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GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, Nº 17, pp.

21 - 41, 2005

CAPÍTULO IV - PSICOLOGIA DAS CLASSES SOCIAIS*

Henri Lefebvre, Professor da Universidade de Strasbourg**

Os métodos empíricos, ou que partem fraternidade; as necessidades do proletariado


do estudo descritivo e analítico de um fragmento teriam deixado de ser mais pobres, mais
da prática social (por exemplo, o dos militantes reduzidas, do que as da burguesia. Infelizmente,
sindicais), não são, aqui, suficientes. ainda, as distinções entre necessidades
Para cercar nosso objeto, busquemos, profundas e necessidades artificiais,
primeiramente, as hipóteses de pesquisa necessidades elementares e superiores,
empírica. Podemos supor que as classes sociais necessidades materiais e necessidades
se caracterizam diferencialmente pelas coletivas, espirituais, culturais, ou morais, não
necessidades , e que uma psicologia coletiva são nem elaboradas, nem suficientemente
satisfatória se estabelecerá a partir de seu relacionadas à análise crítica da prática social.
estudo. Infelizmente, a noção de necessidade, Eis, ainda, uma hipótese de pesquisa
longe de ser clara, não passa de uma empírica, sugerida por observações feitas,
elaboração conceitual. Além disso, a experiência durante vários anos, em algumas empresas da
e a prática, hoje, mostram (salvo prova em região parisiense. Nestas empresas, de porte
contrário) um processo da mais alta importância: médio, duas organizações sindicais, a C.G.T
a generalização das necessidades. (Confederação Geral dos Trabalhadores) e a F.
Necessidades análogas surgem em escala O. (Força Operária), tiveram e ainda têm uma
mundial, independentemente das diferenças de influência. Em toda parte, o grupo F. O. era,
país, raça, classe, regime político. Esta numericamente, inferior ao grupo C.G.T., e nada
uniformização não se realiza no curso de um autorizava a chamá-lo de “representativo”. Mas,
nivelamento por baixo, mas por um crescimento sua influência revelou-se desproporcional à sua
quantitativo e qualitativo. Hoje, para todos os realidade qualitativa e quantitativa. Ela se
seres humanos, ela certamente não significa exercia negativamente e positivamente. A
satisfações idênticas; mas, assim, o problema própria existência desse grupo bastava para
se desloca; as noções negativas – de dificultar, senão impossibilitar, certas
insatisfação, falta, privação, frustração, manifestações ou ações, para as quais a maioria
aspiração mais ou menos irrealizada - passam do conjunto dos operários teria, eventualmente,
ao primeiro plano; elas resultam de uma crítica se pronunciado, na ausência dessa oposição,
geral da vida cotidiana. É possível que esta todavia minoritária (tratava-se, particularmente,
pesquisa estabeleça que as necessidades e as de greves políticas). No que se refere a questões
aspirações da classe operária sejam capitais concernentes à produtividade, aceitação
qualitativamente distintas daquelas de outras de mudanças técnicas e horas suplementares,
classes, acarretando a exigência de a opinião dessa minoria foi seguida, senão
solidariedade, liberdade, dignidade,

* O capítulo Psychologie des Classes Sociales foi extraído da obra coletiva Traité de Sociologie II, sob a direção de Georges Gurvitch, publicada pela
PUF: Paris, 1968.
** Tradução feita por Ana Cristina Nasser - Professora Doutora em Sociologia pela FFLCH-USP
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aprovada pela maioria, em conhecimento de leaderships, ela também surge de circunstâncias


causa. Entretanto, tratando-se de reivindicações determinadas: vitória de uma das duas
coletivas adotadas pelo conjunto do pessoal correntes políticas, a reformista ou a
operário e, consequentemente, de ação, a revolucionária.
confiança remetia aos dirigentes da C.G.T. Abordemos a questão, de outro modo.
Tomando a terminologia da sociologia Uma distinção bem conhecida pode fornecer um
empírica, tais observações se formulam, como ponto de partida. Enquanto os níveis de vida
segue: concernem ao economista, o sociólogo estudará
a) Nos casos observados, o leader1 de os gêneros de vida. Hoje, estes gêneros de vida
opinião e o leader de ação se distinguem; são bastante diferenciados; orçamentos
havendo, inclusive, tensão entre os dois; quantitativamente iguais são empregados de
diferentes modos segundo os grupos e as
b) A leadership de opinião é detida por
classes; as opções resultam de atitudes,
elementos marginais, pouco representativos,
emoções, estereótipos. Generalizemos esta
mas em contato com outros grupos sociais e
idéia. Os mesmos atos sociais (comer, trabalhar,
em relação com a sociedade global existente;
sair, vestir-se, etc.) não têm o mesmo sentido nas
c) A leadership de ação pertence a diversas camadas, frações de classes e classes
representantes típicos do grupo e fortemente da sociedade. Basta evocar um ato simples, a
vinculados a ele, estruturando-o em relação às refeição, para compreender isso. O sociólogo
outras classes sociais. vai, portanto, inventariar esses atos sociais; ele
Seguindo esse fio condutor, poderíamos enumerará os conteúdos, os contextos, os
buscar onde, quando, como e em quais significados; ele estabelecerá, assim, uma
condições o leader de ação e o de opinião se espécie de quadro para decifrar a complexidade
separam, e em quais condições eles se reúnem. dos fenômenos. Estudando os conteúdos dos
Quando os grupos camponeses chegam a atos sociais, ele não esquecerá de distinguir o
resolver um problema prático importante ato efetivo e a parte de ritos e símbolos que
(adoção de uma nova técnica, constituição de ele pode conter. Ritos e símbolos têm um duplo
uma cooperativa, etc.), é porque a leadership sentido: eles comunicam (o ato, o sentido) e
de ação e a de opinião se fundiram, geralmente, limitam a comunicação; eles revelam e
em um elemento jovem, ativo, bem informado e dissimulam; eles reúnem e opõem; em resumo,
capaz de iniciativas. Em um certo número de eles constituem os critérios de pertencimento a
aldeias francesas, a observação demonstrou tal uma classe, e também de exclusão a ela.
processo de recente constituição de uma nova Infelizmente, para dispor desse quadro,
“elite” camponesa. será preciso ter levado bem avante os estudos
Entretanto, não faltam objeções, e tão sobre a vida cotidiana dos diferentes grupos
fortes, que essa hipótese não mais dispõe de sociais. Aliás, conseguiríamos atingir em
argumentos suficientes. No que diz respeito à profundidade o psiquismo de classe, ou apenas
classe operária, pode-se notar que a separação os fatos secundários?
entre a leadership de ação e a de opinião resulta Seria interessante apreender e reter não
de circunstâncias históricas, econômicas e apenas o contexto sociológico de um fato (até
sociológicas determinadas: ruptura sindical, tão importante quanto o ato sexual, ou a morte
correntes políticas opostas, pressão da e os funerais), mas o vivido em uma situação.
sociedade global (capitalista), era de Em nossa investigação, justifica-se a introdução
revitalização econômica, diferenciações no do termo vivido , relacionado aos termos
interior da classe, mudanças técnicas, etc. Ela psiquismo e psicologia de classe . Se existe
não tem, portanto, nada de característico, psiquismo, existe “vivido”, mergulhado em um
psicologicamente. Quanto à reunião das duas “viver” maior, pouco ou mal expresso,
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escapando das consciências. Ilustremos nossa admitimos e continuamos admitindo a existência


hipótese com um conjunto de fatos muito bem das classes sociais, sem voltar ao conceito e à
determinados, ainda que mal conhecidos. definição, contentando-nos em remeter às
Provavelmente, existe um “vivido” malthusiano, obras clássicas e ao primeiro tomo do Tratado
um “vivido” não-malthusiano, ou anti- de Sociologia . Postulamos, aqui, a realidade
malthusiano. Esse “vivido” tem uma relação com econômica, social, ideológica das classes, sendo
a vida fisiológica (sexualidade, fecundidade), a interrogação concernente apenas à sua
com a vida familiar, com a economia (herança, realidade psíquica (coletiva).
transmissão da propriedade, da função, do De imediato, indiquemos que essa
papel e do nível social), com a ideologia e a colocação do problema elimina a tese de uma
política, com a moral e a religião, etc. Ele é, realidade psíquica – e somente, ou
portanto, extremamente profundo. E é, ao principalmente, psíquica - da classe como tal, o
mesmo tempo, íntimo e social, privado e público, que autorizaria a substituição da sociologia, da
oculto e manifesto de diferentes maneiras. Ele história e da economia política, por um estudo
muda, segundo as classes, e tem diferentes psicológico dos grupos. Esta atitude,
repercussões. De onde vem a fecundidade bem preconizada por um grande número de
conhecida (e que, aliás, diminui quando o nível sociólogos americanos (a partir das distinções
social se eleva) das classes populares? Vem de entre classe e status, extraídas de Weber) leva
uma vitalidade espontânea, ou da ausência dos a uma sociologia de uma extrema trivialidade
controles elaborados em certas tradições morais (cf. especialmente Centers, The Psychology of
ou religiosas? De onde vem o crescimento social classes, p. 27 e seguintes). Deixemos em
demográfico, hoje observado em uma escala aberto o vasto problema das relações entre as
considerável? Os demógrafos deixam ocultos ciências. O psiquismo das classes é apenas um
vários aspectos da questão. É possível que fatos aspecto, ou um nível, dessa realidade, a qual
muito simples desempenhem um papel (redução não exclui outros aspectos ou outros níveis. Ele
do período no qual a mãe alimenta a criança). E não basta. Elimina-se a determinação dos
também é possível que fenômenos muito mais grupos sociais e das classes por atributos e
obscuros e profundos entrem em jogo. Seja o qualidades unicamente psíquicas.
que for, pressentimos “vividos” característicos,
A coincidência entre o psiquismo de
ligados a situações (históricas, sociológicas).
classe e a consciência de classe só tem sentido
Podemos apreendê-los, certamente sob a
em uma teoria que privilegia uma consciência
condição de não considerar, como pré-
de classe. Assim, para Georg Lukacs, em seu
fabricadas, nem as situações, nem as soluções
livro bem conhecido Geschichte und
dos problemas levantados pela economia política
Klassenbewusstsein (1923), a consciência de
ou a história – sob a condição, portanto, de
classe do proletariado possui um caráter
tomar uma parte da opção e da auto-
singularmente privilegiado. Ela contém uma
determinação dos indivíduos, grupos, classes.
realidade total e detém uma verdade
Seria preciso, então, acrescentar que, em tal
igualmente total. De fato, segundo esse autor,
estudo, nós ainda não ultrapassamos a etapa
somente essa consciência de classe permite
dos pressentimentos, das sondagens parciais,
perceber, em sua totalidade e como totalidade,
dos conhecimentos esporádicos?
a sociedade existente, seu passado e seu futuro
(socialista), e, portanto, a história. O
I- Preliminares conhecimento não se situa no plano do conceito,
ou do julgamento, mas no da consciência
Partiremos de uma elaboração teórica, (coletiva). Simultaneamente, crítica e atuante
buscando alcançar, por meio dos conceitos, a (revolucionária), negativa e criadora, subjetiva
prática social da qual eles se originam. e objetiva, teórica e prática, unindo o fato e o
Implicitamente, já aceitamos essa posição. Já valor, dissolvendo as “coisas” sociais aparentes
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e abrindo perspectivas, essa consciência de espontâneo, o político (este último contendo o


