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«: I.

ihr:lirc Arthêrne Fayard, 1995

Tirulo do original francês:


1,l'S t nétatnorphoses de Ia question sociale

Direitos de publicação em língua portuguesa no Brasil:


1998, Editora Vozes Ltda.
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25689-900 Petrópolis, RJ Dedico este trabalho à memória de meus pais e àquelas e àqueles
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Brasil
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ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem foram os livros, devo muito ao testemunho dos que, no dia a dia,
permissão escrita da Editora. enfrentam a miséria do mundo. Minhas atividades no Grupo de
Análise do Social e da Sociabilidade e no Centro de Estudos dos
Editoraçâo e org. literária: Enio Paulo Giachini
Movimentos Sociais, bem como meus seminários na École des
Capa e projeto gráfico: Mariana Fix e Pedra Fiori Arantes
Hautes Études en Sciences Sociales, deram-me a oportunidade
ISBN 978-85-326-1954-9 de trocas fecundas com colegas e estudantes. Levei em conta ob-
servações e críticas das pessoas que se dispuseram a ler este traba-
lho antes de estar concluído, em especial Bernard Assicot, Colette
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Bec, Monique Benard, Cbristine Filippi, [ean-François Laé, Cathe-
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) rine Mevel, Numa Murard, Albert Ogien, Giouanna Procacci,
Christian Topalou. [acques Donzelot exerceu uma vigilância crí-
Castel, Roberr tica durante todo o trabalho, e a organização da obra deve muito
As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário í a nossas discussões. Agradeço igualmente a Pierre Birnbaum e a
Robert Castel ; tradução de Iraci D. Poleti. 8. ed. Perrópolis, RJ : Denis Maraval que acolheram este livro com presteza e simpatia.
Vozes, 2009.
Obrigado também a Emma Goyon por sua incansável paciência
Título original: Les métamorphoses de Ia question sociale. para digitar as múltiplas versões do manuscrito.
1. Desemprego 2. Salários 3. Sociologia industrial 4. Trabalho eI
classes trabalhadoras I. Título.
I
97-5815._._ ...._ .. _. ._._ .. CDD-30636J

índices para catálogo sistemático:


I. Salários : Questão social: Sociologia do trabalho .306.36

Edirado conforme o novo acordo ortográfico.

!-:sI,· livro foi composto e impresso pela Editora Vozes trela.


VII - A sociedade salarial

Condição proletária, condição operária, condição salari-


al: três formas dominantes de cristalização das relações de tra-
balho na sociedade industrial, e também três modalidades das
relações que o mundo do trabalho mantém com a sociedade
global. Se, esquematicamente falando, elas se sucedem, seu e:11-
cadeamento não é linear. Quanto à questão aqui levantada do
estatuto da condição de assalariado enquanto suporte de idcn-
tidade social e de integração comunitária, apresentam sobrem
do três de suas figuras irredutíveis.
A condição proletária representa uma situação de qU:1St'
exclusão do corpo social. O proletário é um elo essencial no
processo de industrialização nascente, mas está condenado :1
trabalhar para se reproduzir e, segundo a expressão já citnd.i
de Auguste Comte, "acampa na sociedade sem se encaixar",
Sem dúvida, não viria ao espírito de nenhum "burguês" dos
inícios da industrialização - tampouco, em sentido inverso,
ao de nenhum proletário - comparar sua situação com a d()s
operários das primeiras concentrações industriais quanto .u )
modo de vida, habitação, educação, lazer ... Mais do que da hi«
rarquia, trata-se então de considerar um mundo clivado pd:1
dupla oposição do capital e do trabalho, da seguridaclc-pro
priedade e da vulnerabilidade de massa. Clivado mas t:ll11IH'" 1
ameaçado. A "questão social" é então, exatamente, al(IIILI'I.,
de consciência de que essa fratura central, posta em n'I1:I;1I 1.1

11 ",
AS METAMORFOSES NA QUESTÃO SOCIAL
Vll - A SOCIEDADE SALARIAL

vés das descrições do pauperismo, pode levar à dissociação i ntcgração é instável. O conjunto dos trabalhadores pode se con-
do conjunto da sociedade.'.
tentar com estar acantonado em tarefas de execução, mantido à
A relação da condição operária com a sociedade conside- distância do poder e das honras, enquanto a sociedade industrial
rada como um todo é mais complexa. Constituiu-se uma nova desenvolve uma concepção demiúrgica do trabalho? Quem
relação salarial e, através dela, o salário deixa de ser a retribui- cria a riqueza social e quem dela se apropria indevidamente? O
ção pontual de uma tarefa. Assegura direitos, dá acesso a sub- momento em que se estrutura a classe operária é também aque-
venções extratrabalho (doenças, acidentes, aposentadoria) e Ic em que se afirma a consciência de classe: entre "eles" e "nós",
permite uma participação ampliada na vida social: consumo, nada está definitivamente decidido. .
habitação, instrução e até mesmo, a partir de 1936, lazer. Ima- O advento da sociedade salarial/ não será, no entanto, o
gem, dessa vez, de uma integração na subordinação. Porque triunfo da condição operária. Os trabalhadores braçais foram
até os anos 1930, momento em que tal configuração se cristali- menos vencidos numa luta de classes do que ultrapassados pela
za na França, a condição de assalariado corresponde essencial- generalização da condição de assalariado. Assalariados "bur-
mente ao conjunto de assalariados operários. Remunera as gueses", funcionários, quadros, profissões intermediárias, se-
tarefas de execução, as que estão situadas na base da pirâmide tor terciário: a salarização da sociedade cerca o operariado e
social. Porém, ao mesmo tempo, esboça-se uma estratificação subordina-o novamente, desta vez sem a esperança de que pos-
mais complexa do que a oposição dominantes-dominados que sa, um dia, impor sua liderança. Se todo mundo, ou quase, é as-
compreende zonas intersequentes através das quais a classe ope- salariado (mais de 82% da população ativa em 1975), é a partir
rária vive a participação na subordinação: o consumo (mas de da posição ocupada na condição de assalariado que se define a
massa), a instrução (mas primária), o lazer (mas popular), a habi- identidade social. Cada um se compara a todos, mas também se
tação (mas a habitação popular) etc. É por isso que tal estrutura de distingue de todos; a escala social comporta uma graduação
crescente em que os assalariados dependuram sua identidade,
sublinhando a diferença em relação ao escalão inferior e aspi-
10 termo "Central" deve ser entendido aqui em relação à sociedade indus- rando ao estrato superior. A condição operária ocupa sempre,
trial. Não seria possível esquecer que a França ainda está no início do século
XIX e será, por muito tempo, uma sociedade predominantemente campone-
ou quase sempre, a base da escala (há também os imigrantes,
sa. Uma resposta indireta, mas essencial, para a questão social criada pela in- semioperários, semibárbaros, e os miseráveis do quarto mun-
dustrialização pode consistir em freá-Ia. Richard Kuisel descreve, sob o nome do). Mas que prossiga o crescimento, que o Estado continue a
de "liberalismo equilibrado" essas estratégias cheias de desconfiança em rela- estender seus serviços e suas proteções e, quem merecer, pode-
ção a operários da indústria, ao crescimento das cidades a uma instrucão
demasiado geral e abstrata que poderia "desarraigar" o povo etc., e, inversa- rá também "subir": melhorias para todos, progresso social e
mente, de apoio às categorias que têm um papel estabilizador sobre o equilí- bem-estar. A sociedade salarial parece arrebatada por um irre-
brio social: trabalhadores independentes, pequenos empresários e, sistível movimento de promoção: acumulação de bens e de ri-
sobretudo, pequenos camponeses. "Um crescimento gradual e equilibrado
quezas, criação de novas posições e de oportunidade inéditas,
em que todos os setores da economia progrediriam no mesmo ritmo, sem que
os grandes pudessem eclipsar os pequenos, sem que as cidades pudessem es- ampliação dos direitos e das garantias, multiplicação das segu-
v.izrar o. campo de sua substância: essa continuava a ~er a imagem ideal da ridades e das proteções.
prosperidade nacional" (R. Kuisel, Le capitalismo et l'Etat en France, op. cit.,
I)· 72). Small is beautiful. Esse contexto socioeconômico deve ser contrapos-
I,l;1<lSprocessos que tento evidenciar. Explica a lentidão com que a industria- 2 Emprego aqui o conceito de sociedade salarial no sentido que lhe dão Mi-
IiZ;I\.';'í,
li 1I1pÔSsua marca ao conjunto da sociedade francesa. De fato, a França chel Aglietta e Auton Bcnder, Les métamorphoses de Ia société salariale, Pa-
'" l ,~t' couvcrtcu ao "industrialismo" após a Segunda Guerra Mundial, algu- ris, C~lll1al1n-Lévy, 1984, c pretendo desenvolver suas implicações
III;IS.!ccadas antes dele desmoronar. sociológicas neste capítulo.
l/I,
417
AS METAMORfOSES NA QUESTÃO SOCIAL VII - A SOCIEDADE SALARIAL

Este capítulo visa menos a reconstituir essa história do que Podem-se caracterizar assim os principais elementos dessa
a evidenciar as condições que a tornaram possível e fizeram da relação salarial do início da industrialização, correspondendo ao
sociedade salarial uma estrutura inédita, ao mesmo tempo que que se acaba de chamar de condição proletária: uma remunera-
sofisticada e frágil. A tomada de consciência dessa fragi [idade é ~:ilopróxima de uma renda mínima que assegura apenas a repro-
recente, data do início da década de 70. Hoje é o nosso proble- dução do trabalhador e de sua família e que não permite investir
ma, pois continuamos a viver na e da sociedade salarial. Pode- 110 consumo; uma ausência de garantias legais na situação de tra-
mos acrescentar, com Michel Aglietta e Anton Bender, que "a balho regida pelo contrato de aluguel (artigo 1710 do Código Ci-
sociedade salarial é nosso futuro?,,3 É a questão a ser debatida vil); o caráter "lábil,,6 da relação do trabalhadorcom a empresa:
no capítulo seguinte, mas, ainda que devesse ser assim, trata-se muda frequentemente de lugar, alugando-se ao que oferecer
de um futuro bem incerto. Enquanto isso, compreenderemos mais (sobretudo se tiver uma competência profissional reco-
melhor de que é feita tal incerteza se nos reapropriarrnos da ló- nhecida), e "fica desempregado" alguns dias da semana ou du-
gica da promoção da condição de assalariado em sua força e rante períodos mais ou menos longos, se puder sobreviver sem
em sua friabilidade. se submeter à disciplina do trabalho industrial. Formalizando
essas características, dir-se-á que uma relação salarial compor-
ta um modo de remuneração da força de trabalho, o salário -
A nova relação salarial
que comanda amplamente o modo de consumo e o modo de
"Foi a industrialização que deu origem à condição de assa- vida dos operários e de sua família -, uma forma da disciplina
lariado, e a grande empresa é o lugar por excelência da relação do trabalho que regulamenta o ritmo da produção, e o quadro
salarial moderna"4. Este julgamento é, ao mesmo tempo, con- legal que estrutura a relação de trabalho, isto é, o contrato de
firmado e nuançado pelas análises anteriores. De fato, a condi- trabalho e as disposições que o cercam.
ção de assalariado existiu primeiro e fragmentada na sociedade Ter-se-á reconhecido que acabo de destacar essas caracte-
pré-industrial, sem conseguir se impor antes de estruturar a rísticas a partir dos critérios propostos pela escola da regulação
unidade de uma condição (cf, capítulo III). Com a Revolução para definir a relação salarial "fordista,,7. Pressuponho assim
Industrial, começa a desenvolver-se um novo perfil de operá- que, no seio de uma mesma formação social, o capitalismo, a
rios das manufaturas e das fábricas, o qual antecipa a relação relação salarial pode assumir diferentes configurações, sendo
salarial moderna sem ainda manifestá-Ia em sua coerência (cf que a questão, pelo menos a questão apresentada aqui, é a de
capítulo V)5. evidenciar as transformações que comandam a passagem de
uma forma a outra", Isto é, para assegurar a passagem da rela-
3 Ibid., p. 7.
4 R. Salais, La [ormation du chõmage com me catégorie: te moment des années 6 A expressão é utilizada por S. Pollard para caracterizar a mobilidade dos tra-
30, op. cit., p. 342. balhadores das primeiras concentrações industriais, The Genesis of Human
Management, Londres, 1965, p. 161.
5 Evidentemente, esse perfil não corresponde ao conjunto, tampouco à maio-
ria dos trabalhadores do início da industrialização, na primeira metade do sé- 7Cf., por exemplo, R. Boyer,La théorie de ta régulation: une analyse critique,
culo XX (durante muito tempo, o peso deterrninante foi dos artesâos, da Paris, La Découverte, 19H7.
"protoindústria", dos assalariados parciais que obtém uma parte de seus re- s Quando se reduz a relação salarial à relação salarial moderna, "fordisrn",
cursos de uma outra atividade ou da economia doméstica etc.). Mas repre- confundem-se as condições metodológicas necessárias para se chegar ,1 1I1lLl
senta o núcleo do que vai se tornar a condição de assalariado dominante na definição rigorosa da relação salarial e das condições socioanrropológicas Cl-
sociedade industrial, encarnada pelos trabalhadores da grande indústria. racterísticas das situações salariais reais, que são diversas (cf. in (;('//'-'S(',

11.'1 ·/1·)
AS METAMORFOSES NA QUESTÃO SOCIAL VII - A SOCIEDADE SAlARIAL

ção salarial que prevalecia no começo da industrialização à lho ou mercado dos bens ou serviços'". Assim, a situação de as-
relação salarial "fordista", a reunião das cinco condições se- salariado, distinta da de fornecedor de mercadorias ou de
guintes. serviços, torna-se claramente identificável, mas também a de
Primeira condição: uma nítida separação entre os que tra- desempregado involuntário, distinta de todos aqueles que
balham efetiva e regularmente e os inativos ou os semiativos mantêm uma relação errática com o trabalho.
que devem ser ou excluídos do mercado do trabalho ou inte- Mas uma coisa é poder localizar e contabilizar os trabalha-
grados sob formas regulamentadas. A definição moderna da dores; uma coisa melhor seria poder regular este "mercado de
condição de assalariado supõe a identificação precisa do que trabalho", controlando seus fluxos. Os ingleses dedicaram-se se-
os estatísticos chamam de população ativa: identificar e men- riamente a isso desde o início do século. William Beveridge, desde
surar aqueles que estão ocupados e aqueles que não o estão, as 1910, tinha visto de modo justo que o principal obstáculo à racio-
atividades intermitentes e as atividades de tempo integral, os nalização do mercado do trabalho era a existência desses tra-
empregos remunerados e os não remunerados. Empreendi- balhadores intermitentes que se recusam a se submeter a uma
mento de grande fôlego, e difícil. Um proprietário de terras, disciplina rigorosa. Também é preciso domá-Ios:
um latifundiário e uma pessoa que vive de rendas são "ati-
Para quem quiser trabalhar uma vez por semana e ficar na cama o
vos"? E a mulher e os filhos do artesão ou do agricultor? Que
resto do tempo, a agência de empregos tornará esse desejo irrea-
estatuto conferir a esses numerosos trabalhadores intermi-
lizável. Para quem quiser encontrar um emprego precário de
tentes, sazonais, que povoam tanto as cidades como o campo?
tempos em tempos, a agência de colocação tornará pouco a pou-
Pode-se falar de emprego e, correlativamente, de não empre-
co impossível esse gênero de vida. Pegará essa jornada de traba-
go, de desemprego, se não se pode definir o que verdadeira- lho que ele queria ter e a dará a qualquer outro que já trabalhe
mente significa estar empregado? quatro dias por semana e, assim, permitirá a este último ganhar
É somente na virada do século - em 1896 na França, em decentemente sua vida 10.
1901 na Inglaterra - e após muitas hesitações, que a noção de
população ativa é definida sem ambiguidade, permitindo o es- A agência de empregos deve efetuar uma divisão do traba-
tabelecimento de estatísticas confiáveis. "Os ativos serão aque- lho que consiste em traçar uma linha divisória entre os ver-
dadeiros empregados em tempo integral e os que serão
les e somente aqueles que estiverem presentes num mercado
completamente excluídos do mundo do trabalho e passarão
que lhes proporcione um ganho monetário, mercado do traba-
para a esfera das formas coercitivas de assistência, previstas
para os indigentes válidos. Igualmente, os Webb fazem apelo a
n" 9,1991, vários pontos de vista sobre essa questão). De minha parte, defen-
do que se pode falar de situações salariais não só no início da industrialização,
antes de ser instituída a relação "fordista", mas também na sociedade 9C. Topalov, "Une révolution dans les représentations du travail. L'érnergence
"pré-industrial" (d. capo IIl), desde, evidentemente, que não sejam confundi- de Ia catégorie statistique de 'population active' en France, en Grande-Bretag-
das com a relação salarial "fordista". Masé impossível manter, de modo rigo- ne et aux Érats-Unis", mimeografado, ] 993, p. 24, e Naissance du chômeur.
roso, uma posição purista até mesmo para o período moderno, porque a 1880-1910. otr. cit.
rclaçâo estritamente "fordista", com cadeia de montagem, contagem rigoro- 10 \Y./. Beveridge, Roval Commission em Poor Lato and ReliefDistress, Appcn-
sa do tempo etc., sempre foi minoritária, mesmo no apogeu da sociedade in- dix V8. House of Cornmons, 19 J 0, citado in C. Topalov, "Invenrion du chó-
dusrrial (cf. M. Verret, Le trauail ouurier, Paris, A. Colin, '1982, p. 34, que, mage et poliriques sociales au début du sieclc", Les temps modcrncs, 11""
l':1ra () fim dos anos 1970, estima em 8% o total dos operários que trabalham 496-497, nov.-dez. de 1987. A obra de Beredige publicada na época, l J 11\"1 11
,'111 Lldeia propriamente dita, c em 329/0 a proporção dos que trabalham com ployment, A Problcm of lndustry, Londres, '1909, é que começa a rorn.u 'I'
ur.iquiu.is .iuromatizadas). nhecido o futuro organizador e realizador da Scguriclade Social ill):I•.x.t.

1 !() 1.'1
AS MI',TAMORFOSES NA Q\JESTÃO SOCIAL vn - A SOCiEDADE SALARIAL

"uma instituição em que os indivíduos devem ser condenados Iidade das agências privadas de emprego, às quais é necessário
a viver isolados, cumprindo pena e mantidos sob vigilância [... ] acrescentar raras agências municipais, c às tentativas sindicais
absolutamente essencial para qualquer programa eficaz de tra- de controlar, e às vezes de monopolizar, a contratação. Fer-
tamento do desemprego") 1 • nand Pelloutier esgota-se em implantar as bolsas de trabalho
Se foi impossível realizar rigorosamente tal "ideal", as ins- qlle devem, entre outras coisas, coletar todos os pedidos de
tituições implantadas na Grã-Bretanha, nas primeiras décadas emprego e organizar a admissão sob controle sindical14• Mas
do século XX, aproximaram-se dele. As agências municipais () empreendimento, minado pelas divisões sindicais, durará
de emprego e os poderosos sindicatos de trabalhadores que muito tempo. No plano político, a ala reformista, representa-
praticam o closed shop - monopólio do emprego para os sindi- da pelos "republicanos progressistas" e pelos socialistas inde-
calizados - conseguiram, não a dominar o desemprego, pro- pendentes, interessa-se pela questão. Léon Bourgeois, em
blema endêmico na Grã-Bretanha, mas a controlar melhor a especial, compreende a relação existente entre a regulação do
contratação para os empregos disponíveis. mercado de trabalho e a questão do desemprego, que se torna
Em razão principalmente do atraso no desenvolvimento preocupante no início do século com uma estimativa de 300
da condição de assalariado industrial em relação à Grã-Breta- mil a 500 mil desempregados'<. Mas os remédios que preconi-
nha", esse tipo de política de emprego antecipada nunca assu- za para combatê-lo são muito tímidos: "A organização da con-
miu na França semelhante caráter sistemático. Durante muito tratação aparece, evidentemente, em primeiro lugar "!".
tempo, a contratação foi deixada à iniciativa dos trabalha- Deplora a insuficiência das agências municipais e sindicais,
dores, em princípio "livres" de irem alugar-se a seu grado, à evoca a necessidade de um seguro contra o desemprego, mas
esperteza de "contratadores" ou de "empreiteiros't ", à vena- deixa esta responsabilidade aos agrupamentos profissionais.
Os poderes públicos terão assim, e por muito tempo, ape-
nas um papel muito modesto na organização do mercado de
11 S. e B. Webb, The Prevention ofDestitution, op. cito Em relação a esse pon- trabalho e na luta contra o desemprego. O Ofício do Trabalho,
to, há unanimidade entre os reformadores sociais ingleses. Cf. P. A1len, The
Unemployed, a National Question, Londres, 1906, e uma apresentação sin-
criado em 1891, dedica-se a reunir uma importante documen-
tética dos "polias of decasualisation" - que poderia ser traduzi da como o tação e a elaborar estatísticas confiáveis. Esta atividade se pro-
conjunto de medidas tomadas para acabar com o trabalho intermitente a fim longa no quadro do Ministério do Trabalho, criado em 190617,
de se constituir um verdadeiro mercado do trabalho - in M. Mansfield, "La-
bour Exchange and the Labour Reserve in Turn of the Century Social Re-
form",Journal of Social Policy, 21, 4, Cambridge University Press, 1992.
12 Em maio de 1911, a população ativa francesa tem 47% de assalariados, 14 Cf. F. Pellourier, Histoire des bourses du trauail, Paris, 1902, e Jacques Julli-
numa relação de 3 patrões para 7 assalariados, ao passo que a proporção dos
ard, Fernand Pelloutier et les origines du syndicalisme d'action directe, Paris,
assalariados na Grã-Bretanha aproxima-se dos 90% (Cf. B. Guibaud, De Ia I.e Seuil, 1971.
mutualité à Ia sécurité sociale, op. cit., p. 54).
15 L. Bourgeois, "Discours à Ia Conférence internationale sur le chôrnage", Paris,
13 Cf. B. Motez, Systêmes de salaire et politiques patronales, Paris, edição do 10 de setembro de 1910, in.Poliuque de lapréuoyancesociale, op. cit., p. 279.
CNRS, 1967. O empreiteiro, ou o subernpreitciro, é pago pelo patrão para a
16 L. Bourgcois, "Le Minisrêrc du Travail", discurso no congresso rnutualista
execução de uma obra e paga os trabalhadores que contrata diretamente.
Essa prática pouco aceita pelos operários foi abolida em 1848, mas restaura- de Norrnandic, em Caen, no dia 7 de julho de 1912, in Politique de Ia prévo-
da logo depois e defendida inclusive pelos liberais, como Leroy-Beaulieu, yance sociale, op. cit., t. Il, p. 206 sq. Bourgeois defende igualmente um con-
que veem nela uma dupla vantagem: garantir uma vigilância direta dos ope- trole do treinamento para melhorar a qualificação e a "ação do Estado COIllO
r:írios pelo empreiteiro e permitir a promoção de uma espécie de elite de moderador na execução das grandes obras públicas" (p. 2(7).
pequenos empresários a partir da condição de assalariado (cf P.Leroy-Beau- 17 Cf. J .-A. Tournerie, Le MilTistere du Trauail, origines et premiers dévcloflfli'
licu, 'lraitc théorique et pratique d'économie politique, t. JI, p. 494-495). ments, op. cito

·1,1 ;
i\S MFTMv1ORFOSES NA QUESTÃO SOCIAL VII ~ A SOCIEDADE SALARIAl.

mas não é nada que possa funcionar como verdadeira política Mas logo um outro modo de regulação vai se impor de ma-
do emprego. neira mais eficaz. Todas essas dosagens de repressão e de man-
O que funcionou como tal durante muito tempo foi o con- sidão filantrópica permanecem limitadas em seus efeitos,
junto das políticas patronais anteriormente desenvolvidas (d. porque continuam exteriores à organização do trabalho pro-
capítulo V), mistura de sedução e de coerção para fixar os ope- priamente dita. Enquanto se trata de converter o operário a
rários através das "vantagens sociais" e aniquilar sua resistên- uma conduta mais regular, procurando convencê-lo de que seu
cia através de regulamentações rígidas. Foi o caso também, de verdadeiro interesse exige principalmente disciplina, ele pode
modo mais geral, da espécie de chantagem moral exerci da so- se revoltar, ou se furtar, pela fuga a essas obrigações que são da
bre os trabalhadores pelos filantropos, pelos reformadores esfera moral. A máquina impõe outros tipos de coerções, obje-
sociais e pelos porta-vozes do liberalismo: adaptem-se ao mo- tivas desta vez. Com ela não se discute. Segue-se ou não se se-
delo do bom operário, regular no trabalho e disciplinado em gue o ritmo que a organização técnica do trabalho impõe. A
seus costumes ou serão parte desses miseráveis excluídos da so- relação de trabalho poderá deixar de ser "volátil", se esta orga-
ciedade industrial'". Seria necessário citar aqui, novamente, nização técnica for, em si mesma, suficientemente poderosa
toda a literatura repetitiva sobre a necessária moralização do para impor sua ordem.
povo. Pode-se ver um sinal de vitalidade dessa atitude - até o Segunda condição: a fixação do trabalhador em seu posto
fim do século XIX e o início do século XX - na extraordinária de trabalho e a racionalização do processo de trabalho no qua-
onda de repressão da vagabundagem que então floresceu: cin- dro de uma "gestão do tempo exata, recortada, regulamenta-
quenta mil prisões a cada ano por vagabundagem na década de da,,21. As tentativas para regular a conduta operária a partir das
1890, acarretando até vinte mil processos anuais julgados pe- coerções técnicas do próprio trabalho, que vão expandir-se
los tribunais'", com ameaça de degredo em caso de reincidên- com o taylorismo, não são do século XX. Já em 1847, o barão
cia. Conjunturalmente, essas medidas podem ser explicadas Charles Dupin sonha em realizar o trabalho perpétuo graças
pela grave crise econômica que então se alastrou e pela miséria ao infatigável impulso do "motor mecânico":
do meio rural. Mas é também uma maneira de lembrar, no mo- Há, pois, uma extrema vantagem em fazer os mecanismos opera-
mento em que uma nova ordem do trabalho se esboça com a se- rem infatigavelmente, reduzindo à menor duração os intervalos
gunda Revolução Industrial, o quanto custa escapar dela. O de descanso. A perfeição lucrativa seria trabalhar sempre ... Por-
vagabundo torna-se novamente, durante um ou dois decênios, tanto, foram introduzidos na mesma oficina os dois sexos e as
o contramodelo abominado que representou na sociedade três idades explorados em rivalidade, lado a lado, se podemos fa-
pré-indusrrial (cf capítulo lI): a figura da associabilidade que é lar nesses termos, arrastados sem distinção pelo motor mecânico
necessário erradicar, porque destoa numa sociedade que volta para o trabalho prolongado, para o trabalho de dia e de noite para
a endurecer as regulações do trabalho", se aproximar cada vez mais do movimento eterno".

