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O MUNDO DA GLADIATURA NA ROMA ANTIGA: BASES

PARA A COMPREENSÃO DE UM FENÓMENO COMPLEXO

Editora Leya ou Estampa

1
INTRODUÇÃO

À primeira vista, o mundo dos gladiadores parece bem conhecido. De facto, não
faltam estudos históricos, nem películas cinematográficas sobre o tema, acessíveis ao
grande público. Basta evocar o nome de Roma para que os combatentes da arena
assomem rapidamente ao nosso imaginário, constituindo um dos elementos essenciais
dessa civilização. No entanto, a visão que a maioria da gente tem sobre esta matéria é,
em grande parte, falseada ou distorcida. Em geral, as abordagens sobre os gladiadores
caracterizam-se por um certo distanciamento.

Desde o Baixo-Império romano, o fenómeno gladiatório conheceu uma série de


críticas de autores cristãos, comportando quase sempre juízos de ordem moral, mais ou
menos explícitos, o que impede uma apreciação do carácter concreto desses combates.
Esta visão deturpada perdurou até à Idade Contemporânea, aparecendo, por exemplo,
na obra de reputado historiador Jérôme Carcopino, La vie quotidienne à Rome à
l'apogée de l'Empire (Paris, 1939): no capítulo dedicado aos espectáculos, o historiador
debruçou-se sobre a gladiatura em último lugar, como se o fizesse contra a própria
vontade. O título desse capítulo ilustra, aliás, as reticências e os preconceitos do autor,
que, em vez de abordar os «combates de gladiadores», se centrou no «anfiteatro e as
suas matanças»: a introdução dessa parcela mostra uma incompreensão total do
fenómeno gladiatório:
«Porque enfim, ao penetrar nas arenas depois de quase 2000 anos de cristianismo, temos a
impressão de entrar no inferno da Antiguidade. Por honra dos Romanos, quereríamos arrancar
do livro da sua história esta folha em que um sangue indelével macula e apaga a imagem de uma
civilização de que eles criaram as palavras significativas e cuja realidade viva propagaram.
Reprovar não é bastante»1.

A gladiatura é um fenómeno incómodo, perturbador, mas não podemos arrancar uma


página tão importante da civilização romana, se desejarmos compreender tal como ela
foi e não como deveria ter sido. De facto, durante considerável espaço de tempo, os
estudiosos do meio académico evitaram manifestar excessivo interesse pelo «mundo»
dos gladiadores e dos anfiteatros: talvez alguns até ficassem incomodados e
desconcertados perante a tremenda popularidade que esses espectáculos sangrentos
gozaram, fascinando os Romanos, e continuou a suscitar curiosidade e interesse em
muita gente, já em plena Idade Contemporânea.

No século XIX, empreenderam-se as primeiras iniciativas académicas mais rigorosas


e sistemáticas, que se materializaram no exame e na compilação de elevado número de
documentos literários e epigráficos relativos à gladiatura, para além de uma série de
outros relativos à sociedade e cultura romanas: nesta árdua e morosa tarefa, destacou-
se Ludwig Friedländer com a volumosa obra em quatro volumes, Darstellungen aus
der Sittengeschichte Roms in der Zeit von August bis zum Ausgang der Antonine 2
(1862-1871) e, igualmente, Georges Lafaye e outros, em verbetes elaborados para o
Dictionnaire des Antiquités grecques et romaines d'après les textes et les monuments
(9 volumes, 1896-1911), sob a direcção de C. Daremberg, E. Saglio e M. Pottier.

No século XX, as abordagens de reputados historiadores como Michael Grant, Roland


Auguet3 e C. W. Weber4 sobre a gladiatura viram-se afectadas, como sucedeu com J.
Carcopino, não tanto pela dependência das colectâneas documentais existentes, mas
1 Consultámos a versão portuguesa: cf. A vida Quotidiana em Roma no Apogeu do Império, Lisboa, s.d.,
p. 281.

2«Representações da História dos Costumes Romanos desde o tempo de Augusto até ao fim dos
Antoninos»

2
sobretudo por uma clara antipatia ou aversão sobre este importante aspecto da cultura
romana: na primeira edição do seu pequeno livro versando os gladiadores, M. Grant
censurou claramente os combates gladiatórios, vendo-os como uma das manifestações
mais horrendas e sanguinárias que o mundo alguma vez conheceu 5. Em 1989, Chester
Starr advertiu para a necessidade de se adoptar uma nova atitude historiográfica, ao
dizer que «parece haver aqui uma ortodoxia que não se deve desafiar [….] Sem, todavia,
admirar o derramamento de sangue, merecem ser estudados o recrutamento, o treino e
a organização da profissão gladiatória, como reflexos do engenho e da eficácia da
estrutura administrativa romana»6.

Os sentimentos de reprovação e preconceito relativamente aos munera explicam, pelo


menos parcialmente, a razão por que somente nas últimas décadas se compulsaram de
maneira sistemática as vertentes conectadas com os jogos gladiatórios, o que,
aparentemente, marcou o levantamento e estudo circunstanciado dos anfiteatros.
Porém, esta propensão tem vindo a ser contrariada em artigos e livros recentes.
«A quantidade considerável de fontes sobre o assunto tem estimulado abordagens muito
diversas de que são exemplo alguns trabalhos sobre a origem e o desenvolvimento dos munera
gladiatoria, teses sobre o aparecimento e evolução do anfiteatro ou a publicação de corpora
epigráficos. A diversidade de abordagens tem presente uma mesma necessidade: a tendência
para apreender os jogos, não como fenómeno lúdico isolado, mas como um conjunto complexo
de representações, espelho da ordem social e da sua manutenção» 7.

Para a compreensão desta faceta sombria dos Romanos, não se deve contemplar os
gladiadores a partir de uma posição distante, superior, nem por eles alimentar uma
mescla de repugnância, tristeza e comiseração. Pelo contrário, é necessário empreender
um esforço imaginativo, aliado a um rigoroso processo de reconstituição histórica
documental, a fim de nos «introduzirmos» num ludus, a caserna onde viviam e se
treinavam os membros de uma familia gladiatoria, «visitando» também as oficinas
onde se manufacturavam, reparavam e aperfeiçoavam as suas armas, para
responderem às expectativas de um público cada vez mais exigente, e servirem,
obviamente, de úteis instrumentos letais para combatentes que se tornaram cada vez
mais profissionais. Mais: urge «acompanhar» os gladiadores até à arena, desde a
pompa (o desfile que marcava o começo do espectáculo), que aguçava o entusiasmo da
multidão, até ao climax, o momento dramático em que, depois do combate, o vencido
depositava, na plena acepção do termo, o seu destino nas mãos do editor e dos
espectadores.

A primeira vertente que pesquisámos incidiu na génese e na evolução do fenómeno


gladiatório, dos primórdios ao seu declínio e subsequente desaparecimento, tentando
rastrear as suas várias fases e características. Em apreciável número de obras, esta
matéria não mereceu grande desenvolvimento, razão pela qual decidimos abordá-la
com bastante minúcia e rigor.

3 Cruauté et civilisation: les jeux romains, Paris, 1970, p. 10: «a sua aparente gratuidade incita-nos, pouco
a pouco, a atribuir a violência que nos revelam a uma crueldade exclusiva dos romanos, prejulgamento que
nem sequer um contacto estreito com a Antiguidade pode corrigir».

4 Panem et circenses, Massenunterhaltung als Politik im antiken Rom, Düsseldorf/Viena, 1983.

5 Gladiators: The Bloody Truth, Harmondsworth/Londres/Nova Iorque, Penguin Books (1ª edição, 1967),
2000, p. 105: «The constant recurrence of this unrestrained blood-thirstiness throughout long centuries is
one of the most appalling manifestations of evil that the world has ever known».

6 Past and Future in Ancient History, 1989, p. 63.

7 Helena Paula de Abreu de Carvalho, «Os jogos de gladiadores no mundo romano», Rituais e Cerimónias,
Revista de História das Ideias, Instituto de História e Teoria das Ideias da Faculdade de Letras da
Universidade de Coimbra, 15 (1993), p. 8.

3
Procurámos também identificar os diversos tipos de gladiadores, segundo critérios
minimamente fiáveis. Não há muito, Filippo Coarelli alertou para a necessidade de se
levar a cabo tal tarefa: «O estudo das diferentes categorias de gladiadores […] constitui
um tipo de exercício de carácter antiquarista que nunca desembocou em soluções
definitivas ou, pelo menos, que tenham sido aceites por todos […] Na verdade, a
confusão quase inextricável que reina neste domínio particular de pesquisa é, em larga
medida, resultado, como amiúde acontece em tais casos, de uma abordagem
obstinadamente “especializada” na divisão tradicional do trabalho entre disciplinas
diferentes e, todavia, vizinhas»8.

Os Romanos não foram avaros a produzir representações artísticas sobre a gladiatura


(nos mais variegados suportes), fenómeno que tanto os cativou. Estas imagens, pelo
menos as executadas em suportes imperecíveis como o metal, a pedra ou a terracota,
chegaram até nós em grande número. No entanto, a iconografia gladiatória tradicional
fundamenta-se muitas vezes nos mesmos documentos. Estas imagens antigas foram,
por outro lado, amalgamadas com uma documentação moderna de inspiração
arqueológica, como, por exemplo, o célebre quadro Pollice verso do francês Jean-Léon
Gérôme, pintado em 1872, que contribuiu para criar uma visão deturpada da realidade
gladiatória. Ademais, muitas figurações plásticas romanas de combates de gladiadores
têm sido utilizadas por considerável número de historiadores apenas a título de meras
ilustrações em livros, sem uma prévia análise e interpretação crítica das mesmas. Se
prestarmos a devida atenção, essas imagens ainda são mais numerosas do que se
imaginava. As cenas de porfia correspondem quase sempre a uma realidade técnica,
mas estão longe de assentar só num conjunto de atitudes estereotipadas e repetitivas.

Neste sentido, é imprescindível dispor de um amplo corpus iconográfico, mesmo que


não constitua uma compilação exaustiva. O acervo em que nos baseámos não significa
um mero repertório genérico de objectos ligados à gladiatura, nem um catálogo das
lucernas (lamparinas de azeite) decoradas e de relevos, estatuetas ou mosaicos que
figuram gladiadores. Este corpus não obedece ao propósito de coligir «os gladiadores»
entendidos como um todo informe, já que se teve o cuidado de o organizar através do
importante critério das armaturae, isto é, os vários tipos de gladiadores, sendo desta
maneira que os Romanos os classificavam e diferenciavam a partir do Principado de
Augusto em diante. Assim, uma lucerna que comporte uma representação de um
confronto entre um thraex e um murmillo não consiste apenas numa ocorrência, mas
em duas, já que a decoração do artefacto proporciona um exemplo de um thraex e
outro de um murmillo.

Paralelamente ao acervo iconográfico, importa fazer um ponto da situação sobre os


dados epigráficos associados à gladiatura. Aqui, também, o corpus epigráfico não se
fundamenta apenas nas menções ao termo gladiator. À semelhança do conjunto de
elementos icónicos, o qual vem completar, só as ocorrências atestadas de um nome
próprio relacionado (pela inscrição ou pela imagem que a acompanha) a uma
armatura são tidas em conta. A partir daqui, podemos determinar a frequência com
que surge este ou aquele tipo de gladiador mediante dois conjuntos de fontes distintas
que usualmente os estudiosos correlacionaram insuficientemente. Afora as armaturae,
o corpus epigráfico é um conjunto documental que proporciona informações preciosas,
tais como a idade, a origem, o número de vitórias e outros dados referentes a uma série
de gladiadores.

8 F. Coarelli, «L'armamento e le classi di gladiatori», in A. La Regina (ed.), Sangue e arena, catálogo da


exposição, Nápoles, 2001, p. 153 (153-173): «Lo studio delle varie categorie di gladiatori […] costituisce una
tipica esercitazione di carattere antiquario, che non è mais sboccata su soluzione definitive o comunque
acettate da tutti […] A bem vedere, la confusione quasi inestricabile che regna in questo particolare settore
della ricerca è in gran parte il risultato - come spesso in tal casi – di un aproccio testardamente
“specilistico” e del conseguente rifiuto di farsi carico fino in fondo anche delle testimonianze divisione del
lavoro, a discipline diverse, anche se confinanti».

4
O conjunto de testemunhos reunidos serve para uma aproximação estatística prudente
a questões concretas respeitantes à gladiatura, com base em recentes descobertas
arqueológicas, colectâneas documentais e numa série de elementos inventariados por
historiadores e arqueólogos. Tendo como esteio a documentação epigráfica (mais de
450 referências a gladiadores) e, sobretudo, um vasto acervo iconográfico (1524
representações plásticas),compreende-se melhor a realidade dos combates gladiatórios,
assim como a gladiatura no seu todo. Graças à análise crítica destas fontes, à
confrontação entre as mesmas e aos contributos facultados pela chamada «arqueologia
experimental»9, é exequível rever a percepção histórica da gladiatura com acrescida
profundidade. A própria releitura dos textos literários antigos, mediante uma
abordagem de enfoque fundamentalmente técnico, permite captar melhor o que os
contemporâneos nos transmitem sobre este fenómeno. A par desta aproximação
revisionista, o inventário das fontes icónicas oferece a possibilidade de classificar uma
massa documental mais fértil e precisa do que até há bem pouco tempo se supunha.

Na presente obra, reservamos menos espaço aos caçadores e combatentes de animais


das venationes (venatores e bestiarii), bem como aos condenados às feras, embora lhes
dediquemos comentários em dois capítulos deste livro. Estes espectáculos são, muitas
vezes, confundidos com os combates de gladiadores, apesar de possuírem uma natureza
muito diferente. O motivo para esta confusão entre gladiatura, caçadas e execuções
públicas relaciona-se com o facto de estes três géneros de «representações» terem lugar
na arena a partir de meados do século I a. C. Se pusermos de parte elementos dispersos
como um medalhão de aplique, um pormenor dos mosaicos de Zliten, na Líbia, e um
outro do mosaico que se conserva na Galleria Borghese, em Roma, as cenas a descrever
os criminosos condenados à morte na arena (designados como damnati ou noxii) sendo
supliciados não parecem ter encantado especialmente os Romanos. Isto explica-se pela
diferença fundamental existente entre a superioridade de um combate entre dois
homens dominando perfeitamente técnicas elaboradas e o fraco valor visual de homens
indefesos sendo atirados às feras (damnatio ad bestias) ou mortos por um gládio
(damnatio ad gladius)10.

Tanto a nível simbólico como visual, foram os gladiadores que mais público atraíram,
fascinando verdadeiramente as multidões, juntamente com as corridas de quadrigas no
Circo. É certo que, durante algum tempo, se registou uma certa ambiguidade ou
polivalência entre gladiadores e caçadores. No entanto, desde o fim do século I a. C., as
imagens diferenciam radicalmente os venatores e bestiarii dos gladiadores. Doravante,

9 Não se trata de simples reconstituições históricas. A arqueologia experimental busca a compreensão


científica das técnicas antigas. Na Alemanha, em Itália, Reino Unido e França, as investigações neste
domínio específico têm sido empreendidas, respectivamente, por Marcus Junkelmann (membro da
Familia Gladiatoria Pulli Cornicinis), Dario Battaglia (ligado ao grupo Ars Dimicandi), Dan e Susanna
Shadrake (fundadores da associação Britannia), por Brice Lopez e Éric Teyssier (pertencentes à Acta
expérimentation) e François Gilbert (presidente do grupo Pax Augusta). Trata-se de grupos compostos por
historiadores e desportistas, tanto profissionais como amadores, especializados no estudo de antigas
modalidades de combate, alguns dos quais também realizaram pesquisas aprofundadas sobre o exército
romano. Através de numerosos testes experimentais, foi possível compreender mais a fundo como se
desenrolavam na prática os combates de gladiadores, encarando-os numa perspectiva mais próxima da
realidade histórica, estudando-se meticulosamente os equipamentos e as técnicas empregues pelos
gladiadores nas pugnas. Neste ramo inovador da arqueologia «viva» dá-se igualmente grande importância
ao exame crítico dos achados arqueológicos, bem como das fontes literárias iconográficas e epigráficas. No
entanto, há que usar de cautela na total aceitação das conclusões atingidas nestes testes experimentais,
uma vez que, a despeito do mérito daqueles que os realizam, significam recriações artificiais de práticas
antigas efectuadas por pessoas com hábitos de vida totalmente diferentes dos que tinham os gladiadores de
antanho.

10 Tais execuções ocorriam aquando do meridianum spectaculum (ou ludi meridiani), o evento que se
desenrolava do meio-dia até aproximadamente às 15h 30 m, a seguir à venatio matinal e antes dos
combates gladiatórios (que duravam até ao cair da noite), que tinham lugar. A partir o Principado
augustano, um munus comportava habitualmente estes três espectáculos distintos, ocupando todo o dia.

5
os caçadores surgiriam quase sempre representados a envergar túnicas decoradas e
munidos de uma lança como sua única arma.

Depois de esclarecido o problema das identificações, é menos difícil abordarmos a


questão dos equipamentos gladiatórios, encarando-os, acima de tudo, como objectos
técnicos consecutivamente aperfeiçoados e providos de temível eficácia. Fabricadas por
profissionais, as armas ofensivas e defensivas eram postas ao serviço de técnicas de
combate bem concretas, o que convirá examinar em pormenor, a fim de percebermos
que significados as mesmas podiam assumir à luz da mentalidade dos Romanos. De
facto, a análise atenta das armaturae permite realçar a sua estabilidade técnica, ao
rastrearmos o seu sucesso relativo. É, pois, importante averiguar que imagem tais
combates projectavam, fosse no período dos Júlio-Cláudios, Flávios ou dos Antoninos.

Nos eventos gladiatórios, ainda que a morte tenha sido menos sistemática do que
diversos autores sustentaram, ela esteve invariavelmente presente na arena. Nos casos
em que ela se arriscava a «ser dada», e mais ainda quando ela era efectivamente
oferecida ao público, o veredicto final dado pelo editor significava o corolário de um
processo que principiara com o ingresso de um homem nesta carreira tão perigosa.
Aqui, de novo, as representações plásticas do instante fatal, bem como a sua frequência,
evoluíram consoante os períodos, daí que requeiram ser exploradas com prudência e
discernimento.

Por último, tentámos não descurar os aspectos puramente utilitários da gladiatura, de


ordem económica e logística. Sem nos apartarmos demasiado da arena e do ludus,
apontamos para algumas pistas que podem completar a aproximação essencialmente
política e social que, em regra, os estudiosos valorizam no estudo da gladiatura. Ao
abordarmos objectivamente, os gladiadores, consegue-se proceder a uma reavaliação
deste fenómeno plurissecular. Através da utilização de novos modelos operatórios na
investigação, as vertentes socioeconómicas da gladiatura, no conjunto do mundo
romano, ganham mais inteligibilidade, não se vendo ela somente reduzida à sua
dimensão ideológica e moral.

CAPÍTULO I - A génese da gladiatura: desde os primórdios


até à Revolta de Espártaco. Os primeiros munera em
Roma. A criação das armaturae «étnicas»

Origines gladiatorum

6
Apurar as origens do fenómeno gladiatório em Roma é, aparentemente, uma tarefa
que parece relativamente simples mas, na realidade afigura-se deveras complexa, quase
impossível. Se nos reportarmos aos duelos entre combatentes, treinados e armados
com panóplias muito específicas, para oferecerem às massas das cidades espectáculos
sangrentos, com regras precisas e travados num espaço acondicionado para o efeito,
como um forum, ou construído ex professo para os munera, o anfiteatro, então a
resposta dá a impressão de constituir algo quase linear: estamos perante um tipo de
evento especificamente romano que se desenvolveu verdadeiramente na etapa final da
República, durante o século I a. C. e se codificou no tempo de Augusto, por volta da
mudança para a nossa era. Contudo, se tentarmos descobrir as raízes mais profundas
destes espectáculos, então pisamos um terreno muito mais movediço.

Os mais ambiciosos estadistas romanos, como Júlio César entre outros, ofereceram
porfias singulares celebradas como rituais familiares de cariz funerário (cf. infra), mas,
ao mesmo tempo, converteram-nos em mais um meio de promoção política. Ao longo
do processo, o munus transformou-se em ludus, isto é, um dever e um serviço prestado
para com o defunto metamorfosearam-se num espectáculo 11. Quanto os próprios
romanos buscaram mergulhar na génese dos munera experimentaram muitas dúvidas
e incertezas, atribuindo a origem dos mesmos tanto a Etruscos, como a Samnitas ou a
Campanianos.

Efectivamente, se o espectáculo gladiatório no anfiteatro é um fenómeno tipicamente


romano, o mesmo não se pode dizer em relação ao combate até à morte (forçado ou
não), em que se derramava sangue em honra do falecido para propíciar o seu espírito, o
que se costuma enacarar como a primeira forma da gladiatura. Os Romanos praticaram
este acto ritual por sua própria conta, ou porque o tomaram de empréstimo a vizinhos
(como os Etruscos ou os Campanianos), mas cabe enfatizar que o mesmo também foi
característico de outros povos, que só entraram em contacto com Roma mais tarde.
Para citarmos um exemplo mais próximo, na cultura ibérica, o costume de os homens
lutarem até à morte em honra de um defunto de alto estatuto parece ter sido bem
conhecido. Vale a pena mencionar o caso narrado por Tito Lívio (28.21), ocorrido em
206 a. C., durante a Segunda Guerra Púnica: Cipião, o futuro Africano, decidiu celebrar
jogos funerários em honra de seu pai e tio, que haviam perecido numa contenda, na
cidade de Carthago Nova (Cartagena, Espanha), recém-conquistada aos Cartagineses
(cf. infra). No trecho sobre este episódio, vê-se que, para um nobre romano do século
III, os duelos gladiatórios constituíam um dever (munus) mas, como Lívio escrevia
acerca de um acontecimento que teve lugar duzentos anos antes, viu-se compelido a
explanar aos seus leitores romanos imperiais que aqueles «gladiadores» não tinham
nada a ver com os coevos, nem no seu nível social, nem na sua motivação. Por outro
lado, esse fragmento textual utiliza-se usualmente como prova de que os duelos eram
conhecidos pelos Iberos para várias situações, como, por exemplo, a de homenagear um
grande chefe, mas Lívio não se mostra explícito neste aspecto: poderia suceder que os
líderes hispânicos tivessem adoptado um hábito romano, mas acrescentando elementos
diferentes, auctótones12. Há, pelo menos, outra passagem literária que demonstra a
existência do munus funerário gladiatório na Hispânia, sem intervenção romana, o
celebrado em honra de Viriato, que Apiano descreveu (Iber. 75). Diodoro, por seu
turno, especifica que neste funeral participaram duzentos pares de combatentes (33.21
a).

11 Fernando Quezada Sanz, «En honor del difunto: el origen de la gladiatura en Roma», Desperta
Ferro/Arqueología & Historia, 14 (Agosto-Septiembre 2017), p. 6.

12 Como referiu Maria Engracia Muñoz Santos, «É algo que ainda nos escapa saber como se produziu a
fusão dos costumes entre a tradição ibérica e a itálica», mas, devido aos antecedentes, ela seria de fácil
adopção entre os indígenas, habituados a lutas do mesmo género: cf. «Anfiteatros y ludi gladiatorii: Las
fuentes clásicas e Hispania como ejemplo. Una aproximación», Saitabi. Revista de la Facultat de
Geografia i Historia, 62/63 (2012-2013), p. 33.