classe coincide com a realidade da classe, conhecimento da sociedade em sua totalidade)?
superando as determinações parciais Quanto à consciência de classe da
(econômicas, históricas, sociológicas, burguesia, pode-se repetir – mutatis mutandis
psicológicas). – o que acabamos de dizer. Ela só existe
Infelizmente, para essa visão majestosa fragmentariamente, de modo instável, e
e de estilo filosoficamente clássico, a consciência conforme a conjuntura. Ela se distende ou se
de classe assim determinada não pode jamais amplia; enfraquece-se ou se reforça; colore-se
existir a não ser no pensamento do filósofo que de tonalidades diversas, segundo os países e
reflete sobre o proletariado e acredita atingir a as ideologias. Aqueles que a exprimem não são
concepção proletária do mundo. A consciência os que agem em seu nome; ocorrendo, então,
de classe, na concepção de Lukacs, representa fenômenos suplementares de distorção, de
um modelo teórico interessante para buscar em descompasso, de interpretações e ilusões (ou,
quê, como e por quê a realidade se distingue dito em termos marxistas: em nome da divisão
dela. Em seu livro notável e poderosamente do trabalho, os ideólogos raramente são
arquitetado, Lukacs inaugurou uma operação homens de ação – os políticos -; e, por outro
incontestável: o proletariado delegaria sua lado, eles constituem um grupo que tem seus
realidade e mesmo sua consciência a interesses e suas aspirações na classe, ou
representantes que não se contentariam em parcialmente fora dela. Em termos de sociologia
falar em seu nome no plano político, mas até em pírica, os leaders de ação e os leaders de
encarnariam sua “concepção do mundo”. Por opinião diferem freqüentemente, mas nem
isso, em lugar de realizar a filosofia, superando- sempre...).
a segundo o pensamento de Marx, Georg Porém, na medida em que cada classe
Lukacs restituiu a ela um papel inquietante. Na contenha um todo (parcial) em uma totalidade,
realidade (como a história contemporânea o a sociedade global, e se reconheça em tal obra,
demonstra), a consciência de classe do ou tal símbolo, ou tal acontecimento, poderemos
proletariado não tem esse caráter privilegiado, reencontrar os matizes psíquicos e os
unitário, permanente, e também fortemente desdobramentos destes matizes, nos quais as
estruturado. Ela muda com a conjuntura. Ela classes refratam, simultaneamente, sua
estanca, pára, retoma, oscila entre a recusa especificidade, seu pertencimento a uma mesma
(revolucionária ou anarquizante) da sociedade sociedade, e suas relações nesta sociedade. Ou
burguesa e a sua aceitação (reformismo, seja, o termo “consciência de classe” não é
conformismo). Ela se modifica, segundo as desprovido de sentido, mas convém não atribuir
camadas e frações de uma classe diferenciada. a ele um privilégio sociológico ou filosófico; a
Ela recebe matizes diferentes, segundo o país, consciência de classe não pode nem se
as tradições, os níveis de vida. Enfim, pode-se substantivar como uma entidade puramente
falar (ainda que com reservas, já que se trata objetiva, nem se “subjetivar” como uma
de consciência coletiva) em correntes psíquicas, entidade puramente psíquica. Ela se situa em
medo, temor, esperança e desespero, espera um determinado nível. Representada de modo
ou ira de classe, ódio, ou indiferença, ou flexível e concreto, como produção de imagens,
atração. E isso, tanto nas relações internas da símbolos, idéias ou obras culturais, e
classe operária (entre suas frações e suas reconhecendo-se nestes produtos específicos,
camadas), quanto em suas relações com as a realidade das classes inclui uma determinação
outras classes e com a sociedade (global) psíquica: uma consciência - e esta engloba os
existente. traços gerais da classe considerada. O psiquismo
E não é exatamente isso que constatava de classe compreende as particularidades
Lênin, ao distinguir os níveis de consciência: o momentâneas locais. Poder-se-ia, então, falar
em conflitos entre consciência de classe e
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psiquismos de classe ? Nas conjunturas cada vez mais, a ideologia consiste em um


determinadas, tais conflitos são tanto possíveis, vocabulário convencional e oficial, do qual se
como mesmo inevitáveis. utilizam os porta-vozes dos grupos e das
Continuemos eliminando diversas teses classes, para significar o que têm a dizer, o que
e hipóteses, isto é, tudo o que não é a sócio- devem dizer, e o que querem obter.
psicologia das classes. Ela tem uma relação com As ideologias têm, portanto, um
as ideologias, e estas fazem parte das obras e substrato, uma eficiência e um conteúdo
produtos específicos nos quais as classes se psíquicos (não apenas os interesses, mas as
reconhecem e pelos quais elas também se opiniões referentes a estes interesses). Elas só
recusam reciprocamente. O psiquismo de classe revelam esse psiquismo indiretamente. Assim
se definirá pelas ideologias, como o aspecto como as obras, as ideologias informam, então,
subjetivo delas, ou como a atividade que as sobre o psiquismo de classe, mas somente após
produz, mas que elas superam, enquanto obras uma análise de conteúdo, que separa os
eficazes? elementos (práticos e afetivos) da forma e da
As ideologias (atribuindo-se a este aparência ideológicas.
termo um sentido vago e amplo) mudam. Não Essas observações valem pela relação
está provado se os psiquismos de classe entre o psiquismo de classe e a cultura. É mais
mudam simultaneamente, ou antes, ou depois, prudente e mais justo falar de obras culturais
dos fenômenos ideológicos - comportando tal do que de cultura. Uma cultura – ao menos no
correlação uma regularidade. Lembremos um sentido em que tomamos aqui a palavra – é
fato importante: as ideologias (que não devem apreendida, comparando-se as obras. As
ser confundidas com os símbolos ou os valores) atividades são estudadas a partir dos produtos
são, geralmente, experimentadas, elaboradas, e das obras, principalmente nesse campo. O
formuladas, lançadas por grupos e indivíduos exame revela uma multiplicidade de correntes e
marginais em relação às classes. Em nossa de tendências que o termo unitário “cultura”
sociedade contemporânea, sabemos que a arrisca mascarar. Na França, ao lado de uma
intelligentsia constitui um tal grupo marginal, cultura oficial, refletindo, textualmente ou quase,
tanto em relação à classe dominante, quanto a ideologia oficializada em determinado
em relação ao proletariado (no que diz respeito momento (podendo, por outro lado, suplantá-
à fração da intelligentsia que tende para a classe la), debate-se uma cultura de recusa e de
operária ou opta abertamente por ela). Os protesto, que se diferencia, na análise, em
elementos especializados que se ocupam da correntes diversas. Constatamos, ainda, outras
ideologia – escritores, filósofos, jornalistas, ou, tendências que variam, misturam-se ou
ainda, editores, diretores de publicações, etc. divergem, enfrentam-se ou se neutralizam:
– são, pois, muitas vezes, atípicos em relação cultura e temas culturais de origem camponesa;
às classes; os elementos típicos se calam, cultura de origem revolucionária e proletária;
escrevem pouco, mesmo e principalmente se são cultura propriamente burguesa, clássica, ao
atuantes. Essa situação determina uma menos em aparência; cultura técnica; cultura
tendência aos conflitos entre as ideologias e dita de massas - isto é, em nosso país
os psiquismos de classe, mais do que a um segregada, sob predomínio burguês, por
acordo permanente. A classe intervém, organismos especializados, e divulgada para o
sobretudo, no sucesso das ideologias e das uso das massas pelos meios modernos (rádio,
obras. As ideologias correspondem às condições televisão, cinema, revistas e jornais).
momentâneas da comunicação entre os grupos As obras, os temas e as correntes
e as classes, e, mais precisamente, da culturais, tomadas em sua diversidade, informam
comunicação eficaz; isto é, visando e atingindo sobre a psicologia das classes. Elas não a
tal objetivo, segundo os interesses dos grupos divulgam de imediato; elas não a refletem. Do
considerados e suas relações de força. Hoje,
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psiquismo de classe às obras culturais, assim mais apta a apreender os fenômenos


