semelhança do que ocorre no boxe com
o desafiante, fazem o jogo. Os dominantes agem sem riscos: não
têm necessidade de recorrer a estratégias de blefe ou enaltecimento
que são outras tantas maneiras de confessar sua fraqueza. "No estilo
clássico - diz um decorador -, é relativamente fácil criar o belo,
enquanto o estilo de vanguarda é muito mais exigente."ô Essa é
uma lei geral das relações entre os dominantes e os pretendentes.
A nelo ser que mude radicalmente o terreno - o que, por definição,
não ocorre com ele - o pretendente empenha-se a parecer
pretensiosa. de fato, tendo que mostrar e demonstrar a legitimidade
de suas pretensões, tendo que prestar provas porque não possui
todas as credenciais exigidas, "ele exagera", como se diz,
denunciando-se, perante aqueles que só precisam ser o que são
para serem como convêm, pelo próprio excesso de sua
conformidade ou de seus esforços no sentido da conformidade.
Isso pode ser a hipercorreção da linguagem pequeno-burguesa ou
o brilho demasiado acentuado do intelectual da primeira geração e
a obstinação fascinada e, de antemão, vencida com que procura
ocupar os terrenos em que não se sente tão à vontade - tais como,
a arte e a literatura -, ou ainda as referências pedantes aos autores
canônicos que denunciam o autodidata (absoluto ou relativo) em
suma, as audácias que submetem o novo-rico à acusação de mau
gosto, pretensão, vulgaridade ou, simplesmente, de arrivismo ou
avidez, erro particularmente imperdoável em um universo que
professa o desprendimento.
o Cosrureiro e Sua Gri{e

"Como criador, nunca fui um promotor de roupas cósmicas, nem de
vestidos esburacados." (Yves Saint-Laurent, Eiie, 6 de setembro de
1971) "É um absurdo. O shorté para as quadras de esporte ou para as
férias. Não; em relação ao short, ele não entende: é antifeminino.
Não é feito para os jovens; aliás, já tem 20 anos. 7 Que, em 1971, a
gente sirva Riz Amei' nas ruas é vulgar. Ou então, ele nada conhece
a respeito de criação, nem de Paris." (Pierre Cardin, Elie, 22 de fevereiro
de 1971).
Daí, vem a oposição que, em todo campo e em todas as
dimensões do estilo e do estilo de vida, estabelece uma separação
entre as estratégias estéticas dos dominantes e as dos
pretendentes: os dominantes que só precisam ser o que são,
sobressaem e distinguem-se pela recusa ostensiva das estratégias
vistosas de distinção. É assim que, para os costureiros que ocupam
uma posição dominante no mundo da moda, basta se deixarem
levar pelas estratégias negativas que lhes são impostas pela
concorrência dos pretendentes para se ajustarem diretalllclltl' :Is
demandas da burguesia antiga que, por uma relaç:ío ilOIlH')!Og,l :]s
audácias espalhafatosas da nova burguesia, l' rcellviJLia :1 Illesma
recusa da ênfase. 8 Esta oposição se observa tanto nos objetos
produzidos pelos costureiros, quanto nas declarações de intenção
proferidas por eles a respeito de sua produção. Ela se encontra até
no estilo do discurso de celebração, cuja retórica é tanto mais
sobriamente descritiva, quanto mais elevado, do ponto de vista
social, é o público a quem ele se dirige: os artigos de moda nas
revistas mais luxuosas (Vogue, jardin des ll1odes) , assim como a
publicidade das revistas de luxo, limitam-se sempre a demonstrar
ou descrever, evocar ou sugerir (por exemplo, a referência à arte
permanece sempre alusiva), enquanto as revistas menos cotadas,
mais diretamente destinadas à nova burguesia - que, aliás, as
produz -, tais como Elle e JvfarÍe Claire, dão a conhecer sem
* Título de um filme da década de 70 sobre a Indochina; o autor faz alusão à
pobreza dos que, na fita, usam short.
o
N ('I
Pierre Bourdieu
,
subterfúgios seu segredo porque a pretensão à distinção só pode
revelar a verdade objetiva tanto da pretensão, quanto da distinção.
Em cada época, os costureiros atuam no interior de um
universo de imposições explícitas (por exemplo, as que se
referem às combinações de cores ou ao comprimento dos
vestidos) ou implícitas (tal como a que, até uma data recente,
excluía as calças das coleções). O jogo dos recém-chegados
consiste, quase sempre, em romper com certas convenções em
vigor (por exemplo, introduzindo misturas de cores ou de
materiais, até então, excluídos), mas dentro dos limites da
conveniência e sem colocar em questão a regra do jogo e o
próprio jogo. Eles estão comprometidos com a liberdade, a
fantasia e a novidade (freqüentemente, identificadas com a
juventude), enquanto as instituições dominantes têm em
COl1lUlll a rl'cusa dos exageros e a busca da arte na recusa da
afetação e do efeito, isto é, na dupla negação, lítotes,
Ilndcrsutcmcnt, cqujJíbrÍo e refinamento.
"- O que é que impede uma roupa de ser bonita?
- O negócio e o detalhe vistoso que "come" o modelo e o desequilibra.
- E o detalhe, quando é que é perfeito?
- Quando não se dá por ele.
- Será que isso é'a negação do acessório de choque?
-Certamente, mas essa é a definição do refinamento."9
A linguagem de Dior tem a certeza tranqüila da ortodoxia
que, em nome da circunspeção e da elegância, recusa as pretensões
intelectuais da afetação:
"- Respondo, assim, às mulheres que compram meus modelos. Elas
recusam ter 'demais', mas querem parecer 'mais' sem o demonstrarem
(...). Os modelos que apresentamos são feitos para agradar e não para
impor linhas abstratas ou imaginações de laboratório em nome de um
maldito estilo elevado que seria, antes, o mau gosto de hoje.
• 0 O que é que o sr. rejeita na costura de laboratório?
- Essa palavra me irrita. A Alta Costura, tal como a entendo, não é o

produto de um laboratório destinado a algumas cobaias, mas trabalhar
com material movediço feito para viver em pessoas de verdade... e aí viver
bem, ou sej a, viver melhor.
- Viver melhor?
- Sim, sem essa vulgaridade que é o que há de mais bobo e mais feio.
- Isso existe?
- Por toda parte, exceto quando se trata do verdadeiro luxo. "10
"O que me apaixona é vestir as mulheres para embelezá-Ias. (É, aliás, o
que, de forma bastante explícita, elas me pedem para eu fazer l ) . O que
me obriga, automaticamente, a rejeitar de propor-lhes qualquer bizarrice
que corra o risco de tornar-se um disfarce. Existem audácias, exageros.
que podem ser divertidos, alegres, engraçados, mas, mesmo assim,
gratuitos. Estou querendo dizer que tudo isso não acrescenta nada. C·.)
Pessoalmente, desconsidero os efeitos de surpresa ou de choque. A
elegância não é o choque, mas o refinamento." II
Essa linguagem - a da ~Hle qlle se reS[1L'ila L' rL'SI1l'ila SL'll
público -, está muito próxima daquela de lIm 1l1,lrciJ.llld
quadros que, no campo das galerias, ocupa lima posição homóloga:
por exemplo, A. Drouant quando denuncia as "falsificações" e
outros "métodos imaginados pelos falsos artistas para enganar",
ou seja, "os efeitos de emoção viva e súbita" e, sobretudo, "a
excitação da curiosidade" que "consiste em provocar a surpresa,
de maneira a absorver o espírito e mascarar a falta da verdadeira
arte. Tudo isso é combinado de maneira que se deva adivinhar o
sentido, à semelhança do que ocorre com as charadas: fica-se
intrigado... é uma forma de se distrair, parece difícil, até mesmo,
genial..."12
À linguagem da exclusividade, autenticidade
refinamento, com seus componentes específicos - sobriedade,
elegância, equilíbrio e harmonia -, a vanguarda opõe o rigor alI a
audácia, e sempre a liberdade, a jovialidade e a fantasia.
Cardin: "(...) se eu me decidi a entrar no circuito da famosa
01
ri
P/erre Rourdieu
moda prêt-à-porter, é porque pretendia ser o primeiro. Sim, eu
fundei o T.N.P.* da costura. Fui muito criticado no início, claro!"13
Courreges (em seu prospecto a respeito de sua coleção de
1970): "construção, nitidez, poesia, novidade". "Protótipo (nome
do departamento de criação e de prestígio destinado a uma clientela
privilegiada): da elegância, do novo, do futuro, de classe". "Costura
do Futuro: do presente, da lógica, da sabedoria, do funcional."
"Hipérbole: da juventude, da fantasia, da liberdade, do sonho
realizado. "
Ungaro: "o último dos grandes costureiros", instalado em
"um espaço ultra-moderno" que ele considera como seu "laboratório
de estudos", "aberto a novos horizontes" e introduz a "superposição
de estampas".
Féraud: "a última idéia C..) se chama 'Féraud na rua',
uma nova rede de lojas que sua filha dirigirá, cujo maior
departamento se situará, evidentemente, na rive gauche". (Elle,
j de janeiro de 1972).
de
Ted Lapidus (publicidade): "Quando vejo minhas roupas
na rua, sei que venci. A Costura é como a canção: o êxito é estar
sendo cantarolada por todo mundo (... ). Um costureiro não veste
clientes, mas subjetividades: as inquietações, ternuras, ansiedades
de uma massa de homens e mulheres. A alta costura é um
laboratório, o 'Le Mans**da indumentária': fazemos pesquisas,
ensaios (...). É a prova da rua".
Com os estilistas, o discurso toma voluntariamente um ar
de esquerda:
e
* Théaue National Populaüe - Referência ao teatro que, na década de 50, fez muito
sucesso na França, e teve Jean-Louis Barrault, Louis Joivet, Gerard Philipe como
alguns de seus expoentes.
** Alusão ao circuito da prova automobilística 24h du Mans que se realiza nas
proximidades da cidade de Le Mans (200 km a oeste de Paris).
o Costureiro e Sua Grife

Christiane Bailly: "Em uma mulher, não me interesso por
sua idade, mas por seu grau de liberdade".
"Aos 16 anos, ela fazia suas próprias roupas, contra a corrente da alta
costura, rebelando-se contra a rigidez, as aplicações, o 'belo promovido'
por Dior, contra tudo o que afoga, torna a mulher deselegante e a coloca
em uma redoma." (Elle, 15 de abril de 1974)
E esse campo que tem sua direita e sua esquerda, seus
conservadores e seus revolucionários, tem também seu centro,
seu lugar neutro, representado aqui por Saint-Laurent que atrai
para si os elogios unânimes por meio de uma arte que une, de
acordo com uma hábil dosagem, as qualidades polares (clássica,
sutil, harmoniosa, sóbria, delicada, discreta, equilibrada, bonita,
fina, feminina, moderna, adaptável a todos os estilos de mulher);
que recupera as inovações espalhafatosas dos outros para
transformá-las em audácias aceitáveis ("ele lança as calças em
larga escala que, no fundo, não haviam obtido êxito com Courrl'gl'S
por ser um pouco complicado"); que transforma as revlJllas lL!
vanguarda em liberdades legítimas, à IlLlIll'iLl dt' /i' Mllf}(/l' qUl'
publica Asterix em histórias em quadrinhos C',,: t·1e o /i/Je'rfy, os
hlts, que é uma saia maravilhosa, o hlazc{"); e que nJO hesita
em declarar: "É preciso vir para a rua" .11 E podemos deixar a
última palavra à revista Le NOl/vc/ Obscrvarcl/r, que conhece o
assunto: "O responsável por essa abertura à esquerda é,
precisamente, um antigo grande costureiro, ou seja, Yves Saint-
Laurent".15
Mas, os pretendentes não estão sem recursos; podem
acumular capital de autoridade específico ao levarem a sério os
valores e as virtudes exaltados pela representação oficial da
atividade legítima e ao oporem a fé intransigente do convertido ao
fervor de instituição característico dos guardiães da ortodoxia. Às
concessões dos dominantes, que pactuam com sua época e
negociam o capital simbólico que acumularam em ganhos temporais,
econômicos e políticos (condecorações, academias, etc.), os
Pierre Bourdieu
,
pretendentes opõem o sacrifício absoluto à arte e às audácias
desinteressadas da afetação, granjeando assim, pouco a pouco, os
serviços de uma parte do aparelho de celebração.
"(...) Sou simplesmente um catalisador e capto o que está no anlbiente.
Há, naturalmente, um toque pessoal naquilo que faço, mas empreendo
mudanças freqüenremenre- aliás, isso corresponde à minha vontade:
não me interessa, como alguns (necessariamente com menos êxito),
'repetir-me'. Não tenho problemas de marca, não procuro promover uma
grife e pouco me importa não ser conhecido pelo grande público (...).
Confecciono um grande número de modelos para filmes. Vesti Mia
Farrow, Girardot, Stéphane Audran (...). Do mesmo modo que eu
detestaria vestir uma 'fulana de tal: tenho prazer em vestir uma atriz,
un1a cantora."iti
Os recém-chegados reintroduzem, incessantemente, no
campo UlIl ardor e um rigorismo de reformistas. Eles podem
Illl'SflIO assumir ares de revolucionários no momento em que
suas disposições ele quase artistas de origem burguesa encontram
um reforço na necessidade de perseguir uma clientela tentada a
denunciar o contrato tácito de delegação que confere aos
costureiros o monopólio da "criação" (ela própria usa roupas
inspiradas na moda vigente entre 1920 e 1960). É a concorrência
dos pretendentes qu~, continuamente, impele os dominantes a
um respeito relativo pelos valores oficiais do campo, exatamente
aqueles em nome dos quais se exerce sua autoridade específica;
é através dela que se exerce o controle do campo sobre o uso de
poderes demiúrgicos fornecidos por ele. E as profissões de virtude
às quais os historiógrafos gostam de se referir ("O que fiz de
mais difícil na minha vida - dizia Chanel -, foi minha recusa em
ganhar dinheiro"; "Pierre Balmain é um dos numerosos
costureiros que só aceitaram explorar comercialmente a respectiva
grife por amor à profissão.") representam a única maneira
impecável de obedecer à necessidade do campo, como é
testemunhado por esta declaração em que Courreges invoca,
o Costureiro e Sua Grife
simultaneamente, os imperativos categóricos do amor pela arte Estilo e estilo de vida
e os imperativos hipotéticos da gestão econômica racional: "Só A decoração da moradia dos costureiros de grande prestígio

me tornei patrão e industrial em função do amor que tenho pelo

que faço. MÍnha mOtÍvaç/io n/io é ganhar dÍnheÍro. Eu poderia
conseguir um enorme faturamento promovendo uma política de
facilidade, mas Ísso serÍa à custa de uma deterÍoração a curto
prazo de minha marca e de uma perda de controle sobre meus
produtos" (Dépêche-Mode, março de 1974). Assim, o controle
da utilização do capital específico cabe aos próprios mecanismos
que asseguram sua produção e reprodução, além de tenderem a
determinar sua distribuição entre os diferentes agentes que estão
em concorrência para se apropriarem deles. Por um processo
análogo àquele que faz com que, no campo universitário (ou, a
fortÍorÍ, científico), a concorrência entre os dominantes e os
pretendentes pelo monopólio das relações autorizadas com o
grande público desemboca em um controle de todas as formas
de barganha da autoridade específica (vulgarização, jornalismo,
etc.), a concorrência pelo monopólio da legi ti midade toma a forma
de um controle cruzado que, como se vê el11 relação à
comercialização da gnfe, nada tem a ver com a imposição externa
ou interna de uma norma ética; as vÍrtudes exaltadas por cada
campo - aqui, amor à profissão e desprendÍmento; e lá, espÍrÍto
CÍentÍfico e objetÍvÍdade - são apenas as formas que toma a
submissão à necessidade própria do campo, isto é, a perseguição
de interesses que a própria lógica do campo interdiz de
reconhecer, a não ser sob a forma ÍncognoscÍvef de valores.
BALMAIN: O gosto pelo antigo
"Esta bela residência é um verdadeiro museu onde, há trinta anos,
o costureiro coleciona peças raras e objetos preCÍosos. No pequeno
* No original méconnalssable (adjetivo derivado de méconnaitre, cujo significado salão atapetado com veludo de Jjnho azul, as mesas são em laca de
é "recusar-se a admitir"; no texto, ainda são encontráveis os vocábulos méconnu/ Kien-Long, incrustadas de madrepérola; por sua vez, as estatuetas
e e méconnalssance). Nesta tradução, além de incognoscível, foram adotados os chinesas são em terra cozida da época Tang."
termos desconhecer, desconhecido/a, desconhecimento, tendo em vista a
uniformização com a tradução de outros textos de P. Bourdieu (por exemplo. "O quarto: desenhos de L. Fini, bustos de Henrique IV e de Sully".
Poder simbólico. Brasil-Portugal, Bertrand-Difel, 1989, e A economia das trocas "As cristaleiras do salão contêm uma coleção de Tanagra."
lingüísticas. São Paulo, Edusp. 1996). . "A escadaria: quadros de mestres menores franceses do século XIX."

Flerre Bourdleu o CostureIro e Sua Grife


, ,-
GIVENCHY: o clássico no moderno
"No quarto de amigos (que, na rea.lidade, é ~I!1 pequeno
apartamento) o costureiro Hubert de GIvenchy deCIdIU que tudo
fosse branco,' do tapete ao teto, das paredes ao baldaquin9' ~e~,se
ambiente monacal, alguns móveis modernos de aço e plastlco.
"Em frente da cama e entre as estantes de livros, um quadro de
Vasarely. Em cima da mesa, uma peça de seda chinesa do século
XVII!."
''A cama de dossel está coberta por uma grossa colcha de linho
sedoso. Por cima: um ícone grego. Móveis de Knoll."
PÍr:rre Bourdieu
,
CARDIN: o moderno barroco
"Seu salão cria um pouco a sensação de uma floresta virgem co~ seus
enormes ficus (Ficus decora) e ess~ filodendro eJ!1bescens. Para o Jm:dJm
de inverno de seu apartamento, ~lt1:ado no qUaI Anatole France, PI~rre
Cardin escolheu poltrc;nas de plastlco branc'?, co~ almofad~s revest.Iclas
cle lã azul. A estatua e de Carpeaux. No chao, pI:,O de marmore cmza
escuro." "Pierre Cardin instalou um verdadeIro pequeno museu
consagrado a caixas. possui mais de duzentas. Inici.ada há vi~te anos,
sua coleção se enriqueceu em cada uma de suas VIagens: caIxas para
tabaco oriundas da Rússia em madeira preta com paisagens na tampa;
caixas de prata, etc."
o Coslureiro e Sua Grif~
 COURREGES: a preferência pelo moderno e pelo modernismo
HECHTER: o desleixo obrigatório
"As tábuas do soalho são de sicâmoro branco curtido, o conjunto
da cozinha dá a impressão de ter sido modelado em uma peça "O salão, iluminado por m d b· -
d· ·d·d ' . , . u a gran e ala envIdraçada está
única de cobre, poltronas e sofás estão revestidas de lã branca IVI I o em ,,:,an?s m~els de argamassa, cobertos '
tricotada. Do ponto de vista da cor, portanto, unicamente o branco branco. O pr~meIro mvel está situado à volta da )~;eI:i.e~
e o tom da madeira natural. O recanto descanso é, ao mesmo segun,d?, maIS elevado 70 em, serve de sofá· est' b
tempo, quarto e banheiro. A cama, toda branca com dois colchões, por vanas peles, entre elas a de um urso . a co erro
esta embutida em um estrado que dissimula encaixes para os terceiro nível contém a b'·bl· , e almofadas. O
existem móveis." I loteca. Neste comodo, não
travesseiros. Por trás, o grande lavabo -duplo, com pias modeladas
em massa de porcelana, dá continuidade à banheira."

o
M
Pierre Bourdieu o CostureÍro e Sua Grife

As breves anotações sobre a decoração dos
apartamentos de alguns costureiros de grande prestígio
manifestam um verdadeiro sistema de oposições que, em sua
ordem, reproduz o sistema das posições ocupadas por eles no
campo da alta costura.
Os dois extremos - Balmain, o sobrevivente; e Hechter,
o pretendente - opõem-se praticamente em todos os aspectos.
Por um lado, a elegânâa e a opulênâa, o luxo ascético que
define a burguesia tradicional: o centro e o símbolo deste
universo é o salão, ao mesmo tempo, lugar de recepção
destinado à conversação - cujo estilo e tom são definidos pela
própria qaalidade da decoração e dos assentos, austeras
poltronas Luís XV - e peças de exibição, ou seja, os trofl'Us
culturais do proprietário, móveis e outros objetos an tigos, tudo
perfeitamente legítimo: desde as estatuetas chinesas da l'pOC1
T'ang até os quadros dos mestres menores franceses ti,) s.:'culo
XIX. Mesmo classicismo, mesmo ascetismo afetado l' opulento
em sua indumentária (colete, lenço de enfeite quase invisível,
etc.).
Na outra extremidade do espectro, o desleixo rebuscado
do modelista que posa praticamente deitado no chão e rodeado
pela mulher e filhos (e não, sozinho e em pé), com uma
desenvoltura afetada - à semelhança de sua indumentária de
estudante afortunado, gola rolê, colete de tricô, etc. Tipo de
ateliê de artista, aberto para o exterior por uma vasta baia
envidraçada e sem móveis, ambiente no qual as almofadas e as
peles servem de assento, tendo como única decoração as plantas
e um quadro da vanguarda anterior, esta decoração de decorador
impõe as discussões metafísico-políticas entre "companheiros"
sobre a pintura da vanguarda, o cinema ou a poluição, tão
imperativamente quanto o salão azul e ouro de Balmain remetia
à discreta conversação entre pessoas distintas e conhecedoras
de arte e literatura,
Pierre Bourdieu
,
•
A oposição entre vazio e pleno, passado acumulado e
tábula rasa, ostentação do luxo e exibição do despojamento, é
um dos princípios a partir dos quais se engendram inúmeras
distinções que estabelecem a separação entre os estilos e os
estilos de vida da antiga burguesia e os da nova, assim como os
de seus costureiros.
Seguindo a preferência da moda pelo estilo tradicional
mais castiço, a decoração do apartamento de Givenchy combina
sistematicamente o mais clássico da vanguarda com os quadros
de Vasarely ou os móveis de Knoll, as reinterpretações
modernas de temas ou motivos clássicos com a cama de dossel
em renda de linho branco e as obras antigas, seda chinesa ou
ícone grego.
N:lo obstante as aparências, ele opõe-se bem menos ao
"estilo cLíssico e afetado" de Balmain do que ao moderno barroco
til' Cardin, cuj:1 ambição artística se exprime ou se traduz não só
l'ln Sl1:1 preferência (compartilhada com Daniel Hechter e com
inltllll'l'os "artistas líricos" - por exemplo, Aznavour - e artistas
de cinema) por este tipo de Acapulco doméstico, o "jardim de
inverno", ou pelas coleções de "caixas", mas também em sua
indumentária que pretende evocar a sobrecasaca acinturada do
artista romântico. Quanto a Courreges, seu apartamento
manifesta - inclusive, no quarto de dormir, banheiro ou cozinha,
espaços igualmente dignos em seu entendimento de serem
oferecidos ao olhar do visitante -, sua vontade revolucionária de
fazer tábula rasa ("ele arrasa com tudo") e, por si, ex nÍhÍlo,
repensar tudo: a distribuição no espaço das funções e formas,
assim como os materiais, as cores, em função dos únicos
imperativos que são o conforto e a eficácia, além de uma "filosofia"
sistemática da existência que se exprime também em suas
escolhas de costureiro ou em sua indumentária - calças e botas
brancas, blusão turquesa, boné com longa viseira vermelho
brilhante.
o Coswreiro e Sua Grife
 o Campo e a Duração
(