7
A ideia de uma eventual «gladiatura» hispânica, bastante anterior ao contacto com os
Romanos, tem registado desenvolvimentos na investigação académica: J. M. Blázquez
Martínez 13, S. Montero 14, C. Aranegui, M. Bendala Galán 15, R. Olmos Romera 16 e J.
González Navarrete 17, entre outros, consideraram ter achado a prova em imagens
esculpidas em munumentos de grandes dimensões que se interpretaram como
mortuários, haja em vista o caso de Porcuna, em Jaén (século V a. C.) ou o de Osuna
(século II a. C.). O mesmo se aplicará, porventura, a muitas cenas de pelejas pintadas
nos vasos ibéricos de Lliria (Valência), datados de finais do século III a. C., ao vaso
decorado de Archena, estudado por R. Olmos Romera, e um grupo de esculturas
descoberto em Obulco, onde estão representados dois guerreiros já no fim da porfia,
um tombado no solo, sem vida ou moribundo, aos pés do vencedor, objecto da atenção
por parte de M. Almagro Basch18. A presença (nos relevos de Osuna ou em alguns vasos
de Lliria) de músicos a tocar instrumentos de sopro adiciona peso a uma interpretação
simbólica, ritual e, até, «gladiatória», numa acepção lata. Seja como for, cabe distinguir
tais porfias funerárias da monomachia, o combate singular, documentado nas fontes
escritas e iconográficas, e pode ter muitas outras causas. Quanto ao enfrentamento
opondo Corbis a Orsua, no espectáculo organizado por Cipião, monomachia19 e munus
juntaram-se num só evento.

Por seu lado, e segundo Possidónio, citado por Ateneu (Deipn. 4.154A), entre os Celtas
também se travavam duelos no decurso de banquetes, enquanto modalidade de
diversão mas que, às vezes, culminavam na morte de um dos guerreiros. Neste
contexto, não se afirma que isto acontecesse no seio de um conteúdo funerário, mas é
possível que se efectuassem lutas em situações deste género.

Assim, o combate gladiatório funerário não foi exclusivo dos Romanos ou de diversos
outros povos itálicos entre os séculos V e II a. C., dado que existem elementos que
deixam supor que constituiu uma prática em numerosas culturas circun-
mediterrânicas, onde os ritos fúnebres assumiam certa complexidade e havia
aristocratas guerreiros e formas de clientela militar. Até na Ilíada, cuja configuração
final se situa em meados do século VIII a. C., encontramos duelos singulares associados
ao funeral de Pátroclo, os quais, em função do que dissemos, se podem qualificar de
«gladiatórios». Aquiles não só sacrificou doze prisioneiros troianos como carneiros (Il.
XXIII,173-182), organizando corridas de carros puxados por cavalos e um «doloroso
pugilato» (ibidem, XXIII,659ss.), mas também ofereceu as armas do troiano Sarpédon
como prémio para os guerreiros que iriam defrontar-se numa peleja. O mais vetusto

13 Cf. «Posibles precedentes prerromanos de los combates de gladiadores romanos en la Península


Ibérica», in El Anfiteatro en la Hispanía Romana. Colóquio Internacional, Mérida, 26-28 de noviembre
de 1992, Mérida, Junta de Extremadura, Consejería de Cultura y Patrimonio, 1994, pp. 31-37.

14 J. M. Blázquez Martínez e S. Montero, «Ritual funerario y status social: los combates gladiatorios
romanos en la Península Ibérica», Veleia 10 (1993), pp. 71-84.

15 «Virtus y pietas en los monumentos funerarios de la Hispanía Romana», in D. Vaquerizo (ed.),


Espacios y usos funerarios en el Occidente Romano, Córdova, 2002, pp. 67-86

16 «Posibles vasos de encargo en la cerámica ibérica del Sureste», Archivo Español de Arqueología, 60
(1987), pp. 21-42.

17 Escultura ibérica del Cerrillo Blanco (Porcuna, Jaén), Jaén, Diputación Provincial de Jaén, 1987.

18 «Los orígenes de la toréutica ibérica», Trabajos de Prehistoria, 3 (1979), pp. 173-212.

19 J. García Cardiel, «La monomachia celtibérica. Vida y muerte al final de la Historia», in C. del Cerro, G.
Mora, J. Pascual, E. Sanchez Moreno (eds.), Ideología, identidades e interacción en el Mundo Antiguo
(CERSA), Madrid, UAM, 2012, pp. 579-601.

8
testemunho literário de um «duelo em armas», organizado em honra de um defunto
ilustre, encontra-se no Canto XXIII da Ilíada: aqui, Homero descreve um combate
ritual entre Ajax e Diomedes, armados com escudos e lanças 20. Este confronto, que se
viu interrompido antes de haver derramamento de sangue, teve lugar aquando do
funeral de Pátroclo. O duelo entre os dois guerreiros não constituiu um acto isolado,
tratando-se do ponto alto de um conjunto de provas que se desenrolaram antes e
depois dessa peleja. Cada uma das provas que Aquiles organizou tinha prémios para
recompensar os vencedores.

Tais competições, em que os melhores campeões participavam em corridas de carros,


corridas a pé, no arremesso do peso ou do dardo, bem como no pugilato e na luta
(pale), correspondiam todas as modalidades olímpicas. Só o duelo com armas escapava
à esfera desportiva, afirmando-se como um confronto ritual particularmente intenso. O
trecho da Ilíada, pode encarar-se, em certo sentido, como uma «certidão de
nascimento» literária da gladiatura21. Neste combate funerário, ninguém obrigou os
guerreiros a lutar, pelo contrário, participaram de livre vontade, cada um buscando
ganhar os prémios propostos por Aquiles, como aparecer como o campeão incontestado
da sua respectiva facção. Além disso, se o objectivo consistia em fazer verter o
«primeiro sangue» (até à primeira efusão de sangue), a morte era certamente encarada
como uma possibilidade pelos dois oponentes de «olhares terríveis», impacientes por
combater. Foi justamente a probabilidade de um desfecho fatal que levou à cessação do
combate: não por vontade de um dos protagonistas, mas através da intervenção do
público, que constituía, juntamente com o organizador dos jogos (Aquiles), um
importante actor no confronto.

M. Poliakoff22 recolheu exemplos de contendas relacionadas com jogos funerários


ainda mais recuados, nos tempos micénicos, como a pintura de um larnax de Tanagra,
mas o estudioso teve renitência em associar o rito funerário com a origem dos
desportos de combate no mundo grego.

As características do duelo entre Ajax e Diomedes remetem para várias realidades


essenciais da gladiatura. Seja como for, há que ter prudência e evitar assimilar todo e
qualquer duelo a um combate de gladiadores. Com efeito, o combate singular «pré-
hoplítico», idêntico ao dos Horácios e Curiácios 23, representava um ideal aristocrático,

20 A. Bernet, Les Gladiateurs, Mesnil-sur-l’Estrée, Perrin, 2002, p. 22.

21 É. Teyssier, La mort en face. Le dossier Gladiateurs, Arles, Actes Sud, 2009, p. 13; cf. Homero, Il.
XXIII, 797-825: «Então o filho de Peleu depôs uma lança de longa sombra, que trouxera para a arena, um
escudo e um elmo, armas de Sarpédon, que Patróclo lhe arrebatara. E disse, de pé, entre os Argivos: “Para
estes prémios, convidamos dois homens- os melhores- revestidos das suas armas e empunhando o bronze
que trespassa a carne, a medirem-se diante do círculo dos Aqueus. Ao primeiro que, investindo, tocar a
bela pele e atingir a carne o sangue negro através das armas, darei esta esplêndida espada cravejada de
prata e vinda da Trácia, que tirei a Asteropeu. As outras armas serão levadas em conjunto pelos dois, e nós
servir-lhes-emos uma excelente refeição na minha tenda”. Assim falou. Levantaram-se então o grande Ajax
Telamoníada e o robusto Diomedes Tidida. Ambos armados, cada qual a seu canto, foram para o centro,
ansiosos por combater e lançando olhares terríveis; e a admiração apoderou-se de todos os Aqueus.
Marcharam um contra o outro e acercaram-se, e três vezes se arrojaram de perto. Então, Ajax bateu no
escudo bem equilibrado do adversário, sem chegar à pele, que estava protegida pela couraça. O Tidida
[filho de Tideu] ameaçava incessantemente o pescoço de Ajax, com a ponta da sua lança reluzente, por
cima do grande escudo. Então, receando pela vida de Ajax, os Aqueus pediram que a luta cessasse e
recebessem prémios iguais; mas foi ao filho de Tideu que o herói deu a grande espada, com a bainha e o
boldrié bem talhado».

22 Combat Sports in the Ancient World: competition, violence and culture, New Haven, 1987.

23 Os combates singulares ou duelos podiam ser formalmente acordados com os antagonistas, costume
que se assinala precisamente na história lendária dos três irmãos romanos Horácios ( Horatii) que lutaram

9
o qual, todavia, nos séculos V e IV a. C. veio a ser proibido. Não obstante a interdição,
esta ideia do duelo, que permitia ao indivíduo distinguir-se do grupo, mesmo correndo
o risco de perder a vida, nunca chegou a desaparecer por completo. Bem mais tarde, a
atracção pela prática da gladiatura no próprio seio dos membros das classes mais
elevadas e abastadas do Alto-Império talvez encontre uma motivação mais ou menos
consciente nessa mesma ideia.

Mas, a este respeito, É. Teyssier colocou uma questão assaz pertinente: «como definir
a gladiatura e diferenciá-la dos duelos puramente aristocráticos?» Entre os séculos IV e
I antes da nossa era, devemos tomar em consideração três elementos básicos: primeiro,
a gladiatura parece integrar-se num contexto de celebrações fúnebres; neste aspecto,
Ajax e Diomedes inscrevem-se plenamente num quadro que se reencontra na Lucânia,
no século IV a. C., e em Roma, entre os séculos III e I a. C.; segundo, este confronto
entre dois homens realiza-se sem a existência de uma provocação prévia e baseia-se no
combate, em teoria até à morte, de duas pessoas que não alimentam qualquer
antagonismo uma em relação à outra. Assim, distingue-se do duelo propriamente dito,
em que dois indivíduos resolvem uma querela de natureza privada ou pública, quando
se trata de um combate, por exemplo, de chefes ou campeões, como foi o caso dos
Horácios e Curiácios; terceiro, finalmente, o critério basilar das armaturae (vocábulo
que designa os vários tipos de gladiadores), desenvolveu-se progressivamente neste
período, para depois se fixar, de maneira duradoura, no início do Alto-Império romano.
O último critério ajuda a diferenciar um tipo de gladiador de outro, independentemente
das razões pelas quais lutava24.

***

Como mostrou Alfonso Mañas Bastida na sua tese de doutoramento 25, é possível
descobrir o conceito de combate singular ritualizado, de carácter funerário, em todo o
globo terrestre, desde o Pacífico até à América, passando pelo Oriente. E se incluirmos
na noção de gladiatura não apenas os duelos em funerais, mas igualmente outros
travados noutros contextos rituais, como os conectados com a fertilidade da natureza,
encontramos muitos mais exemplos, em distintas coordenadas espacio-temporais.
Costuma-se apodar de «gladiatórios» ritos como o tlacaxipehualzti entre os Aztecas,
contra os três irmãos Curiácios (Curiatii), que provinham da vizinha Alba Longa; de acordo com a tradição
(Tito Lívio, Ab Urbe Condita, I, 23-27), dois dos romanos foram rapidamente derrotados, embora ainda
tenham ferido os seus adversários; no entanto, o último Horácio, ao simular a fuga, lançou os Curiácios em
sua perseguição, conseguindo o primeiro matá-los um a um. Quando regressou à Urbs, ovacionado pelo
exército e pelos seus concidadãos, ele golpeou mortalmente a sua irmã (noiva de um dos Curiácios) por
esta não o receber com suficiente entusiasmo. Esta é, segundo Adrian Goldsworthy «uma das histórias de
heroismo singular – mesmo que a sequela seja brutal e usada para documentar a gradual regulação dos
violentos comportamentos masculinos pelo grosso da comunidade»: Generais romanos. Os homens que
construiram o Império Romano, Lisboa, Esfera dos Livros, 2007, p. 27; S. P. Oakley, «Single combat in the
Roman Republic», CQ 35 (1985), pp. 392-410.

24 É. Teyssier, La mort en face…, pp. 14-15.

25 Munera Gladiatoria: Orígen del Deporte Espectáculo de Masas, tese apresentada à Faculdad de
Filosofía y Letras, Departamento de Historia Antigua, Universidade de Granada, Granada, 2011: cf.
«Capítulo I», alíneas 1.2 «Orígen del deporte de la lucha com armas y precedentes anteriores a Roma», pp.
35-38 («1.1.1. Culturas Primitivas», pp. 39-42, e «1.1.2. Culturas de Tiempos Historicos», pp. 43-49). Dois
anos depois, o autor publicou um livro intitulado Gladiadores. El Gran Espectáculo de Roma (Barcelona,
Editorial Ariel, 2013), que encerra uma parte substancial da sua tese, mas vários dos capítulos originais
foram suprimidos e o aparato das notas de rodapé reduzido ao mínimo, por razões editoriais.

10
em que um prisioneiro de guerra de elevado estatuto lutava – brandindo uma arma sem
gume – sobre uma laje circular de pedra contra vários antagonistas até sucumbir
devido à acumulação de ferimentos debilitantes, assunto que foi compulsado por I.
Bueno 26. Com efeito, a narração de Diego Muñoz Camargo na sua Descripción de la
ciudad y provincia de Tlaxcala (1584) mencciona que o combate era «à maneira dos
gladiadores romanos», embora, na realidade, aqui se trate de um sacrifício humano em
que o cativo não reunia possibilidades para sobreviver, celebrado em público para
reforçar simbolicamente o poder do estado azteca. Uma conotação, aliás, tão-pouco
alheia à gladiatura romana em todas as suas etapas históricas. Estas porfias,
naturalmente, devem compreender-se no seu respectivo âmbito cultural, já muito longe
do que consideramos a gladiatura propriamente romana, pelo que convém regressar e
centrar o foco na península itálica entre os séculos V e II a. C.

***

As raízes do munus romano em Itália perdem-se nas brumas do tempo. Os autores


antigos mencionam uma série de origens e não se põe de acordo no carácter funerário
dos primeiros jogos: Tertuliano remontou os mesmos aos sacrifícios funerários durante
os funerais como génese das pugnas gladiatórias (cf.infra), assim como Sérvio, no seu
comentário da Eneida (Ad Aen. 10.519), e Festo (Frg. 134b). Mas nenhum deles atribui
esta prática a um povo em concreto, ainda que saibamos que os Etruscos 27 levaram a
cabo matanças de prisioneiros após a batalha naval ao largo de Alalia (Aleria), em 540
a. C., ou na guerra movida contra Roma (358-351 a. C.) 28.

Remontando a tempos bem posteriores aos lendários combates homéricos,


encontramos os primeiros vestígios figurativos deste género de confrontos rituais em
Itália, por volta de princípios do século IV a. C. As teorias quanto à origem dos
combates gladiatórios são, essencialmente, duas: certos estudiosos ligam-nos ao
mundo etrusco, ao passo que outros ao contexto osco-lucaniano, na cidade de Paestum
(a grega Poseidónia), na Lucânia, a sudeste de Nápoles. A primeira tese repousa em
ideias transmitidas por vários escritores da Antiguidade. No entanto, não há qualquer
elemento de carácter arqueológico que permita garantir a prática destes combates na
Etrúria antes do século III a. C. De facto, os túmulos etruscos dos séculos VI e V antes
da nossa era, como os descobertos em Tarquínia, são extremamente prolíficos na
representação de cenas de jogos associados a ritos funerários, mas não surgem
combates rituais na decoração desses monumentos mortuários.

Porém, chamemos à atenção para uma cena peculiar, representada em três túmulos
de Tarquínia29 (datando da segunda metade do século VI a. C.), anteriores às primeiras
representações plásticas de guerreiros em armas), que diversos estudiosos entenderam
26 I. Bueno Bravo, «El sacrificio gladiatório y su vinculación com la guerra en la sociedad mexicana»,
Gladius 29 (2009), pp. 184-204.

27 Mais especificamente da cidade de Caere (Cerveteri), que apedrejaram até à morte prisioneiros gregos e
cartagineses que capturaram nessa refrega.

28 Em 358 a. C., 307 prisioneiros de guerra romanos foram massacrados enquanto sacrifícios humanos no
forum de Tarquínia.

29 O «Túmulo dos Augures», o «Túmulo de Pulcinella» e o «Túmulo das Olimpiades», todos datando
aproximadamente da segunda metade do século VI a. C. Consultem-se: G. Ville, La Gladiature en
Occident, des origines à la mort de Domitien, Roma, École française de Rome, 1981, pp. 4-6; M. Pallottino,
Etruscologia, Milão, U. Hoepli, 1963, p. 285; A. Baldi, «Perseus e Phersu», Aevum, 35 (1961), pp. 131-133;
G. Becatti e F. Magi, Monumenti della pittura antica scoperti in Italia, fasc. III.4: Pitture delle tombe
degli Auguri e del Pulcinella, Roma, Istituto Poligrafico dello Stato, 1955. Consulte-se, igualmente, A.
Mañas Bastida, Munera Gladiatoria («1.2.2. Evidencias halladas en la Cultura Etrusca»), p. 57ss.

11
tratar-se de um vestígio recuado da gladiatura: nessa composição pictórica, foi
representado um homem, acompanhado por uma legenda e nomeado Phersu, que cinge
uma coifa cónica e enverga uma veste multicolor; segura, com uma trela, o que parece
ser um cão de caça ou um felino de algum porte; o animal ataca um indivíduo com o
rosto coberto por um pano ou uma espécie de capuz, e está munido de uma maça. Na
realidade, a imagem, frequentemente designada «jogos de Phersu», que se interpretou
das mais variadas maneiras (uma execução, um sacrifício funerário ou algum tipo de
evento desportivo peculiar) evoca muito mais a sorte de um homem condenado às feras
do que um protótipo de um «pré-gladiador».

Aprofundemos um pouco mais a «questão etrusca». Em 1845, J. Henzen 30 tentou


explicar o paradoxo de os gladiadores serem objecto de tanto desprezo quando, na
realidade, participavam activamente numa das actividades sociais romanas mais
importantes; esse autor considerou que tal facto tinha a ver com as origens históricas
dos munera gladiatórios, que não eram, de todo, romanas, mas um fenómeno tomado
de empréstimo dos etruscos. Esta teoria alicerçou-se em diversas fontes literárias. A
primeira consiste numa asserção do historiador greco-sírio Nicolau de Damasco
(segunda metade do século I a. C.), citada posteriormente por Ateneu n’O Banquete dos
sofistas (Deipnosophistai, escrita no século I d. C.), na qual se afirma de forma
categórica que os Romanos adoptaram tal costume dos Etruscos 31:
«Os Romanos organizaram exibições de gladiadores, costume que adquiriram dos Etruscos,
não só nas festividades e nos teatros, como também nos banquetes. Ou seja, certas pessoas
convidavam frequentemente os seus amigos para um festim e outros agradáveis passatempos,
mas, para além disso, existiriam dois ou três pares de gladiadores. Quando todos já tivessem
comido e bebido muito, eles chamavam os combatentes. No momento em que se cortava a
garganta de um, os espectadores batiam palmas com prazer. E, por vezes, até acontecia que
alguém determinava no seu testamento que as mulheres mais bonitas que comprara deveriam
lutar entre si, ou outra pessoa podia deixar escrito que dois rapazes, os seus favoritos, teriam de
fazer o mesmo».

Muito mais tarde, na época visigótica, o culto Isidoro de Sevilha, no dicionário


etimológico Origines32, de começos do século VII d. C., Isidoro de Sevilha também
expôs a mesma ideia, atribuindo a origem do vocábulo latino lanista a uma palavra
etrusca, lani, que serviria para designar um «algoz» ou um «talhante» 33. Por último, há
o testemunho do cristão Tertuliano, que viveu em finais do século II e princípios do III
d. C.: no Apologeticum, ele relata uma cena passada no anfiteatro de Cartago, depois de
terminadas as execuções de criminosos no espectáculo do meio-dia, em que entrava na
arena um homem disfarçado de Dis Pater, deus do mundo inferior, juntamente com
outro desempenhando papel do deus Mercúrio, tendo ambos a missão de escoltar os
corpos quando estes se removiam da pista. Ao relatar esta cena, Tertuliano viu em Dis
Pater, brandindo um martelo/malho, uma evocação do deus etrusco da morte,
portador de tal atributo, chamado Charu/Charun 34.

30 J. Henzen foi, efectivamente, o primeiro estudioso a defender uma origem etrusca para os jogos na sua
Explicatio Musivi in villa Burghesiana asservati, Roma, 1845, pp. 74-75; mais tarde, já no século XX,
outros autores subscreveram esta tese, designadamente L. Malten, «Leichenspiel und Totenkult»,
MDAI(R), 38 (1923-1924), pp. 300-341, e, décadas mais tarde, E. Richardson, The Etruscans, Chicago,
University of Chicago Press, 1964, pp. 229-230.

31 Deipnosophistai 4.153.

32 Origines 10.159

33 Ibidem, 10. 247.

34Cf. Apologeticum, 15.5; IDEM, Ad nationes, 1.10.47. Veja-se, também, Fik Meijer, The Gladiators:
History's Most Deadly Sport, Nova Iorque, 2005, p. 14. No capítulo VIII exploraremos mais este assunto.

12
Se a teoria de que os gladiadores tiveram uma génese etrusca prevaleceu durante
largo tempo, não obstante a ausência de elementos probatórios, em parte é porque,
durante décadas, forneceu aos historiadores modernos (cujos valores humanitários
colidiam com os munera gladiatórios), uma explicação moralmente satisfatória. Neste
sentido, a reputação dos Romanos enquanto povo civilizado poderia ser salva, caso
ficasse demonstrado que estes jogos haviam tido origem noutra região.Uma origem
etrusca revelou-se apelativa para os que defendiam a tese, muito difundida na Europa
do século XIX, de que havia um vínculo inequívoco entre «moralidade» e «raça»: os
Romanos indo-europeus, moralmente superiores, teriam sido maculados ao entrarem
em contacto com os Etruscos, moralmente decadentes. A argumentação carreada para
esta teoria viu-se reforçada por relatos de autores clássicos, aludindo tanto à
imoralidade dos Etruscos – visível, por exemplo, no papel invulgarmente activo que as
suas mulheres desempenhavam na vida social -, como a sua origem oriental.

Foi Heródoto o primeiro a veicular a ideia de que os Etruscos chegaram a Itália depois
de se verem obrigados a abandonar a Lídia num período marcado pela fome 35. De
acordo com esta perspectiva, qualquer coisa que se afigurasse inaceitável na vida
romana poderia fazer-se remontar à decadência «oriental» etrusca, à qual então se
imputaria a culpa. Como aliás sucedeu outras vertentes da teoria racial, este aspecto
atingiu proporções quase absurdas nos escritos pseudo-científicos de ideólogos nazis,
advogando estes que o «clericalismo» trazido pelos Etruscos para a Itália do Oriente
explicaria o motivo pelo qual os romanos se tornaram decadentes ao ponto de aceitar o
Cristianismo católico, cujos valores eram tão opostos às lealdades raciais de grupo que
os teóricos nazis atribuiram aos «puros» indo-europeus ou arianos 36.

A partir da segunda metade do século passado, efectuaram-se investigações mais


sistemáticas e científicas sobre os Etruscos, que contribuíram bastante para os tornar
menos estranhos e «misteriosos». Além disso, os estudiosos começaram a alimentar
mais dúvidas quanto à contribuição de algum fluxo migratório significativo proveniente
do Mediterrâneo Oriental para o desenvolvimento da Itália Central, desde a Idade do
Bronze Villanoviana até à Idade do Ferro Etrusca 37. Actualmente, a maior parte dos
historiadores tende a considerar os Etruscos como um povo autóctone da península
italiana, embora não há muito, outros especialistas, baseando-se nos resultados obtidos
a partir de exames do ADN (amostras recolhidas entre habitantes de diversas
localidades outrora pertencentes à Etrúria), vieram a inclinar-se novamente para a
teoria de que os Etruscos talvez tenham provindo da Ásia Menor; seja como for, mas
esta corrente interpretativa ainda não reuniu consenso no seio da comunidade
científica internacional.