como às ideologias, opera-se uma transposição. vislumbrados - diríamos que há implicação
As obras dizem o que se acredita ser preciso recíproca entre três séries de termos que
dizer, e escondem o que se acredita ser preciso aparecem e interferem em vários níveis. Temos,
esconder. A ambigüidade – ou seja, as assim: o individual, o interpessoal, o coletivo -
contradições despercebidas, embotadas ou o “nós” em escala micro, o grupo restrito e o
dissimuladas – reina nesse domínio: grupo amplo; isto é, a classe, a sociedade
interpretação e apresentação hábil dos fatos global, enfim, em escala macro -; o “me”
ou das emoções, tratamento de temas dados e superficial, o “me” profundo, os símbolos e
investigação do efeito, comunicação na modelos captados e adotados pelo “me”, que
transposição, deixando uma grande margem aos lhe permitem comunicar-se; o “me”, o outro, o
autores individuais das obras. Enquanto nós, etc. Sobre a idéia capital de
comunicação intencional (não-espontânea, tridimensionalidade, voltaremos em breve.
elaborada, determinada), a obra cultural visa, As diferenças provêm, portanto, de
por meio de uma comunicação, a um objetivo polarizações no interior de um campo complexo
junto ao “público”: prestígio, sucesso, poder, (tridimensional), e não de substâncias distintas,
exaltação ou depreciação disto ou daquilo. Essa justapostas ou opostas, o individual e o social,
comunicação eficiente se serve da ideologia o pessoal e o coletivo, a sociedade e o homem.
aceita, da terminologia em voga. O psiquismo Conforme uma lei ou uma hipótese, cuja
de determinado grupo – o do autor, o daqueles formulação remonta a Hegel, o mais interno é
que ele quer alcançar – entra apenas no também o mais exterior, e vice-versa. O mais
conteúdo dos temas e das palavras, conteúdo obscuro, o mais oculto, o mais profundo e o mais
que sua estruturação modifica e transforma. próximo, é também, e precisamente, o que vem
Faz parte de nossos postulados que seja de fora, de mais longe, de mais brilhante. O ”me”
impossível conceber um psiquismo de classe, a mais pessoalizado será aquele da comunicação.
partir de psiquismos individuais preexistentes. Inversamente, na comunicação mais
Ao se propor psiquismos individuais, espontânea, mais direta e mais intensa, a
comportamentos ou atitudes, como unidades ou pressão de fora – do grupo, classe, consciência
entidades separadas, nega-se não somente o coletiva – sobre o “me” individual tenderá ao
psiquismo de classe, como também as classes, mínimo. Portanto, seria um erro avaliar a
a realidade social e a sociologia. consciência de classe ou o psiquismo de classe
Há um século e meio, os melhores ao nível dessa pressão. O “me”, que percebe
filósofos e sociólogos submeteram a uma crítica como tal a pressão de sua classe, escapa dela
radical a teoria (tenaz e sempre renovada) da ou luta para dela escapar. Sem dúvida, será na
consciência cartesiana, individual e fechada. afetividade mais espontânea, nas imagens mais
Essa crítica vai contra o culturalismo, o carregadas de intimidade, que reencontraremos
estruturalismo e o formalismo abstratos, pois o psiquismo de classe (e não mais tanto na
eles sobrepõem os elementos ditos coletivos – ideologia ou na cultura elaboradas, nas idéias
papéis, valores, modelos, estruturas, tipos, ou símbolos percebidos abstratamente).
culturas – às consciências individuais dadas A sociedade considerada como um todo
como tais. Se há um psiquismo de classe, o intervém igualmente; como parte interessada,
sociólogo o descobre no mais profundo do ”me”2 ela faz parte integrante, juntamente com os
nos membros desta classe, eliminando a imagem grupos restritos ou intermediários – a família, o
abstrata de um “eu” isolável e de um ego grupo territorial local, a vila ou a cidade, a nação
transcendente. -, daquilo que penetra até no foro íntimo do
Retomando a terminologia de Georges indivíduo. Todo o individual é já social, mas em
Gurvitch - a mais elaborada, atualmente, e a níveis sucessivos, de modo que a interioridade
reproduz e contribui, assim, para produzir as
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profundidades da vida social. Há distingue dela, numa determinada prática, o


correspondência recíproca, simbolização mútua, conflito entre o individual e o social se torna um
e, mais ainda, interação produtora (criadora). fenômeno social. O conflito supõe uma unidade
Situando-se em um certo nível da totalidade (dialética), mas a consideração da unidade não
social, o psiquismo de classe só será pode eliminar o conflito. Se o indivíduo se opõe
encontrado em um certo nível da totalidade à sociedade, é porque a sociedade se opõe a si
individual, no microcosmo do “me”, com suas mesma, e o indivíduo se opõe a si mesmo. Daí
expressões e seus suportes (sentimentos, resultando, então, uma interrogação: será que
valores, símbolos inclusivos ou exclusivos, etc.). a oposição entre o individual e o social, a
Admitir esse fato elimina toda a ignorância do indivíduo por sua realidade social,
dificuldade? Não. Se não há separação, sua inconsciência de classe, não constituiriam
justaposição ou exterioridade entre o individual fenômenos psíquicos de classe?
e o social, significa que não há conflitos entre No prefácio da primeira edição alemã de
eles? Consideremos a distinção corrente entre O Capital (1867), Marx escreve: Eu não pintei de
o privado e o público. A vida dita privada se baseia rosa o capitalista e o proprietário fundiário; mas
nos bens possuídos a título de propriedade não se trata aqui de pessoas, uma vez que eles
privada, nos laços familiares e de amizade; ela são a personificação de categorias econômicas, as
não só consiste em uma vida social, como bases de interesses e de relações de classes
também supõe as leis mais gerais de nossa determinadas.
sociedade, nos sentidos sociológico e jurídico: A concepção marxista de
aquelas que regulam a devolução e o uso dos desenvolvimento econômico-social pode menos
bens, os contratos entre membros da família, que qualquer outra tornar o indivíduo responsável
os usos e costumes da vida cotidiana e dos laços por relações das quais ele permanece socialmente
de amizade. É o que já foi constatado. E, no a criatura, seja lá o que faça para disso se libertar.
entanto, a “vida privada” busca fugir ao controle
Assim, para Marx, existe no burguês
e mesmo à observação do exterior. Assim, o
individual uma parte – relativamente grande e
indivíduo se cinde aos seus próprios olhos (mas
consciente – de “personificação” das categorias
não se trata apenas de uma questão de olhar e
econômicas, das relações de classe. Mas há
de consciência, como também de uma realidade
ainda outra coisa. O quê? Nesse texto, Marx não
efetiva, um aspecto da prática), em privado e
o diz. Ele apenas indica um outro aspecto: o
público . Ele é tanto um quanto outro. A
indivíduo ignora aquilo de que é o resultado e o
justaposição para e pela consciência encobre
produto; essa enorme lacuna faz parte de sua
uma unidade, mas esta, por sua vez, contém
realidade individual. Podemos supor que as
contradições e conflitos. Uma consciência aguda
consciências individuais, segundo Marx,
poderá conter uma inconsciência singular. O
refletem, ou melhor, refratam o conjunto da
indivíduo que se debruçar sobre sua intimidade
realidade social, com suas categorias e suas
privada, e que falar “enquanto indivíduo...”,
relações de classe, ao nível alcançado pelo
ignorará que, neste instante, e precisamente
desenvolvimento da formação econômico-social:
nele, o que emerge são as idéias, os valores,
forças produtivas, conhecimento, cultura, etc.
as normas e modelos de sua classe.
Entretanto, Marx chama logo nossa atenção
É tal a relação “indivíduo-sociedade”, para fatos importantes. Há “categorias”
que nem se concebe sua dissociação. Contudo, econômicas, incluindo o próprio capital, que são
essa relação acarretou e ainda acarreta dominantes na sociedade burguesa e, ao mesmo
problema para muitos. Como isto é possível? tempo, fetichizadas (reificadas) e personificadas
Pode-se responder – e esta resposta parece no burguês enquanto tal. Elas detêm um
coerente – que esse problema é um fato privilégio que constitui um fato de classe na
sociológico. Quando o indivíduo se opõe sociedade global; elas gozam de uma
efetivamente à sociedade, ou simplesmente se
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“positividade” singular. E elementos negativos aparecendo, assim, como mediação (e não como
– ignorâncias, lacunas, oposições, conflitos – substância ou coisa) após sua imediatidade: a
contrariam essa positividade. O pensamento necessidade remete ao trabalho, que cria e
dialético e crítico oriundo de Marx trará, permite a fruição do objeto produzido ou da
portanto, importantes correções à teoria da obra criada; por sua vez, estimulado pela
“personalidade de base” - reflexão ou refração necessidade, o trabalho produz novas
individual da estrutura social global -; ou ainda, necessidades, confirmadas pela fruição; e,
à teoria dos “papéis sociais” considerados sobre assim, sucessivamente, em um movimento
o mesmo plano. Ao dogmatismo que perpétuo, que não tem nada de círculo vicioso,
determinava o psiquismo (do indivíduo e da mas que avança, lentamente ou aos saltos,
classe) unicamente pelas categorias seguindo uma espiral ascendente. Tratar-se-ia,
econômicas, bem como ao sectarismo da então, de uma realidade psíquica fundamental
“essência de classe” do indivíduo, evitaremos e de um fenômeno humano total, e não de uma
substituir as teorias sem contorno, realidade econômica unicamente econômica, ou
escamoteando as descontinuidades, os de uma realidade histórica unicamente
emaranhados de fatos positivos e de elementos histórica? Essa realidade psíquica tem uma
negativos, as ausências e as lacunas, e, relação com o econômico, o histórico e o social,
finalmente, os conflitos internos. sem se reduzir a eles.
Em um outro fragmento de O Capital, Por que essa indicação se encontra em
Marx evoca o conflito lancinante, que, em sua Marx, na crítica do Estado - noção, filosofia e
opinião, caracteriza a consciência burguesa (a prática? Porque esta crítica restitui a
do indivíduo e a da classe, uma na outra). Ela é tridimensionalidade do devir humano.
dilacerada, seja pela necessidade de acumular, A verdadeira crítica aponta a gênese
seja pelo desejo de fruição. A necessidade de interna da Santíssima Trindade. Ela descreve seu
acumular tem uma “base” econômica; é ela que nascimento - escreveu Marx, numa forma irônica,
encarna a categoria econômica, o imperativo do que concerne ao nosso assunto, mas o
capital. O desejo de fruição é individual, ultrapassa (Op. cit., p. 119 da trad. Ed. Costes).
“privado”; ele provém do fundamento vital, Assim, o Estado é primeiramente uma mediação
natural, da consciência humana. O conflito entre entre o individual e o social, entre o privado (os
essas duas aspirações constitui o “pecado interesses privados) e o público (interesse
original” da burguesia, experimentado por ela geral). Essa mediação se revela e se fetichiza,
no mais alto grau, quando de seus fundamentos torna-se um absoluto, e isto em uma sociedade
históricos (cf. principalmente O Capital, livro VII, na qual os intermediários podem conquistar e
23, p. 33 do Tomo III da trad. Roy, Ed. Sociales, manter privilégios. Em uma tal sociedade, a
1953). fetichização reage sobre aquilo de que procede.
Ao confrontarmos esses textos a outros Trata-se de um processo contínuo, que se
igualmente importantes, do mesmo autor, manifesta por múltiplas alienações; no nível
chegamos a uma idéia interessante, a das econômico, ocorre uma alienação
dimensões da consciência e do “ser humano”. particularmente forte e bem definida, a
Na Crítica à filosofia hegeliana do Estado, Marx reificação ou fetichização da mercadoria, do
examina três aspectos da individualidade não- dinheiro e do capital. Mas, na profundidade da
mutilada, no seio de uma totalidade social sociedade e das classes consideradas
também não-mutilada por um pensamento e psiquicamente, ocorre um processo de
uma ação unilaterais; esses três aspectos são: “unilateralização” (para arriscar um neologismo),
a necessidade, o trabalho, a fruição. O psiquismo sob o manto do Estado no qual as classes se
normal possui estes três atributos, estas três representam. Os três aspectos fundamentais do
dimensões. Cada uma delas tem uma realidade psiquismo humano se dissociam (ainda que na
própria, que, entretanto, remete às duas outras, realidade total da sociedade, eles permaneçam
Capítulo IV- Psicologia das Classes Sociais, pp. 21 - 41 29