IX Cf. J. Donzclot, P. Estebe, rÉtat animateur, Paris, Édirions Fsprit, 1994, 21 R. Salais, "La formation du chômage commecatégorie",loc. cit., p. 325.
introdução. .~2C. Dupin, relatório apresentado à Câmara dos Pares, 27 de junho de 1874,
I" (:1'. M. Perrot, "La fin des vagabonds",L'Histoire, n" 3, julho-agosto 197R. citado in L. Murarei, P Zylberman, "Le petir travailleur infatigable", Rcchcr-
che, n" 23, novembro de 1976, p. 7. Precedentes de uma organização '111;1,';("
1
'0 '''1';111111;1 amostra dessa literatura que prega uma verdadeira cruzada C011- "perfeita" da discipli na de fábrica poderiam ser encontrados antes mesmo tI:1
11';1 .t V;If';;lbundagem, cf Dr. A. Pagnier, Un déchet social: le uagabond, Paris, introdução de máquinas sofisticadas e, a fortiori, antes da cadeia de 1110111;1
I '/ I o.
gemo É o caso da olaria fundada na Inglaterra, por volta de 1770, por

·1.'1 ·1' "


Vil - A SOCIEDADE SALARIAL
A.\ MI'IAMORFOSES NA QUESTÃO SOCIAL

Mas essa maravilhosa utopia baseia-se na "exploração em .irtesanais, possuidores de competências raras e muito procu-
rivalidade" das diferentes categorias de pessoal, isto é, sobre a radas. Entretanto, se é verdade que se instala sobretudo na
mobilização do fator humano. grande empresa, na maioria das vezes o tay lorismo teve que
Iratar com populações operárias de origem rural recente, sub-
Com a "organização científica" do trabalho, em compen-
sação, o trabalhador é fixado não por uma coerção externa, qualificadas e pouco autônomas.
De outro lado, foi sem dúvida a racionalização "científica"
mas pelo encadeamento das operações técnicas cuja cronome-
tragem definiu rigorosamente a duração. Assim, acha-se eli- da produção que contribuiu de modo mais decisivo para a ho-
mogeneização da classe operária. Atacou a cornpartimentaçâo
minado o "perambular" operário e, com ele, a margem de
iniciativa e de liberdade que o trabalhador conseguia preser- estanque dos "ofícios" com os quais seus membros se identifi-
var. Mais ainda, as tarefas parceladas tornando-se simples e re- cavam estreitamente: a pessoa se pensava ferreiro ou carpintei-
petitivas, uma qualificação sofisticada e polivalente é inútil. O ro antes de se pensar "operário" (as rivalidades das associações
operário é destituído do poder de negociação que o "ofício,,23 de ofícios, que sobreviveram por muito tempo ao Antigo Regi-
lhe propiciava. me, ilustram até chegar à caricatura essa crispação sobre a especi-
Mas os efeitos dessa "organização científica do trabalho" ficidade do ofíci024). E ainda mais porque, no seio de uma
mesma especialização profissional, existiam também dispari-
podem ser lidos de duas maneiras: como uma perda da autono-
mia operária e como o alinhamento das competências profis- dades muito importantes de salário e de status entre compa-
sionais sobre o mais baixo nível das tarefas reprodutivas. As nheiro com formação completa, mão de obra, aprendiz ...
análises mais frequentes sobre o taylorismo e que enfatizam o Assim, a homogeneização "científica" das condições de traba-
lho pôde forjar uma consciência operária que desemboca
aspecto da destituição são, entretanto, simplificadoras. De um
lado, tendem a idealizar a liberdade do operário pré-taylorista, numa consciência de classe aguçada pela penosidade da orga-
capaz de ir vender suas competências a quem oferece mais. nização do trabalho. As primeiras ocupações de indústrias, em
Sem dúvida, isso é verdadeiro quanto aos herdeiros dos ofícios 1936, se darão nas empresas mais modernas e mais mecaniza-
das. É também nestas "cidadelas operárias" que a CCT e o Par-
25
tido Comunista recrutarão seus militantes mais combativos .
Josiaph Wedgwood; passou para a posteridade como um modelo de estrita Em terceiro lugar, a tendência à homogeneização das con-
organização do trabalho. Não é mecanizada, mas associa a divisão do traba-
lho man~al no interior da empresa a uma política de moralização dos operá-
dições de trabalho não pode ir até o fim, ou melhor, na mesma
n~s, apoiada pela Igreja Metodista e por uma Sociedade pela Supressão do medida em que se acentua, produz efeitos inversos de diferen-
VICIO, animada pelo patrão. Cf. N. McKendrick, "[osiaph Wedgwood and ciação. De fato, a produção de massa exige, por si mesma, dis-
Factory Discipline", in D.S. Landes, The Rise af Capitalism, op. cito Também
tinções entre um pessoal de pura execução (é o caso do
podem ser destacadas formas de divisão, de tarefas que antecipam o trabalho
em cad:la sem s:r baseado na máquina. E o caso da "tablée": um objeto circu- operário especializado, o OE) e um pessoal de controle ou de
la de mao em mao em torno de uma mesa; cada operário acrescenta-lhe uma manutenção (o operário técnico). A evolução técnica do traba-
parte até que fique pronto (cf. B. Dorey, Le taylorisme, une [olie rationnelle, lho exige igualmente o fortalecimento e a diversificação de um
Paris, Dunod, 1981, p. 342 sq).
LI Cf. B. C~riat, L'atelie! et le chronometre, Paris, Christian Bourgeois, 1979.
Existem van~s traduçoes francesas de F.W Taylor que apareceram muito
cedo, como Etudes sur I'organisation du travail dans les usines (412 p.), 24 Cf. A. Perdignuicr, Mémoires d'un compagnon, Paris, rcedição Maspero,
i\ngcr, 1907. Para uma atualização das qucstõcs suscitadas pelo taylorismo 1977.
hoje, d. a obra coletiva, sob a direção de Maurice de Montmollin c Olivier
1';lsll'l" 1,1' taylorisme, Paris, La Découvcrtc, 19i14 .
25 Cf. G. Noiriel, L.es ouuriers dans Ia société [rançaise, op, cito

417
. /.'(,
AS MI'Tt\MORFOSES NA QUESTÃO SOCIAL vn - A SOCIEDADE SALARIAl.

pessoal de concepção e de enquadramento - os que vão se tor- Terceira condição: o acesso por intermédio do salário a "nouas
nar os "quadros". normas de consumos operários,,29, através do que o próprio ope-
Homogeneização e diferenciação: este duplo processo já rário se torna usuário da produção de massa. Taylor já defendia
está em curso no início da segunda Revolução Industrial. Con- um aumento substancial do salário para incitar os operário~ a
vida a não falar da "taylorização" como um processo homogê- se submeterem às coerções da nova disciplina da indústria.".
neo, lançado à conquista do mundo operário. Sua implantação Mas Henry Ford é quem sistematiza a relação entre produção
é lenta e circunscrita a locais industriais muito particulares: an- de massa (a generalização da cadeia de montagem semiauto-
tes da Primeira Guerra Mundial, apenas 1% da população in- mática) e consumo de massa. O "[iue doliars day" ~ão repre-
dustrial francesa é atingida por essa inovação americana'". senta apenas um aumento considerável do salário. E pensado
Ademais, o taylorismo não é senão a expressão mais rigorosa - como a possibilidade do operário moderno ter acesso ao e~ta-
embora se abrande quando é importada na França " - da ten- tuto de consumidor dos produtos da sociedade industrial'".
dência mais geral para uma organização refletida do trabalho Inovacão
, considerável , se for situada na longa duração da
industrial, o que, nos anos 20, se chama de "racionalizaçâo't'". história da condição de assalariado. Até essa virada, o trabalha-
Enfim, esses métodos vão transpor os locais industriais que dor é essencialmente concebido, pelo menos na ideologia pa-
o "taylorismo" evoca para se implantarem nos escritórios, nas tronal, como um produtor máximo e um consumidor mínimo:
grandes lojas, no setor "terciário". Também, mais que de "tay- deve produzir o máximo possível, mas as margens de lucro que
lorismo", seria melhor falar da implantação progressiva de resultam de seu trabalho são mais importantes à proporção
uma nova dimensão da relação salarial, caracterizada pela racio-
que seu salário é mais baixo. É significativo que as derrogações
nalização máxima do processo de trabalho, o encadeamento
patronais à "lei de bronze" dos salários tenham consistido não
sincronizado das tarefas, uma separação estrita entre tempo de
em suplementos salariais mas, sim, em subvenções sociais não
trabalho e tempo de não trabalho, o todo permitindo o desen-
monetárias em caso de doença, de acidente, na velhice etc.
volvimento de uma produção de massa. Neste sentido, é exato
Estas subvenções podiam esconjurar a privação total das famí-
dizer que o modo de organização do trabalho comandado pela
lias operárias, mas não maximizar seu consumo. Significativo
busca de uma produtividade máxima a partir do controle rigo-
também o fato de que a eventualidade para o trabalhador de se
roso das operações foi, de fato, um componente essencial na
encontrar mais à vontade não tenha sido pensada por esses
constituição da relação salarial moderna.
mesmos patrões e reformadores sociais como uma possibili-

29 A expressão é de Michel Aglietta in: Régulation et crises du capitalisme,


26Cf. M. Perror, "13 classe ouvriêre au temps de J aures", in [aurés et Ia classe l'expérience des Etats-Unis, Paris, Calmann-Lévy, 1976, p. 160.
ouuriêre, Paris, Édirions Ouvriêres, 1981. Sobre o papel desempenhado pela 30Ele considera até mesmo a possibilidade de "diminuir o custo em propor-
Grande Guerra quanto ao assunto, cf. Patrick Fridenson (ed.), I.;Autre Front, ções tais, que nosso mercado interno e externo se ampliaria cons,ideravel-
Paris, Cahiers du mouvement social, 2, 1982. mente. Assim, seria possível pagar salários mais altos e reduzir o numero de
27 Sobre as modalidades de implantação do raylorismo nas indústrias Renault horas de trabalho, melhorando as condições de trabalho c o conforto da
c os problemas que suscitou, cf. P. Fridcnson, Histoire des usine Rcnault, Pa- casa" (La direction scientifique des entreprises, op. cit., p. 23).
ris, I.e Seuil, 1982. 1 L Cf. M. Aglictta, Régulation et crises du capiialisme ... Paris, cd. Marabout,
'.sCf. A. Moutet, "Parrons de progrcs ou patrons de cornbar? ta poli tique de p. 23. Tradução francesa da obra de Henry Ford: My life, rny work~ ma ute et
r.rrionalisation de l'indusrrie française au lendemain de Ia Premierc C;uerre mou oeuure, Paris. Sobre a organização concreta do trabalho en,1fabnc~ e as
Mondiale", in l,e soldat du trauail, número especial 32-33, Rechcrcbe, serem- reações dos trabalhadores, cf, o testemunho de um anngo operarro da Ford,
brll de 1978. H. Bey non, Working for Ford, Pengu in Books, 1 973.

I'S 42')
:\', ~ 111/lrvJ( )RH)SES NA QUESTÃO SOCIAL VII - A SOCIEDADE SALARIAL

cl.idc de consumir mais, porém como um dever de poupar ou pré-industrial e depois no começo da industrialização, sobre-
de contribuir para aumentar sua seguridade. O único consumo viveu a salários de miséria, é, em muito, porque uma parte im-
lcgíti mo para o trabalhador é reduzido ao que lhe é necessário portante, ainda que difícil de traduzir em números, de seu
para reproduzir decentemente sua força de trabalho e manter consumo não dependia do mercado: vínculos mantidos com o
sua família no mesmo nível de mediocridade. A possibilidade meio rural de origem, disposição de um pedaço de terra, parti-
de consumir mais deve ser proscrita, porque leva ao vício, à be- cipação sazonal nos trabalhos do campo, mesmo para profis-
bedeira, ao absenteísmo ... sões tão "industriais" quanto a de mineiro:".
Quanto aos trabalhadores, é também com o início de uma Essa situação se transforma com a expansão das concentra-
produção de massa que aparece explicitamente uma preocu- ções industriais. A homogeneização das condições de trabalho
pação de bem-estar por meio do desenvolvimento do consu- é acompanhada de uma hornogeneização dos meios e dos mo- :1
mo. Alphonse Merrheim, então secretário geral da CGT, dos de vida. Processo complexo e que se estendeu por várias
declara em 1913 -o que corrige um pouco a representação do- décadas. Concerniu ao habitat, aos transportes e, de modo I
minante de um sindicalismo de ação direta mobilizado unica- mais geral, à relação do homem com seu meio ambiente tanto
mente para preparar a "Grande Noite": quanto o "a sacola da dona de casa". Porém, uma parte cada I
Não há limites para o desejo de bem-estar. O sindicalismo não vez mais importante da população operária encontra-se objeti-
vamente numa situação próxima da que alimentou as pinturas I
contradiz isso, ao contrário. Nossa ação, nossas reivindicações I
de redução das horas de trabalho e aumento de salário, não têm do pauperismo na primeira metade do século XIX: operários
por objetivo mínimo aumentar no presente os desejos, as facili- separados de sua família e de seu meio de origem, concentra-
dades de bem-estar da classe operária e, consequentemente, suas dos em espaços homogêneos e quase reduzidos aos recursos
possibilidades de consumor " fornecidos por seu trabalho. Para que as mesmas causas não
produzam os mesmos efeitos, a saber, uma pauperização em
Essa preocupação operária com o consumo, que aparece
massa, é necessário que a remuneração desse trabalho não con-
no início do século, responde a uma transformação dos modos
tinue um salário de sobrevivência.
de vida popular, acarretada pelo recuo das economias domés-
Chama-se "fordismo" a articulação, que Henry Ford foi
ticas e afeta sobretudo os trabalhadores das grandes concen-
sem dúvida o primeiro a pôr em prática conscientemente, da
trações industriais ':'. Se o mundo do trabalho, já na sociedade
produção de massa e do consumo de massa. Henry Ford decla-
ra: ''A fixação do salário da jornada de 8 horas em cinco dólares
.tz A. Merrheim, "La méthode Taylor", La vie ouuriére, março de 1913, p. foi uma das mais belas economias que já fiz na vida, mas elevan-
,105, citado in J. Julliard, Autonomie ouuriêre. Études sur le syndicalisme d o-o a seis' deo Iares, fiIZ uma economia . me lh or am
. d a ,,35 . P er-
d'action directe, op. cit., p. 61. Neste artigo, Merrheim dedica-se não ao mé-
cebe, assim, uma nova relação entre o aumento do salário, o
lodo de Taylor, mas à sua "falsificação" pelo patronato francês. Também é
significativa a seguinte declaração de outro grande líder sindicalista da épo- aumento da produção e o aumento do consumo. Não se trata
CI, Victor Griffuclhes: "De nossa parte, pedi mos que o patronato francês seja apenas do fato de que um salário elevado aumentaria a motiva-
p.rrccido com o patronato americano e que assim, aumentando nossa ativida-
di' iuclusrriai e comercial, disso resulte para nós uma segurança, urna certeza
'1'1(', melhorando nossa condição material, nos arraste para a luta, facilitada 34 Cf. R, Trempé, Les mineurs de Carnaux, op. cit., que mostra a rcsisrôuri.,
I'I'L'IIL'L'l:ssidade de mão de obra" (".L:infériorité des capitalistes français", te obstinada dos mineiros para salvaguardar uma organização dos hor.irios .I"
11/(J1I1,,'/III'Il[ social, dezembro de 1910, citado ibid., p. 55), trabalho compatível com a realização de atividades agrícolas.
,: 1\, ( :, »i.u, l.atclier et le chronométre, op. cit., capo IV 35 H. Ford, Ma uie et mon oeuure, op. cit., p. 168.

I ;" I: I
IV, 11'IMvl( JI{IiOSES A QUESTÃO SOCIAL VlI - A SOell':D"\ li'. SAI ./\ 1\1/\ I

~,;iopelo trabalho e pela produção. Esboça-se uma política de nirna de seguridadcs ligadas ao trabalho pode ser desenvolvida
saLí rios ligada aos progressos da produtividade através da qual nas situações fora cio trabalho para colocar o uperáriu protegido
o operário tem acesso a um novo registro da existência social: da privação ahsoluta. Sem dúvida, sob essa primeira forma dos
() do consumo e não mais exclusivamente o da produção. Dei- seguros sociais, tais subvenções são medíocres demais para ter
xa assim essa zona de vulnerahilidade que o condenava quase uma verdadeira função redistributiva e pesar significati vamente
que a viver "cada dia com o que nele ganhou", satisfazendo sobre a "norma de consumo". Contudo, respondem a essa mes-
uma por vez as necessidades mais prementes. Tem acesso ao ma conjuntura histórica da condição de assalariado em que esta
desejo - retomo o termo de Merrheim - cuja condição social de pode ser classificada e repertoriada (só se podem vincular direi-
realização é a decolagem em relação à urgência da necessidade. tos, mesmo modestos, a um estado claramente identificável, o
Ou seja, essa forma de liberdade que passa pelo domínio da que supõe a elaboração da noção de população ativa e a separa-
temporalidade e se satisfaz no consumo de objetos duráveis, ção de múltiplas formas de trabalho intermitente), definida e es-
não estritamente necessários. O "desejo de bem-estar", que in- tabilizada (um direito como a aposentadoria supõe um trabalho
cide sobre o carro, a moradia, o eletrodoméstico etc., permite- contínuo durante muito tempo), autonomizada como um esta-
gostem ou não os moralistas - o acesso do mundo operário a do que deve bastar-se a si mesmo (deixa-se de contar, para asse-
um novo registro de existência. gurar as proteções, com os recursos das economias domésticas e
Sem dúvida, atribuir o mérito dessa quase mutação antro- da "proteção próxima"). Evidentemente, esse modelo se aplica
pológica da relação salarial a Ford é enaltecê-lo demais. Trata-se de forma privilegiada aos operários da grande indústria, mesmo
de um processo geral que está longe de se basear exclusivamente que tenha sido aplicado muito além dessa população. Reconhe-
na invenção da "cadeia de montagem quase automática" e na po- ce a especificidade de uma condição salarial operária e, ao mes-
lítica salarial de um industrial americano. Entretanto, é a partir de mo tempo, consolida-a, visto que tende a assegurar-lhe recursos
Ford que se afirma uma concepção da relação salarial segundo a para ser autossuficiente em caso de acidente e de doença, ou
qual "o modo de consumo é integrado nas condições de produ- após a cessação de atividades (aposentadorial'f
ção,,36. E isso é suficiente para que amplas camadas de traba-
lhadores - mas não todos os trabalhadores - saiam da situação
de extrema miséria e de insegurança permanente que tinha 37 O fato de que a primeira lei francesa de seguro-aposentadoria obrigatório te-
sido sua condição desde há séculos. nha sido a lei de 1910 sobre as aposentadorias de operários e camponeses pare-
ce contradizer esse atrelamenro privilegiado da proteção social à condição dos
Quarta condição: o acesso à propriedade social e aos serviços operários da indústria. Porém, como observa Henri Hatzfeld (Du paupérisme
públicos - o trabalhador é também um sujeito social suscetível à Ia sécurité sacia/e, op. cit.), esse tratamento paritário dos camponeses e dos
de participar do estoque de bens comuns, não comerciais, dis- operários correspondia a uma exigência política numa França "radical", que
poníveis na sociedade. Lembro apenas, aqui, que se tentou, no tratava com desvelos sobretudo seu campesinato e queria evitar, acima de
tudo, a desestabilização do campo e o êxodo rural. No caso, essas boas inten-
capítulo anterior, a elaboração da "propriedade de transferên- ções foram mal recompensadas. A lei de 1910 sobre as aposentadorias mos-
cia" que se insere na mesma configuração salarial. Se o pauperis- trou-se quase inaplicável no campo devido, particularmente, à dificuldade de
1110 foi o veneno da sociedade industrial em seu começo, o se identificar aí quem era um assalariado "puro" e à forte resistência dos em-
pregadores para se submeterem a uma injunção percebida como uma intromis-
seguro obrigatório constitui seu melhor antídoto. Uma rede mi- são inadmissível do Estado nas formas "paternais" das relações de trabalho. ()
conjunto dos assalariados camponeses apresentava, então, uma condição dil •.
reme demais da do conjunto dos assalariados industriais para se prcst.u :1(1
mesmo rratamcnro.
I., M. i\,:lil'll:l, Régulatton. et crises du capitalismc, 0(1. cit., p. '13().