De facto, se alguns eruditos romanos defenderam que certos elementos da sua cultura
gladiatória tiveram origem nos Etruscos, os seus argumentos traduziram-se mais em
afirmações de cariz moral do que propriamente histórico, daí que caiba entendê-las ao
nível do significado simbólico da Etrúria, como uma categoria moral no pensamento
romano. Na Roma arcaica, a Etrúria representou a comunidade mais próxima ao longo
do curso do rio Tibre, que não falava latim e era «estrangeira». Assim, os hábitos
etruscos passaram a simbolizar uma «alteridade» moral, exemplificada, como se disse,
pelo frouxo controlo exercido sobre as mulheres; esta «alteridade» consolidava-se

35 Heródoto, 1, 94.

36A questão etrusca interessou especialmente o ideólogo nazi Alfred Rosenberg (no contexto da oposição
católica face aos Nazis): V. Losemann, Nationalsozialismus und Antike, Hamburgo, 1977, p. 140ss.

37 N. Spivey e S. Stoddart, Etruscan Italy: An Archaeological Survey, Londres, 1990; M. Cristofani et alii,
Etruschi, una nuova immagine, Florença, Giunti, 2000; F. Lara Peinado, Los etruscos: pórtico de la
história de Roma, Madrid, Cátedra, 2007. Dionísio de Halicarnasso defendeu que os Etruscos eram
auctótones (I, 28.2ss.), mas de forma a persuadir os seus leitores que todos os Italianos eram virtuosos
Europeus: E. Gabba, Dionysius, Berkeley, University of California Press, 1991, p. 112ss.

13
ainda mais pelas míticas origens lídias dos etruscos. A categoria «etrusca» possuía,
então, uma poderosa força explicativa em relação a costumes e instituições pelos quais
os Romanos nutriram sentimentos ambíguos, especialmente os associados ao poder
estatal. Estrabão escreveu:
«Diz-se que o garbo triunfal e o dos cônsules e, basicamente, o de qualquer magistrado para lá
foi levado a partir de Tarquínia, como o foram também os fasces, as trombetas, os ritos
sacrificiais, a adivinhação e a música, já que os mesmos são publicamente utilizados pelos
Romanos»38.

Alguns destes símbolos podem ter sido introduzidos na Urbs por uma «dinastia de
reis etruscos»39. No decurso de períodos caracterizados por rápidas mudanças sociais
conectadas com a formação do poder estatal, há indícios de ter havido uma forte
tendência para se tomarem de empréstimo símbolos políticos de culturas vizinhas: isto
serviria, aliás, para reforçar o estatuto da elite, cujos contactos com culturas
«estrangeiras» facultavam um acesso mais fácil a tais objectos simbólicos e os
conhecimentos aos mesmos associados. Mas nem todas as instituições que os Romanos
classificaram de «etruscas», por causa da sua ambivalência moral, procederam
historicamente da Etrúria: o teatro romano é um exemplo notável 40. Posto isto, a
atribuição de uma origem etrusca aos jogos gladiatórios tem, de igual modo, que ser
perspectivada como resultado da ambiguidade romana quanto aos munera, e não vice-
versa.

Quanto à outra tese, preconizando a origem osco-lucaniana, é, actualmente, a mais


aceite e que reúne maior consenso no meio académico: o primeiro estudioso a sustentar
tal ponto de vista foi F. Weege, em 1909. Sobre o mesmo assunto, decénios depois,
Georges Ville abreviou o debate da génese da gladiatura, propondo uma hipótese que
congraçou, em certa medida, as duas teses referidas numa só: «Em começos do século
IV [a. C.], a gladiatura é inventada na Itália do Sul, criação de uma população
compósita, osca, samnita, etrusca: não se tentará precisar mais do que isto; no fim do
século IV ou no início do III, os munera são adoptados na Etrúria; em 264 a. C., Roma
vê o seu primeiro munus e os organizadores introduzem talvez uma fórmula que os
Etruscos já haviam naturalizado na sua região» 41.Um dos trechos mais citados a favor
desta tese é da autoria de Tito Lívio (que faleceu no tempo augustano), que, na

38 Estrabão, Geographia, 5, 2.2.

39 Para diversos comentários profícuos sobre este assunto, consulte-se J.-P. Thuillier, «Les origines de la
gladiature: une mise au point sur l’hypotèse étrusque», in C. Domergue, C. Landes, J.-C. Paillier (eds.),
Spectacula I. Gladiateurs et amphitéâtres, Lattes, 1990, pp. 137-146.

40 A este respeito, veja-se a obra de F. Dupont, L'acteur-roi ou le thêatre dans la Rome antique, Paris,
Les Belles-Lettres, 1985.

41 G. Ville foi, a partir da década de 60 do século XX, um dos mais acérrimos defensores da teoria de uma
origem campaniana ou, mais especificamente osco-samnita, para os combates gladiatórios, inovação que o
historiador francês situou em princípios do século IV a. C., na Itália Meridional: na sua monografia, atrás
referida, La Gladiature en Occident..., o primeiro capítulo é dedicado a esta questão (pp. 1-56). Trecho
citado: p. 56. J. Mouraditis apresenta uma visão muito semelhante à de Ville sobre a génese da gladiatura
(cf. «On the Origin of the Gladiatorial Games», Nikephoros 9, 1996, pp. 111-134), bem como J. Garrido
Moreno (cf. «El anfiteatro: una oscura imagen de la antigua Roma», Berceo, nº 149, 2005, p. 156: cf. «Hoje
pode afirmar-se que este costume procede directamente de um rito praticado pelo povo osco-samnita, na
região itálica da Campânia (finais do século V-IV a. C.). Foi aí onde o assumiram os Etruscos, que o
levaram também às suas regiões do Norte (século IV-III a. C.). Os Romanos tomaram-no deles»).
Observem-se também: R. Bloch, «Jeux et sport en Etrurie», Dossiers de l’Archéologie, 45 (juillet-aout
1980), pp. 39-41; D. Briquel, «Ludi/Lydi: jeux romains et origines étrusques», Ktema, 11 (1986), pp. 161-
167; J.-P. Thuillier, Les Jeux athlétiques dans la civilisation étrusque, Roma, École Française de Roma,
1985, e a obra colectiva, editada pelo mesmo autor, Spectacles sportifs et scéniques dans le monde étrusco-
italique, Roma, 1993.

14
descrição da vitória dos Romanos aliados aos Campanianos sobre os Samnitas, em 309
a. C., disse:
«Os Campanianos, por orgulho e ódio aos samnitas, com semelhante ornato [as esplêndidas
armas dos samnitas] armaram os gladiadores que serviram como espectáculo nos banquetes,
denominando-os “samnitas”» (9.40.17).

Também Sílio Itálico (Pun. XI.52-54), escrevendo num tom mais cruento, atribuiu aos
Campanianos a celebração de banquetes incluindo combates, e, «amiúde, os
combatentes tombavam mortos sobre as taças dos convivas, e as mesas ficavam
manchadas com esguichos de sangue». No entanto, uma vez mais, os autores não são
explícitos sobre o «mundo» campaniano como génese da gladiatura.

Possivelmente já depois de existir ao longo de uns 150 anos no Sul de Itália e na


Etrúria é que a gladiatura terá aparecido em Roma. Se bem que certos autores latinos,
muitos posteriores aos factos que relatam, tenham afirmado que os romanos tomaram
de empréstimo tal prática dos Etruscos, há também que não descartar a probabilidade,
de uma influência campaniana directa sobre Roma, conforme defendeu Fabrizio
Paolucci 42. Esta origem não se vê confirmada pelas fontes literárias, pois que,
contrariamente à «tese etrusca», nenhum autor antigo se refere à gladiatura como
nascendo na Lucânia. Em contrapartida, neste ponto, a iconografia presta algum
auxílio: no século XIX, acharam-se, nas referidas necrópoles de Paestum, dezenas de
túmulos pintados43, construídos por volta de 370-340 a. C. (outra cronologia apontada:
380-320 a. C.), em que se atesta a existência de combates rituais desde o século IV a. C.
Nas superfícies parietais destes monumentos, representaram-se as cerimónias fúnebres
dos notáveis locais de uma maneira bastante concreta. Em 28 destes túmulos, as
pinturas murais exibem guerreiros a combater e a infligir, por vezes, ferimentos, uns
nos outros. À primeira vista, a natureza funerária destes confrontos pode ser colocada
em causa: muito provavelmente, eles talvez se devam interpretar como ilustrações dos
combates homéricos ou mitológicos.

Mas, como na Ilíada, nestes túmulos há também afrescos evocando corridas de carros
e cenas com pugilistas e outros lutadores. Em certas imagens, os combatentes estão
acompanhados por carpideiras, flautistas e tocadores de tamboretes ou, então, a
defrontar-se na presença de uma terceira pessoa, como se vê num afresco lucaniano do
«Túmulo nº 7» da necrópole de Gaudo (Paestum): para M. Junkelmann, tal indivíduo
poderia corresponder a um «guarda», sugerindo que os participantes nestes confrontos
poderiam ser coagidos a lutar entre si44. No entanto, esse homem talvez consistisse num
árbitro, o que nos parece mais verosímil45. Assim, estes pormenores permitem
depreender, ainda que não de maneira categórica, que as lutas seriam de carácter
agonístico e não se apresentariam conectadas com a comemoração de combates de
natureza militar.

42 F. Paolucci, Gladiatori. I dannati dello spettacolo, Florença, 2003, pp. 9-12.

43 Para mais dados sobre estas pinturas tumulares: F. Weege, «Oskische Malerei», JDAI, 24 (1909), pp.
99-162; P. C. Sestieri, «Tombe dipinti di Paestum», RIA, 5-6 (1956/1957), pp. 65-110; C. Nicolet, «Les
Equites campani et leurs représentations figurées», MEFRA, 74 (1962), pp. 463-517; A. Pontrandolfo e A.
Rouveret, Le tombe dipinte di Paestum, Módena, Franco Cosimo Panini, 1992, com as cenas pictóricas
aqui em foco categorizadas como duello, (pp. 55-58). Veja-se, igualmente, G. Ville, La Gladiature..., p. 20.

44 Gladiatoren: Das Spiel mit dem Tod, Mainz, edição revista e ampliada, Philipp von Zabern, 2008, p.
33, fig. 43.

45 O que se observa num duelo onde está presente um árbitro, figurado no afresco na parede sul de um
túmulo na necrópole de Adriuolo, em Paestum: cf. A. Pontrandolfo e A. Rouveret, Le tombe dipinte di
Paestum, p. 210, est. 2. Veja-se também E. Köhne, «Bread and Circuses: The Politics of Entertainment», in
E. Köhne e C. Ewigleben (eds.),The Power of Spectacle in Ancient Rome: Gladiators and Caesars,
Berkeley/Los Angeles, University of California Press, 2000, p. 11.

15
Na maioria destas pinturas parietais, o equipamento dos combatentes corresponde
praticamente ao armamento ofensivo e defensivo dos guerreiros osco-samnitas deste
período e, em casos mais raros, às panóplias clássicas dos hóplitas gregos 46. As
diferentes posturas reproduzidas nestas pinturas tumulares possibilitam que se
compreenda o desenrolar desses confrontos, directamente tomadas de empréstimo ao
domínio militar coetâneo. Em algumas composições, os adversários estão munidos de
vários dardos, geralmente em número de três, que seguram na mão esquerda, atrás do
seu escudo 47. Estas armas de arremesso seriam decerto empregues numa fase inicial,
em cada um dos protagonistas se mantinha à distância, procurando ferir o adversário.
De facto, em diversas pinturas, observam-se dardos cravados nos escudos de ambos os
oponentes, que confirmam esta primeira etapa do duelo. Num segundo estádio, o
combate prosseguia no corpo a corpo. Neste momento, o confronto travava-se quase
sempre através de «lança contra lança».

No entanto, noutra cena, vê-se um guerreiro a desembainhar a espada, gesto que se


terá seguido à quebra do cabo da lança: nesta imagem, capta-se o preciso instante em
que esse combatente se aproxima do adversário, ao mesmo tempo que retira a espada
da bainha48. O seu oponente, que ainda se mantém na posse da sua lança, parece
surpreendido ante esta investida e esboça um movimento de recuo. Repare-se que esta
fase não seria possível nos restantes casos figurados: de facto, os demais combatentes
mostram-se desprovidos de espadas e só podem lutar com as lanças. Sublinhe-se
igualmente que estes dois guerreiros são os únicos que apresentam um equipamento
hoplítico completo, caracterizando-se pelo uso de um elmo do tipo «Coríntio» clássico,
apenas assinalável nestes dois combatentes, no conjunto dos guerreiros representados
na necrópole de Paestum. As protecções são compostas por panóplias, que não se
apresentam ainda muito definidas.

Contrariamente à gladiatura estabelecida pelos Romanos séculos mais tarde, estes


«pré-gladiadores» não transmitem a ideia de lutarem sob armaturae padronizadas 49.
Efectivamente, apesar de consistir num acervo pictórico que engloba sessenta
guerreiros, raros são os pares de combatentes que têm equipamentos absolutamente
iguais ou muito similares. O último compreende quase sempre um casco, à excepção
das cenas em que os adversários aparecem com a cabeça descoberta. Em quase todos os
afrescos (à excepção de um), os guerreiros exibem elmos pertencentes ao género
«Calcidiano50, que, ocasionalmente possuem uma cimeira. A estes elementos-base
acrescentaram-se, em determinados casos, cnémides (grevas de metal) e uma couraça,
como se constata num afresco do «Túmulo Adriuolo» nº 58. Esta é, habitualmente, do
género linothorax, típica dos guerreiros helenísticos (feita de linho).

Todavia, num afresco tumular de Paestum que ilustra combatentes equipados com
escudos hoplíticos e munidos de cnémides, um deles apresenta-se de tronco nu e o
oponente mostra um protege-tórax trilobado, característico dos guerreiros samnitas

46 A. Bernet, Les Gladiateurs…, p. 24.

47 Haja em vista um combate representado na parede setentrional do «Túmulo 10», Laghetto (Paestum):
A. Pontrandolfo e A. Rouveret, Le tombe dipinti di Paestum, p. 202, est. I.A maior parte destas pinturas
tumulares tende a mostrar composições figurativas estereotipadas e algo estáticas.

48 Nas necrópoles de Arcioni e Adriuolo, os túmulos 271-1976 e 1-1971, que datam de aproximadamente de
380 a.C., são os dois únicos casos em que um combatente armado de escudo e espada enfrenta um
adversário igualmente munido de escudo, mas utilizando uma lança. Em ambos os exemplos, não foi
representada as bainhas das espadas. Não obstante tais excepções, o confronto «lança contra lança» seria,
em princípio, a norma nos combates fúnebres lucanianos.

49 E. Teyssier, La mort en face…, p. 14.

50 Michel Feugère, Casques antiques, Paris, Errance, 1994, pp. 19-22.

16
coevos 51. Depreende-se que estes «pré-gladiadores» se batiam, às vezes, inteiramente
nus ou apenas vestindo uma tanga presa por um cinturão (que em latim se chamava
balteus). Esta pintura parietal constitui o único caso bem preservado da representação
de dois duelos diferentes em simultâneo: não se figuraram dois momentos sucessivos
de um só combate, já que o par situado à esquerda luta sem qualquer tipo de protecção
corporal ou roupa, e o da direita distingue-se pela utilização da tanga, idêntica ao
posterior subligaculum empregue pelos gladiadores romanos. Este exemplo afigura-se,
portanto, excepcional, já que nas restantes imagens apenas se representa um par de
combatentes neste tipo de duelos rituais.

O único elemento omnipresente nas panóplias das pinturas tumulares de Paestum é,


então, o escudo do tipo clipeus, similar aos aspis redondos e bombados dos hóplitas
gregos da idade clássica52. Esta arma defensiva constitui um elemento distintivo
essencial entre os «pré-gladiadores» e os seus longínquos sucessores da época imperial
romana. De facto, nenhuma armatura romana incluiu este tipo de escudo. Mas,
independentemente dos seus equipamentos, estes guerreiros não participariam num
simulacro de combate ou numa espécie de dança ritual: nas imagens, eles mostram-se
cobertos de feridas nas pernas, nos ombros, no ventre ou na cabeça. Numa cena, vê-se
claramente um combatente, ferido numa coxa, prestes a atingir o seu adversário com
uma lançada dirigida à cabeça. Noutra, um guerreiro coberto de sangue sucumbe ao
assalto do oponente, também este ferido.

Evidencia-se nitidamente o carácter sangrento destes confrontos funerários. A lógica


inerente aos mesmos parece relacionar-se com o sangue derramado pelos combatentes
sobre a terra, o qual depois seria recolhido por uma figura de elevada condição, num
contexto ritual mágico-religioso. Num destes túmulos, importa chamar à atenção para
um combate de pugilistas ou pancraciastas, que se desenrola por ocasião do mesmo
ritual. Esta luta com mãos nuas revelava-se igualmente sangrento e podia, de igual
modo, conduzir à morte do vencido. O munus, termo pelo qual Romanos designavam
estes jogos violentos, encontra nestes exemplos plásticos o seu sentido primeiro de
«dádiva/oferta» e de «dever/obrigação». Segundo o testemunho tardio de Tertuliano,
esses combates significariam o reflexo de antigos rituais arcaicos de sacrifícios
humanos, em relação aos quais os primeiros significariam uma espécie de versão
mitigada: segundo o autor cristão, o gladiador era sacrificado aos manes (fantasmas)
dos defuntos53:
«Os Antigos pensavam que realizar este espectáculo era um dever para com os mortos, e
depois temperaram-no com uma atrocidade mais humana. Pois que outrora, como se acreditava
que as almas dos defuntos eram aplacadas pelo sangue humano, ao adquirirem cativos ou
escravos com mau carácter, eles sacrificavam-nos enquanto parte do ritual funerário. Mais
tarde, decidiram mascarar a impiedade como entretenimento. E, então, os que eles compravam
e treinavam com armas e da maneira que pudessem, apenas para aprenderem a ser mortos, eles
depressa os expunham à morte no dia do funeral. Assim, buscavam consolo pelo falecimento de

51 Esta protecção composta por três círculos de bronze soldados entre si, aparece amiúde nos túmulos de
guerreiros samnitas dos séculos IV e III a. C. Tais peças de equipamento figuram igualmente em certos
afrescos descobertos em Cápua, mas tudo indica que estas pinturas parietais não estariam ligadas a
combates rituais. Consulte-se, a este respeito, Peter Connolly, Greece and Rome at War, Londres, 1998 (1ª
edição, 1981), p. 108, onde se pode observar a reprodução de um protege-tórax trilobado achado em
Alfedena (fig. 1), bem como uma fotografia de uma estatueta de bronze (que se crê haver sido descoberta
na Sicília), à qual se deu o nome de «Guerreiro Samnita», actualmente conservada no Museu do Louvre.
Veja-se uma fotografia de outro pectorale deste tipo em N. Sekunda e S. Northwood, Early Roman Armies,
Oxford, 3ª edição, 1999, p. 39: a peça foi recuperada no Norte de África, tendo sido possivelmente utilizada
por um mercenário itálico ao serviço dos Cartagineses, datando de finais do século III a. C. Está
actualmente exposta no Museu Nacional de Bardo, em Tunes.

52 Konstantin Nossov, Gladiator: Rome's Bloody Spectacle, Oxford, Osprey, 2009, p. 45.

53 De spectaculis, 12, 1-4.

17
alguém através do homicídio. Foi esta a origem do munus […] As oferendas para propiciar os
mortos apresentavam-se como ritos fúnebres.Este tipo de coisas é idolatria […]».

Consequentemente, dentro desta linha de pensamento, os cristãos não deviam assistir


aos jogos gladiatórios porque estes se baseavam na idolatria e nas emoções das
multidões, usadas pelos pagãos para arrastar os primeiros rumo a uma pecaminosa
sede de sangue. Sangue que, por outro lado, aparece citado como elemento expiatório
no sacrifício na própria Bíblia, como citou M. Poliakoff: «Porque o princípio vital da
carne está no sangue […] pois é o sangue que opera a expiação por uma pessoa […]»
(Lev. 17.11)

Actualmente, esta tese ainda possui os seus cultores. Alison Futrell, numa monografia
relativamente recente, defendeu este ponto de vista, juntando-o a outro importante
tema associado ao combate gladiatório, o poder romano. A autora alegou que os jogos
de gladiadores teriam sido originalmente sacrifícios humanos destinados a sustentar o
poder político romano54. Javier Garrido Moreno, por seu lado, segue basicamente pelo
mesmo caminho ao escrever: «Entre estes povos itálicos, o ritual, reservado à elite,
tinha uma finalidade funerária e sacrificial. O sangue derramado no combate aplacava a
ira das divindades infernais e ajudava o espírito do defunto na sua passagem definitiva
para o Além»55.

Não há dúvida que, nos seus primórdios, os munera romanos estiveram ligados aos
funerais. Além disso, a elite greco-romana fora educada a ler as obras de Homero e os
seus membros terão ficado com a impressão, ao basearem-se na descrição de Aquiles
chacinando prisioneiros troianos aquando do funeral de Pátroclo, que tais sacrifícios
humanos seriam típicos da idade heróica. Heródoto, por seu lado, atribuiu a prática de
sacrifícios humanos em funerais aos Etruscos 56. Esta ideia ainda estava viva bastante
mais tarde: em 40 a. C., em plena guerra civil, Octávio (o futuro Augusto, primeiro
imperador de Roma) saqueou Perusia (actual Perugia) e mandou massacrar os cativos,
alegando que, outrora, tais mortes haviam sido uma tradição etrusca 57.

Os afrescos tumulares da etrusca Caere (actual Cerveteri) foram interpretados muitas


vezes nestes termos, embora possamos avançar com outras propostas interpretativas.
Apesar de existirem fontes que se reportam a tais imolações como práticas correntes
dos Etruscos, não dispomos de provas concludentes de que os gladiadores fossem
sacrificados dessa forma, estivessem ou não associados aos funerais etruscos. Também
não se preservaram elementos concretos que confirmem que os romanos, em qualquer
período, tenham pensado que esses sacrifícios humanos fossem apropriados em

54 Cf. Blood in the Arena: The Spectacle of Roman Power, Austin, 1997, pp. 205-210. Vejam-se também:
A. W. Lintott, Violence in Republican Rome, Oxford, 1968, p. 40; P. Connolly, Colosseum: Rome's Arena
of Death, Londres, 2003, pp. 68-69. Porém, outros, como T. Wiedemann, dissociaram categoricamente o
sacrifício humano dos funerais romanos: «there is no evidence at all that the Romans at any period
thought that any such human sacrifices were appropriate in conexion with funerals» (Emperors and
Gladiators, Londres/Nova Iorque, Routledge, 1995, 2ª edição, p. 34). Wiedemann avançou ainda com
outro argumento para defender o seu ponto de vista: os gladiadores, com o seu intenso desejo de glória e
receptividade em aceitar a morte apenas em última instância, não fariam boas vítimas sacrificiais; um dos
requisitos essenciais numa imolação efectiva radicava na cumplicidade, real ou fictícia, da vítima. Além
disso, nem todos os combates gladiatórios terminavam com a morte de um dos oponentes. Seja como for,
na génese da gladiatura, talvez houvesse um género de ritual funerário que implicasse sacrifícios humanos:
contudo, não há quaisquer vestígios concretos desta prática. D. Kyle, Spectacles of Death in Ancient Rome,
Londres/Nova Iorque, Routledge, 2001 (2ª edição), p. 40; D. S. Potter, «Entertainers in the Roman
Empire», in D. S. Potter e D. J. Mattingly (eds.), Life, Death and Entertainment in the Roman Empire,
Ann Arbor, Michigan, 1999, pp. 305-307.

55 «El anfiteatro…», p. 156.

