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21 - 41, 2005
* O capítulo Psychologie des Classes Sociales foi extraído da obra coletiva Traité de Sociologie II, sob a direção de Georges Gurvitch, publicada pela
PUF: Paris, 1968.
** Tradução feita por Ana Cristina Nasser - Professora Doutora em Sociologia pela FFLCH-USP
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“positividade” singular. E elementos negativos aparecendo, assim, como mediação (e não como
– ignorâncias, lacunas, oposições, conflitos – substância ou coisa) após sua imediatidade: a
contrariam essa positividade. O pensamento necessidade remete ao trabalho, que cria e
dialético e crítico oriundo de Marx trará, permite a fruição do objeto produzido ou da
portanto, importantes correções à teoria da obra criada; por sua vez, estimulado pela
“personalidade de base” - reflexão ou refração necessidade, o trabalho produz novas
individual da estrutura social global -; ou ainda, necessidades, confirmadas pela fruição; e,
à teoria dos “papéis sociais” considerados sobre assim, sucessivamente, em um movimento
o mesmo plano. Ao dogmatismo que perpétuo, que não tem nada de círculo vicioso,
determinava o psiquismo (do indivíduo e da mas que avança, lentamente ou aos saltos,
classe) unicamente pelas categorias seguindo uma espiral ascendente. Tratar-se-ia,
econômicas, bem como ao sectarismo da então, de uma realidade psíquica fundamental
“essência de classe” do indivíduo, evitaremos e de um fenômeno humano total, e não de uma
substituir as teorias sem contorno, realidade econômica unicamente econômica, ou
escamoteando as descontinuidades, os de uma realidade histórica unicamente
emaranhados de fatos positivos e de elementos histórica? Essa realidade psíquica tem uma
negativos, as ausências e as lacunas, e, relação com o econômico, o histórico e o social,
finalmente, os conflitos internos. sem se reduzir a eles.
Em um outro fragmento de O Capital, Por que essa indicação se encontra em
Marx evoca o conflito lancinante, que, em sua Marx, na crítica do Estado - noção, filosofia e
opinião, caracteriza a consciência burguesa (a prática? Porque esta crítica restitui a
do indivíduo e a da classe, uma na outra). Ela é tridimensionalidade do devir humano.
dilacerada, seja pela necessidade de acumular, A verdadeira crítica aponta a gênese
seja pelo desejo de fruição. A necessidade de interna da Santíssima Trindade. Ela descreve seu
acumular tem uma “base” econômica; é ela que nascimento - escreveu Marx, numa forma irônica,
encarna a categoria econômica, o imperativo do que concerne ao nosso assunto, mas o
capital. O desejo de fruição é individual, ultrapassa (Op. cit., p. 119 da trad. Ed. Costes).
“privado”; ele provém do fundamento vital, Assim, o Estado é primeiramente uma mediação
natural, da consciência humana. O conflito entre entre o individual e o social, entre o privado (os
essas duas aspirações constitui o “pecado interesses privados) e o público (interesse
original” da burguesia, experimentado por ela geral). Essa mediação se revela e se fetichiza,
no mais alto grau, quando de seus fundamentos torna-se um absoluto, e isto em uma sociedade
históricos (cf. principalmente O Capital, livro VII, na qual os intermediários podem conquistar e
23, p. 33 do Tomo III da trad. Roy, Ed. Sociales, manter privilégios. Em uma tal sociedade, a
1953). fetichização reage sobre aquilo de que procede.
Ao confrontarmos esses textos a outros Trata-se de um processo contínuo, que se
igualmente importantes, do mesmo autor, manifesta por múltiplas alienações; no nível
chegamos a uma idéia interessante, a das econômico, ocorre uma alienação
dimensões da consciência e do “ser humano”. particularmente forte e bem definida, a
Na Crítica à filosofia hegeliana do Estado, Marx reificação ou fetichização da mercadoria, do
examina três aspectos da individualidade não- dinheiro e do capital. Mas, na profundidade da
mutilada, no seio de uma totalidade social sociedade e das classes consideradas
também não-mutilada por um pensamento e psiquicamente, ocorre um processo de
uma ação unilaterais; esses três aspectos são: “unilateralização” (para arriscar um neologismo),
a necessidade, o trabalho, a fruição. O psiquismo sob o manto do Estado no qual as classes se
normal possui estes três atributos, estas três representam. Os três aspectos fundamentais do
dimensões. Cada uma delas tem uma realidade psiquismo humano se dissociam (ainda que na
própria, que, entretanto, remete às duas outras, realidade total da sociedade, eles permaneçam
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privação de sua vida “privada” por sua burguesia parecem, ao mesmo tempo, grandes
realização, etc.). Ocorre uma dupla projeção: da e impalpáveis, visíveis a olho nu e fugazes.