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1\'; t\1FII\M( mFOSES NA QUESTÃO SOCIAL VII - A socu ':I),\ 1)1:\" I !\lU ,\I

Lembremos igualmente que essa promoção da proprie- através da lei que abole o delito de greve (1864) e da q til' .uu ()
dade de transferência se inscreve no desenvolvimento da pro- riza as coalizões operárias (1884). Porém, tais conquistas lI;j()
priedade social e, sobretudo, dos serviços públicos. Estes têm incidência direta sobre a estrutura do próprio contrato dl'
enriquecem a participação das diferentes categorias sociais na trabalho. Igualmente, durante muito tempo, as negociações
"coisa pública", ainda que esta participação permaneça desi- entre os empregadores e o coletivo dos trabalhadores que tive-
gual. A classe operária voltar-se-á a esse ponto, vai ter maior ram lugar no seio das empresas - em geral por ocasião de uma
acesso a bens coletivos, tais como a saúde, higiene, moradia, greve ou de uma ameaça de greve - não têm nenhum valor jurí-
instrução. dico. A lei de 25 de março de 1919 é que, após a aproximação
Quinta condição: a inscrição em um direito do trabalho devida à "união sagrada" e à participação operária no esforço
que reconhece o trabalhador como membro de um coletivo do- de guerra, dá um estatuto jurídico à noção de convenção coleti-
tado de um estatuto social além da dimensão puramente indi- va. As disposições estipuladas pela convenção prevalecem so-
vidual do contrato de trabalho. Assiste-se também a uma bre as do contrato individual de trabalho. Léon Duguit extrai
transformação profunda da dimensão contratual da relação sua filosofia imediatamente:
salarial. O artigo 171 O do Código Civil definia-a como um o contrato coletivo é uma categoria jurídica totalmente nova e in-
"contrato por meio do qual uma das partes se compromete a teiramente estranha às categorias tradicionais do direito civil. É
fazer alguma coisa para a outra mediante um preço". Transa- l}ma convenção-lei que regula as relações de duas classes sociais.
ção entre dois indivíduos, em princípio "livres" um e outro, E uma lei que estabelece relações permanentes e duráveis entre dois
mas cuja dissimetria profunda foi várias vezes sublinhada. grupos sociais e o regime legal segundo o qual deverão ser concluí-
Léon Duguit vê aí a expressão do "direito subjetivo", isto é, "o dos os contratos individuais entre os membros desses grupos".
poder que tem uma pessoa de impor a uma outra sua própria Com efeito, a convenção coletiva ultrapassa o face a face em-
personalidade'r". Será substituído por um direito social "unin- pregador-empregado da definição liberal do contrato de traba-
do entre si, pela comunidade das necessidades e pela divisão do lho. Um operário admitido a título individual numa empresa
trabalho, os membros da humanidade e, particularmente, os beneficia-se das disposições previstas pela convenção coletiva.
mem bros de um mesmo grupo socla
. 1,,39 . A aplicação dessa lei foi, num primeiro momento, muito
A consideração dessa dimensão coletiva faz a relação con- decepcionante pelo fato da repugnância, manifestada ao mes-
tratual passar da relação de trabalho ao estatuto de assalariado. mo tempo pela classe operária e pelo patronato, em entrar
"Na ideia de estatuto, característico do direito público, existe a num processo de negociação. Essas reticências (a palavra é um
ideia de definição objetiva de uma situação que escapa ao jogo eufemismo) dos "parceiros sociais" para negociar 42explicam o
das vontades individuais"40. Um reconhecimento jurídico do
grupo dos trabalhadores como interlocutor coletivo já aparece 41 L. Duguit, Les transformationsgénérales du droit priué, Paris, 1920, p. 135,'
eirado in ]. Le Goff, Du silence à Ia parole, op, cit., p. 106.
42 Para uma análise do contexto sócio-histórico que explica essa má vontade
tanto patronal quanto sind ical para entrar num acordo - e sobre as diferenças
.IX I," Duguit, Le droit social, te droit individuel et Ia transfonnation de l'Etat, em relação à Alemanha e à Grâ-Bretanh<l-, d. F. Sellier, La confrontation S( )--
(I/I. cit., p. 4. ciale en France, op. cit., p. 1 e 2. Sobre as medidas iniciadas durante a Prirncir.i
I" I1lid., p. 8. Guerra Mundial e seu qucstionamento logo após o rcsrabelecimcnto d;1 1':1/,
'10,. l.c (;off, Du silence à Ia parole, op. cit., p. 112. Cf. também F. Sellier, ta cf. M.. Fine, "Guerre et réformisme en France, 1914--1918", in LI' so/d", '/11
«(lII/mll/alio1l sociale en France, 1936-1987, op. cito trauail, op. cit.

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AS METAMORFOSES NA QUESTÃO SOCIAL VIl - A SOU I': !l/\ I li:..'-,111./\ 1\1;\ I

p.ipcl desempenhado pelo Estado para implantar procedimen- cristalização e, ao mesmo tempo, um ponto de virada dessa IT
tos de negociação. Desde os esforços de MilJerand, em 1900, laçâo salarial moderna que acabo de apresentar. Etapa signifi-
para criar conselhos operários 43, é realmente o Estado que pa- cativa da promoção da condição de assalariado operária: é UIIl
rece ter tido um papel decisivo na constituição do direito do certo reconhecimento da condição operária que, sobretudo, as
trabalho. Pelo menos até que uma parte da classe operária, que reformas de 1936 sancionam. Mas talvez se tratasse de uma vi-
aderiu às reformas (como objetivo privilegiado ou como etapa tória de Pino. Qual é então o status da classe operária na socie-
de um processo revolucionário), entra em cena para impor seu dade? De um lado, 1936 marca uma etapa decisiva de seu
ponto de vista. O ano de 1936 representa, sob esse aspecto, reconhecimento como força social determinante, uma exten-
uma estreia histórica: a conjunção de uma vontade política (o são de seus direitos e uma tomada de consciência de seu poder
governo do Front Populaire com uma maioria social-comunis- que pode fazê-Ia sonhar em se tornar um dia o futuro do mun-
ta que, através de suas divergências, quer impor uma política do. De outro, 1936 sanciona o particularismo operário, sua
social favorável aos operários) e de um movimento social (per- destinação para ocupar um lugar subordinado na divisão do
to de dois milhões de operários que ocupam as fábricas em ju- trabalho social e na sociedade global.
nho). Os acordos de Matignon lançam novamente as convencões Do lado da consagração operária, há um belo verão que
coletivas e impõem delegados de empresa eleitos pelo conjun- ainda não teme o outono. Vitória eleitoral da esquerda, os operá-
to do pessoal". rios se antecipam às decisões do governo Blum (ou o pressio-
Mas, além dessa "conquista social" e de algumas outras, o nam), ocupam as fábricas e obtêm imediatamente um avanço,
período do Front Populaire representa uma etapa particular- sem precedentes, dos direitos sociais. Os patrões entram em pâni-
mente significativa, decisiva e frágil, da odisseia da condição . do po d er operano
co e veem ch egar o remo ' . 45. "'T:
iu doo e possive 1", é ,

de assalariado. escreve Marceau Pivert, líder da ala esquerda do Partido Socia-


lista, no dia 23 de maio de 1936, numa tribuna livre doPopu-
laire46• Nem tudo é possível, com certeza'", mas algo mudou
A condição operária substancialmente. Prova disso é uma medida que poderia pare-

Ainda que sempre haja um pouco de arbitrariedade quan- ·15Cf. in S. Weil, La condition ouuriêre, Paris, Gallimard, 1951 (carta a Augus-
do se tenta datar transformações que só os processos de longa rc Deboeuf, p. 188-190), testemunhos dessas reações patronais. Os acordos
duração explicam, gostaria de, por um instante, concentrar a de Marignon foram vividos pela maioria do patronato, que não deixará de
voltar a eles, como uma exigência absoluta do mais forte.
atenção em 1936. Realmente, pode-se ver aí um momento de
·1" Citado in H. Nogueres, La vie quotidienne en France au moment du Front
I'opulaire, Paris, Hachette, 1977, p. 131.
43 Decreto de 17 de setembro de 1900. "Há o maior interesse em instituir en- ·Ii Éa resposta de Maurice Thorez num discurso de 11 de junho de 1936 e que
tre os patrões e a coletividade dos operários, relações contínuas que perrni- dá a chave da frase citada com frequência: "E preciso saber terminar uma gre-
tam trocar a tempo as explicações necessárias e resolver alguns tipos de ve": "É preciso saber terminar uma greve desde que se tenha atingido os obje-
dificuldades ... Tais práticas só podem ajudar a aclimatar os novos costumes t
tivos. necessário até mesmo saber fazer acordos, se todas as reivindicações
que se gostaria de generalizar. Introduzindo-as, o governo da República per- .iinda não foram aceitas, mas [desde que] se tenha conseguido vencer quanto
manece fiel a seu papel de pacificador e de árbitro" (citado in]. te Goff, Du ;'15 reivindicações mais essenciais. Nem tudo é possível" (citado ibid., p. ].3 I);
silence à Ia parole, op, cit., p. 102). Mas o decreto nunca foi aplicado. sobre as posições do Partido Comunista, distante da vontade da CGT e de al-
44 Em J 936, são assinadas 1.123 convenções coletivas e, em 1937,3.064, d. gumas tendências do Partido Socialista de promover reformas de estrutura,
1\. Tourainc, La civilisation industriclle, t. IV, de L.H. Parias, Histoire généra- corno as nacionalizações e o planejamento da economia, d. R.F. Kuiscl, !.I'
11' clu trauail, Paris, Nou vclle Librairie de Francc, 1961, p. 172-173. (//iitalisrne et l'Etat e71 France, ()1). cit., capo TV.
IY; MFIMv\()R\:OSES NA QUESTÃO SOCIAL

ccr secundária mas que se reveste de significação simbólica ex- do trabalhador e da dignidade humana do trabalho. O traba
cepcional quando situada na história da "indigna condição de lhador é também um homem e não um eterno tarefeiro, c SCII
assalariado ": as férias remuneradas. Alguns dias por ano o trabalho lhe paga o acesso à qualidade de homem enquanto tal,
operário pode deixar de perder sua vida em ganhá-Ia. Não fa- de homem em si, deixando de ser a lei inexorável de cada jor-
zer nada do que é obrigado a fazer: é a liberdade de existir para nada. Revolução cultural além de seu caráter de "conquista so-
si. Inscrever tal possibilidade na lei é reconhecer ao trabalha- cial", pois tratava-se de mudar a vida e as razões de viver, ainda
dor o direito de existir simplesmente - quer dizer também que só durante alguns dias por ano. Parece que os contemporâ-
como os outros, os que vivem de rendas, os "burgueses", os neos viveram as férias remuneradas dessa maneira, pelo menos
aristocratas, os abastados, todos aqueles que, no imaginário os que partilharam o entusiasmo desses momentos - porque
operário pelo menos, gozam a vida por ela mesma e por eles não faltaram bons espíritos para dizer que havia chegado o
mesmos, desde a noite dos tempos. tempo da vergonha, quando se começou a pagar a folga e
Aredução do tempo de trabalho foi uma das mais antigas e quando os "sujos de casquetes" começaram a invadir as praias
mais apaixonadas reivindicações operárias. Parece que as pri- reservadas à boa sociedade".
meiras "cabalas" ilícitas de companheiros tenham sido desen- Será dar importância demais a uma medida, aliás, modesta-
cadeadas muito mais para controlar o tempo de trabalho do a concessão de alguns dias por ano de férias pagas? De fato, este
que para obter um aumento dos salários 48. A revolução de fe- episódio (a única "conquista social" de 1936 que não foi posta
vereiro de 1848 arranca a jornada de 10 horas, medida revoga-
em causa) pode exemplificar a posição, que se poderia chamar
da em seguida. O sindicalismo do início do século faz do
de suspensa e portanto instável, ocupada pela classe operária
repouso semanal (conquistado em 1906) e da jornada de 8 ho-
na sociedade do fim da década de 30. De um lado, após uma
ras uma de suas principais reivindicações, a única talvez, p~ra
longa quarentena, sua condição se aproxima do regime co-
os sindicalistas de ação direta, que não seja "reformista". E a
mum. As férias remuneradas podem simbolizar a aproximação
palavra de ordem mais popular dos 10 de Maio de luta, e cobre
de duas condições e de dois modos de vida que tudo separava.
os cartazes de propaganda da CGT49• Porém, mais simbolica-
Na praia, por um tempo muito curto, a vida operária experi-
mente significativa do que a redução do tempo de trabalho (a
menta uma característica essencial da existência "burguesa",
semana de 40 horas é conquistada em junho de 1936), mais
profundamente libertadora do que o acesso ao consumo per- uma liberdade de escolher o que fazer ou nada fazer, porque a
mitido pelo aumento dos salários50, a remuneração de um tem- necessidade cotidiana de sobreviver relaxa a pressão. Em al-
po livre equivale a um reconhecimento oficial da humanidade guns dias do ano, a condição operária e a condição burguesa
são intersequentes.
4~ Cf. H. Hauser, Ouvrier du temps jadis, op. cito
49 A insistência sindical em exigir uma redução da jornada de trabalho é 51 Cf H. Nogueres, La vie quotidienne en Trance au temps du Front populai-
alimentada por uma dupla razão: ajudar o trabalhador a recuperar sua re, op. cit., que fala, ele próprio, de "revolução cultural" e descreve, ao mes-
dignidade, rompendo com o embrutecimento de um trabalho contínuo; mo tempo, o entusiasmo das primeiras partidas de viagens em férias e as
lutar contra o desemprego, dividindo o trabalho com o maior número de reações da imprensa conservadora diante dos "trens de prazer" orgall1;ado:
operários. por iniciativa de Léo Lagrange para levar os trabalhadores e suas famílias ;1
\11 Os acordos de Matignon aprovaram um aumento imediato dos salários de praia. Sutil desprezo do redator do Figaro: "Depois, alegremente, comeram
muito sanduíche na areia da praia junto à histórica Promenade des AllglalS
'/;1 I SI!-Ú. Entre 1926 e 1939, o salário real (aumento dos preços no consumo
,. inlllção deduzidos) do operário qualificado parisiense progrediu cerca de [trata-se da Avenida Passeio dos Ingleses, em Nice], e se enxagunr.un 11;1
(,0%. C:L F. Scllier, Les salariés en France, Paris, PUF, 1979, p. 67.
água ... A multiplicação dos trens vermelhos na Côte d'Azur está a todo V:lp' ir.
E a redução dos trens azuis igualmente" (p. 156).

/ :" -t :'1
AS METAMORFOSES NA QUESTAo SOCIAL VIl- A SOCIEDADE SALARIAL

Mas, ao mesmo tempo, subsiste de modo muito forte um o contato com a natureza, relações saudáveis (e não sexualiza-
particularismo operário vivido na subordinação e que alimen- das) entre os jovens erc. devem saturar o tempo não dedicado
ta um antagonismo de classe. A hostilidade "burguesa" às ao trabalbo. Nada de tempo morto, a liberdade não é nem a
férias pagas - partilhada pelos pequenos trabalhadores inde- anarquia nem o puro prazer. É necessário fazer melhor do que
pendentes, pelos comerciantes etc., por toda a França não assa: os burgueses, e trabalhar o lazer.
lariada - manifesta, realmente, a perenidade dessa clivagem. E Mais profundamente, esse curto tem po de liberdade frágil
o caso da atitude reativa, usando um eufemismo, do desprezo remete a seu avesso: a permanência do trabalho alienado que
secular das classes proprietárias diante do trabalhador-que- representa a base a partir da qual se constrói o estatuto social
não-trabalha e que só pode estar desocupado, porque sofre de da classe operária. Para a obtenção das conquistas sociais de
uma tara moral, não tendo outro uso possível de uma liberdade 1936, os operários da grande indústria desempenharam o pa-
roubada ao trabalho senão saciar seus vícios, preguiça, embria- pel motor+'. Ora, as condições de trabalho nas fábricas ocu-
guez e luxúria. Não há nenhuma outra modalidade de existên- padas em junho de 1936 são geralmente comandadas pela
cia possível para o trabalhador que não o trabalho: isto não é "organização científica do trabalho", ou por seus equivalen-
uma tautologia mas, sim, um julgamento moral e social ao mes-
tes: as cadências, a cronometragem, a vigilância constante, a
mo tempo, partilhado por todos os bem-pensantes e que apri-
obsessão de ser produtivo, a arbitrariedade dos patrões e o des-
siona o operário no papel de estar debruçado para sempre sobre
prezo dos chefes do pequeno escalão. Basta ler a obra de Simo-
as tarefas materiais.
ne Weil: já contém a temática do "trabalho em migalhas" que
Do lado dos operários, a atitude diante das férias remune-
marcará o começo da Sociologia do Trabalh054• Mas essa rela-
radas também trai a permanência do sentimento da dependên-
ção de trabalho não é comandada apenas pelas exigências te c-
cia social. Lazer, sim, mas lazer "popular". Um orgulho de ser
nológicas da produção, da divisão das tarefas, da rapidez das
como os outros, mas uma consciência de que, longe de ser evi-
cadências ... É uma relação social de subordinação e de priva-
dente, essa liberdade é um milagre e é necessário, a partir de
ção da posse que se instala pela mediação da relação técnica de
agora, merecê-Ia, aprendendo seu bom uso, ainda que seja
trabalho. Simone Weil insiste sobre o " torniquete da subordi-
aprendendo a se divertir. ''A classe operária soube conquistar o
nação"s5 que caracteriza a situação do operário no trabalho. É
lazer, agora deve conquistar o uso do lazer", diz Léon Lagran-
destinado às tarefas de execução. Tudo o que é concepção, re-
geS2• A organização do lazer popular - uma parte importante e
flexão, imaginação lhe escapa. Ora, porque é uma situação so-
original das realizações do Front Populaire - traduz essa preo-
cupação em escapar da ociosidade gratuita. Expressão, simul-
taneamente, de uma forte consciência da diferença de classes e 53 As primeiras ocupações de fábricas se dão nos setores metalúrgico e aero-
de um certo moralismo pragmático: o lazer é algo merecido e náutico, isto é, nas regiões industriais mais "modernas". Sobre as mudanças
deve ser bem preenchido. É necessário distinguir-se dos ricos ocorridas no movimento operário desde o início da década de 30, que põem
em primeiro plano os operários das grandes indústrias em detrimento dos se-
ociosos, que são parasitas sociais. A cultura, o esporte, a saúde,
tores presos às rradiçóes artesanais ou aos funcionários do Estado, cf G. Noi-
fiel, Les ouvriers dans Ia société [rançaise, op. cit., capo V Sobre as
transformações que se deram no interior da CGr propriamente dita (reunifi
52 Citado in H. Nogueres, La vie quotidicnne cn Trance du tcmps du Front po-
cada, 1935), cf. A. Prost, ta CGT à l'époque du Front populaire, 1934-1939,
pulaire, op. cit., p. 188. Para uma apresentação do conjunto da obra de Léo
Paris, A. Colin, 1964.
Lagrange, "subsecretário de Estado para o Esporte e () Lazer': d. j.-L. ChaF-
par, Les chemins de l'espoir: combats de Léo I agrange, Paris, Editions des Fé- 54 Cf. G. Friedmann, L.c trauail cn miettes, Paris, Gallimard, 1963.
dérations Léo Lagrangc, 1983. 55 S.Weil, La condition ouuricre; op. cit., p. 242.

44/
AS M F' J'i\MORFOSES NA QUESTÃO SOCIAL vrr - A SOCl~~DADE SALi\IUAI.

cial e não somente uma relação técnica de trabalho, essa A situação do operário contrasta com a do empregad o, do fun-
condição de dependência não é deixada no vestiário quando se cionário, como ele não comerciantes, mas a quem são remunera-
sai da fábrica. Ao contrário, como cantará Yves Montand em dos, ao mesmo tempo que o trabalho, a antiguidade de serviço,
Luna Park, ela o acompanha do lado de fora como contrapon- as qualidades intelectu ais ou morais. [... ) Do trabalho operário,
to. Sem dúvida, pode-se dizer com Alain Touraine que "a cons- só são remuneradas operações mecânicas e quase automáticas,
ciência operária é sempre orientada por uma dupla exigência: porque o operário deve abster-se de toda iniciativa e visar so-
criar obras e vê-Ias reconhecidas socialmente enquanto tais"s6. mente a se tornar um instrumento seguro e bem adaptado a uma
Mas então, na maioria das vezes, é uma consciência infeliz, a tarefa simples ou complexa, mas sempre monótoua ",
consciência de umdéfiát, dentro da fábrica e fora dela, entre a O operário não pensa, todos sabem disso, e a So~iologia
importância do papel de trabalhador-produtor na raiz da cria- nascente prova até mesmo que ele não pode pensar. E ainda,
ção da riqueza social e o reconhecimento, ou melhor, o não re- como se verá, a idéia condutora da monumental síntese que
conhecimento, que lhe é conferido pela coletividade. É essa François Simiand dedica à condição de assalariado em 19326 °.
relação entre uma situação de dependência nos locais de traba- O trabalho operário continua a ser definido como o estrato in-
lho e uma posição socialmente desvalorizada que ata o destino ferior do trabalho, tecnicamente o mais grosseiro e socialmen-
dos operários: "Nenhuma intimidade liga os operários aos lo- te o menos digno.
cais e aos objetos entre os quais sua vida se esgota, e a fábrica Os operários não partilham necessariamente essa concep-
faz deles, no seu próprio país, estrangeiros, exilados, desarai- ção do trabalho que as construções eruditas da Sociologia e da
gados"s7. Economia, bem como as representações das classes dominantes
Certamente, tal contradição é particularmente legível a apresentam. O movimento operário começou, desde a origem (é
partir da situação dos operários da grande indústria, suometidos já o leitmotiv do Atelier, composto e publicado pelos próprios
às formas modernas de racionalização do trabalho, e são minori- operários entre 1840 e 185 O), a afirmar a dignidade do traba-
tários na classe operária.". Mas ela não faz senão pressionar até lho braçal e sua preeminência social enquanto verdadeiro cria-
o limite uma característica geral da condição dos trabalhado- dor das riquezas. Mais tarde, até se vai ver a transformação em
res: a consciência do papel socialmente subordinado, destina- heróis de algumas figuras operárias, como o mineiro ou o me-
do ao trabalho braçal. Essa concepção do trabalho operário, talúrgico, portadores de uma concepção prometeica do mun-
reduzido só às tarefas de execução, indispensáveis mas sem ne- d061. Mas a exaltaçâo do trabalho não suprime o sentimento
nhuma dignidade social, parece evidente e vale para todas as da dependência operária. É exatamente essa coexistência de
formas de trabalho braçal. É a tese central da primeira análise uma afirmação da dignidade e de uma experiência da privação
com pretensão científica da condição operária: de posse que está no princípio da consciência de classe operá-
ria. Esta se forjou no conflito, a partir da tomada de consciên-

S6 A. Touraine, La conscience ouuriêre, Le Seuil, 1966, p. 242.


17 S. Weil, La condition ouuriêre, op. cit., p. 34. 59M .. Halbwachs, La classe ouuriêre et les niueaux de vie, Paris, 1912, p. 118 c
121.
IX Em 1936, as 350 maiores empresas empregam 900.000 operários (H. No-
au temps du Front populaire, op. cit., p. 97). Os es-
f';lIcrcs, La vie quotidienne 60 F. Simiand, Le salaire, l'éuoluiion sociale et Ia monnaie, .1 tomos, Paris,
rabclccirnentos com mais de 500 assalariados empregam mais ou menos um 1932.
IlT\:o dos 5,5 milhões dos assalariados da indústria (d. F. Sellier, Les salariés 61 Para um protótipo dessa literatura, cf. A. Stil, Le moi mineur, camarade, Pa-
cn Fnutcc, Paris, PUF, 1975). ris, 1949.