« A lei fundamental deste campo, princípio de sua estrutura

( e mudança, lê-se diretamente no diagrama (ao lado) em que as
f maisons de costura - distribuídas (da esquerda para a direita)
segundo a data de sua fundação - são representadas por dois
f
círculos concêntricos, proporcionais: um (com traço mais
f
acentuado) relativo ao faturamento alcançado, enquanto o outro
f se refere ao número de empregados. A importância do capital
I específico, cujo faturamento, que é sua forma reconvertida,
representa um bom índice, cresce com certa regularidade de acordo
I
com a antigüidade da maison; mas somente até certo ponto,
\
marcado aqui por Dior, a partir do qual tende ao declínio, chegando
ao desaparecimento puro e simples.
Certas bizarrices aparentes resultam simplesmente do fato
de que a fonte utilizada l ? apresenta lacunas. É assim que Givenchy
e Saint-Laurent (a quem se atribui em pontilhado- um
faturamento hipotético) possuem, sem dúvida, somas bem
superiores (proporcionalmente, é claro) ao número de seus
empregados, à maneira das outras maisons situadas em posições
intermediárias que, como veremos, opõem-se todas sob este ponto
de vista - com exceção de Courreges - às maisons mais antigas. l.f)
~
No que concerne ao faturamento relativamente importante de 0\
.......
alguns recém-chegados (Lapidus e Scherrer), esforçar-nas-emas
por explicar, mais adiante, sua posição. ctJ
.....
;::J
A antigüidade não é o princípio exclusivo das hierarquias: .....
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Pierre BOllrdiell o Costureiro e Sua Grife


a impô-la a seus concorrentes (obrigau,do-os, pelo menos, corno
faz o costureiro dominante, a posicionar-se em relação a eles).
Este capital, simbolizado por seu nome ("Jeanne Lanvin, um nome
de prestígio") pode converter-se em capital econômico sob certas
condições e dentro de certos limites, em particular, temporais ~
aqueles que definem a duração do renome.
As maÍSons mais antigas que sobreviveram não ocupam
posições correspondentes à sua antigüidade, qualquer que seja o
capital de prestígio que, em determinado momento, tenham
possuído (como Chanel que ressurgiu em 1954). De fato, em um
campo regido pela concorrência para a obtenção do monopólio da
legitimidade específica, isto é, para alcançar o poder exclusivo de
constituir e impor símbolos de distinção legítimos em matéria de
vestuário, a relação entre a antigüidade e o capital só pode manter-
se dentro de certos limites e mediante estratégias que, habilmente,
explorem as leis da economia específica do campo.
As maÍsons que sobreviveram ;'] morte di' seus fÚlllbdort's
só se perpetuaram com a exp!o[;H;;lO induslri,lI d,] p/li' (Sll!l ;1 !(lIIIL!
de perfumes, no caso de Patou e Ricci). Do mesmo modo, os
observadores estão de acordo para exaltar a "racionalidade"
excepcional (pelo menos, para esta gcraç-,io) da gestão da empresa
Dior:
"A m;]ison Dior está admiravelmente bem organizada, o que nem sempre
acontece; na alta costura, os indivíduos são muito pessoais, a coisa
ficou muito individual. Dior abre em 1947, cria uma maÍsoll do nada
(... ). A organização da maison vai fazer-se perceptível muito
rapidamente. O SI. Boussac é um industrial. Os empregados da maÍSon
Dior encontram-se em um contexto social, talvez, um pouco diferente
das outras maisons porque Jacques Rouet, responsável pela
administração, tem uma formação social bastante aprofundada. O sr.
Dior dedica-se exclusivamente à criação e está livre dos encargos
materiais, das preocupações administrativas. Boussac organiza colônias
de férias, no Norte, para os filhos dos funcionários. Existe um verdadeiro
contexto social. Há um restaurante da empresa. Desde ° início, foi
Fierre Bourdicu
criado o comitê da empresa* com um espírito social, chegando a ser
favorecido em relação ao sindicato."18
A luta pela dominação neste campo conduz
necessariamente os pretendentes a submeter à discussão os
esquemas de produção e avaliação ortodoxos, produzidos e
impostos pelas instituições dominantes; diferentemente das
simples variantes ou variações produzidas pela utilização dos
esquemas de invenção em vigor e que, seja qual for sua liberdade
aparen te, são ou tras tan tas reafirmações da au toridade das
instituições dominantes, as revoluções específicas têm por efeito
desacreditar antigos princípios de produção e avaliação, fazendo
aparecer um estilo - que devia uma parte de sua autoridade e
prestígio à sua antigüidade ("maÍson de tradição", "maÍson
fundada em ... ", etc.) -- como démodé, fora de uso, ultrapassado.
l\J1arcH lima l'poca é reenviar todos aqueles que marcaram época
ao SUtllS mais ou menos honorífico, mas sempre irreal e, corno
se diz, honorário, que cada campo, segundo suas próprias
tradiçôes, oferece aos antigos dominantes; é fazer história
inscrevendo na série de rupturas que definem a pen'odÍzaçâo
específica de um campo uma nova ruptura que remete à história
a precedente periodização e determina a translação de toda a
estrutura; é, por fim, sujeitar-se a ser, mais cedo ou mais tarde,
remetido à história pôr uma ruptura que obedece aos mesmos
princípios e às mesmas determinações específicas de todas as
precedentes. "Fazer moda" não é somente desclassificar a moda
do ano anterior, mas desclassificar os produtos daqueles que
faziam moda no ano anterior, portanto, desapossá-los de sua
autoridade sobre a moda. As estratégias dos recém-chegados,
que são também os mais jovens, tendem a rejeitar para o passado
os mais velhos e estes colaboram com a translação do campo que
, Na França, órg~o composto por representantes eleitos pelos funcionários e
presidido pelo diretor da empresa: tem atribuições consultivas ou de controle no
que diz respeito às questões profissionais, econõmicas e sociais.
o COSlUrciro c Sua GriFe
 desembocará em sua desclassificação (ou, aqui, em seu
desaparecimento) pelas estratégias que utilizam para assegurar
I
sua posição dominante que é também a mais próxima do declínio.
é sua própria maison: é o caso de Christian Dior e de Pierre Balmain
Não nos seria possível compreender a estrutura e a
dinâmica do campo da moda se aceitássemos a explicação comum
pelo conflito de gerações, tautologia destinada a funcionar como
virtude dormitiva, que se impõe com uma insistência particular
em um campo onde a concorrência adquire, de modo mais visível
do que em qualquer outra parte (devido à brevidade dos ciclos), a
forma de uma querela entre antigos e modernos, entre velhos e
jovens.
"Por um lado, os últimos monstros sagrados, herdeiros dos valores do
bom gosto, de um mundo que desapareceu. Para eles, acantonados em
seus salões atapetados, trata-se de uma luta inútil contra uma época
cujo modo de vida e aspirações escapam à sua compreensão: alguns ncm
estão conseguindo sobreviver a tal situação. Por oul m LIdo, os novos
profissionais audaciosos: os Saillt-J.;lllrcllt, COlIlTl,!"CS, lJllg:1l0, p:ILI ('il:1l
somente os mais jovells, qUl' rl'illvl'llI:lr:IIlI, Cld,1 11111 ;\ SlLl 1l1.1Ill'ir:I,
costura. Entre estes ck):s c;n:-L':11US distribuL'lll-SL' os costureiros que',
mais ou menos cedo, COll1mUiLl ou pouca habilidade, acabaram por se
adaptar."(Dépc;chc-Modc, março de 1974) "Há, pelo menos, cinco que
pensam ser o primeiro (ou o último, o que significa a mesma coisa) dos
grandes costureiros." (Eiie, 2l de fevereiro de 1972)
A translação que afeta todo o campo é a resultante de
estratégias antagonistas e não deve ser descrita ou compreendida
como um simples processo mecânico: isto se vê claramente no
movimento pelo qual alguns costureiros não cessam de abandonar
maisons antigas a fim de fundarem suas próprias empresas,
escapando assim do declínio coletivo por um movimento individual,
na contramão do movimento que afeta a empresa e o campo em
seu conjunto.
Como mostra o diagrama (pág. 135) no qual as flechas
(acompanhadas, quando necessário, pelo nome da pessoa em
Pierre Bourdieu
questão) desenham as trajetórias dos costureiros ou dos
"responsáveis pela criação", o itinerário mais simples é o dos
costureiros que deixam a maison onde trabalham para fundarem
que deixam juntos a maison Lelong que fechará suas portas em
1948; de Saint-Laurent que sai da maison Dior, em 1962; ou de
Laroche que abandona Desses, em 1958. Outros seguem um
caminho com várias etapas, como Cardin que, em 1946, passa de
Paquin para Dior, deixando esta maison em 1949; ou Givenchy que
vai de Lelong para Piguet (1946), em seguida, para ]acques Fath
(1948) e, finalmente, para Schiaparelli (1949) que ele abandona,
em 1952, para fundar sua própria maison. Às vezes, a dispersão faz-
se em duplas e em dois tempos: Givenchy e Philippe Venet deixam
juntos Schiaparelli, em 1952, para fundarem a maison Givenchy
que Philippe Venet deixa em 1962 para criar sua própria maison; da
t11l'snl:] fOrtlla, Courrc'ges e Ungaro deixam juntos Balenciaga para
fundarelll a Iluison Courreges que Ungaro deixa em 1965.
:1 No caso de I'aco Ralw1I1e, Christiane Bailly e Emmanuelle
Kkll1h, as flechas foram desenhadas em pontilhado: com efeito,
nenhum deles participava diretamente da criação. Paco Rabanne
era fornecedor de acessórios - é por isso que ele pôde estar ligado
simultaneamente a muitas maisons - enquanto Ch. Bailly e E.
Khanh eram manequins.
Este mecanismo tende, como se vê, a assegurar a mudança
dentro da continuidade: de fato, tudo se passa como se a posse de
um capital que só pode ser conquistado na relação com as maisons
antigas constituísse a própria condição das rupturas bem-
sucedidas. Os recém-chegados são, na maior parte das vezes,
desertores das maisons estabelecidas que devem seu capital inicial
de autoridade específica à sua passagem anterior por uma grande
maison (sempre lembrada em suas biografias).
Em razão do seu modo de aquisição específica e de sua
própria natureza, esse capital que, em sua essência, consiste na
familiaridade com certo meio e na qualidade conferida pelo fato
o Cosrureiro e Sua Grife

de pertencer a ele, não pode contrariar a crença carismática da
autocriação do criador. Assim, a propósito de Lison Bonfils - ex-
manequim de Dior e ex-redatora de moda da revista EllE, ligada,
entre outros costureiros, a Paco Rabanne - pode-se escrever: "Ela
tem o estilo no sangue" (Elle, 15 de abril de 1974). Ou, a propósito
de outra estilista, Emmanuelle Khanh, ex-manequim de
Balenciaga, ligada a Courrêges que, em 1957, desenhou seu vestido
de casamento - ela casou-se com Quasar - quando o costureiro
ainda estava na maison Balenciaga; a Paco Rabanne, fornecedor de
acessórios para Balenciaga e que criou os acessórios para sua
primeira coleção; a Givenchy e Philippe Venet: "Ela foi manequim
na maison Balenciaga, mas a alta costura não a fascinava; preferiu
fazer roupas com a ajuda dos empregados e, sem que o tivesse
previsto, criou o tailleur do futuro, maleável, leve, sem tela nem
enfeites" (Elle, 15 de abri de 1974).
Tudo parece indicar que este capital inicial scrá tanto lIlais
importante, quanto mais elevada for a posição ocupada pl'io rl'cl'lIl-
chegado em uma maison de maior prestígio: assim, Cmlill c S:lillt
Laurent, os dois principais concorrentes atuais di' J)im, pa~;s:lI<lIl1
por esta maison. Sem dúvida, paradoxalmcnte, o (apitai de .1lI/uIidzd1'
e de rElações (pelo menos, tanto quanto de coll/pc/àzo;z) , adquirido
ao freqüentar as Ill.1isOIlS antigas, coloca o costureiro de vanguarda
ao abrigo da condenação radical de que seria passível por suas
audácias heréticas. Isso é verdadeiro Em qualquer campo. Basta
lembrar a história particularmente típica do memorando de Lord
Rayleigh: um artigo sobre certos paradoxos da eletrodinâmica que,
sem o nome do autor, ele tinha enviado à British Association foi
inicialmente rejeitado; em seguida, ao ser conhecido o nome do
autor, foi aceito com abundantes desculpas. 19 Sem dúvida, algo de
semelhante se passa no campo religioso no qual não se pode, contudo,
invocar os imperativos da acumulação: o profeta, como assinalou
Max Weber, sai freqüentemente da corporação dos sacerdotes, da
qual ele faz parte desde seu nascimento ou por formação.
Se a relação entre o grau de consagração e de antigüidade só
se mantém dentro de limites temporais relativamente reduzidos -
o
Pierre Bourdicu
f
ou seja, um espaço de trinta anos necessário para que as maisons
mais consagradas cheguem a seu apogeu - é porque, sem dúvida, a
moda, à semelhança da canção, da fotografia, do romance popular e
de todas as "artes médias", situa-se no tempo de curta duração dos
bens simbólicos perecíveis e porque ela só pode exercer um efeito
de distinção servindo-se, sistematicamente, das diferenças
temporais, portanto, da mudança.
A homologia - que aproxima as práticas e os discursos de
agentes que ocupam posições homólogas em campos diferentes -
não exclui as diferenças associadas à posição que os diferentes
campos, enquanto tais, ocupam na hierarquia da legitimidade. Basta
que um costureiro recém-chegado ao cume da hierarquia de seu
campo tente transferir seu capital para um campo artístico, como
fl'z Cmlin CDll1 seLI 1'Sp.1,-O, para que o campo de categoria superior
Si' 1110hilize para fazer lembrar as hierarquias. Aos ataques dos
l'sl1L'cialislas das artes legítimas, Cardin só tem a opor a reafirmação
de SLIa autoridade espccífica de costureiro: "Melhor do que
ningLIl'm, SOLI capaz ck distinguir a feiúra da beleza e não admito
que pessoas incultas manifestem tal pretensão. Conheço o mundo
inteiro. Através de minha atividade, tive a oportunidade de ver o
que se fazia de melhor em todo lugar e fiz por Paris o que ninguém
ainda tinha ousado c;u conseguido fazer". E o crítico de arte que
cita estas declarações contenta-se em recusar esta transferência
ilegítima de capital: "Eis uma forma de mostrar audácia em um
domínio em que a humildade deveria sempre prevalecer.
Certamente, todo o mundo fica tranqüilizado pelo fato de que a
dançarina do sr. Cardin seja uma prostituta, em vez de um iate
privado, mas o argumento acaba por se desgastar. Estamos à espera
de qualidade e não de presunção" .20
As referências às artes nobres e legítimas - pintura,
escultura, literatura - que fornecem a maior parte de suas metáforas
prestigiosas à descrição das roupas e um grande número de seus
temas à evocação da vida aristocrática que, se presume, é
simbolizada por elas, constituem outras tantas homenagens que a
o Cos{lJrciro e Sua Grile
"arte menor" presta às artes maiores. Do mesmo modo, a tendência any allegiance to the cult of the classics".n Críação sazonal de
dos antiquários de grande prestígio para usurparem a denominação produtos de estação, a atividade do costureiro é o oposto exato da
de galeria é uma forma de reconhecer a hierarquia que, no comércio atividade do escritor ou do artista legítimo na medida em que ele
dos objetos de arte, se estabelece entre as anúgüMades - produzidas não poderá esperar ter acesso a uma consagração duradoura (ou
por artesãos e vendidas por antiquários - e as obras de arte, únÍcas definitiva) a não ser que saiba rejeitar os lucros e os sucessos
e ÍnsubsútuÍveú, produzidas por artistas e vendidas em galerias: imediatos - porém, temporários - da moda: a lei da distinção que,
o mesmo se passa também com o desvelo manifestado pelos neste universo, se afirma abertamente, toma a forma de uma ruptura
costureiros ao afirmarem sua participação na arte ou, na falta desta, obrÍgatórÍa, efetuada com data fixa, a partir dos cânones do ano
no mundo artístico (as brochuras de Saint-Laurent limitam-se an terior. 23 Os próprios revolucÍonáríos não podem escapar da lei
praticamente a falar de suas criações para o teatro), com a comum que reenvia a últÍma moda ao démodé e condena o crÍador
assistência de todo o aparelho de celebração (especialistas em a se renovar. assim, o privilégio dos costureiros de maior prestígio
relações públicas, jornalistas de moda, etc.). - por exemplo, Chanel - consiste em fazer parar, durante um
momento, o tempo da moda, forma suprema de distinção. Pelo
"O esplendor da alta costura faz-se sentir de várias maneiras... Tome, por
fato de que o valor material e simbólico dos bens da moda é
exemplo, Sauguet ou Auric que criaram balés, cujos figurinos foram,
constituído essencialmente (se deixarmos de lado as diferenças
freqüentemente, concebidos por costureiros. Você tem um moço muito
seculI(\;írias entre os costureiros) sobre a dÍsúnç"lo temporal entre
famoso que faz figurinos para teatro e balés, sobretudo, para os hd{'s de
a moda e o d(;fl}od(;, tal valor é inexoravelmente destinado a
Monte Carla. que é André Lav~lsseur. ex-coIJbor:lc!or llLo (:hrisliJIlI )illL
declinar com o tempo, sem poder contar com a subida da cotação
Yves Saillt-Laurent é Ulll excl'!t'lltl' dl"l'llhisra dl'ligurillus p.lIJ Il';llro,
que assegura a certos objetos técnicos sua rcconversão post mortem
entre outros, para a revista de ZizijeJl1lllJrie 110 Casillo de Paris. É uma
em objetos simbólicos.
dimensão que vai bast,mtl.' além de um vestido, enquanto roupa. Cocteau
desempenhou também um papel muito importante."2!
E, na seqüência da entrevista, essa jornalista de moda
declara: "Eu me lembro quando Dior apresentou sua linha reta, a
linha H fomos procurar figurinos de Clouet em livros de trajes
valor
para mostrar este lado muito reto ... " de troca novo
À semelhança do autor de romances policiais a respeito
do qual nada nos autoriza a pensar que, um dia, possa ser
considerado um clássÍco, o costureiro participa de uma arte que
ocupa um lugar inferior na hierarquia da legitimidade artística;
fora de uso
ora, em sua prática, ele não pode deixar de levar em consideração velho
a imagem social do futuro de seu produto: "The stories in this o tempo
book certainly had no thought of being able to please anyone ten
years after they were written. The mYó'tery story is a kind of writing
that need not dwell in the shadow of the past and owes little if 1. Objeto técnico (imóvel, móvel, máquina, eletrodoméstico)

Pierre Bourdiell o Coswreiro e Sua Grite

 l'
t

na moda Essas curvas absolutamente teóricas só têm a função de

•
tornar visíveis diferentes formas paradigmáticas da relação entre o
valor dos bens simbólicos e sua duração. Em oposição aos objetos
-
técnicos - cujo valor, estritamente definido por sua aptidão em
assegurar, pelo menor custo, uma função específica, decresce
paralelamente à diminuição de seu rendimento que resulta, seja
démodé do desgaste que provém da utilização, seja da concorrência de
o instrumentos mais econômicos -, os objetos simbólicos de ciclo
curto, entre os quais os artigos da moda representam o puro limite,
2. Objeto simbólico de ciclo curto (artigo da moda, romance de sucesso, etc.) possuem um tempo de uso tão arbitrariamente delimitado, quanto
sua própria utilização: diante de uma parte essencial de sua raridade
à labilidade que os define propriamente, pois o lugar da última
valor na moda diferença, ou seja, do valor distintivo, situa-se no tempo - estar
de troca novo
na mocL1 6 seguir a úlrima moda -, os produtos da alta costura
es l:io vol ados, por dL'!1niçJo, a uma rápida desvalorização. E não
démodé, antigo dl'Vl'1l1 proiong:n sua Clrreira al6m dos limites que lhes são
velho
I prl'Vi:lllll'llll' assinalados por seus próprios criadores, a não ser
I
T
pch exislC'ncia de uma série de mercados hierarquizados de um
ponto de vista temporal (além de econômico e social): certos
o produtos desclassificados para os consumidores que os utilizam
pela primeira vez ou da última moda - roupas ou romances, peças
3. Objeto técnico Oll simbólico Cora di' liSO Cünslilllido em .1núgüidade (móvel
de teatro ou penteados, esportes ou lugares de férias - ainda podem
antigo, etc.)
ser postos a serviço das mesmas funções de distinção, isto é, de
classificação, por usuários menos bem posicionados na estrutura
da distribuição desse bem raro e, assim por diante,
indefinidamente, ou seja, até o mais baixo escalão da estrutura
social.
clássico
obom funcionamento do mercado da moda baseava-se
em um controle rigoroso da difusão que visava manter separados,
e por algum tempo, os mercados que oferecem produtos
vanguarda destinados às diferentes classes sociais: esta hierarquização
o tempo temporal dos mercados se mantinha praticamente pelo segredo
que envolvia as apresentações das coleções e, sobretudo, pela
4. Objeto simbólico de ciclo longo (obras legítimas) erosão gradariva dos preços correspondente à gradação no tempo

Pierre Bourdieu o Coswreiro e Sua Grife

•

do valor distintivo do produto. É disso que freqüentemente se
esquecem os informantes que ligam diretamente a reestruturação
do mercado da moda à transformação dos circuitos de circulação
da informação (por exemplo, com a difusão das apresentações de
moda na televisão):
"Na década de 50, as maúons de costura tinham sofás para as boas
clientes e revistas de maior vendagem. Comentava-se que alguns
proprietários de revistas mais populares - do tipo E!!ee Marie C!aire-,
compraram revistas de prestígio para terem direito a um lugar nesses
sofás. Certamente, isso é um exagero, mas talvez faça algum sentido.
Lembre-se que, antes da televisão, as bancas de jornais esperavam com
impaciência a publicação das revistas, um mês depois da apresentação
das coleções de costura porque se tratava de uma exclusividade mundial:
nos jornais cotidianos, não era publicado nenhum esboço de tendências,
nenhum desenho; só depois de um mês é que se tinha o direito de
divulgar os novos modelos para que os compradores estrangeiros
profissionais, americanos e europeus, tivessem tempo de receber essas
novas coleções (...). Em julho de 1962, com 7U.,./.Ir, isso conll'\'OU a
mudar porque os costureiros quiseram panicil':ll' do l'riull'i \O siIolV que
foi transmitido via satélite. Em seguida, eks j,í /üo puderam voltar atr:ls
(, ..). Hoje, a vendagem de revistas é pouco significativa,"! I
A degradação no tempo do valor comercial dos bens da
moda (com o mecanismo das liquidações e dos submercados)
corresponde à sua difusão, à sua divulgação, isto é, à deterioração
de seu poder de distinção. Os costureiros consideram
explicitamente estes efeitos em suas criações. "(Utilizo) todas as
minhas cores habituais, a não ser que eu tenha sido negativamente
influenciada por aquilo que foi visto demais no ano anterior"
(Christiane Bailly). Mas, dado que o valor distintivo de um produto
é, por definição, relaciona!, isto é, relativo à estrutura do campo
na qual ele se define, o poder de distinção de um bem da moda
pode continuar a ser exercido a serviço de um grupo que ocupa
determinada posição na estrutura social - e, ao mesmo tempo, na
estrutura da distribuição desse bem - mesmo que ele não seja
mais exercido, em virtude precisamente do acesso de um novo
grupo a esse bem, pelo grupo que ocupa uma posição
imediatamente superior.
Os ciclos colocados em evidência, de forma científica, por
Kroeber 25 podem ser observados, na história da moda, porque o
retorno de um tema ou de uma forma só é possível quando a série
das reutilizações secundárias do desclassificado para fins de
classificação - bem descrito, embora mal analisado, através da
imagem ingenuamente emanista do trickle dowd 6 - chegou a seu
termo, isto é, até a divulgação completa do que, na origem, era
extremamente distintivo, e também porque o universo das
variações - que são suscetíveis de serem percebidas e aceitas por
um grande público e caracterizam as "revoluções" estilísticas - é
muito limitado (mais longo ou mais curto, mais flexível ou mais
estruturado, etc.).
Exemplo de tal retorno: hoje, os decoradores renunciam a
todas as inovações que haviam introduzido nas lojas de vanguarda
da rive gauchc com urna unanimidade semelhante à que tinham
manifestado pua impô-las, encontrando, assim, em uma dupla
meia-volta (à esquerda), a sobriedade discreta das lojas do passado:
"Hoje, o barulho foi banido dos lugares elegantes: isso lembra o
shopping-cenrer'Y "O paetê, o ferro-velho acabaram e, hoje,
preconiza-se o uso de cores nítidas e tapetes espessos."28
Estes retornos nada têm em comum com a subida de
cotação que se observa quando objetos técnicos fora de uso, atlas,
mesas de café ou telefone de funil, se transformam em bens
simbólicos, no fim de um prazo mais ou menos longo, durante o
qual sua identidade social permanece, de algum modo,
indeterminada: o intervalo de tempo que separa o objeto técnico
ou simbólico desusado do objeto antigo, percebido sinceramente
como um banira objeto e intrinsecamente digno de ser procurado,
é a marca visí';el do trabalho coletivo de transfiguração que se
descreve como "mudança de gosto". Quanto mais se avança no
tempo, menor é o risco de que o gosto pelo objeto considerado
apareça como uma preferência ingênua, do primeiro grau,