56 Heródoto, 6.71ss.

57 Suetónio, Divus Augustus, 15; M. Grant, Gladiators…, p. 14.

18
conexão com os funerais 58. G. Ville (e outros académicos) achou não ter cabimento a
gladiatura funcionar como um substituto dos sacrifícios humanos. O historiador
francês escreveu que, embora a componente original básica da gladiatura fosse
funerária, o fenómeno não teria de ser de cariz sacrificial mas, acima de tudo e na sua
essência, agonístico, competitivo. A referência literária mais remota a este respeito, a
Ilíada, aponta claramente nesse sentido. Se houve imolações em Itália, o que ainda não
ficou comprovado, elas terão provavelmente desaparecido antes da «alvorada da
história».

Formulou-se outra teoria, superficialmente atractiva, segundo a qual os gladiadores


constituiriam uma espécie de «bodes expiatórios», sobre os quais uma comunidade
carregava com a culpa por um ou vários problemas que estava a enfrentar, vendo-se os
primeiros expulsos da última, de forma a afastar a ira da divindade (ou divindades)
ofendida da comunidade enquanto um todo. Para esta modalidade de mortes de tipo
«bode expiatório» no império romano, as evidências são muito escassas e, de qualquer
maneira, irrelevantes para o caso dos gladiadores. Há, é certo, a história de um cristão,
Dásio, que foi martirizado em Durostorum, no Danúbio, sob a égide de Maximiano e
Diocleciano, por se recusar a desempenhar o papel suicida de Cronos, aquando de uma
festividade ligada ao solstício de Inverno. O que se encontra por trás desta narração não
se afigura claro, mas é incorrecto apresentá-la como prova de que a execução de um
«bode expiatório» fazia parte integrante da esfera dos rituais religiosos romanos, e
menos ainda que os gladiadores seriam vistos como «bodes expiatórios» 59.

O que se pode afirmar é que havia um claro elo de ligação entre o combate gladiatório
e a morte. Desde a altura em que os gladiadores lutaram pela primeira vez em Roma,
em 264 a.C. (cf. infra), e até ao tempo de Augusto, eles surgiram só em ocasiões em que
se honravam indivíduos ilustres recentemente falecidos. Interpretar esse elo de ligação
no contexto de um sacrifício humano, do modo como fez Tertuliano, equivale a
enfatizar a ideia de matar e não a de morrer, enquanto ponto fulcral do espectáculo.

Regressemos à «pré-gladiatura» do século IV antes da nossa era. Neste período não se


descortinam evidências de que os combatentes fossem constrangidos ou obrigados a
defrontar-se e a matar-se entre si. Pelo contrário, o seu ardor combativo leva-nos a
imaginar que participavam na qualidade de voluntários, como Ajax e Diomedes, para
rivalizarem, na bravura, com o respectivo adversário, aquando dos duelos rituais. Outro
aspecto em que estes «pré-gladiadores» se apartam dos gladiadores romanos dos
primeiros séculos da era cristã tem a ver com o seu equipamento, que em nada se
distinguia do que se utilizava a nível militar, nas guerras de então.

Mediante certos indícios, presumimos que os combatentes funerários do século IV a.


C. não estariam ainda organizados em pares bem determinados, em que dois tipos de
guerreiros distintos se envolvessem num confronto. Não obstante o seu número
reduzido, os documentos iconográficos manifestam grande diversidade de situações,
mesmo quando o combate «lança contra lança» representa o momento álgido da porfia.
Nestes pares, os combatentes que aparecem figurados nas paredes tumulares de
Paestum aparecem sempre individualizados: reproduziram-se os traços fisionómicos de
cada «duelista», o que nos leva a pensar que estes «pré-gladiadores» não seriam
escravos coagidos a lutar ou indivíduos intercambiáveis, mas guerreiros voluntários
cuja memória devia ser comemorada60.
58 T. Wiedemann, Emperors and Gladiators, pp. 33-34.

59 S. Weinstock, «Saturnalien und Neurjahrsfest in den Märtireacten», in A. Stuiber e A. Hermann (eds.),


Mullus. Festschrift Theodor Klauser, JAC, Ergänzungsband, 1, 1964, pp. 391-400.

60 Os testemunhos mais vetustos a nível iconográfico mostram que os combates gladiatórios constituíam
só um dos ludi funerários da Itália Central e Meridional. Afora tais pugnas, havia competições de pugilato e
corridas de carros. Cf. G. Ville, La gladiature…, pp. 14-15.

19
Por fim, e numa direcção completamente diferente, Ateneu evoca também o livro I
Sobre os legisladores de Hermipo (século III a. C.) e as Histórias de Éforo (século IV a.
C.), autores que consideraram que a origem das lutas gladiatórias radicou na cidade
grega de Mantineia, no Peloponeso, cujos habitantes se viram depois imitados por
outros povos, como o de Cirene:
«…foi em Mantineia onde se idearam pela primeira vez espectáculos de combate com armas
pesadas, e foi Démeas [Hermipo cita Demonacte] quem deu a conhecer esta invenção»
(Deipnos. 4.194C).

A monarquia macedónia tão pouco ignorou este género de combate ritual: se nos
basearmos em Ateneu, em 317 a. C., Cassandro organizou combates funerários em
honra do rei de Cina e da rainha de Aegae/Aigai (Deipnosophistai,4.55); participaram
quatro soldados nestas «monomaquias»: é justamente este vocábulo grego que servia
para designar os combates gladiatórios no mundo grego, sob o Alto-Império. Como na
Lucânia, estes confrontos traduziam-se indubitavelmente em lutas armadas livremente
consentidas, podendo conduzir a uma morte aceite. Não faltam exemplos, noutras
coordenadas temporais e geográficas, de suicídios ocasionados pela morte de um chefe
venerado, desde a Antiguidade até ao Japão do século XX 61. Para além disso, como nos
mostra o trecho da Ilíada sobre Ajax e Diomedes, o prazer que sentiriam ao bater-se e
ao evidenciarem a sua coragem diante de uma prestigiosa assembleia constituiria,
decerto, outra importante motivação.

Contudo, a gladiatura na Grécia enquanto tal só se atesta em parcos testemunhos e


não se pode entender como se tratando do mesmo fenómeno que se desenvolveu na
península itálica. Quando, em 174 a. C., Antíoco IV ofereceu um munus público à
maneira romana em Antioquía (Tito Lívio, 41.20.11-12; cf. infra) para celebrar uma
vitória militar, é-nos dito que o público, ao princípio, ficou aterrorizado ao assistir às
pugnas, porque não habituado a semelhantes espectáculos, só depois vindo a tomar-lhe
o gosto.

Porém, alguns académicos opinaram que os próprios Gregos, já estabelecidos na


Campânia desde o século VIII a. C., podem ter introduzido os seus jogos fúnebres
acompanhados de sacrifícios humanos. Talvez acreditassem que o sangue de
prisioneiros oferecesse força aos mortos, aos quais prestavam a derradeira homenagem
para assim empreenderem a difícil viagem rumo ao Hades. Com o tempo, os jogos
organizados no Sul de Itália terão perdido gradualmente as suas raízes helénicas,
passando a substituir-se os sacrifícios humanos por combates até à morte, travados
junto do local de inumação de alguém recentemente falecido. Há abundantes
referências literárias para os jogos funerários na Hélade. O exemplo mais conhecido é a
passagem sobre o prélio entre Ajax e Diomedes, mas de outros heróis lendários gregos,
como Édipo, Pélias, Amarynkeus, Oenomaus, Pélopes, Melicertes e Ofeltes também se
colhem notícias de se verem honrados em jogos funerários. Que esta prática não se
confinava à lenda é algo que se confirma pela menção do Hesíodo aos jogos funerários
homenagendo um tal Amphidamas, no qual o poeta ganhou um prémio pelo seu
talento nos versos62.

Anualmente, celebravam-se competições atléticas em memória de heróis militares


gregos falecidos, como Miltíades, Brásidas, Timoléon e Philopoemen. Até grupos de
guerreiros se honravam através de jogos idênticos, como os realizados no «Festival da
Liberdade» (Eleutheria), onde se celebrava o heroísmo dos Helenos que tombaram na

61 A este respeito, G. Ville citou o caso dos soldados do imperador Otão, que, em 69 d. C., se suicidaram
diante da sua pira funerária, «por amor ao seu princeps» e o do general japonês Nogi, vencedor dos russos
em Port Arthur, no começo do século XX (no contexto da Guerra Russo-nipónica de 1904-1905), que
cometeu seppuku (matando-se também a sua mulher) no dia do funeral do imperador Meiji.

62 Op. 654-657.

20
batalha de Platea, que se saldou numa vitória sobre os Persas, e outro evento,
Epitaphia, em que se honrava os Atenienses mortos na guerra, como, aliás, o seu nome
sugere63.Tais competições, tanto as lendárias como as históricas, consistiam sobretudo
em exibições de modalidades atléticas de estilo grego, englobando corridas de carros e a
pé, luta com mãos nuas (pale, orthopale, pancrácio), pugilismo, arremesso de dardos,
lançamento do disco e saltos em comprimento, mas, como vimos, nos jogos
organizados por Aquiles para homenagear Pátroclo houve um duelo com armas que se
assemelha bastante a uma porfia gladiatória. No entanto, Aquiles, a pedido dos seus
compatriotas, mandou parar o combate quando Diómedes parecia estar prestes a ferir
Ajax no pescoço. A intervenção dos soldados gregos a assistirem à peleja, dirigindo-se a
Aquiles, que presidia aos jogos, antecipa a prática da arena romana, em que a multidão
comunicava por gritos ou gestos a sua vontade quanto ao destino que merecia o
gladiador vencido ao editor.

Mas avulta uma diferença muito substancial: os espectadores romanos toleravam


perfeitamente ferimentos graves e até a morte de um gladiador, porque estes
combatentes eram indivíduos desprovidos de estatuto social, como condenados,
prisioneiros de guerra e escravos, enquanto Ajax e Diómedes eram nobres, líderes
heróicos dos contingentes gregos em Troia. Mark Golden sublinhou que os homens
honrados nos jogos gregos eram heróis (como Pátroclo): «As competições afirmavam o
especial estatuto dos defuntos, ao mesmo tempo que … revelavam os dos vencedores
vivos»64 . Esta asserção também se pode aplicar aos jogos gladiatórios apresentados em
Roma durante a República, que honravam figuras importantes, frequentemente com
brilhantes carreiras militares 65. T. Wiedemann descreveu o propósito destes munera
oferecidos como tributos funerários a grandes homens pelos seus filhos: «Na
República, um munus privado simbolizava a sobrevivência dos indivíduos na memória
dos seus concidadãos por causa da sua virtude militar»66.

Em 2010, numa monografia consagrada à gladiatura, Dario Battaglia, membro do


Istituto Ars Dimicandi de Milão, técnico da «arqueologia experimental»,
contrariamente à maioria dos estudiosos que advogam a génese do fenómeno
gladiatório num contexto campano-lucaniano e etrusco, derramou nova luz sobre os
diferentes géneros de lutas agonísticas helénicas e a sua presença nas comunidades da
Magna Graecia, em Itália, preconizou a teoria de que as cidades campano-lucanianas
teriam sido especialmente influenciadas pelos Gregos, ao passo que, por outro lado, os
Etruscos se teriam inspirado em práticas dos Celtas. Ademais, Battaglia entende que a
gladiatura não começou em jogos funerários, mas em competições armadas em que se

63 M. Golden, Sport and Society in Ancient Greece, Cambridge, 1998, pp. 91-93.

64 Ibidem, pp. 92-93.

65 Sugeriu-se que os gladiadores empregues no primeiro munus oficialmente registado seriam


prisioneiros de guerra que marcharam na procissão triunfal de D. Iunius Pera. Veja-se RE, 10.1 (1914),
1026, 59. Não sobreviveram quaisquer dados sobre os feitos políticos e bélicos de Pera, mas o ser-se
honrado desta maneira inovadora e em público indica que se tratava de alguém com muita importância,
que possivelmente se distinguiu na guerra e na política do seu tempo, as únicas carreiras abertas para um
aristocrata romano. Tudo o que podemos afirmar seguramente é que ele pertencia a uma das mais
proeminentes famílias nobres da República romana. O seu filho Decimus, um dos que apresentou o munus
em sua honra, ocupou o cargo de cônsul dois anos antes do funeral e foi-lhe concedido o triunfo pelas suas
vitórias no Norte e Sul de Itália. Eis outros membros notáveis da família juniana. L. Iunius Brutus, que,
segundo reza a lenda, desempenhou um papel relevante na criação da própria República; M. Iunius Pera,
um descendente de Pera, que, mais tarde no século III a. C., foi nomeado dictator, uma magistratura
constitucional de duração limitada, atribuída, em momentos de crise, aos cidadãos mais ilustres da Urbs;
e, por último, M. Iunius Brutus, líder dos assassinos de Júlio César.

66 Cf. «Das Ende der Gladiatorenspiele», Nikephoros 8 (1995), p. 151.

21
enfrentavam cidadãos livres 67. Este conjunto de argumentos deve ser tido em conta, se
bem que continuem a subsistir dúvidas sem solução à vista.

Os mais antigos combates gladiatórios romanos inscreveram-se num conjunto de


elaborados ritos funerários em honra e memória de indivíduos importantes; as famílias
serviam-se deles para facilitar a passagem de um parente defunto do mundo dos vivos
para o reino dos mortos e, paralelamente, aproveitavam para ostentar o seu estatuto e
poder. Frequentemente, o aristocrata falecido deixava instruções para o programa dos
eventos, e os seus familiares simplesmente punham em prática os seus últimos desejos.
Isto explica o motivo pelo qual os jogos funerários eram denominados como munera,
uma vez que significavam uma tarefa a ter de ser impreterivelmente cumprida, uma
«obrigação» para com o defunto, e, ao mesmo tempo, uma «dádiva» ou «oferta» ao
mesmo. Os munera eram um assunto de família, custeado a nível privado pelos seus
membros, como forma para realçar e até elevar a sua condição social. Eram, então,
organizados sem qualquer envolvimento estatal, mesmo que os seus patronos fossem
figuras destacadas e activas na vida pública. Assim, os antigos romanos tinham a
convicção de que estariam a efectuar um serviço aos mortos ao apresentarem tais jogos.
Embora não subsistam provas nesse sentido, em tempos muito recuados, os funerais
romanos podem ter implicado um género mais «frio» de sacrifício humano.

Prisioneiros e escravos de menor valor, adquiridos apenas para este propósito, talvez
fossem imolados de acordo com a crença de que a alma do defunto teria de se ver
purificada através do derramamento de sangue humano. Tertuliano, como vimos,
insistiu nesta tecla, mas possivelmente porque pretendia, acima de tudo, desacreditar
os combates gladiatórios. No entanto, a explicação deste escritor cristão acha-se,
igualmente numa obra mais antiga, pelo cálamo de Festo, que viveu no século II d. C.:
«Era costume sacrificar cativos junto aos sepulcros de bravos guerreiros; quando a crueldade
deste hábito se tornou conhecida, passou a haver combates gladiatórios ao pé do local da
inumação».

Sérvio escreveu praticamente o mesmo:


«… sane mos erat in sepulchris virorum fortium captivos necari: quod postquam crudele
visum est, placuit gladiatores ante sepulchra dimicare, qui a bustis bustuarii appelati sunt»68.

Hoje em dia, diversos autores refutam liminarmente a tese de que os combates


gladiatórios funcionariam como «substituto mais suave» para as imolações humanas.
No entanto, ficamos com a impressão de que eles talvez não consigam ver, mesmo
diante dos seus olhos, a lógica desta conexão sacrificial. Esses estudiosos alegaram que
tanto os Gregos como os Romanos, se, de facto, fizeram sacrifícios humanos durante
cerimónias fúnebres, degolavam as vítimas junto das piras dos defuntos ou
queimavam-nas vivas, mas nunca as poriam a lutar com armas umas contra as outras.
Segundo tal argumentação, os combates gladiatórios não teriam qualquer conexão com
imolações humanas, mas cabe perguntar se não houve mesmo uma raiz sacrificial na
génese da gladiatura.

***

67Cf. D. Battaglia e L. Ventura, De Rebus Gladiatoriis. Dal gymnasion al ludus attraverso i sepolcri,
Rovello, Assoziacione Ars Dimicandi, 2010, pp. 6-14. Battaglia foi quem redigiu o texto da obra, e Ventura
o responsável pela pesquisa bibliográfica.

68 Sérvio, Ad Aeneidos, 10.519.

22
Façamos uma breve pausa para um balanço crítico minimamente elucidativo sobre a
controvérsia em torno das origens dos combates gladiatórios. Ela partiu da premissa de
que os mais antigos munera romanos constituiriam, por assim dizer, uma «anomalia»
não romana. Tal ideia talvez reflicta um raciocínio precipitado. Na enorme diversidade
dos comportamentos humanos,a prática dos duelos enquanto performance ritual, tanto
para os vivos, como na qualidade de ritual em honra dos defuntos, não significou um
conceito bizarro. É muito provável que a «versão» romana do combate gladiatório
representasse o produto da sistematização de um fenómeno comum entre os povos
itálicos, e não se tratasse propriamente de uma «importação». Esta hipótese deve ser
equacionada, sobretudo tendo em conta a natureza bastante frágil dos argumentos
esgrimidos pelos autores que defenderam as duas principais teorias das origens
gladiatórias. A gladiatura significa, talvez, um rito quase universal, tanto lacial, como
etrusco e campaniano, cuja génese se perde na proto-história. Para Donald Kyle, a
questão até pode não ter uma resposta conclusiva, no sentido de definir uma origem ou
local precisos e únicos, implicando uma «simples transmissão linear» 69. No entanto,
deve valorar-se que, efectivamente, os tipos de gladiadores mais antigos correspondem
a imagens de inimigos estrangeiros de Roma, em especial o trácio (thraex) e,
sobretudo, o samnita (samnis ou samnes).

Como referimos, G. Ville defendeu que, partindo de uma origem osco-samnita, a


gladiatura funerária passou à Etrúria e, daqui, até Roma, em princípios do século III a.
C. Para Michael Grant, todavia, o processo seria o inverso: uma tradição etrusca
adoptada pelos Campanianos do Sul e pelos Romanos 70. No meio de tudo isto, a
incerteza afirma-se, assim, a norma. No entanto, de entre todas as teorias e hipóteses,
parece mais plausível uma combinação de influências etruscas e da Campânia, e as
guerras do século IV a. C. contra os Samnitas, uma fase possível para o nascimento da
gladiatura 71. Parece, então, que cabe procurar as raízes do fenómeno gladiatório na
Itália Central e Meridional 72.

***

Aproximadamente em finais do século IV ou princípios do III a. C., operou-se uma


evolução que acarretaria consequências significativas para a história da gladiatura.
Inicialmente religiosos e sagrados, os combates vieram a tornar-se profanos e
«espectaculares». Se bem que o pretexto funerário ainda tenha continuado a subsistir,
pelo menos até ao século II a. C., a função espectacular acabou por levar totalmente de
vencida a vertente fúnebre, no culminar de um longo processo de desenvolvimento. Ao
ganharem renovado sentido, os combates funerários passaram a ser mais
regulamentados. Esta regulamentação tornou-se perceptível quando foi preciso dar um
nome concreto a estes combatentes, a fim de os distinguir do domínio estritamente
militar. Podemos então dizer que a verdadeira gladiatura apareceu com a noção da
armatura.

69Cf. Spectacles of Death in Ancient Rome, p. 45. «The origin of gladiatorial and beast combats is
probably not a historical question answerable in terms of a single original location (e. g. Etruria or
Campania), a single original context (e.g. sacrifice, contests, vengeance, scapegoats), and a simple linear
transmission (e. g. Etruria to Rome). Combats, sacrifices and blood sports were simply too widespread in
antiquity».

70 Cf. Gladiators…, pp. 17-18.

71 F. Quezada Sanz, «En honor del difunto. El origen de la gladiatura en Roma», p. 9.

72 G. Ville, La gladiature…, pp. 1-56, J.-C. Golvin e Ch. Landes, Amphithéâtres et gladiateurs, Paris,
1990, pp. 25-29.

23
O vocábulo armatura é um elemento fundamental para compreender a realidade do
fenómeno gladiatório 73. Ainda hoje, diversos estudiosos vertem amiúde armatura por
«armadura», o que significa uma das numerosas contradições ou ideias erróneas que
teimam em prevalecer sobre esta matéria. Com efeito, tal étimo faz assomar à mente a
imagem de um guerreiro inteiramente «couraçado» de finais da Idade Média. Esta
ideia, por seu lado, é esporadicamente realçada por historiadores que se servem de
expressões artificiais e erróneas, descrevendo os gladiadores como indivíduos
«armados dos pés à cabeça» ou gladiadores «pesados» que supostamente lutariam
contra gladiadores «ligeiros», igualmente anacrónicos.

O termo armatura reportava-se apenas ao combatente, fosse um gladiador ou um


militar. Tito Lívio alude a milites armaturae gravis (soldados fortemente equipados»,
e Marco Túlio Cícero aos milites armaturae levis (soldados levemente equipados). Se,
por um lado, na esfera militar o termo armatura se refere a um combatente provido de
equipamento mais ou menos completo, por outro, esta dicotomia jamais se aplicou no
léxico gladiatório. No caso dos gladiadores, a palavra armatura não se podia entender
por si só, dado que tinha de estar sempre acompanhada por algo mais que a
explicitasse. Numa primeira fase, essa distinção assumiu carácter étnico: neste sentido,
as armaturae samnita, gaulesa e trácia designavam aqueles que lutavam com os
armamentos típicos destes povos. Depois, a noção adquiriu uma conotação técnica,
quando apareceram em cena o eques («cavaleiro») ou o secutor («perseguidor»).
Contrariamente ao observável na esfera castrense, nunca se colocou a questão da
existência de uma divisão entre gladiadores «pesados» e gladiadores «ligeiros». Este
género de abordagem, que diversos estudiosos ainda adoptam, traduz-se num
anacronismo que deriva dos desportos modernos e foi aplicado erradamente à
gladiatura: de facto, nenhum desporto antigo conhecia categorias de peso.

No contexto da génese e da evolução das armaturae, a etapa fundamental ocorreu


quando os combatentes começaram a ser equipados de uma maneira mais precisa e
estável. Este ponto de viragem muito importante na génese do fenómeno levou à
criação da primeira armatura, a samnita, no fim do século IV a. C., em princípio pelos
Campanianos (mais concretamente os habitantes de Cápua, no Centro da Campânia).
Na centúria subsequente, terá sido a vez de os Etruscos usarem as armas dos seus
principais inimigos, adoptando a armatura gaulesa. Ainda que faltem provas
documentais, é possível que neste momento histórico esses combates tenham sido
protagonizados por prisioneiros de guerra obrigados a lutar uns contra os outros,
munidos dos equipamentos característicos das étnias inimigas.

Os primeiros espectáculos gladiatórios em Roma

Convém escrutinar judiciosamente o teor das fontes escritas, já que a maior parte
delas (Floro, Tito Lívio, Cícero e, em menor grau, Políbio) é geralmente bastante
posterior aos factos narrados; assim, tais escritos podem comportar, pelo menos
73 Aspecto que, em finais do século XIX, já aparece mencionado por G. Lafaye, «Gladiator», in C.
Daremberg e E. Saglio (eds.), Dictionnaire des Antiquités romaines et grecques, IV, 1896, p. 1586ss;
posteriormente, L. Robert referiu-se também às armaturae (Les gladiateurs dans l’Orient grec, Paris,
Bibliothèque de l’École pratique des hautes études, 1940, p. 304), bem como R. Auguet, Cruaté et
civilisation, pp. 64-79, embora as mesmas nem sempre se viram bem tipificadas. Em tempos mais
recentes, três autores enfatizaram particularmente a importância do vocábulo armaturae, com base em
novos critérios e diferentes interpretações: M. Junkelmann, Gladiatoren: Das Spiel mit dem Tod, pp. 101-
102; F. Coarelli, «L’armamento e le classi di gladiatori», in A. La Regina (ed.), Sangue e Arena…, pp. 153-
173; E. Teyssier, La mort en face…, pp. 19-20.