11,' 443
A', MIIAM( lRFOSES NA QUESTÃO SOCIAL VIl-A SOCIEDADE SALARIAL

cia coletiva do fato de ser expoliada dos frutos de seu trabalho. completamente
('st~1 sob o domínio da necessidade, nem à mer-
A própria postura reivindicativa não se dá, pois, sem a cons- \'0 da arbitrariedade de um senhor. Orgulho operário que sem-
ciência da subordinação. Sentir-se dependente constitui o mo- pre preferirá se virar para "juntar as duas pontas" ao invés de
tor da luta para se reapropriar da dignidade social do trabalho pedir ajuda: "nós", a gente ganha nossa vida. Mas "eles", é re-
"alienado" pela organização capitalista da produção. al mente outra coisa. "Eles" têm riqueza, poder, acesso à cultu-
Seria possível, portanto, caracterizar o lugar que a condi- ra legítima e a uma multidão de bens que nunca conheceremos.
ção operária ocupa na sociedade da década de 3 O por uma rela- "Eles" são pretensiosos e esnobes, e é necessário desconfiar de-
tiva integração na subordinação. Os fatores de pertencimento les mesmo quando pretendem querer nosso bem, porque são
foram sublinhados: seguros sociais, direito do trabalho, ga- astutos e capazes de manhas que nunca poderemos controlar.
nhos salariais, acesso ao consumo de massa, relativa partici- A consciência dessa clivagem é rnantida pela experiência
pação na propriedade social e até mesmo no lazer. O traço que a classe operária vive nos principais setores da existência
comum dessas conquistas é que contribuíram para estabilizar a social, o consumo, a habitação, a instrução, o trabalho. O con-
condição operária, instaurando uma distância em relação à sumo, como já foi dito, não se reduz mais à satisfação das ne-
imediatidade da necessidade. Neste sentido, a condição operá- cessidades básicas para a sobrevivência e a classe operária tem
ria difere muito da condição proletária do começo da indus- acesso a um "consumo de massa". Porém, a parte destinada à
trialização, marcada por uma vulnerabilidade de todos os alimentação nos orçamentos operários ainda é de 60% nos
momentos. E também nesse sentido, pode-se falar de integra- anos 1930 (é superior a 700/0 em 1856 e a 65% em 189063).
ção: a classe operária foi repatriada da posição de quase exclu- Maurice Halbwachs, corno Veblen, mostrou as incidências an-
são que ocupava quando na margem extrema da sociedade. tropológicas da diminuição de uma parte majoritária do orça-
Entretanto, esse repatriamento se insere num quadro que mento sobre o consumo alimentar: é a participação na vida
ainda contém traços dualistas. Entendamos bem: sociedade social que se acha amputada pela fragilidade das despesas que
ainda dualista, mas não dual. Uma sociedade dual é uma socie- não têm por finalidade a reprodução biológica'". Suas análises
dade de exclusão em que certos grupos não têm nada e não são são de 1912, mas a situação não mudou substancialmente 25
nada, ou quase. No modelo que evoco aqui, coexistem cortes e anos mais tarde: do fim do século XIX até a década de 30, a
interdependência, prevalecem relações de dominação que não parte das despesas não alimentares nos orçamentos operários
correspondem, entretanto, a situações em que os subordina- ganhou apenas cinco pontos.
dos estão entregues à arbitrariedade. Mas a coexistência de in- A habitação popular também não é exatamente o "inferno
dependência na dependência alimenta o sentimento de uma
da moradia" que Michel Verret evoca para o século XIX, mas a
oposição global de interesses entre dominantes e subordina-
insalubridade e o superatravancamento ainda são o quinhão
dos. Semelhante estrutura social é vivida através da bipolarida-
da maioria das moradias populares. Em relação a Paris, urna
de entre "eles" e "nós", tão bem evidenciada por Richard
Hoggart. 62 "N os,
/ " a gente nao
- e/ zum bi1; ternos a nossa di19l11ida-
de, nossos direitos, nossas formas de solidariedade e de organi- 63 R. Boycr, "Lcs salaires en longue période",Économie et statistiqucs, n"
zação. Que nos respeitem: o operário não é um doméstico, não 103, set. 1978, p. 45. Somente no final dos anos 1950 é que o item alimenta-
ção, 110 orçamento dos operários, passa a ficar abaixo de 50().11.
64 M. Halbwachs, La classe ouuriere et les niueaux de uie, op. cit., d. E. Ve-
blcn, Thc Theorv of thc Leisurc Class, Londres, 1924.
I,' 1\. Iloggart, La culturc du pauure, trad. fr. Paris, ÉditiollS de Minuit, 1970.

1/1 445
i\" ivll·:Ii\MORFOSES NA QUESTÃO SOCLAL VII - A SOCIEDADE SALARIAL

pesquisa de 1926 mostra que um habitante em cada quatro dis- operário "pede sua conta" ou o empregador o "despede", um e
põe de menos de meio cômodo e que os horríveis "quartos mo- outro com uma fraciilid1 a d e espantosa 69 . E" h'a, eviid entemente, a
biliados" alojam ainda 320 mil pessoas. A situação quase não ameaça do desemprego que a crise do início dos anos 30 acaba
melhora nos anos seguintes: constroem-se apenas 70 mil habi- de reativar. Os imigrantes sofrem-na de frente: 600 mil, de cer-
tações por ano na França no fim dos anos 3 O, contra 25 mil na
Alemanha". O urbanismo das "cidades-jardins" permanece
° ca de dois milhões de estrangeiros que vieram se instalar na
França na sequência da punção demo gráfica devida à Grande
restrito a algumas municipalidades socialistas ou radicais, e as Guerra, são expulsos. Mas os autóctones não são poupados.
experiências do tipo Cidade Radiosa à moda de Le Corbusier Em 1936, recenseia-se cerca de um milhão de desemprega-
são excepcionais. Ademais, são para os empregados e as classes dos". O momento do Front Populaire é também um período
médias nascentes mais do que para os operários'". de instabilidade econômica e social a que logo vai suceder o
Quanto à instrução, a gratuidade do ensino secundário só drama da derrota.
é conquistada em 1931. Os efetivos deste ensino permanece- Enfim, insistiu-se longamente sobre isto: o seguro obriga-
ram constantes entre 1880 e 1930, 110 mil alunos em rnédia'". tório é um dispositivo que vai se mostrar decisivo para afastar a
É o mesmo que dizer que as crianças das classes populares estão vulnerabilidade operária. Porém, nos anos 30, começa apenas
acantonadas nas fileiras "primárias". O tema do perigo de uma a fazer sentir seus efeitos. As aposentadorias operárias são irri-
instrução avançada demais que "desarraiga" o povo é uma sórias e, dadas a duração da capitalização e a mortalidade ope-
constante da literatura da época 68. J ean Zay, ministro do Front rária, há então menos de um milhão de beneficiários'". Na
Populaire, prolonga até 14 anos a escolaridade obrigatória e década de 30, os velhos operários que devem recorrer à assis-
tenta impor uma classe de orientação e um tronco comum para tência para sobreviver são quase tão numerosos quanto os que
todos os alunos. Mas a "democratização" (relativa) do ensino podem se beneficiar de subvenções sociais obrigatóriasf.
deverá esperar a década de 50 para se impor. A associação desses traços mostra a persistência de um for-
Em relação ao emprego, sublinhou-se a situação de depen- te particularismo operário. Nível de vida, nível de instrução,
dência social dos operários nos locais de trabalho. Mas, além modos de vida, relação com o trabalho, grau de participação
disso, o mercado de trabalho ainda é dominado, nos anos 30, na vida social, valores partilhados desenham uma configura-
por uma mobilidade feita de incerteza sob a ameaça de demis- ção específica que constitui a condição operária em classe so-
são contra o que a legislação do trabalho não protege. As con-
tratações por tarefa, por hora ou por jornada são as mais
frequentes. Na maioria das vezes, não existe nem contrato es- Cf. R. Salais, "La formation du chôrnage comme catégorie", loco cito Para
1,C)

um testemunho autobiográfico sobre a vida operária na época, cf R. Mi-


crito nem estipulação preliminar da duração da contratação. O
chaud,j'avais uingt ans, Paris, Éditions syndicalistes, 1967, que mostra a per-
manência da mobilidade profissional e do caráter "lábil" da relação com o
empregador.
65Cf. J.-p. Flamand, Loger le peuple. Essai sur l'histoire du logement social,
11I Cf. J.-J. Carré, P. Dubois, E. Malinvaud, La croissance [rançaise, Paris, Le
Paris, La Découverte, 1989.
Seuil, 1972. Os desempregados representam, então, 8,5% dos assalariados e
66L. Haudeville, Pour une civilisation de I'bahit at; Paris, Éditions ouvriêres,
4,5% da população ativa (F. Scllier, Les salariés en France, Paris, PUF, 1979,
1969. p.87).
67Cf. A. Prost, Hisloire de l'ensetgnement en France, 1800-1967, Paris, A. 11 Cf. A. Prost, "J alons pour une histoire des retraites ct des retraités", loco cito
Colin, 1968.
12 A.-M. Guillemard, Le déclin du social, Paris, Le Seuil, 1986.
«x Desde M. Barres, Les Déracines, Paris, 1897.

447
I\~ M F.Ti\MORI'OSES NA QUESTÃO SOCL'\L VJI - A SOCIE DADE SALARIAL

cial. Não é mais a "casta flutuante [... ] que se extravaza na deu suas provas, pois qlle conquistas importantes foram obti-
nação" que evocava Larnartine quando da primeira fase da in- d:1S. .Mas não implica necessariamente no fim do messianismo
dustrialização (cf. capítulo V). Mas "o isolamento social e cul- operário. No imaginário militante, 1936 ocupa um lugar, ao
turaldos operários continua bastante grande para que relações l.ido de 1848 e da Comuna de Paris, entre esses momentos fun-
de classes se estabeleçam entre suas unidades sociais que ainda d.idores durante os q uais se esboço u a possibilidade de uma or-
constituem grupos reais,,73. Sem dúvida, é necessário desconfi- g:1l1ização alternativa da sociedade. A "geração" que se
ar das pinturas, que hoje assumem uma tonalidade nostálgica, levantou em 1936 vai viver a Ocupação através da Resistência
da vida operária com suas solidariedades e sua moral, seus pra- ~.animar lutas sociais muito duras após a Libertação, formando
zeres simples e suas formas intensas de sociabilidade. Entre- o núcleo, na CGT principalmente, de uma atitude de classe
75
tanto, não é menos verdadeiro que, tanto pelo lugar subor- combativa .
dinado que ocupa na hierarquia social quanto por sua coesão Principalmente porque não faltam inimigos pela frente. A
interna, o mundo operário aparece, simultaneamente, fazen- outra parte da alternativa é representada pela ameaça fascista e
do parte da nação e organizado em torno de interesses e de as- por uma França conservadora que - como em 1848 ou em
pirações próprios. IH71 - espera sua revanche. Basta percorrer a imprensa da
Essa situação mostra o quanto permanece instável o mode- época para perceber até que ponto foi um período de antago-
lo de integração que caracteriza os anos 30 e que continua do- nismos políticos e sociais agudos. Desde o dia 5 de maio de
minante até os anos 5 O. Será que a classe operária não se 1')36, Henry Béraud, no Gringoire, tenta mobilizar os medos
tornou demasiado consciente de seus direitos - ou demasiado do francês médio contra a ameaça dos Vermelhos deste modo:
ávida, dirão seus adversários-, demasiado combativa também "Você gostava de seu jardinzinho, meu caro, de seu café, seus
para que se perpetue sua dependência? Esta conjuntura incerta amigos, seu carrinho, seu título de eleitor, seus jornais salpica-
poderia desembocar em dois tipos de transformação: prosse- dos de sátiras e de variedades. Pois bem, amigo, você vai dizer
guimento das "conquistas sociais", corroendo progressiva- .uleus a tudo isso,,76. E do outro lado quando, no início do ano
mente a distância entre "eles" e "nós", ou então tomada do de 1938, a derrota do Front Populaire está mais ou menos con-
poder pela classe operária organizada. Ou seja, para simplifi- sumada no plano político, Paul Faure escreve em le Populaire,
car, reformas ou revolução. Tal poderia ser a reformulação da órgão oficial do Partido Socialista: "Negar a luta de classes se-
questão social no fim da década de 30. ria negar a luz do dia,,77.
Trata-se menos de duas fórmulas antagônicas do que de
duas opções que se evidenciam a partir de uma mesma base de
práticas, de uma mesma condição. A classe operária não está 1\ destituição
mais na situação de "não ter nada a perder além de suas corren-
tes". Donde a consolidação, no movimento operário, "de um Entretanto, a classe operária não foi venci da na ocasião de
princípio positivo de objetivos a defender e a atingir,,74. Tal re- lima luta frontal, como foram, por exemplo, os operários pari-
alismo caminha para a consolidação de um reformismo que já sicnses em junho de 1848. Haveria, certamente, muito a dizer

", Cf. G. Noiricl, Les ouuriers dans Ia société [rançaise, op. cit., capo VI.
"j \ 1\. Touraine, La conscience ouuriére, op. cit. p. 215. '" Citado in P. Reynaud, Mémoires, t. 11, Paris, Flamrnarion, 1963, p. 5I.
"fI thul., p. 353. . llnd., p. 151.

1·/.'; 44')
/\S M I'Ti\MORfOSES NA QUESTÃO SOCIAL VfT - A SOCIEDADE SALARIAL

sobre as peripécias do período da Ocupação e sobre a partici- tópica, à categoria dos operários, distintos dos serviçais na agri-
pação de uma parte da classe operária na Resistência, sobre o cultura, dos empregados no comércio, na indústria e também na
contexto da libertação, das greves quase insurrecionais de agricultura, dos chefes de serviço, de exploração, engenheiros,
1947 e das lutas contra o "imperialismo americano", e tam- diretores de todos os gêneros.".
bém sobre a obstinação da CGT e do Partido Comunista em De fato, somente a classe operária produz "uma prestação
manter, pelo menos verbalmente, uma postura revolucioná- 11(, puro trabalho" que constitui "um quadro econômico distin-
ria: são outros tantos episódios de um enfrentamento social I ()"xo . 1\1as o que é uma "prestação de puro trabalho"? Um tra-
cristalizado nos anos 30 e que permanecerão vivos até os anos 1);lIho puramente braçal, sem dúvida, mas há também o
60. Mas essa postura de oposição radical se corrói progressiva- I rabalho nas máquinas, e Simiand é obrigado a acrescentar
mente porque, aquém das vicissitudes políticas, está minada 1IIIla nuance: o operário aluga "um trabalho braçal ou, ao me-
por uma transformação de natureza sociológica. A classe ope- IIOS, cuja parte manual é essencial,,81. É também um trabalho
rária foi destituída da posição de ponta de lança que ocupava I k: pura execução, mas os empregados não são frequentemente
pela promoção da condição de assalariado. Esquematizando a puros executores? Simiand acrescenta uma outra correção que
transformação que se realizou durante cerca de 40 anos (dos I rui seu embaraço: o empregado "aluga um trabalho não braçal
anos 30 aos anos 70), dir-se-á que o "particularismo operário" 1111, pelo menos, cujo efeito material não é essencial'Y. E como
não foi abolido, mas deixou de desempenhar o papel de "atra- 1 iCUl1 os chefes de serviço, engenheiros, diretores, que não são
tivo,,78 que tinha tido no processo de constituição da sociedade proprietários da empresa? Também eles fornecem, exclusiva-
industrial. O salariado operário foi literalmente esvaziado das mente, uma "prestação em trabalho". Por que lhes recusar o es-
potencialidades históricas que o movimento operário lhe em- I .uu to de assalariados do estabelecimento? Mas, para Simiand,
prestava. A condição operária não deu à luz uma outra forma ISSO não se discute.
de sociedade, apenas se inscreveu num lugar subordinado na De fato, Simiand ocupa uma posição defensiva, já em via
sociedade salarial. Quais os processos que subentendem tal dl' ser ultrapassada e que remete ao modelo de sociedade do
transformação? I orneço da industrialização, caracterizado pela predominân-
A quase sinonímia do salariado e do salariado operário é li:1 das tarefas de transformação direta da matéria. Ora, o pro-
patente até o início dos anos 3 O. François Simiand, em sua obra I csso de diferenciação da condição de assalariado já está muito
de 1932 que pretende ser uma súmula sobre o salário, confir- ('llgajado nos anos 30. Relativiza progressivamente o peso do
ma-a pura e simplesmente: ',.\ LI riado operário e, portanto, o da condição operária na orga-
A denominação de salário parece-nos, no uso corrente, apli- uização do trabalho. Será evidenciado o sentido dessas trans-
car-se em sentido próprio, de maneira ao mesmo tempo geral e

I'. Simiand, Le salaire.I'éuolution


'I sociale et Ia monnaie, op. cit., t. r, p. 151.
78Tomo emprestado de Luc Boltanski o termo "influenciador ", Le: cadres, la I, por isso que a remuneração das outras formas de trabalho deve ter outras
[ormation d'un groupe social, Paris, Editions de Minuit, 1982, p. ])2, que es- 111'signaç6es: "vencimentos", "ajudas de custo", "ernolumenros", "gratifica-
pecifica o papel dominante desempenhado por um grupo social na rcorgam- ',,11) de função" erc., mas não "salários".
zação de um campo profissional. Poder-se-ta dizer que o conjunto dos 1111 lhid., p. 173.
assalariados operários desempenhou primeiro esse papel quanto à rcesrrutu-
111 tbid., p. 171.
ração da condição de assalariado, antes de ser suplantado por um conjunto
de assalariados empregados de classes médias. 11' llnd., p.17l.

450 41>1
AS 1v11~rAMORFOSES A QUESTÃO SOC1AL VI[ - t\ SOCIEDAl)E SALARIAL

formações até 1975, da ta que pode ser tomada para marcar a Assim, as mudanças inventariadas pelas estatísticas traduzem
RJ
apoteose d a SOCle' d. a dee salari
sa ana I . . I 11li: 1transformação essencial da estrutura salarial. Se, em núme-
Crescimento maciço da proporção dos assalariados na po- ,'I " o salariado operário mais ou menos se manteve, sua posi-
pulação ativa em primeiro lugar: representa menos da metade ,.:10, nessa estrutura salarial, fundamentalmente se degradou.
(49%) desta população em 1931, perto de 83% em 1975. Em nú- Em primeiro lugar, porque a classe operária perdeu, seria
meros absolutos, quando se incluem os operários agrícolas, o nú- 1)( lssível dizer, o estrato salarial que lhe era inferior quanto ao
mero dos trabalhadores braçais caiu de 9 milhões e 700 mil para 8 o; 1,11 us social, ao salário e às condições de vida. Os operários agrí-
milhões e 600 mil; em compensação, o total dos operários não .ol.ts representavam, ainda no início dos anos 30, um quarto
agrícolas aumentou ligeiramente, de 7 milhões, e 600 mil pa~a_8 dos trabalhadores braçais (eram mais da metade em 1876). Em
milhões e 200 mil. Mas a transformação essencial da composiçao Il)75, praticamente desapareceram (375.000). A classe operá-
da população ativa é o aumento dos assalariados não operários. ri:1 representa, desde então, a base da pirâmide salarial- de fato,
Eram 2,7 milhões em 1931; são 7,9 milhões em 1975. Portanto, ,I base da pirâmide social'". Em con trapartida, acima dela desen-
seu número quase alcançou o dos operários (e o ultrapassou am-
volverarn-se não só um salariado empregado - que pode não ser
plamente depois). Mas também .são consideráveis as tra~1s~or- .uuiúde, segundo a expressão consagrada, senão um "proletari-
mações internas a esse grupo. Ainda que os dados ~statlstlcos .ulo de colarinho branco,,86 -, mas sobretudo umsalariado "bur-
não permitam comparações de precisão absoluta (assim, mesmo
que se contem então cerca de 125.000 "peritos e té~nico,~", ~s
categorias de "quadros médios e de quadros supeno~es. nao ,I,·lm, A, Lebaupin, "Les salaires de 1950 à 1975", Économie et statistiques,
existem nos anos 30), pode-se afirmar que a grande maioria dos 11" 113, julho-agosto de 1979; F. Sellier, Les salariés en France, Paris, PUF,
assalariados não operários eram pequenos empregados dos se- 1'17':1; M. Verret, Le trauail ouurier, Paris, A. Colin, 1988; F. Sellier, "Les sala-
I u-x, croissance et diversité", et M. Verret, "Classe ouvriêre, conscience ou-
tores público e privado, cujo status, se não era considerado su- vricre", in ].-D. Reynaud, Y. Graffmeyer, Français, qui êtes-vous?, Paris, La
perior ao dos operários, permanecia, em geral, medíocre. Em I )ocumentarion française, 1981. Na falta de fontes homogêneas, a data de re-
1975, entretanto, os "simples empregados" representam menos h-rência para os anos 30 pode variar de 1931 a 1936, mas as consequências
.I"SSo1 disparidade são mínimas no que diz respeito à argumentação geral.
da metade dos assalariados não operários, diante de 2.700.000
"quadros médios" e 1.380.000 "quadros superiores": são esses !I, () crescimento do conjunto de assalariados da indústria alimenta-se de
,11l:IS fontes principais: a redução das profissões independentes e o êxodo ru-
grupos que representam um salariado de grau alto que conhece- r.r], Sobre o último ponto, cf, F. Sellier,Les salariés en France, op, cit., p. 10sq,
84
rarn o aumento mais. consiiderá erave 1 . '11'" insiste numa grande resistência do campesinato à atração da cidade e da
Indústria (em 1946, a população ativa agrícola é praticamente tão numerosa
.ju.into em 1866). Disso resulta que quem deixa o campo primeiro são os
"I'cdrios agrícolas e não os agricultores, também os filhos antes dos adultos,
8.1 Geralmente se situa em 1973 a "crise" a partir de que a condição salarial IlIas os filhos de assalariados antes dos filhos de agricultores. Assim, para es-
começou a degradar-se. Mas, além do fato de que os primeiros efeitos só são ';"S operários agrícolas e seus filhos, o acesso à classe operária pôde represen-
sentidos depois de um certo tempo (assim, ~ desemprego aumenta d: modo 1.11, durante muito tempo, uma relativa promoção social. Mas quando esse
muito significativo apenas em 1976), 197:> representa uma data comoda, I I'lTlI ta 111
cn to se esgota, a condição operária torna-se a última das posições:
porque inúmeros levantamentos estatísticos fixam,:-na como um n~oment~ de .iqucla em que se fica quando não se pode "se levantar", ou na qual se cai por
transição. Também se pode observar que em 197) que a população operaria
é
urohilidadc descendente.
chegaao máximo na França. A partir daí, começa a diminuir rcgulararncnre.
11•• ()mundo dos empregados é atingido, principalmente após a Primeira
g4Principais fontes utilizadas aqui, bem como, salvo menção ,::on,trária, nas (;II(ITa Mundial, pela racionalização do trabalho: () trabalho de escritório
páginas seguintes: L. Thévenor "I,es catégories socialcs en 197). L eX[~IlSI0n ",,'c1I1iza-se (a máquina de escrever aparece no início do século), cspcciali-
du salariar", Economie et statistiques, n" 91, Julho-agosto de 1977; C. Bau- ',I se, coleriviza-se e também se feminiza, o que sempre marca uma perda