vinculados). Separados, eles se impõem a de positividade que os nivela, enquanto fatos


classes e indivíduos diferentes, que são sociológicos. Entretanto, para um homem de
“representados” como tais no Estado, e se cultura européia, sociológica ou não, essas
“representam” assim na consciência e nas palavras evocam a idéia de comédia, seja a
idéias. Tal classe e tais indivíduos se determinam interior, seja a representada diante de um
e se definem como “trabalhadores”. A outros público (família, grupo restrito ou amplo). Um
compete a fruição; outros, ainda, os mais papel se representa para nós; então, ninguém
desfavorecidos, representam a necessidade em se identifica com seu papel e nem se define por
estado puro, a falta. Notemos que a burguesia ele. Não há coincidência entre o ser humano e
começou por reduzir as dimensões do homem à o papel social, entre a pessoa e a personagem.
necessidade, durante o período primitivo em que Se é verdade que as pessoas recebem de fora
dominavam o ascetismo, a abstinência, a os modelos (pelo que nós as lamentamos
“economia”, isto é, a acumulação. Ela assim se discretamente, pois elas não sabem ser elas
mutilava e mutilava a realidade humana; ela mesmas e se alienam), nós também pensamos
perseguia e rechaçava o desejo de fruição, e, que elas nunca os adotam completamente.
depois disso, lançava-se à fruição “pura” - que, Procuramos uma relação entre um “ser” e seu
aliás, não pode ser alcançada -, mutilando, papel, entre a sinceridade, a autenticidade e o
assim, de uma outra maneira, a realidade jogo, a mímica interior. Nós também queríamos
humana. detectar a dramaturgia íntima, a liturgia secreta
para as quais a pessoa adota sua personagem
As mediações reais se atenuam e
– sua máscara – e torna-a sua, amplia sua voz
desaparecem, na representação e na realidade.
e seus gestos, exagera sua importância,
Não há mais mediações recíprocas, quando uma
dramatiza e representa seu “papel social” em
mediação (o Estado) absorve os termos que
sua classe, em função de sua classe e das
religava. Assim, tanto na realidade, como na
relações de sua classe com outras classes. É
consciência e na representação, a
assim que na França - na linha de nossa cultura,
tridimensionalidade humana se perde, se reduz
e mesmo (curioso paradoxo) para a burguesia -
e se fixa.
, o burguês e a burguesia são as personagens
Trata-se de indicar o perigo das teorias mais cômicas. Por quê? Por muitas razões
ditas de “integração” social, em todos os seus históricas. Por causa do romantismo. Por causa
níveis e em todas as suas formulações. Elas de uma longa tradição de pensamento crítico.
arriscam sancionar e consagrar as Porque nós sabemos (por literatura, romances)
unilateralidades existentes à prática e à como a burguesia imita a aristocracia e continua
representação. Elas podem levar a “super- a imitar, não sem pavonear-se diante das
fetichizar” os fetichismos reinantes, classes inferiores. Por causa de uma certa má
simplesmente porque eles são reais, e, portanto, consciência da burguesia como tal, em nosso
constatáveis. Entre uma sociologia puramente país, etc. Portanto, lá onde os sociólogos
empírica e o pensamento dialético há muitas americanos falam com toda a simplicidade em
diferenças, principalmente aquela: para o “modelos”, “patterns”, “papéis”, nós
pensamento dialético, não há conhecimento sem introduzimos não só a historicidade, como
crítica, não há ciência social sem crítica radical do também a crítica que a acompanha. Nós
existente. tomamos distância para melhor analisar;
Quando um sociólogo puramente distanciamo-nos do fato sociológico. Assim, nós
empírico fala em “papel social”, ele toma (ou o restituímos em uma totalidade e em uma
parece tomar) esta denominação muito problemática. Falamos de mitos, de
seriamente. Falta a dimensão crítica ao seu sobrevivências, de ilusões de classe, de margem
pensamento; ele situa os fatos em uma espécie entre o modelo, o papel, a vida, etc.
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II- Psicologia coletiva da burguesia saber ou de suas iniciativas, de sua esposa ou


A burguesia é a classe que nega as de sua amante; mas jamais – ou muito
classes e isto faz parte de sua definição como raramente – de seu pertencimento à sua classe.
classe. Este fato é ainda mais notável, já que a Não parece que o tempo tenha abolido essas
burguesia alcançou o poder econômico e político, características, depois de alguns anos, ainda que
enquanto classe, pela primeira vez na história os acontecimentos tenham podido modificá-las
(fim dos séculos XVIII e XIX). Portanto, ela entre um determinado número de indivíduos.
tornou evidente e, digamos, sensível, tanto a Portanto, o sociólogo pode considerar
existência das classes quanto a luta de classes. não encontrar a burguesia no burguês, mas sim,
Depois disso, a ideologia e a prática ocultaram ter de descobri-la. O burguês aparece tal qual
essa realidade histórica: individualismo, se dá: um indivíduo sólido, livre e bem
nacionalismo. Aqui, não vamos nos deter sobre assentado, tendo as bases na realidade, apesar
essas idéias e críticas já conhecidas, mas sim, dos riscos dos negócios e ainda que a vida seja
explicitar o contexto psíquico. uma eterna aposta, uma corrida contra o relógio.
O burguês individual age e vale, aos Esse indivíduo não é desprovido de qualidades,
seus próprios olhos e aos olhos dos outros, nem de propriedades diversas. Ele é daqueles
como indivíduo livre e como homem privado (no para quem o leader de ação e o leader de opinião
quadro econômico-social da livre empresa). Ele diferem, salvo caso grave. Ele tem seus guias
ignora a sociedade global em que vive; ele a de consciência e delega a ação social a homens
conhece por ter ouvido falar, ou ainda, como públicos que ele desdenha, salvo quando os
uma seqüência puramente empírica de fatos sem adora. Ele não tem clareza nem sobre o conceito
ligação. Grande, médio, ou pequeno, de sociedade global, nem sobre o de classe,
pertencendo à burguesia financeira, comercial, sendo que a falta de um leva à do outro.
ou industrial, o burguês rarmente pode dizer: Entretanto, essa não-consciência de classe não
“eu, um burguês”; ou “nós, os burgueses...”. é senão uma aparência (real, até certo ponto,
Ele não mais exclamará: “eu, que não sou um como toda aparência). Ela é só uma ilusão
burguês...”, quando quiser estabelecer um ideológica, uma representação superficial. O
paradoxo, ou então, quando se disser artista, sociólogo logo apreende comportamentos,
ou um pouco aberrante. Se ele exclamar: “eu, normas, símbolos, modelos, opiniões e atitudes,
um burguês... nós, os burgueses”, será como que chegam ao burguês por meio de sua classe,
uma espécie de desafio, opondo-se seja à que constituem a classe, e que se cristalizam
aristocracia, seja aos pequeno-burgueses, ou como tais e, entretanto, não são percebidos
aos proletários, aos desclassificados, ou aos como tais (por exemplo, as regras, ritos e
revolucionários (cf. as observações de Proust, convenções de polidez, na “boa sociedade”). A
A la recherche du temps perdu, t.IV, pp.152 e classe aparece como a soma desses sintomas,
seguintes). Desse modo, o papel social mesmo que, na essência, ela seja sua origem e
representado se torna cômico quando o sua fonte.
burguês, no mesmo momento em que se O psiquismo de classe da burguesia
proclama como tal, finge não sê-lo, superando revela, desde já, uma alienação da e na classe
a burguesia à custa de muita sinceridade, não (que se nega a conhecer-se como tal – e cujo
sendo esta sinceridade burguesa. saber difere do conhecimento e da ideologia da
Somente os maus literatos e realidade -; que se dispersa em indivíduos,
caricaturistas mostram os burgueses que dão dispersando também as outras classes e a
ares de o saber. Mesmo se o burguês é muito sociedade global; e que fetichiza uma realidade,
orgulhoso, ele retira seu orgulho e sua confiança a nação, etc.); além de uma alienação do indivíduo
mais de outros lugares do que de sua classe: e no indivíduo (que não se vê como é; que é como
de sua moralidade ou de seu cinismo, de seu não se vê; que define seus limites por suas
“propriedades”, e vice-versa; e que toma a
Capítulo IV- Psicologia das Classes Sociais, pp. 21 - 41 31