classe fora de seus membros, dos membros fora Duas “almas”, e apenas duas, habitam
da classe (e fora deles mesmos). o burguês. Falta-lhe uma dimensão: o trabalho,
A burguesia, como classe, ignora, conhecido e reconhecido na prática social, como
portanto, a comunicação e, mais ainda, a atividade produtiva, criadora do mundo humano.
comunidade e a comunhão. Ela só se aproxima O capitalista pode se comportar como homem
delas em condições ou momentos excepcionais, enérgico e ativo; ele pode atribuir à iniciativa
e contra uma classe contrária - outrora, a feudal; um valor eminente, prático, moral e mesmo
hoje, a classe operária. Normalmente, os metafísico; nos tempos áureos, ele conseguiu
membros dessa classe constituem grupos valorizar o trabalho como tarefa, labor, castigo;
restritos, especializados, intencionais (como os ele não o reconhece na práxis, como dimensão.
clubs, círculos ou sociedades diversas). Mesmo Duas “almas”, e apenas duas, habitam-no. Como
sendo a burguesia a classe dominante na Hércules, ele precisou e ainda precisa escolher
sociedade dita burguesa (ou capitalista), pode- entre a virtude e a volúpia, a abstinência (a
se prever que a sociabilidade espontânea seja economia) e a fruição, a moralidade e a
aí reduzida ao mínimo. As “relações” burguesas, imoralidade (uma complementar à outra). Ele
as redes de negócios, ou de amizade, ou de tem essa sorte e esse azar: escolher, optar,
interesses não têm grande coisa em comum com incessantemente. Assim, ele experimenta
a sociabilidade espontânea. Por que essa perpetuamente a liberdade – a sua -, e o destino
ausência? Apontemos algumas razões. A nosso na liberdade. Tanto uma alma quanto a outra o
ver, basta a falta de uma dimensão humana, arrebatam, após um cálculo mais ou menos
para que a comunicação seja comprometida, preciso e afinado. Tanto enquanto pai de família
para que a sociabilidade espontânea esteja querendo dar um dote às suas filhas, como
ausente e seja substituída por uma enquanto querendo aumentar sua empresa, o
sociabilidade intencional (com suas burguês quer “economizar”; e a economia
características: ritos, cerimonial, vocabulário, política, ciência da abstinência, é, enquanto tal,
jargões, trejeitos). No momento em que o a sua ciência. Por outro lado, enquanto homem,
fenômeno humano total é truncado, que uma esposo feliz ou amante, enquanto admirador dos
das dimensões desapareceu e deixou de existir objetos de arte ou de paisagens, o capitalista
– mesmo virtualmente -, a comunicação apenas quer gastar, consumir, usufruir. A necessidade e
ocorre por meio de convenções e símbolos, que a fruição se repartem nesses “enquanto...”; elas
não podem deixar de representar também a se confrontam neles, e aí lutam ou encontram o
mutilação. Para comunicar intencionalmente, é apaziguamento dos compromissos.