Pierre Bourdieu

desvalorizada pela qualidade social daqueles que a experimentam.
Isso quer dizer que os primeiros responsáveis pela rec1assificaçilo
dos objetos desclassificados - empreendimento produtivo do ponto
de vista econômico e simbólico, do qual a reabilitação de gêneros
populares, vulgares ou vulgarizados é um caso particular -, devem
deter um capital de autoridade estética de tal forma que sua escolha
não possa parecer, em momento algum, como uma falta de gosto:
é lógico que essa transgressão inicial é perpetrada pelos artistas
ou intelectuais de vanguarda (os primeiros a exaltar, hoje, o kÍtsch)
que encontram na recusa de reconhecer as normas da conveniência
estética em vigor uma forma cômoda de lembrar que eles são a
fonte de toda a legitimidade estética. Entre as estratégias
empregadas para evitar o envolvimento com gostos
"comprometedores", a mais comum consiste em dissipar todo
equívoco pela associação de objetos, cujo status ainda permanece
indeterminado ou incerto, a outros que, sem sombra de dúvida,
são incompatíveis com uma adesão vulgar a !:lis objetos: l', por
exemplo, em filosofia, a comhina\-:l,) dL' I\l:trx c()m I kidd,'gn L"11
determinada época; de Marx COII1 Freud revisto por Lacan, em
outra; e, em decoraç:l0, a associaç:l0 dL' um objeto ki(sch a uma
cômoda Luis XV ou a uma pintura de vanguarda, etc.
Mas, com exceção das declarações eruditas e doutamente
distanciadoras do cinéfilo ou do especialista do romance policial, a
melhor garantia é, evidentemente, uma grande autoridade
intelectual ou artística. O acesso do cinema de horror ou da ficção
científica e de tantos outros objetos simbólicos de simples consumo
ao status de objetos de análise ou a transmutação de objetos
técnicos desusados ou de objetos simbólicos démodés em
"antigüidades", objetos antigos que merecem ser conservados e
admirados, é uma operação social extremamente análoga à que os
artistas realizaram com o ready made: a continuidade do objeto
material mascara que a subida de cotação é um processo social
I
submetido a leis e riscos semelhantes aos da produção de uma
obra de arte. Nos dois casos, a operação de alquimia social só pode
I Pierre Bourdieu
,
ter sucesso uma vez que se constitui o aparelho de consagração e
de celebração capaz de produzir e manter o produto e a necessidade
deste produto. Os "valores duradouros" são os que podem colocar,
a seu serviço, instituições capazes de lhes assegurar, de forma
duradoura, um mercado - econômico e/ou simbólico -, isto é,
capazes de produzir a concorrência para a apropriação material ou
simbólica e, ao mesmo tempo, a raridade da apropriação com todos
os lucros materiais e simbólicos que ela assegura.
É significativo que o progresso de uma prática ou de um
bem em direção à legitimidade e à constituição de um aparelho de
entesouramento se atraiam e se reforcem mutuamente. A
referência ao passado do gênero e a referência aos outros produtores
contemporâneos são dois indícios práticos da constituição de um
campo: à medida que o wes{em entra na história, a história do
w('s(('["[} entra no lVes(crn de modo que, às ve:es, tais situações
ll,lU passam de jogos letraelos de referências históricas. É evidente
qUl' o sistema escolar desempenha um papel capital neste processo,
seja porque assegura ao mercado das artes canônicas um apoio
artificial, produzindo consumidores antecipadamente convertidos,
ao mesmo tempo que oferece um mercado à competência cultural
nestas matérias, seja porque fornece às artes, em via de canonização,
a assistência benévola (mas interesseira) daqueles que, por excesso
ou por falta de capital escolar, se satisfazem com os investimentos
arriscados (romance policial, ficção científica, cinema, história em
quadrinhos, etc.).
A Antinomia da Sucessão
Mais importantes, talvez, do que as condições impostas aos
recém -chegados, são as dificuldades inerentes à perpetuação da
empresa após a morte do fundador, dificuldades essas que
manifestam a especificidade do campo da moda. A morte do criador,
que já tem levado muitas maisons, mesmo entre as maiores, a
o Coswreiro e Sua Grife
 desaparecerem (como Lucien Lelong que fechou suas portas em
1948 ou Jacques Fath em 1954) ou sobreviverem apenas por alguns
anos, constitui uma provação decisiva: diretor de uma empresa de
produção de bens simbólicos, o costureiro fornece a plena etlcácia à
alqlúmÍa sÍmbóJjca na medida em que ele próprio garante, à maneÍra
do artÍsta, todos os aspectos da produção do bem dotado de uma
marca, isto é, a produção material do objeto e a espécie de promoção
ontológica que lhe é prodigalizada pelo ato da crÍação. 29 l\a maior
parte das vezes, essa provação só poderá ser superada mediante a
partilha, entre várias pessoas, das funções indivisas do fundador:
por um lado, o presidente-diretor geral - quase sempre, o herdeiro
do nome e/ou da empresa (Madame Yves Lanvin; Raymond Barbas,
cunhado de Jean Patou; Robert Ricci, t1lho de Nina Ricci) ou um
-01 simples executivo remunerado Qacques Rouet na maÍson Christian
Cf) ! Dior) - a quem incumbe a responsabilidade da gestão econômica;
(J I
W por outro, o responsável pela cúação, título que reúne em uma
magnítlca aliança de palavras o vocabulário da burocracia racional,
u i isto é, da delegação, e do carisma que encont ra l'lll si Sl'U próprio
fundamento. 3o Este criador substituto, espl'cic tIL' vigúrio do gl'nio,
deve - como seu título indica - enfrentar as exigl'ncias antitéticas
de uma posição contraditória.
Os "responsáveis pela criação" têm sempre, como mostra
o esquema (pág. 135), um itinerário complicado e retrógrado
(diferentemente dos fundadores de maison): assim, Marc Bohan,
oriundo da maison Piguet, volta a maisons mais antigas, como
Molyneux e Patou, antes de entrar na maison Dior, em 1958; o
mesmo acontece com Gérard Pipart, estilista que entra na maison
Ricci, em 1962, com Michel Goma que ingressa na maison Patou,
ou com Jean-François Crahay na maison Lanvin.
Estas eXlgencias podem se revelar, no limite,
insustentáveis, quando o cíÍador deve cíÍar, isto é, afirmar a
unicidade insubstituível de seu estilo e, ao mesmo tempo, entrar
na unicidade não menos insubstituívei d? cúador, por detlnição,
insubstituível, mas que ele tem o encargo de substituir:
o 'n
'n
pjen-e Bourdi'eu
"Há três meses, Gaston Berthelot, nomeado de um dia para outro
responsável artístico da maisonChanel- em janeiro de 1971, depois da
morte de Mademoiselle- foi rapidamente demitido. Alguma explicação
oficial? Nenhuma: seu contrato não foi renovado. Comentário de
bastidores: ele não teria conseguido impor-se. É preciso dizer que a
discrição natural de Gaston Berthelot (...) foi fortemente encorajada não
só por sua diretoria - nada de entrevistas, nem alegações ou promessas
-, mas também pelos comentários de sua equipe diante de cada uma de
suas proposições. Será que o modelo era conforme, fiel e respeitador?
'Para isso, não é necessário um modelista; pega-se os velhos tailleurse
recomeça-se...' Mas, diante de uma nova saia ou de um bolso modificado:
'Mademoise/lejamais toleraria isso'... "3l
Neste aspecto é que a comparação com as estratégias que
são utilizadas em outros campos para assegurar a perpetuação de
um pockr carismático pode produzir todos os seus efeitos. A partir
dl' um fundo constituído por homologias, destacam-se as diferenças
que conduzem diretamente à especificidade de cada campo, ao
mesmo tempo que elas permitem fornecer a plena força heurística
à questão dos invariantes: o mais significativo é que se possa aceitar,
aqui, o princípio da substituição do cúador - coisa impensável no
campo artístico no qual pretende-se perpetuar a mensagem, mas
não substituir aquele que a produziu. Se o campo intelectual recusa
o princípio da substituição, sem dúvida, porque o empreendimento
se reduz ao próprio escritor, a preocupação de perpetuar - não
propriamente a pequena empresa de produção artesanal, mas, pelo
menos, o capital que ela acabou constituindo e do qual participam
os "descendentes legítimos" (família, colaboradores, discípulos) -,
inspira todo tipo de estratégias, desde a publicação de obras
póstumas até a criação de associações culturais ("Os Amigos
de ... "). O campo científico ignora a antinomia da perpetuação do
carisma porque o método - teria sido ele inventado ou aperfeiçoado
por uma única pessoa? - torna-se um instrumento coletivo capaz
de funcionar independentemente daquele que o produziu. No caso
ela alta costura, a questão se coloca em termos bastante originais
o ({,SWl'ciro e Sua Go/e

porque todo o aparelho de produção e circulação está orientado
especificamente, não para a fabricação de objetos materiais, mas -
como mostra perfeitamente a estratégia dos costureiros que
vendem suas criações (sob a forma de licença) sem que eles
mesmos produzam objetos -, para a produção do poder quase
mágico, atribuído a um homem singular, de produzir objetos que
são raros pelo simples fato de que ele os produz, ou melhor ainda,
de conferir a rarÍdade pela simples imposição da grife, como ato
simbólico de marcação, a quaisquer objetos, inclusive, não fabricados
por ele.
A questão - "Como será possível substituir Chanel?" -
deverá ser entendida assim: como continuar produzindo Chanel
- objeto simbólico, marcado com o signo da raridade pela
assinatura - sem a presença física de Chanel - indivíduo
biológico, único habilitado a assinar Chanel nos produtos
Chanel. Como confeccionar produtos Chanel que não sejam
cópias nem falsificações, como se diz na pintura' O problellLl
existe porque pretende-se fazer sem Chancl aquilo que somellll'
iVJademcJÍselle estava autorÍzada a fazer, isto l', prudutos ClJanel:
não um simples trabalho de substituto, capaz de reproduzir
produtos de acordo com os cânolles criados pelo crÍado r, mas
uma operação quase mágica, manifestada pela assinatura que,
por definição, só pode ser operada na primeira pessoa. Fazer
apelo a outro crÍador para salvar o capital é, de qualquer modo,
expor-se a perdê-lo: que ele afirme, como se diz, sua
personalidade ou se submeta, nestes dois casos, o que se perde
é o direito à assinatura criadora. O criador substituto só poderá
desempenhar sua função de criador de raridade e valor se vier a
se conceber como criador de raridade e valor, isto é, dotado de
valor como pessoa - e não somente como substituto ou delegado.
Mas, ao fazê-lo, ele renuncia ao capital que está associado a
uma pessoa, com o estilo próprio de suas criações (o estilo
esporte), e a uma personagem com o estilo de vida que contribui
para produzir ou perpetuar a fé em seu poder criador. É essa
pjerre BourdJ"eu
,
contradição que faz surgir Ramon Esparza, sucessor de Gaston
Berthelot à sucessão de Chanel, quando ele exige plenos poderes
"incluindo o de falar quando tiver vontade". Falar, isto é, existir
como pessoa e obter os meios para se tornar uma personagem
com uma marca, palavras, manias, em suma, tudo o que
compunha Chanel, o carisma de Chanel, e que nos força a
formular a pergunta: Como será possível substituir Chanel?
Exatamente o que os jornalistas, que haviam contribuído para a
produção da crença coletiva, descrevem retrospectivamente com
um objetivismo redutor:
"Privado de sua vedete, o cenário perdeu toda sua magia. No fundo,
todo este verniz preto e ouro era um pouco sinistro, e essas corças de
bronze ~ dignas de figurarem nas salas do museu Petit Palais -
representavam justamente o notável pesar da felicidade de ter cachorros.
Mas, Chanel detestava cachorros. Trancamos a porta e, à nossa frente,
a célebre escadaria de espelhos. Era aí, GalcrÍa dos Espelhos e Sala do
Jiono, que Chanel - multiplicada por cem, sentada em um degrau,
com a cabeça coberta pelo seu eterno chapéu de palha -, controlava,
nos dias de apresentação das coleções, as ausências e abstenções. A
seus pés, espalhados pelo tapete bege - p gasto-, os fiéis em uniforme
de gala - cwccdscreme e botões dourados ~ aplaudiam com vigor (...).
Mademoiselle, enclausurada há vinte anos em um monólogo, do qual
explodiam na superfície, em forma de bolhas, vitupérios e fórmulas
mordazes, enquanto desliz sub-repticiamente o lento fluxo de
lembranças. Mademoiselle não SupOltavaas interrupções (...). A religião
do pequeno cailleur. Com seus ritos: mangas cortadas por três vezes,
rcsouras sacrificadoras, estréias banhadas em lágrimas. Seus milagres:
pela primeira vez, foi possível usar um terno dez anos seguidos sem ter
ficado démodé, pois Chane!, que ditava a moda, decidira parar o tempo.
E um evangelho: 'É preciso sempre... Detesto as mulheres que .. .',
etc."32
Por fim, basta citar as primeiras palavras que Ramon
Ezparza dirigiu aos jornalistas: "Não, na próxima terça-feira não
ficarei na escadaria. Aliás, não quero ver ninguém. A tradição?
o Costureiro e Sua Grjfe
Fui contratado pela empresa Chanel para fazer funcionar a majson
- de um papei".33
e não para retomar a representaçao
É a raridade do produtor (isto é, a raridade da posição
que ele ocupa em seu campo) que faz a raridade do produto.
Como explicar, a não ser pela fé na magia da assinatura, a
diferença ontológica - comprovada do ponto de vista econômico
- entre a répJjca assinada pelo próprio mestre (este múltiplo
antecipado) e a cópia ou a falsificação? Já é conhecido o efeito
que uma simples troca de atribuição pode exercer sobre o valor
econômico e simbólico de um quadro. O mesmo é dizer, de
passagem, que o poder de transmutação não pertence somente
ao produtor das obras (e que este não o obtém por si mesmo):
o campo intelectual e o campo artístico constituem o espaço de
lutas incessantes a propósito das obras do presente e do passado
que enfrentam, ao mesmo tempo, o desafio da reviravolta da
hierarquia dos produtores correspondentes e a alta das "açües
culturais" daqueles que investiram (no duplo sel1tido) em suas
obras.
As estrateglas de comercialização da griFe SJO a melhor
demonstração do quanto é inútil procurar apenas na raridade
do objeto simbólico, em sua unicidade, o princípio do valor deste
objeto que, fundamentalmente, reside na raridade do produtor.
É produzindo a raridade do produtor que o campo de produção
simbólico produz a raridade do produto: o poder mágico do
crjador é o capital de autoridade associado a uma posição que
não poderá agir se não for mobilizado por uma pessoa autorizada,
ou melhor ainda, se não for identificado com uma pessoa e seu
carisma, além de ser garantido por sua assinatura. O que faz
com que os produtos sejam Dior, não é o indivíduo biológico
Dior, nem a majson Dior, mas o capital da majson Dior que age
sob as características de um indivíduo singular que só pode ser
Dior.
pjerre Bourdjeu
A Imposição de Valor
Deve-se evitar ver nessas análises uma forma de restaurar,
com outras palavras, a fé no poder carismático do criador. este
limita-se a mobilizar, em graus e por estratégias diferentes, a
energia da transmutação simbólica (isto é, a autoridade ou a
legitimidade específica) que é imanente à totalidade do campo
porque este a produz e a reproduz por meio de sua própria
estrutura e de seu próprio funcionamento. Toda teoria econômica
da produção de bens simbólicos que leva em conta apenas os
custos de fabricação dos objetos considerados em sua
materialidade é falsa. O que é válido para uma Eau de Coiogne
do MOlloprix' l1JO o l' elll relação a um perfume de Chanel: mesmo
que este seja simplesmente uma Eau de Coiogne do Monoprix,
à qual lenha sido colada a grife de Chane!. Produzir um perfume
que traz esta grife é fabricar ou selecionar um produto fabricado,
mas é também produzir as condições da eficácia da grife que,
sem nada modificar à natureza material do produto, transmuta-o
em um bem de luxo, transformando ao mesmo tempo seu valor
econômico e simbólico.
"Mediante uma taxa de utilização, o fabricante faz uso da grife e da
publicidade indireta difundida em tomo do nome. Este sistema permite
vender um pouco de tudo: sonhos, talvez, ilusões, além de produtos
nos quais a parcela de criação é mais ou menos importante. É evidente
que, ao colocar sua grife em meias, o investimento real de Dior é
mínimo: o que se paga é seu nome. Pelo contrário, em seu setor de
peles prêt-à-porter, por exemplo, o estúdio de criação aperfeiçoou
determinados modelos e procedeu à seleção das peles. Além da grife,
estes produtos são portadores de um certo estilo e de uma real qualidade
técnica. Qual será o investimento criativo no perfume de um costureiro
, Rede de supermercados de grande apelo popular, reconhecida por praticar preços
baixos.
'n
o Costureüo e Sua GnIe 'n

de grande prestígio? Nenhum. seniío, talvez, a forma do vidro e a
embalagem. O resto foi feito por especialistas da indústria de perfumes."
(Dépêche-Mode, março de 1974) "Um terno Pierre Cardin, por
exemplo, custará 20% a mais, no mínimo, do que um terno idêntico
fabricado nos mesmos ate}jers, com os mesmos tecidos, mas sem a
pequena grife que muda tudo" (Entrevista com jornalista de moda,
abril de 1974).
A operação de produção de bens é, neste caso, uma
operação de transubstanciação simbójjca, irredutível a uma
transformação material. A ideologia carismática da criação é um
erro bem fundamentado, como a religião, segundo Durkheim. O
costureiro adota um procedimento semelhante ao do pintor que
transforma um objeto qualquer em obra de arte pelo fato de marcá-
COURREGES
2000
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I I
I I
I I
I / I
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"O
,
lo com sua assinatura: a diferença é que ele atua de maneira mais
vistosa porque a estrutura específica da divisão do trabalho lhe
proporciona tal possibilidade; além disso, exprime-se de maneira
mais aberta porque a menor legitimidade de sua arte o intimida a
responder a questões tornadas impensáveis pela mais elevada
legitimidade da pintura: "Eu não sou um comerciante - dizia
Esterel. Minha função é criar e fazer com que se fale sobre minhas
criações".
Entre as estratégias que se oferecem aos costureiros (cf. o
diagrama que apresenta a relação entre o número de empregados
e o faturamento), a mais conforme à lógica da economia específica
do campo da moda é - pelo menos, a curto prazo -, a escolhida
pela maior parte dos inovadores (com exceção de Courreges,
deliberadamente orientado para a empresa integrada) que consiste
eln criar []()[)}('- pelas relações públicas - e vendê-lo. "Na maison
h"raud, a l'lllprl'Sa funciona como um verdadeiro estúdio de criação
()IOI( L' Ulll escritório de relações públicas." (Dépéche-Mode, março de
1974) ";\ grife Cardin é vendida em produtos cada vez mais
diversificados já que estes têm a ver com a estética industrial."
(Dépêche-Mode, março de 1974) Cardin cria pratos para as fábricas
de porcelana de Limoges, desenha o interior de carros para a
General kJocors, produz discos e financia o Espaço Cardin. A
situação da empresa de Courreges que, abalada continuamente

2
'-'
E
500 !- -;1/ LANVIN i por problemas financeiros, funciona de algum modo por
movimentos bruscos (depois do súbito crescimento de 1965,

~V\I4 :
." precedido de quatro anos difíceis, ela passou por um novo período
'" I ele dificuldades na primavera de 1969, retomando fôlego em 1970
~ 7" - - +- - ---. CARDIN com o lançamento da linha Hipérbole e, em 1971, com a produção
100 7Mv/ I
--=- --.EEBbw;? - ~
I I
LAP/DUS
de acessórios), parece confirmar, ao contrário, que - pelo menos,
nas empresas ascendentes -, a estratégia mais adequada à lógica
100 200 600 específica do campo consiste em reduzir a produção ao seu aspecto
taturamento em milhões de francos sÍm bólico. 34
A estratégia de Cardin, Féraud ou Lapidus que, por meio
A relação entre o faturamento e o tamanho das empresas de licenças cedem a empresas a responsabilidade pela fabricação e
de alta costura (Fonte: Dépêche-Mode)

o Costllreiro e Sua Gri/é

Pierre Bourdieu
 exploração comercial de suas criações, mediante uma taxa anual
de 5% sobre o faturamento, não é assim tão diferente da estratégia
do escritor que confia ao editor a responsabilidade pela fabricação
e comercialização de sua obra, mediante o pagamento dos direitos
autorais. A análise real, inscrita na divisão do trabalho que, aqui,
estabelece a separação entre a fabricação do bem material e a
produção do bem simbólico - isto é, da transubstanciação -, abre o
caminho para uma análise das operações constitutivas da alquimia
simbólica que a indiferenciação (característica, salvo exceções, da
produção pictórica) tende a interdizer, favorecendo assim a ilusão
carismática: conceber os produtos, produzir idéias, modelos -
operação não específica, constitutiva de todo trabalho humano;
fabricar o produto; impor uma marca sobre o produto (grife do
costureiro, nome do editor ou da editora, assinatura do pintor, do
escritor ou do músico, prefácio assinado por um nome ilustre,
etc.) e, por isso mesmo, constituí-lo como raro - digno de ser
procurado, consagrado, sagrado, legítimo -, operação que caracteriza
propriamente a produção dos bens simbólicos; ror fim, divulg;lr c
comercializar o produto da forma mais ampla POSSíVl'l.
Se a imposição da grif(', caso particular da tomada dc posse
simbólica pela marcação (da Bczeic1JIlung no sentido de Hegel),
L
transforma de maneira quase mágica o status do objeto marcado é
porque ela não passa da manifestação sensível - como a assinatura
do pintor - de uma transferÊncia de valor simbólico. A imposição
da grife consuma - embora por vias radicalmente opostas - os fins
que persegue a publicidade: mas, enquanto esta revela seu segredo,
mostra-se tal como ela é, uma operação interesseira de valorização
da mercadoria, contradizendo assim, através dos meios que
emprega os fins que persegue, a imposição arbitrária e interesseira
de valor, realizada pelo costureiro, não pode afirmar-se abertamente
sob pena de se destruir; como violência simbólica, ela não pode
consumar-se a não ser que se torne incognoscível como tal, em
nome da fé ou da confiança inspiradas por aquele que a exerce, ou
da autoridade específica de que é detentor.
00
<n
Pierre Bourdieu
Situado em uma poslçao intermediária entre o campo
artístico e o campo econômico, do ponto de vista do rigor da censura
imposta à manifestação dos interesses - e, em especial, dos
interesses econômicos -, o campo da moda revela, com uma
transparência particular, certos mecanismos característicos de uma
economia na qual os interesses só podem ser satisfeitos se forem
dissimulados nas e pelas próprias estratégias que visam satisfazê-
los: as estratégias econômicas do campo artístico são demasiado
perfeitas, isto é, por demais perfeitamente simbólicas, portanto,
bem protegidas pelo próprio efeito de sacralização que produzem,
para que se possa esperar e apreender aí, direta e completamente,
as leis da economia das trocas simbólicas. Além disso, essas trocas
altamente eufemizadas visam satisfazer interesses tão radicalmente
sublimados e tão profundamente incognoscíveis, que a objetivação
es tá fadada a aparecer como um grosseiro sacrilégio aos olhos
daqucles que tiram alguns benefícios simbólicos do desvelamento
parcial - portanto, polêmico ou cínico -, das leis do meio'. Quanto
às estratégias de valorização cotadas no campo econômico - mesmo
que se trate de técnicas de relações públicas, mais dissimuladas
que as da publicidade -, elas fornecem mais informações sobre os
interesses e as funções das estratégias simbólicas do que sobre
sua lógica específica. Entre a criação do artista, que desencoraja a
análise e só exige a reverência, e a fabricação publicitária das marcas
que se mostra tal como é, a imposição da grife representa um caso
exemplar de alquimia social, operação de transubstanciação que,
sem alterar em nada a natureza psíquica do produto, modifica
radicalmente sua qualidade social.
Se há uma situação em que são feitas coisas com palavras,
como na magia - inclusive, melhor que na magia (se é verdade
que o mago se limita a vender, através de palavras, a idéia de que
faz alguma coisa com palavras) - isso se verifica no universo da
* No original, lois du milieu.
o Costureiro e Sua GriFe

moda. A gáfe, simples "palavra colada sobre um produto"\:' é, sem
dúvida, com a assinatura do pintor consagrado, uma das palavras
mais poderosas, do ponto de vista econômico e simbólico, entre
as que, hoje, têm cotação. Mas, do mesmo modo que o poder da
assinatura do pintor não se encontra na assinatura, assim também
o poder da gáfe não está na gáfe: nem se encontra sequer no
conjunto dos discursos que celebram a crÍação, o criador e suas
criações, contribuindo de forma tanto mais eficaz para a valorização
dos produtos elogiados, quanto maior é a impressão suscitada de
que se limitam a constatar tal valor quando, afinal, estão
empenhados em produzi-lo.
Descartando, de saída, em nome do direito à
autonomização metodológica, a questão da função do discurso
da moda no processo de produção dos bens da moda, a "leitura"
semiológica 3b está condenada a oscilar entre o formalismo de
urna transposição forçada dos modelos lingüísticos L' o
intuicionismo de análises quase fenomenológicas q li L' SC IiIlli [;1111
a reproduzir, sob outras formas, as rl'I1fl'SCII(,IlJll'S ILl1 i\'.lS (IH)r
exemplo, sobre a "lei da moda" e sohl'l' as reLl~-LiL'S da 1l1Oda
com o t empo J7). Quando o Vl'lI dos sigilOS deixa transparecer a
evidência da ação dos agentes cncarregados da produção e
circulação dos bens da moda, livramo-nos da questão sobre suas
funções, remetendo-as à economia: "Por que a Moda é tão profusa
ao abordar o vestuário? Por que, entre o objeto e seu usuário,
interpõe-se tal superabundância de palavras (sem contar com
as imagens), tal rede de sentidos? A razão é, como todos sabem,
de ordem econômica";33 "Por trás dessa Lei, existe uma instância
exterior à Moda: trata-se do fashion-group e suas razões
econômicas, mas permanecemos aqui no nível de uma análise
imanente do sistema". 39 As razões da análise imanente
conduzem assim a liquidar, de saída, a própria questão da razão
específica do sistema de produção dos bens da moda que contém
a verdade do sistema da moda, isto é, do discurso da moda: "A
Pierre Bourdieu
1
•
origem comercial de nosso imaginário coletivo (submetido, por
toda parte, à moda, bem para além do vestuário) não pode,
portanto, ser mistéáo para ninguém".4ü A denúncia prejudicial
dos mecanismos, sem charme nem mistério, da .produção e
circulação dos bens e discursos da moda, permite reenviar sua
análise a ciências ancilares, como a economia e a sociologia
("Como não há intenção de estabelecer, aqui, uma sociologia da
Moda, estas indicações são puramente aproximativas: no
entanto, não haveria nenhuma dificuldade de método em definir
sociologicamente o nível de cada publicação sobre a moda"41).
Podemos, então, dedicarmo-nos, sem o mínimo risco de
equívoco, a uma análise rigorosamente interna que se faz a partir
de um engraçado trocadilho como uma "economia do sistema
da moda".!! E Roland Barthes tem toda razão ao lembrar que a
"ll1ctalinguagem" do analista é, por si só, passível de uma análise
e, assim, inclefinidamente:!1 não tendo constituído seu objeto
em sua verdade, isto é, em sua função de celebração, o analista
do discurso sobre a moda limita-se a trazer uma contribuição
suplementar ao discurso de celebração da moda que - à
semelhança da crítica literária, da qual ele só se distingue pela
menor legitimidade de seu objeto - participa do culto dos bens
de luxo e, por isso mesmo, da produção de seu valor
indissociavelmente econômico e simbólico.
Uma análise do tipo austiniano teria, pelo menos, o mérito
de subordinar a questão das propriedades retóricas do discurso à
questão de sua eficácia.HNo entanto, a enumeração positivista
das formas que devem ser respeitadas para que se opere a magia
da palavra - o agente certo, o momento certo, a maneira certa, o
lugar certo, etc. - dissimula que o princípio da eficácia da operação
ritual não deve ser procurado no formalismo mágico, isto é, no
próprio ri tua!, mas nas condições sociais que produzem a fé no
ritual (de que o formalismo é apenas um aspecto de menor
importância) .
o CosClJreiro e Sua Grife