privação de sua vida “privada” por sua burguesia parecem, ao mesmo tempo, grandes
realização, etc.). Ocorre uma dupla projeção: da e impalpáveis, visíveis a olho nu e fugazes.
classe fora de seus membros, dos membros fora Duas “almas”, e apenas duas, habitam
da classe (e fora deles mesmos). o burguês. Falta-lhe uma dimensão: o trabalho,
A burguesia, como classe, ignora, conhecido e reconhecido na prática social, como
portanto, a comunicação e, mais ainda, a atividade produtiva, criadora do mundo humano.
comunidade e a comunhão. Ela só se aproxima O capitalista pode se comportar como homem
delas em condições ou momentos excepcionais, enérgico e ativo; ele pode atribuir à iniciativa
e contra uma classe contrária - outrora, a feudal; um valor eminente, prático, moral e mesmo
hoje, a classe operária. Normalmente, os metafísico; nos tempos áureos, ele conseguiu
membros dessa classe constituem grupos valorizar o trabalho como tarefa, labor, castigo;
restritos, especializados, intencionais (como os ele não o reconhece na práxis, como dimensão.
clubs, círculos ou sociedades diversas). Mesmo Duas “almas”, e apenas duas, habitam-no. Como
sendo a burguesia a classe dominante na Hércules, ele precisou e ainda precisa escolher
sociedade dita burguesa (ou capitalista), pode- entre a virtude e a volúpia, a abstinência (a
se prever que a sociabilidade espontânea seja economia) e a fruição, a moralidade e a
aí reduzida ao mínimo. As “relações” burguesas, imoralidade (uma complementar à outra). Ele
as redes de negócios, ou de amizade, ou de tem essa sorte e esse azar: escolher, optar,
interesses não têm grande coisa em comum com incessantemente. Assim, ele experimenta
a sociabilidade espontânea. Por que essa perpetuamente a liberdade – a sua -, e o destino
ausência? Apontemos algumas razões. A nosso na liberdade. Tanto uma alma quanto a outra o
ver, basta a falta de uma dimensão humana, arrebatam, após um cálculo mais ou menos
para que a comunicação seja comprometida, preciso e afinado. Tanto enquanto pai de família
para que a sociabilidade espontânea esteja querendo dar um dote às suas filhas, como
ausente e seja substituída por uma enquanto querendo aumentar sua empresa, o
sociabilidade intencional (com suas burguês quer “economizar”; e a economia
características: ritos, cerimonial, vocabulário, política, ciência da abstinência, é, enquanto tal,
jargões, trejeitos). No momento em que o a sua ciência. Por outro lado, enquanto homem,
fenômeno humano total é truncado, que uma esposo feliz ou amante, enquanto admirador dos
das dimensões desapareceu e deixou de existir objetos de arte ou de paisagens, o capitalista
– mesmo virtualmente -, a comunicação apenas quer gastar, consumir, usufruir. A necessidade e
ocorre por meio de convenções e símbolos, que a fruição se repartem nesses “enquanto...”; elas
não podem deixar de representar também a se confrontam neles, e aí lutam ou encontram o
mutilação. Para comunicar intencionalmente, é apaziguamento dos compromissos.
preciso exagerar. Em segundo lugar, a burguesia Na história, houve vários ascetismos ou
desempenha seu papel de classe (dominante) austeridades de classe. O ascetismo camponês,
na pessoa de seus membros, aos olhos das aquele das revoltas e das tentativas
outras classes, o que inibe a espontaneidade comunitárias, nada teve em comum com aquele
social. O papel individual deve mascarar o papel da acumulação capitalista, e tampouco com o
social e político, e, ao mesmo tempo, ordenar- ascetismo proletário revolucionário. O ascetismo
se e estilizar-se em função do papel social e burguês, desaparecido da prática, deixa marcas
político, acarretando, assim, uma série de na ideologia e na moral oficiais (sobretudo nos
contradições. Além disso, e finalmente, a países anglo-saxões). Os traços históricos
burguesia seguiu modelos que não saíram dela, particulares da burguesia francesa (seu
mas da classe que ela combateu: a aristocracia. ingresso no aparelho de Estado da monarquia;
De onde uma considerável importância da a rivalidade, no interior deste aparelho, com os
imitação e do esnobismo, fenômenos de classe. feudais – rivalidade esta que obrigava os
Paradoxalmente, os traços de classe da burgueses franceses tanto a opor suas virtudes
32 - GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, Nº 17, 2005 LEFEBVRE, H.

aos vícios de seus senhores, quanto a rivalizar unicamente na fruição (ou na busca da fruição
com eles em luxo, fruição e imoralidade) foram “pura”), não repercute tão somente em escala
necessários para que os gastos luxuosos histórica e individual, na epopéia tragicômica da
tivessem partidários burgueses “progressistas”, classe burguesa. Ele reaparece em diferentes
desde o século XVIII. O materialismo burguês níveis e patamares. No nível da família,
foi uma filosofia da fruição (La Mettrie, Helvetius, poderíamos esboçar uma classificação ou uma
etc.). Antes de Veblen, ainda que com menos “tipificação”, não sem ironia, distinguindo as
detalhes precisos, Marx anunciou a inevitável famílias (burguesas) ascéticas e as famílias
passagem de uma economia burguesa - fundada desfrutadoras, as famílias avarentas e as
sobre a acumulação na austeridade, e pela pródigas; assim como há famílias tagarelas e
abstinência - para uma economia de desperdício famílias mudas, famílias empoladas e famílias
e de despesas suntuosas, sem que, para tanto, agitadas, fechadas e abertas, famílias sem
determinadas necessidades essenciais da lendas e famílias com seu folclore, etc. Esses
maioria das pessoas tivessem sido satisfeitas. tipos são associados e complementares, assim
A análise marxista nos parece mais como os tipos individuais, o asceta e o
penetrante que a de Max Weber. Desde a “belle desfrutador, o moralista e o imoral, o paternal e
époque”, falta ao homem da burguesia uma o cínico, etc. Certamente, as polarizações não
dimensão humana. A plenitude virtual foi ocorrem sem nuances intermediárias, podendo-
substituída por um conflito entre as duas partes se também passar de um tipo ao outro; os tipos
contraditórias desse homem mutilado, suas mudam segundo as frações da burguesia, os
duas “almas” (a palavra convém). Uma vez que países e regiões, as localidades. O mesmo
este conflito o corrói, e ele experimenta uma conflito reaparece, no interior do grupo familiar,
liberdade em sua mutilação, a da escolha, ele entre os membros: pais e filhos, filhos homens
necessita uma solução ilusória; ele busca uma e filhas mulheres, primogênitos e caçulas. Tanto
regra que o ajude a submeter o velho Adão à uns quanto os outros (ou tal outro) representam
necessidade livremente consentida; ele se dá o pólo da fruição ou o pólo da abstenção. Enfim,
uma compensação, uma recompensa. De Calvino no interior mesmo do indivíduo, o “me” e a
a Kant, filósofos e moralistas expuseram o consciência do outro, o ”eu”, o “me”, o nós,
drama dessa consciência e buscaram dar-lhe o confrontam-se, aliam-se, combatem entre si,
que ela reclama imperativamente. A ideologia encarnando o tema fundamental do conflito. Um
não é o conflito, nem a expressão lúcida do “eu” abstinente, econômico, até austero – um
conflito; ela traz uma solução fictícia, facilitando “me” pródigo e desfrutador – e eis o conflito
as escolhas e os sacrifícios, dissimulando as geral que repercute na escala do psiquismo
mutilações. Max Weber viu a ideologia melhor individual, tornando-se “moral”. Em toda parte,
do que a prática, e melhor do que o drama da dois “papéis”, dois “modelos” se enfrentam. A
consciência burguesa; em seus célebres ética familiar, assim como a ética social ou
estudos, ele reduziu a “alma” a uma única individual da burguesia, oscila entre esses pólos,
dimensão – a necessidade mantida enquanto e busca tanto romper quanto estabelecer um
necessidade, abstinência e privação -, em lugar compromisso. O mundo burguês, considerado
de enfatizar o conflito. Portanto, ele embotou a como tal, ou seja, o do desdém de todos por
contradição, atenuou o drama, e também a todos, é também aquele em que o dever, a
comédia burguesa. Ele ratificou a família, a paternidade, a maternidade, a
unilateralidade, em vez de apreender o fraternidade, o amor absoluto, apresentam-se
dinamismo das três dimensões, porque ele como valores supremos. Isso sem contar a
manejava ideologicamente o método sociológico liberdade. E não é, como se costuma pensar,
e histórico, superestimando o elemento cultural. uma hipocrisia. É a “estrutura” de um mundo
social ambíguo, a ambivalência se definindo
Há quatro séculos, o conflito duradouro
sempre como conjunto de contradições
entre as duas almas, com sua resolução final
Capítulo IV- Psicologia das Classes Sociais, pp. 21 - 41 33

embotadas, mergulhadas nos compromissos, ou ao menos virtualmente); de outro lado, trapaça