preciso exagerar. Em segundo lugar, a burguesia Na história, houve vários ascetismos ou
desempenha seu papel de classe (dominante) austeridades de classe. O ascetismo camponês,
na pessoa de seus membros, aos olhos das aquele das revoltas e das tentativas
outras classes, o que inibe a espontaneidade comunitárias, nada teve em comum com aquele
social. O papel individual deve mascarar o papel da acumulação capitalista, e tampouco com o
social e político, e, ao mesmo tempo, ordenar- ascetismo proletário revolucionário. O ascetismo
se e estilizar-se em função do papel social e burguês, desaparecido da prática, deixa marcas
político, acarretando, assim, uma série de na ideologia e na moral oficiais (sobretudo nos
contradições. Além disso, e finalmente, a países anglo-saxões). Os traços históricos
burguesia seguiu modelos que não saíram dela, particulares da burguesia francesa (seu
mas da classe que ela combateu: a aristocracia. ingresso no aparelho de Estado da monarquia;
De onde uma considerável importância da a rivalidade, no interior deste aparelho, com os
imitação e do esnobismo, fenômenos de classe. feudais – rivalidade esta que obrigava os
Paradoxalmente, os traços de classe da burgueses franceses tanto a opor suas virtudes
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aos vícios de seus senhores, quanto a rivalizar unicamente na fruição (ou na busca da fruição
com eles em luxo, fruição e imoralidade) foram “pura”), não repercute tão somente em escala
necessários para que os gastos luxuosos histórica e individual, na epopéia tragicômica da
tivessem partidários burgueses “progressistas”, classe burguesa. Ele reaparece em diferentes
desde o século XVIII. O materialismo burguês níveis e patamares. No nível da família,
foi uma filosofia da fruição (La Mettrie, Helvetius, poderíamos esboçar uma classificação ou uma
etc.). Antes de Veblen, ainda que com menos “tipificação”, não sem ironia, distinguindo as
detalhes precisos, Marx anunciou a inevitável famílias (burguesas) ascéticas e as famílias
passagem de uma economia burguesa - fundada desfrutadoras, as famílias avarentas e as
sobre a acumulação na austeridade, e pela pródigas; assim como há famílias tagarelas e
abstinência - para uma economia de desperdício famílias mudas, famílias empoladas e famílias
e de despesas suntuosas, sem que, para tanto, agitadas, fechadas e abertas, famílias sem
determinadas necessidades essenciais da lendas e famílias com seu folclore, etc. Esses
maioria das pessoas tivessem sido satisfeitas. tipos são associados e complementares, assim
A análise marxista nos parece mais como os tipos individuais, o asceta e o
penetrante que a de Max Weber. Desde a “belle desfrutador, o moralista e o imoral, o paternal e
époque”, falta ao homem da burguesia uma o cínico, etc. Certamente, as polarizações não
dimensão humana. A plenitude virtual foi ocorrem sem nuances intermediárias, podendo-
substituída por um conflito entre as duas partes se também passar de um tipo ao outro; os tipos
contraditórias desse homem mutilado, suas mudam segundo as frações da burguesia, os
duas “almas” (a palavra convém). Uma vez que países e regiões, as localidades. O mesmo
este conflito o corrói, e ele experimenta uma conflito reaparece, no interior do grupo familiar,
liberdade em sua mutilação, a da escolha, ele entre os membros: pais e filhos, filhos homens
necessita uma solução ilusória; ele busca uma e filhas mulheres, primogênitos e caçulas. Tanto
regra que o ajude a submeter o velho Adão à uns quanto os outros (ou tal outro) representam
necessidade livremente consentida; ele se dá o pólo da fruição ou o pólo da abstenção. Enfim,
uma compensação, uma recompensa. De Calvino no interior mesmo do indivíduo, o “me” e a
a Kant, filósofos e moralistas expuseram o consciência do outro, o ”eu”, o “me”, o nós,
drama dessa consciência e buscaram dar-lhe o confrontam-se, aliam-se, combatem entre si,
que ela reclama imperativamente. A ideologia encarnando o tema fundamental do conflito. Um
não é o conflito, nem a expressão lúcida do “eu” abstinente, econômico, até austero – um
conflito; ela traz uma solução fictícia, facilitando “me” pródigo e desfrutador – e eis o conflito
as escolhas e os sacrifícios, dissimulando as geral que repercute na escala do psiquismo
mutilações. Max Weber viu a ideologia melhor individual, tornando-se “moral”. Em toda parte,
do que a prática, e melhor do que o drama da dois “papéis”, dois “modelos” se enfrentam. A
consciência burguesa; em seus célebres ética familiar, assim como a ética social ou
estudos, ele reduziu a “alma” a uma única individual da burguesia, oscila entre esses pólos,
dimensão – a necessidade mantida enquanto e busca tanto romper quanto estabelecer um
necessidade, abstinência e privação -, em lugar compromisso. O mundo burguês, considerado
de enfatizar o conflito. Portanto, ele embotou a como tal, ou seja, o do desdém de todos por
contradição, atenuou o drama, e também a todos, é também aquele em que o dever, a
comédia burguesa. Ele ratificou a família, a paternidade, a maternidade, a
unilateralidade, em vez de apreender o fraternidade, o amor absoluto, apresentam-se
dinamismo das três dimensões, porque ele como valores supremos. Isso sem contar a
manejava ideologicamente o método sociológico liberdade. E não é, como se costuma pensar,
e histórico, superestimando o elemento cultural. uma hipocrisia. É a “estrutura” de um mundo
social ambíguo, a ambivalência se definindo
Há quatro séculos, o conflito duradouro
sempre como conjunto de contradições
entre as duas almas, com sua resolução final
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considerados, pois ele se sente desclassificado e suas formas de consciência, ela enfatizava
e se esforça por encontrar uma consistência e unicamente o trabalho. Ela se percebia,
um vínculo. O método subjetivo (entrevistas, essencialmente, como trabalhadora. Quando ela
questionários) é, aqui, particularmente suspeito. não era mais homogênea do que é hoje (pois
Retomemos a análise dialética. O ela mal se diferenciava do artesanato e dos
proletariado e o proletário se reúnem, como tais, ofícios organizados), ela se acreditava
direta e imediatamente, nas três fontes (ou homogênea. Nesse período, ela detinha uma
dimensões, ou fundamentos) do psiquismo certa “consciência de classe”, no sentido
humano: necessidade, trabalho, fruição. O tradicional do termo. Até em suas maneiras e
proletário trabalha e percebe como uma seu costume, o proletário se proclamava
evidência a exigência individual e social do “trabalhador”. Sancionando inconscientemente,
trabalho. Quanto à necessidade, ele a ressente, isto é, em boa consciência, a unilateralidade,
mais vivamente que qualquer outra classe, como ele a acentuava, tipificava-a, transformava-a em
falta ou como exigência. Enfim, o proletariado modelo moral (o bom e honesto trabalhador).