452 4S3
VII - A SOCn:DADE SALARIAJ"
I\S MF'I't\MORFOSES NA QUESTÃO SOCIAL

Ir;H,;ão ela força desses obstáculos tradicionais para pensar um


guês". O sal ariado operário corre o risco, então, de ser
~,;tlariado "burguês" integral: em 1937, a Corte de Cassação se
submerso numa concepção cada vez mais extensiva da condição
recusa a reconhecer a qualidade de acidentado do trabalho a
de assalariado e, ao mesmo tempo, esmagado pela proliferação
11111 méd ico: um homem da arte «não pode manter uma relação
de situações salariais sempre superiores à sua. Em todo caso,
til' su bordinação" comum diretor de hospital. Esse médico fe-
despossuído do papel de "atrativo" que pôde desempenhar para
rido enquanto trabalhava não é, pois, o assalariado do estabe-
a constituição da condição de assalariado.
I['(I imento núbli1CO que o emprega 88 .
me nto pu
A análise da promoção da condição de assalariado dos
É significativo que o primeiro grupo profissional "respei-
anos 30 aos anos 70 confirma essa progressiva destituição da
t.ivel" a reivindicar a condição de assalariado seja o dos enge-
classe operária. Luc Boltanski mostrou a dificuldade com que
nliciros e, também, que tal iniciativa seja tomada em 1936: o
um "salariado burguês" tinha começado a se impor segundo
Si ndicato dos Engenheiros Assalariados foi criado no dia 3 O de
uma lógica da distinção que aprofunda sua diferença em rela-
[uuho de 193689. Afirmação de uma posição "média" entre os
ção às características do salariado operário. Nessa ocasião, foi
patrões e os operários, preocupação também, sem dúvida, em
apresentado um novo episódio da oposição entre o trabalho beneficiar-se das vantagens sociais conquistadas pela classe
assalariado e o patrimônio, que já havia marcado o século XIX operária, mas marcando a diferença em relação a ela. Em todo
no momento das discussões sobre o seguro obrigatório: força .nso, essa atitude será absolutamente clara após a guerra, A
da tradição tornando difícil pensar posições respeitáveis que ( .onfederação Geral dos Quadros dedicará, então, uma parte
não sejam assentadas sobre a propriedade ou sobre o capital importante de sua atividade a reivindicar uma ampliação da
social vinculado aos "ofícios" e às profissões liberais. Assiste-se hierarquia dos salários e, ao mesmo tempo, um regime de apo-
assim a curiosos esforços para fundar a respeitabilidade de no- sentadoria específico que evite qualquer risco de confusão com
vas posições salariais sobre um "patrimônio de valores que são, ;IS "massas" operárias.
de fato, os valores das classes médias, o espírito de iniciativa, a Se constituíram, sem dúvida, a ponta-de-lança da promoção
poupança, a herança, uma modesta abastança, a vida sóbria, a de um salariado "burguês", os engenheiros estão longe de repre-
consideração'Y. A situação é então mais confusa à medida que sentar o conjunto dos quadros da indústria. Desde sua fundação,
muitas dessas posições salariais de alto grau são primeiro ocu- 110 final de 1944, a Confederação Geral dos Quadros recruta de
padas por filhos de família detentoras de um patrimônio. modo amplo. Define como quadro todo agente de uma empresa
Tiram eles sua respeitabilidade de sua ocupação ou de sua he- pública ou privada, investido de uma parcela de responsabilida-
rança? Essas duas dimensões são difíceis de dissociar. Uma ilus- de, O que inclui os agentes do magistério. Por outro lado, os sindi-
catos operários são obrigados a implantar estruturas especiais
para receber "engenheiros e quadros": a CFTC, desde 1944 (Fé-
de status social. Como muitos operários, o empregado das grandes lojas de
ilération Française des Syndicats d'Ingénieurs et Cadres); a CGT,
departamentos ou dos escritórios da fábrica perde a polivalência do clássico
empregado, tipo escrivão de tabelião, espécie de subernpreitador de seu em- em 1948 tUnion Générale des Ingénieurs et Cadre/o).
pregador.
X7 Abade J. Lccordier, Les classes moyennes en marche, Paris, 1950; p. ~82,
°
eirado por L. Bolta nski, J .es cadres, op. ctt., p, 10 1, que observa caráter tar- IIH Citado por L Boltanski, Les cadres, op. cit., p. 107,
dio" desse texto de 1950 apresentando o mesmo tom que a literatura dos
11" lbid., p, 106,
al1osl930, empenhada em justificar a realidade de uma "classe média" (E o
"'ISO de A. Desquerat, Classes moyennes [rançaises, crise, programme, orgal11- '1(1 Ibid., p, 239 sq.
sat ion, Paris, 1939).

45S
/1-/
,\S 1\1E'1i\MORI'OSES NA QUESTÃO SOCIAL VII - A.SOCIEDADE S/\I.i\I(Ii\1

Paralelamente a essa transformação da estrutura salarial Il'll1~1 dasegmentação do mercado do trabalho, isto é, distinção
das empresas, o desenvolvimento das atividades "terciárias" "IIITC núcleos protegidos e trabalhadores instáveis aparece no
está na origem da proliferação de um salariado não operário: 111 íci o dos anos 7 O93. Sem dúvida, a unidade da classe operária
multiplicação dos serviços no comércio, nos bancos, nas admi- 1111.11ca foi realizada: por volta de 1936, as disparidades entre
nistrações das coletividades locais e do Estado (só a Educação d itcre ntes categorias de trabalhadores quanto à sua qualifica-
Nacional conta perto de um milhão de agentes em 1975), aber- \.:Í< 1, ao seu status público ou privado, à sua nacionalidade, à
tura de novos setores de atividade, a comunicação, a publicida- SII:l implantação em grandes indústrias ou em pequenas em-
de91 ... A maioria dessas atividades são atividades assalariadas. presas etc., deviam ser grandes também. Más, então, parecia
A maioria também supera em remuneração e em prestígio o sa- estar em curso um processo de unificação atra vês da tomada de
lariado operário. Desde 1951, Michel Collinet pinta uma msciência de interesses comuns e da oposição ao "inimigo de
l(

"classe operária assalariada" já muito complexa, que compre- .Iasse". Porém, por razões que serão evocadas, desde antes da
ende alguns empregados, os funcionários médios, os chefes de .lécada de 70, essa dinâmica parece quebrada, deixando a con-
escritório, os quadros, os agentes de mando intermediário, os .liçào operária entregue às suas disparidades "objetivas'r'".
, .
tecmcos, os engen h'erros 92 ... Uma outra mudança, sublinhada com menos frequência,
Não só a condição operária contornada e dominada por
é
,C1l1dúvida tem uma importância maior ainda para explicar as
uma gama cada vez mais diversificada de atividades salariais, Ir.insforrnaçóes da condição operária considerada no longo
mas sua coerência interna enfrenta dificuldades. Em 1975, prazo, Uma pesquisa de 1978 - mas o movimento começou
contam-se mais ou menos 40% de operários qualificados, 40% hcrn antes - que, dentre outras, incide sobre o "principal tipo
de operários especializa dos e 20% de operários não qualifica- de trabalho efetuado" pelos operários constata que os que se
dos. A parte das mulheres cresceu para constituir 22,9% da po- dedicam a tarefas de fabricação representam apenas mais de
11111 t erço d a popu Iaçao- operana, . 95 . E m outros termos, uma
pulação operária, sobretudo nos empregos subqualificados
(46,6% dos não qualificados são mulheres). Quase um operá- maioria de operários dedica-se a tarefas que poderiam ser cha-
rio em cinco é imigrante. O desenvolvimento do setor público mudas de infraprodutivas, do tipo manutenção, entrega, em-
(um quarto do conjunto dos assalariados) fortalece um outro
tipo de clivagem: os empregados do Estado, das coletividades "\
De fato, o tema emerge nos Estados Unidos durante os anos 60 e encontra
locais e das empresas nacionalizadas beneficiam-se, em geral, .urdiência na França nos anos 70, cf M.]. Piore, "On the Job Training in the
de um estatuto mais estável do que aqueles do setor privado. O I )lIallabour Marker", in A.R. Weber (ed.),Public and PrivateManpower Po-
licics, Madison, 1969, e M.]. Piore, "Dualisrn in the Labour Market" Revue
rconomique, na 1, 1978. '
91 A distinção entre as atividades primárias (agrícolas), secundárias (indusrri- "1 Faço minha a tese cenrral de E.P. Thompson segundo a qual uma classe so-
ais) e terciárias (os serviços) foi introduzida por C. Clark, The Conditions of "ial não é apenas um "dado" ou uma coleção de dados empíricos. É "fabrica-
Economic Progress, Londres, MacmiJlan, 1940, e popularizou-se na França ,'.'1" através de uma dinâmica coletiva que se forja no conflito (d. E.P.
através da obra de Jean Fourastié. O desenvolvimento econômico e social se I hompson, La [ormation de Ia classe ouuriêre anglaise, op. cit.).
traduz pelo desenvolvimento das atividades tcrciárias. Mas além do setor ter- '1\ A.-F. Moliné, S. Volkoff, "Les condirions de travail des ouvricrs et des ou-
ciário comercial c do administrativo, pode-se identificar um "tcrciári o indus- vriêres", Economie et statistiques, n? 118, janeiro de 1980. Essa mudança é
trial" que ganha importância cada vez maior. Trata-se de categorias ele íorterncntc ligada ao declínio das formas mais tradicionais do trabalho ope-
empregos elo setor industrial que não são diretamente produtivas, como o r.mo. ASS1111, os mmeiros, que eram 500.000 em ] 930, não vão além dos
caso dos datilógrafos, dos contadores ... I iJO.OOO em 1975; as operárias do setor têxtil passaram de 1,5 milhão :1
92 M. Collinct, Eouurier [rançais, essai sur Ia condition ouuriére, Paris, Éditi- ,~iJO.OOO no mesmo período (cf. F. Sellicr, "Lcs salariés: croissance er divcrsi-
ons ouvrieres, 195], 2" parte, capo IV Il;", loco cit., p. 41\).

ts« ·/SI
VII-ASOCIEDADE SALARTAL
AS MI','I'AMORfOOSES NA QUESTÃO SOCTAL

Fssas transformações em profundidade, tanto do trabalho


bal agem, serviços de guarda etc., ou a atividades mais próximas
(llll'drio quanto do lugar que ocupa no seio da condição de as-
da concepção e da reflexão do que da execução, do tipo con-
·"d;lriado, não podem deixar de abalar a concepção do papel
trole das máquinas, regulagens, testes, manutenção, estudos,
'111l' era atribuído à classe operária na sociedade industr iaJ. Po-
organização do trabalho.
,lt-d ela conservar a centralidade que, simultaneamente, lhe
Trata-se de uma mudança considerável, se não da realida-
«mprestarn os que exaltam seu papel revolucionário e os que a
de de todas as formas do trabalho operário, pelo menos da re-
percebem como uma ameaça para a ordem social? O debate
presentação dominante que lhe era dada na sociedade
l'st~11ançado desde o final dos anos 50, e Michel Crozier é um
industrial. O operário aparece aí como o homo [aber por exce-
dos primeiros a proclamar que "acaba-se a era do proletaria-
lência, aquele que transforma diretamente a natureza através
do": "Uma fase de nova história social deve ser definitivamen-
de s~u trabalho. O trabalho produtivo encarna-se num objeto
Ic encerrada, a fase religiosa do proletariado't ".
fabncado. Para a tradição da economia política inglesa, bem
Enrretanro, a sorte não está lançada completamente, por-
como para o marxismo, o trabalho é essencialmente a produ-
que as transformações da condição operária podem dar lugar a
ção de bens materiais, úteis, consumíveis'". A atividade de
duas interpretações aparentemente opostas. Uma "nova classe
fabricação presta-se, aliás, a duas leituras opostas. Para Halb-
operária" seria constituída através do desenvolvimento das
wachs, por exemplo, evidencia o caráter limitado da condição
formas mais recentes que a divisão do trabalho assume. Mas os
operária que "só se encontra em relação com a natureza e não
novos agentes que desempenham um papel cada vez mais deci-
com os homens, permanece isolada em face da matéria cho-
, ' sivo na produção, operários das indústrias "de ponta",mento-
ca-se apenas com as forças inanimadas". E por isso que a classe
res mais do que executores, técnicos, desenhistas, quadros,
operária parece "uma massa mecânica e inerte,,97. Marx, ao
engenheiros erc. continuam a ser destituídos do poder de deci-
contrário, faz dessa atividade de transformação da natureza o
são e do essencial dos benefícios de seu trabalho pela organiza-
próprio ?,o h.omem, a fonte de todo valor, e funda, assim, o pa-
ção capitalista da produção. Ocupam assim, no que se refere ao
pel derniúrgico que atribui ao proletariado. Mas é provável
antagonismo de classes, uma posição análoga àquela do antigo
que um e outro - bem como Simiand, conforme foi visto - refi-
proletariado e são, de agora em diante, os herdeiros privilegia-
ram-se à concepção do trabalho operário que prevalecia no
dos para retomar o empreendimento de transformação re-
início da industrialização e que começa a se tornar obsoleta
volucionária da sociedade que a classe operária tradicional,
co~ os progressos da divisão do trabalho. O trabalho operário
seduzida pelas sereias da sociedade de consumo e enquadrada
deixa de ser o paradigma da produção das "obras,,98.
por aparelhos sindicais e políticos reformistas, abandonam 100.

9~ Cf. P Lantz, "Travail: concept ou notion rnultidirnensionnelle", Futur an-


térteur, n" 10, 1992.
97
M. Halbwachs, La classe ouuriêre et les niueaux de vie op. cito p. 118 e p 99
. Arguments, "Qu'est-ce que Ia classe ouvriêre française", número especial,
XVII. ' , "
Janeiro-fevereiro-março de 1959, p. 33. O debate é retomado com a erner-
t>i-!
H. A_rendt, em La condition de l'homme moderne, op. cit., capo HI, critica a gênciado tema da "nova classe operária", cf. o número especial da Reuue
confusão entre o trabalho e a obra que teria caracterizado a reflexão sobre o tra- (rança/se des sctcnces politiques, vol, XXII, n" 3, junho de 1972, particular-
b:llho no período moderno, não só em Marx mas já em Locke eAdam Srnith. Po- mente o arugo deJ.-D. Reynaud, "La nouvclle classe ouvrierc, Ia technoloaie
rem, poder-se-ia acrescentar que Hannab Arendt pode elaborar essa crítica na er l'hisroire". o
IlIl'l:~lc do século XX, isto é, após quase dois séculos de transformação da con- [00 C f .. S erge Mallct, La nouuelle classe ouuriére, Paris, l.e Seuil, ] 966.
<"<'P\':IO do trabalho industrial tal como emergiu no início da industrialização,

45')
., 18
I\,~ MFT/\MOl\FOSES NA QUESTÃO SOCJt\L VI1- A SOCIEDADE SALARIAL

Inversamente, a tese do "aburguesarnento" da classe ope- ,I ,h;II11;) da revolução c de não desesperar; não mais BilJan-
rária apoia-se na elevação geral do nível devida que atenua os ,( uur, mas a CFDT e o PSU101_
antagonismos sociais. O "desejo de integrar-se numa socieda- I'orérn, o discurso oposto que procla ma a dissolução da C()J1-
de onde prima a busca do conforto e do bcm-esrar'Y'" leva a ,II~)(l operária na nebulosa das classes médias parece subenten-
classe operária a dissolver-se progressivamente no mosaico das ,1,,11) pelo desejo, também ele mais político do que científico, de
classes médias. (' -« .rcizar definitivamente os conflitos sociais. É a ideologia de
Realmente, essas duas posições op ostas são complementa- I( 1I1os os que proclamam o fim das ideologias. Perscrutam com
res, pelo menos quanto ao fato de que a mola propulsora de sua .rviclez o apetite de conswno da classe operária e constatam com sa-
argumentação é mais política do que sociológica. Serge Mallet lisL!7g? o enfraquccime~to dos investime~tos po~íticos e si~di-
superestima o peso dessas novas camadas salariais indus- (.IIS '. Mas omitem frisar que, a despeito da incontestável
triais102• Sobretudo, superestima a capacidade da classe ope- uulhoria de suas condições de existência, a classe operária não
rária em representar o papel de "atrativo" para essas categorias ';(' dissolveu, absolutamente, nas classes médias. As pesquisas
novas que se afirmam através das transformações da produção desenvolvidas nos anos 50 e 60 confirmam a persistência de um
(particularmente, o desenvol vimen to da autornaçâo, tema pri- p.uticularismo operário e de uma consciência da subordinação
vilegiado na Sociologia do Trabalho dos anos 60). No entanto, operária próxima da que foi analisada anteriormente para o fim
desde 1936, a CCT tinha feito a amarga experiência do "desa- d()s anos 30106. Dependência quanto às condições de trabalho
feto dos técnicos em relação ao movimento operário"lo3. Por cujas modalidades mudaram relativamente pouco no que diz
volta de 1968, com raras exceções, a análise dos conflitos so-
ciais, mesmo "novos", mostra que o principal tropismo dos '''I lissa inrcrpreração não trai o pensamento de Serge Mallet que apresenta-
técnicos, quadros e engenheiros leva-os a defenderem seus in- V;I, ele próprio, seu procedimento inicial não como "o de um homem de ciên-
,i;) que, de modo objetivo, formula problemas de conhecimento, mas o de
teresses específicos, passando pela manutenção da diferencia- (1111 militante do movimento operário, mais exatamente do movimenro sindi-
ção social e pelo respeito da hierarquia, mais do que a fechar ,,;tI" (La nouuelle classe ouuriêre, op. cit., p. 15). Pode-se apenas acrescentar
com as posições da classe operária. A não ser que tenham fortes que a aposta de Mallet quanto ao tropismo revolucionário desses novos
./gentes engajados no processo de produção durou muito tempo.
convicções políticas. Mas justamente: a convicção que suben-
111\ Assim, Dupeux já fala de "despolitização", de "declínio do mito revolu-
tende a exaltação do papel histórico da "nova classe operária" cionário" e de "declínio também da participação política" dos operários (La
na década de 60 é de essência política. Trata-se de salvaguardar SIlóété [rançaise, op. cit., p. 252).
li", A. Ligneux, J. Lignon, Eouurier d'aujourd'hui, Paris, Conthier, 1960; ].-M.
k.uuville, Condition ouuriére et intégration sociale, Paris, Éditions ouvriêres,
101 G. Dupeux, La société [rançaise, Paris, A. Colin, 1964, A literatura sobre 1%7; G. Adam, F. Bon, J. Capdevielle, R. Moureau, Eouurier francais en 1970,
essa ternática da marcha para a abundância e da apoteose das classes médias é l'aris, A. Colin. A síntese de J.H. Goldhorpe, D. Lockwood, F. Bechhofer, ].
pletórica. Pode-se tomar a obra de Jean Fourastié, particularmente Les Ti-ente l'Iatt, The Affluent Work Series, 3 volumes, Cambridge University Press,
Glorieuses, Paris, Fayard, 1979, como sua melhor orquesrração. I %8-1969, não tem o equivalente na França. Eis aqui entretanto, à medida que
I) rírulo "o operário da abundância" pode dar margem a interpretações equivo-
102 Um estudo da década de 70 estima que a proporção dos operários da in-
r.idas, uma das maiores conclusões da obra; "A integração às classes médias não é
dústria que correspondern a esse perfil seja de 5(!'h (d. P Hugues, G. Pctit, F.
um processo em curso atualmente, nem um objetivo desejado pela maioria de
Rcrat, "Les emplois industricls. Nature, Formation. Recrutement", Cahiers
IIOSSOS operários ... Vimos que o aumento dos salários, a melhoria das condições
'/11 Centre d'études de l'emploi, n" 4, 1973). "
de trabalho, a aplicação de políticas de emprego mais oportunas, mais liberais
11)1 S \VI
, . wci'I ,no re I'arorio' que. cncanunna
'I' a CC"['
T . apos as greves (e1" 1936, "Ré- 1'Ic., não modificam de modo fundamental a situação de classe do trabalhador
m.uqucs sur les cnseigncments à tirer dcs conflits du Nord", inLa condition industrial no interior da sociedade contemporânea" (edição francesa resumida,
omricr«, op. cito I.ouurier de l'abondance, Paris, Le Seuil, l 972, p. 210).

.u ,Il 461
AS METMfORFOSES NA QUESTÃO SOCIAL VlI - A SOCLEDADE SALARIAL

respeito à relação de subordinação, indissociavelmente técnica 1995, esse feliz OEe perguntar-lheo que pensa de ta] ajuste, ten-
. 1 que imp
e SaCIa, . I'icam 107 e qu e se tra duz uz sernnre oeloo senri
sempre pe sennrncn- do como referência uma posição de conselheiro de Estado11l •
to d os operanos e estarem situa os socia mente em bai
" d . d cc . 1
aixo ,,108 . A transformação decisiva que amadureceu ao longo dos
Particularismo, também, dos modos de vida e das formas de so- .uio s 50 e 60 não é, pois, nem a homogeneização completa da
ciabilidade: "Quer se trate dos hábitos de consumo, do estilo de sociedade, nem o deslocamento da alternativa revolucionária
vida, da utilização do espaço urbano, os índices numerosos e va- . sobre um novo operador, a "nova classe operária". O que se
riados manifestam uma especificidade dos comportamentos no deu foi, sobretudo, a dissolução dessa alternativa revolucioná-
, . ,,109 'r d
meio.
operano . 10 o mun do consome, mas nao - os mesmos
ria e a redistribuição da conflitualidade social conforme um
produtos; há mais diplomas, mas não têm o mesmo valor; mui- modelo diferente daquele da sociedade de classes: a sociedade
tos viajam em férias, mas não para os mesmos lugares etc, Inútil
salarial.
retomar aqui todas essas análises que relativizam o discurso do
Dissolução da alternativa revolucionária: a realidade his-
ecumenismo social. Este exprime um pensamento superficial e
I órica da classe operária não é redutível a um conjunto de mo-
decreta a homogeneidade pelo alto. Apeia-se, com certeza, em nu-
dos de vida que se descrevem, de curvas de salários que se
merosos quadros estatísticos e curvas de crescimento. Mas cai
num impasse quanto ao sentido que as transformações assu- comparam, ou a um folclore populista que se lamenta. É tam-
mem para os atores sociais. Um único exemplo dessas constru- hém uma aventura que durou um pouco mais de um século,
ções sofisticadas cuja abstração nunca encontra a realidade social com seus altos e baixos, marcada por tempos fortes - 1848, a
que pretendem traduzir. Jean Fourastié, um mestre na matéria, cal- Comuna, 1936, 1968 talvez - que parecem antecipar uma or-
culou com erudição que "um OE, começando por volta de 1970 e ganização alternativa da sociedade. O enfraquecimento da
permanecendo toda sua vida OE, terá conquistado, antes de convicção de que a história social podia desembocar em um lu-
completar 60 anos, um poder de compra superior ao que terá gar, o que Crozier chama desde 1959 "a fase religiosa do prole-
ganho desde sua entrada em serviço um conselheiro de Esta- rariado", não tem uma data rigorosamente definida. Mesmo
d o que se aposentasse h oje . ,,110 . Sena. f ascmante
. encontrar, em em seus momentos de glória, sempre foi sustentada apenas por
1l2
l1ma minoria operária e sempre pode ressurgir pontualmen-
te, fazendo reviver, como flashes, rápidas explosões que evo-
107 Uma das mudanças mais importantes é, sem dúvida, a pane dos imigrantes cam a ""juventu de da greve ,,113 e despertam utopias
. a dorrneci-.
e das mulheres nos trabalhos mais penosos e mais desvalorizados. Mas o de-
senvolvimento de novas formas de organização industrial não aboliu as obri-
gações nem a penosidade de inúmeras tarefas, em especial nas cadeias de
III Para se ter uma ideia de até onde pode levar o fascínio pelas curvas de cres-
montagem. É possível comparar, com quarenta anos de intervalo, dois teste-
ci rnento, pode-se ler hoje, divertindo-se ou irritando-se, a obra de J ean Fou-
munhos cujos autores apresentam a mesma característica: ter trabalhado em
rasrié, La ciuilisation de 1995, Paris, PUF, 1970.
fábrica sem ser operário, S. Weil, La conditton ouuriêre, op, cit., e R. Linharr,
112 Minoria de grevistas em 1936 apesar da amplitude do movimento: menos
Eétabli, Paris, Éditions de Minuir, 1977.
de 2 milhões para 7 milhões de assalariados operários; fenômeno essencial-
108A. Ligneux, J. Lignon, Eouurier d'auiourd'bui, op. cit., p. 26. Trata-se de
mente parisiensc que foram junho de 1848 e a Cornuna. Mais: os indiferentes
um fragmento da entrevista de um operário dentre várias outras de teor se-
e os "amarelos" eram t50 operários quanto os sindicalistas e os militantes, e,
melhante, em que os trabalhadores retomam a percepção que Ihes é passada
em junho de 1848, as tropas mais cornbativas da Guarda e que dominaram o
de seustatus social: o operário "é um imbecil", "um pobre tolo", "a lanterna
subúrbio Saint-Antoinc eram formadas por jovens operários. Ao mesmo
verrncl ha" etc.
tempo c 110 entanto, junho de 1848, a Comuna de Paris e 1936 viveram na
109 J.-M. Rainville, Condition ouuriére et intégration sociale, op. cit., p. 15. memória de toda lima classe.
110 j. Fourastié, l .es Trente Clorieuses, op. cit., p. 247. 11.1 1v1. Perror, [euuesse de Ia greve, Paris, Le Seuil, 1984.