24
parcialmente, transposições da realidade em que esses autores viveram para o passado,
ao relatarem a situação dos gladiadores nos séculos IV e III a. C. Cabe, pois, manter
uma atitude cautelosa em relação às fontes literárias. A data que estas registam para o
mais antigo munus na cidade de Roma é 264 a. C., a qual é aceite por quase todos os
historiadores actuais. Porém, colhem-se indícios de que talvez antes já se organizassem
combates gladiatórios na Urbs 74. É em Suetónio que se colhem os dados mais
concretos: historiador atribuiu o estabelecimento de munera regulares e patrocinados
pelo «Estado» a Tarquínio-o-Antigo ou Prisco (que, de acordo com a tradição, terá
reinado de 616 a 579 a. C.). Os Tarquínios 75 são geralmente associados aos começos do
desenvolvimento de Roma como entidade urbana e à introdução de instituições típicas
de um modus vivendi civilizado76. Sob a égide dos Tarquínios, drenou-se o espaço onde
se ergueu o Forum (também projectado por esta altura), construiu-se o Templo
Capitolino, ganhando então a cidade de Roma muitos elementos reveladores de alta
cultura.

Mais pertinente para o assunto que nos ocupa é a suposta influência tarquiniana na
religião e nos símbolos estatais. A ênfase romana na manutenção de uma relação
altamente formalizada com os poderes divinos, bem como as formas particulares que
essa relação assumiu, foi atribuída ao duradouro prestígio da prática etrusca. De facto,
Roma adoptou vários «marcadores» políticos (atrás mencionados), como a sella curul,
a toga, os fasces e a própria cerimónia do triunfo77, precisamente no período da
denominada «hegemonia» etrusca. Pode ter sucedido que os munera, instituição
comemorativa quase religiosa e de antiguidade incerta mas com conotações políticas
definidas, se entendessem ulteriormente como havendo «chegado» a Roma dentro do
contexto global do progresso «civilizador» dos reis etruscos. Ora esta interpretação
encontra um paralelo no hábito assinalável nas fontes literárias romanas da construção
de um derivado etrusco da prática como um todo.

Também potencialmente importante para o pano de fundo dos mais vetustos munera
romanos foi o desenvolvimento continuado dos Jogos: os ludi 78 romanos, em regra,
foram intimamente identificados com as cerimónias religiosas do Estado romano, as

74 Assinalam-se sugestões neste sentido em J.-C. Golvin, L'Amphitéâtre romain. Essai sur la théorisation
de sa forme et de ses functions, t. I, Paris, De Boccard, 1988, pp. 17-21.

75 Atentemos às palavras de Suetónio: Tarquinius Priscus prior Romanis duo paria gladiatorum edidit
quae comparavit per annos XXVI, que é citado por A. Reifferschied, C. Suetonii Tranquilli praeter
Caesarum libros reliquiae, Leipzig, B. G. Teubner, 1860, p. 320. Não se afigura claro em que obra
suetoniana estaria inserido este fragmento textual: podia encontrar-se no De Regibus, enquanto parcela de
uma lista presumivelmente mais extensa das iniciativas mais relevantes tomadas por Tarquínio. Resta
também a alternativa dessa frase haver estado incluída nos livros de Suetónio sobre os jogos e os
espectáculos romanos, fazendo parte de uma explicação mais detalhada da natureza e das origens dos
munera, escritos que lamentavelmente se perderam: G. Ville não conferiu grande importância à passagem
acima referida (La Gladiature, p. 8, n. 32).

76 Sobre a influência etrusca em Roma: L. Bonfante, «Roman Triumphs and Etruscan Kings: The
Changing Face of the Triumph», JRS 60 (1970), pp. 49-66 , e IDEM, Out of Etruria, Oxford, BAR
International Series, 1981, pp. 93-110. T. J. Cornell, por seu lado, na obra The Beginnings of Rome,
Londres, 1995, pp. 156-172, apresenta um modelo diferente para esta interacção cultural, pondo em causa a
primazia etrusca.

77 Para alguns filólogos, os étimos populus e miles, respectivamente «povo» e «soldado», derivam
igualmente de palavras etruscas.

78Os ludi eram festividades em honra das divindades e eventos estatais, no decurso das quais se ofereciam
diversos entretenimentos. O étimo ludus tem aqui a acepção de «jogo» ou «exercício», aplicando-o os
Romanos, antes do século III, às corridas de carros no Circo (ludi circences) e às representações teatrais
(ludi scaenici ou ludi theatralis), não o misturando com a palavra munus, isto é, os combates gladiatórios.
A este respeito, veja-se J. Toutain, «Ludi public!», in C. Daremberg e e E. Saglio (eds.), Dictionnaire des
Antiquités..., vol. III.1 [D-S], pp. 362-378. Importa realçar que, mais tarde, o vocábulo ludus também
passou a designar as «escolas» ou centros de treino dos gladiadores e dos venatores.

25
mais antigas delas sendo a Equirria e a Consualia, respectivamente em honra de Marte
e Consus. Os jogos votivos, prometidos habitualmente a Júpiter em troca de êxitos
militares, vieram a regularizar-se sob a designação de Ludi Magni, celebrando-se
anualmente. Os grandes Ludi, incluindo a Floralia e a Cerialia, terão sido adicionados
ao calendário romano sobretudo durante o século III a. C., período de manifesta
relevância crítica para a expansão da influência romana para além da Itália Central,
uma fase que se invocava o auxílio divino, porque especialmente necessário e
propiciador da concessão de vitórias 79.

Certamente não é uma simples coincidência que a data atribuída ao primeiro munus
em Roma se situe em meados do século III a. C. Mas pode-se efectivamente aceitar tal
data como algo absoluto? Ou será que os Romanos assistiram a espectáculos de
gladiadores antes de 264 a. C.? Captamos provas indirectas disto nas iniciativas
empreendidas por um tal C. Maenius, e no vocábulo específico para as divisões
existentes entre lugares sentados nos anfiteatros, maeniana. Ménio, que foi censor em
338 a. C., mandou erigir uma coluna no Forum, a oeste do Comitium, e a sul do Carcer
80
. De acordo com Festo, os maeniana derivaram de Maenius, já que este fora o
primeiro a aumentar a capacidade dos lugares sentados no Forum, destinados ao
público durante os espectáculos (no entanto, a palavra utilizada, spectacula, podia
apenas reportar-se a entretenimentos em geral, e não aos munera em particular 81).
Assim, a identificação de Maenius com os assentos para os espectadores de combates
gladiatórios sugere que tal facto ocorreu em finais do século IV a. C 82.

Descortina-se outro indício da existência de combates gladiatórios antes do século III


na introdução da armatura samnita. Presume-se que os tipos de gladiadores «étnicos»
conhecerem a sua origem através da utilização de prisioneiros de guerra forçados a
participar em duelos 83. Em conformidade com tal premissa, o período temporal mais
lógico da codificação do tipo samnes pelos Romanos inscrever-se-ia, obviamente, nas
Guerras Samnitas, que se desenrolaram entre 343 e 290 a. C., isto é, antes da primeira
exibição gladiatória textualmente conhecida em Roma 84.

Centremo-nos, então, no munus que teve lugar em Roma, em 264 a. C. (ano em que
começaria a Primeira Guerra Púnica). De acordo com Tito Lívio, «Decimus Iunius
Brutus foi o primeiro a organizar combates gladiatórios em honra do seu falecido

79 Sobre o tópico da associação das conquistas territoriais do expansionismo romano com a organização
oficial de jogos, cf. Th. Mommsen, «Ludi Romani», Römische Forschungen, Berlim, Weidman, 1864-1879,
e G. Jennison, Animals for Show and Pleasure in Ancient Rome, Manchester, Manchester University
Press, 1937, pp. 42-43.

80 É o mesmo Maenius que erigiu os Rostra a seguir à batalha de Antium. Para a localização precisa da
coluna, veja-se F. Coarelli, Il foro romano, vol. II, Roma, Quasar, 1983-1985, pp. 39-53.

81 Cf. Festo, De Verborum Significatione, par. 135 M = par. 107 Th: Maeniana appelata sunt a Maenio
censore, qui primus in foro ultra columnas tigna proiecit, quo ampliarentur superiora spectacula. Veja-
se S. Shadrake, The World of the Gladiator…, p. 50.

82 A. Futrell, Blood in the Arena..., p. 20.

83 O termo, em si mesmo, não apareceu entre os Samnitas. Não faria qualquer sentido que eles próprios
possuíssem um tipo de gladiador denominado Samnis. Isto sugere, pois, uma perspectiva exterior aos
samnitas. Cf. P. Meier, De Gladiatura Romana: Quaestiones Selectae, tese de doutoramento apresentada à
Universidade de Bona, 1881, pp. 14-20.

84 A discrepância entre as datas das Guerras Samnitas e a da introdução tradicional dos munera em
Roma no século III a. C., talvez se explique caso encaremos a armatura samnis como uma espécie de
relíquia do sistema campaniano ou etrusco, posteriormente adoptada pelos Romanos.

26
pai»85. Esta asserção vê-se reiterada por Valério Máximo, que incluiu mais detalhes,
especificando quais foram os editores e em que local ocorreu o munus:
«O primeiro espectáculo de gladiadores oferecido a Roma foi apresentado no forum boarium,
sob o consulado de Appius Claudius e de M. Fulvius. Foi organizado por Marcus e Decimus,
filhos de Brutus, para prestar as honras fúnebres aos despojos mortais do seu pai [ano 489 de
Roma]. Quanto aos combates dos atletas [athletarium], deveram-se à munificência de M.
Scaurus»)86 .

Os dois filhos do ex-cônsul D. Iunius Brutus Pera apresentaram o munus pouco após
o funeral do seu progenitor, no mercado do gado, situado perto da Ilha Tiberina, o
chamado Forum boarium 87. Existem mais pormenores sobre este evento, que vale a
pena mencionar: eles encontram-se em fontes escritas muito posteriormente (afora
Valério Máximo) ao episódio narrado, mas não deixam ser revelar credíveis; Ausónio,
no século IV d. C., adianta que participaram três pares de gladiadores, que lutaram
sucessivamente, de acordo com o «estilo trácio» 88; um contemporâneo desse poeta,
Sérvio, especulou sobre a natureza inicial da instituição do munus e o costume de se
utilizarem cativos obedecendo a algum género de obrigação devida ao defunto. Aqui
observa-se uma implicação, a da alta condição do falecido, o que, per se, justificava tal
prática, mas Sérvio contribuiu com mais alguns detalhes sobre a celebração juniana 89.
Assim, estes testemunhos mostram-se concordantes ao realçar que o espectáculo de
264 a. C. foi o primeiro munus a ocorrer em Roma, ganhando este ano o carácter de
data «canónica».

A gens Iunia estava associada ao lendário passado de Roma, designadamente com a


própria presença etrusca na Cidade 90. O mais antigo indivíduo portador desse nome foi
um certo Marcus, que desposou a irmã de Tarquínio-o-Soberbo, adquirindo, assim,
laços mais estreitos com a Etrúria. O filho que resultou desta união, Lucius Iunius
Brutus, foi o celebrado libertador do povo romano, o fundador da República romana e
o seu primeiro cônsul. A historicidade desta figura, à semelhança do que sucede com
outros personagens do remoto passado de Roma, afigura-se questionável, bem como a
sua conexão com o histórico clã Juniano. Porém, uma coisa é certa: L. Iunius Brutus foi
um patrício, ao passo que a posterior gens era plebeia 91. Outra questão que fica por

85 Tito Lívio, Epit. 16: D. Iunius Brutus munus gladiatorium in honorem defuncti patris primus edidit.
Veja-se J.-C. Golvin, L' Amphitéâtre romain. Essai…, t. I, pp. 17-18.

86 Valério Máximo, Factorum et Dictorum Memorabilium, 2.4.7: Nam gladiatorium munus primum
Romae datum foro Boario Ap. Claudio, M. Fulvio consulibus: dederunt Marcus et Decimus filii Bruti
Perae funebri memoria patris cineris honorando. Note-se que em alguns manuscritos o «Perae» está
omisso. Valério Máximo a sua obra (alternativamente intitulada Facta et Dicta Memorabilia/«Factos e
ditos memoráveis») durante o reinado de Tibério, baseando-se em Tito Lívio e nos anais enquanto
mananciais informativos. No entanto, as suas fortes semelhanças com o relato de Tito Lívio devem-se,
possivelmente, mais ao facto de os dois autores recorrerem aos dados analísticos.

87 O primitivo Forum boarium foi um lugar fundamental na configuração da Roma arcaica e republicana.
O seu simbolismo e carácter sagrado são manifestos. Veja-se, a propósito, F. Coarelli, Il Foro Boario. Dalle
origini alla fine della Republica, Roma, 1988.

88Ausónio, Griphus, 36-37: tris primas Thraecum pugnas tribus ordine bellis Iuniadae patrio inferias
misere sepulcro.

89 Sérvio, Ad Aen. 3.67: Apud veteres etiam homines interficiebantur, sed mortuo Iunio Bruto cum
multae gentes ad eius funus captivos misissent, nepos illius eos qui missi erant inter se composuit, et sic
pugnaverunt: et quod muneri missi erant, inde munus appellatum. Para a questão do sacrifício humano,
A. Futrell, Blood in the Arena, cap. 5: «The Magic Ring: Human Sacrifice in the Arena», pp. 169-210.

90 W. Smith (ed.), A Dictionary of Greek and Roman Biography and Mythology, vol. I, Londres, J.
Murray, 1876, pp. 507-513; II, p. 658; F. Münzer, «Iunius Brutus», RE, 10: I, col. 1023.

91 B. Niebuhr, The Roman History, vol. I, Londres, C. and J. Rivington, 1827, pp. 522-530

27
explicar é o da execução dos dois filhos de Brutus, o que limitou, no mínimo, a sua
descendência directa92. Contudo, os detentores do nome Iunius durante a República
reivindicaram e defenderam veementemente a sua ligação de parentesco com o
afamado libertador do povo romano.

Outro aspecto estranho é o duplo cognomen do defunto, Brutus e Pera, que são ambos
cognomina conhecidos dos Iunii, mas, à excepção do trecho de Valério Máximo, jamais
aparecem juntos em nenhuma outra fonte, sabendo-se que estes dois ramos da família
se separaram em tempos ainda recuados 93. Mas o cognomen Brutus Pera não invalida
o relato, já que a sua invulgaridade não prova a sua falta de historicidade 94. Tito Lívio e
Sérvio não utilizaram o cognomen Pera, omissão que torna mais fácil uma possível
identificação com um homem concreto: pode ter correspondido a Iunius Brutus
Scaeva, que foi cônsul em 292 a. C. 95. Sob os seus auspícios, empreendeu-se uma
campanha vitoriosa contra os Faliscanos, que foram derrotados, o que proporciona um
contexto para a existência de um vínculo mais recente com os vizinhos setentrionais de
Roma e, assim, o eventual acesso a tradições funerárias alternativas não romanas. A
vitória faliscana também poderia explicar que ele tivesse à mão prisioneiros de guerra,
o que se coaduna com as palavras de Sérvio. No entanto, depois de haverem passado
umas três décadas, os cativos do conflito já estariam muito decrépitos em 264 a. C.

Se o cognomen Brutus foi erradamente atribuído pelas fontes ao primeiro indivíduo


honrado por meio de combates gladiatórios, então o defunto talvez fosse o pai de D.
Iunius Pera, cônsul em 266 a. C., juntamente com N. Fabius Pictor 96. O primeiro
venceu, em duas ocasiões distintas, os Sassinates, Sollentini e os Messapii. Neste
sentido, é lícito supor que os prisioneiros itálicos, que se trouxeram para Roma a fim de
integrarem os cortejos triunfais, tenham sido forçados a combater nesses ludi funebres.
Novamente, o acesso a cativos de guerra significaria uma vantagem para os editores
desses jogos, que comportaram apenas três pares de homens lutando no munus,
quando a aquisição de mais combatentes não representaria um fardo excessivo em
termos de «gastos»97.

O próprio sítio onde teve lugar o munus difere consoante as fontes: Valério Máximo
especifica que foi no Forum boarium, enquanto Ausónio o localiza junto do próprio
túmulo, perto de uma zona simbolicamente importante fora das muralhas da cidade 98.
Ausónio, como vimos, acrescentou que se tratava de gladiadores do tipo thraex. A data
para a introdução deste armatura ainda suscita debates e incertezas. Segundo alguns
estudiosos, os mercenários trácios terão sido capturados no decurso da guerra movida
contra Perseu (171-167 a. C.) e, a seguir, levados para Roma, onde foram obrigados a
lutar como gladiadores 99. Para outros, eles terão surgido no tempo de Lúcio Cornélio
Sula (Lucius Cornelius Sulla), após a guerra mitridática de meados da década de 80 a.
92 Possidónio sugeriu a existência de um terceiro filho, que seria ainda criança aquando das mortes dos
seus irmãos, autor que Plutarco cita em Brut. I.

93 Atestam-se outros cognomina:Bubulcus, Gracchanus, Norbanus, Paciaecus, Pennus, Pullus e Silanus.

94 F. Münzer («Iunius Brutus», RE, 10:I, col. 1026) aceitou o duplo cognomen.

95 Tito Lívio, Ab Urb. Cond. 10.43.47.

96T. R. Broughton, The Magistrates of the Roman Republic, vol. I, Cleveland, Cleveland Press of Case
Western University, 1968, pp. 201-202; veja-se também Münzer, «Iunius Brutus», RE, 10: I, nº 124.
Curiosamente, o filho do cônsul de 266 a. C. tornou-se dictator em 216, depois da batalha de Canas, no
mesmo ano em que se apresentou o munus emiliano.

97 A. Futrell, Blood in the Arena…, p. 22.

98 Remetemos para as disposições referentes aos sepultamentos extramuros, consignadas numa das Doze
Tábuas (Tábua X, «Lei Sagrada»). Veja-se o conteúdo das Doze Tábuas em E. H. Warmington (ed.),
Remains of Old Latin, 3, Cambridge, Mass., Harvard University Press, 1935, pp. 424-513.

28
C. 100. Ambas as teorias defendem a emergência do estilo de combate thraex bastante
depois de 264 a. C., pelo que Ausónio recorreu provavelmente a uma espécie de licença
poética, anacrónica, na sua descrição do munus101.

A estes primeiros gladiadores, os autores antigos chamam bustuarii, vocábulo que


deriva de bustum, significando uma pira funerária ou um túmulo. Mas isto não quer
dizer necessariamente que os combatentes tenham lutado mesmo junto do túmulo do
defunto, apenas que a actuação dos mesmos fazia parte integrante de uma cerimónia
fúnebre: em princípio, devem ter combatido algum tempo após o funeral propriamente
dito, a seguir a um breve período de luto, isto é, volvidos nove dias após a inumação 102.
O étimo bustuarius, sinónimo de gladiador, permaneceu em uso corrente em Roma até,
pelo menos, ao tempo de Cícero 103. Os três pares parecem apropriados para um evento
celebrado pela primeira vez, um modesto começo num cenário também relativamente
modesto, ao passo que a identificação dos gladiadores como «cativos» se adequa ao
facto de os prisioneiros de guerra representarem uma das principais fontes para a
obtenção de homens para a arena ao longo da história dos jogos.

Haveria interesse em sabermos se os combates do munus celebrado em 264 a. C.


terminaram ou não com a morte de um dos adversários. Devido à falta de provas, é
impossível respondermos categoricamente a esta questão. Ausónio conta que os três
pares de gladiadores foram apresentados enquanto oferenda funerária para o túmulo
de Pera, o que talvez sugira, mas não forçosamente, que a morte seria um desfecho
esperado 104. Mas o poeta representa um testemunho assaz tardio (seis séculos após o
evento relatado), daí que possivelmente não seja fiável neste aspecto. Donald Kyle
sustentou a ideia de que os primeiros gladiadores terão lutado até à morte 105.

No entanto, o primeiro caso documentado de combates gladiatórios em que não se


permitiu que um oponente vencido fosse poupado remonta a finais do século I a. C.
Acreditamos que estes primeiros confrontos em Roma foram como os que se lhe
seguiram até ao fim da República – duelos que podiam culminar numa morte, mas não
obrigatoriamente. Um gladiador podia alcançar a vitória deixando o seu adversário
apenas incapaz ou sem vontade de continuar a porfia. Esta interpretação inserir-se-ia
numa certa continuidade histórica, se tivermos em conta a sugestão proposta por David
S. Potter, de que os combates de gladiadores do século IV a. C., no Sul de Itália,
durariam até à primeira aparição de sangue 106. A aceitarmos esta interpretação, então
esses combates na Itália Meridional podem mesmo ter influenciado o «formato» dos
primeiros duelos em Roma, mesmo eventualmente com uma influência etrusca de
permeio.

O munus em memória de D. Iunius Brutus Pera foi suficientemente importante ao


ponto de vários autores antigos o assinalarem como um marco na história de Roma.
99 J. Henzen, Explicatio Musivi..., pp. 112-113.

100 P. Meier (De Gladiatura..., p. 33) citou Plutarco (Vida de Crasso, 8) na descrição dos ludi de Lêntulo.

101 Lembremos que Ausónio escreveu cerca de setecentos anos depois do evento narrado, num momento
histórico em que os combates gladiatórios já há muito se encontravam estabelecidos e padronizados.

102 R. Auguet, Cruauté et civilisation…., p. 19.

103 Cícero, Pis. 19.

104 Gryphus, 37.

105 Spectacles of Death..., pp. 47-49.

106 D. S. Potter, «Gladiators and Blood Sport», in M. Winkler (ed.), Gladiator: Film and History, Malden,
Mass., 2004, p. 80.

29
Estes ludi funebres consistiam, como dissemos, numa manifestação organizada pela
família do falecido, para a qual se convidavam os cidadãos da cidade. Os combates que
para essa ocasião se travavam entendiam-se na qualidade de um presente, munus,
oferecido em memória do ente desaparecido (Lívio, Ab Urb. Cond. 23.30.15). Através
desta cerimónia, o munerarius prestava homenagem ao seu parente falecido, mas ao
mesmo tempo aproveitava para demonstrar o seu peso político na cidade, ao reunir, em
torno das exéquias e do munus, o maior número possível de espectadores, que acorriam
ao evento atraídos pelos combates107.

Em menos de cem anos, a gladiatura despertou um interesse e um entusiasmo cada


vez mais fortes entre os Romanos, pelo que com o passar dos anos, estes combates
ganharam crescente amplitude e frequência. O munus seguinte mencionado nas fontes
literárias foi em 215 a. C., quando, como conta Tito Lívio, «os três filhos, Lucius,
Marcus e Quintus, ofereceram jogos funerários ao longo de três dias e 22 pares de
gladiadores no Forum, em honra [do seu pai] M. Aemilius Lepidus, que fora duas vezes
cônsul e áugure» 108. A atmosfera em que decorreu o evento mostrou-se ainda de
natureza mortuária, mas o munus em si mesmo adquiriu maior espectacularidade,
passando de três pares de gladiadores, que combateram em 264, para 22 pares em 215
a. C.

O ramo nobre Lepidus, da gens Aemilia, surge pela primeira vez nos registos
históricos no início do século III a. C., com M. Emílio Lépido, cônsul em 285 a. C. a. C.
e, talvez, avô do defunto homenageado em 216 a. C. 109. A partir daí, os Aemilii Lepidi
converteram-se numa poderosa força política, tendo cônsules em quase todas as
gerações. O Lepidus honrado com o munus, que havia exercido o alto cargo de cônsul
em duas ocasiões (como escreveu Lívio), uma em 232, e a outra, possivelmente, em 220
a. C. 110. Durante o seu primeiro consulado, ele comandou tropas contra os Sardos.
Lucius e Quintus, seus filhos, são-nos conhecidos apenas mediante a citada passagem
liviana, mas já do outro, Marco, sabe-se que desempenhou as funções de pretor na
Sicília em 218 a. C., e ocupou possivelmente o mesmo cargo em Roma no ano seguinte.
Tito Lívio alude à sua candidatura mal sucedida ao consulado no ano de 216. Esta
primeira associação que se conhece entre a apresentação dos munera e a eleição para
os mais elevados ofícios da magistratura romana viria a converter-se num padrão-
chave na politização dos combates gladiatórios nos tempos ulteriores da República.