como classe e o proletário como indivíduo Nessa consciência de classe entravam
precisaram ou precisam, lenta e dificilmente, elementos diversos: medo e sentimento de
conquistar a fruição como satisfação da insegurança, humilhação e resignação, e
necessidade e recompensa do trabalho. Eles também um grande sentimento de dignidade
passam, forçosamente, pelos intermediários – relativa ao labor, ao ofício, ao trabalho bem feito.
venda da força de trabalho àqueles que detêm Insistia-se, então (o proletariado e seus porta-
os meio de produção; pagamento em dinheiro vozes), sobre o lado carente da classe, sobre a
pelo tempo de trabalho e pelo tempo fornecido; pobreza, a falta, a necessidade não-satisfeita,
mercado –, para atingir satisfações na vida e a ausência de necessidades.
familiar ou nos lazeres. A fruição obtida aparece Hoje, a situação mudou nos países
para o proletário tanto mais preciosa que industrializados. Mais do que nunca, a classe
verdadeiramente ganha, simultaneamente, pelo operária apresenta a totalidade, a plenitude das
trabalho, pela reivindicação, pela ação sindical dimensões humanas. Ela se torna portadora de
e política. Para o proletariado como classe e para uma reivindicação total, que engloba, e até
o proletário individual, a fruição é, pois, bem guarda em primeiro plano, as questões relativas
mais do que o simples prazer ou a supressão ao trabalho: salários e retribuição, organização
de uma necessidade. e proteção do trabalho. Contudo, ela ultrapassa,
O psiquismo de classe do proletariado cada vez mais, o econômico propriamente dito;
pode, então, ser considerado como fenômeno ela envolve a organização de toda a vida
humano total. A alienação, neste caso, não cotidiana, a vida familiar, a habitação, o habitat,
comporta a ausência de uma dimensão. A a vida da cidade e da sociedade, o ensino, a
necessidade pode se atrofiar por falta de cultura e a vida moral, os lazeres, etc. Esse
satisfação, ou não atingir o nível que seria processo não é simples, mas singularmente
possível pelo desenvolvimento da sociedade, da contraditório. É verdade que o trabalho passa
cultura, da civilização; mas ela existe mesmo por uma fragmentação extrema e por formas
assim. O trabalho alienante e alienado não mais alienantes e alienadas do que nunca. É
perde, por isso, seu significado de força também verdade que a dignidade do ofício e do
criadora. Enfim, se o proletário não evita as trabalho qualificado se esvai, e que o aumento
fruições artificiais e os estereótipos vindos de das necessidades acarreta, para um
fora, esta artificialidade não o leva ao sentido determinado nível de vida, opções mais e mais
humano da satisfação. penosas. Jamais se levou tão longe a análise
efetiva, a dispersão, a segregação, o
Quando a classe operária se situava à
deslocamento dos elementos da totalidade
margem da sociedade global, por sua vida real
humana, os gestos do trabalho em grupos,
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idades, sexos. Daí resultando que jamais tenha do orçamento doméstico), a mulher proletária
sido tão forte a exigência de síntese e de escapa, parcialmente, dos malefícios da divisão
totalidade concreta pretendidas pela classe extrema do trabalho.