o Desconhecimento Coletivo
O poder das palavras não reside nas próprias palavras, mas
nas condições que dão poder às palavras criando a crença coletiva,
ou seja, o desconheâmento coletÍvo do arbitrário da criação de valor
que se consuma através de determinado uso das palavras. A
imposição de valor, simbolizada pela grife, é um caso particular de
todas as operações de transferênâa de capital simbólico (prefácios
escritos por um autor célebre para o livro de um novato, marca de
uma editora de prestígio, etc.) pelas quais um agente ou, mais
exatamente, uma instituição que age por intermédio de um agente
devidamente credenciado atribuem valor a determinado produto.
Na própria estrutura do campo - ou, o que quer dizer o mesmo, nas
leis que organizam a acumulação do capital simbólico e sua circulação,
e não em tal ou qual instância ou em tal agente particular ou, até
mesmo, na combinação de fatores singulares (agentes, instrumcntos,
circunstâncias) - é que residem as condições de possibilidadc da
alquimia social e da transubstanciação que ela realiza.
"É somente em Paris que se encomram reunidas todas as condições para
o lançamento de uma nova moda: a presença de 800 jornalistas na
apresentação das coleções, à cata de informações diárias; as revistas
especializadas que, um mês depois, publicarão a síntese fotográfica; por
fim, os compradores profissionais, cujos dólares, libras ou francos
permitirão que as mulheres concretizem idéias consideradas, às vezes,
destemidas ou, pelo contrário, tímidas.""
"A moda só se toma verdadeiramente o que é devido ao jornalismo. Você
pode me dizer como apresentar vestidos se estes não passarem
primeiramente pelo estágio da imagem?" 46
"Com a apresentação da coleção, obtemos 350 páginas nas publicações
de moda. Há 600 jornalistas que escrevem sobre a alta costura.''"?
O poder do criador nada mais é que a capacidade de
mobilizar a energia simbólica produzida. pelo conjunto dos agentes
comprometidos com o funcionamento do campo: jornalistas
pjerre Bourdjeu
objetivamente encarregados de valorizar as operações de valorização
dos crÍadores (com toda a parafernália de jornais e revistas que
torna possível sua ação); intermediários e clientes,
antecipadamente, convertidos; por fim, outros criadores que, na e
pela própria concorrência, afirmam o valor das implicações da
concorrência. Isso ocorre, igualmente, no caso da pintura. A
imposição arbitrária de valor - que, até uma época recente,
confundia-se com a operação de produção de um objeto
insubstituível, marca de uma competência exclusiva 48 - tende a
se tornar visível, quando não é ostensivamente afirmada por um
ato pictórico, a partir do momento em que alguns pintores se
recusam a identificar o papel do artista com o de artÍfex, definido
fundamentalmente por sua capacidade técnica. Neste caso,
segundo parece, quem estabelece o valor da pintura não é (ou não
é somente) o produtor de um objeto único, mas também o detentor
dc um capital de autoridade específico - portanto, a totalidade do
campo com os críticos, diretores de galerias, outros pintores,
consagrados ou fracassados, em suma, todo o aparelho que produz
essa forma específica de capital simbólico, produzindo a crença
(como desconhecimento coletivo) nos efeitos de uma forma
particular de alquimia socia1. 49
Na produção de bens simbólicos, as instituições
aparentemente encarregadas de sua circulação fazem parte
integrante do aparelho de produção que deve produzir, não só o
produto, mas também a crença no valor de seu próprio produto. A
ninguém ocorreria a idéia de estabelecer uma separação entre a
produção de indulgências ou exorcismos e o aparelho de produção
da demanda que ela supõe. Isto se dá em todas as formas de
produção de bens simbólicos, como se vê claramente quando, no
caso da poesia, por exemplo, este aparelho está em crise. O trabalho
de fabricação propriamente dito não é nada sem o trabalho coletivo
de produção do valor do produto e do interesse pelo produto, isto
é, sem o conluio objetivo dos interesses que alguns dos agentes,
em razão da posição que ocupam em um campo orientado para a
o Costureüo e Sua Grife

produção e circulação deste produto, possam ter em fazer circular
tal produto, celebrá-lo e, assim, apropriar-se dele simbolicamente,
além de desvalorizar 05 produtos concorrentes, isto é, celebrados
por concorrentes, e assim por diante. Prefácios e introduções,
estudos e comentários, leituras e críticas, debates sobre a crítica e
lutas pela leitura, todas estas estratégias altamente eufemizadas,
que visam a imposição do valor de um produto particular, são outras
tantas contribuições para a constituição do valor genérico de uma
classe particular de produtos ou, o que resulta no mesmo, para a
produção de um mercado favorável a estes produtos.
Eis um exemplo, encontrado ao acaso, no qual se vê bem,
em razão da natureza do produto e das estratégias - ainda um
pouco grosseiras, embora representem, sem dúvida, um ápice das
relações públicas -, a forma específica da divisão do trabalho de
celebração: "Com prefácio de André Chastel, o livro L'lnIÍllIÍ((; c/li
parfiIm, de Odile Moreno, René Bourdon e Edmoncl Roudnitsk:1,
é um trabalho de equipe, cujos primeiros eienll'ntos foram coligidos
para o relatório final do curso universiLírio liL- Odill' Morl'IH). Rcnl'
Bourdon exerce imporrantes fllll(;()l'S em lima das mais
conceituadas perfumarias francesas; Edmond Roudnitska é
'compositor' de perfumes"."" Se acrescelltarmos que essa obra -
cujo preço de capa varia de 38 francos, em edição popular, a 120
francos, em edição de luxo - está predisposta a desempenhar o
papel de "presente de negócios" e que o artigo que lhe foi
consagrado no cotidiano Le lv/onde encontra-se ao lado do anúncio
~ funcionamento do campo possa apreender este campo enquanto
de uma Eau de Guer!ain, apreendemos a "forma elementar" de
II
um empreendimento necessariamente coletivo de celebração: um
trabalho" universitário" para produzir o efeito de neutralização
acadêmica; um professor do ColJege de France, sumo sacerdote
I verdacle - nem que seja de maneira aparentemente mais cínica -
da celebração do culto da arte legítima, para produzir o efeito de
I, canonização acadêmica e de neutralização estética; e, ainda, o
;! "compositor" (as aspas estão no original) de perfumes para a caução
I de desinteresse artístico que somente o criador pode fornecer à
I É assim que - mesmo para aqueles que contribuem mais
! defesa, um pouco vistosa, do Presidente Diretor Geral em favor
i
f Pierre Bourdieu
!
r
da "qualidade francesa" e do "empreendimento de interesse geral"
de que é o animador.
Vê-se, de passagem, que é no aparelho da celebração que
reside o próprio princípio da estrutura e, inseparavelmente da
função, do discurso de celebração, do qual o discurso a respeito da
moda, a publicidade ou a crítica literária são outros tantos casos
particulares, separados apenas pelo grau de dissimulação da função.
Todas essas formas de discurso têm em comum o fato de descrever
e, ao mesmo tempo, prescrever, de prescrever sob a aparência de
descrever, enunciar prescrições que tomam a forma da descrição
("a moda estará - ou está - na...; observa-se a reaparição de...; a
moda de X se afirma"). Esses exemplos, tomados de empréstimo
a Roland Banhes, tornam-se ainda mais compreensíveis a partir
cio comellLírio cll'ste autor: "A sabecloria da moda implica uma
cOllfuSJO audaciosa entre passaclo e futuro, entre o que foi decidido
l' o qUl' iLí ocorrcr: registra-se uma moda no preciso momento em
que esta é anunciada, no preciso momento em que é prescrita".51
Assim, o discurso sobre a moda realiza perfeitamente a forma da
enunciação pêrfoflnariva, como diz Austin, que designa desse modo
a inseparabilidade entre a especificidade estilística deste discurso
e seus efeitos sociais. A alquimia social só obtém pleno sucesso
porque a verdade do sistema escapa àqueles que participam de
seu funcionamentõ, portanto, da produção da energia social
mobilizada pela enunciação performativa: pelo fato de ser
impossível que um dos agentes que contribuem para o
tal e, ao mesmo tempo, apreender o fundamento real dos poderes
para cuja produção fornece sua contribuição ou são utilizados por
ele, o sistema e os efeitos do sistema nunca se mostram em sua
mesmo para aqueles que dele se beneficiam mais diretamente; é
o sistema como tal que, por estar destinado a uma apreensão parcial,
produz o desconhecimento da verdade do sistema e de seus efeitos.
o Cosllirt'iro c' Sua Grilé
diretamente para sua realização: costureiros ou jornalistas de moda,
artistas e críticos, mistificadores mistificados - a imposição arbitrária
de valor pode assumir a aparência de uma constatação do valor: o
discurso performativo dos jornalistas de moda é a manifestação
mais perfeita da lógica de um sistema de produção que, para
produzir o valor de seu produto, deve produzir, entre os próprios
produtores, o desconhecimento dos mecanismos de produção.
Depois da Revolução Francesa, observa Marx, os aristocratas
- cujo capital incorporado consistia em uma arte de viver, daí em
diante, desprovido de mercado - tornaram-se os donos da dança
na Europa. É o campo artístico e o mercado atual e potencial que
ele produz pela imposição da crença em sua própria legitimidade
e no valor decisivo de seu produto, que transforma o artista em
detentor legítimo do monopólio das operações de
transubstanciação. A crise do mercado dos bens simbólicos toma a
forma de uma crise de confiança ou, se quisermos, ele crença: no
caso da moda, como no caso da igreja ou da universidade, fala·sl'
em crise quando deixam de funcionar os Illl'CllliSII1()S ljue
produziam a crença reprodutiva do sistema; ou, () que Vl'Ill a ser o
mesmo, quando os interesses dos agentes de quem depende o
funcionamento do sistema já não estão salvaguardados - portanto,
reproduzidos - pelo funcionamento do sistema.
A competição pelo lance específico, enquanto propriedade
bastante generalizada dos campos, dissimula o conluio objetivo
em relação aos próprios princípios do jogo. Assim, como observa
Albert Hirschman, a concorrência entre marcas tende a assegurar
uma forma de estabilidade pela mudança: as vítimas de uma marca
(por exemplo, aqueles que compraram "alfinetes" - lemons)
passam para o concorrente à procura de produtos inexistentes ou
impossíveis e, assim, são desviados do protesto contra a empresa
responsável pelo produto e, a fortÍori, contra o sistema de produção.
A concorrência entre partidos políticos ou sindicatos, falsamente
opostos, tende a exercer um efeito análogo de desvÍo da energia
revolucionária. 52 Do mesmo modo, sabe-se que a luta que opõe
pjerre Bourdieu
continuamente as frações da classe dominante nunca ameaça de
verdade tal dominação, Assim, a luta pelo monopólio da
legitimidade que habita o campo de produção dos bens simbólicos
contribui para o fortalecimento da legitimidade em nome da qual
ela é conduzida: a ortodoxia necessita da heresia porque a oposição
entre uma e outra implica o reconhecimento do interesse que
está em jogo, reconhecimento desconhecido - isto é, afirmado e,
ao mesmo tempo, negado na própria oposição - que exclui a
possibilidade de um verdadeiro agnosticismo. Os conflitos
decisivos sobre a leitura legítima de Racine, Heidegger ou Marx
excluem a questão da legitimidade de tais conflitos, ao mesmo
tempo que a questão, verdadeiramente incongruente, das
condições sociais que devem ser satisfeitas para que eles sejam
possíveis. Essas lutas, aparentemente implacáveis, salvaguardam
o essencial, nem que seja pela convicção com que nelas se engajam
os protagonistas e que l' orientada para se impor a comparsas,
antecipadamente, convertidos pelo próprio funcionamento do
campo em que estão aplicados, quase sempre, todos os seus
interesses: elas excluem este tipo de agnosticismo específico que
é a condição de uma apreensão objetiva da luta que, por sua vez, é
anterior a toda ciência objetiva de seu desafio. A heresia garante
também a fé: a leitura herética e a leitura ortodoxa de Racine
formam um par e, delimitando de antemão o universo das leituras
possíveis, excluem, por este efeito de fechamento, a possibilidade
da crítica sociológica da crítica e da literatura que é a condição de
uma verdadeira ciência da literatura. Tais pares de posições
epistemológicas, antagoTIlcos e complementares, que
correspondem a oposições sociais entre adversários cúmplices, são
observados em todos os campos; e, em todos os casos, o
conhecimento aprofundado daquilo que constitui o fator das lutas
que neles se desenrolam, tem por condição de possibilidade a
crítica sociológica entendida - pela generalização do emprego
kantiano da palavra crítica - como o conhecimento aprofundado
das condições sociais de possibilidade deste jogo particular e, ao
o Coswreiro e Sua Grife

mesmo tempo, o conhecimento aprofundado dos limites que
implica o engajamento necessariamente ingênuo neste jogo. A
participação nos interesses que são constitutivos do pertencimento
ao campo (porque este os pressupõe e os produz por seu próprio
funcionamento, durante todo o tempo em que estiver em condição
de se reproduzir) implica a aceitação de um conjunto de
pressupostos e postulados aceitos como evidentes que constituem
a condição inconteste das discussões e o limite insuperável dos
conflitos. É por isso que o conflito entre ortodoxia e heterodoxia,
que confere ao campo sua estrutura e sua história, nunca atinge,
por definição, o terreno originário da dOXd, a crença primordial,
cuja intensidade é proporcional ao interesse manifestado pelos
agentes em relação ao funcionamento do campo.
o Ciclo da Consagração
A especificidade do cJ.mpo d;l prudu~·,lo siJIJ!)(')li,"a !"L'sulta
da dupla natureza dos bens simbólicos e d;l pr(')pri,l produ~·ão
simbólica, que não se reduz a um ato de fabricaçáo malerial, mas
comporta necessariamente um conjunto de operações que tendem
a assegurar a promoção ontológica e a transubstanciação do produto
das operações de fabricação material. Os artistas - sobretudo, depois
de Duchamp - não cessaram de afirmar, arbitrariamente, como
que para provar os limites, o arbitrário de seu poder mágico, capaz
de converter um objeto qualquer em obra de arte na ausência de
qualquer transformação material, capaz mesmo de constituir em
obra de arte a recusa da arte. Este aspecto da produção artística,
manifestado publicamente não só por suas transgressões
aparentemente mais radicais, mas também pelos limites impostos
a seus sacrílegos rituais (tal como sua submissão ao rito da
assinatura) escapa tanto à ideologia carismática - que considera o
crÍador como princípio último de sua câaçâo -, quanto à análise
ingenuamente redutora de um materialismo parcial que
relacionaria diretamente o valor da obra de arte ao trabalho do
Pierre Bourdieu
,
responsável pela fabricação material, esquecendo-se de levar em
consideração o trabalho da consagração. Segue-se que, à semelhança
da atividade de produção, o aparelho de produção não deve ser
reduzido ao aspecto que é diretamente responsável pela fabricação
do objeto material. Assim, por exemplo, nada seria mais ingênuo
que reduzir o tempo de trabalho dos produtores ao tempo que
dedicam expressamente à produção dos objetos. A parcela relativa
ao trabalho da consagração não cessou de crescer à medida que o
campo artístico ganhava autonomia e se constituía à imagem social
do artista: a vida do artista, a orelha cortada de Van Gogh e o
suicídio de Modigliani fazem parte da obra destes pintores, do
mesmo modo que suas telas, que lhes ficam devendo uma parcela
de seu valor. Ninguém teria a idéia de reduzir a produção do profeta
às sentenças e parábolas que professou, deixando de lado as
ac!versidJ.des que superou e os milagres que realizou. E, sob pena
de se aUlücondenarem, os pintores de vanguarda devem saber
que S;!O nbrigJ.dos J. agir, continuamente, como seus próprios
emprl's;Írios, freqiienlanc!o os críticos, os diretores de galerias e,
sobretudo, 05 orgzlllizadores dJ.s grJ.ndes exposições internacionais,
vendendo em todos os instantes seu discurso e seu comportamento
de artista, tanto a seus concorrentes, quanto aos negociantes e
potenciais compradores.
De marreira geral, porém, os circuitos de produção e
circulação material são inseparavelmente ciclos de consagração que,
além disso, produzem legitimidade, isto é, objetos sagrados e, ao
mesmo tempo, consumidores converúdos, dispostos a abordá-los
como tais e pagar o preço, material ou simbólico, necessário para
deles se apropriaremY Verdadeira exploração dos limites do
possível, as pesquisas pictóricas de vanguarda permitem apreender
o duplo sistema de imposições intransponíveis resultantes da
dualidade da obra de arte - objeto físico e objeto sagrado -,
investido de valor simbólico e econômico. A rápida decadência de
todas as tendências de pesquisa de vanguarda que tendiam a
ameaçar a integridade física da obra de arte - tais como, a bodyarl,
o Costureiro e Sua Grife
If
a exposição de objetos friáveis ou perecíveis e todas as formas de
ação que só podem ser fixadas, de maneira duradoura, sob a forma
de fotos - ao mesmo tempo que os limites dentro dos quais se
mantêm as audácias destruidoras ou críticas (as obras mais
contestadoras da pintura são assinadas com os nomes de pintores,
expostas em galerias de pintura, elogiadas pelas revistas de arte,
etc.; todos os pintores possuem um inventário de suas obras, etc.)
mostram que a obra de arte, sob pena de negar-se como tal ou, o
que resulta no mesmo, deixar de ser vendável, deve ser duradoura,
transportável, suscetível de ser exposta (de preferência, em um
domicílio privado) inventariada (o que não quer dizer
necessariamente única, mas consagrada pelo reconhecimento do
campo - em oposição às falsificações) e, por fim, atribuída a um
artista particular, isto é, assinada. Dito de outra forma, ela deve
possuir todas as propriedades que, de uma forma duradoura, a
tornem disponível para a circulação inseparavelmente físicl,
econômica e simbólica na qual se produz e se reproduz seu valor
sagrado e, portanto, seu valor econômico. Mas isso qlll'r dizer, ell1
compensação, que seu valor l' :1dquirido de SU;I rl'la~':lo com o
aparelho encarregado de assegurar a circulação produtora de
legitimidade.
Os ciclos de consagração, lugares de uma circulação circular
de moeda falsa, nos quais se engendra a mais-valia simbólica,
apresentam propriedades invariantes: obedecem sempre à lei
fundamental que estabelece que o desconhecimento do arbitrário
da imposição de valor - portanto, o reconhecimento da legitimidade
- é tanto mais completo, quanto mais longo for o ciclo da
consagração e quanto mais importante, por conseqüência, a energia
social (suscetível de ser avaliada por tempo de trabalho ou por
dinheiro) consumida na circulação. O ciclo, reduzido ao extremo,
da autocelebração (cujo paradigma é a sagração de Napoleão em
seu gesto de autocoroamento) produz um rendimento da
consagração muito fraco para um dispêndio de energia social
igualmente fraco (e uma ligeira perda de informação). A
Pierre Bourdieu
legitimiação só pode ser operada por procuração e, dessa maneira,
nunca se é tão mal servido quanto por si próprio: o primeiro
interessado, como se diz, é certamente o menos indicado para
levar a desconhecer o interesse que ele próprio tem por sua
celebração (daí, vimos, os limites da eficácia da publicidade). Nos
campos em que a censura do interesse material ou simbólico é
muito forte, como o campo intelectual, todo tipo de estratégia
pode ser colocado em prática para escapar às sanções que atingem
a autocelebração: desde a troca direta de elogios (citações, relatórios,
etc.) - cujo rendimento simbólico é tanto maior, quanto menos
aparente é a relação entre os parceiros e quanto mais longo for o
intervalo que separa a prestação e a contraprestação simbólicas -
até a celebração de um alter ego já célebre, auto-elogio através de
um terceiro só acessível a autores suficientemente consagrados
para serem considerados dignos de consagrar, servindo-se da
identificação com o autor famoso que faz parte da definição do
discurso da celebraçáo.
Constituir um capital simbólico de legitimidade suscetível
de ser, por sua vez, transferido para objetos ou pessoas é estar em
condições de (pela posição) não só fazer funcionar, em seu proveito,
os ciclos da consagração cada vez mais longos, portanto, cada vez
mais independentes das relações diretas de interesse compartilhado,
mas também apropriar-se assim de uma parcela cada vez maior do
produto do trabalho da consagração que se consuma em determinado
campo. As páginas consagradas aos diferentes costureiros nas
publicações semanais e nas revistas especializadas, ou as obras,
artigos, citações e referências consagradas aos diferentes autores de
um mesmo campo, não são somente um Índfâo de sua posição na
distribuição do capital específico, mas representam concretamente
a parcela do lucro simbólico (e, correlativamente, material) que eles
estão em condições de obter da produção do campo em seu conjunto.
A enorme mais-valia proporcionada pela operação de marcação nada
tem de mágico e não constitui uma exceção à lei da conservação do
capital.
o Costureiro e Sua GrÍfe

Distinção e Pretensão: a moda e o modo
A alta costura fornece à classe dominante as marcas
simbólicas da classe que são, como se diz, de rigor em todas as
cerimônias exclusivas do culto que a classe burguesa se presta a si
mesma, através da celebração de sua própria distinção. Por isso,
ela é parte integrante do aparelho encarregado da organização desse
culto e da produção dos instrumentos necessários à sua celebração.
Os produtores de emblemas da classe, parasitas dominados dos
dominantes que, à semelhança dos sacerdotes, participam apenas
por procuração da exploração dos dominados, fornecem às frações
dominantes os atributos da legitimidade em troca de uma parcela
da renda proporcionada à sua docilidade. 54 0 que se descreve como
uma crise da alta costura não é, talvez, senão um sinal, entre outros,
de uma reestruturação deste aparelho ligada à aparição de novas
marcas de distinção (tais como, esportes de luxo, viagens longas.
casas de campo, etc.) e a um aggior{];)f/lc{](O do cerimoni;ll
tradicional da distinção burguesa que, sem dúvid;l. currespolllk a
um reforço da intolerância em relaç;io às exibi<,-ôes lrJdicionais das
marcas estatutárias de distância social. Tendo aprendido a sacrificar
as afirmações simbólicas da hierarquia à realidade do poder, a nova
burguesia espera que o aparelho de produção de emblemas da
classe lhe forneça produtos mais sóbrios, menos ingenuamente
ostensivos, menos insolentemente luxuosos, em suma, mais
rigorosamente eufemizados, do que os produtos oferecidos pelos
costureiros. Ela não está longe de compreender que, sob a aparência
de revoltados que os excluíam das grandes cerimônias burguesas,
os artistas fornecem melhores investimentos - é claro, econômicos
- mas também simbólicos.
Se a revolução nascida da combinação de uma inovação
nas técnicas de fabricação e comercialização - o prêr-à-porrer -
com uma ruptura estilística introduzida por Courreges e difundida,
em primeiro lugar, na Inglaterra pelos estilistas, pôde alcançar o
Fierre Bourdieu
,
sucesso testemunhado pelo considerável volume (relativamente
às mais antigas) de maÍsons fundadas recentemente, tais como
Courreges, Lapidus e, sobretudo, Scherrer, é porque ela aparece,
no campo relativamente autônomo da moda, como a retradução
das transformações do estilo de vida burguês que são
correspondentes à transformação do modo de apropriação dos
lucros do capital (ingenuamente descrita, por um informante, como
uma "democratização das fortunas"). Na verdade, os iniciadores
da nova estratégia - indissociavelmente, estética e comercial -
conseguiram, através de uma representação intuitiva da nova arte
de viver burguesa ("A mulher Courreges, alta, jovem, bronzeada,
cabelo curto, decidida, sorridente, alegre", "mulher apaixonada
pelo conforto e pela liberdade"), cativar as mulheres da nova
burguesia, que exige apenas o reconhecimento da legitimidade
do novo ('slilo e du novo estilo de vida; aliás, todo o esforço dos
costureiros de vanguarda, estilistas e modelistas, com a
cumplicidade das revistas femininas e das publicações semanais
ciestinadas a executivos dinâmicos, orienta-se no sentido de impor
tal estilo. A reestruturação do campo da moda limita-se a ser o
equivalente - e o efeito - da reestruturação do campo do poder
(como campo das relações objetivas entre as frações da classe
dominante) que leva um certo número de observadores a
descortinar, como sinais de declínio da classe dirigente, aquilo
que não passa de uma reorganização da divisão do trabalho de
dominação, acompanhada por uma diversificação das categorias
que têm acesso, segundo novas modalidades, aos lucros e prestígio
da existência burguesa. Si
Se as estratégias a que os costureiros se opõem, em função
de sua posição na estrutura do campo relativamente autônomo da
moda, reencontram aqui expectativas que elas não procuraram
explicitamente preencher, é porque se baseiam na relação de
homologia entre a oposição - sincrônica e, ao mesmo tempo,
diacrônica - que se estabelece no campo da alta cultura entre os
dominantes, isto é, também os mais antigos, e os dominados, ou
o Cosrureiro e Sua Grife
seja, os recém-chegados, assim como a oposição instaurada entre
a antiga e a nova burguesia no seio do subcampo das frações
dominantes da classe dominante. Tais encontros necessários são
promovidos, incessantemente, nos mais diferentes domínios, a
partir de homologias objetivas entre campos relativamente
autônomos. As estratégias que opõem os agentes ou as instituições
que ocupam posições polares nos campos assim estruturados
(campo religioso, campo universitário ou campo artístico) e que,
produzidas a partir de posições estruturalmente homólogas,
apresentam homologias evidentes, encontram-se objetivamente
harmonizadas, pelo fato desta mesma homologia, com as estratégias
produzidas pelos ocupantes de posições homólogas na estrutura
do campo do poder e na estrutura das relações de classe. 56 É assim
que as estratégias que a lógica autônoma do campo impõe, em
determinado momento, aos costureiros de vanguarda - que, p~lra
defenderem sua clientela, são pressionados a lu ta r, de alguma
forma, em duas frentes: contra os costureiros canônÍcos para
afirmarem sua autoridade de crÍadores; e cllntra llS estilistas,
sustentados por uma grande parte da imprensa fcminiru, - podem
encontrar uma demanda que não as determinou diretamente.
Eis um belo exemplo de conluio objetivo (ou, se
preferirmos, de divisão espontânea do trabalho) resultante da
própria lógica da competição. Não há dúvida de que os costureiros
de vanguarda defendem os interesses da ai ta cos tura em seu
conjunto, entrando tão longe quanto possível no terre'no dos
estilistas e, ao mesmo tempo, salvaguardando a autoridade do
criador e o poder da grife. Tendo assumido o custo das pesquisas
estéticas (mesmo correndo o risco de serem acusados de mau
gosto) e das inovações comerciais que, frequentemente, acabam
por se generalizar, eles combatem os estilistas em seu próprio
terreno (provocando escândalo entre os integristas); ora, em um
período de redefinição da demanda, esta estratégia pode ser a
única maneira de assegurar a sobrevivênci8, da profissão. Segue-se
que a fronteira não é fácil de ser delimitada (o que é normal pois,
Pierre BOllrdi('{f
como é o caso de qualquer campo, ela constitui o fator de uma luta
que concerne à própria definição do campo e ao controle do direito
de entrada) entre a nata da categoria dos estilistas que a nova
"Chambre syndicale du prêt-à-porter, des couturiers et des
créateurs de mode"* teve que se resignar a aceitar (tais como,
Emmanuelle Khanh, ]acqueline Jacobson, Karl Lagerfeld, Kenzo,
Sonia Rykiel) e o escalão inferior da categoria dos costureiros (por
exemplo, Cacharel ou Hechter).
Vê-se, de passagem, o quanto e mgênua a análise que
relaciona diretamente os produtos de um campo relativamente
autônomo à demanda social que seria objetivamente satisfeita por
eles: assim, por exemplo, a demanda de legitimação da classe
dominante só pode ser realmente satisfeita porque os intelectuais
que trabalham para oferecer-lhe uma "teodicéia de seu próprio
privilégio", como diz Max Weber, só podem desempenhar - em
pleno desconhecimento de causa, isto é, com a convicção de
obedecer unicamente a determinações intelectuais -, urna função
que, sem dúvida, eles não poderiam aceitar em sua verdade e
porque este desconhecimento que se encontra na origem de seu
trabalho de eufemização é a condição da eficácia propriamente
ideológica de sua produção.
Sem entrar em uma análise sistemática das relações entre
habitas e campo, é preciso lembrar que as disposições ligadas a
uma trajetória pa~sada (habitus) que levam os agentes em direção
à sua posição e que eles trazem desta posição, os predispõem a
importar, para as estratégias engendradas pelas oposições internas,
determinados interesses e intenções que lhes são mais ou menos
irredutíveis: tudo contribui para sugerir que os que introduzem
uma ruptura marcante em um campo relativamente autônomo (ou
seja, no campo da moda, Dior, Chanel ou Courreges) que, na
aparência, corresponderia a uma mudança externa (ou seja, aqui,
• "Associação dos empresirios do prêr-j-porter (pronto-a-vesrir), costureiros e
criadores de moda,"
o Coswreiro e Sua Grile