repartidas em projetos diferentes, segundo a com os imperativos, as ambições, a busca de
casuística dos “enquanto...”. luxo e de prazer, o apetite de fruição, que, uma
O dever, transposição moral do interesse vez desencadeado, não há nada que possa
do grupo familiar, tem como divisa: manter moderar e regularizar. A opção leva ao papel;
(marco feudal de origem). Ele se determina em ela o determina e o cria.
função da perenidade familiar, da empresa Se a situação conflitante geral, própria
familiar, do futuro familiar. Ele determina a dessa classe, pesa com todo o seu potencial
dignidade, a função, o papel, o lugar de cada sobre a mulher, o homem, na burguesia, não o
partícula no átomo familiar. O dever constitui o pode evitar, mas apenas dissimular. Ele goza de
princípio sólido, o princípio de necessidade e de uma liberdade máxima: a de perseguir, ao
estabilidade, experimentado e aceito (ou máximo, a fruição. E nós já sabemos em que
recusado), como tal, por cada um. Quanto ao consiste essa liberdade: no sofisma e na
prazer, ele afrouxa os laços; a fruição e o desejo casuística (espontânea ou refletida) dos
dela enredam as situações esclarecidas pelo “enquanto...”. O burguês qualificado vive e
outro princípio. É o elemento do indeterminismo pensa em suas qualidades: jamais enquanto
(moral). O interesse tende a conciliar as burguês, mas enquanto homem, enquanto
divergências, a impor compromissos. patrão, enquanto pai, enquanto cidadão, etc.
A situação conflitante, que, segundo O seu “ser” não é senão uma soma. Ele só
essa análise, constitui o essencial do psiquismo aparece para si mesmo como “ser” em um ”eu”
da burguesia como classe, manifesta-se no inacessível, transcendente ao ”me”, ou seja, à
psiquismo individual da mulher (no seio da soma dos “enquanto...”. Por outro lado, ele foge
família burguesa, ou aceitando as normas e e evade para a fruição, que não é felicidade,
modelos da burguesia). Toma-se, aqui, o pois, a fruição “pura”, absoluta, escapa-lhe.
processo já assinalado, que não consiste nem Assim, o burguês se atribui a si mesmo
na interiorização de fatos sociais outrora a divisão do trabalho social na sociedade
externos à consciência individual, nem na burguesa, como também as regras da análise
socialização de fatos individuais antes efetiva, de separação e segregação, que são
puramente subjetivos; mas sim, em uma aquelas do pensamento, como também da
interpenetração constitutiva – que não é sociedade e da história burguesas. Uma vez
examinada como um fenômeno estático, mas reduzido a uma coleção de “enquantos...”,
como um processo simultaneamente dinâmico repartidos em diversos níveis, ele é tão somente
e estrutural, produto e produtor de conflitos, uma totalidade concebida, concebível e
criando realidades, e dissolvendo ou causando consciente. Isto o dispensa de ter de se
ausências (lacunas, mutilações, privações e conceber. Ele pode apenas se projetar (sobre
frustrações). O “papel” da mulher na família um plano moral, ou estético, ou religioso). Ele
burguesa não é predeterminado; ele é tanto evita a lucidez e o julgamento, pois considera-
uma fraqueza da teoria dos papéis sociais, se muito complexo para poder julgar-se. Por
quanto da dita teoria da “personalidade de falta de conceber seu pertencimento à classe e
base”: ambas pré-fabricam, ao que parece, à sociedade de classes, por meio de sua classe,
papéis e modelos de personalidade oferecidos ele se dissolve enquanto ser; seu psiquismo é
aos indivíduos. Cada mulher resolve seus também a história dessa dissolução no
problemas livremente; ela opta; e é a escolha inapreensível, que passa por mistério e abismo.
que determina o contorno e o perfil de seu Para apreender a “alma burguesa”, necessita-
“papel”. De um lado, virtude e continuidade na se, cada vez mais, de uma metafísica (de uma
vida familiar, permanência, fidelidade, sacrifícios ontologia) que lhe designe seu ser especulativo.
(não sem compensações econômicas e morais, Quando um burguês se exalta, com um
34 - GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, Nº 17, 2005 LEFEBVRE, H.

pseudo-romantismo, pela liberdade, pela desenvolver, com extraordinária confusão, a


evasão, pela natureza, pela arte, pela paixão e mais surpreendente artificialidade
o amor absoluto, ele não finge. Ele não (necessidades artificiais, atitudes artificiais,
representa uma comédia. Não só o burguês se papéis artificiais). Juntamente com essa unidade
esquece enquanto burguês, como ele deve mistificadora entre o natural e a artificialidade
colocar entre parênteses o burguesismo, para na “mundanidade” burguesa, ela realizou uma
ser completamente burguês. Assim, ele se libera unidade não menos mistificadora entre o sério
completamente; ele se move nos “enquanto...”, e o frívolo. O burguês sério é feito de
com uma casuística cuidadosamente consciente. honorabilidade, gravidade, e uma dignidade que
Essa fragmentação, retida em uma unidade não é inevitavelmente cômica. Senhora dos
fictícia de um ”eu” (com jogo de palavras sobre valores supremamente “sérios” na sociedade
o “eu”) corresponde à estrutura da sociedade que domina, a burguesia pode se permitir à
global: divisão excessiva do trabalho, separação frivolidade extrema. Fruição – “puramente”
das funções, segregação dos grupos e separada de qualquer outro aspecto – e
atividades, não obstante a extrema e dura frivolidade caminham juntas. O psiquismo de
unidade do conjunto estaticamente controlado. classe da burguesia passa de uma à outra,
De modo que a consciência burguesa “reflete” confundindo-as facilmente. O patrocínio da
o conjunto da sociedade burguesa, ao mesmo grande seriedade moral permite o não-sério da
tempo em que o ignora e não estabelece com moda, do jornalismo, do teatro, da literatura,
ele nenhum vínculo racional. Ela contribui para dos costumes. O sério e o não-sério
produzir e reproduzir este conjunto; ela se transformam-se um no outro, do mesmo modo
produz e se reproduz a si mesma. (O termo que a moral e a imoralidade. A mulher, na
“reflete”, empregado mais acima, não exprime sociedade burguesa, encarna essa dialética. Ela
bem essa interação; a consciência reflete e não é, simultaneamente, o natural e o artificial
reflete - porém, não temos uma melhor palavra, extremos, a seriedade (do dever e do
neste momento). sentimento, e até da paixão) e a frivolidade da
A ambigüidade e a dualidade inerentes moda e do prazer.
ao psiquismo de classe da burguesia são Geralmente, os escritores moralistas, os
reconhecidas nas relações entre o artificial e o psicólogos, e outros, só retêm um aspecto e um
natural. Desde suas origens, o burguês se lado dessa dialética, sem atingir a unidade na
apresenta sob as aparências do natural (leis contradição.
naturais da economia, independentes da A psicologia coletiva da burguesia, acima
historicidade, análogas às leis de harmonia da esboçada, leva-nos a duas séries de
natureza material, família burguesa conforme a proposições, talvez passíveis de generalização:
natureza humana, etc.). Há quatro séculos, a
a) O psiquismo de uma classe se
história concreta da noção de natureza teria,
resume na família. A vida familiar oferece um
certamente, muito mais importância e interesse,
microcosmo, no qual se condensam os traços
do que as banalidades sobre o materialismo da
da classe, na sociedade enquanto totalidade.
burguesia ascendente e seu idealismo no
Nela, as características tornam-se exageradas
declínio. Essa história conteria informações
e repercutem as contradições nas relações de
numerosas, diretas e indiretas, sobre o
classe no interior da sociedade global. Assim,
psiquismo de classe. A burguesia não parou de
em uma família burguesa, reinam uma igualdade
vincular seu estilo de vida à natureza e ao
teórica (formal, abstrata, contratual) e uma
natural. Efetiva e paradoxalmente, a burguesia
desigualdade prática entre seus membros; a
tem mais contatos com a “natureza” (por meio
forma jurídica e moral recobre o poder real do
do esporte, viagens, lazeres prolongados) do
dinheiro, da herança, da função retribuída
que as outras classes. Sob o matiz da natureza
exteriormente; uma liberdade abstrata, mas não
e do natural, a burguesia conseguiu
Capítulo IV- Psicologia das Classes Sociais, pp. 21 - 41 35

completamente fictícia se exerce em uma o patriarca, o cavaleiro, o condottière, etc. Esse