operária. É ainda verdade que variadas As transformações da vida social
correntes contrárias se lhe opõem. Ao mesmo reagem, simultaneamente, sobre os tipos de
tempo, ela ganha uma consciência mais família, suas estruturas internas e seus conflitos.
profunda daquilo que representa - porque, na Na sociedade burguesa, a família operária está
sociedade global, ela o “é” -, e também do que na vanguarda; ela realiza, neste nível, uma
busca e quer: a superação de suas alienações. democracia concreta: tendência à igualdade
Na classe operária, o psiquismo de prática entre seus membros, laços afetivos em
classe se transforma, debaixo de nossos olhos. substituição aos laços contratuais abstratos e
Alguns acreditam em seu obscurecimento, e até aos bens de interesse brutal. Se ela não escapa
no desaparecimento da classe e também da às contradições da sociedade global (burguesa),
consciência de classe, porque ela deixa de ser ela tende, na “vida privada”, a resolvê-las em
uma consciência de classe isolada para tornar- sua escala, a das relações diretas de pessoa a
se o que ela era virtualmente: consciência e pessoa. Nesta escala, a prática social é mais
reivindicação de totalidade. Um exame atento, acessível e mais maleável, para o pensamento
que leva em conta a história, a economia e as e a aspiração, do que nas escalas mais amplas.
aspirações que ultrapassam o econômico A família burguesa, principalmente na burguesia
(portanto, sociais, morais e psíquicas) dissipa liberal, busca, às vezes, acompanhar a família
tais interpretações. Dentre esses intérpretes, operária nesta via; ela recebe dela um estímulo,
uns pensam que o proletariado desapareceu mas não chega a segui-lo. É conveniente não
junto com a consciência de classe subestimar esses fenômenos, e tampouco
“trabalhadora”; outros tendem a manter o superestimá-los; a família operária constitui uma
proletariado na perspectiva, concepção do realidade original - porém tende-se a um
mundo, ou visão unilateral, de “classe moralismo insustentável, quando se apresenta
trabalhadora”. O marxismo dogmático conserva esta originalidade como um ingresso prático na
um esquema ideológico superado pela prática “concepção proletária do mundo”. Novas
social: pelo próprio proletariado em sua práxis contradições aparecem na família assim
(o que propõe questões que fogem ao nosso estabilizada e renovada. Em particular, o papel
âmbito). da mulher aí se torna predominante e
A mulher proletária condensa os traços esmagador, já que ela é, simultaneamente, a
antigos e novos do psiquismo de classe. De chave-mestra, o pivô, o centro afetivo e ativo,
modo mais profundo que o homem, ela o suporte, e o sustento quase total da coesão
experimenta as dimensões da totalidade social, do grupo. Essa promoção não acontece,
com seus aspectos negativos e positivos: contudo, sem contrapartidas, tensões e
aumento das necessidades, trabalho problemas.
extenuante e fragmentado, exigência das
satisfações na vida familiar e no lazer. Sobre IV- Psicologia coletiva dos camponeses
ela pesa a demanda de opções muito diferentes
Uma imensa literatura descreveu, de
daquelas de que se encarrega a mulher
modo mais ou menos exato, o psiquismo
burguesa: ela deve escolher no âmbito da
particular dos camponeses. Como se trata de
satisfação de necessidades igualmente vitais,
fenômenos psíquicos tendo um caráter de
que raramente alcançam o nível psíquico da livre
imediaticidade (relações diretas com a natureza
e plena fruição. Se o peso da prática social recai
exterior e fisiológica; relações diretas entre
sobre ela, seu papel aumenta. A despeito de
pessoas, com um mínimo de intermediários;
suas responsabilidades, ou por causa delas
transmissão oral do saber adquirido;
(trabalho, administração do lar, filhos, gestão
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fácil verificar o que, precedentemente, foi economistas burgueses clássicos (Adam Smith),
anunciado sobre o papel efetivo e simbólico das foi um dos primeiros a mostrar a importância
mulheres. O peso das dificuldades camponesas dos “serviços”.