a ap:.uição de um novo estilo de vida burguês e, mais precisamenre,
um novo ethos, particularmente manifesto em tudo o que
concerne à relação com o corpo) definem-se por uma trajetória
atípica, portanto, por uma relação específica enrre esta trajetória
(e o habitus correlativo) e sua posição que os predispõe a sentir,
pressenrir e exprimir uma demanda social ainda à procura de seu
modo de expressão legítimo. Assim, Courreges, que se distingue
dos costureiros mais antigos e mais clássicos - tais como, Balmain
ou Givenchy -, por sua origem social (popular) e, ao mesmo tempo,
por seus estudos (ciências) é o primeiro a ter rompido com a
definição tradicional do papel que a sociedade atribuía, sobretudo
antes da guerra, ao costureiro.
Para se ater às características sociologicamente pertinentes,
os costureiros tradicionais têm em comum:
- serem oriundos das frações dominantes da burguesi:l,
freqüentemente, da província (Christian Dior é filho de um grande
industrial normando; Balmain, filho de um negociante da Sahl'lia;
e Givenchy, filho de um administrador de Socit'/(:s clt' l'Oisd;
- terem seguido as fileiras escolares que, normalmente,
conduzem às classes dominantes (Fath fez estágio em uma escola
comercial; Dior, depois dos estudos em janson-de-SaiJJy, fez
Sciences PoJitiques) ou às profissões artísticas, freqüentemente,
mais próximas das classes dominantes (Balmain e Givenchy fizeram
cursos de arquitetura na Ecole de Beaux-Arts);
- terem pretendido, durante algum tempo, seguir carreiras
artísticas (Fath deu "os primeiros passos, sem seqüência, no
cinema e no teatro"; Dior começa como diretor de galeria; Cardin,
que gostaria de ter sido ator, e Saint-Laurent afirmam que devem
a Cocteau e a Christian Bérard o fato de terem sido apresentados
a Christian Dior).
Da mesma forma que toda a coorte de servidores de luxo e
de parodiantes, atores de cinema e autores de peças de bulevar,
romancistas de sucesso e pintores na moda, de que a burguesia é
pjerre BouniJ'eu
-,
•
rodeada, o costureiro fazia parte, ex oflicio, por profissão, do TOll/-
Paris*, no qual recrutava sua clientela e, para o exercício de sua
profissão, devia participar da vida parisiense para cuja existência
fornecia sua contribuição, oferecendo-lhe, com suas apresentações
da moda, uma de suas cerimônias exclusivas (que são, fato notável,
sempre estréias) e um de seus emblemas distintivos. 57 Esse papel
que nada tinha a ver com seu habitus - e, mais precisamente, sua
hexis corporal, seu estilo de vida, seu sotaque, suas maneiras,
seus gostos - foi substituído por Courrêges (como por Vngaro
que, durante algum tempo, foi seu sócio) por um outro, também
sistemático, a saber: o do criador-gerente de produtos de luxo
para mulheres (de) gerentes. Empenhado em oferecer pelo melhor
preço (graças a uma gestão racional) produtos de seu gosto, isto é,
"modernos" e "dinâmicos" (eis dois traços distintivos de seu
d i seu rso), "lógicos" e "funcionais", "esportivos" e "livres", ele só
podi:l ter sucesso junto à nOV:l burguesia "moderna e dinâmica",
da qual estava bem próximo por seu habitus - portanto, por seu
gustu de gerente autodidata.
0-
Alguns excertos de entrevistas serão suficientes para
mostrar a espécie de harmonia preestabelecida entre o habitus do
criador e a posição que ele ocupa no campo, isto é, a função que
lhe foi objetivam,ente atribuída, embora ele a tenha,
aparentemente, produzido. Em primeiro lugar, os traços da
trajetória e a relação com o meio:
"- Você nasceu em Béarn e conservou o sotaque da região. Existe um
pouco de esnobismo neste aspecto..."
- Não, vou lhe explicar. .. Fiquei durante dez anos com Balenciaga que
me dizia: André, é formidável, você se vira em todos os domínios, você
tem um jeitão, saca rápido seu trabalho, tudo isso, você é elegante nos
salões... mas existe uma coisa que não dá, é seu sotaque. Bom, então eu
disse-lhe: O que de\'o fazer? Você deve tomar aulas de àicção... Então,
• O conjunto das personalidades mais destacadas da sociedade parisiense.
o Cusruráro e Sua Grife
I"

seis meses depois, voltou-se para mim: 'Muito bem, André, você mudou
costura que lhes ofereça a liberdade de manifestar a certeza de 5('11
seu sotaque, está perfeito...' Então, repliquei: 'ah, sim, com certeza,
gosto e, simultaneamente, a ocasião de distinguir-se daquelas (jlll',
estou estudando direitinho, vou à aula duas vezes por semana...' Ele
por não saber "descobrir" o "pequeno detalhe que muda tudo", se
sempre acreditou nisso, mas a verdade é que eu nunca tomei aula. E,
contentam em ir atrás e copiar. E aquelas que, hoje, vestem roupas
além disso, é impossível deixar esse sotaque: passo três vezes por semana
no boteco, jogando pelota com meus bascos-beamenses C..) ou então, usadas, limitam-se a seguir até o fim esta lógica, contestando o
fico algum tempo, no domingo, com meus amigos do Racing, o time de
contrato tácito de delegação do poder de legislar em matéria de
rugby. .. são todos meridionais, então falar de sotaque é tarde demais; moda que atribuía ao costureiro o monopólio da crÍação.
quer saber uma coisa, eu não estou nem aí a. Chancel, Radioscopie, O acesso das mulheres oriundas da burguesia ao ensino
entrevista com Courreges). superior e, para uma fração delas, a uma classe de profissões
- À noite, quando acabo de fazer ginástica ou jogar pelota, o blá-blá-blá superiores - freqüentemente, de criação recente, tais como as
a partir das dez horas e... você nem imagina o que... ocupações de apresentação e representação - é uma das mediações
- O blá-blá-blá, jantar em restaurantes... através das quais os efeitos das transformações recentes da classe
- Não entro nessa... o besteirol que a gente tem de suportar l Enfim, eu dominante se fazem sentir, mais diretamente, no campo da alta
não critico, mas não consigo agüentar isso, não é possível.">K costura. É evidente que a mudança das disposições com relação
à moda que foi descrita, aqui, constitui uma dimensão da
Esse estilo de vida solto convém a uma burgucsia que
transformação mais generalizada do habÍws que se manifesta em
pretende manifestar pela simplicidade um tanto ostensiva de suas
todas as dimensões da existência: por exemplo, observa-se sem
maneiras que está suficientementc segura de sua própria
dificuldade que a propensão a contestar o monopólio do costureiro
legitimidade para não precisar exibir os ell1blelll:ls de sua
participa de uma lógica semelhante à da propensão a contestar o
autoridade, nem que se trate do luxo sóbrio e já fortemente
monopólio dos professores - e, em particular, dos professores do
eufemizado da antiga burguesia, preocupada em se distinguir do
ensino primário e de seus métodos pedagógicos, isto é, de seu
consumo ostensÍvo dos novos-ricos. Essa autoconfiança, que se
ethos. Essa recusa da delegação incondicional é o equivalente
manifesta em todos os aspectos da prática e, em particular, no uso
exato do que se observa, na política, nas relações entre os
da língua que combina a facilidade extrema e a indiferença com a
intelectuais e os partidos; em oposição às classes populares que
estrita correção, é característica de um grupo que deve sua posição
- condenadas, quase sempre, à fides ÍmpJjâta - não têm discurso
dominante não tanto à herança tal como esta é socialmente definida,
sobre o conjunto dos problemas oficialmente considerados como
mas às suas próprias aquisições, não tanto ao capital econômico,
políticos, senão por procuração, isto é, pela auto-entrega a um
mas ao capital cultural, capital incorporado, de cuja transmissão e
partido e a seus porta-vozes, os intelectuais, pequenos produtores
utilização, segundo parece, se incumbe sobretudo a natureza e
privados de ideologias, continuam tendo repugnância em delegar
não a sociedade. 59 As mulheres pertencentes, pelo casamento el
a outros intelectuais - isto é, a concorrentes - o poder de exprimi-
ou por sua profissão, a este novo segmento de "assalariados
las: assim, estão fadados à lógica da seita, dos conflitos decisivos
burgueses", executivos de empresas públicas ou privadas que se
e das cisões estrepitosas, quando não se sentem forçados a fazer
gabam de ter "mais bom gosto do que dinheiro" (segundo uma
renúncias de tal modo radicais que correm o risco de não serem
manchete da revista jardÍn des Modes) , pedem somente à alta
duradouras.

Pierre Bourc!ieu
o CosfUreir,1 e Sua CriFe

Mas, o novo estilo do vestuário corresponde, também, a
outras expectativas: não se trata somente de liberar o corpo dos
entraves e das falsas aparências de uma roupa bem feita, destinada
em prioridade às ocasiões extra-ordinárias da vida mundana, mas
de adaptar o vestuário às exigências da existência cotidiana da
nova burguesia, as da vida profissional que está longe de excluir,
sobretudo nas novas profissões de apresentação, as funções
tradicionais de representação social, ou as do esporte que - como
é afirmado pela oposição entre os termos estar bem vestido, esporte
e prático -, se opõe tanto ao trabalho, quanto ao puro e simples
consumo ostensivo de tempo e dinheiro.
Todos os costureiros sentiram essa transformação da
demanda e a exprimem à saciedade:
"Os costureiros de hoje já não devem reservar suas criaçoes a algumas
mulheres privilegiadas. Aliás, será que a vida que as mulhnes kvav:ull
antigamente era realmente interessante. eu diria. insl'ir;ldo[;l pal'a os
costureiroQ No presente," a VilL! de ludo o nlulllio, l'111 ludus u.s di:ls,
que nos ap;lixona (.. ) 1'.I:iSOU o Il'lllj10 L'lll que os (oslurl'irus só
conseguiam sobressair atrav"s da criação ck modelos reservados a uma
clientela de mulheres ricas (...). Quero dirigir-me às jovens, àquelas que
levam, pela força das coisas e pelo ritmo da vida cotidi,ma, uma existência
mais esportiva e, ao mesmo tempo, mais descontraída. Quero que minha
loja esteja mais acessível e que os produtos à venda não sejam caros
demais. É preciso ajustar preços de modo que não afugentem as
estudantes".60
De forma mais sutil, o que é pedido ao vestuano não é
tanto levar o corpo a sofrer uma espécie de correção culwral, mas
sim dar valor à sua aparência natural: essa exaltação, altamente
cultural, do corpo natural supõe que o próprio corpo e não mais os
símbolos sociais da riqueza e da autoridade - que, segundo a
demonstração de Kantorovicz,61 dotavam os reis Ce todos os
grandes) de um segundo corpo, capaz de sobreviver ao corpo mortal
- torna-se o suporte da distinção social e, ao mesmo tempo, o
objeto privilegiado do trabalho de transfiguração cultural. Entre
o
00
Pierre Bourdieu
,
•
todas as marcas de distinção, aquela que apresenta a melhor
aparência do dom da natureza refere-se ao corpo em conformidade
com os cânones elaborados e impostos pelo conluio inconsciente
dos produtores de bens e serviços necessários à sua produção: o
corpo legítimo, corpo cultivado por exercícios específicos que
exigem tempo, equipamentos custosos, disciplina rigorosa, corpo
esbelto, musculoso, bronzeado em todas as estações e livre dos
estigmas do envelhecimento; encontra-se, então, predisposto, com
todas as outras espécies de capital incorporado, a receber um lugar
de predileção na simbólica do poder de uma fração de classe que
deseja atribuir sua posição dominante, exclusivamente, à excelência
de sua natureza.
As transformações da relação entre a alta costura
propriamente dita e o campo da produção dos bens, que
desempenha a mesma função técnica em níveis inferiores de
raridade social, exprimem também, sem dúvida, uma
transrormaç:1o profunda da relação entre a burguesia e as outras
cLlsses ou, pelo menos, a pequena burguesia. Como todo aparelho
de produção de instrumentos de distinção, isto é, mais
exatamente, de objetos que podem desempenhar, além de sua
função técnica, uma função social de expressão e legitimação das
diferenças sociais, o campo da alta costura é parte integrante de
um campo de produção mais ampla. A distinção, ou melhor ainda,
a classe, manifestação legítima, ou seja, transfigurada e
desconhecida como tal, da classe social, só existe pela pretensão,
pelo reconhecimento da distinção que se afirma no próprio esforço
para apropriar-se dele, nem que seja sob a forma da cópia. A
moda oferece uma ocasião privilegiada para construir um modelo
válido para todos os consumos simbólicos, como está bem
demonstrado neste texto de Nietzsche:
"Você tinha o costume de dizer que ninguém aspiraria à cultura se
soubesse até que ponto o número de homens verdadeiramente cultos é,
afinal de contas - e só pode ser -, incrivelmente reduzido; e que,
entreranto, este pequeno número de homens verdadeiramente cultos
só seria possível se uma grande massa, decidida profundamente contra
o Costureiro e Sua GriFe
 sua natureza e unicamente por ilusões sedutoras, se entregasse à cultura;
portanto, que nada deveria ser revelado publicamente desta ridícula
desproporção entre o número de homens verdadeiramente cultos e o
enorme aparelho da cultura; que o verdadeiro segredo da cultura é o
seguinte: inúmeros homens lutam para adquirir cultura, estão a serviço
da cultura, aparentemente em seu próprio interesse, mas no fundo
somente para permitir a existência de um pequeno número" .62
O paralelismo estabelecido entre cultura e moda não é
gratuito. Através da denuncia elitista da busca vulgar de cultura,
Nietzsche mostra perfeitamente que a alta cultura e a baixa cultura
- como, aliás, a alta costura e a costura, os salões de cabeleireiros
de grande prestígio e o simples salão de cabeleireiro, e assim por
diante - só existem uma para a outra e que é sua relação ou, melhor
ainda, a colaboração objetiva de seus aparelhos de produção
respectivos que produz o reconhecimento da legitimidade da
cultura, isto é, a necessidade cultural.
Assim, por exemplo, a oposição por demais evidente que,
no domínio do mobiliário e dos objetos antigos, se l'stabelcCl'
entre o comércio de luxo dos antiquários e decoradores do
Faubourg SaÍnt Honoré e o comércio de semiluxo do F311bollrg
SaÍIlt AntOlne não deve dissimular que se trata de dois mercados
hierarquizados em relação aos mesmos valores. 63 A
complementaridade na oposição se vê, por exemplo, no fato de
que os efeitos e os valores que as instituições dominantes podem
contentar-se em afirmar e produzir pela sua própria existência
ou por uma retórica da lítotes, de understatement e da alusão
(por exemplo, na referência à arte) se mafll'festam de maneira
visível tanto no discurso que acompanha os produtos das
instituições dominadas, quanto nesses próprios produtos -
ficando, dessa forma, expostos à acusação de "vulgarÍdade" (como
busca do efeito): "Os móveis de Claude Deco (loja do Faubollrg
SaÍnt AntoÍne) têm um 'não sei o quê' que é a alma da elegância
e da distinção". A relação que se estabelece do lado das estruturas
entre o campo da produção dos bens ce luxo e o campo da
produção da cópia, entre o mercado da cultura alltêntÍCa e o
Pierre Bourdieu
mercado da vlllgarÍzaçáo, corresponde, do lado das disposições,
à relação entre a distinção e a pretensão, disposições antagônicas
e complementares, burguesia e pequena burguesia, que são, ao
mesmo tempo, a condição e o produto do funcionamento de cada
um dos campos e dos efeitos produzidos pela sua coexistência.
É a pretensão dos excluídos, essa forma suprema de
reconhecimento que, ao contribuir para sustentar continuamente
a tensão do mercado dos bens simbólicos (isto é, o funcionamento
do campo do qual ela é também produto), contribui para produzir
e reproduzir as propriedades distintivas que conferem aos
detentores destas ações sua raridade aparentemente mais
intrínseca. E é a distinção dos dominantes, diferença arbitrária e
desconhecida - portanto, reconhecida como necessária -, que
inspira a busca da conformidade e, paralelamente, fornece sua
clientela às instituições, oferecendo substitutos ou cópias dos
bens ou serviços 311lt;nÚcos.
A imposição da legitimidade é a forma acabada da violência
simbólica, violência atenuada, que só pode ser exercida com a
cumplicidade de suas vítimas e que, assim, pode dar à imposição
arbitrária de necessidades arbitrárias a aparência de uma ação
libertadora, invocada a partir do mais íntimo daqueles que a
sofrem. Todas as ações direcionadas à generalização do
conhecimento e do reconhecimento da arte de viver dominante
(ou a legitimá-la pelo simples fato de difundi-la, tal como o
sistema de ensino), em suma, à transformação do ethos da classe
dominante em uma ética universal, tendem, dessa maneira, a
produzir a pretensão, como necessidade que preexiste aos meios
(econômicos e culturais) de satisfazer-se adequadamente,
editando assim o sistema de práticas necessárias para que o
consumo siga a produção.6"! Para a nova burguesia, basta fazer-se
conhecer e reconhecer, fazer-se ver e autovalorizar-se (eis o que
é instigado pelas revistas femininas e pelas publicações semanais
destinadas aos executivos jovens, ricos, elegantes e ociosos, aliás,
produzidos por ela e nos quais ela se produz) para produzir o
M
00
o Costureiro e Sua GriFe

mercado dos objetos-cópias ou de segunda mão: demanda
inesgotável já que as necessidades dominadas que a constituem
devem se redefinir, indefinidamente, em relação a uma distinção
que se define negativamente em relação a elas.
Nota-se a contribuição que certas atividades tão estranhas
à política em sua definição restrita, quanto a dos costureiros,
publicitários, higienistas, médicos, jornalistas dos periódicos
femininos, etc., fornecem para a manutenção da ordem simbólica.
Assim, o conluio inconsciente dos médicos e nutricionistas (com
suas tabelas de "relação de peso com altura no homem normal"), a
dos costureiros que conferem universalidade às medidas dos
manequins, a dos publicitários que encontram nos novos usos
obrigatórios dos corpos, importados e impostos pelas férias, ocasião
de inúmeras chamadas à ordem ("fiscalize seu peso... "), contribui
para produzir e impor como legítimo, isto é, como evidente, uma
nova imagem do corpo, a saber: a que a nova burguesia da sauna,
da sala de ginástica e do esqui descobriu por si mesma. O mesmo
poderia ser dito a respeito da representação das satisfações
legítimas (sexuais, entre outras) que se tem direito de esperar do
corpo. Esta imposição de práticas legítimas tende por si a produzir
a mesma quantidade de necessidades e expectativas, de
insatisfações ou, como se diz, de "complexos" (outro produto da
difusão legitimadora operada pelos periódicos femininos) em todos
aqueles, cujo habiws corporal não é o produto das mesmas
condições econômicas e sociais que o habiws assim legitimado.
Além de oferecer um mercado a todos os produtores de meios
destinados a preencher a separação entre o ser e o dever-ser, desde
os conselheiros conjugais até os vendedores de pílulas para
emagrecer e de produtos dietéticos, esta nova alienação que é a
criação (sem itálico) da alquimia social encerra o princípio de um
descontentamento e de um profundo mal-estar de natureza
completamente diferentes daqueles dos quais os costureiros
estavam empenhados em liberar suas clientes, ou dos quais as
pjerre Bourdjeu
•
burguesas liberadas procuram se livrar pela psicanálise ou expressão
corporal. A vergonha corporal e qualquer outra espécie de vergonha
cultural - aquela resultante de um sotaque, de um falar ou gosto _
encontram-se, com efeito, entre as formas mais insidiosas da
dominação porque levam a viver, segundo o modelo do pecado
original e da indignidade essencial, certas diferenças que, mesmo
em relação às mais naturais na aparência, tais como as que têm a
ver com o corpo, são o produto de condicionamentos sociais,
portanto, da condição econômica e social.
A nova ordem social reconhece a legitimidade de todas as
satisfações e oferece todas as satisfações legítimas, embora a longo
prazo e a crédito - por exemplo, o crédito escolar e a crença no
futuro por meio da escola - ou a curto prazo com desconto - todas
as formas de cópia, falsos carros de luxo e viagens de falso luxo: as
"expectativas frustradas" necessariamente criadas pela defasagem
entre a imposição de necessidades legítimas e a atribuição dos
meios para satisfazê-las - e que, sem dúvida, produzem efeitos
econômicos permitindo obter, direta ou indiretamente (por
intermédio do crédito) um sobretrabalho - não ameaçam necessária
e automaticamente a sobrevivência do sistema; essa diferença
estrutural encontra-sé na origem da reprodução por translação que
assegura a permanência da estrutura das posições através da
transformação permanente da "natureza" das condições. Ainda aqui,
não nos deixemos iludir pela imagem mecânica da translação: a
dialética da distinção e da pretensão é o princípio desta espécie
de corrida de perseguição entre as classes que implica o
reconhecimento dos mesmos objetivos; ela é o motor desta
concorrência que não é senão a forma atenuada, contínua e
interminável da luta de classes.
Setembro de 1974
'n
o CosCllráro e Sua Gnfé cc

Notas e Referências Bibliográficas
L "Le couturier et sa griffe: contribution à une théorie de la magie" in Actes de la
recherche en sCÍences sOCÍales, janeiro de 1975, na 1, p. 7-36. Tradução de Maria da
Graça Jacintho Setton, revisão técnica de Guilherme João de Freitas Teixeira. Fica
aqui registrado nosso agradecimento à Faculdade de Educação da UFMG,
especialmente aos membros da comissão editorial da Educação e Revista, que nos
cedeu gentilmente esse artigo.
2. MAUSS, Marcel. "Esboço de uma teoria geral da magia" in SOCÍologÍa e
AntropologÍa. São Paulo, Ed. Pedagógica e Universitária/Edusp, 1974.
3. Uma oposição análoga se encontra no campo da haute coiffure (salões de
cabeleireiros de grande prestígio), entre Carita e Alexandre, em que predomina a
elegância de um estilo um tanto austero, por um lado, e, por outro, Jean-Louis
David que pretende oferecer, "sem distinção de classes", seus penteados
"audaciosos".
4. Aqui, à semelhança do que se passa em relação a teatros, galerias ou cinemas, a
rive gauche nem sempre tem um sentido geográfico: assim, em Paris, Saint-
Laurent possui três lojas na rive gauche (margem esquerda do rio Se na) - uma, na
rue de Tournon (6 bairro); a segunda, na avenue Victor Hugo (16 bairro); e a
Q 0
terceira, na rue du Faubourg Saint-Honoré (8° bairro). Ocorre que, em oposiçao :ls
maisons tradicionais, estabelecidas nos santuários da rivc dmire (margem direita),
a maior parte dos costureiros de vanguarda e a totalidade dos eSli/isr.h (lll il/()d,'/isl./S
têm sua matriz ou boutiques na rivc g:luche.
5. SCHROEDER, S. e MATIGNON, J. re Goúr dll lllxe, Paris, Balland, 1972. Ü
mesmo discurso, produto da mesma oposiçáo, se encontra em DORlN, Françoise.
Le tournant, Paris, Julliard, 1973. p. 24: "Existem aqueles que podemos denominar,
se você quiser, passadisr<1s, conservadores, que decidiram, de uma vez por todas,
que o mundo atual estaria completamente louco, que passam pela vida com uma
venda nos olhos e ceras Quiés nos ouvidos (... ). Os outros são aqueles que
pegaram o trem quando ele partiu: vivem a vida no presente, adotaram as novas
idéias, lêem Clavel e Marcuse, se interessam pelas novas formas de expressão
corporal, vão aos teatros da periferia, acompanham a evolução das l'v!aisons de la
culture [NT: Instituições criadas, a partir de 1963, sob a inspiração de André
lvlalraux, então !ylinistro da Cultura da França; em seu espaço, são apresentadas
todas as espécies de manifestações artísticas], gostam da música dodecafônica e da
escultura contemporânea, em suma, estão no mesmo plano dos jovens".
6. TALERON, Y. Dépêche-Mode, janeiro de 1973.
7. Exemplo típico da estratégia do dominante, cujo equivalente é possível encontrar
em todos os campos: pegar na palavra dos dominados para opô-los a seus próprios
princípios ou tentar vencê-los em seu próprio terreno, "ultrapassá-los pela esquerda".
8. Analisaremos mais adiante, ao abordarmos o caso de Courréges, outro exemplo
destas harmonias preestabelecidas, fundadas na homologia entre o campo da
produção e o campo do consumo de bens de luxo (o campo da classe dominante)
que constituem realizações paradigmáticas da relaçãlJ que se estabelece entre o
Pierre Bourdieu
campo da produção dos bens simbólicos (arte, literatura, filosofia, etc.) e o campo
da classe dirigente.
9. Entrevista de Marc Bohan, diretor artístico da maison Christian Dior.
la. Ibid.
11. CARVEN. in Claude Cézan. La mock phénoméne humain, Paris, Privat, 1967. p.
133-134
12. DROUANT, A. Catalogue de la galerie Drouant, 1967. p. 105
13. In Claude Cézan. op. cit. p. 126
14. Ibid. p. 129
15. Le Nouvel Observateur, 18 de outubro de 1971.
16. LAGERFELD, Kar!. Dépéche-Mode, julho/agosto de 1972.
17. "17 couturiers: leurs structures économiques" in Dépéche-J,!ode, na 683, março de
1974.
18. Entrevista com uma jornalista de moda, março de 1974.
19. KUHN, T. The Structure of SCÍentÍ!ic RevolutÍons, Chicago, The University of
Chicago Press, 1962. p. 152
20. D'ELME, Patrick. "Cardin n'est-il qu'une grilfe J " in La Galeâe, outubro de 1971. p. 66-
67
21. Mar,'o de 1974.
22. CHi\NDLER, R. f'ear/s :Ire a Nuisance, Harmondsworth, Penguin Books,
1973, "Introdllction". p. 9.
23. /\ maior parte da prodllçao de romances e ensaios obedecem ao ritmo sazonal
da n'I1u"à' /irt'rári:l [retomada das atividades após interrupção], com suas conferências
de iinprensa, seus prêmios, etc., e têm um ciclo que não é diferente daquele dos
artigos de moda (embora as instâncias de legitimação de curta duração, como as
academias, possam prolongar ligeiramente a existência de seus produtos). A parcela
da produção de ciclo longo e de ciclo curto na produção total de um autor ou de um
editor é, sem dúvida, um dos melhores indicadores de sua posição sincrônica e
diacrônica no campo da produção literária.
24. Entrevista com jornalista de moda, julho de 1974.
25. KROEBER, A. "On the principie of order in civilization as exemplified by
changes of fashion" in AmerÍcan Anthropologist, 21, 1919. p. 235-263
26. cf. BARBER, B. e LYLE, S. Lobe!. "Fashion in women's clothes and the
American social system" in SoCÍal Forces, 31, 1952. p. 124-131; BERGLER, E.
Fashion and the UnconsCÍous, Nova York, 1953.
27. TURPIN, J. C. Dépéche-Mode, dezembro-janeiro de 1973.
28. TARELON, Y. ibid.
29. Courréges é aquele que exprime e assume, com maior convicção, a idéia da
empresa total: "Um produto é uma criação, mas também uma técnica e o valor
agregado. É um todo. Ora, para ser totalmente responsável por um produto, é
preciso controlar os instrumentos de fabricação; tornei-me gerente para ser dono
do meu produto".
30. Esta estrutura organizacional nada tem em comum (a não ser o fato, capital, da
o Costureiro e Sua Grife