Capta-se mais um indício do carácter público na própria «localização» historiográfica


dos munera 111. Lívio constitui a nossa fonte mais relevante para os mais antigos
combates atestados, daí que a compreensão do contexto em que estes se inseriram nos
escritos livianos seja essencial para a interpretação dos eventos. A notícia do munus
aparece, por assim dizer, «encaixada» entre os relatos da dedicação do Templo de

107 G. Ville advertiu para a diferença essencial entre os munera privados e os ludi públicos, que desta
forma explica o emprego da expressão munus gladiatorium em vez de ludus gladiatorium (La
gladiature…, p. 19): «Cela vient de ce que les ludi privati, c’est-à-dire surtout des jeux funéraires, s’étaient
réduits de plus en plus à un cadeau de gladiateurs, et que l’expression munus, que désigne le cadeau d’un
mécène, se dit tout de même plus souvent des gladiateurs qu’il offre à titre privé que des jeux publics qu’il
offre une fois élut magistrat…».

108 Tito Lívio, Ab Urb. Cond. 23.30: Et M. Aemilio Lepido, qui bis consul augurque fuerat, filli tres,
Lucius, Marcus, Quintus, ludos funebres per triduum et gladiatorum paria duo et viginti in foro
dederunt.

109 W. Smith (ed.), A Dictionary of Greek and Roman Biography, II, pp. 762-770.

110 Tito Lívio, Ab Urb. Cond. 23.30; Políbio, 2.21; Zonaras, 8, p. 401.

111 A. Futrell, Blood in the Arena…, p. 23.

30
Vénus Erycinae e da celebração dos Ludi Romani e dos Ludi Plebeii, que significavam
grandes acontecimentos estatais anuais.

Houve realmente um intervalo de 45 anos entre a apresentação do «primeiro» munus


e o «segundo»? Para responder a esta questão formularam-se várias interpretações. De
acordo com uma delas, o costume de apresentar um espectáculo gladiatório no contexto
de uma cerimónia fúnebre pode não ter gozado de popularidade logo a seguir à sua
«primeira» ocorrência em 264 a. C. Isto implicaria que uma resistência inicial à
violência sangrenta dos combates gladiatórios. No entanto, esta teoria carece de
credibilidade se tivermos em conta a natureza belicosa do povo romano, sendo difícil
que este revelasse tais susceptibilidades 112.

Congeminou-se uma explicaçãoalternativa para o hiato entre o munus juniano e o


emiliano: numa primeira fase, Roma estaria decerto assoberbada com a Primeira
Guerra Púnica (264-241 a. C.) e, depois, com o começo da Segunda Guerra Púnica (218-
215 a. C.). Mas esta interpretação não leva em linha de conta o período de 23 anos que
separou os dois conflitos armados, nem o facto de o munus organizado em honra de
Lépido ter lugar no ano a seguir à pior derrota militar que os Romanos sofreram na sua
história, na batalha de Canas (Cannae), em 216 a. C. D. Kyle esgrimiu argumentos
convincentes no sentido de que a refrega terá conferido um forte ímpeto para o
aumento da frequência dos combates gladiatórios, servindo estes para encorajar os
Romanos mais inseguros através de demonstrações de brutal violência. Esta mensagem
viu-se, aliás, reforçada pela medida de se recrutarem escravos para combaterem como
soldados em nome de Roma, homens com a mesma condição social que os gladiadores
113
.

Por último, resta a possibilidade de se terem celebrado outros munera ao longo desse
período, mas nenhum significativo ao ponto de merecer referências nos registos
históricos. Tito Lívio conta que, em 174 a. C., se organizaram diversos munera, mas
todos insignificantes à excepção de um que ele teve o cuidado de descrever 114. A este
respeito, importa ter em mente um princípio geral: os munera mencionados nas fontes
literárias e epigráficas representaram, possivelmente, uma pequena percentagem em
relação a todos os que realmente se ofereceram em Roma. Se um munus não assumisse
clara relevância e não fosse apresentado por alguém ilustre, tornar-se-ia altamente
improvável que atraísse a atenção dos antigos historiadores. Aparentemente há indícios
que apontam para a ocorrência de numerosos munera em Roma e em várias outras
regiões de Itália, patrocinados por magistrados e cidadãos privados, mas foram quase
de imediato olvidados 115.

Como vimos, segundo Lívio, no munus em honra de Lepidus participaram 22 pares de


gladiadores, representando um salto significativo comparativamente com os três pares
de 264 a. C. Além disso, o espectáculo prolongou-se por três dias, quando o dedicado a
Iunius Pera apenas durou um dia. Os combatentes terão sido distribuídos de maneira
mais ou menos equitativa por esses três dias. Mas talvez a mudança mais significativa
seja a do local (isto se acreditarmos que o «primeiro» munus teve como palco o Forum
boarium), travando-se as pugnas no Forum Romanum, o centro social, político,
jurídico e religioso da Cidade Eterna. Esta alteração parece apontar para a plena

112 R. Dunkle, Gladiators…, pp. 153-154.

113 D. Kyle, Spectacles of Death…, pp. 47-49. Para o recrutamento dos escravos, vejam-se Tito Lívio, Ab
Urb. Cond. 22.57.9-12, e Valério Máximo, Factorum et Dictorum Memorabilium, 7.6.1.

114 Tito Lívio, Ab Urb. Cond. 41.28.11.

115 J. C. Edmondson, «Dynamic Arenas: Gladiatorial Presentations in the City of Rome and the
Construction of Roman Society during the Early Empire», in W. J. Slater (ed.), Roman Theater and
Society, Ann Arbor, Michigan, 1996, p. 76 (69-112).

31
aceitação da ideia de que os combates gladiatórios eram uma maneira apropriada para
os Romanos honrarem um parente falecido.

Sublinhemos também o aumento da popularidade destes eventos. Os organizadores


do munus de Lepidus devem ter calculado que 22 pares de gladiadores, ao longo de três
dias, atrairiam bastante gente, o que requereria um amplo espaço a céu aberto no
Forum. No entanto, cabe não depreender automaticamente que os familiares do
defunto tivessem total liberdade para agirem como mais lhes aprouvesse: na realidade,
o que acontecia é que a decisão da oferta do munus, assim como o número de
combatentes envolvidos, a data e o próprio local poderiam ter sido previamente
exarados, entre as instruções destinadas aos descendentes, no testamento do indivíduo
que dessa maneira se via homenageado 116.

Num testamento, as instruções para os descendentes apresentarem um munus foram


escritas num tom ameaçador: o famoso poeta Horácio relatou o episódio de um
«alpinista social» conhecido pela sua avarícia, chamado Staberius que, no documento
onde discriminou as suas últimas vontades, ordenara que os seus herdeiros fizessem
gravar no seu túmulo o valor patrimonial do legado, ao mesmo tempo que os advertiu
que se desobedecessem aos seus ditames seriam obrigados a organizar um munus
compreendendo cem pares de gladiadores (um grande espectáculo para munerari
privados e decerto muito oneroso!) 117. Julga-se que Staberius desejava anunciar
publicamente a sua generosidade póstuma em relação aos seus descendentes.

O notório recrudescimento do número de pares gladiatórios, quando cotejado com os


três que combateram em 264 a. C., sugere que, em 215, os três filhos de Lepidus viram
no munus não só uma ocasião para honrarem o seu progenitor, mas também uma
óptima oportunidade com vista a elevar a reputação e o prestígio da sua família, através
de uma exibição pública no coração simbólico de Roma (o Forum). Aqui, talvez
estejamos perante o mais antigo exemplo conhecido de competição entre os
aristocratas romanos, que rivalizavam uns contra os outros no intento de oferecerem
espectáculos cada vez maiores e melhores. Doravante, os patrícios possuiriam uma
outra saída para o seu desejo de se distinguirem dos demais e ganharem notoriedade –
o munus. Tendo em conta esse espírito de emulação que havia entre os membros da
elite, se o editor apresentasse um munus com o mesmo número (ou até menos) de
gladiadores que o oferecido noutro espectáculo, isto representaria um tremendo
embaraço para o mesmo.

Durante o remanescente da época republicana, o número de gladiadores não cessou de


aumentar, acompanhado de uma magnificência cada vez maior dos jogos. Este
fenómeno prosseguiu sob o Império e de uma forma ainda mais avassaladora, já que os
imperadores, muitas vezes dispondo de recursos quase ilimitados, ofereceram munera
de enormes proporções, que, quando cotejados com os organizados durante a época
republicana, reduzem os últimos a uma espécie de «micro-espectáculos». A seguir à sua
descrição sumária do munus em honra de Lépido, Tito Lívio alude à celebração dos
Ludi Romani de 215 a. C.:
«Os curule aediles [edis curuis], C. Laetorius e Ti. Sempronius Gracchus […] ofereceram os
Ludi Romani, que se prolongaram pelo espaço de três dias» 118.

Os ludi, como referimos, eram festividades religiosas dedicadas aos deuses, mas que
incluíam corridas de quadrigas (ludi circenses, dado que tinham lugar em pistas, circi)
e representações teatrais (ludi scaenici ou ludi theatralis) que habitualmente se
116 Séneca, Dial. 10.20.5; Cícero, Sull. 54.

117 Sat. 2.3.84-99.

118 Tito Lívio, Ab Urb. Cond. 23.30.16.

32
realizavam no Forum. Ora esta menção aos Ludi Romani com a duração de três dias é
digna de ressalva, uma vez que o munus de Lepidus também se desenrolou no mesmo
número de dias que os primeiros, em honra de Júpiter, os mais prestigiados dos ludi
anuais119. Porém, não queremos com isto dizer que a simples duração de um munus,
patrocinado a nível privado, tivesse a «estatura» dos veneráveis Ludi Romani ou outros
afins: afinal, o munus servia para homenagear um ser humano (ainda que se tratando
de um importante membro da aristocracia romana), enquanto os ludi eram dedicados
aos deuses. Mas, de qualquer modo, queda implícita a crescente relevância dos
munera, competindo em popularidade com os entretenimentos apresentados nos ludi.
Dito isto, pensamos que os filhos de Lepidus tentaram responder a uma procura
pública por um género de espectáculo que o povo romano se sentia especialmente
atraído.

O subsequente munus de que temos registo foi oferecido pelos filhos de M. Valerius
Laevinius, que serviu como primeiro comandante das forças romanas na Guerra
Macedónia contra Filipe V, e que sucedeu ao grande M. Cláudio Marcelo, como general
na Sicília. Mas, na óptica dos Romanos, a maior honra de Laevinius terá sido o facto de
haver liderado a embaixada que trouxe para Roma, em 205 a. C., o culto da Magna
Mater (também conhecida pelo nome de Cíbele) de Pessinus, que actualmente
corresponde à cidade de Balhisar, na Turquia Central. Esta transferência da imagem de
Cíbele (que consistia numa simples pedra) e do seu respectivo culto para a Urbs
obedecera, segundo reza a tradição, a uma ordem ditada por um oráculo sibilino, como
acto necessário para a expulsão de Aníbal do solo itálico. Dois anos depois, o general
cartaginês viu-se forçado a abandonar definitivamente a península, partindo rumo a
África e, por fim, Roma ganhou a guerra. Consequentemente, sob o ponto de vista
religioso, a deusa recompensara a hospitalidade dispensada pela cidade, ao conceder-
lhe a vitória e, neste desfecho, Laevinius desempenhou um papel fundamental. Quando
o último morreu em 200 a. C., os seus dois filhos apresentaram um munus em sua
honra, consistindo em 25 pares de gladiadores 120, o que representa apenas um pequeno
acréscimo face aos 22 pares que participaram no funeral de Lepidus, mas isto pode ter-
se devido ao facto de existirem fundos limitados.

O seguinte munus celebrou-se em honra de P. Licinius Crassus (183 a. C.), cujo feito
mais notável se traduziu na sua eleição para o cargo de pontifex, ficando à cabeça de
um colégio de pontífices e que tinha como principal função supervisionar a religião
estatal romana121. Lívio não nos fornece a identidade do(s) seu(s) organizador(es), mas
o munus foi certamente apresentado por um filho ou outro parente masculino chegado.
Depois de um período de dezasseis anos, os 25 pares de gladiadores já não eram mais
vistos como um número impressionante, daí que o patrocinador (ou patrocinadores) do
munus de Crasso tenha aumentado a cifra para 60 pares, perfazendo o dobro dos
combatentes que intervieram no espectáculo em memória de Laevinius. Se bem que
Lívio não especifique a duração do munus de Crassus, é possível imaginarmos qual terá
sido: sabemos que no munus de Lepidus, os 22 combates repartiram-se por três dias,
uma média de algo mais de sete pugnas por dia.

Noutro munus, em honra de Flaminius (cf. infra), houve 37 confrontos durante três
dias, que, se distribuídos equitativamente, corresponderiam a doze em cada um dos

119Os Ludi Romani eram muitas vezes chamados os «Grandes» (Magni) ou os «Maiores» (Maximi). Os
Ludi Romani e outros ludi anualmente celebrados, tais como os Ludi Plebeii (Jogos Plebeus), Ludi
Cereales (em honra ao deus Ceres), Ludi Apollinares (dedicados a Apolo), Ludi Florales (consagrados à
deusa Flora) e os Ludi Megalenses (Cíbele), eram os mais antigos destas festividades religiosas. Ao longo
da República e da época imperial continuaram a acrescentar-se outros ludi ao calendário religioso de
Roma.

120Tito Lívio, Ab Urb. Cond. 31.50.4.

121 Ibidem, 39.46.1.

33
dois dias e treze no último. Assim, se nos ativermos a este padrão, os sessenta combates
do munus de Crasso necessitariam de cinco ou, no máximo, seis dias para concluir o
espectáculo, embora não devamos descartar a possibilidade de o programa se
concretizar num ritmo mais apressado 122. Ainda se acrescentou ao munus de Crassus
ludi funebres durante três dias, os quais, à semelhança dos ludi estatais consagrados às
divindades, incluíram, com toda a probabilidade, corridas de carros e peças teatrais.
Aos entretenimentos acrescentou-se a visceratio (a distribuição de carne pelos
espectadores), além de um banquete público (epulum), que se tornariam em elementos
frequentes nos funerais aristocráticos. O que aqui mais salta à vista é a preponderância
atribuída aos jogos gladiatórios, que com a sua duração, ofuscaram os restantes eventos
associados ao munus de Crassus.

Mas o constante aumento dos pares gladiatórios, desde 264 a. C., foi subitamente
interrompido pelo munus em homenagem ao famoso general T. Quinctitius Flaminius
(174 a. C.), que se destacou por sair triunfante na contenda contra Filipe V e por
desempenhar um activo papel na dominação romana no Oriente grego 123. Na sua
récita, Lívio refere que, no mesmo ano, se ofereceram diversos munera, mas nenhum
digno de importância, excepto o de Flaminius, mas o certo é que os 37 pares de
combatentes significaram um decréscimo de 23 pares relativamente ao espectáculo de
Crassus. O número relativamente pequeno de combates no munus de Flaminius pode
apreciar-se melhor quando cotejado com um outro que reuniu trinta pares, oferecido
em 132 a. C. por um tal C. Terêncio Lucano em honra do seu avô, que não teria grande
status, facto que se confirma por nem sequer haver escrito o seu nome completo 124. A
diminuição dos efectivos gladiatórios no espectáculo de Flaminius é especialmente
surpreendente se tivermos em conta a fama e prestígio do defunto. As fontes não
apresentam os motivos para este facto. Talvez tenha influído a preferência, do filho de
Flaminius, de reduzir o orçamento em relação aos gladiadores, a favor de gastar mais
capital noutros eventos populares, como a visceratio, o banquete público e as
representações teatrais 125. Por outro lado, neste período cabe advertir para o aumento
das despesas na organização dos munera que se registou neste período, o que pode ter
pesado na decisão tomada pelo filho de Flaminius.

Com efeito, em meados do século II a. C. os gastos na apresentação de um munus de


certa qualidade se haviam tornado quase astronómicos: captamos um bom indicador
desta espiral nos custos dos munera no funeral de L. Emílio Paulo (Aemilius Paulus), o
general romano que venceu Perseu, filho de Filipe V, na batalha de Pidna, em 168 a. C.,
e faleceu em 160 a. C. Como os livros da obra de Lívio que narravam este período não
sobreviveram, vemo-nos compelidos a recorrer a Políbio, que, todavia, não demonstrou
interesse em mencionar o número de pares de gladiadores, mas, em compensação,
fornece dados sobre os gastos que implicaram a organização de um espectáculo
gladiatório de larga escala que teve lugar por essa altura. Políbio conta que, ao ver que o
seu irmão Fábio, um dos filhos de Paulo, não conseguia arcar com os custos do munus
em honra do pai, Cipião (que fora adoptado pela família Cipiónica), que mais tarde
ganharia a celebridade por haver sido o comandante do exército romano que derrotou
Cartago na Terceira Guerra Púnica, pagou metade das despesas 126. O historiador
heleno afirmou ainda que um munus verdadeiramente apropriado para honrar um

122 G. Ville (La gladiature…, p. 396) calculou que treze combates seria o número máximo que se poderia
apresentar adequadamente num só dia de espectáculo.

123 Tito Lívio, Ab Urb. Cond. 41.28.11.

124 Plínio-o-Velho, Naturalis Historia, 35.52.

125Veja-se R. C. Beacham, Spectacle and Entertainment of Early Imperial Rome, New Haven, CT, 1999,
pp. 14-15. Por outro lado, A. Futrell (Blood in the Arena, p. 24) afirmou que se apresentaram 74 pares no
munus em honra de Flamínio, em 174 a. C. No entanto, a autora não reparou que Tito Lívio se referiu ao
número total de gladiadores neste munus, não aos pares.

34
grande conquistador custaria, no mínimo, 30 talentos 127. É impossível calcular com
precisão qual seria o valor de uma soma de dinheiro no mundo antigo nos dias de hoje.
Políbio só nos diz que trinta talentos representavam uma «pletórica soma de dinheiro
[plethos]» 128. Ficamos com uma ligeira ideia deste valor se tivermos em conta que o
património global de Emílio Paulo ascenderia a pouco mais de 60 talentos 129. Acresce
que este general, embora não imensamente rico, tinha bastantes posses 130.
Consequentemente, as despesas com o munus consistiram em cerca de metade do valor
total dos bens de um indivíduo moderadamente próspero. E isto, atente-se, para um só
evento, que durou, no máximo, seis dias.

***

Detenhamo-nos neste montante de 30 talentos: facilmente se constata que é uma soma


avultada mas, ao mesmo tempo, vaga. Assim, procuremos avaliar este número com
mais exactidão. O talento de que fala Políbio representava 29, 196 kg, pelo que um
munus grandioso custaria o equivalente a 898 kg de prata, uma massa impressionante
mas, ainda assim, abstracto quanto ao seu valor concreto. Outras cifras do tempo de
Políbio podem ajudar-nos a imaginar a importância de tal soma: em 168 a. C., Perseu,
rei da Macedónia, preparava-se para guerrear contra os Romanos; para o efeito, propôs
300 talentos a Genthios como prémio para a sua aliança; simultaneamente, Euménes, o
soberano de Pérgamo pediu-lhe 500 talentos como preço para a sua neutralidade e
mais 1500 para não se intrometer a fim de fazer cessar as hostilidades. Perseu estaria
então disposto a oferecer, no contexto de uma aliança militar, 9 toneladas de prata,
bem como 15 e 45 toneladas, respectivamente, para que o monarca de Pérgamo não se
intrometesse.

Assim, o preço de um munus não estava ao alcance de qualquer um, mas corresponde
bastante bem às quantias que estiveram em jogo quando os Romanos combateram os
Gregos no tempo de Políbio. De facto, neste período, os munera foram amiúde
organizados pelos generais vitoriosos que regressaram imensamente ricos das suas
campanhas no Oriente. Os editores podiam também ser políticos que tentavam captar o
favor da plebe, acalentando a esperança de se tornarem, a seguir, conquistadores.
Emílio Paulo trouxe da Macedónia um enorme volume de despojos, valendo cerca de
213 milhões de sestércios. Ora sabendo que a oferta de um munus faustoso conferia
grandes hipóteses de promoção social e política a um indivíduo rico e ambicioso, a
pequena tonelada de prata referida por Políbio como preço para um munus importante
parece, em termos económicos, relativamente razoável, tendo o seu organizador em
mente a perspectiva de mais tarde conseguir um retorno sobre o seu investimento.
126 31.28.1-6.

127 O talento era uma unidade monetária grega. Políbio escrevia para leitores helenos, pelo que facultou as
somas de acordo com o sistema grego. Para uma discussão mais pormenorizada sobre o problema de se
efectuarem cálculos para imaginar qual seria o valor dessas antigas quantias em dinheiro actualmente,
veja-se R. C. Beacham, Spectacle and Entertainment, p. 258, n. 26.

128 Paul Veyne estimou que esta quantia serviria para pagar os soldos de 1500 legionários romanos
durante um ano, ascendendo a 720 000 sestércios: Bread and Circuses: Historical Sociology and Political
Pluralism (tradução em língua inglesa do original em francês Le pain et le cirque, Paris, Ed. du Seuil,
1976), Londres, 1990, p. 223, 271, n. 92. No entanto, este reputado historiador não especificou como
procedeu a tal cômputo.

129 Políbio, 31.28.3.

130 Paulo poderia ter sido um homem fabulosamente rico. A este respeito, é notável a sua atitude após a
vitória sobre Perseu: entregou grandes quantidades de ouro e prata (que encontrara nos palácios de
Perseu) ao tesouro romano. Os únicos despojos que tomou para si próprio foram os livros de Perseu, que
aliás ofereceu aos seus filhos, Fábio e Cipião (Plutarco, Aem. 28.10).

35
Mais concretamente, qual seria o valor monetário de uma tal quantidade de metal
precioso? Se o denário romano de prata pesava 4,1 kg, no tempo de Políbio, cada
talento valeria então 7 120 denários. Ao multiplicarmos este número por 30, a soma
obtida é de 213 600 denários, ou seja, 854 400 sestércios (HS). No propósito de tornar
esta cifra menos abstracta, cabe convertê-la de uma maneira que seja mais objectiva.
Caso tomemos como ponto de referência o soldo anual auferido pelos legionários sob a
égide de Júlio César, 300 denários, atinge-se o pagamento anual de 712 soldados, que
formavam basicamente uma coorte.

Recordemos, comparativamente, que, em 52 a. C., em plena Guerra das Gálias, César


comandou doze legiões, isto é, 48 000 infantes, apoiados por milhares de tropas
auxiliares e, talvez, por uns 50 000 escravos e serviçais de toda a espécie. Aqui, uma vez
mais, se nos interessarmos ainda pelos «30 talentos» de Políbio, compreendemos sem
dificuldade que este montante era certamente muito considerável para um particular,
mas, por outro lado, coadunava-se com as capacidades financeiras de Roma no final da
República.