situação comportando toda sorte de limitações, misto de imitação e de originalidade a todo preço
pressões, coações, permanências, convenções tem um nome: o esnobismo. Na psicologia das
e conflitos inevitáveis. Em um sentido bastante classes sociais, o esnobismo tem uma
forte da palavra “símbolo”, seu sentido original, importância incontestável. Essas classes se
pode-se dizer que a família burguesa simboliza temem, se desprezam, se combatem, e se imitam
o conjunto da sociedade burguesa; isto é, a (no seio da sociedade burguesa). A burguesia
sociedade dominada pela burguesia, imita a aristocracia; as classes médias e a
economicamente, politicamente e pequena-burguesia copiam a burguesia. O
ideologicamente. proletariado, enquanto influenciado pela classe
dominante, tem o papel irrisório do último vagão
b) Os traços psíquicos gerais da classe
em um trem. Há uma imitação de classe, da qual
e da família concentram-se, por sua vez, neste
o esnobismo é o elemento motor.
ponto focal: a mulher. A mulher da burguesia é
mais burguesa do que o homem da burguesia. A imitação de classe vai tão longe a
Ela leva ao extremo as qualidades, os defeitos, ponto de as classes inferiores não saberem mais
os elementos constitutivos e os conflitos distinguir entre as necessidades e satisfações
internos do psiquismo de classe. Ela os simboliza artificiais – resultando da imitação – e as
e constataremos que a mulher proletária resume necessidades reais.
e leva ao extremo, em sua vida prática e em
seu psiquismo, os traços específicos da classe III- Psicologia coletiva da classe operária.
trabalhadora). Esse fenômeno é ocultado por
Por contraste, podemos supor que o
outros fenômenos, por aparências. A mulher que
indivíduo proletário ignora a casuística e a
concentra as marcas de sua classe é,
sofística dos “enquanto...”. Podemos prever que
aparentemente, mais isolada e menos envolvida
ele não atribui suas qualidades e atividades a
na vida da sociedade, do que o homem; o
um “eu” inacessível, incomunicável,
psicólogo pode tomar esta aparência por uma
transcendente. Ele está no que faz, gestos, atos,
realidade, esquecendo-se do processo dialético
produção e produtos. Ele tende a escapar do
constitutivo da interioridade. A mulher muda de
que chamamos de análise efetiva, teórica e
classe mais facilmente do que o homem; ela
prática, operada pela época burguesa sobre os
refrata todas as contradições e conflitos da
elementos da realidade humana. O proletário
classe, apesar de parecer sua solução viva, em
detém uma unidade, possivelmente menos
carne e osso. Revelando essas aparências,
diferenciada do que a personalidade burguesa,
constatamos que a sócio-psicologia das classes
mais real, mesmo se sua vida é efetivamente
leva à psicologia das mulheres.
separada pelas circunstâncias externas (vida de
Essa análise não esgota o psiquismo de trabalho na empresa, vida familiar, atividades
classe da burguesia. Uma certa impotência de lazer). Isto não significa que ele se atribua
criadora no domínio ético (dissimulada sob o conscientemente os traços de sua classe e que
fetichismo da ordem moral) apresenta, ele possa se expor claramente: “Sim, eu sou
particularmente, conseqüências ainda não um proletário, e eis o que isto significa...”. Essa
descritas. A burguesia não pára de imitar. A consciência de classe, provavelmente, nunca
velha sociologia da imitação, juntamente com o existiu. Assim posta, a questão só tem sentido
estudo empírico dos “modelos” e dos “papéis”, em casos-limite, e, precisamente, para aqueles
teria aqui algo a dizer. Na arte, como na moral, que superam a situação do proletário, porque
pode-se reconstituir a recepção burguesa dos tomaram consciência: os militantes sindicais ou
modelos anteriores ou exteriores. O burguês políticos. Quanto ao indivíduo caído no “lumpem-
individual imitou e ainda imita o fidalgote proletariado”, acontece de exagerar até à
provinciano, o príncipe, o rei, o gentleman-farmer, caricatura os traços proletários, ou assim
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considerados, pois ele se sente desclassificado e suas formas de consciência, ela enfatizava
e se esforça por encontrar uma consistência e unicamente o trabalho. Ela se percebia,
um vínculo. O método subjetivo (entrevistas, essencialmente, como trabalhadora. Quando ela
questionários) é, aqui, particularmente suspeito. não era mais homogênea do que é hoje (pois
Retomemos a análise dialética. O ela mal se diferenciava do artesanato e dos
proletariado e o proletário se reúnem, como tais, ofícios organizados), ela se acreditava
direta e imediatamente, nas três fontes (ou homogênea. Nesse período, ela detinha uma
dimensões, ou fundamentos) do psiquismo certa “consciência de classe”, no sentido
humano: necessidade, trabalho, fruição. O tradicional do termo. Até em suas maneiras e
proletário trabalha e percebe como uma seu costume, o proletário se proclamava
evidência a exigência individual e social do “trabalhador”. Sancionando inconscientemente,
trabalho. Quanto à necessidade, ele a ressente, isto é, em boa consciência, a unilateralidade,
mais vivamente que qualquer outra classe, como ele a acentuava, tipificava-a, transformava-a em
falta ou como exigência. Enfim, o proletariado modelo moral (o bom e honesto trabalhador).
como classe e o proletário como indivíduo Nessa consciência de classe entravam
precisaram ou precisam, lenta e dificilmente, elementos diversos: medo e sentimento de
conquistar a fruição como satisfação da insegurança, humilhação e resignação, e
necessidade e recompensa do trabalho. Eles também um grande sentimento de dignidade
passam, forçosamente, pelos intermediários – relativa ao labor, ao ofício, ao trabalho bem feito.
venda da força de trabalho àqueles que detêm Insistia-se, então (o proletariado e seus porta-
os meio de produção; pagamento em dinheiro vozes), sobre o lado carente da classe, sobre a
pelo tempo de trabalho e pelo tempo fornecido; pobreza, a falta, a necessidade não-satisfeita,
mercado –, para atingir satisfações na vida e a ausência de necessidades.
familiar ou nos lazeres. A fruição obtida aparece Hoje, a situação mudou nos países
para o proletário tanto mais preciosa que industrializados. Mais do que nunca, a classe
verdadeiramente ganha, simultaneamente, pelo operária apresenta a totalidade, a plenitude das
trabalho, pela reivindicação, pela ação sindical dimensões humanas. Ela se torna portadora de
e política. Para o proletariado como classe e para uma reivindicação total, que engloba, e até
o proletário individual, a fruição é, pois, bem guarda em primeiro plano, as questões relativas
mais do que o simples prazer ou a supressão ao trabalho: salários e retribuição, organização
de uma necessidade. e proteção do trabalho. Contudo, ela ultrapassa,
O psiquismo de classe do proletariado cada vez mais, o econômico propriamente dito;
pode, então, ser considerado como fenômeno ela envolve a organização de toda a vida
humano total. A alienação, neste caso, não cotidiana, a vida familiar, a habitação, o habitat,
comporta a ausência de uma dimensão. A a vida da cidade e da sociedade, o ensino, a
necessidade pode se atrofiar por falta de cultura e a vida moral, os lazeres, etc. Esse
satisfação, ou não atingir o nível que seria processo não é simples, mas singularmente
possível pelo desenvolvimento da sociedade, da contraditório. É verdade que o trabalho passa
cultura, da civilização; mas ela existe mesmo por uma fragmentação extrema e por formas
assim. O trabalho alienante e alienado não mais alienantes e alienadas do que nunca. É
perde, por isso, seu significado de força também verdade que a dignidade do ofício e do
criadora. Enfim, se o proletário não evita as trabalho qualificado se esvai, e que o aumento
fruições artificiais e os estereótipos vindos de das necessidades acarreta, para um
fora, esta artificialidade não o leva ao sentido determinado nível de vida, opções mais e mais
humano da satisfação. penosas. Jamais se levou tão longe a análise
efetiva, a dispersão, a segregação, o
Quando a classe operária se situava à
deslocamento dos elementos da totalidade
margem da sociedade global, por sua vida real
humana, os gestos do trabalho em grupos,
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idades, sexos. Daí resultando que jamais tenha do orçamento doméstico), a mulher proletária
sido tão forte a exigência de síntese e de escapa, parcialmente, dos malefícios da divisão
totalidade concreta pretendidas pela classe extrema do trabalho.
operária. É ainda verdade que variadas As transformações da vida social
correntes contrárias se lhe opõem. Ao mesmo reagem, simultaneamente, sobre os tipos de
tempo, ela ganha uma consciência mais família, suas estruturas internas e seus conflitos.
profunda daquilo que representa - porque, na Na sociedade burguesa, a família operária está
sociedade global, ela o “é” -, e também do que na vanguarda; ela realiza, neste nível, uma
busca e quer: a superação de suas alienações. democracia concreta: tendência à igualdade
Na classe operária, o psiquismo de prática entre seus membros, laços afetivos em
classe se transforma, debaixo de nossos olhos. substituição aos laços contratuais abstratos e
Alguns acreditam em seu obscurecimento, e até aos bens de interesse brutal. Se ela não escapa
no desaparecimento da classe e também da às contradições da sociedade global (burguesa),
consciência de classe, porque ela deixa de ser ela tende, na “vida privada”, a resolvê-las em
uma consciência de classe isolada para tornar- sua escala, a das relações diretas de pessoa a
se o que ela era virtualmente: consciência e pessoa. Nesta escala, a prática social é mais
reivindicação de totalidade. Um exame atento, acessível e mais maleável, para o pensamento
que leva em conta a história, a economia e as e a aspiração, do que nas escalas mais amplas.
aspirações que ultrapassam o econômico A família burguesa, principalmente na burguesia
(portanto, sociais, morais e psíquicas) dissipa liberal, busca, às vezes, acompanhar a família
tais interpretações. Dentre esses intérpretes, operária nesta via; ela recebe dela um estímulo,
uns pensam que o proletariado desapareceu mas não chega a segui-lo. É conveniente não
junto com a consciência de classe subestimar esses fenômenos, e tampouco
“trabalhadora”; outros tendem a manter o superestimá-los; a família operária constitui uma
proletariado na perspectiva, concepção do realidade original - porém tende-se a um
mundo, ou visão unilateral, de “classe moralismo insustentável, quando se apresenta
trabalhadora”. O marxismo dogmático conserva esta originalidade como um ingresso prático na
um esquema ideológico superado pela prática “concepção proletária do mundo”. Novas
social: pelo próprio proletariado em sua práxis contradições aparecem na família assim
(o que propõe questões que fogem ao nosso estabilizada e renovada. Em particular, o papel
âmbito). da mulher aí se torna predominante e
A mulher proletária condensa os traços esmagador, já que ela é, simultaneamente, a
antigos e novos do psiquismo de classe. De chave-mestra, o pivô, o centro afetivo e ativo,
modo mais profundo que o homem, ela o suporte, e o sustento quase total da coesão
experimenta as dimensões da totalidade social, do grupo. Essa promoção não acontece,
com seus aspectos negativos e positivos: contudo, sem contrapartidas, tensões e
aumento das necessidades, trabalho problemas.
extenuante e fragmentado, exigência das
satisfações na vida familiar e no lazer. Sobre IV- Psicologia coletiva dos camponeses
ela pesa a demanda de opções muito diferentes
Uma imensa literatura descreveu, de
daquelas de que se encarrega a mulher
modo mais ou menos exato, o psiquismo
burguesa: ela deve escolher no âmbito da
particular dos camponeses. Como se trata de
satisfação de necessidades igualmente vitais,
fenômenos psíquicos tendo um caráter de
que raramente alcançam o nível psíquico da livre
imediaticidade (relações diretas com a natureza
e plena fruição. Se o peso da prática social recai
exterior e fisiológica; relações diretas entre
sobre ela, seu papel aumenta. A despeito de
pessoas, com um mínimo de intermediários;
suas responsabilidades, ou por causa delas
transmissão oral do saber adquirido;
(trabalho, administração do lar, filhos, gestão
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predominância do sensível, da imagem e do característicos do psiquismo. A confiança tende