dissociação das funções) com a das maisons mais recentes nas quais o fllnda~or
assegura a criação artística, deixando a um responsável administrativo as questoes
de oestão (é o caso, por exemplo, de Guy Laroche, Saint-Laurent ou Scherrer, cUJ~
P.D"G. [Presidente Diretor Geral, não necessariamente proprietário da empresa] e
Hubert d'Ornano).
31. BERTHOD, CI. "Mais comment peut-on remplacer ChaneP", EJle, 23 de julho de
1973.
32. lbid.
33. lbid.
34. Na brochura mimeografada, distribuída por seus serviços de relações públicas,
o próprio Courréges aponta os inconvenientes de seu sistema de produção: o
caráter sazonal da tàbricação faz com que os atdiers fiquem sem trabalho durante
um período superior a um mês (duas vezes por ano), o que in:plica um cust~
elevado para a empresa; além disso, como a necessidade de um tundo de caIxa e
bastante importante, a empresa deve assegurar um pré-financiamento das fut~ras
estações, apostando tudo em um único produto, o que leva, de forma con:radItona,
a comer voluntariamente os pedidos para ter a certeza de poder satisfaze-los.
35. ElIe, 3 de janeiro de 1972.
36. BARTHES, R. Systeme de!:J mode, Paris, Ed. du Seui!, 1967.
37. lbid. p. 270-274
38. lbid. p. 9
39. lbid. p. 271, n" I
40. [bid. p. 9
41. lbid. p. 274
42. Quem fará a semiologia e, sobretudo, a slxioiogia das utilizações estrutural-
marxistas ("Pour une critique de i'économie politique du signe") ou freudo-
marxistas ("Economie libidinale") ou estrutural-freudo-marxistas ("Contribution
des tableaux de Jacques Monory à l'intelligence de I'économie politique libidinale
du capitalisme dans son rapport avec le dispositif pictural, et inversement") da
palavra economia?
43. BARTHES, R. op. cito em especial p. 292-293
44. cf. AUSTIN, J. L. Quand dire, c'est faire, trad. de G. Lane, Paris, Ed. du Seu i!,
1970; How to do Things with Words, Oxford, Oxford University Press, 1962.
45. MONT-SERVAN, N. "La haute couture parisienne, laboratoire international
de la mode" in La Documentation ITançaise, 12 de julho de 1967.
46. CARDIN, Pierre. in Claude Cézan. op. cit. p.125.
47. Entrevista do porta-voz da Chambre syndicaJe de la haute COUfUre [Associação
dos empresários da alta costura]
48. Na moda, verifica-se outra diferença: o momento da fabricação e o momento da
comercialização não são e não devem ser separados pelo intervalo de tempo bastante
considerável que, para ocultar a relação entre a produção e o mercado, contribui
para fornecer à produção pictórica (pelo menos, na época moderna) sua aparência
de fmalidade sem fim ou, mais simplesmente, de desprendimento.
49. A atenção prestada às condições diferenciais de sucesso ou fracasso faz esquecer
as condições mais gerais do funcionamento do campo no qual se definem fracassos
Pierre Bourdieu
,
•
e sucessos. Esqucce-se, por exemplo, que o pintor fracassado contribui, unicamente
por sua existência, isto é, pela relação objetiva que o une ao pintor consagrado ou
ao pintor maldito, para fazer existir o sistema das diferenças que cria o valor
artístico e serve de fundamento à fé neste valor ou que contribui, se quisermos,
para constituir o campo de tensões em que se engendra o capital artístico.
50. MONT-SERVAN, Nathalie. in Le Monde, seção de moda, 3 de agosto de 1974.
51. BARTHES, R. op. cit. p. 273
52. HlRSCHivlAN, A &ir, Vóla: and LoyaJty, Gunbridge, ivlass., Harvard University Press, 1970.
p.26-28
53. O funcionamento do comércio de objetos de arte no século XVlII, tal como é
descrito por P. Verlet em um artigo notável ("Le commerce des objets d'art et les
marchands merciers" in Anna/es, 1, 1958. p. 10-29) obedece a urna lógica bem
rarecida. Esses comerciantes agem como verdadeiros fâzedores de gosco: pela
torma como escolhem suas importações, pelas "reinterpretações" a que são
submetidos os objetos importados, pelas orientações que fornecem aos artesãos,
pelas combinações que operam entre diferentes ofícios e, sobretudo, pelo trabalho
de imposição de valor que realizam junto à sua clientela - aliás, outras tantas
funçócs que cabem também ao costureiro - eles admiTlÍstram, de alguma forma, o
trabalho dl' transmutação material e, sobretudo, simbólica, dos objetos. "Sabendo
Lnt'j:n ou prnVO(;H as tenc!,;ncias do momento, tornaram-se incitadores,
empl'l'l'nc!ec!ores. renovando o interesse, acelerando mesmo a evolução dos estilos,
segm;[ndo habilmente a clientela em suas mãos. Além de sagazes comerciantes,
eles são criadores, pois sabem, por lisonjeiras rransformações, aumentar o valor
dos objetos que importam c compram: acabam por transformá-los em objetos de
arte que combinam perfeitamente com o espírito de seu tempo, Sua arte é tão
persuasiva junto à sua clientela quanto pode ser seu t:Jlento de vendedores. Aqui
está a originalidade de seu trabalho, sua verd2deira obra." (I" 17)
54. O mundo da mod:l e o mundo da pintura estão ligados de diversas maneiras:
em primeiro lugar, no nível da produção, porque muiws pintores trabalham como
artistas gráficos, diagramadores dos jornais de moda, fotógrafos, etc., formando
uma espécie de fecundo ambiente artístico, pouco apreciado por ambos os universos
de que participam; em seguida, pelo campo da comercialização, porque um número
considerável dos compradores de pintura de vanguarda (ou vanguarda anterior) é
recrutado entre os profissionais de moda que associam certa pretensão artística a
um certo bem-estar econômico.
55. cf BOURDlEU, P., BOLTANSKl, L. e SAINT NlARTIN, M. de. "Les stratégies de
reconversion" in 1nformarion sur 1t's sciences sociaJe~~ 12 (5), 1974. p. 61-113 [NT
Texto já traduzido: "As estratégias de rcconversão" in Educação e hegemonia de classe:
as funções ideológicas da escola (org. por José Carlos Durand), Rio de Janeiro, Ed.
Zahar, 1979].
56. De fato, as coisas são muito mais complexas e, impossibilitados de lembrar, em
todo instante do discurso, todo o discurso necessário ao rigor do discurso, só
podemos remeter às análises, por exemplo, do campo universitário, nas quais
podem ser vistos perfeitamente os efeitos cruzados - e, às vezes, contraditórios -
produzidos pelo encaixamento de campos (campo das faculdades, campo da
faculdade, campo da disciplina): por exemplo, um agente singular pode ocupar
urna posição dominada em um subcampo dominai1te de um campo dominado.
57. A alta costura que, evidei1temente, estava ligada a todas as cerimônias burguesas
o Costureiro e Sua Grife
If

foi a primeira a sofrer as conseqüências de seu declínio: '1\s ocasiões tornam-se

mais raras: grandes recepções, cerimônias oficiais, espetáculos privados (...). Na
maior parte das vezes, as mulheres já não se vestem, propositalmente, para assistirem
ao teatro que, antigamente, era um dos lugares onde se exercia, com maior eficácia,
a propaganda da elegância e da moda" (Daniel Gorin, Presidente da "Chambre
syndicale de la couture parisienne" in Claude Cézan. op. cit. p. 90).
58. Ibid.
59. De faro, compreender completamente as transformações ocorridas nos últimos
dez anos no campo da moda será descrever as transformações estruturais do
campo da classe dirigente e seus efeiros em todas as dimensões do estilo de vida
apreendidas, parcialmente, pelos especialistas, costureiros ou responsáveis pelas
relações públicas. "O mercado visado pelas produções dotadas de grife é uma
clientela de executivos classe A e profissionais liberais" (Dépêche-iUade, março de
1974). "O prêt-à-parrer dirige-se a mulheres de executivos que não querem vestir
as coleções da alta costura, nem vão a confecções, mas procuram roupas entre 700
e 2.400 francos" (Entrevista com o porta-voz da "Chambre syndicale de la haute
couture", março de 1974).
60. SAINT-LAURENT, Y. in Claude Cézan. op. cit. p. 129-131
61. cf. KANTOROWICZ, Ernest H. The King's TIva Badies. A study in mediaeval
palitical thealagy, Princeton University Press, 1957. MODOS DE
62. NIETZSCHE, F. Sur !'avenir de nos étabJissements d'enseignement, Paris,
Gallimard, 1973. p. 41-42. Esse texro re\'ela a verdade objetiva do elitismo quc est:l DOMINAÇAOl
dando seus primeiros passos. A elite, por definição, é somente o pequeno nlllllL'1lJ
- tão pequeno quanto se queira - daqueles que ocupam a posição mais elevada el11
determinada distribuição; ela só tem existência ordinal, isto é, l'el:i rl'i:lç:-w de
ordem que a une à série da qual ela é o cume. Essa simples l:lul"I",;ia hasta para
julgar o método de amostragem tradicionalmentc empregad" por aqueles quc
pretendem apreender a verdade da elite a partir de pesquisas sobre os "cem
primeiros" de cada setor (patrões, escritorcs, jornalistas), isto é, fora de toda
interrogação e de toda informação sobre sua relação com seus" seguidores".
63. A oposição entre o Faubourg Saint Honoré e o Faubourg Saint Antoine
perpetua uma oposição antiga (cf. VERLET, P. loc. cit. p. 10-29) que se estabelecia
entre as "pessoas da mercadoria" - isro é, os marchands de objetos de arte que, por
não fabricarem os objeros com as próprias mãos, não eram obrigados, como as
outras corporações, a criarem uma obra-prima e, em sua maior parte, encontravam-
se na rue du Faubaurg Saint Honaré - e as "pessoas da mecânica": é assim que
"quando certos fabricantes de máveis do Faubourg S;;zjnt Anloine deixam a mesa
de trabalho de marceneiro para se dedicarem ao comércio de móveis, eles se mudam
e vêm se instalar neste bairro". [NT: Nesta nota, o autor faz referência às atividades
e ocupações específicas da Idade Média]
64. O crescimento da escolarização determinou uma difusão da disposição culta
mais ampla do que a difusão da competência, produzindo assim a pretensão
propriamente cultural que forneceu um mercado a bens culturais desclassificados
ou em via de legitimação, além de favorecer a aplicação da disposição culta a
gêneros até então considerados menores, tais como o cinema, o romance policial
e a ficção científica ou a história em quadrinhos. A aparição de variantes vulgarizadas
das revistas intelectuais tradicionais, explica-se, sem dúvida, pela mesma lógica.
 ,
Nas sociedades desprovidas de "mercado auto-regulado"
(self-regulating market, no sentido de Karl Polanyi), de sistema
de ensino, de aparelho jurídico e de Estado, as relações de
dominação só podem ser instauradas e mantidas mediante
estratégias indefinidamente renovadas por não estarem reunidas
as condições de uma apropriação mediata e duradoura do trabalho,
serviços ou homenagens de outros agentes. Pelo contrário, a
dominação já não tem necessidade de ser exercida de maneira
direta e pessoal quando está implicada na posse dos meios (capital
econômico e cultural) de se apropriar dos mecanismos do campo
de produção econômica e do campo de produção cultural que
tendem a assegurar sua própria reprodução, através de seu próprio
funcionamento e independentemente de toda intervenção
intencional cios agentes. f:, então, no grau de objetivação do capital
social acuJllulado que reside o fundamento de todas as diferenças
pntinentcs entre os modos de dominação: isto é, bem
esquematicamente, entre os universos sociais - em que as relações
de dominação se fazem, se desfazem e se refazem na e pela
interação entre as pessoas - e as formações sociais em que,
mediatizadas por mecanismos objetivos e institucionalizados, tais
como aqueles que produzem e garantem a distribuição de diplomas
- nobiliárquicos, monetários ou escolares - têm a opacidade e a
permanência das coisas e escapam à influência da consciência e do
poder individuais. A objetivação garante a permanência e a
cumulatividade das aquisições, tanto materiais como simbólicas,
que podem assim subsistir nas instituições sem que os agentes
precisem recriá-las, de forma contínua e integral, por uma ação
expressa; mas, como os lucros das instituições são objeto de uma
apropriação diferencial, ela assegura também, inseparavelmente,
a reprodução da estrutura da distribuição do capital que, sob suas
diferentes espécies, é a condição desta apropriação e, ao mesmo
tempo, a reprodução da estrutura das relações de dominação e
dependência.

.~f()d()s de [Jominaçâu

Efeitos da Objetivação
Paradoxalmente, a existência de campos relativamente
autônomos, funcionando segundo mecanismos rigorosos e capazes
de impor aos agentes sua necessidade, faz com que os detentores
dos meios de controlar esses mecanismos e de se apropriar dos
lucros materiais e/ou simbólicos produzidos pelo seu
funcionamento possam fazer a economÍa das estratégias orientadas
expressamente (o que não quer dizer, antes pelo contrário, de
maneira manifesta) e diretamente (isto é, sem passar pela
mediação dos mecanismos) para a dominação das pessoas. Trata-
se bem de uma economia, porque as estratégias que visam instaurar
ou manter relações duradouras de dependência de pessoa a pessoa
são, quase sempre, extremamente custosas em bens materiais
(como o potlatch* ou as ações beneficentes), em serviços ou,
simplesmente, em tempo: eis o que, por um paradoxo constitutivo
deste modo de dominação, faz com que, alC'1ll do meio destruir o
ftm, as ações necessárias para assesurar a perpelu;lç;lO do poder
contribuam para sua fragilidade.'
O poder econômico não reside na riqueza, mas na relação
entre a riqueza e um campo de relações econômicas, cuja
constituição é inseparável do desenvolvimento de um corpo de
agentes especializados, dotados de interesses específicos; é nesta
relação que a riqueza se encontra constituída, como capital - isto
é, enquanto instrumento de apropriação de um equipamento
institucional e de mecanismos indispensáveis ao funcionamento
deste campo e, ao mesmo tempo, dos lucros que ele prodigaliza.
Assim, Moses Finley mostra bem que o que fazia falta à economia
• Trata-se de uma luta de generosidade pela riqueza. praticada pelos_ ín~ios kwahlltl
(NO do Canadá, em frente à ilha Vancouver): o mais generoso nao e aque.le que
doa mais riquezas do que seu rival, mas quem consegue dllapld~r ou destrUIr suas
próprias riquezas para mostrar que não se e,ncontra em sltuaçao de neces~ldade.
Cf. MARTINS, Paulo Henrique (org.). A dad{va entre os modernos. Petropolls,
Editora Vozes, 2002.
pjerre BOllrdieu
antiga, não são os recursos, mas os meios institucjtlIl:li·; .1<-
"suplantar os limites dos recursos individuais", mobilizando os
capitais privados, isto é, toda a organização da produção e do
funcionamento da produção, e especialmente os instrumentos de
crédito. 3 Esta análise é válida, a forúori, em relação à Cabília antiga,
que nem dispunha dos mais rudimentares instrumentos de uma
instituição econômica. As terras eram, de fato, quase totalmente
excluídas da circulação - mesmo se, servindo às vezes de garantia,
elas corressem o risco de passar de um grupo para outro. Os
mercados da aldeia ou da tribo ficavam isolados e, de modo algum,
podiam se integrar em um mecanismo único. A oposição
estabelecida pela moral tradicional, encarnada pelo bu nÍya, entre
a "malícia sacrílega" de praxe nas transações do mercado e a boa fé
conveniente às trocas entre parentes e familiares 4 - e que era
marcZlcia pela distinção espacial entre o lugar de residência, a aldeia
l' o lugar das transações, ou seja, o mercado - não deve dissimular
a oposição entre o pequeno mercado local que, como diz Polanyi,
fica "imerso nas relações sociais" (embedded Ín soCÍal reJaúonshÍps)
e o mercado quando este se tornou "o modo dominante de
transação" (the domÍnant transactÍonal mode).s
As estratégias baseadas na honra não são banidas do
mercado: se alguém pode vangloriar-se desta ou daquela manobra
bem-sucedida à 'custa de um estrangeiro, pode também se orgulhar
de ter efetuado uma compra a um preço exorbitante, por motivo
de honra, para "mostrar que podia fazê-lo" ou, ainda, ter conseguido
concluir um negócio sem desembolsar um centavo, mobilizando
um certo número de fiadores, ou, melhor ainda, em nome do
crédÍto e do capital de confiança, decorrente de uma reputação
tanto de honra, quanto de riqueza. Os homens a respeito de quem
se pode afirmar que são "capazes de voltar com todo o mercado,
mesmo se saem de casa com os bolsos vazios" estão predispostos
a desempenhar o papel de fiadores - seja em favor do vendedor
que garante, diante deles, a qualidade do animal, seja pelo
comprador que, ao não pagar à vista, compromete-se a quitar
Modos de Dall/lI1açelo

pontualmente sua dívida. 6 A confiança de que usufruem e as
relações que podem mobilizar permitem-lhes não só "ir ao mercado
tendo como única moeda seu rosto, seu nome, sua honra", isto é,
as únicas coisas que, neste universo, podem substituir a moeda,
mas também "apostar (no sentido de empenhar-se) mesmo sem
possuírem bens". Além da riqueza e da solvência, são levadas em
consideração as qualidades associadas estrÍtamente à pessoa a
respeito das quais se diz que "não podem ser emprestadas nem
tomadas por empréstimo". De fato, mesmo no mercado, a
informação mútua é suficientemente grande para que a margem
deixada ao embuste, à trapaça e, sobretudo, ao blefe, continue
sendo bastante reduzida. Se, porventura, "aquele que não foi criado
para o mercado" vier a "arriscar-se", será rapidamente chamado à
ordem. "O mercado, diz-se, julgará": aliás, este designa não as
leis do mercado que, em qualquer outro universo, sancionam os
empreendimentos imprudentes, mas o julgamento coletivo q Ul'
se forma e se manifesta sobre o mercado. Uma pessoa (, ou IL-IO
"homem de negócios'" (argaz nasuq) , julgamento lotai sllbre o
homem total que, à semelhança do que acoJlleCl' ('111 Illlb sOl'il'll.Jde
relativamente aos julgamentos destc tipo, implica UIl valores
últimos, contidos nas taxinotllias míticas. A quem pretenda
ultrapassar os limites de sua "naluraa" de "homem caseiro" (argaz
ukhamÍs), é dirigido o seguinte comentário: "Já que você não passa
de um homem do canto da lareira (thakwath, ou seja, o pequeno
nicho escavado no muro da casa que serve para esconder os
minúsculos objetos, tipicamente femininos, que não devem ser
exibidos em público: colheres, retalhos de tecido, instrumentos
de tecer, etc), então permaneça desse jeito".
A dualidade entre aldeia e mercado é, sem dúvida, uma
forma de manter, fora do universo das relações de reciprocidade,
as disposições calculistas suscetíveis de serem instauradas pelas
trocas impessoais do mercado. De fato, o suq, quer se trate do
, No original, homme de marché, literalmente, "homem de mercado".
Pierre Bourdieu
,
pequeno mercado tribal ou dos grandes mercados regionais,
representa um modo de transação intermediário entre dois
extremos, jamais completamente realizados: de um lado, as trocas
do universo familiar, fundadas na confiança e boa fé permitidas
pelo fato de que dispomos de uma informação quase total sobre os
produtos trocados e sobre as estratégias do vendedor, além de
que a relação entre os responsáveis pela troca preexiste e deve
sobreviver a tal operação; do outro, as estratégias racionais do self-
regulatÍng market tornadas possíveis pela padronização dos
produtos e pela necessidade quase mecânica dos processos. O
suq deixou de propor a informação tradicional e ainda não oferece
as condições da informação racional: eis a razão pela qual todas as
estratégias dos camponeses visam limitar a insegurança que é
correlativa da imprevisibilidade, transformando as relações
impcssoais, sem passado nem futuro, da transação comercial em
relaçi)cs duradouras de reciprocidade pelo recurso a fiadores,
leSll'nlunhas e mediadores; deste modo, entre os contratantes, é
possível instaurar ou restaurar o equivalente funcional de uma
rede tradicional de relações.
Da mesma forma que a riqueza econômica só pode funcionar
como capital na relação com um aparelho econômico, assim também
a competência cultural, sob todas as suas formas, só se constitui
enquanto capital cuftural nas relações objetivas que se estabelecem
entre o sistema econômico de produção e o sistema de produção
dos produtores (constituído, por sua vez, pela relação entre o
sistema escolar e a família). As sociedades desprovidas de escrita
- circunstância que permite conservar e acumular, sob uma forma
objetivada, os recursos culturais herdados do passado - e do sistema
de ensino que dota os agentes de atitudes e disposições
indispensáveis para terem a possibilidade de se reapropriarem
simbolicamente deles só podem conservar seus recursos culturais
no estado Íncorporado: 7 na seqüência, elas não podem assegurar a
perpetuação dos recursos culturais destinados a desaparecer ao
mesmo tempo em que os agentes seus portadores, senão mediante
,\todos dt' [)o/llinaçâo
,:
f I um trabalho de inculcação que, conforme é demonstrado pelo caso limitações locais (diferentemente do capital cultural não cerlifil~HI"
I dos bardos, pode ser tão longo como o tempo de utilização. Têm do ponto de vista escolar) e das flutuações temporais: o capital
sido descritas, copiosamente, as transformações tornadas possíveis
• por um instrumento de comunicação cultural, tal como a escrita: 8
cultural que, de alguma forma, ele garante de uma vez por todas

• separando os recursos culturais da pessoa, a escrita permite

• ultrapassar os limites antropológicos - em particular, os da
•4 memória individual - e libera das opressões implicadas nos meios
mnemotécnicos, tais como a poesia, ou seja, a técnica de
conservação por excelência das sociedades desprovidas de escrita;9
4 dos indivíduos biológicos reivindicados por elas e suscetíveis de
ela permite a acumulação da cultura até então conservada em estado
4
incorporado e, correlativamente, a acumulação pámj(jva do capjtal
4 cultural como monopolização total ou parcial dos recursos simbólicos
não tem necessidade de ser continuamente testado. A objetivação
operada pelo diploma e, mais geralmente, por todas as formas de
poderes (credentjals), no sentido de "prova escrita de qualificação
que confere crédito ou autoridade", é inseparável daquela que
garante o direito ao definir posjções permanentes independentes
serem ocupadas por agentes biologicamente diferentes, embora
intercambiáveis, em relação aos diplomas que deverão possuir.
Desde então, as relações de poder e dependência deixam de se

• da sociedade - religião, filosofia, arte, ciência -, através da estabelecer diretamente entre pessoas, mas instauram-se, na

•4 monopolização dos instrumentos de apropriação destes recursos

(escrita, leitura e outras técnicas de decodificação), conservados,
daqui a diante, em textos e não mais nas memórias.
• Mas, os efeitos da objetivação tornada possível pela escrita
própria objetividade, entre instituições, isto é, entre diplomas e
cargos' - garantidos e definidos, respectivamente, do ponto de
vista social; c, através deles, entre os mecanismos sociais que
produzcm c garantem o valor social dos diplomas e cargos, por

•4 nada são ao lado daqueles produzidos pelo sistema de ensino.

um lado, c, por outro, a distribuição desses atributos sociais entre
os indivíduos biológicos. [[
Sem entrar, aqui, em uma análise aprofundada, contentar-nos-emos
O direito limita-se a consagrar simbolicamente, por um
•t em lembrar que os diplomas cscolares s~l.o para o capital cultural o
que a moeda é para o capital econômico. lll Ao atribuir o mesmo registro que eterniza e universaliza, o estado da relação de forças
valor a todos os detentores do mesmo diploma e tornando-os então entre os grupos e as classes que produz e garante praticamente o
(
substituíveis, o sistema de ensino reduz ao máximo os obstáculos funcionamento de tais mecanismos. Por exemplo, além da distinção
( entre a função e a pessoa, entre o poder e seu detentor, ele registra
à circulação do capital cultural que resultam do fato de que ele
I e legitima a relação estabelecida, em determinado momento do
está incorporado a um indivíduo singular (sem por isso aniquilar
tempo, entre diplomas e cargos (em função do bargajnjng power
I os ganhos associados à ideologia carismática da pessoa
dos vendedores e compradores da força qualificada de trabalho,
( insubstituível); ele permite referir o conjunto dos detentores de
isto é, garantida do ponto de vista escolar) e materializada em
diplomas (e também, negativamente, o conjunto daqueles que
determinada distribuição dos ganhos materiais e simbólicos
não têm nenhum diploma) a um mesmo padrão, instaurando assim
atribuídos aos detentores (ou não detentores) de diplomas. Assim,
um mercado unjfjcado de todas as capacidades culturais e
ele fornece a contribuição de sua própria força, isto é, propriamente
garantindo a convertibilidade em moeda do capital cultural
adquirido mediante determinado gasto de tempo e trabalho. O
diploma escolar, à semelhança da moeda, tem um valor * No original, Úrres e postes, nesta tradução, foram adotados os termos "diplomas"
e "cargos", respectivamente, a fim de ser mantida a terminologia já utilizada na
convencional, formal, juridicamente garantido, portanto, livre das tradução de outros textos de P. Bourdieu.