***

Os gastos com os munera subiram vertiginosamente devido à crescente popularidade


que foram assumindo os combates gladiatórios, facto que se encontra ilustrado, aliás,
por um episódio ocorrido precisamente durante o munus em honra de Paulo: o
dramaturgo Terêncio tinha apresentado pela primeira vez a sua peça Hecyra (que
significa «A Sogra») aquando dos Ludi Megalenses, em 165 a. C., mas teve de a
suspender por causa do barulho dos espectadores, que inquietos, se sentiram atraídos
por outros eventos que decorriam nas proximidades, envolvendo malabaristas e
pugilistas. Terêncio não desanimou e resolveu exibir a mesma peça no momento em
que teve lugar o munus em memória de Emílio Paulo, em 160 a. C. Mas de novo se
registaram problemas: durante o segundo acto, circulou o rumor, fora do teatro (que
consistia numa estrutura provisória montada em madeira), que iria ocorrer um
espectáculo gladiatório no mesmo recinto 131. Por fim, Terêncio, não querendo desistir
do seu intento, voltou a apresentar a Hecyra pela terceira vez. Dirigindo-se aos
espectadores através de um discurso proferido pela boca de um dos seus personagens, o
autor pedia-lhes que tentassem assistir tranquilamente à peça:
«Mostro-vos novamente a Hecyra, porque nunca consegui apresentá-la no meio da calma.
Uma infelicidade impediu que tal acontecesse. A este infortúnio o vosso bom senso irá pôr
cobro, se me apoiardes na minha empresa. A primeira vez que apresentei a minha peça, tive de
abandonar a cena antes do fim por causa dos pugilistas, do seu grupo de apoiantes, por causa do
ruído, dos gritos das mulheres e, ademais, por se esperar a actuação de um funâmbulo.
Instruído pela minha experiência passada, fiz uma segunda tentiva para buscar manter a peça
em cena […]. O primeiro acto passou-se bem, mas, de súbito, circulou o rumor que ia haver
combates de gladiadores; o público abalou, gerou-se agitação, gritou-se e bateu-se nas bancadas.
Evidentemente que não consegui manter-me em cena. Hoje não há vadios e impera a calma, o
silêncio. A ocasião ofereceu-se para mostrar a minha peça, e vós tereis a possibilidade de prestar
honra a um divertimento teatral. Graças a vós, a arte cénica não será apenas o privilégio de uma
minoria. A seriedade da vossa atitude constituirá a defesa e a ilustração da seriedade do meu
trabalho».

Aqui, Terêncio atesta a oposição já existente entre os jogos gladiatórios, reputados de


populares, e o teatro, que se tornava «o privilégio de uma minoria». O dramaturgo
também evoca a «seriedade», a «calma» e o «silêncio» do teatro, aspectos que se
contrapunham aos «gritos das mulheres», à «agitação» e à desordem, característicos
do comportamento do público que tanto vibrava com as pugnas gladiatórias. O grande
sucesso dos espectáculos, que se tornaram rapidamente numa componente
131 Terêncio, Hecyra, 39-41. No começo da época imperial, Horácio mostra-nos que, no seu tempo, as
representações teatrais continuavam a não cativar suficientemente o público, que preferia assistir a
combates de pugilismo ou a venationes envolvendo ursos.

36
fundamental da vida romana, conduziria à sua oficialização pelo Senado em 105 a. C.
Esta data significa uma evolução relevante. Segundo Jean-Claude Golvin e Christian
Landes, a inserção dos munera gladiatoria nos ludi públicos traduz a vontade de
desenvolver jogos de «carácter viril, susceptíveis de contrariar a influência demasiado
grande dos jogos gregos, que, em relação aos valores romanos, apareciam como um
risco de amolecimento e perversão»132. Tomara-se igualmente a consciência de que a
popularidade dos jogos seria profícua para utilizá-la com propósitos políticos.

Na opinião de Monique Clavel-Levêque, por seu lado, a necessidade da celebração dos


munera e a sua crescente popularidade estiveram preferencialmente ligadas à imagem
simbólica da dominação do mundo, a um Império que submeteu a natureza, conquistou
povos e obteve abundante quantidade de escravos. Assim, para esta historiadora,
buscava-se excluir, através de um ritual, os elementos perigosos de uma comunidade
que não cessava de se dilatar. Neste sentido, o cariz «educativo e virilisante» dos
munera traduzia-se não só pela contemplação das técnicas de combate e da bravura na
morte, mas também, e principalmente, para garantir aos olhos de todos a ordem do
mundo133.

Mais tarde, os munera passaram a anunciar-se publicamente com certa antecedência


em relação à data aprazada, mas nestes tempos mais recuados, a programação do
evento e os anúncios faziam-se de maneira mais desordenada ou fortuita. Perante a
notícia da apresentação iminente de combates, a reacção do público causou uma grande
confusão, com gente a entrar precipitadamente no teatro, o que depressa gerou enorme
vozearia e violência, lutando os expectadores pelos seus lugares 134. Trata-se dos
melhores testemunhos do que sentia o povo romano pelas pugnas gladiatórias.
Nenhum outro entretenimento, salvo as corridas circenses, conseguia verdadeiramente
rivalizar com os munera enquanto polo de atracção das multidões.

***

Sintetizemos os dados atrás expostos, ao mesmo tempo que introduzimos outros ainda
não referidos: embora os combates de gladiadores ainda conservassem a sua faceta
originariamente funerária, vieram a adquirir uma forte dimensão ideológica. A partir
do começo do século II a. C., a última amplificou-se na Roma conquistadora e
expansionista dos últimos duzentos anos da República. Com efeito, após a derrota de
Aníbal e a vitória decisiva sobre Cartago aquando da Segunda Guerra Púnica, Roma
deixou de possuir um adversário estrangeiro à sua medida. Ao longo dos séculos II e I
a. C., os êxitos bélicos dos «Filhos de Marte» sucederam-se praticamente sem
interrupções na Grécia, na Ásia, no Norte de África, na Hispânia e na Gália. Cada novo
triunfo conduziu à submissão de um número cada vez maior de povos e de regiões
distantes; nessas campanhas arrebatava-se, quase sempre, avultada quantidade de
despojos e cativos.

Se entre os Campanianos e os Etruscos o recurso aos prisioneiros de guerra se afigura


provável, entre os Romanos ela afirma-se mais do que garantida, como aliás se atesta
no famoso episódio de Espártaco. O emprego de prisioneiros de guerra num tipo de
espectáculo ainda muito ritualizado pode ser facilmente explanável por razões de
132 Cf. Amphitéâtres et gladiateurs…, p. 27.

133 M. Clavel-Levêque, L’empire en jeux. Espace symbolique et pratique sociale dans le monde romain,
Paris, 1984, pp. 63-77; IDEM, «Rituels de mort et consommation de gladiateurs: images de domination et
pratiques impérialistes de reproduction», in Mélange Lerat, Paris, 1984, pp. 189-208.

134 Consulte-se Holt Parker, «Plautus vs. Terence: Audience and Popularity Re-examined», AJP, 117.4
(1996), p. 593.

37
ordem económica e de segurança. Desde logo, cada campanha vitoriosa era secundada
por um afluxo de escravos para o mercado italiano. Estas fornadas de cativos que, em
certas ocasiões, até foram maciças, vieram a conduzir a uma queda relativa do preço
dos escravos. De facto, ainda que vendido, por assim dizer, «ao preço da chuva», um
escravo precisava de ser sempre alimentado pelo seu proprietário. Se este não lhe
pudesse confiar uma tarefa que compensasse o seu preço, o escravo «supranumerário»
rapidamente se transformava num fardo inútil.

Como a oferta de trabalho não era inesgotável na Itália do século II a. C., o brusco
afluxo de fornadas de prisioneiros após campanhas vitoriosas devia provavelmente
entupir esse mercado. Deste modo, tornava-se uma solução cómoda sacrificar uma
parte dos homens que o mercado da mão-de-obra servil não conseguia absorver. A
imagem é, claro está, cruel, mas a gladiatura representaria nesta época, quiçá, uma
maneira prática de reduzir a quantidade de escravos (no âmbito da oferta servil), o que
permitiria estabilizar mais os preços nesse mesmo mercado. Este critério estritamente
económico viu-se provavelmente reforçado por outro, relacionado com a segurança: se,
efectivamente, uma parte desses homens reduzidos à escravidão após uma vitória
militar era composta por guerreiros vencidos, estes seriam decerto os menos aptos a
aceitar a sua nova condição servil e, por extensão, os mais dispostos a revoltar-se.
Nestes dois casos, os Romanos teriam, claramente, interesse em extraírem do mercado
os indivíduos mais combativos e insubmissos para deles fazerem gladiadores. Esta
evolução rastreia-se, como atrás se disse, através do recrudescimento do número de
pares de gladiadores ao longo do século II a. C.

Em meados do século II a. C., os munera tornaram-se cada vez mais habituais e, em


simultâneo, crescentemente apreciados pela multidão. Não admira, pois, que este
fenómeno tenha ganho uma tal amplitude que chegou mesmo a competir com as
representações teatrais e a superá-las. Foi igualmente no início desta centúria que
apareceram as primeiras caçadas postas em cena. Por esta altura, o público romano já
havia observado, extasiado, a exibição de animais de grande porte e exóticos como os
elefantes, mas a primeira venatio propriamente dita foi a que patrocinou Marcus
Fulvius Nobilior, em 186 a. C. Neste espectáculo cinegético participaram leões, tigres e
leopardos – trazidos de várias regiões com grandes despesas até à cidade de Roma –
que lutaram entre si ou contra caçadores.

À semelhança do que acontecera com os primeiros gladiadores, cerca de oitenta anos


antes, as caçadas foram entusiasticamente acolhidas pelos espectadores. Juntamente
com as venationes instituiu-se a pena capital da damnatio ad bestias: este castigo
ignominioso, cuja primeira referência remonta a 167 a. C., aplicou-se a desertores
condenados a ser esmagados por elefantes. Vinte e um anos depois, aquando do triunfo
de Cipião Emiliano sobre Cartago, outros desertores foram, pela primeira vez, lançados
às feras.

Actualmente, muitas pessoas ainda confundem estes espectáculos com os combates


gladiatórios, embora tivessem naturezas bem distintas. O motivo para esta confusão
entre a gladiatura, a venatio e as execuções prende-se ao facto de os três eventos se
desenrolarem no mesmo recinto. Com efeito, desde a segunda metade do século II a. C.,
os Romanos puseram em cena três tipos de espectáculos diferentes, e, desde meados do
século I da nossa era, juntaram-se num só, que se caracterizava por um ritual bem
preciso que ocupava quase todo um dia, praticamente sem interrupções. A manhã era
consagrada às caçadas ou venationes; a seguir, por voltado meio-dia, tinham lugar as
execuções capitais que consistiam por vezes, mas não em exclusivo, na damnatio ad
bestias, em que se atiravam criminosos condenados, por vezes com os braços
amarrados, às feras sem esperança de salvação, o que a distinguia totalmente das
venationes. Saliente-se que as representações figurativas, que se cifram em centenas
para os gladiadores, são extremamente raras no que concerne à ilustração do suplício

38
dos condenados, sob o Alto-Império. Apuleio estabeleceu perfeitamente esta distinção
entre géneros:
«Quem possui suficiente talento ou suficiente eloquência para ser capaz de descrever, em
termos apropriados sob todos os seus aspectos, os diversos preparativos que se faziam? Aqui, os
gladiadores de braço renomado, ali, os bestiarii de uma agilidade comprovada, acolá, os
culpados, votados à morte, são cevados para servir de alimento às feras» (Apuleio, IV, 13).

Nesta passagem, Apuleio apresenta os três momentos fortes de um dia de espectáculo


no anfiteatro, durante a época imperial, não na sua ordem cronológica, mas segundo a
sua hierarquia em face dos gostos do público. Por último, desde o começo da tarde,
apresentavam-se os combates gladiatórios.

Também no século II a. C., a importância adquirida pela gladiatura coincidiu com o


aparecimento de práticas sumptuárias vindas do Oriente. Assim, esta gladiatura de
natureza ostentatória esteve indiscutivelmente associada ao recrudescimento do luxo
privado. Sob este prisma, estes combates já se encontrariam inseridos no quadro da
«decadência moral» condenada e denunciada, bastante tempo depois, por alguns
célebres intelectuais romanos. O constante crescimento da frequência, das proporções e
da popularidade dos munera tendem a provar que a gladiatura romana foi mudando de
natureza ao longo do século II a. C., o que se confirmou com particular acuidade na
última centúria da República. Se os guerreiros estrangeiros derrotados podiam fazer
bons gladiadores, o facto de se coagir antigos adversários dos campos de batalha a lutar
em espectáculos para satisfazer o prazer do povo romano não deixava de ter um
relevante significado sob o ponto de vista ideológico: cada combate adquiriu um valor
comemorativo, ao reavivar a lembrança dos anteriores triunfos de Roma, que foi
sempre empurrando para mais longe os limites territoriais da sua dominação. Esta
primeira «racionalização» dos combatentes correspondeu aos gladiadores «étnicos», já
que os guerreiros lutavam com as armas e as técnicas próprias das suas «nações».

A aparição das armaturae «étnicas»


Os «Samnitas» (samnitis/samnites)

Segundo Tito Lívio, que viveu no tempo de Augusto, o «nascimento» da mais antiga
armatura pode fixar-se em 310 ou 308 a. C. Os Romanos e os seus aliados Capuanos
obtiveram nesse ano uma significativa vitória sobre os Samnitas, durante a Segunda
Guerra Samnita (327-304 a. C.). Estes, ao combaterem, apareceram providos de
esplêndidos equipamentos, alguns guerreiros exibindo escudos ornados de ouro ou
prata. Depois de os derrotarem, os Romanos consagraram os despojos preciosos dos
Samnitas aos deuses, transportando os troféus para o Forum, enquanto os seus aliados
Capuanos afectaram essas armas para outro uso:
«Os Campanianos, por desprezo e ódio aos Samnitas, delas se serviram para armar os
gladiadores que lutaram durante os banquetes, os quais ficaram com o nome de Samnitas» 135.

Para Lívio, a invenção fundamental das armaturae sucedeu de maneira quase fortuita
e com o objectivo expresso de humilhar um inimigo detestado. É importante sublinhar
135 Tito Lívio, Ab Urbe Condita, 9.40.17: «Campani ab superbia et odio Samnitium gladiatores, quod
spectaculum inter epulas erat, eo ornatu armarunt Samnitusmque nomine compellarunt». Veja-se, a
propósito, Agnès Rouveret, «Tite-Live, Histoire romaine, IX, 40: description des armées samnites ou les
pièges de la symétrie», in Guerre et sociétés en Italie (Ve-IVe s. avant J.-C.), PENS, Gap, 1988, pp. 91-120.

39
que nesta ocasião se empregaram as armas dos Samnitas, mas não os guerreiros feitos
cativos. Na realidade, na passagem acima citada, nada se diz que estes primeiros
gladiadores «étnicos» fossem escravos, nem que os combatentes consistiam em
capuanos que se batessem voluntariamente com o equipamento bélico arrebatado ao
inimigo. Mas neste episódio descrito por Lívio, existe algo mais do que uma simples
demonstração de desprezo. Não resta a menor dúvida que esta prática conferia sentido
ao combate pelos vencedores. Ao regressarem do campo de batalha, os guerreiros
vitoriosos realçavam a bravura do antagonista vencido, sob o olhar dos seus
concidadãos: quanto mais aterradores os vencidos surgissem durante essas exibições,
maior era a glória que cabia aos vencedores.

Além da «pré-gladiatura» dos afrescos sepulcrais de Paestum, a primeira gladiatura


«étnica» deixou pouquíssimos vestígios tangíveis. Urge então recorrer a testemunhos
indirectos. Tito Lívio faculta uma definição do guerreiro samnita, que, aparentemente,
se aplica mais a finais do século IV a. C. do que ao gladiador homónimo. No entanto,
importa citar tal fonte, já que o gladiador «étnico» samnis, assim como o gaulês ou o
trácio, reutilizou a totalidade ou, pelo menos, parte do armamento do povo que
representava. Mas os únicos guerreiros samnitas que Tito Lívio pôde contemplar (este
historiador redigiu a sua obra no século I a. C.) foram certamente os gladiadores
pertencentes a tal armatura. Embora se tenha escorado em fontes textuais ou
representações figurativas mais antigas, é provável que os Samnitas que o autor
descreveu se aproximassem mais dos gladiadores assim designados 136:
«Eis qual era a forma do escudo, mais dilatado no sítio que cobre o tronco e os ombros, a sua
parte superior oferecia uma largura igual; a inferior estreitava-se em cunha, para que ele fosse
mais manejável. O peito do soldado era protegido por um tecido de feltro e a sua perna esquerda
botim. Os cascos eram sobrepujados por um penacho, para que perecessem mais altos os
homens que os cingiam».

Esta descrição fornece elementos valiosos. A menção ao «peito do soldado, protegido


por um tecido de feltro» reporta-se a uma protecção do tórax típica dos guerreiros
samnitas, chamada cardiophylax, pectorale ou spongia pectoris: ela podia ser
constituída por uma peça de tecido espesso, do mesmo género que o das couraças do
tipo linothorax (feitas com linho) da época helenística. Lamentavelmente, destas
protecções não restaram vestígios materiais, assim como as de feltro referidas por
Lívio. Em contrapartida, nos túmulos de guerreiros samnitas encontraram-se
numerosos espécimes de protecções para o tórax: consistem em três discos de bronze
destinados a defender os órgãos vitais do torso 137.

A extrema raridade de fontes iconográficas para esta época não permite garantir que
os «pré-gladiadores» samnitas138 estariam providos desta protecção. Mas se
atribuirmos à descrição de Tito Lívio um efectivo valor informativo, é muito provável
que tal sucedesse. Esta fonte literária é tanto mais útil quanto o facto de dispormos de
pouquíssimas representações mostrando incontestavelmente este tipo de gladiador.
Numa pintura parietal conservada no Museo Nazionale alle Terme di Diocleziano, em
Roma, observa-se uma cena de combate entre guerreiros que parecem guardar alguma
relação com o trecho de Tito Lívio atrás citado. Os combatentes aparecem desnudos e
sem elmos, mas têm escudos perfeitamente conformes às palavras escritas pelo
136 É. Teyssier, La mort en face…, p. 22.

137 Veja-se, por exemplo, uma fotografia de uma couraça trilobada samnita (de cobre), datável do século
IV ou III a. C., pertencente à Colecção Axel Guttman, na obra de S. Shadrake, The World of the Gladiator,
p. fig. 49, p. 136. Os Samnitas usavam também outros tipos de peitorais, designadamente o modelo em que
reproduzia no metal a musculatura do torso (couraça «anatómica») e um, mais simples, consistindo
apenas numa placa situada na parte superior do tronco.

138 M. L. Caldelli, «Gladiatori com ‘armaturae’ etniche: il samnes», Archeologia Classica (2001), pp. 279-
295.

40
historiador romano: o topo dos mesmos corresponde, de facto, à largura dos ombros,
ao passo que a parte inferior é mais estreita. Quanto aos guerreiros com equipamento,
surgem protegidos por couraças de feltro ou linho, e os seus elmos estão sobrepujados
por um alto penacho: se bem que esta imagem pictórica não exiba um combate de
gladiadores mas antes uma contenda bélica, é possível que o artista, à semelhança de
Tito Lívio, se tenha inspirado nos combatentes do circo que ele terá visto com os seus
próprios olhos139.

Os samnitis combateram em espectáculos durante um considerável espaço de tempo,


já que, aparecendo a partir do século IV a. C., aproximadamente, apenas parecem ter
desaparecido sob Augusto ou durante o reinado do seu sucessor, Tibério, como o atesta
uma inscrição de Venusia. Plínio-o-Velho ainda evoca esta armatura, aludindo a um
famoso gladiador de finais da República. O autor da Naturalis Historia escreveu o
seguinte:
«Tritannus, de corpo magro, célebre entre os gladiadores que pertenciam à armatura dos
samnitas, tinha uma força extraordinária e, tal como o seu filho, soldado do grande Pompeio, ele
possuía os nervos dispostos como uma rede, tanto no comprimento como na largura, por todo o
corpo, mesmo nos braços e nas mãos».

Legionário de Pompeio Magno, bem como o seu filho, Tritannus notabilizou-se como
gladiador por volta de meados do século I a. C. O facto de Plínio precisar que ele
combatia com a armatura samnita, vivendo o escritor no tempo dos Flávios, não quer
dizer que este tipo de gladiador ainda existisse por essa altura. É, todavia, possível que
os leitores de Plínio tivessem conhecimento desta armatura, mesmo que já tivesse
desaparecido 140.

Afora escassas indicações literárias, dispomos igualmente com reduzidíssima


quantidade de fontes iconográficas. A única representação plástica quase garantida
deste tipo de combatente procede de uma pintura mural de Pompeia, descoberta na
«Casa do Sacerdos Amandus» 141: a despeito de evidenciar uma medíocre factura,
parece não restar a menor dúvida de que essa imagem se inscreve num contexto ligado
à gladiatura. Com efeito, à direita desses dois combatentes, um outro par bate-se a
cavalo, na presença de um tocador de tuba. Datada de finais do século II a. C., esta
representação deve ser das mais antigas que se preservaram sobre a gladiatura. Caso
identifiquemos estes homens como pertencentes à armatura samnita, então o seu
equipamento compor-se-ia essencialmente de um scutum e um elmo, aparentemente
pertencente ao modelo «Montefortino»142. O seu armamento ofensivo reduzia-se a um
gládio, de lâmina relativamente curva, empregue para desferir estocadas.

Os «Gauleses» (galli)

139 É. Teyssier, La mort en face…., p. 24.

140 A última menção a gladiadores samnitis encontra-se na inscrição de um túmulo colectivo em Venusia,
na Apúlia, que data do tempo de Augusto (CIL IX.466).

141 A. Mauiri, «Le pitture delle case di ‘M. Fabius Amandio’, del ‘sacerdos Amandus’ e di ‘P. Cornelius
Teges», Monumenti della pittura antica scoperti in Italia 3. Le pitture ellenistico romane. Pompei 2
(1938), pp. 3-5, fig. 5a, b; L. Jacobelli, Gladiators at Pompeii, Los Angeles, Paul Getty Museum, 2003, p.
75, fig. 62.

142 Vejam-se duas reproduções fotográficas de um elmo «Montefortino» - «tipo C», descoberto em
Piquete de la Atalaya, Espanha - em Raffaelle d'Amato e Graham Sumner, Arms and Armour of the
Imperial Soldier: From Marius to Commodus, 112 BC- AD 192, Frontline Books, 2009, p. 34, fig. 5.

41
A seguir, em termos cronológicos, apareceram os gladiadores gauleses (galli). Mais
ainda do que os samnites, as referências em fontes antigas a este tipo de combatentes
são quase nulas. No entanto, há uma interessante passagem na História de Políbio que
testemunha a difusão precoce da gladiatura nos seus primeiros estádios e a existência
da armatura gaulesa; se bem que o vocábulo «gladiador» jamais apareça citado nesse
trecho, que relata um episódio que teve lugar durante a Segunda Guerra Púnica, o
combate organizado por Aníbal está indubitavelmente relacionado com a gladiatura
«étnica». Este fragmento textual elucida-nos ainda sobre certos elementos psicológicos
ligados a este fenómeno.