462 4(,,1
I\S MFII\MOIZFOSES A QUESTÃO SOCIAL Vlf -I\SOCIEDADE SALflHIAL

dasl14. Entretanto, tornou-se cada vez menos acreditável que Aquém da dimensão política dessas peripécias, é a signifi-
um dia serão institucionalizados os amanhãs que cantam. A os- ,';\(,;;10antropológica dominante do salariado que oscilou ao
cilação entre revolução e reforma, que sempre percorrcu o IOl\go desses decênios. A classe operária mantinha seu poten-
movimento operário, vem fixar-se com insistência cada vez ,'ial revolucionário pelo fato de que cncarnava essa "indigna
maior no segundo polo, e a cli vagem entre" eles" e "nós" deixa .ondiçâo de assalariado" que nada tinha a perder senão suas
de alimentar um imaginário da mudança radical. Desencanto , ()rrentes e cuja emancipação mudaria a face do mundo. Marx,
do mundo social, reduzido a uma unidimensionalidade sem quanto a este ponto, não fez senão radicalizar uma estrutura
transcendência: as transformações sociais não são mais decidi- .uirropológica da condição de assalariado coJiotada, parecia
das na base do tudo ou nada e deixam de ser arbitradas por um que desde sempre, por situações de dependência através das
sentido da história. Paradoxalmente, talvez seja maio de 68 (I";ÚS um homem põe à disposição de um outro sua capacidade
que cristaliza esta tomada de consciência: a classe operária, dt' trabalho. E o sentido literal da expressão "trabalho aliena-
desta vez, aderiu ao movimento ao invés de ser seu epicentro e .lo": trabalhar para outro e não parasi mesmo, deixar a um ter-
contentou-se em obter ganhos "reformistas". Em todo caso, é n'iro, que vai consumi-Io ou cornercializá-lo, o produto de seu
significativo que, imediatamente após 68, os trabalhadores rr.rbalho. Que esta coerção se torna eufêrnica quando toma
imigrantes tenham sido chamados a retomar a chama de um III11aforma explicitamente contratual com o liberalismo, ou
messianismo revolucionário, abandonado por uma classe ope- que perca seu caráter de dependência personalizada quando se
rária autóctone "integrada ao sistema"115. rrabalha, por exemplo, para uma sociedade anônima regida
por convenções coletivas, não muda a dissimetria da relação:
de fato, o assalariado procede a uma espécie de abandono do
114 A questão de saber quando morre uma utopia não tem sentido, dado que a íruto de seu trabalho para uma outra pessoa, ou para uma em-
utopia está fora da história (assim, para os índios do México, Zapata não
morreu). A questão - difícil- é saber quando uma utopia deixa de influenciar
presa, ou para uma instituição, ou para "o capital".
a história e de lhe impor, ainda que parcialmente, sua marca. Assim, a refe- Nessa lógica, as atividades de um sujeito social autôno-
rência à Revolução foi, durante muito tempo, carregada de uma aura de ab- 1\10, mesmo tomando a forma de serviços prestados, não deve-
soluto até mesmo para as medidas prosaicamente reformistas. Desde quando
riam entrar numa relação salarial. Um produtor independente
isso deixou de acontecer?
não poderia ser assalariado. Isso não é uma simples tautologia
115 Cf., por exemplo, J.-P. de Gaudemar: Mobilité du travail et accumulation du
capital, Paris, Maspero, 1976, que expressa o consenso do conjunto das correntes mas, sim, a consequência do fato de que certas atividades são
"esquerdistas" do início da década de 70. Trata-se de um deslocamento análogo inalienáveis, portanto não assalariáveis, mesmo se corres-
ao que havia ocorrido dez anos antes quanto à "nova classe operária", e que pode
pondem a um trabalho efetuado para outro. Um sapateiro,
ser interpretado como uma nova etapa do processo de destituição da classe operá-
ria "clássica" de seu papel revolucionário, inclusive aos olhos dos ideólogos que 11111 tecelão podem ser trabalhadores independentes ou assa-
pretendem ser os herdeiros do profetismo revolucionário do século XIX. De faro, lariados. Um médico não pode ser um assalariado, como de-
os trabalhadores imigrantes foram os agentes e as disputas principais das luras so- monstra, ainda em 1937, a sentença do Supremo Tribunal,
ciais mais duras do início dos anos 70. Do lado da classe operária "autóctone", o
°
conflitoLip foi, sem dúvida, último a mobilizar o potencial alternativo do movi-
anteriormente citada.
mento operário (cf..P.Lantz, "Lip et l'utopie", Politique d'aiqourd'hui, n" 11-12, Essa concepção secular do trabalho assalariado apaga-se
nov.-dez./19RO). M,lSO conflito Lip também pode ser interpretado como uma das por volta dos anos 5 Oe 60, acarretando a retração do papel his-
últimas lutas do período de crescimento do após Segunda Guerra M und ial, Como
declara solenemente a assembléia geral dos empregados) do dia 12 de outubro de
rórico da classe operária. A lenta promoção do salariado bur-
197.1: "Não aceitaremos nem demissão, nem reclassi ficação, nem desmantela- guês abriu o caminho. Desemboca num modelo de sociedade
IllCI1fO" iloc. cit., p. 101). Tais declarações seriam irnpensáveis hoje. que não é mais atravessado por um conflito central entre assa-

465
I\S M FTI\M( lRFOSES NA QUESTÃO SOCIAL
VII - A SOCmOADE SALARIAL

lnriados e não assalariados, isto é, entre proletários e burgue- Nesse contexto, uma nova consteJação salarial se vê atri-
scs.tra b a 11 . I ..A" nova socieoa
.io e capita . J d e ,,11 [, ,pararctomarum
hll ir a função de atrativo com a tarefa de "puxar" a dinâmica
slogan do início da década de 70 e que pretendia ser a tradução social, do mesmo modo que se diz que tal setor industrial ou
política dessa mudança, é organizada principalmente em tor- comercial "puxa" o crescimento econômico de toda uma SO>
no da concorrência entre diferentes polos de atividades salari- «icdade. Assiste-se, então, a uma quase mitologização de um
ais. Sociedade que não é homogênea nem pacificada, mas cujos perfil de homem (e acessoriamente de rnulher'V) eficaz e dinâ-
antagonismos assumem a forma de lutas pelas colocações e mico, liberado dos arcaísmos, ao mesmo tempo descontraído e
classificações mais do que a forma de lu ta de classes. Sociedade
pcrformanre, grande trabalhador e grande consumidor de
em que, de contraponto, a condição de assalariado se torna
bens de prestígio, com férias inteligentes e viagens ao exterior.
modelo privilegiado de identificação.
lJm homem que se pretende liberto da ética puritana e tesau-
r.idora, do culto do patrimônio e do respeito das hierarquias
A condição salarial consagradas que caracterizam a burguesia tradicional. Jornais
nll1lO I:Express - "I:Express, jornal dos quadros",12o - ou
É a partir da metade da década de 5 Oque emerge um novo I .Expansion testemunham a audiência dessa representação do
discurso sobre "os homens dos tempos que virão", espécie de mundo social e, por sua vez, a difundem. Diferentes categorias
puros assalariados que conquistaram suas credenciais de bur- de assalariados são portadoras dessa representação: quadros
guesia 117.Este perfil se evidencia no quadro da modernização médios e superiores, professores, publicitários, especialistas
da sociedade francesa que opõe os agentes do crescimento e do l'11I comunicação e, em sua camada inferior, representantes de
progresso aos representantes das classes médias tradicionais, 11111 certo número de profissões intermediárias, como anima-
pequenos patrões e comerciantes malthusianos, notáveis con- dores culturais, pessoal paramédico, educadores etc.121 Ga-
servadores. De um lado, uma França resistente ao progresso, 11 liando consistência, formam o que Henri Mendras chama de
"poujadista", impaciente na defesa do passado; de outro, uma
França dinâmica que quer, enfim, esposar seu século e cujos
.lir.r], protecionista, com seus pavilhões de habitação, com sua marca de no-
novos assa I ana. dos consti
os constituern a ponta d e Iança 118 . LII'IOS, advogados, oficiais de justiça, padres conservadores, jogadores de
!'"Ia com boina basca, cachorros bravos, muros guarnecidos de cacos de vi-
dro, membros ativos da Associação Guillaurne-Budé destiladores de seus
116 Como se sabe, é o nome dado por ]acques Chaban-Delmas a seu programa I'r"prios frutos, administradores coloniais, antigos donos de bordei, a que se
político e que corresponde a um período de grande expansão econômica e a iunravarn os adeptos do marechal Pétain". Acrescento, por minha conta que
uma vontade, derrotada pouco tempo depois, de desbloqueio da sociedade IH'SSC "lado" não há, ou quase não há, assalariados. '
li!}' .
após 1968. A medida que as mulheres continuam sendo bem minoritáriasno topo do
117"Eliminar das classes médias os quadros assalariados e uma grande pane ,Olllunto dos assalanados, por exemplo: 3,80;6 de engenheiros em 1962 e 4%
dos funcionários seria reduzi-Ias a uma caricatura da burguesia" (P. Bleton, <'111 1975; 120/0 de quadros da administração superior em 1962 e 1730;6 em
Les hommes des temps qui uiennent), Paris, Éditiolls ouvriõres, 19.56, p. 230). I ')75 (L. Boltanski, Les cadres, op. cit.). '
1.'1) lbid., p. 179.
118 Cf. J. Donzclor, "D'unc modernisation à l'autrc", Esprit, 1986, agos,'
to-setembro, e M. Winock, La Répuhliquc se mcurt , Paris, Florio, 1985. E 1.' I Certas profissões liberais podem pertencer à mesma área, mas são muito
impossível deixar de citar a saborosa descrição que esse autor faz dos deferi- miuoritárias em relação a essa configuração salarial. Em J 97.5, contam-se
sores de uma organização pré-capiralista da sociedade: "No outro lado, flo- I /2. 000 membrosde profissões liberais contra 1,270 111ilhâo de tIuadros su-
rescem os glorificadores da vida de aldeia, dos pequenos comerciantes, dos I'tTJOres e 2,764 milhões de quadros médios (cf. L. Thévenor "Les catégories
botecos que enriqueciam M. Paul Ricard, a França do século XIX, ra- ""l-iales cn 1975", loe. cit.). '

467
AS META!vJORfOSES NA QUf:STt\O SOCI;\L VIl - .A. SOCIEDADE SALARIAL

"constelação central" e da qual faz o núcleo de difusão da "sc- II.IIS que, particularmente no terciário V", exigem títulos e
gun d a revo Iuçao- .f rancesa "J 22 . A expressao-" segun d a revo- .1li II(Jl113S.Ora, sab c-se que oca pital escolar é frequentemente
lução francesa" é, sem dúvida nenhuma, exagerada. Mas é 11J'"ldoà herança cultural familiar, ela própria fortemente de-
verdade que existe um conjunto (ou melhor, uma intercone- l'I'IHlcllte do capital econômico, De outro lado, a condição de
xâo de subconjuntos) de prestadores de serviços que consti- .r.s.ilnriado pode, de agora em diante, estar na origem da cons-
tuem o núcleo mais móvel e mais dinâmico da sociedade, o 1IIIIi,)o de um patrimônio, especialmente por intermédio do
principal difusor dos valores da modernidade, do progresso, t 1('(liro e do acesso à propriedade. As relações entre patrimô-
das modas e do sucesso. É também, em relação ao conjunto da 111I) l' trabalho tornam-se, assim, muito mais complexas do que
sociedade, o agrupamento que teve o crescimento mais contí- 1'1,1111 no início da industrialização. Esquernatizando, a posse
nuo e mais rápido desde a "decolagem" subsequente ao fim da t 1(,11111 patrimônio, naquele momento, dispensava de se consa-
Segunda Guerra Mundial. 1',1.11' a atividades assalariadas, ao passo que a aquisição de um
Essa promoção da condição de assalariado atropela a opo- 1',11ri rnônio, pelos trabalhadores, mesmo sendo modesto, esti-
sição secular entre trabalho e patrimônio. Bons salários, posi- mulava-os a escaparem da condição de assalariado e de se estabe-
ções de poder e de prestígio, liderança em matéria de modos de 1('«(Tempor conta própria. Agora, a condição de assalariado e o
vida e de modos culturais, segurança contra os acasos da exis- 11;11 rimônio interferem nos dois sentidos: o patrimônio facilita o
tência não estão mais necessariamente ligados à posse de um ,I«('SSOa posições salariais elevadas por intermédio dos diplo-
grande patrimônio'<'. Em último caso, as posições socialmen- 111:IS, enquanto que o estabelecimen to em posições salariais só-
te dominadas poderiam até mesmo ser asseguradas por "pu- IlIbs pode comandar o acesso ao patrimônio=".
ros" assalariados, isto é, por pessoas cujos salários e cuja Assim, a "constelação central" não representa uma confi-
posição na estrutura social dependeriam exclusivamente de 1"llraç~o de posições salariais "puras". Também não ocupa a
seu emprego. 1'()Slçaohegemônica de uma "burguesia sem capital" que qua-
Somente em último caso. A promoção dessas posições sa- ';(' afastou a "burguesia tradicional" que lhe atribuem seus li-
lariais está ligada a um desenvolvimento de setores profissio- ',Illljeadores mais entusiastas v". Continua existindo um

I '·1 ' . ,
lntre 1954 e 1975, a proporçao dos empregos do setor terciário passa de
122 H, Mendras, La Seconde Réuolution [rançaise, Paris, Gallimard, 1988. \ li :151 %, cf M. Maruani, E, Reynaud, Sociologie de l'emploi, Paris, La Dé-
I «uverte, 1993, p. 49.
J23 Uma pesquisa de 1977 sobre "o montante médio do patrimônio conforme
a categoria socioprofissional dos casais" (in J.-D, Reynaud, Y. Graffmeyer, I", 1':111 1977, residências principais e residências secundárias representavam
Français, qui êtes-oousi, op. cit. gráfico 5, P: 13 6) mostra que as categorias \'/ ,X% do conjunto do patrimônio dos franceses (cf. J.- D, Revnaud Y. Graff-
"quadros superiores" e "quadros médios", que agrupam o essencial dessas 1111')'(;[, Français, qui étes-uousi, op. cit. gráfico 3, p, 133). Sabe-se que as faci-
novas camadas assalariadas, dispõem de um patrimônio quatro vezes menor II,LI,.lesde. empréstimos para o acesso à propriedade dependem muito do
que o dos "industriais e comerciantes" e que o do grupo das "profissões libe- 1'1'1'111 profissional dos que tomam empréstimos e da capacidade de seu orça-
rais"; nitidamente menor que o dos "agricultores", e mesmo duas vezes me- IIII'IlfO para pagar o empréstimo, apostando antecipadamente na esrabilida-
nor que o dos "artesãos e pequenos comerciantes", Outra pesquisa tibid., 011' (' naprogressão da renda salarial, donde a possibilidade para os próprios
gráfico 3, p. 133) mostra que há disparidades enormes na distribuição do pa- "l'tTanos de terem acesso ao patrimônio: em 1973, 38(Vü deles eram proprie-
rri mônio: 10(lú dos casais mais ricos possuem 54(}b do patrimônio, e os 10% I. 11'I os de suas casas (cf. M, Venet,.J. Creuscn, Eespace ouuner, Paris, A. Co-
dos menos ricos, 0,03(}b, Em compensação, as curvas comparadas da distri- 111/,1979,p, J 14),
buição de renda e do patrimônio mostram que pode haver renda bastante ele- I '" "Assim, a burguesia tradicional ligada à posse das coisas evolui para uma
vada associada a um pequeno patrimônio. "('"burguesia sem capital e que amplia em sua base a expansão do rerciário.

468 469
I\S M ITi\MORFOSES "!A QUESTAo SOCIAL
Vll - A SOCIEDADE S!\LI\IZI 1\1.

núcleo de posições dominantes que acumula e entrelaça capital


poder econômico é detido por meios cu idadosame nte escolhi-
econômico, capital social e capital cultural, direção das empre-
dos (conferir a composição dos "núcleos sólidos" d3S grandes
sas públicas e privadas e poderes exercidos no aparelho de
sociedades) .
Estado. Desta "nobreza de Estado", Pierre Bourdieu diz:
Mas justamente: se não há osmose entre os diferentes blo-
Poucos grupos dirigentes já reuniram tantos princípios de legiti- cos que constituem a sociedade salarial, também não há altcri-
mação tão diferentes e que, mesmo aparentemente contraditó- dade absoluta. O salariado de alto grau desempenhou o papel
rios, como o aristocratisrno do nascimento e o meritocratismo de atrativo, inclusive em relação aos grupos dominantes tradi-
do sucesso escolar ou da competência científica, ou como a ideo-
cionais, cujas frações mais dinâmicas conseguiram seu aggior-
logia do "serviço público" e o culto do lucro disfarçado em exal-
namento conquistando, sem renunciar às antigas prerro-
tação da produtividade, se combinam para inspirar aos novos
gativas, os novos atributos do sucesso e das honras que pas-
dirigentes a mais absoluta certeza de sua legitimidade':".
sam, por exemplo, por frequentar as grandes escolas e ter os
De fato, muitas profissões da "constelação central" são melhores diplomas. Agindo assim, uma parte das classes domi-
mais dependentes do que confessam do capital econômico: nantes tradicionais também ingressou, e no nível mais alto, no
quadros cujo destino está ligado ao da empresa, mas também mercado do salariado.
produtores culturais, profissionais da área de comunicação Assim, mesmo no seio dos grupos dominantes, há menos
para quem o reconhecimento de uma legitimidade passa pela homogeneização do que concorrência, luta pelas colocações.
obtenção de meios de financiamento. Igualmente, a oposição Esse espaço social é atravessado pelo conflito e pela preocupa-
clássica entre patrões à moda antiga e dirigentes assalariados ção da diferenciação. Um princípio de distinção opõe e reúne
das empresas ("owners" e "managers") merece ser relativizada. os grupos sociais. Opõe e reúne, porque a distinção funciona a
Os PDGs das grandes empresas, por exemplo, considerados, partir de uma dialética sutil do mesmo e do outro, da proximi-
de bom grado, a franja superior da condição de assalariado, es- dade e da distância, da fascinação e da rejeição. Supõe uma di-
colhida por seu profissionalismo e sua competência técnica, mensão transversal para os diferentes agrupamentos, a qual
frequentemente são também acionistas importantes da empre- reúne exatamente os que se opõem e lhes permite que se com-
sa e saíram de meios que, há muito tempo, pertencem ao mun- parem e se classifiquem. "Classificadores classificados por suas
do dos negóciosf", Se a onipotente "duzentas famílias" foi um classificações", eles se reconhecem através de sua distância em
mito da esquerda, continua sendo verdade que o essencial do relação às outras posições que formam, assim, um continu-
um129. Esta lógica da diferenciação se distingue de um modelo
Em resumo, a propriedade herdada tende a dar lugar à propriedade merecida baseado no consenso e, ao mesmo tempo, de um modelo ba-
(na medida em que o diploma sanciona o mérito). Mas que pode haver de seado no antagonismo do enfrentamento classe contra classe.
mais pessoal do que semelhante propriedade?" (A. Piettre, "La propriété he- Para caracterizar essa constelação, poder-se-ia aproximá-Ia do
ritée ou méritée", le Monde, janeiro de 1978, citado por P. Bourdieu, La no-
blesse d'État, op. cit., p. 479). que dizia Georg Simmel sobre a "classe média", ainda numa re-
[27 P. Bourdieu, La noblesse d'État. op, cit., p. 480. presentação tripartida da sociedade: "O que ela tem de verda-
[2X Ihid.,p.4n.
Cf, também]. Marchal,.J. Lecaillon, La répartitiondu reucnu deiramente original, é que faz trocas contínuas com as duas
national, Paris, Editions Génin, 1 a parte, t. I, que mostram que as vantagens outras classes e que essas eternas flutuações apagam as frontei-
em gêneros, gratificações e cmo lu menros diversos de que se beneficiam os
quadros superiores de alto nível representam um tipo de remuneração não
s;d;lrial que é, de fato, uma participação nos lucros da empresa. [29 Cf. as análises de Pierre Bourdicu, in La distinction, critique du [ugement
social, Paris, Editions de Minuit, 1979.
I/li
47/
AS METAMORFOSES NA QUESTÃO SOCIAL VII- A SOCIEDADF, SAU\I{ IAI.

ras e as substituem por transições perfeitamente contínuas"uo. agrícolas), em bem tiveram que se resignar a passar adiante
"Transições perfeitamente contínuas", seria necessário discu- seus poderes. Mesmo nessa França profunda, que há um sécu-
tir isso. Mas a ideia do continuam das posições próprias a uma lo e meio freava o advento do progresso, rechaçava a urbani-
sociedade salarial está muito presente. zação e a industrialização, a condição de assalariado e os
Assim, seria possível representar-se a sociedade salarial a valores associados da instrução e da cultura urbana também
partir da coexistência de um certo número de blocos 131,si- desempenharam, então, o papel de atrativo. Como prova, o
multaneamente separados e unidos por essa lógica da distin- fato de que, depois de ter olhado de cima a condição de assa-
ção que age no seio decada conjunto como entre os diferentes lariado e de, realmente, ter feito tudo para distinguir-se dele,
conjuntos. Nesta configuração, seria necessário dar lugar ao essas categorias "independentes" vieram a considerá-Io com
bloco das profissões independentes com o patrimônio não uma inveja mesclada de ressentimento: camponeses, arte-
reconvertido ,o bloco dos vencidos da modernização
, que Mi- sãos, pequenos comerciantes comparam-se com os assalaria-
chel Winock evocava de modo pitoresco. E porque esses gru- dos não só quanto à renda, mas também quanto à duração do
pos foram marginalizados, que a sociedade salarial pôde trabalho, ao acesso ao lazer e à proteção social. Uma profun-
desenvolver-se: morte daquele que vive de rendas como para- da força moral do "poujadisme" - que vai muito além do fe-
digma do burguês, inexorável regressão do pequeno comér- nômeno Poujade propriamente dito - são, realmente, essa
cio e do artesanato (900.000 artesãos, 780.000 comerciantes inveja e esse ressentimento de categorias ameaçadas em sua
e assimilados no início dos anos 80132), revolução do mundo independência, diante das camadas assalariadas dispostas a
agrícola que acarretou o fim dos camponeses tradicionais 133. trabalhar menos, beneficiando-se, ademais, de todas as van-
Ou bem essas frações do patrimônio souberam se reconver- tagens sociais. Assim, a atração da condição de assalariado
ter, adaptando-se às novas exigências da sociedade salarial age tanto aquém de seus limites, sobre as categorias que não
(conferir, por exemplo, o relativo dinamismo das pequenas têm acesso a ela, quanto além, sobre a alta burguesia.
e médias empresas, ou o desenvolvimento de cooperativas Essa atração também produz efeito sobre o bloco popular
formado por operários e por empregados que ocupam um lugar
subordinado na configuração salarial. É uma aproximação, sem
130 G. Simmel, Sociologie et épistémologie, trad. fr. Paris, PUF, 1981, p. 200. dúvida, colocar no mesmo "bloco" operários e empregados.
131 Prefiro o termo bloco ao classe, não em nome de uma ideologia do consen- Entretanto, na década de 60, assiste-se à "transformação de uma
so (não há mais classe; logo, não há mais conflitos etc.), mas porque um~ clas-
se, no sentido pleno da palavra, só existe quando é tomada numa dinâmica classe operária extensa e renovada, incorporando cada vez mais
social qre a torna portadora de um projeto histórico que lhe é própno, como cmpregados,,134. Paralelamente, devido à mecanização do tra-
pôde ser a classe operária. Neste sentido, não há mais classe operária. halho de escritório, o empregado raramente permaneceu
132 Cf. Données sociales 1993, Paris, INSEE, 1993, p. 459. Mas é significativo como um colaborador direto do patrão. O "colarinho branco"
observar que o número dos empregos independentes ou assimilados recome-
ça a crescer como uma das consequências da cnse da sociedade salarial, ct. ca-
das grandes lojas ou dos escritórios de empresas sofre coerções
pítulo seguinte. semelhantes às dos operários. A evolução dos salários marca a
133 C:f. H. Mendras, La [in des paysans, suivi d'une réflexion sur Ia [in des pay-

sans uingt ans aprés, Le Paradou.Actes-Sud, 1984.::--io início ela década de 80,
resta menos de um milhão de agricultores culti vadores, d. Données socialcs I \·1 JV1.Aglietta, A. Bcndcr, Les métamorphoses de Ia société salariale, op. cit.,
1993, op. cito Trata-se pois, também, segundo a classificação de Colin Clark, [>. (,9.
do desmoronamento do setor "primário".