Modos de Dominação
 simbólica, à ação do conjunto dos mecanismos que permitem fazer
a economia da reafirmação contínua das relações de força pelo uso
declarado da força.
O efeito de legitimação da ordem estabelecida não incumbe
somente, conforme se vê, aos mecanismos tradicionalmente
considerados como pertencentes à ordem da ideologia, como o
direito. O sistema de produção dos bens simbólicos ou o sistema
de produção dos produtores desempenham, também - isto é, pela
lógica mesma de seu funcionamento - funções ideológicas pelo fato
de que se mantêm escondidos os mecanismos pelos quais eles
contribuem para a reprodução da ordem social e para a permanência
das relações de dominação. Não é tanto através das ideologias
produzidas ou inculcadas pelo sistema de ensino (como poderiam
fazer-noS crer aqueles que falam de "aparelho ideológico") que tal
C) sistema contribui para fornecer à classe dominante uma "teodicéia
Cf) de seu próprio privilégio", como disse Max Wcbcr, mas l" sobrl'ludo,
através da justificação prática da ordem estabelecieb que 1;11 siSll'ma
instaura quando dissimula sob a relaç:io patente, gar:llllid,1 ['ur ele,
entre diplomas e cargos, a rebç:lo qlle ele- n~t:islu SIIIi-I"<'1llici.!!llc'IlIt',
sob a aparC'ncia de igualclaek tlJrln:l!, ellln' os diplomas obtidos e o
capital ctlltural herdado, ou seja, através da legitimação que fornece
assim à transmissão desta forma de herança. Os efeitos ideológicos
mais óbvios são aqueles que, para se exercerem, não precisam de
L
palavras, mas do silêncio cúmplice. O mesmo é dizer, de passagem,
que toda análise das ideologias, no sentido restrito do discurso de
legitimação, que não comporte uma análise dos mecanismos
institucionais correspondentes, se expõe a ser apenas uma
contribuiÇão suplementar para a eficácia de tais ideologias: é o caso
de todas as análises internas (semiológicas) das ideologias políticas,
escolares, religiosas ou artísticas que esquecem que a função política
dessas ideologias pode reduzir-se, em certos casos, ao efei to de
deslocamento e desvio, de dissimulação e legitimação, produzido
por tais análises ao reproduzirem, por falta ou omissão, em seus
silêncios - voluntária ou involuntariamente, cúmplices -, os efeitos
dos meca.nismos objetivos.1 2
C)
o ,\/odos de f)olJlinuçôu
Pierre Bourdieu
'"
Formas Elementares da Dominação
Era preciso, no mínimo, esboçar esta análise da dupla
eficácia dos mecanismos objetivos - que contribuem, não somente
para a instauração de relações duradouras de dominação, mas
também para a dissimulação de tais relações - para compreender
inteiramente a diferença radical que existe entre os modos de
dominação e as estratégias políticas de conservação características
de formações sociais, cuja energia social acumulada está objetivada,
de forma desigual, em mecanismos. De um lado, determinadas
relações sociais que, não tendo em si mesmas o princípio de sua
reprodução, só podem subsistir mediante uma verdadeira criação
contínua; de outro, um mundo social que, contendo em si mesmo
o princípio de sua própria subsistência, dispensa os agentes deste
Iraldho incessante e indefinido de instauração ou restauração das
reLlçôes sociais. Esta oposiç:io encontra sua expressão na história
Oll pré-hislória do pensamento social. "Para encontrar o fundamento
natural do ser social" corno diz Durkheim, IJ foi preciso romper
com a propensão de apreender o mundo social como se estivesse
fundado no arbitrário das vontades individuais ou, como Hobbes,
no arbitrário de uma vontade soberana: "Para Hobbes, escreve
Durkheim, é um ato. de vontade que dá origem à ordem social e é
um ato de vontade renovado perpetuamente que a sustenta" .14 E
í
tudo parece indicar que a ruptura com esta visão artificial que é a I
condição de apreensão científica não poderia ser operada antes
II
que fossem constituídos, na realidade, os mecanismos objetivos,
tais como o seJ~reguJatÍng marker que, conforme observa Polanyi,
estava bem estabelecido para impor a crença no determinismo. I
Mas, a realidade social preparava uma última peça à ciência: a
existência de mecanismos capazes de assegurar a reprodução da
ordem política fora de toda intervenção expressa autoriza a
reconhecer como políticas apenas aquelas práticas orientadas em
It
i
direção à aquisição ou conservação do poder que, tacitamente,
excluem da competição legítima pelo poder o controle dos
C)
N
 mecanismos de reprodução. É assim que, tendo como objeto
principal - o que, hoje, chamamos "ciência política" -, a esfera da
política legítima, a ciência social retomou, há muito tempo, por
sua conta, o objeto pré-construído que lhe era imposto pela
realidade.
Quanto mais a reprodução das relações de dominação
estiver dependente de mecanismos objetivos, que servem aos
dominantes sem que estes tenham necessidade de se servir de
tais mecanismos, tanto mais indiretas - e, se podemos dizer,
impessoais - serão as estratégias objetivamente orientadas em
direção à reprodução: escolhendo a melhor aplicação para seu
dinheiro ou o melhor estabelecimento secundário para o filho e
evitando demonstrar liberalidade, cortesia ou gentileza à
faxineira (ou a qualquer outro "subordinado") é que o detentor
de capital econômico ou cultural assegura a perpetuação da
relação de dominação que o une objetivamente à sua faxineira
e, até mesmo, aos descendentes desta. "do (Olllr:írio, enquanto
não for constituído o sisteIl1:1 dos 1l1l'ClIliSlllOS que, por sell
próprio rnovlrncrHo (aí)Ô tu 3 U!Ofll.'!lU, COlHO dizial11 os gregos),
venham a assegurar a reprodução da ordem estabelecida, não
bastará que os dominantes deixem funCÍonar displicentemente
o sistema dominado por eles para que se exerça de forma
duradoura sua dominação; pelo contrário, terão necessidade de
trabalhar de forma direta, cotidiana e pessoal para produzirem
e reproduzirem as condições sempre incertas da dominação.
Não podendo se contentar em se apropriarem dos ganhos de
uma máquina social ainda incapaz de encontrar em si mesma o
poder de se perpetuar, eles estão condenados às formas
elementares da dominação, isto é, à dominação direta de uma
pessoa sobre outra, cujo limite é a apropriação pessoal, isto é, a
escravidão; não poderão apropriar-se do trabalho, dos serviços,
dos bens, das honras, do respeito pelos outros sem os ganharem
pessoalmente, sem se apegarem a eles, enfim, sem criarem um
vínculo pessoal, de pessoa a pessoa.
<"I
o
<"I P/erre Bourdieu
É assim que uma relação social tão próxima, na aparência,
de uma simples relação entre o capital e o trabalho como aquela
que une o fazendeiro' a seu khammes (espécie de meeiro que não
recebe senão uma parcela muito reduzida da colheita, em geral,
um quinto, com variantes locais) só poderá manter-se pelo
exercício da violência material ou simbólica diretamente aplicado
à própria pessoa com quem se pretende estabelecer um vínculo.
O fazendeiro pode segurar seu khammes por uma dívida que o
pressiona a renovar seu contrato enquanto não encontrar um novo
fazendeiro que aceite quitar o montante de sua dívida ao antigo
empregador, isto é, indefinidamente. Ele pode também recorrer a
medidas brutais, tal como a apropriação da totalidade da colheita
para cobrir o montante de seus adiantamentos. Mas cada relação
particular é o produto de estratégias complexas, cuja eficácia
depende não só da força material e simbólica das partes envolvidas,
mas tambl~1l1 de sua habilidade em mobilizar o grupo, suscitando
a comiseração ou a indignação. A relação de dominação não vale
somente pelos ganhos materiais que ela proporciona: inúmeros
fazendeiros, pouco mais ricos que seus khammes teriam interesse
em cultivar suas próprias terras; acontece que, ao procederem
assim, privar-se-iam do prestígio prodigalizado pela posse de uma
"clientela". Mas aquele que pretende ser tratado como maftre deve
manifestar as virtúdes que convêm a seu status, a começar pela
generosidade e pela dignidade nas relações com seus "clientes".
O pacto que une o fazendeiro a seu khammes é um acordo de
homem a homem que se limita a esta garantia: a fidelidade exigida
pela honra. Nada de disciplina abstrata, de contrato rigoroso ou
sanções precisas. Mas, espera-se dos grandes que eles se mostrem
dignos de seu status, protegendo material e simbolicamente
aqueles que estão sob sua dependência.
* No ~riginal.ma/tre. Em francês, este termo pode significar: o "senhor", em
opo~lçao .ao "escravo':: o "amo": em oposição ao "criado"; o "mestre", em oposição
ao . d!sclpulo/aluno - acepçoes em que se encontra, de forma subjacente, a
poslçao de superioridade. Nesta tradução, além de "amo", optamos pelo termo
"fazendeiro" - considerando o contexto.
;\fodos de Dominaç!io

Ainda aí, tudo é questão de estratégia e as relações
encantadas do pacto de honra só são freqüentes porque, nesta
economia, as estratégias de violência simbólica são, quase
sempre, mais econômicas que a pura violência econômica (no
sentido restrito). De fato, considerando a falta de um verdadeiro
mercado do trabalho e a raridade (portanto, a carestia) do dinheiro,
o fazendeiro só consegue servir melhor seus interesses, tecendo
dia após dia, mediante cuidados e atenções incessantes, laços
tanto éticos e afetivos, quanto econômicos que o unem de forma
duradoura a seu khammes: freqüentemente, é ele que, para
mantê-lo ligado a si, organiza o casamento de seu khammes (ou
do filho deste) e o instala, com a família, em sua própria casa: as
crianças, criadas juntas na comunidade de bens (rebanho, campos,
etc), só tardiamente tomam conhecimento de sua condição. Não
é raro que um dos filhos do khammes vá trabalhar na cidade
como operário assalariado, ao mesmo tempo em que um dos filhos
do proprietário a quem entrega, à semelhança do que se passa
com o filho, suas economias. Enfim, o fazendeiro só pode obter
do khammes uma dedicação duradoura a seus interesses 11:1
medida em que o assoá1 completamente a tais interesses, a ponto
de ocultar, negando-a simbolicamente em todos os seus
comportamentos, a dissimetria da relação que o une ao
empregado. O khammes é aquele a quem se confia seus bens,
sua casa, sua honra (corno lembra a fórmula: "Conto com você,
sócio; quanto a mim, vou me associar", utilizada pelo fazendeiro
ao deixar sua casa para trabalhar na cidade ou na França). É aquele
que "trata a terra como proprietário" porque nada na conduta de
seu amo o impede de reconhecer seus direitos sobre a terra que
ele trabalha: e não é raro escutar um khammes invocar, muito
tempo depois de ter deixado seu mairre, o suor derramado para
colher frutos ou penetrar na propriedade. E da mesma forma que
ele nunca se sente inteiramente livre de suas obrigações para
com o antigo amo, assim também pode criticá-lo, depois do que
ele chama de "reviravolta": neste caso, a "covardia" consiste em
abandonar aquele que ele havia "adotado".
Pierre Bourdieu
<"'I
______ _ _.
~ o=c:o..,,""="",aao!'Jll.e
,
•
Assim, neste sistema, existem apenas duas maneiras
•
que, afinal de contas, formam uma só - de segurar alguém de
forma duradoura: a dádiva ou a divida, as obrigações abertamente
econômicas da dívida ou as obrigações morais e afetivas criadas e
,•
mantidas pela troca; enfim, a violência aberta (física ou econômica)
ou a violência simbólica corno vÍolênCÍa censurada e eufemÍzada,
isto é, irreconhecível e reconhecida. É preciso saber perceber
urna relação inteligível - e não uma contradição - entre estas
duas formas de violência que coexistem na mesma formação social
e, às vezes, na mesma relaçãoY pelo fato de que a dominação só
pode ser exercida sob sua forma elementar, isto é, de pessoa a
pessoa, é que ela não pode consumar-se abertamente e deve se
dissimular sob o véu das relações encantadas das quais as relações
entre parentes fornecem o modelo oficial, em suma, tornar-se
desconhecida * para vir a ser reconhecida. J6 Se a economia pré-
capitalista é o lugar por excelência da violência simbólica é porque
as relações de dominação só podem ser instauradas, mantidas ou
restauradas nesse espaço mediante estratégias que, estando
expressamente orientadas para o estabelecimento de relações
de dependência pessoal, devem travesti r-se, transfigurar-se, em
uma palavra, eufemÍzar-se, sob pena de se destruírem, traindo
abertamente sua verdade. Por isso, as censuras impostas à
manifestação aberta da violência - em particular, sob a forma
brutalmente econômica - pela lógica característica de uma
economia em que os interesses só podem ser satisfeitos sob a
condição de se dissimularem nas e pelas estratégias que visam
satisfazê-los. li Portanto, convém evitar ver uma contradição no
* No original, méconnaitre, cujo significado é "recusar(-se) a admitir". No texto,
ainda são encontráveis os vocábulos méconnu/ e, méconnaissable e
méconnaissance; nesta tradução, foram adoDdos os termos "desconhecer",
"desconhecido/a", "desconhecimento" - além de "incognoscivel" correspondeme
a mécunnaissable - tendo em vista a uniformiza.;ão com a terminologia já utilizada
em outros textos traduzidos de P Bourdieu (por exemplo, Poder simbólico,
Portugal-Brasil. Bertrand-Difel, 1989; e A economia das trocas Jingü/sticas, São
Paulo, Edusp, 1996).
~
Mudos d~ [)onllnaçâo
,
('I
_
fato de que a violência simbólica é tanto mais presente quanto
18
mais mascarada. Por não dispor da violência implacável e oculta
dos mecanismos objetivos que levam os dominantes a se
contentarem com estratégias - quase sempre, puramente
negativas - de reprodução, esta economia tem recorrido
simultaneamente a formas de dominação que, do ponto de vista
do observador contemporâneo, podem parecer, ao mesmo tempo,
mais brutais, mais primitivas, mais bárbaras ou mais brandas,
mais humanas, mais respeitosas à pessoa. 19 Esta dualidade da
violência aberta, física ou econômica, e da violência simbólica
mais refinada, encontra-se em todas as instituições características
desta economia e no próprio âmago de cada relação social: ela
está presente tanto na dívida, quanto na dádiva que, apesar de
sua oposição aparente, têm em comum o poder de servir de
fundamento tanto à dependência e, até mesmo, à servidão, quanto
à solidariedade, segundo as estratégias adotadas por elas. Esta
ambigüidade essencial de todas as instituições, consideradas
tendencialmente pelas taxinomias modernas como eCOlllJlllicas,
testemunha que as estratégias opostas que, à semelhança do que
se passa na relação entre o fazendeiro e seu khammes, podem
coexistir, são meios substitllÍveis de desempenhar a mesma
função; neste caso, a "escolha" entre a violência aberta e a violência
branda e invisível depende do estado das relações de força entre
as duas partes, assim como da integração e integridade ética do
grupo que arbitra. Assim, a violência aberta, a do agiota ou do
fazendeiro sem compaixão, continuará esbarrando na reprovação
coletiva 2°e correndo o risco de suscitar, seja uma resposta
violenta, seja a fuga da vítima, isto é, nos dois casos - por falta
de qualquer recurso - o aniquilamento da própria relação que,
em princípio, deveria ser explorada; por sua vez, a violência
simbólica, violência branda, invisível, desconhecida como tal,
tanto escolhida quanto suportada, a da confiança, da obrigação,
da fidelidade pessoal, da hospitalidade, da dádiva, da dívida, do
reconhecimento, da compaixão, de todas as virtudes às quais,
Pierre Bourdicu
em uma palavra, presta homenagem a moral da honra, impõe-se
como o modo de dominação mais econômico por ser mais
adaptado à economia do sistema.
Sempre que for impossível praticá-la de maneira direta e
brutal, a exploração do homem pelo homem irá assumir a forma
de exploração branda e larvada. É tão falso identificar esta
economia essencialmente dupla à sua verdade oficial
(generosidade, ajuda mútua, etc.), isto é, à forma que deve tomar
a exploração para se realizar, quanto reduzi-la à sua verdade
objetiva, ao considerar a ajuda mútua como uma corvéia, o
khammes como um tipo de escravo, e assim por diante. O dom,
a generosidade, a distribuição ostentatória - cujo limite é o
potlatch - são operações de alquimia social que, por um lado,
podem ser observadas todas as vezes que a ação direta da violência
aberta, física ou econômica, está negativamente sancionada e,
por outro, tendem a assegurar a transmutação do capital
econômico em capital simbólico. O desperdício de dinheiro,
energia, tempo e engenhosidade, é o princípio mesmo da eficácia
da alquimia social pela qual a relação interesseira se transmuta
em relação desinteressada, gratuita, a dominação declarada em
dominação desconhecida e reconhecida, isto é, em autoridade
legítima. O que está em ação é simplesmente o trabalho, o tempo,
o cuidado, a atenção, o conhecimento dos usos que terão de ser
prodigalizados para produzir um presente pessoal, irredutível a
seu equivalente em dinheiro, um dom que vale pela maneira de
ser doado. Trata-se da despesa aparentemente gratuita não
somente de bens ou dinheiro, mas de coisas que são ainda mais
pessoais, portanto, mais preciosas; com efeito, como dizem os
naturais da Cabília, elas não podem" ser empres tadas, nem
tomadas de empréstimo", como o tempo - o que é preciso ter
para fazer coisas "que a gente não esquece" porque são feitas
como e quando é conveniente, atenções, gestos, gentilezas. 21 A
violência branda exige daquele que a exerce o cumprimento de
seus deveres. A autoridade, carisma, graça - ou, para os naturais
co
Alodos de f)o/ll/l1açiio C',

da Cabília, sarr - é sempre percebida como uma propriedade da
pessoa: a !ides, como lembra Benveniste, não é a "confiança",
mas a "qualidade própria de um ser que atrai para ele a confiança
e se exerce, sob a forma de autoridade protetora, sobre quem se
fia nele"Y A ilusão que coloca no objeto o princípio dos
sentimentos responsáveis por sua representação do objeto não é
inteiramente ilusória. De fato, "a graça" que reconhece a gratidão
é, como lembra Hobbes, o reconhecimento por uma antecedant
grace.
A dominação branda é muito mais custosa para aquele que
a exerce - e não somente do ponto de vista econômico. Os encargos
- tais como, o de tamen, "responsável" ou "fiador" que representava
seu grupo (thakharrubth ou adhnun) nas reuniões da assembléia
dos homens e em todas as circunstâncias solenes (recebendo, por
exemplo, o quinhão de seu grupo por ocasião da thilllcchrc/) -
não eram disputadas nem desejadas. Além disso, não era raro que
as personagens mais influentes e mais importantes do grupo
recusassem esta função ou pedissern rapiclamentl' para serem
substituídas: as tarefas de representaç~lo e mediação de que o /;)lllCIl
estava incumbido exigiam, com efeito, Illuito tempo e muito
sacrifício. Aqueles a quem o grupo atribui o nome de "sábios" ou
"grandes" e que, inclusive, na falta de todo mandato oficial,
encontram-se investidos de um tipo de delegação tácita da
autoridade do grupo, consideram como seu dever (exprimindo,
deste modo, a obrigação para com eles mesmos o que implica uma
elevada idéia a respeito de si mesmos) chamar continuamente a
atenção do grupo para os valores que este reconhece oficialmente,
tanto por sua conduta exemplar como por suas intervenções
expressas: são eles que, ao verem duas mulheres de seu grupo
em via de brigarem, devem separá-las, até mesmo, espancá-las
(caso se trate de viúvas ou se os homens que são responsáveis por
elas estejam desprovidos de autoridade) ou infligir-lhes um
castigo; são eles que, em caso de conflito grave entre membros de
seu clã, devem fazer lembrar o bom senso aos envolvidos, o que
00
o o
C'l Pierre Bourdieu
---r'
•
implica sempre dificuldade e, às vezes, perigo; são eles que, eIlI
todas as situações propícias a criar conflitos entre os clãs (por
exemplo, em caso de crime) se reúnem em assembléia, com o
marabuto, para reconciliar os antagonistas: incumbe-lhes a tarefa
de proteger os interesses dos pobres e dos clientes, ofertando-
lhes dons por ocasião das coletas tradicionais (por exemplo, no
momento da thimechret) e enviando-lhes alimentos por ocasião
das festas, prestar ajuda às viúvas, assegurar o casamento das órfãs,
etc.
Em suma, por não ter a garantia de uma delegação
oficialmente declarada e institucionalmente garantida, a autoridade
pessoal só pode perpetuar-se de forma duradoura através de ações
que, praticamente, a reafirmam por sua conformidade com os valores
reconhecidos pelo grupo2J O mesmo é dizer que, em tal sistema,
os "grandes" têm menos possibilidade do que qualquer outra
pessoa de tomar certas liberdades com relação às normas oficiais e
devem pagar seu suplemento de valor com um acréscimo de
conformidade aos valores do grupo que é o princípio de todo valor
simbólico. De fato, enquanto não forem constituídos os mecanismos
institucionalizados que permitem concentrar nas mãos de um
agente singular (chefe de partido ou delegado sindical,
administrador de sociedade, membro de uma academia, etc.) a
totalidade do capital que funda a existência do grupo e de lhe
delegar o poder de exercer sobre este capital coletivamente
possuído pelo conjunto dos "acionistas", um poder sem relação
estrita com sua própria contribuição, cada agente participa do
capital coletivo, simbolizado pelo nome da família ou da linhagem,
mas na proporção direta de sua contribuição, isto é, na medida
exata em que suas ações, suas palavras e sua pessoa prestam
homenagem ao grupO.2~ Este sistema é feito de tal forma que os
dominantes se interessem pela virtude: eles só podem acumular
poder político cumprindo seus deveres e não somente
redistribuindo seu dinheiro e bens; eles devem ter as virtudes de
seu poder, já que seu poder só poderá apoiar-se na vinude.
c-
Modos de DOllllllaçi'io 0'
 Formalidades e Denegação do Interesse
Parece que as condutas generosas, das quais o potlatch
(um dos curiosa para antropólogos) é apenas um caso limite,
deixam na incerteza, por um lapso de tempo, a lei universal do
interesse - toma lá, dá cá; nada se dá por nada - e instauram
relações que contêm em si seu próprio fim: falar por falar - e não
para dizer alguma coisa -, dar por dar, e assim sucessivamente. De
fato, estas negações do interesse nunca são mais do que denegações
práticas. à maneira da Verneinung de Freud - discurso que só diz
o que diz sob uma forma que tende a mostrar que ele não o diz -,
elas satisfazem o interesse sob uma forma (desinteressada) que
tende a mostrar que elas não o satisfazem. Sabemos que "a maneira
de dar vale mais do que o que se dá"; que o que separa o dom do
simples "toma lá, dá cá" é o trabalho necessário para utilizar
formalidades, para transformar a maneira de agir e as formas
exteriores da ação na denegação prática do con teúdo da ;1(,-;]0 e,
assim, transmutar simbolicamente a troca intl'fl'ssl'ira (lU a simples
relação de força em uma relação efetuada "por pura formalidade" e
"conforme as regras estabelecidas", isto l', por respeito puro e
desinteressado dos usos e convenções reconhecidos pelo grupo.
(Parêntese em obséquio aos estetas: pelo fato de que o tempo e o
trabalho dedicados a utilizar formas e colocar no molde são, neste
caso, mais intensos porque a censura da expressão direta do
interesse pessoal é, igualmente, mais forte, as sociedades arcaicas
oferecem aos amadores de belas formas o encantamento de uma
arte de viver alçada à ordem da "arte pela arte" que tem por base
a recusa em reconhecer evidências, tais como "negócios são
negócios" ou "time is money", sobre as quais se apóia a arte de
viver tão pouco artística da harried leisure class' das sociedades
di tas avançadas).
Possuímos bens para doá-los. Somos "ricos para dar aos
pobres", como dizem os naturais da Cabília,26 Forma exemplar de
denegação: porque nos tornamos possuidores também no ato de
o
Pierre Bourdieu
doarmos (uma dádiva que não é restituída cria um vínculo
duradouro, uma obrigação, limitando a liberdade do devedor que
está condenado a uma atitude pacífica, cooperativa, prudente);
porque, na falta de qualquer garantia jurídica e de toda força de
coerção externa, uma das únicas maneiras de "segurar alguém" de
forma duradoura consiste em fãzer durar uma relação assimétrica,
tal como a dívida; porque a única posse reconhecida, legítima, é
aquela de que nos assenhoreamos ao nos desapossarmos dela, isto
é, a obrigação, o reconhecimento, o prestígio ou a fidelidade pessoal.
A riqueza, base derradeira do poder, só poderá e..xercer um
poder - e um poder duradouro - sob as espécies do capital simbólico;
em outras palavras, o capital econômico poderá ser acumulado apenas
sob as espécies do capital simbólico, forma transformada, isto é,
incognoscível - portanto, suscetível de ser oficialmente reconhecida
-, pelas outras espécies de capital. O chefe é exatamente, como diz
Malinowski, "um banqueiro tribal" que se limita a acumular
mantimentos para poder distribuí-los e, assim, entesourar um capital
de obrigação e dívidas que serão quitadas sob a forma de
homenagens, respeito, fidelidade e, em caso eventual, de trabalho
e serviços, bases possíveis de uma nova acumulação de bens
materiaisY Os processos de circulação circular, tais como a
arrecadação de um tributo seguido de uma redistribuição hierárquica
e hierarquizante, seriam perfeitamente absurdos se não tivessem
como resultado a transmutação da natureza da relação social entre
os agentes ou os grupos diretamente envolvidos. Por toda pane em
que são observados, tais ciclos de consagração têm por função realizar
a operação fundamental da alquimia social, transformar relações
arbitrárias em relações legítimas, assim como diferenças de fato em
distinções oficialmente reconhecidas. As relações duradouras de
dominação legítima e dependência reconhecida encontram seu
fundamento na circulação circular em que se engendra a mais-valia
simbólica que é a legitimação do poder. Considerando apenas o
caso parrÍClIJar das trocas de bens materiais e/ou simbólicos que
visam legitimar relações de reciprocidade, como faz Lévi-Strauss,
rl