recai sobre elas, que, desse modo, tornam-se As classes médias apresentam formas
os elementos dinâmicos de transformação nos bastante variadas de individualismo. Um traço
campos, juntamente com os aspectos psicológico parece comum a essas formas: o
contraditórios desse fenômeno (adoção de caráter precisamente formal da individualidade,
novas técnicas, migração para a cidade, etc.). que se afirma como pode, e, freqüentemente,
fora de todo e qualquer conteúdo, seja no
V- Psicologia coletiva das classes médias trabalho, seja na qualidade ou quantidade da
fruição. A necessidade de afirmação torna-se
Sociólogos e psicólogos tendem a
uma necessidade abstrata, contrapartida moral
privilegiar tudo o que vem das classes médias,
e espiritual da necessidade de dinheiro, que tem
sem dúvida porque, freqüentemente, eles se
a mesma generalidade formal. Essa forma da
originam delas. A diversidade das camadas e
originalidade individual pode ser reconhecida
dos grupos, das atitudes e das opiniões, confere
entre indivíduos, aparentemente, bastante
uma impressão de riqueza (ideológica). Vê-se,
diferentes. Trata-se do sentido de uma
aí, mais facilmente, o futuro da classe operária
denominação irônica e profunda que se
e o próprio futuro da sociedade.
enriquece: a “areia humana”. Cada grão parece
Por outro lado, a crítica de direita e a se misturar aos outros, e, no entanto, cada grão
crítica de esquerda tendem a depreciar se acredita único. Com uma boa lupa, pode-se
exageradamente o que vem dessas classes. A descrever as originalidades de cada grão. A
primeira tende a considerar as classes médias massa é, ao mesmo tempo, poeirenta, disforme,
como subprodutos da história, os “Ersatz” impenetrável. Ela é massa, e sabe disto tanto
(“substitutos”; N. do T.) da aristocracia e da menos quanto ignora a sociabilidade
grande burguesia – o que não é inteiramente espontânea, e mesmo a sociabilidade
falso, pois a pequena-burguesia imita “as intencional.
classes médias superiores”, que, por sua vez,
Ainda que formal e negativa, ou antes,
copiam as camadas, castas ou classes mais
por ser formal e geral, essa individualidade
elevadas na sociedade hierarquizada em
oferece um protótipo do indivíduo na sociedade
classes. Quanto à crítica de esquerda –
industrial moderna – derivando daí seu interesse
revolucionária, proletária, marxista -, ela não
sociológico. Menos inserido que o indivíduo
tem nenhuma dificuldade em tirar partido de
proletário na totalidade social e menos portador
fatos análogos e em revelar as influências
de totalidade humana, mas menos disperso do
nefastas da grande burguesia sobre a pequena,
que o burguês em seus “enquanto...”, o indivíduo
assim como desta última sobre a classe operária.
das classes médias atinge, nas camadas não-
Objetivamente, as classes médias não parasitárias, uma certa unidade coerente entre
merecem nem tantas honras, nem essas a necessidade, a atividade (trabalho) e a
indignidades. Não é possível compreender e satisfação.
considerar do mesmo modo as camadas
Na sociedade capitalista, as classes
parasitárias das classes médias (aquelas que
médias e a pequena-burguesia servem de
incham o “terciário”, o aparelho de distribuição,
intermediárias entre a burguesia dominante e
a burocracia) e aquelas que se entregam aos
o conjunto das “massas populares”. Elas
trabalhos materialmente improdutivos, mas
transmitem os modos, as tendências, os
socialmente necessários, que os economistas
modelos. Esse papel comporta uma sociabilidade
chamam deploravelmente de “serviços”.
de um tipo particular: passivo, mas se
Lembremos, aqui, que Marx, criticando o
acreditando ativo e comunicativo. Entretanto,
fetichismo da produtividade material, nos
esse papel é atenuado a partir do momento em
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Notas
1
Como o autor emprega as palavras leader (líder, espontânea ininterrupta da individualidade que
dirigente) e leadership (liderança, direção) em todos temos”; enquanto “o me representa a parte
inglês, elas serão mantidas nesse idioma, ao da individualidade que foi configurada ou moldada
longo do texto. (N. do T.). pela sociedade”. Cf. MEAD apud BERGER, P. & B.
2
O autor utiliza, em vários momentos do texto, os Socialização: como ser um membro da sociedade.
termos “m o i ” e “je”, referindo-se à In: FORACCHI, Marialice Mencarini & MARTINS,
individualidade. Tais termos serão aqui traduzidos, José de Souza (orgs.). Sociologia e Sociedade
respectivamente, por “me” e “eu”, com base na (leituras de introdução à Sociologia). Rio de
conceituação proposta por George Herbert Mead, Janeiro: LTC, 1994, capítulo IV/13, p. 211. (N. do
e trabalhada por Peter L. Berger e Brigitte Berger, T.).
segundo a qual “o eu representa a consciência
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