472
AS METAMORFOSES NA QUESTÃO SOCIAL VlI - A SOU FI)f\ J) 1': st\ 1/\lU t\ 1

balhadores periféricos" 142 estão entregues à conjuntura. So- de "quarto mundo", expressão de um exotismo um tanto SIIS-
frem prioritariamente os contragolpes das variações da de- !leito, como se, nas sociedades desenvolvidas, subsistissem pc-
manda de mão de obra. Constituídos majoritariamente por q ucnas il has arcaicas povoadas por todos aqu eles que não
imigrantes, por mulheres e jovens sem qualificação, por traba- puderam, ou não quiseram, pagar o preço da integração social
lhadores de uma certa idade e que são incapazes de acompa- c: ticararn fora do trabalho regular, da moradia decente da
nhar as "reconversóes" em curso, ocupam as posições mais Illli~o,familiar consagrada e não frequentaram instituiçõe~ de
penosas e mais precárias na empresa, têm os salários mais bai- xocializaçâo reconhecidas. "São aqueles que; não tendo podi-
xos e são os menos cobertos pelos direitos sociais. Acampam II()entrar nas estruturas modernas, permanecem fora das gran-
nas fronteiras da sociedade salarial muito mais do que dela par- des correntes da vida da nação,,144. Vagueiam ou moram na
ticipam integralmente. Assim, no momento mesmo em que a pni feria das cidades, se reproduzem entre eles, geração após
condição operária se consolida, subsiste ou se aprofunda no ",nação, vivem de expedientes ou auxílios e parecem desen-
seio dos trabalhadores, principalmente dos trabalhadores bra- lorajar os esforços bem-intencionados de todos os que querem
çais, uma linha divisória entre grupos vulneráveis, cuja condi- moralizá-los e normalizá-Ios. Causam uma certa vergonha
ção lembra a do antigo proletariado, e uma maioria que parece 1111111 período de crescimento e de conversão aos valores da mo-
solidamente engajada num processo de ampla participação hrnidade, mas, no fundo, não há nada de escandaloso no fato
I

nos benefícios do progresso social e econômico. Entretanto, dl' que exista, como em qualquer sociedade sem dúvida uma
antes do fim dos anos 70, a especificidade e a importância des- Ir.uija limitada de marginais ou de associais que não jogam o
se fenômeno são mal percebidas. Para os defensores do pro- II Igo comum. Em todo caso, esses bolsões residuais de pobreza
gresso, tal fenômeno faz parte da dinâmica dominante que II;!()parecem questionar nem as regras gerais da troca social
arrasta o conjunto da sociedade para a opulência. Os que se in- 11('111 a dinâmica do progresso contínuo da sociedade. Falar de
teressam pelo assunto, por razões essencialmente políticas, quarto mundo é uma maneira de significar que "essas pessoas
veem nele a prova da perpetuação da exploração da classe ope- .u" não servem para ser assalariados.
rária enquanto ta1143.A importância dessa clivagem no seio da Excetuando a existência dessas populações "periféricas"
sociedade salarial só aparecerá mais tarde, com o interesse pro- I 111 ~'residuais".- e sem dúvida também, no topo, a de posições

vocado pela temática da precariedade. l'lltlne.ntes, artistas, vedetes das mídias, grandes empresários,
Enfim, é possível aproximar - sem confundi-Ias - essas si- I\('rdeiros das grandes fortunas, cuja condição parece inco-
tuações "periféricas" daquelas das populações que nunca en- nnusurável com o regime comum, mas realmente é necessário
traram na dinâmica da sociedade industrial. É o que se chama
I.' I Prefácio do abade Wresinski para]. Labbens, La condition prolétarienne,
1 ,IIIS, Sciences et service, 1965, p. 9. Esta obra tem como subtítulo
142 Paralelamente aos trabalhos sobre a segrnentaçâo do mercado do traba-
"I'l!tTita,ge du passé", que é significativo dessa percepção da pobreza como
lho, o tema do "trabalhador periférico" surge nos Estados Unidos no fim da
I~III;I espécie de corpo estranho na sociedade salarial. Cf. também J. Lahbens
década de 60, cf. D. Morse, The Peripheral Worker, Nova York, Columbia
University Press, 1969.
'\'" 'I,:!()g/.ede Ia pauureté, Paris, ~allil1lard, 1978. Os "pobres", para esse all~
1111, situam-se no último escalão ou, melhor ainda, ao lado da escala sem
141 Cf. as discussões da época sobre a "pauperizaçâo relativa" ou a "pauperi- ""lsl~gull:e_l11ter acesso a ela .• <iase reconhecem na classe operária e a classe
zação absoluta" da classe operária. De modo mais geral, em. razão do quase "!'l·r;ma n~o se J:;conhecc neles" (p. 138). A opinião preconcebida de pensar
pleno emprego, no momento em que surge, essa rcmática da fragmentação .1 I'whlema,tlca, quarto mundo" COIllO absolutamente distinta daquela d;l
da classe operária é retraduzida em termos de persistência das desigualdades , I.I'S,I· operaria e um componcnte central- e muito discmível- da ideologia
ao invés de aumento da precariedade. ,I.I!\ 1'1) - Quart Monde. <

47(,
AS MI':IAMORFOSES NA QUESTÃO SOCIAL Vfl- A SOCIEDi\1l F SAI.i\HIi\1

um outro exotisrno, que não o do quarto mundo, para alimen- scnvolvimento econômico e a conquista dos direitos sociais, ()
tar a mitologia de Paris Match -, a sociedade salarial pode mos- mercado e o Estado. Chamo aqui Estado de cresci mento a arri-
trar uma estrutura relativamen te homogênea na sua culaçâo dos dois parâmetros fundamentais que acompanha-
diferenciação. Não só porque o essencial das atividades sociais ram a sociedade salarial em sua trajetória e teceram com ela
está centralizado em torno da condição de assalariado (perto de vínculos essenciais: o crescimento econômico e o crescimento
83% de assalariados em 1975). Mas, sobretudo, porque a maior do Estado Social. De modo que a interrupção brusca que re-
parte dos membros dessa sociedade encontra na condição de as- caiu sobre essa promoção poderá ser entendida, sem dúvida,
salariado um princípio único que, ao mesmo tempo, os reúne e como um efeito da crise econômica, mas principalmente e
os separa e fundamenta, assim, sua identidade social. "Em uma através dela, como o questionamento dessa montagem sofisti-
sociedade salarial, tudo circula, todo mundo se mede e se com- cada de fatores econômicos e de regulações sociais que deu à
para" 145.Fórmula talvez exagerada, visto que semelhante socie- condição salarial moderna sua frágil consistência.
dade contém margens, posições de excelência acima da Crescimento econômico primeiro. O que parecia evidente
condição de assalariado e posições de indignidade abaixo dela. :Ité o começo da década de 70 revela agora a perturbadora singu-
Fórmula globalmente justa no entanto, desde que não se con- laridade de um período inédito na história da humanidade, ou
funda "comparar-se" com equivaler-se, e que se entenda "me- pelo menos naquela dos países industrializados. Assiste-se então
dir-se" como entrar em competição, através da qual os sujeitos na França, entre 1953 e 1975 mais ou menos, com taxas anuais
sociais fazem atuar sua identidade na diferença. A condição de de ~r~scimento de 5 a 6%, praticamente à tri~licação da pro-
assalariado não é só um modo de retribuição do salário, mas a dutividade. do consumo e da renda salarial'? .
condição a partir da qual os indivíduos estão distribuídos no es- Este fantástico enriquecimento deu ganhos à sociedade sa-
paço social. Como observam Margaret Maruani e Emmanuelle larial. Havia então, para retomar uma célebre expressão de
Reynaud: "por trás de toda situação de emprego, há um julga- I.ouis Bergeron, secretário-geral da CCT - Força Operária,
mento social,,146. É preciso tomar a expressão em seu sentido "grão para moer". Não apenas uma relativa abundância de
mais forte: o assalariado é julgado-classificado por sua situação bens para repartir. O crescimento - enquanto dura - permite
de emprego, e os assalariados encontram seu denominador co- sacar sobre o futuro. Não se trata unicamente de obter hoje tal
mum e existem socialmente a partir desse lugar. ou tal vantagem, mas de programar uma melhoria de condição
IIl1mprazo determinado. O desenvolvimento econômico inte-
gra, assim, o progresso social como uma finalidade comum aos
o Estado de crescimento
diferentes grupos em concorrência. Disso resulta que as dispa-
Entretanto a sociedade salarial não se reduz a um nexo de ridades, tais como são vividas hic et nunc, podem ser ao mesmo
posições assalariadas. Entregue somente à lógica da concor- ICll1pOpercebidas como diferenças provisórias. ''As reivindica-
rência e da distinção, correria o risco de ser levada por um mo- ,'(-,essetoriais podem então ser legítimadas"!" - e até mesmo,
vimento centrífugo. Ela é também um modo de gestão política
que associou a sociedade privada e a propriedade social, o de- 11/ Cf., por exemplo, E. Mossé, Ia Crise ... et aprês, Paris, Le Scuil, J 989; Y Ba-
1011. B. Kaiscr, Les grandes économies, Paris, Lc Seuil, 1984. Para o CERC, ()
l" «ler de compra dos salários em franco fixo foi multiplicado por 2,7 entre
145 M. Aglietta, A. Bender, Les métamorphoses de Ia société salariale, op. cit., I'ISO e 1973 (CERC, n" 58, 2° trimestre de /981).
p.98. 1·11l ..
M. Aglietta.A. Render, Les métamorphoscs de Ia société safaria/e, op, cit.,
141, M. Maruani, E. Reynaucl, Sociologie de lemploi, op. cit., p. 113. lI. so.

./7S -r/')
AS MI:TAMORFOSES NA QUESTÃO SOCIAL VJl - J\ SUClI'DA 1>1:, Si\ Ii\ IU,\I

poder-se-ia dizer, sublimadas: marcam as etapas de uma traje- p roteçâo social ge neralizada , manutenção dos grandes cq li i-
tória que deve desembocar na redução das desigualdades. Se líhrios e condução da economia, busca de um compromisso
uma categoria particular não consegue tudo o que reivindica- entre os diferentes parceiros implicados no processo de cresci-
IlICl1tO.
e pensa, ao contrário, que nu nca tem o suficiente -, já se benefi-
eia de alguma coisa e, ademais, pode sempre pensar que no fu- 1. A instauração da Seguridade Social em 1945 constitui,
turo obterá mais ainda. Semelhante projeção das aspirações 11rirneiro, uma etapa decisiva da proteção da condição de assa-
sobre o horizonte do futuro acalma o jogo hoje e dá crédito, luriado no prolongamento do desenuoloimento da propriedade
para amanhã, ao ideal social-dernocra ta de uma supressão pro- d(> transferência (cf. capítulo anterior). Porém, a evolução do
gressiva das desigualdades. Essa aposta quanto ao futuro não é sistema durante a década seguinte completa a passagem de
apenas um ato de fé nas virtudes do progresso em geral. Atra- unia sociedade de classes a uma sociedade salarial. O decreto
vés de seus modos de consumo, seu investimento em bens du- de 4 de outubro de 1945 parece realizar a finalidade que está
ráveis, seu uso do crédito, o assalariado antecipa a cada dia a 11:1 origem dos seguros sociais: pôr um fim, mas desta vez defi-

perenidade do crescimento e vincula concretamente seu desti- uirivamente, à vulnerabilidade das classes populares. A popu-
no a um progresso indefinido. Na sociedade salarial, a anteci- Lição de referência - "os trabalhadores" - é ainda a classe
pação de um futuro melhor está inserida na estrutura do operária, o salariado de referência é o salariado operário que
presente. Isso é ainda mais verdadeiro à medida que, por meio nml saía de uma precariedade secular. É sobre esta força de tra-
de uma projeção sobre as gerações seguintes, o assalariado h.rlho ameaçada por "riscos de toda natureza" que a proteção
pode esperar realizar mais tarde suas aspirações: o que ainda social vem se enxertar a fim de erradicá-los: "Está instituída
não pude realizar, meus filhos conseguirão. 11 111 a organização da Seguridade Social destinada a garantir os
Desse modo, o desenvolvimento da sociedade salarial foi I r.ibalhadores e suas famílias contra os riscos de toda natureza ,

tributário de uma condição, a respeito da qual será necessário suscetíveis de reduzir ou de suprimir suas capacidades de ga-
perguntar se lhe está intrinsecamente ligada ou se representa II!JO, bem como a cobrir os encargos de maternidade e os en-
um dado conjuntural: o crescimento econômico. Mas foi largos de família que suportarn'Y".
igualmente estreitamente tributária de uma segunda série de Consolidar "as capacidades de ganho" dos trabalhadores:
condições: o desenvolvimento do Estado Social. Se é verdade l.tI programa pode ser compreendido parcialmente no prolon-
que a concorrência e a busca da distinção estão no princípio da )',:llllento de uma posição do tipo Front Populaire que considera
condição salarial, seu equilíbrio exige que se proceda a arbitra- .1 realização da just~ça social a partir da melhoria da condição

gens e que se estabeleçam compromissos negociados. Do mes- da classe operária 1)0. A condição operária ainda é o principal
mo modo que uma sociedade de classe estava ameaçada de um suporte e, ao mesmo tempo, o segmento mais maltratado da
enfrentamento global, dada a falta de um terceiro mediador, \Ol'icdade industrial, e o progresso do conjunto da sociedade
também uma sociedade salarial corre o risco de se dividir em .l.-vc partir de sua libertação. Seria possível conciliar essa dis-
lutas categoriais na ausência de uma instância central de regu-
lação. A sociedade salarial é também uma sociedade em cujo 1-1'/
I)ccreto n° 45-2258 de 4 de outubro de 1945,.Iournal officiel, de 6 de ou-
cerne se instalou o Estado Social. IIIJ,I'() de 1945, p, 6280,
Tal intervenção do Estado se desdobrou em três direções ",(,l.nrretanto, se a obra ela Frente Popular foi considerável em matéria de di-
principais, já esboçadas anteriormente luas que se desenvolve- 1,'11 ()do trabalho e de convenções coletivas, nenhuma medida foi romnd.t
ram no quadro dessa nova formação social: garantia de uma 1,t1VI'Z por falta de tempo, quanto à proteção social propriamente dir.i. '

,/.'11
AS MEIi\MORFOSES NA QUESTÃO SOCIAL VlI - A SOCIEDADE SALARIAL

criminação positiva de que se beneficiam os trabalhadores e a ria. Tão logo a conjuntura política lhes permita fazer ouvir sua
ambição, afirmada simultaneamente, de cobrir o conju~to da · - . 154
voz, e 1as irnporao um outro SIstema .
população contra a não seguridade? "Todo fra.n~ês residente De fato, com a multiplicação dos regimes especiais, tem-se,
em território da França metropolitana se beneficia [... \ das le- mais do que um ajustamento na margem, um outro sistema.
gislações sobre a Seguridade Social"l51. Sim, se uma vontade l.xpressa a diversidade da sociedade salarial em cujo seio mes-
política forte impuser um regime geral (para todos), ~uJos me- 1110 os não assalariados ocupam o terreno desbastado pelos as-
canismos de financiamento e de repartição prop tcrern van- salariados que se esforçam por maxirnizar as vantagens e
tagens para alguns (os assalariados mais ameaçados). No minimizar os custos da seguridade'<", Lógica da diferenciação
contexto da Libertação, é isso que foi desejadol,)2. O regime l· da distinção mais do que da solidariedade e do consenso. O
geral devia ter uma função fortemente distribuü~Ta, ~s arreca- organograma da Seguridade Social dá, assim, uma projeção
dações sobre as categorias mais abastadas, contrtb~llldo para bastante boa da estrutura da sociedade salarial, isto é, de uma
completar os recursos dos trabalh~dores ou da~ f~m.Ihas desfa- sociedade hierarquizada em que cada grupo profissional, cioso
vorecidas'<'. Porém, se se deixa agir a força da inercia, cada ca- de suas prerrogativas, obstina-se em fazê-Ias reconhecer e em
tegoria social defende seu próprio interesse. . _ marcar a distância em relação a todos os outros.
Essa força da inércia é a da transformação da condição de Mesmo lamentando o recuo da inspiração democrática
assalariado anteriormente analisada. No momento em que o que estava em sua origem, bem como algumas de suas lacu-
regime geral da Seguridade Social se implanta: o salariado ope- lias 156, é necessário convir que o sistema esposa perfeitamente

rário já está parcialmente contornado e dommado por outras ;1 lógica da transformação da sociedade salarial. A subordina-
configurações salariais melhor providas. Ao mesm~ t:m~o,
está cercado por categorias não assalariadas, as profissões in-
IH l.sse sistema terá, finalmente, 120 regimes de base e 12.000 regimes com-
dependentes que se recusam a se pautar pela condição operá- 11!"ll1Cntares, d. N. Murard, La protection sociale, op. cit., p. 90 sq. Sobre as
I"Tipécias que levaram ao bloqueio do regime geral, d. H. Galant, Histaire
IIf,/itique de Ia sécurité sociale, op. cito Nos bastidores do cenário parlarnen-
r.ir, OS representantes dos diferentes grupos profissionais e dos "independen-
151 Lei de 22 de maio de 1946 "sobre a generalização da Securidade Social", I'·s" fizeram um Iobby intenso. Além da atuação dos médicos para derrotar a
artigo l. 11"1"1 ente médica do programa, o papel da Confédération générale des cadres,
152 Sobre esse contexto da Libertação- as diretrizes do Conselho Nacional da uprcsentando as categorias de assalariados hostis a qualquer aproximação
Resistência desde 1944, a preocupação de afirmar a solidariedade nacional , '1111o estatuto dos operários, foi preponderante, d. L. Boltanski, Les cadres,
após as desgraças e dilacerações da ~;lerra, a preponderânci~ de"uma esque.r- "I'. rit., p. 147sq.
da numericamente dominada pelo partido da classe operaria ,a discrição I·,·, (:f. G. Perrin, "Pour une théorie sociologique de lasécurité sociale dans les
forçada de uma direita e de um patronato amplamente desacreditados e:c~, .., ,,·il·résindustrielles", Reuue (rançaise de sociologie, VII, 1967. A preocupa-
cf. H. Galant, Histoire palitique de Ia sécurité sociale, Paris, A. Colin, 19),). ';.1" l"Ol11 a diferenciação também agiu no seio da classe operária: as categorias
Sobre a importância do relatório Beveridge, Social lnsurance andAI lied Ser- 1''' -Iissionais antigamente dotadas de regimes específicos, como as dos minei-
vices, Londres, 1942, e su~ influência na França, cf, A. Linossier, Crise des I"", ferroviários, marinheiros ... , fizeram tudo para preservar seus "defeitos
svstémes assurantiels aux Etats-Unis, en Grande-Bretagne et en France, tese .r.Iquiridos", Sobre o peso dos regimes anteriores à tentativa de generaliza-
de doutorado em Sociologia, Université Paris VIll, J 994. '..111,d. F. Netrer, "Les retraíres en Francc avant te XXême siecle", Droit 50-
1.13 Aintenção era "descontar da renda dos indivíduos favorecidos? soma ne- , "ti, Ir" 6, junho de 1':163.
cessária para completar os recursos dos trabalhadores ou das famílias d~sLt I." I'urricularmcntc a ausência de cobertura para o desemprego. Em COntra-
vorecidas" (A. Parodi, "Exposé des motifs accompagnanr Ia demande d aVI.' 1',111 ida, uma análise completa das proteções deveria cnfarizar a importância
n" 504 sur \e projet d'organisation de Ia sécurité sociale", Bulletin de liaisou .!"S ~dários-família, expressão da preponderância da preocupação francesa
/I" 14 du Comité d'histoire de Ia sécurité sociale.
, '1111:I natalidade.