corremos o risco de esquecer que todas as estruturas de troca
inseparavelmente material (circulação) e simbólica (comunicação)
funcionam como máquinas ideológicas, desde o momento em que
o estado de fato que elas tendem a legitimar, transformando uma
relação social contingente em relação reconhecida, é uma relação de
força assimétrica.
A reconversão permanente do capital econômico em capital
simbólico, mediante o desperdício de energia social que é a
condição da permanência da dominação, só pode ter sucesso com
a cumplicidade de todo o grupo: o trabalho de denegação que está
na origem da alquimia social é, como a magia, um empreendimento
coletivo. ''A própria sociedade se dá por satisfeita com a ilusão de
seus devaneios", como dizia Mauss. O desconhecimento coletivo
que está na origem da moral da honra, como d~negação coletiva da
verdade econômica da troca, só é possível porque, neste tipo de
mentira do grupo para consigo mesmo, nunca existe cllg:IILlLlur,
nem enganado: o camponês que trata scu k!J.IIllIllCS Cll!l10 UIlI
associado, porque este é o costU!l1e e UIlLl cxigl"llci;l ela iJullra,
além de se enganar - porque só pode obedecer a seu interesse sob
a forma eufemizada, assumida pela moral da honra -, engana seu
khammes, a este só resta pedir para entrar, com a cumplicidade
de todo o grupo, na ficção interesseira que lhe oferece uma
representação honrosa de sua condição. O mesmo é dizer que os
mecanismos que asseguram a reprodução dos habirus conformistas
fazem, aqui, parte integrante de um aparelho de produção que
não poderia funcionar sem eles. Os agentes só conseguem segurar-
se uns aos outros - não somente pais e filhos, mas credor e devedor,
fazendeiro e khammes - pelas disposições inculcadas e reforçadas
continuamente pelo grupo que tornam impens,iveis determinadas
práticas que a economia desencantada do interesse* sem qualquer
• No original, incérêt; assinale-se que este termo significa também "juro" (de
capital aplicado).
"'I
Pierre Bourdieu
,
I
disfarce fará aparecer como legítimas ou, até mesmo, como
evidentes. 28
A verdade oficial produzida pelo trabalho coletivo de
eufemização, forma elementar do trabalho de objetivação que
conduzirá à definição jurídica das práticas convenientes não é
somente o que permite ao grupo salvar seu "ponto de honra
espiritualista"; ela tem, igualmente, uma eficácia real porque - no
pressuposto de que fosse desmentida por todas as práticas, à
maneira de uma regra que só teria exceções - continua sendo a
verdade das práticas que pretendem ser convenientes. Cada um
carrega a moral da honra sobrecarregada com o peso de todos os
outros; além disso, o desencantamento que conduz ao
desvendamento progressivo das significações e funções recalcadas
só poderá resultar do desmoronamento das condições sociais da
<"['IlSlIra cruzada que cada qual suporta com impaciência, sem deixar,
nu entanto, de impô-L! aos outros. 2 "
Se for verdade que a violência simbólica é a forma branda e
enrustida assumida pela violência quando esta não pode manifestar-
se abertamente, compreende-se que as formas simbólicas da
dominação tenham-se deteriorado progressivamente à medida que
se constituíam QS mecanismos objetivos que, tornando inútil o
trabalho de eufemização, tendiam a produzir as disposições
desencantadas exigidas por seu desenvolvimento. 30 Compreende-
se também que a tomada de consciência e a neutralização
progressivas dos efeitos ideológicos e práticos dos mecanismos
que asseguram a reprodução das relações de dominação
determinem um retorno a formas de violência simbólica fundadas
também na dissimulação dos mecanismos de reprodução pela
conversão do capital econômico em capital simbólico: através da
redistribuição legitimadora, pública (política "social") ou privada
(fillanciamento de fundações "desinteressadas", donativos a
hospitais, instituições escolares e culturais, etc), tornada possível
por eles, é que se exerce a eficácia dos mecanismos de reprodução.
\/odos dt! lJominaçtio
""

A estas formas de acumulação legítima, pelas quais os dominantes
se assenhoram de um capital de "crédito" que, segundo parece,
nada deve à lógica da exploração,3! é preciso acrescentar esta outra
forma de acumulação de capital simbólico: a do entesouramento
de bens de luxo que certificam o gosto e a distinção de seu
possuidor. A denegação da economia e do interesse econômico
que, nas sociedades pré-capitalistas, se exercia, em primeiro lugar,
no terreno do qual foi preciso excluí-la para constituir como tal a
economia, encontra assim seu refúgio de predileção no domínio
da arte e da cultura, lugar do puro consumo, de dinheiro, é claro,
mas também de tempo não conversível em dinheiro. Reduto de
sagrado que se opõe de maneira sistemática e ostensiva ao universo
profano e cotidiano da produção, refúgio da gratuidade e do
desinteresse em um universo dominado pelo dinheiro e pelo
interesse, o mundo da arte propõe - como, em outros tempos, a
teologia - uma antropologia imaginária obtida pela denegação de
todas as negações, operada realmente pela economia.
Natas e Referências Bibliográficas
1. "Les modes de domination" in Acres de la recherche en sciences sociales, junho
de 1976, n° 2/3, p. 122-132. Tradução de Maria da Graça Jacintho Setton; revisão
técnica de Guilherme João de Freitas Teixeira.
2. Em várias ocasiões, já tem sido sublinhado que a lógica que faz da redistribuição
de bens a condição da perpetuação do poder tende a frear ou impedir a acumulação
primitiva do capital econômico e o desenvolvimento da divisão em classes (cf., por
exemplo, WOLF, E. Sons of the ShakJng Earth, Chicago, Chicago University
Press, 1959. p. 216).
3. FINLEY, Moses l. "Technical lnnovation and Economic Progress in the Ancient
Word" in The EconomJc History Revlew, 18, (I), august 1965. p. 29-45,
especialmente p. 37; cf., também, FINLEY, Moses I. "Land Debt, and the Man of
Property in Classical Athens" in Political ScJence QuarterJy, 68, 1953. p. 249-268
4. cl'. BOHANNAN, r. "Some PrincipIes of Exchange and Investment among the
Tiv" in American Anthropologlst, 57, (I), 1955. p. 60-70
5. POLANYI, K. Prlmltive Archalc and Modem ECOJlOmlcs, (George Dalton, ed.)
Nova York, Doubleday and Co, 1968, e The Creat Transformatlon, Nova York,
(" Plerre BOllrdiell
Rinchart, 1944. É paradoxal que, em sua contribuição para uma obra coleti va
editada por Karl Polanyi. Francisco Benet - por estar demasiado atento à oposição
entre o mercado e a aldeia - praticamente silencia tudo aquilo que faz com que o
suq local fique controlado pelos valores da economia da boa fé (cf. BENET, F.
"Explosive Markets: The Berber Highlands" in K. Polanyi, C. M. Arensberg e H. W.
Pearson, eds, Trade and ,\farket ln the Early Emplres, Nova York, the Free Press,
1957).
6. O vendedor pouco escrupuloso de animais não conseguirá encontrar um fiador
(nem para a mercadoria que oferece); além disso, não poderá exigir caução do
comprador.
7. A crença, freqüentemente observada nas religiões iniciáticas, de que o saber
pode ser transmitido por diferentes formas de contato mágico - das quais a mais
típica é o beijo - representa um esforço para transcender os limites deste modo de
conservação: "Tudo o que vier a aprender, o especialista irá aprendê-lo de outro
dukun que é seu guru (mestre); e tudo o que vier a aprender, ele irá designá-lo por
seu llmu (ciência). Por llmu, entende-se, em geral, um tipo de conhecimento
abstrato e uma atitude excepcional, mas os espíritos 'concretos' e um pouco
'ultrapassados' vêem aí, às vezes, um tipo de poder mágico perfeitamente real que,
neste caso, pode ser objeto de uma transmissão mais direta que o ensino" (GEERTZ,
C. The Religion ofJava, ~ova Yotk, The Free Press of Glencoe, Londres, Collier-
Mac Millan l.d, 1960. p. 88).
0. C I'. , em particular, GOODY, J. e WATT, l. "The Consequences of Literacy" in
L"omp.I!:ltiv<' Studics in Soâetv and History, V, 1962-63. p. 304 ss.; e GOODY, J.
(t'd.), !.itcr:Jcy in Traditiofwl Societies, Cambridge, Cambridge University Press,
1968.
9. "O poeta é o livro e:1carnado das tradições orais" (NOTOPOULOS, j. A.
"Mnemosyme in Oral !.icerature" in Transacrlons and Proceedings of the AmerJcan
Philologlcal Assoc!ation, 69, 1938. p. 465-493, especialmente, p. 469). Em um
belíssimo artigo, William C. Greene faz ver como a mudança do modo de
acumulação, circulação e reprodução da cultura acarreta a mudança da função que
lhe compete e, ao mesmo tempo, a mudança da estrutura das obras (GREENE, W.
C. "The Spoken and the Written Word" in Harvard Studles ln Classical Phllology,
9, 1951. p. 24-58). Eric A. Havelock mostra também que os recursos culturais
acabam por se transformar, em seu próprio conteúdo, pela transformação da
teerIologia de conservaçâo e da transmissão cultural (the tecnology ofpreserved
communicatlon) e, em particular, pela passagem da mimese - como reativação
prática que mobiliza todos os recursos de uma "configuração de ações organizadas"
(pattem of organlzed acrjons) com função mnemônica, música, ritmo, palavras
faladas, em um ato de identificação afetiva - para o discurso escrito, portanto,
passível de ser repetido e reversível, separado da situação e predisposto, por sua
permanência, a tornar-se objeto de análise, controle, confrontação e reflexão
(HAVELOCK, E. A. Preface to Plato, Cambridge, Mass., Harvard U.r., 1963).
Enquanto a linguagem não for objetivada na escrita, a palavra falada permanecerá
indissociável daquele que fala, de toda a sua pessoa, e só poderá ser manipulada à
distância e, em sua falta, sob o modo da mlmese, o que exclui a análise e a crítica.
lO. Uma história social sobre a noção de diploma - em que o diploma escolar ou o
título nobiliárquico são casos particulares - deveria mostrar as condições sociais e
os efeitos da passagem da autoridade pessoal, que não pode ser delegada nem
Modos de [)olJlilluçào ("

transmitida hereditariamente (e.g., a graúa, consideração, influência, dos romanos),
para o título ou, se quisermos, a passagem da honra para o jus honorum: assim,
por exemplo, em Roma, o uso dos títulos (e.g., eques romanus) que definia uma
dignúas, como posição reconhecida oficialmente no Estado (em oposição a uma
simples qualidade pessoal), acabou progressivamente por ficar submetido - da
mesma forma que o uso das insignia - aos controles minuciosos do uso ou do
direito (cf. NICOLEI, CI. L'ordre équestre d /'époque répubiicaine, 1, Déíinitions
juridiques et struccures sociaies, Paris, 1966. p. 236-241).
11. Cf. sobre este ponto, BOURDIEU, P. e BOLTANSKI, L. "Le titre et le poste:
rapports entre le systeme de production et le systeme de reproduction" in Aaes de
ia recherche en sciences socia/es, no 2, março de 1975. p. 95-107. [NT: Texto já
traduzido: "O diploma e o cargo: relações entre o sistema de produção e o sistema
de reprodução" in BOURDIEU, P. Escriws de educação (org. de Maria Alice Nogueira
e Afrânio Catani), Petrópolis, Vozes, 1998. p. 127-144]
12. É o caso, por exemplo, da ideologia carismática (ou meritocrática) que explica,
pela desigualdade dos dons naturais. as oportunidades diferenciais de acesso aos
diplomas, reproduzindo assim o efeito dos mecanismos que dissimulam a relação
entre os diplomas obtidos e o capital cultural herdado.
13. DURKHEIM, E. Montesquieu et Rousseau précurseurs de ia soci%gie, Paris,
Riviere et Cie, 1953. p. 197
14. Ibid. p. 195. A analogia com a teoria cartesiana da criação continuada é ['crl'·i!.1.
E logo que Leibniz, criticando Deus condenado a mover o mundo "como o
carpinteiro manipula seu machado ou como o moleiro dirige sua ml\ dl'svi,llIdo
ou orientando as águas para a roda" (LEIBNIZ, G. W. "De IPS:l Nallll:( in (J/'/lS'D/1
phil050phica se/ecu. Paris, Boivin, 1939. p. 92), opõe :10 J11Ulldo "1111";,111", iW:IJ\I-.
de subsistir sem uma assistencia de todos os instantes, \1111 nllllh!') rísi,'o doudo
de uma vis propria, ele anuncia a crítica conl ra tod:ls as rorrnas d:l recusa de
reconhecer ao mundo social uma natureza, isto é, uma IIcl'essicladc illuncnte, que
só muito mais tarde irá encontrar sua express~o (isto é, prccis:lIllC11te na introdução
aos Principes de ia phiiosophit, du druir dc Hcgel).
15. Se os atos de comunicação - trocas ele dons, desafios ou palavras, etc. - contêm
sempre em si a virtualidade do conf1ito e porque eles encerram sempre a possibilidade
da dominação. A violência simbólica é, com efeito, esta forma de dominação que,
ultrapassando a oposição que se estabelece comumente entre as relações de sentido
e as relações de força, entre a comunicação e a dominação, só se realiza através da
comunicação sob a qual ela se dissimula.
16. Vemos que não é suficiente observar, como fez Marshall D. Sahlins, que a
economia pré-capitalista não oferece as condições de um modo de dominação,
indíreto e impessoal, no qual a dependência do trabalhador em relação ao patrão é
o produto quase automático dos mecanismos do mercado do trabalho, para tornar
visível a forma especííica assumida, nesse caso, pelas relações de dominação (cf.
SAHUNS, M. D. "Political Power and the Economy in Primitive Society" in G. E.
Dole e R. L. Carneiro, Essays in the Science of Cu/cure, Nova York, Thomas Y.
CrowelI Company, 1960. p. 390-415; "Poor Man, Rich Man, Big Man, Chief:
Political Types in Melanesia and Polynesia" in Comparaâve Srudies in Sociery:md
Hlstory, 5, 1962,63. p. 285-303; "On the Sociology of Primitive Exchange" in M.
Banton ed., The Re/evance of Mode/s for Soda! Anrhropoiogy, London, Tavistock
Publicatíons, 1965. p. 139-236). Do mesmo modo que estas condições negativas,
<", Pierre Bourdieu
f
cuja evocação está plenamente justificada contra todas as formas de idealismo e
idealização, não são pertinentes em relação à lógica específica da violência simbólica,
assim também a falta de pára-raios ou telégrafo elétrico evocada por Marx na
célebre passagem da Introduetion généra/e à /a Critique de /,économie poiitique
não é suficiente para justificar a existência de Júpiter ou Hermes, ísto é, a lógica
interna da mitologia e arte gregas.
17. O "olhar" interacionista que, ignorando os mecanismos objetivos e sua eficácia,
dedica-se às interações diretas entre os agentes, encontraria seu terreno de eleição
nesse tipo de sociedades, ísto é, no caso precisamente em que, em razão da relação
que une comumente o etnólogo a seu objeto, ele é o mais improvável. Para continuar
o jogo dos paradoxos, podemos observar que o estruturalismo, no sentido rigoroso
do termo, isto é, enquanto ciência das estruturas objetivas do mundo social (e não
somente das representações que os agentes têm a esse respeito), nunca é tão
inadequado (ou menos fecundo) quanto ao ser aplicado a sociedades em que as
relações de dominação e dependência são o produto de uma verdadeira criação
continuada (a menos que não queiramos defender - como faz implicitamente o
estruturalismo, tal como o entende Léví-Strauss - que, neste caso, a estrutura
reside na ideologia e que o poder reside na posse dos instrumentos de apropriação
lkssas eSlruturas, isto é, na forma de capital cul[llral).
IX 1\ hist,',ri:l do vocabulúrio das instituições indo-européias, escrita por Émile
Ikl1vL'niste, apreende os referenciais lingLiísticos do processo de desveiamenwe
dc'S{'IIGlfI(:Ullefl(O que conduz da violencia fisica ou simbólica ao díreito, do resgate
(do prisioneiro) à compra, do premio (por um feite> brilhante) ao salário, assim
corno do reconhecimento moral ao reconhecimento de dívidas, da crença ao crédito
ou, ainda, da obrigação moral à obrigação executória diante de um tribunal.
(BENVENISTE, É. Le Vocabu/aire des institutions indo-européennes, Paris, Ed.
de Minuit, 1969, especialmente, t. 1, Economie, pilrenté, socléré, p, 123-202). E do
mesmo modo, Moses L. Finley mostra que a dívida que, às vezes, era administrada
para criar um relação de servidão podia tambêm servir para criar relações de
solidariedade entre iguais (FINLEY, M. L. "La servitude pour dettes" in Reme
d'histoire du droit fj-apçals et étranger, 4a série, 63 (2), abril-junho de 1965. p.
159-184).
19. A questão do valor relativo dos modos de dominação - formulada, pelo menos,
implicitamente pelas evocações rousseaunianas dos paraísos originais ou pelas
dissertações sobre a "modernização" - é totalmente desprovida de sentído e só
pode dar lugar a debates, por definição, intermináveís sobre as vantagens e os
inconvenier,:es do ames e do depoIs, cujo único interesse consiste em revelar as
fantasias sociaIs do pesquísador, isto é, a relação não analisada que ele mantém
com sua própria sociedade. Como em todos os casos em que se trata de comparar
um sistema a outro, podemos opor indefinidamente representações parciais dos
dois sistemas (por exemplo, encantamento versus desencantamento), cuja coloração
afetiva e conotações éticas variam somente, para sua constituição, do sistema que
é tomado como ponto de vista. Os sistemas considerados enquanto taís constituem
o único objeto legítimo de comparação, o que impede qualquer avaliação diferente
daquela que está implicada na lógica imanente da evolução.
20. Alguns agiotas, com medo de se exporem à perda da honra e serem banidos do
grupo, preferem acertar novos prazos (até a colheíta das azeitonas) com seus
devedores a lim de não serem obrigados a vender terras para quítar suas dívidas.
,\Iodos de DOnIlllaçâo <",

Inúmeros indivíduos que não haviam hesitado a desptezar a opinião da maioria
pagaram tal desafio - às vezes, com a vida - no decorrer da guerra de libertação [NT:
No original, Jjbéraúon: referência à libertação dos territórios ocupados pelas tropa:
nazistas, por ocasião da Segunda Guerra Mundial; no jargão jurídico, este termo e
utilizado para significar quitação ou extinção de dívida ou obrigação.].
21. Nas economias em que os bens são mais raros que o tempo, a eficácia
transformadora se refere sobretudo ao desperdício de bens e dinheiro; nas formações
sociaís (ou classes sociais) em que os bens tendem a tornar-se menos raros que o
tempo, que n.io pode ser acumulado (embora possamos nos apropriar do teo;po
dos outros), é o desperdício de tempo que detêm a maior eficácia (este e o
fundamento do prestígio associado aos consumos culturais que supõem um
dispêndio de tempo para o próprio consumo e para a aquisição das condições de
acesso ao consumo).
22. BENVENISTE, E. op. cir. r. l, p. II 7 ss.
23. Os marabutos encontram-se em uma situação diferente por disporem de uma
delegação institucional como membros de um corpo respeitado de "funcionários
do culto" e por manterem um status separado - em particular, uma endogarrlla
muito rigorosa e um conjunto de tradições próprias, como a reclusão de sua~
mulheres. Ocorre que aqueles a respeito dos quais se diz que, "semelhantes a
torrente, engrossam em tempo de tempestade", não podem, como sugere o ditado,
tirar proveito de sua função - quase institucionalizada - de me&1dores a não ser
que encontrem, em seu conhecimento das tradições e pessoas, o meio de exercerem
uma autoridade simbólica que só existe por delegação direta do grupo:
frequentemente, os marabutos limitam-se a ser o álibi objetivo, - a "porta", como
dizem os naturais da Cabília - que permite aos gl'lll"1S ('m ,'(mill!o clH'!::1rt'1l1 a UIIl
acordo sem ['erderem o prestígio.
24. Inversarnente, enquanto a deleg;l~'JU iIlStitlll"ioli.lliz:ld;l, ;Il'UIllP:1I1]l;lL!J
definição explícita de responsaiJili,bdes, telldl' a limitar :IS (·ollseqii0Ilci.ls das faltas
individuais, por sua vez, a delegaç:lo dil'us.l, cmle1.lIiv.l do Li,o do pertencimento,
assegura a tcxJos os membros do grupo, sem distinç:lo, a caução do capital possuído
coletivamente; no elltanto, náo os coloca ao abrigo do descrédito que poderá advir
da conduta deste ou daquele membro, o que explica a preocupação manifestada
pelos "grandes" ao defenderem a honra coletiva na honra dos membros mais
desprovidos de seu grupo.
25. cf. LINDER, S. B. The Haráed Leisllre C/ass, Nova York e Londres, Columbia
University Press, 1970.
26. "Concede-me bens, ó meu Deus, para que eu possa dar" (apenas o santo pode
dar sem nada ter). A riqueza é um dom concedido por Deus ao homem para
permitir-lhe atenuar a miséria dos outros. "O generoso é amigo de ~Iá". Os dois
mundos lhe pertencem. Quem pretender guardar a fiqueza devera mostrar-se
digno dela, mostrando-se generoso; caso contrário, esta lhe será retirada.
27. Convém abstermo-nos de opor ao excesso a simetria da troca dos dons e a
assimetria da redistribuição ostentatória que se encontra na base da constituição
da autoridade política. Passamos por etapas de uma para outra; à medida que ~os
afastamos da reciprocidade perfeita, não cessa de cres~er à parte das contraprestaçoes
que é constiruída por homenagens, respeito, obrigações e dívid:s morais: Aqueles
que, como Polanyi e Sahlins, perceberam perfeitamente a funçao determmante da
00
N
PIerre BourdIell
redistribuição na constituição da autoridade política e no funciull;llllelllO <1,(
economia tribal (o circuito acumulação-redistribuição desempenha fUllçúes
análogas às do Estado e das finanças públicas) não analisaram esta operação como
técnica privilegiada de reconversão do capital econômico em capj[al simbólico,
capaz de produzir relações duradouras de dependência que - fundadas, do ponto
de vista econômico - dissimulam-se sob o véu das relações morais.
28. Segue-se que o erro objetivista - e, particularmente, o que consiste em ignorar
os efeitos da objetivação do não-objetivado - está mais prenhe de conseqüências
em um universo em que, como aqui, a reprodução da ordem social depende mais
da reprodução incessante de habiws conformistas do que da reprodução automática
das estruturas capazes de engendrar ou selecionar tais habitus.
29. A urbanização, que aproxima grupos dotados de tradições diferentes e
enfraquece os controles cruzados, ou o simples êxodo das zonas rurais determinado
pela generalização das trocas monetárias e pela introdução do assalariado, provocam
a desmoronamento da ficção coletiva, tecida coletivamente, que era a religião da
honra. É assim, por exemplo, que a confiança foi substituída pelo crédito (talq) ,
antes amaldiçoado ou desprezado (como é testemunhado pelo insulto: "ó face de
crédito" - semblante de quem, perpetuamente humilhado, deixa de se sentir
desonrado -, ou o fato de que o repúdio sem restituição, ou seja, a maior ofensa
que se possa conceber, se chama berru natalq). "Na era do crédito, como diz um
informante, inHizes são realmente aqueles que só podem invocar a confiança de
que usufruíam seus pais. Tudo o que conta é o haver imediato. Todo o mundo
pretende ser homem de negócios. Todo o mundo acredita ter direito à confiança,
de tal modo que esta deixou de existir."
30. A luta ideológica entre os grupos (faixa etária ou sexo) e as classes sociais pela
definição da realidade opõe a violência simbólica, como violência desconhecida e
reconhecida - portanto, legítima -, e a tomada de consciência do arbitrário que tira
pur .ullIa dos dominantes uma parcela de sua força simbólica, abolindo o desconhecimento.
Esta luta ideológica pela definição da realidade faz parte da definição científica da
realidade.
31. Não é o sociólogo, mas um grupo de industriais americanos que, para explicar
o efeito das "relações públicas", forjaram a "teoria da conta bancária" que "exige
que façamos depósitos regulares e freqüentes no Banco da Opinião Pública (Bank
of PllblIe Cood- Wíl!) de maneira a poder descontar cheques desta conta quando
necessário" (citação feita por KEAN, Dayton t-.lac. Party and Pressure PolItIes,
Nova York, Houghton Mimin Company, 1944). Cf. também GABLE, Richard W.
"N.A.M.: Int1uential Lobby or Kiss of Death'" in The Journal of Polities, 15 (2),
may 1953. p. 262 (sobre os diferentes modos de ação da N.A.M., ação sobre o
grande público, educadores, eclesiásticos, líderes de clubes femininos, líderes
agrícolas, etc.) e TURNER, H. A. "How Pressure Groups Operate" in The Annals
of the Ameriean Aeademy of Poliúeal and Social Scienee, 319, september 1958. p.
63-72 (sobre a maneira como a organização eleva-se na estima do público e
condiciona as atitudes de modo a criar tal estado da opinião pública que o público
acolherá com fervor, quase automaticamente, os programas desejados pelo grupo).
Modos de Dominação