gesto, sobre o conceito, etc.), tal caráter a se reportar às técnicas recentes e ao
apresenta uma conseqüência: as sentimento de incerteza na sociedade global,
particularidades, incluindo o pitoresco que se no mercado e seus acasos especulativos. O fim
junta ao primado do particular, variam com as da comunidade e do “modo de ser” camponês
condições locais e territoriais, os países, os é acompanhado de inquietude, de
climas, as etnias, as produções, as camadas desencantamento, de perturbações. A conquista
sociais. do ofício de camponês (enquanto no setor
Os camponeses nada têm em comum industrial o ofício está em declínio) não se dá
com uma classe específica e homogênea. sem dificuldades. A ele não tem acesso quem
Segundo Marx e os marxistas, os camponeses quer. É preciso, antes, um mínimo de terras e
só constituem uma classe em condições e de disponibilidades financeiras. O ofício de
conjunturas históricas determinadas: luta camponês exige conhecimentos e atividades
comum contra os feudais, ou contra um múltiplas; ele não entra na divisão do trabalho,
imperialismo exterior. Salvo essas conjunturas, no sentido industrial. A transição do modo de
o campesinato não apresenta uma estrutura de ser ao ofício estabelece inúmeros problemas
classe. Os trabalhadores agrícolas têm traços psíquicos e morais, assim como a migração do
proletários, aos quais se acrescentam seus camponês para a cidade; ele sabe mal escolher,
traços próprios. Os camponeses das camadas optar, definir sua ação em função de
intermediárias, produzindo para o mercado e possibilidades variadas; e isto porque ele
dependendo dele, têm pontos comuns com a continua a ser um homem dos ritmos de longos
pequena-burguesia (artesanal e comercial). períodos e continuidades (não digamos rotina,
Quanto aos grandes produtores agrícolas, e o que é bastante diferente). Ele se adapta, como
mesmo fazendeiros, eles fazem parte da se diz, mas não sem esforço.
burguesia. Certos traços psicológicos tradicionais
Não é preciso retornar à sociologia e à dos camponeses se perpetuam, até na transição
psicologia da comunidade camponesa atual para uma produção agrícola industrializada
tradicional, com seus tipos de família patriarcal. (pela via da grande empresa, ou pela da
Ela é pouco mais ou menos dissoluta, apesar cooperação). Particularmente, o psiquismo
de ainda constituir a base histórica e sociológica continua mal se distinguindo da ideologia, e dos
sobre a qual se desenvolvem as variedades elementos sensíveis e sensoriais – sentimentos,
atuais de psiquismo no campesinato. Nesse emoções, imagens -, que mal se diferenciam
quadro, hoje manifesto, mas que deixa entre si, assim como dos conceitos. A intuição
numerosas sobrevivências o modo de ser de uma ordem eterna das coisas é substituída
camponês encerrava um conflito fundamental: pela percepção confusa do acaso, da
de um lado, ele se compunha de certeza e instabilidade, da mistura entre sorte e azar; a
confiança numa ordem estável da natureza e visão de um mundo submetido a ritmos e
da comunidade, num mundo limitado e orgânico, regularidades dá lugar àquela de um caos
num trabalho assumido sob a proteção de forças regido por forças gigantes e absurdas (os
obscuras, as dos velhos, dos mortos e das “grandes” e os “enormes”, o Estado, etc.). Na
divindades; de outro lado, esse psiquismo França, o camponês atual não sabe mais
comportava um temor eterno: a ordem, sempre exatamente quais são suas necessidades; ele
ameaçada, podia desabar; as forças maléficas conhece mal seu trabalho, e aspira a fruições
podiam arrebatá-la; o mundo “estranho”, em que lhe escapam. Aí estão os sintomas de uma
torno da comunidade, ameaçava-a. desordem profunda do psiquismo, mais do que
de um psiquismo de classe. A análise sociológica
A dissolução desse “mundo camponês”
dos camponeses em outros países nos escapa.
deslocou, sem destruí-los, os traços
No que se refere ao campesinato, seria
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fácil verificar o que, precedentemente, foi economistas burgueses clássicos (Adam Smith),
anunciado sobre o papel efetivo e simbólico das foi um dos primeiros a mostrar a importância
mulheres. O peso das dificuldades camponesas dos “serviços”.
recai sobre elas, que, desse modo, tornam-se As classes médias apresentam formas
os elementos dinâmicos de transformação nos bastante variadas de individualismo. Um traço
campos, juntamente com os aspectos psicológico parece comum a essas formas: o
contraditórios desse fenômeno (adoção de caráter precisamente formal da individualidade,
novas técnicas, migração para a cidade, etc.). que se afirma como pode, e, freqüentemente,
fora de todo e qualquer conteúdo, seja no
V- Psicologia coletiva das classes médias trabalho, seja na qualidade ou quantidade da
fruição. A necessidade de afirmação torna-se
Sociólogos e psicólogos tendem a
uma necessidade abstrata, contrapartida moral
privilegiar tudo o que vem das classes médias,
e espiritual da necessidade de dinheiro, que tem
sem dúvida porque, freqüentemente, eles se
a mesma generalidade formal. Essa forma da
originam delas. A diversidade das camadas e
originalidade individual pode ser reconhecida
dos grupos, das atitudes e das opiniões, confere
entre indivíduos, aparentemente, bastante
uma impressão de riqueza (ideológica). Vê-se,
diferentes. Trata-se do sentido de uma
aí, mais facilmente, o futuro da classe operária
denominação irônica e profunda que se
e o próprio futuro da sociedade.
enriquece: a “areia humana”. Cada grão parece
Por outro lado, a crítica de direita e a se misturar aos outros, e, no entanto, cada grão
crítica de esquerda tendem a depreciar se acredita único. Com uma boa lupa, pode-se
exageradamente o que vem dessas classes. A descrever as originalidades de cada grão. A
primeira tende a considerar as classes médias massa é, ao mesmo tempo, poeirenta, disforme,
como subprodutos da história, os “Ersatz” impenetrável. Ela é massa, e sabe disto tanto
(“substitutos”; N. do T.) da aristocracia e da menos quanto ignora a sociabilidade
grande burguesia – o que não é inteiramente espontânea, e mesmo a sociabilidade
falso, pois a pequena-burguesia imita “as intencional.
classes médias superiores”, que, por sua vez,
Ainda que formal e negativa, ou antes,
copiam as camadas, castas ou classes mais
por ser formal e geral, essa individualidade
elevadas na sociedade hierarquizada em
oferece um protótipo do indivíduo na sociedade
classes. Quanto à crítica de esquerda –
industrial moderna – derivando daí seu interesse
revolucionária, proletária, marxista -, ela não
sociológico. Menos inserido que o indivíduo
tem nenhuma dificuldade em tirar partido de
proletário na totalidade social e menos portador
fatos análogos e em revelar as influências
de totalidade humana, mas menos disperso do
nefastas da grande burguesia sobre a pequena,
que o burguês em seus “enquanto...”, o indivíduo
assim como desta última sobre a classe operária.
das classes médias atinge, nas camadas não-
Objetivamente, as classes médias não parasitárias, uma certa unidade coerente entre
merecem nem tantas honras, nem essas a necessidade, a atividade (trabalho) e a
indignidades. Não é possível compreender e satisfação.
considerar do mesmo modo as camadas
Na sociedade capitalista, as classes
parasitárias das classes médias (aquelas que
médias e a pequena-burguesia servem de
incham o “terciário”, o aparelho de distribuição,
intermediárias entre a burguesia dominante e
a burocracia) e aquelas que se entregam aos
o conjunto das “massas populares”. Elas
trabalhos materialmente improdutivos, mas
transmitem os modos, as tendências, os
socialmente necessários, que os economistas
modelos. Esse papel comporta uma sociabilidade
chamam deploravelmente de “serviços”.
de um tipo particular: passivo, mas se
Lembremos, aqui, que Marx, criticando o
acreditando ativo e comunicativo. Entretanto,
fetichismo da produtividade material, nos
esse papel é atenuado a partir do momento em
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que os dirigentes podem endereçar-se as dificuldades, os problemas a curto e longo


diretamente a milhões de indivíduos, pelo rádio, prazo, as opções. Por exemplo, determinadas
pela televisão, e pela imprensa ilustrada. frações da classe operária tiveram que escolher,
A sócio-psicologia das classes médias durante os últimos anos, entre a preocupação
deveria insistir sobre a importância particular do com a estabilidade no emprego e a luta pelos
elemento subjetivo, junto com uma série de aumentos de salário, tanto no momento de uma
ilusões e de superficialidades: o maior de todos diversificação técnica dos postos e condições de
os papéis levados até às comédias sociais e às trabalho, como também naquele de uma
ficções – a importância dos prestígios, escalas desigualdade crescente de desenvolvimento
de preferências e distâncias sociais, no interior entre as empresas, as regiões, os setores
da massa da “areia humana”. industriais, os países. Opções difíceis, cujo
estudo detalhado mostraria in vivo o conflito
entre consciência de classe e psiquismo de
VI- Conclusões classe. Em certos casos, não é impossível falar
Existem, pois, os psicologismos de em uma sócio-patologia das classes e frações
classe, que nós buscamos situar em relação a de classes, na qual poderiam intervir conceitos
um fenômeno humano total, que é realizado novos, tais como os de vitalidade, choque
pelas classes, mutilando-o, relativamente. (stress), esquizoidia coletiva, etc.
Correntes psíquicas atravessam as Em resumo, no psiquismo de classe há
classes, e são mais observáveis na classe elementos conjunturais e elementos estruturais.
operária, que é dotada de uma sociabilidade Estes últimos são os mais duráveis, os mais
mais intensa e de uma prática social mais ativa. facilmente apreensíveis, aqueles que se referem
Todas as tonalidades afetivas aparecem, assim, mais diretamente à totalidade. Contudo, os
nas consciências coletivas das classes, sobre o aspectos conjunturais não têm importância
fundo da tonalidade social, nas relações da cada menor. Eles resultam da história e contribuem
classe com as outras (sendo que, para fazer a história. Aqui como acolá, o
freqüentemente, este “com” significa contra). estrutural é o que modifica, transforma ou rompe
A observação atenta dos psiquismos de o futuro.
classe mostra os conflitos internos ou externos,

Notas

1
Como o autor emprega as palavras leader (líder, espontânea ininterrupta da individualidade que
dirigente) e leadership (liderança, direção) em todos temos”; enquanto “o me representa a parte
inglês, elas serão mantidas nesse idioma, ao da individualidade que foi configurada ou moldada
longo do texto. (N. do T.). pela sociedade”. Cf. MEAD apud BERGER, P. & B.
2
O autor utiliza, em vários momentos do texto, os Socialização: como ser um membro da sociedade.
termos “m o i ” e “je”, referindo-se à In: FORACCHI, Marialice Mencarini & MARTINS,
individualidade. Tais termos serão aqui traduzidos, José de Souza (orgs.). Sociologia e Sociedade
respectivamente, por “me” e “eu”, com base na (leituras de introdução à Sociologia). Rio de
conceituação proposta por George Herbert Mead, Janeiro: LTC, 1994, capítulo IV/13, p. 211. (N. do
e trabalhada por Peter L. Berger e Brigitte Berger, T.).
segundo a qual “o eu representa a consciência
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