,/82 48.1
AS MEI'AMORFOSES NA QUESTÃO SOCIAL
VII - AS OCIEDADE SALARIAL

çâo hierárquica da classe operária traduz sua destituição en- di reto, "o que conta é cada vez menos o que cada um possui e,
quanto atrativo da condição salarial. As realizações da cada vez mais, os direitos que são conquistados para o grupo a
Seguridade Social podem, então, ser interpretadas como a (11 ic pertence. O ter tem menos importância que o status coleti-
apoteose de um salariado em cujo seio o salariado não operário J f · id
vo e nu o por um conjunto iunto de regras ,,159 .
assumiu um lugar cada vez mais preponderante. Promovem A generalização do seguro submete assim a quase totalidade
um tipo de cobertura própria de uma sociedade que faz o jogo (I( IS membros da sociedade ao regime da propriedade de trans-
da diferenciação mais do que o da igualdade. De um lado, a ícrência. É o último episódio da contradança entre o patrirnô-
vulnerabilidade secular das classes populares parece domina- 11 io e o trabalho. Uma parte do salário (do valor da força de tra-
da: um fiozinho de seguridade para todos. Mas a socialização
11;1 lho) escapa, de agora em diante, às flutuações da economia e
da renda atinge igualmente as outras categorias salariais e, pro-
representa uma espécie de propriedade para a seguridade, nas-
,
gressrvamente, a quase to ta Iid
1 a d e d a popu 1açao.
~ 157 A" pro-
(ida do trabalho e disponível para situações de fora do traba-
priedade de transferência", cuja lógica tinha começado a se
Iho, a doença, o acidente, a velhice. O Estado Social é colocado,
impor na base da escala social com as aposentadorias operárias
('111 vista disso, no coração do dispositivo salarial. Assim, se im-
e camponesas e com os seguros sociais (cf, capítulo VI), univer-
!1()S como a terceira instância que desempenha o papel de me-
saliza-se. A partir de agora, o "salário indireto" representa cer-
(Ii.idor entre os interesses dos empregadores e os dos empregados:
ca de um quarto da renda salarial e não tem mais como
"us relações diretas entre empregadores e assalariados foram
finalidade única preservar os mais vulneráveis contra o risco
' '~ socia, 1158 . substituídas progressivamente por relações triangulares entre
d a d estmuçao
empregadores, assalariados e instituições sociais,,160.
Essa evolução é pois, num mesmo movimento, uma pro-
moção da condição de assalariado e uma promoção da pro- 2. Essa concepção de Estado que subentende a proteção
priedade social de que o Estado é, a um só tempo, o iniciador e S( icial é complementar ao papel de ator econômico, assumido
o fiador. Não só porque o lugar da administração foi prepon- IH'lo poder público e que se desenvolve igualmente, após a Se-
derante para a implantação do sistema (conferir, por exemplo, gllllda Guerra Mundial. Mas enquanto a Seguridade Social
o papel desempenhado na França por Pierre Laroque ou, na In- leva a cabo um processo de generalização da propriedade
glaterra, pelo lorde Beveridge que agia com mandato governa- social, engajado desde o fim do século XIX, a intervenção do
mental). De modo mais profundo, uma dimensão jurídica está
inserida na própria estrutura do salário. Por meio do salário in-
1','1 11. Hatzfeld, "La difficile mutation de Ia sécurité-propriété à Ia sécuri-
I<" .lroit", lococit., p. 57.
157750/0 da população francesa estão cobertos em 1975 e 99,20/0, em 1984
(cf, C. Dufour, La protection sociale, Paris, La Docurnentation française, I',".I.-J. Dupeyroux, Droit de Ia sécurité sociale, Paris, Dalloz, 1980, p. 102.
1984, p. 49), lx-ruhrernos que o Estado desempenha esse papel sem ingerência direta na
I',l"sliio do sistema, que se dá, como se sabe, de modo paritário. Isso prova que
IIR A soma destinada à proteção social representaria 100/0 da renda nacional
" funcionamento do Estado Social não é necessariamente associado ao des-
em 1938; 15,90/0, em 1960; 240/0, em 1970; 27,~0/0, em 1980 (cf, J. Dumont, ,I, ,hramento de uma pesada burocracia estatal. Mesmo o Estado francês. Tal-
I,a sécurité sociale toujours en chantier, Paris, Editions ouvrieres, 1981, p. V('I, não seja inútil lembrar que o sistema francês de Seguridade Social
42). Em porcentagem da renda disponível dos casais, as prestações sociais ,,),('(leee a regras incomparavelmente mais flexíveis, mais diversificadas e
passaram de 1,10/0 em 1913 a 50/0 em 1938; a 16)60/0 em 1950; a 280/0 em
nt.ux descentralizadas que o sistema inglês, por exemplo (d. D.E. Ashford,
1<)7.');a 32,40/0 em 1980 (R. Delorme, C. André,LEtatet l'économie, op. at.,
ltritish Dogmatism and French Pragmatism, Londres, George Allen and
p,415). l luwin, 1982).
AS METAMORFOSES NA QUESTÃO SOCIAL VII - A SOCIEDADE SALARIAL

Estado como regulador da economia surge como uma ino- salários caíam mais ou menos sob seu controle.Podia, por exem-
- 161 plo, intervir nos salários, fixando, de um lado, um míuimo geral,
vaçao .
No quadro da reconstrução primeiro, no da modernização e de outro, a escala de remuneração na função pública. Os novos
serviços de estatísticas ou de previsão revelavam-se extrema-
em seguida, o Estado assume a responsabilidade pela promo-
mente úteis, simbolizando a atitude de um Estado disposto, ago-
ção da sociedade. Impõe uma política voluntarista para defi-
ra, a prever o futuro para melhor organizá-Io 1.63.
nir os grandes equilíbrios e escolher os domínios privilegiados
de investimento e, simultaneamente, para manter o consumo Impl~n:am-se, assim, os instrumentos de uma socialização
através de políticas de reconstrução da economia. No início lb cOl:dlçoes da produção. Com a aplicação dos princípios
dos anos 1950, o investimento do Estado nas indústrias de base kcynesianos, a economia não é mais concebida como uma es-
é superior ao do setor privado162• Esta economia dirigi da con- lera separada. E maleável à custa de intervenções - sobre os
fere um papel piloto às empresas nacionalizadas e ao setor pú- preços, salários, investimentos, subsídios a alguns setores etc.
blico. É ampliada com intervenções no crédito, nos preços, nos () Estad? ~irige a economia. Constrói uma correspondência
salários ... entre O?Jetlvo~ econômicos, objetivos políticos e objetivos so-
O Estado gozava de poderes de regulamentação impressionan- II:lIS. Circular idade de uma regulação que pesa sobre o econô-

tes; entre outros setores, o investimento, o crédito, os preços, os IIIICOpara promover o social e que faz do social o meio de tirar
I kupuros a economia quando esta se abate'". Como diz Clauss
( >lfe, a autoridade do Estado está "mergulhada" na economia
161 Não que o Estado "liberal" se tenha proibido de desenvolver políticas que
contrariem abertamente o jogo espontâneo da economia, como o protecio-
pela gestão da demanda global, ao passo que as coerções do
nismo deliberado, praticado por Guizot ou por Thiers, o estímulo sisternári- rucrcado estão "introduzidas" no Estado165• As pretensas leis
co dedicado à agricultura em detrimento da indústria ou, ainda, quando da tI:1 economia não são mais vividas como um destino. Por suas
Primeira Guerra Mundial, a mobilização ;:10 essencial da produção a serviço
p()líticas de n~~o lançamento, o papel que desempenha para
da defesa nacional (cf. P. Rosanvallon, Elitat en France de 1789 à nos [ours,
op. cit.). Mas - salvo durante o período da guerra, de que a maioria das dire- ,',:Irannr os salários, as escolhas industriais que efetua, o Estado
trizes foi anulada tão logo que a paz foi restabelecida - o Estado não deve ter IlIlcrvé.m ~ão só como produtor de bens, mas também, po-
ingerência na gestão da indústria, e cabe aos industriais definir os objetivos de .ln-se-13 dizer, como produtor de consumidores isto é de as-
suas empresas e dirigi-Ias da melhor forma segundo seus interesses. No perío-
'..il.uiados solváveis. ' ,
do entre as duas guerras, as primeiras concepções de planejamento e das nacio-
nalizações aparecem, na esfera do socialismo reformista, bem como nos .Mas é principalmente o desenvolvimento da propriedade
meios tentados pela instauração de um Estado autoritário. A CGT desenvol- 'l:I;~lque dev~ ch.amar a atenção quanto ao propósito presen-
°o(
ve um substancial programa de nacionalizações, mas não será realizado. A
Ie. lrata-se pru~eIro das nacionalizações, a respeito das quais
única iniciativa de dirigismo econômico que promoverá o governo da Frente
Popular de Léon Blum, ele próprio hostil às nacionalizações, é a criação de l k-uri de Man ja observava que procediam a uma transferência
um Ministério do Trigo para garantir uma renda mínima aos camponeses, si- dI" .mtoridade sobre a propriedade (cf capítulo VI); mas tarn-
nal suplementar da preponderância dada aos interesses da agricultura sobre
11["111 do desenvolvimento dos serviços públicos e dos equipa-
os da indústria (cf, R. Kuisel, Le capitalisme et l'Etat en France, op. cit., e A.
Bergourioux, "te néosocialisme. Mareei Déat: réformisme traditionnel aLI
csprir des années trcnte?", Reuue historique, n" 528, out.-dez./1978; jacqucs "01 lbul., p. 417.
Amoyal, "Lcs origines socialistcs et syndicalistes de Ia planification Cll Fran-
ce", te mouuement social, n" 87, abril-junho ele J 974; sobre o crescimento
10.1 ( :r. .J. Donze lor, L'il1ventiol1 du social, op. cit., p. 170 sq.
quantitativo dos investimentos do Estado, cf. R. Delorrnc, C. André, eÉtat et 'o,. ( '. Offe, Contradictions of the Welfare State Londres Hl~tcbinson ] 986
UP 183 bé '. ' , , ... ),
l'économie, op. cito I' . ~- ,e tam em A. Linossier, Crise des systêmes assurantiels aux
Ihl 1\. Kuisel, Le capitalisme et l'L~tat en France, op. cit., p. 437. 1I00Is Unis, eu Grande-Bretagne et en France, op. cito

·I,W, 187
AS METAMORFOSES NA QUESTÃO SOCJAL VIl-/\SDUFP,\lli' S,\I;\I(I;\I

mentos coletivos, a respeito dos quais se pôde dizer, a partir do dentes. jacques Fournier e Nicol e Questi aux LtL11lJ de
IV Plano de 1962 (o primeiro a se chamar "Plano de Desenvol- "capitalismo social" sublinhando, ao mesmo tempo, o car.itcr i11
vimento Econômico e Social"), que representavam a maneira cem testavelmente capi talisra dessa econom ia e os esforços pa r; I
como se encarnava o social166 - quer se tratasse de estabeleci- cnqU<ldra- ' Io atravesés d
c e regu 1açoes
- .. f ortcs 170 . I) ()ll>~l'
socIaiS. I
mentos especiais em favor de categorias desfavorecidas da po- rambém evocar um keynesianismo à francesa, planificado!'
pulação ou de serviços públicos para uso coletivo. Pierre c centralizador, como sugere Pierre Rosanvallonl7l. Porém,
Massé leva em conta a influência, na época, de críticas (formu- além das especificidades francesas, essa forma de Estado é bas-
ladas, entre outros, por Jacques Delors) do modelo "america- t ante bem caracterizada por Clauss Offe: «Um conjunto multi-
no" de desenvolvimento econômico, centrado sobre o (nncional e heterogêneo de instituições políticas e administra-
consumo individual. Portadores "de uma ideia menos parcial tivas cujo objetivo é gerir as estruturas de socialização da eco-
do homem", os equipamentos coletivos colocam à disposição uornia capitalista"l72. Além das correções ao funcionamento
de todos uma propriedade indivisa'l". Para citar um verso de S(; Ivagem da economia, dá -se ênfase aos processos de socializa-
Victor H ugo, "cada um tem dela sua parte, mas todos a têm por \)0 que transformam os parâmetros em interação na promoção
. . ,,168 do crescimento. Também aqui o Estado está no cerne da dinâ-
inteiro .
Os serviços públicos aumentam assim a propriedade social. niica do desenvolvimento da sociedade salarial.
Representam um tipo de bens que não são apropriáveis indivi- 3. O papel regulador do Estado atua sobre um terceiro re-
dualmente, nem comercializáveis, mas servem ao bem comum. 1~istro,o das relações entre os "parceiros sociais". Tal ambição
Fora da lógica do patrimônio e do reino da mercadoria privada, (: contemporânea da emergência das primeiras veleidades de
pertencem ao mesmo registro da propriedade de transferência intervençâo do Estado Socia1173, mas suas realizações foram
que a Seguridade Social amplia ao mesmo tempo. Paralelismo muito limitadas durante um bom tempo e, ainda no início dos
entre a consolidação de uma propriedade-proteção e o desen- .1I10S 70, tem bastante dificuldade para se impor. Tratar-se-ia
volvimento de uma propriedade de uso público. (Iv negociar sobre uma base contratual, com a iniciativa ou a ar-
Pode-se hesitar em nomear essa forma de governabilidade. birragern do Estado, os interesses divergentes dos emprega-
Richard Kuisel, sensível ao recuo dessas posições quanto às op- dores e dos assalariados. Se a história das relações de trabalho
ções socializantes evidenciadas na época da Libertação, fala de
"neoliberalismo,,169. Mas trata-se, então, de uma forma de li-
beralismo em quase ruptura com as políticas liberais prece- 1,,,liticas econômicas. Mas a "economia combinada" apoiou-se, de fato, nas
,·.l;llIdes concentrações industriais, nos setores mais dinâmicos do capitalis-
11!t1c nas grandes empresas nacionalizadas.
166 F. Fourquet, N. Murard, Valeur des seruices collectifs sociaux, op. cit., p. I .".1. Fournier, N. Questiaux, Le pouuoir du social, op, cito Também se encon-
104. ILI nesta obra um certo número de propostas para prolongar ou para orien-
1.11,110senrido de uma política socialista, as realizações do pós-guerra.
167 Pierre Massé, citado in F. Fourquet, Les comptes de Ia puissance, Paris,
Éditions Recherches, 1980. I I le Rosanvallon, r:État en France, op. cito
16H Citado in F. Fourquet, N. Murard, Valeurs des serutces collectifs sociaux, op. I '(:. Offe, Contradictions of the Welfare State, op. cit., p. 186.
cii., p. .56. A imagem, no poema de Hugo, é a do farol que lança luz para rodos os I ., I .cmbrernos a proposta de Alexandre Millerand desde 1900: "Há o maior
nnveganres, que serve a todo mundo, mas do qual ninguém se apropna. 1lllnl'sse em instituir, entre os patrões e a coletividade dos operários, rela-
I"') R. Kuisel, Le capitalismeetl'État en France, op, cito Além das posições de contínuas que permitam trocar, a tempo, explicações necessárias e acer-
'.' 11'';

l'icrrc Mendes France, André Philipp, por exemplo, defendia uma opção 1.11.ilguns tipos de dificuldades ... Introduzindo-as, o governo da República
'lIlC cOIlCl;dia um amplo espaço aos sindicatos na definição c controle das 1"'I'lll;lllece fiel a seu papel de pacificador e de árbitro".

489
AS METAJ\10RFOSES NA QlJESTAO SOCIAL VII - A SOCIEDADE SAIARIAt

é, frequentemente, a história das resistências ao reconheci.- dos, e o salário deixa de retribuir uma tarefa pontual para
mento da negociação como um modo de gestão dos. confl.l- tornar-se uma alocaçâo global atribuída a um indivíduo. Po-
tosl74, destacam-se aqui duas medidas cujo impacto fOI COnsI- rém, ademais desta contribuição à integração operária, o pa-
gamento mensal do salário, pela maneira como se impôs,
derável para a consolidação da condiçã(~ s~larial., . /
O SMIG - Salário Mínimo Interprofissional Carantido, e vxemplifica o papel desempenhado pelo Estado no desenvol-
instituído em 1950 e torna-se, em 1970, o SMIC-Salário Míni- vimento das políticas contratuais. É proposta pelo governo, e
de início acolhida com frieza tanto pelo patronato, que teme
mo Interprofissional de Crescimento, indexado sobre o a~~en~o
pagar o seu custo, quanto pelos sindicatos operários, desconfi-
dos preços e sobre a progressão do crescimento. Em relação a ~~s-
,Idos em relação a uma medida que, amiúde, havia servido às
tória da condição de assalariado, essas medidas são essenciars,
csrratégias patronais para instituir clivagens no seio dos operá-
porque definem e dão um estatuto le~al às c~n~ições mínimas de
acesso à condicão salarial. Um assalariado nao e somente um tra-
,175
1iOS . N o entanto, os acor d os di'e pagamento mensa , negoci-
.ulos setor por setor a partir de maio de 1970, impõem-se de
balhador qualquer que recebe uma certa remuneraç~o por u~
modo rápido. Independentemente de eventuais segundas in-
trabalho. Com o SMI G, o trabalhador" entra em condição salari-
I vnçôes eleitorais - o candidato Pompidou tinha introduzido o
al", como se poderia dizer, isto é, se insere no continuum de
p;lgamento mensal em seu programa para a Presidência _,
posições comparáveis e constitui, como se vi~, ~ estr~tura de
I cru-se aí um incontestável sucesso do Estado em sua vonta-
base dessa condição. O trabalhador entra numa lógica de integra-
di' de promover um compromisso social entre grupos anta-
çâo diferencial que, na sua versão S~~ C, é indexada até mes~? . 176
",I)]IICOS
sobre a progressão global da produtividade, E menos um mm~-
mum vital do que uma garantia de participação no desenvolvi- A essas disposições que dizem respeito à estrutura profis-
'.]1 e ao direito do trabalho, é preciso associar os esforços
1IIa1
mento econômico e social. Tem-se aí o primeiro grau do
I 1'111 ados para repartir os frutos da expansão. A diretriz do Primei-
pertencimento a um status de assalar~ad?, ~graças a~ q.ual o salá-
111 ministro para a preparação do V Plano, em janeiro de 1965,
rio não é mais só um modo de retribuiçâo econorrnca.
',I ,Jll'ita que "se esclareça o que pode ser [...] na realidade a pro-
O pagamento mensal do salário representa um outro
1',II'.<;siiodas grandes massas de renda, salários, lucros, subvenções
ponto forte da consolidação da condição salarial pa~~ os q~H'
',I l,i;lis e outras rendas individuais para favorecer um amplo aces-
estão na base da escala dos empregos. Pauta, como [a se dIS-
'.lI I k rodos ao fruto da eXJ?ansão, ao mesmo tempo que para re-
se , o estatuto da maioria dos operários sobre o dos emprega
""lir as desigualdades'": . Situa-se nesse quadro a tentativa de

174 Cf. especialmente]. Le Gaff, Du silence à Ia parole, op. =. F. Sellier, La cou 'I l'uncl, La rnensualisation, une reforme tranquiller, op. cito
frontation sociale en France, op. Clt.,].- D. Reynaud, Les syndicats. les patro~" { I
11 •..\ llhdc de ouro dessa política corresponde à tentativa de Jacques Cha-
l'État, tendances de Ia négociation collective en France, Pans, Ed;tlons ouvnerc.
I, 111 I ),'111';15 para promover sua "nova sociedade". Os acordos interprofis-
1978, e P. Rosanvallan, La question sociale, Pans, Calmann-Lévy, 1988. DII;o',
,""LlI',de julho de 1970 sobre a formação permanente representam, com os
razões principais para essa situação. A atitude geral da m?lOrIa do patron.u " ,
" ,I, sobre a rnensalização, uma realização exemplar dessa abordagem. O
t j ] I.'>
tendendo a considerar os negócios da empresa como tcrrttorro reservado, o «li'
I" '" 1"1" de um acordo contratual torna-se "obrigação nacional"; "La forma-
acarreta lima desconfiança por princípio em relação aos sindicatos. Essa,attt 11' I,
li' 'I' 1>1' ,kssionnelle permanente constitue une obligation narionale" (artigo
evoluiu muito lentamente em um século. De outro lado, a dificuldade, e as v('/.,' I '1IlIII do Código do Trabalho).
a recusa, dos sindicatos operários a se prestarem ao jogo da sociedade sa~lrLlI
Esta implica, realmente, lima gestão diferencial elos conflitos e a aceuaç.io ,I, 1 \ 1I.'.!";1l B. Friot, Protcctian sociale et salarisntion de Ia main-d'oeuure.
reivindicacões relativas que devem resultar em compromissos mars do 'I'" .u ',III/i' ias [rançais, tese em Ciências Econômicas, Université Paris X, Pa-
I1 1'1'/ \.
cru mudanças globais.

4')11 491
;\, MI.I!\M()IZI{)SES NA QUESTAo SOCIAL
vn - A SOCIEDADE SAtARI!\L

desenvolver uma "política de rendas", lançada após a grande outubro de 1974 garante a indenização do desemprego total
greve dos mineiros, em 1963. Pierre Massé propunha, em ja- pelo valor de 90% do salário bruto no primeiro ano, ao passo
neiro de 1964, que por ocasião da preparação de cada plano, o que o desemprego parcial é indenizado pela empresa com o
Comissariado fosse encarregado, aporre dos fundos públicos IRO. OS dispositivos paritários de ga-
paralelamente ao planejamento tradicional em volume, de aprc- rantia, engajando a responsabilidade do Estado, permitiam
sentar uma programação indicativa em valor. Esta última faria pensar a 111 da que existia um quase direito ao emprego, no mo-
com que se evidenciassem orientações para as grandes massas de mento mesmo em que a sistuação começava a se degradar.
renda, especialmente a dos salários, das subvenções sociais, da Então, realmente existiu uma poderosa sinergia entre o
renda agrícola e dos lucros, assim como as condições de equilí- crescimento econômico com seu corolário, o quase pleno em-
brio entre a poupança e o investimento de um lado, as receitas e prego, e o desenvolvimento dos direitos do trabalho e da prote-
as despesas públicas de outro lado [... ] A partir de orientações ção social. A sociedade salarial parecia seguir uma trajetória
anuais, o governo poderia recomendar uma taxa de progressão a~cendente que, num mesmo movimento, assegurava o enrique-
para ca d a categona. d e ren d a 178 . CI.mentocoletivo e promovia uma melhor repartição das oportu-
A política de rendas nunca será concretizada, pelo menos nidades e das garantias. Entretanto, para não tornar esta
não sob essa forma. A evolução dos salários de 1950 a 1975 exposição muito pesada e conservar o fio condutor da argumen-
mostra que as disparidades permaneceram mais ou menos tação, me ative às proteções diretamente ligadas ao trabalho. A
constantes, e até com uma tendência a se aprofundarem (dis- mesma montagem "desenvolvimento econôrnico-regulações es-
tância de 3,3 entre quadros superiores e operários em 195 O; de tat.ais" atuou nos domínios da educação, da saúde pública, do pla-
3,7, em 197517\ Pode-se então falar de uma repartição dos l!ejamento dos recursos, do urbanismo, das políticas relativas à
frutos do crescimento? Sim, desde que não se entenda isso ta~ília ... Globalmente, as performances da sociedade salarial pa-
como redução das desigualdades. Globalmente, a evolução reciam em via de suprimir o déficit de integração que havia mar-
dos salários acompanhou a da produtividade, e todas as cate- cado o início da sociedade industrial através do crescimento do
gorias beneficiaram-se disso, sem, entretanto, alterar o leque consumo,
. do
. . acesso à propriedade ou à moradia decente , da
das hierarquias. Contudo, ainda que se tenha tornado possível maior parncipação na cultura e no lazer, dos avanços na reali-
graças aos resultados do crescimento, essa progressão não foi zação de uma maior igualdade de oportunidades, a consolida-
um efeito mecânico deles. O desenvolvimento econômico foi 1.;':10 do direito do trabalho, a extensão das proteções sociais, a
tomado em estruturas de regulação jurídicas. Aliás, quando a supressão dos bolsões de pobreza etc. A questão social parecia
dinâmica econômica começa a se exaurir, a consistência desse dissolver-se na crença no progresso indefinido.
sistema de regulação atenua, num primeiro momento, os efei- Essa trajetória é que foi interrompida. Quem, hoje, afirmaria
tos da crise. O acordo interprofissional assinado no dia 14 de que vamos para uma sociedade mais acolhedora ,mais aberta ,tra-
b.ilhando para reduzir as desigualdades e para maximizar as pro-
17S Citado in F. Sellier, La confrontation sociale en France, op. cit., p. 217. teções? A própria ideia de progresso perdeu sua coesão.
Para uma apresentação das ambições da política de renda, cf. G. Caire, Les
politiques des revenus et leurs aspects institutionnels, Genebra, BIT, J 968.
17'1 Cf. C. Baudelot, A. I.ebeaupin, "I.es sala ires de 1950 à 1975", Éconol1úe et 11111 r D•.. Reynauc, j 1_,essyn ditcats, IespatronsettEtat,op.cit.,p.14-16.Lem-
'
.r - -
st atistiques, n0113, julho-agosto de 1979. Ocorre um aumento dos baixos !>Iemos quanto a ISSO, que a indenização - tardia na França - do desemprego
s.il.irios em 1968 com, sobretudo, o aumento do SMJC (35().1Jem Paris e.3 8% ',I· efetua por meio desse tipo de convenções paritárias (assinatura em dczern-
IHl interior), mas que recupera em parte uma degradação anterior e, em se- 1'111 de 1958, também sob a pressão dos poderes públicos, do acordo que cria
.1',lIid;l, sofre nova erosão . .1', Assedie e a lJncdic) .

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4'J.)

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