A cena descrita por Políbio situa-se em 218 a. C., pouco depois da travessia dos Alpes e
da batalha do Ticino e mesmo na véspera da contenda que se veio a travar em Trébia.
Aníbal, depois do primeiro êxito contra os romanos, queria que os seus homens
estivessem preparados para novas refregas e, com este fim em mente, organizou um
espectáculo particular tendo como público as suas tropas:
«Ao reuni-los, ele mandou trazer os jovens que haviam sido feitos prisioneiros quando
atacaram os Cartagineses no decurso da sua marcha através dos Alpes 143...; primeiro deu ordens
para que fossem maltratados. Acorrentados, famintos, todos feridos com golpes, esses homens
foram apresentados à assembleia e Aníbal mandou que à frente dos mesmos se colocassem
panóplias144 gaulesas, como aqueles que utilizam os chefes desta nação quando vão participar
num combate singular. Além disso, ele fez com que se arranjassem cavalos e saios de grande
valor. Depois, mandou que se perguntasse aos jovens cativos quais, de entre eles, desejavam
travar um combate singular contra um dos seus camaradas, cujo vencedor teria como
recompensa os prémios que ali se encontravam expostos, e o vencido, libertado pela morte do
seu sofrimento. Então, todos, em uníssono, gritaram que desejavam bater-se. Aníbal decidiu que
se procederia a um sorteio e que os dois homens assim designados receberiam armas para se
defrontarem. Ao ouvirem tais palavras, os prisioneiros ergueram as mãos para o céu e cada um
deles alimentou a esperança de que a sorte nele recaísse. Quando se conheceu o resultado do
sorteio, a alegria dos dois eleitos foi enorme e constatou com a atitude dos seus camaradas. No
fim do combate, não se invejava menos, no grupo dos cativos, aquele que se deixara matar do
que o seu vencedor. Não se encontrava o primeiro livre de mil males cruéis, ao passo que para os
sobreviventes o pior ainda estaria para vir? Este combate permitiu a Aníbal incutir nos seus
homens os sentimentos que pretendia. Tomou então a palavra e explicou-lhes que a sua
intenção, ao agir desta maneira, tinha sido a de lhes fazer ver claramente, mediante o exemplo
de outros, o risco que podiam correr, isto de molde a dar-lhes a possibilidade, na situação em
que se achavam, de tomar o melhor partido…Era necessário, com efeito, vencerem ou
morrerem, em vez de caírem vivos nas mãos do inimigo…Este espectáculo, bem como o discurso
que se seguiu foram muito apreciados pelos homens, que manifestaram todo o seu entusiasmo e
ardor belicoso que o orador tinha procurado neles suscitar».

Este trecho reveste-se de interesse, na medida em que lança luz sobre diversos pontos
obscuros. Em primeiro lugar, mesmo que o termo «gladiador» não apareça consignado
por Políbio, constata-se que este género de combate não significou um fenómeno
exclusivo dos povos de Itália. Efectivamente, Aníbal convidou os seus soldados a
assistir a um duelo-espectáculo. Além do mais, refere-se explicitamente que os cativos
combateram com a armatura gaulesa 145. Se admitirmos que a palavra panóplia foi
empregue pelo autor na sua acepção gladiatória, então este detalhe poderá interpretar-
se como a prova de que tal armatura já existiria desde o fim do século III a. C., ou, em

143 Mais à frente, Políbio precisa que eram prisioneiros gauleses.

144 O vocábulo grego «panóplia» é o equivalente da palavra latina armatura. Torna-se difícil perceber se
Políbio o emprega no sentido de «equipamento militar» ou na acepção gladiatória do termo. Seja como for,
a tradução habitualmente apresentada - «armadura gaulesa» - é enganadora, não ajudando à compreensão
do texto.

145 É. Teyssier, La mort en face, p. 26.

42
todo o caso, pelo menos desde meados da subsequente centúria, no tempo em que
Políbio viveu. A adopção deste tipo de duelo explica-se, igualmente, como a vontade,
por parte de um vencedor, de pôr a combater os seus prisioneiros de acordo com
técnicas que lhes fossem familiares. No que respeita aos «gladiadores» em si mesmos, o
seu recrutamento e as suas motivações revelam-se de grande interesse, estando nós
aqui perante o caso de prisioneiros de guerra. Aníbal, se nos ativermos à récita
polibiana, não coagiu os cativos a lutarem, mas deu-lhes a oportunidade de arriscarem
as suas vidas para se tornarem livres.

A reacção dos prisioneiros parece ter sido unânime, já que todos ansiavam pelejar, a
tal ponto que nos leva a perguntar se este costume não seria também habitualmente
praticado por estes Gauleses do Norte de Itália. Mas não se tratava apenas da liberdade
que estava em jogo, uma vez que o líder púnico ofereceu ao vencedor da liça cavalos e
saios como prémios. Ora estas recompensas podiam aumentar ainda mais a motivação
dos combatentes, conferindo ao combate um carácter mais honroso ou digno. Atrás
vimos, no relato homérico do duelo entre Diomedes e Ajax, que se ofereciam prémios,
expostos à vista de todos, ao vencedor. Assim, constatamos a presença de um elemento
fundamental do fenómeno gladiatório. Independentemente da época e da forma que
poderia assumir, um gladiador devia estar sempre motivado para o combate. Estes
cativos, reduzidos à condição humilhante e miserável de escravos, suplicaram para
participar num combate cujo desfecho se traduzia em matar um dos seus semelhantes
ou então perecer. Longe de ficarem apreensivos, os dois homens escolhidos através do
sorteio evidenciaram uma forte alegria. O destino do vencido até era invejável, quando
comparado com o dos que permaneciam vivos. Posto isto, esta passagem é o melhor
testemunho literário sobre os primórdios da gladiatura, ajudando-nos a melhor
entender as vertentes mais profundas deste fenómeno.

Para É. Teyssier, «Contrariamente à nossa percepção hodierna, a sorte do gladiador


aparece como sendo menos cruel que a de um mero escravo» 146. Neste sentido, o
desenlace para o vencido não se encarava como um castigo, mas como uma
possibilidade a ser aproveitada. Este reflexo, lógico para os combatentes, era-o também
para os organizadores do espectáculo. Com efeito, sem motivação, era impossível pôr a
lutar eficazmente um escravo que quisesse fugir da sua condição servil ou um homem
livre que buscasse fazer fortuna. No entanto, cabe matizarmos um pouco este aspecto.
Aqui situamo-nos no quadro de guerreiros batendo-se sob o olhar de outros que iriam
colocar as suas vidas em jogo na batalha que teria lugar no dia seguinte. Neste contexto,
o duelo conservava uma dignidade que já estaria ausente a partir do momento em que
os confrontos se passaram a realizar para satisfazer o prazer de uma multidão de civis
que assistia ao espectáculo.

Por último, o episódio relatado por Políbio apresenta uma importante razão a presidir
à organização destes combates: não eram de combates que se travam no âmbito de
cerimónias fúnebres, organizados para se prestar um derradeiro tributo de homenagem
a um determinado notável. Para Políbio, Aníbal quis que a demonstração da porfia
tivesse, por assim dizer, um valor «didáctico»: para além do espectáculo apreciado
pelos seus homens, o general cartaginês pretendeu transmitir a ideia de que mais valia
morrer com bravura, de arma na mão, do que se ficar à mercê do inimigo vencedor. O
acabrunhamento dos cativos que não tiveram a oportunidade de lutar serviu para
motivar as tropas púnicas. Torna-se evidente que tal valor «pedagógico» constituiria,
então, uma das motivações fortes destes espectáculos. Vários séculos depois, ele
continuaria a desempenhar o seu papel, se nos ativermos aos escritos de Cícero, Séneca
ou de Plínio-o-Moço.

Se nos fundamentarmos no testemunho ulterior de Lívio, os gladiadores gauleses


terão surgido em Roma a partir de 186 a. C. Ainda que nenhum texto o confirme, é até

146 Ibidem, p. 26.

43
provável que esta armatura já tivesse sido experimentada pelos Etruscos no século
precedente, como parecem indicar as poucas fontes iconográficas disponíveis. Pode-se
até aventar a hipótese da armatura gaulesa haver sido «criada» pelos Etruscos, uma
vez que estes estiveram em contacto directo com as populações célticas da Gália
Cisalpina, contra as quais guerrearam frequentemente entre os séculos IV e III a. C. 147.
Algo de similar se verifica, por seu lado, com os Capuanos, que terão criado o gladiador
samnita em jeito de referência evocativa aos seus perigosos e odiados antagonistas.

Mas quando a armatura dos «gauleses» apareceu em Roma, os Romanos também se


encontravam em guerra com os Celtas do Norte de Itália, há jámais de dois séculos.
Note-se que a data de 186. C. se insere num contexto triunfal. Com efeito, depois de
haver derrotado Cartago, Roma logrou derrotar os Insubres e os Boii (Boios), no
seguimento de dez anos de conflitos que só terminariam em 190 a. C. Por esta altura,
Roma começou a consolidar a sua autoridade sobre a planície do Pó, e o acabamento
das obras de construção da Via Flamínia até Placentia (actual Piacenza), em 187 a. C.,
reflecte precisamente esta ofensiva romana sobre o mundo celta. Assim, a aparição da
armatura do gallus nos munera romanos não significou um mero acaso. Ela serviu,
através da espectacular mise-en-scène do guerreiro celta, a capacidade de Roma de
levar de vencida a resistência oferecida pelos povos mais tenazes. Ademais, a vontade
de facultar à plebe a visão de guerreiros que tinham constituído um dos principais
componentes dos exércitos cartagineses também não deve ser posta de parte 148.

Deixando à margem as suas motivações mais profundas, o surgimento desta segunda


armatura manifesta uma evolução e uma diversificação da gladiatura. Não restam
grandes dúvidas de que a necessidade de nomear um segundo tipo de gladiador
correspondeu a um desejo de apresentar variantes nos prazeres oferecidos ao público.
À semelhança dos «samnitas», as representações figurativas deste outro tipo de «proto-
gladiador» são bastante raras: as mais antigas podem identificar-se em certos baixos-
relevos etruscos; uma delas observa-se numa urna funerária que se conserva no Musée
Calvet de Avignon (fig. ): mostra dois combatentes, ambos em tronco nu, e com as
cabeças desprovidas de cascos, que parecem lutar num contexto ritual. De facto, a
enorme crátera (um género de vaso antigo) que se localiza entre os dois homens tanto
se pode interpretar como o prémio que estava em jogo, como a urna do próprio defunto
em honra do qual ambos os guerreiros estavam a pelejar. Assim, esta cena reproduz um
combate associado a um funeral.

O equipamento dos combatentes é simples e não condiz com as descrições conhecidas


dos guerreiros samnitas. Pelo contrário, estes homens estão munidos de um escudo
diferente do scutum samnita e de espadas compridas. Confirma-se que são espadas
pela presença de uma longa bainha rígida posicionada num dos flancos do combatente
situado à direita. Ora este equipamento é típico dos Celtas, que foram os únicos, ao que
se saiba, que guerrearam com espadas compridas dotadas de bainhas metálicas assaz
elaboradas. Este género de armamento induzia, aliás, a posturas de combate que se
revelam muito raras na iconografia bélica da Antiguidade. No referido relevo, o escudo
é colocado mais par a frente, ao passo que a espada é mantida por cima da cabeça,
pronta a golpear através de cutiladas e não por estocadas.

Encontramos outro testemunho icónico de gladiadores gauleses na decoração das asas


de uma sítula de bronze, descoberta em Pompeia e hoje no Museo Archeologico

147 Ibidem, p. 27.

148 A criação de uma armatura puramente «púnica» seria digna de interesse em termos simbólicos.
Contudo, a natureza assaz cosmopolita e heterogénea do exército cartaginês, composto sobretudo por
mercenários de diversas origens, obstou à emergência de um tipo de gladiador representativo. Quanto ao
gallus, poderia servir para representar, simbolicamente, tanto o inimigo «étnico» tradicional como uma
parte significativa dos contingentes cartagineses.

44
Nazionale de Nápoles149 (fig. ): este objecto peculiar talvez consista na nossa melhor
fonte respeitante ao gladiador «étnico» gaulês. É certo que não está plenamente
garantida a identificação dos dois combatentes enquanto gladiadores. Contudo, o facto
de se representarem dois guerreiros totalmente idênticos prestes a defrontar-se leva a
supor que estamos perante um duelo e não de um confronto em campo de batalha.
Além do mais, a plataforma sobre a qual se posicionam os dois combatentes é
suportada por dois escudos celtas a flanquear um bucrânio, que serve para evidenciar o
carácter ritual da cena. Ambos os combatentes estão em tronco nu e têm barbas e
cabelos compridos, elementos que sublinham o seu aspecto «bárbaro», para além de
envergam as bragas características do vestuário celta. Estes gladiadores estão providos
de um tipo de escudo plano, munido de uma spina (nervura de madeira colocada
verticalmente ao longo da superfície exterior do escudo). Os dois escudos são mantidos
na horizontal, com a extremidade inferior colocada sobre o ombro do adversário, como
que para manter a distância em relação ao mesmo. Descreveram-se os dois oponentes
no momento em a desembainham as espadas, pelo que o artista reproduz o início de
uma porfia. Nesta cena, o choque entre os combatentes representou-se de maneira
muito realista, realçando neles os seus rasgos étnicos. Se, por um lado, podemos
admitir a natureza gladiatória deste testemunho imagético, por outro, é difícil
determinar a sua datação bem como a origem deste objecto. Apesar de se ter achado
este artefacto em Pompeia, não restam grandes dúvidas de que terá sido produzido
numa altura bem anterior à erupção do Vesúvio. Também não existe garantia alguma
de que a sítula tenha sido fabricada nesta localidade, daí que não seja de descartar a
hipótese de ter uma eventual origem etrusca.

Noutro documento iconográfico (um monumento funerário), de meados do século I a.


C., procedente de Amiternum, perto da actual cidade de L’Aquila, vemos uma
composição escultórica mostrando dois gladiadores a lutar, ladeados por igual número
de assistentes, pegando em lanças ou dardos (fig. ). Frequentemente, os dois
combatentes foram identificados como pertencentes à armatura dos samnitis 150. No
entanto, consideramos que tal atribuição não está correcta: repare-se, desde logo, que
tal monumento foi encontrado em pleno Samnium, daí não fazer sentido mostrar
gladiadores representativos dos guerreiros samnitas num munus; é certo que, à
primeira vista, os dois indivíduos estão equipados com panóplias quase iguais, munidos
de lanças compridas (o que poderia ser um elemento característico dos samnitis),
escudos facto rectangulares dotados de uma cercadura metálica, de uma bossa e uma
nervura no centro da sua superfície externa, uma greva na perna esquerda e uma cota
de malha a proteger o tronco; mas, curiosamente, os dois homens não cingem elmos
(apenas uma espécie de pluma no cimo da cabeça) e exibem fartas cabeleiras, bem ao
jeito do costume dos povos celtas. Posto isto, se, de facto, a datação deste relevo estiver
certa, a cena talvez mostre dois prisioneiros de guerra capturados aquando das vitórias
de Roma sobre os Helvetii, o que aconteceu em meados do derradeiro século da
República. Neste sentido, em vez de samnitis julgamos que correspondem a dois galli,
como sustentaram Filippo Coarelli e Susanna Shadrake 151.

Com o gladiador gallus apresentava-se ao público outro povo inimigo de Roma. Este
exemplifica, à sua maneira, as conquistas de Roma num momento em que ela acabara
de submeter a península itálica. Esta nova armatura implicava, igualmente, uma
técnica muito diferente da utilizada pelos samnitas. Ora tal distinção dos tipos de
combatentes constituiu uma etapa importante na génese do fenómeno gladiatório.

149 L. Jacobelli, Gladiators at Pompeii, pp. 99-100, fig. 80.

150 Como, por exemplo, M. Junkelmann, Gladiatoren: Das Spiel mit dem Tod…., p. 105.

151 Respectivamente: «L’armamento e le classi dei gladiatori», p. 161; The World of the Gladiator…, pp.
139-140, figs. 52-55. Por seu turno, K. Nossov (Gladiator…, p. 75) optou por se referir apenas à divisão
entre os especialistas quanto à identificação dos gladiadores do relevo de Amiternum.

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Efectivamente, a longevidade da gladiatura explica-se, em larga medida, pela variedade
de combinações dos combates propostos aos espectadores. Através dos binómios
samnitas e gauleses, a gladiatura «étnica» podia então proporcionar duas armaturae
muito distintas. Em face das magras fontes que subsistiram, não é possível termos a
certeza se os Romanos puseram estes dois tipos de combatentes a lutarem um contra o
outro, mas nada obsta a que avancemos com esta hipótese.

Se isto efectivamente aconteceu, os organizadores dos munera teriam ao seu dispor, a


partir do século II a. C., três combinações (pelo menos) plausíveis: samnitas-samnitas,
gauleses-gauleses e samnitas-gauleses. Estes confrontos terão sido, certamente, o
«motor» de uma competição e de uma «pesquisa» incessantes entre os proprietários de
grupos de gladiadores, com o intuito de melhorar as performances dos seus
combatentes. Mesmo que o facto só se ateste na época imperial, afigura-se igualmente
possível que a existência de duas armaturae «étnicas» tenha suscitado o aparecimento
de adeptos para uma ou outra. O sistema, estimulado pelo investimento de somas cada
vez mais avultadas, evoluiu com certo rapidez, adquirindo maior «eficiência» e
acrescida diversidade. Os testemunhos icónicos de gladiadores são, como se disse,
pouco numerosos e passíveis de uma interpretação delicada. Além disso, embora já
estivessem presentes em Roma desde o início do século II a. C., nenhuma
representação romana nos ajuda a precisar as características da armatura dos galli.

Ainda assim, no período entre o fim da República e o começo do Principado, algumas


imagens indiciam que a armatura gaulesa conheceu uma evolução. Num relevo
descoberto em Bolonha (antiga Felsina), é muito provável que estejamos perante uma
representação concreta desses gauleses «tardios», datando a obra escultórica de finais
do século I a. C.; talvez estejamos plasmados na pedra os derradeiros momentos desta
armatura étnica, numa fase em que a gladiatura se encontrava em plena mutação. No
relevo, o gallus vencedor aparece provido de um escudo oval contendo a spina
característica desta arma defensiva utilizada pelos guerreiros celtas. Mais: o seu elmo
pode ser associado aos cascos gauleses do tempo de Júlio César 152. Este tipo de elmo,
adoptado pelo exército romano, constitui o primeiro elo de uma longa série de
coberturas militares para a cabeça que os historiadores e arqueólogos britânicos
identificaram e classificaram como «imperiais-gálicas» 153. Se bem que o equipamento
defensivo corresponda ao de um guerreiro gaulês, o gladiador do relevo começa, por
outro lado, a afastar-se de vários elementos puramente étnicos. De facto, embora o
guerreiro celta estivesse geralmente equipado com uma espada comprida, o gaulês
representado à esquerda na cena brande uma espada bastante curta.

Outro aspecto a realçar no relevo é a presença de uma protecção, visível no antebraço


do gaulês vitorioso: composta por segmentos articulados e provavelmente feita de
couro, ela consiste numa manica. Esta peça, muito raramente empregue no domínio
militar154 foi, pelo contrário, típica da gladiatura: destinada a proteger o braço armado,
a manica veio a cobrir, progressivamente, o conjunto do braço direito dos gladiadores.
A questão que se coloca é se estamos ainda diante de um gladiador «gaulês» ou, então,
em face de uma das suas evoluções técnicas. É impossível darmos uma resposta, mas
esta fonte iconográfica é indubitavelmente coeva da fase em que os gladiadores étnicos
sofreram uma mutação.

152 M. Feugère, Casques antiques…, pp. 67-76

153 M. C. Bishop e J. C. N. Coulston, Roman Imperial Equipment, Londres, B. T. Batsford, 1993, p. p.93,
fig. 56, números 3 e 4.

154 Apenas observamos a adopção da manica entre os legionários de Trajano, figurados nos relevos das
métopas do Tropaeum de Adamklissi (Roménia) a combaterem contra os Dácios.

46
O Trácio (thraex ou thrax)

No mesmo relevo, ao lado dos combatentes «gauleses», observamos outro gladiador,


numa atitude triunfal: embora não vejamos o seu adversário (a obra escultórica está
incompleta), não há dificuldade em identificar o combatente posicionado à esquerda
como um gladiador trácio: este empunha um gládio curvo, a sica, e segura com a mão
esquerda um pequeno escudo, a parma. Vêem-se bem as duas grandes ocreae (grevas)
protegendo-lhe as pernas até acima do joelho. O thraex, a terceira armatura étnica,
representa, em princípio, uma invenção puramente romana. Como habitualmente
acontece, é difícil datar com exactidão a altura em que terá surgido pela primeira vez.
De facto, os textos antigos evocam a existência de um novo tipo de gladiador somente
quando a sua utilização em espectáculos ficava bem estabelecida, podendo assim os
leitores saber, sem hesitações, a que armatura o autor se referia. Em regra, passavam
várias décadas entre a aparição de um novo tipo de gladiador e a sua menção na
literatura e noutras fontes escritas. Quanto às fontes iconográficas, também não
facultam grande ajuda por causa da sua relativa raridade e certa imprecisão.

Existem dois cenários hipotéticos para ao momento histórico da aparição do gladiador


thraex em Roma 155: primeira, quando os Romanos capturaram mercenários trácios na
guerra contra Perseu da Macedónia (171-167 a. C.); segunda, quanto muitos Trácios
foram feitos prisioneiros no decurso dos conflitos contra Mitridates, rei do Ponto, nos
anos 80 antes da nossa era. Como foi Cícero (106-43 a. C.) o primeiro a mencionar
textualmente 156 o thraex, afigura-se muito possível que esta armatura tenha surgido
na última ocasião. A denominação thraex reportar-se-ia às vitórias romanas contra os
monarcas do Oriente grego e evocaria os guerreiros helenísticos (mais tarde criou-se a
armatura do hoplomachus, que aludia explicitamente ao hóplita grego, provido de uma
lança): com efeito, os dois tipos de thraeces «elaborados» nos últimos tempos da
República, evocavam tanto o falangista macedónio como o guerreiro oriental a nível
mais genérico. A sua própria arma branca, a sica, ou mais raramente designada falx
supina, consistia numa espada de lâmina curva que lembrava, em tamanho mais
reduzido, o kopis macedónio utilizado pelos exércitos de Alexandre-o-Grande e dos
seus sucessores. Para além do kopis, a sica evidencia também afinidades formais com a
falcata, típica dos guerreiros ibéricos, contra os quais as legiões de Roma lutaram,
desde o tempo de Aníbal até ao século I a. C.

Munido de um pequeno escudo quadrangular convexo, o thraex diferenciava-se tanto


do gallus como do samnis. Essa protecção de reduzido tamanho via-se completada por
um par de grandes grevas que subiam até acima do joelho. Tal especificidade, a de
dispor de duas ocreae em vez de uma só, como sucedia com outros gladiadores,
constituía uma das principais características da silhueta deste tipo de combatente.
Outro dos elementos originais do thraex radicava no seu casco «Ático» 157, utilizado na
guerra desde o século IV ao II a. C. Este género de elmo, atestado por numerosos

155 R. Dunkle, Gladiators…, p. 101.

156 Prov.Cons. 9; Phil. 6.13.

157 M. Feugère, Casques antiques…, pp. 31-33.

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exemplares que sobreviveram até hoje, é frequentemente representado nas peças de
cerâmica grega deste período: possui paragnátides móveis e volutas laterais que
terminam ao nível das têmporas, mediante um reforço central emoldurado. O capacete
é também sobrepujado por uma cimeira longitudinal de fraca espessura. Este casco,
muito corrente no mundo grego na altura do saque de Corinto (146 a. C.), simbolizaria,
aos olhos dos romanos, o guerreiro grego derrotado pelas legiões romanas. O elmo
ático assemelha-se aos que dois thraeces exibem num relevo romano conservado no
Museo Nazionale Romano alle Terme di Diocleziano (fig. Teyssier): nesta escultura
bidimensional, que data possivelmente de começos do século I a. C., o thraex situado à
esquerda brande a sica curva e está munido de uma parma quadrangular muito
convexa, bem como por grandes ocreae 158.

Tais atributos continuaram associados a esta armatura pelo espaço de mais de quatro
séculos. Assim como os galli e samnitis, os thraeces, que representavam outro dos
antagonistas de Roma, combatiam entre si. À semelhança das primeiras armaturae
étnicas, o seu armamento remetia para os equipamentos bélicos dos inimigos vencidos.
No entanto, contrariamente aos gladiadores samnitis e galli, que sempre se equiparam
de maneira idêntica, os thraeces conheceram uma evolução significativa, da qual
resultaram dois equipamentos ligeiramente diferentes.

No relevo de Roma, um dos combatentes pega numa parma quadrangular, enquanto


o seu adversário tem outra com formato circular. Conquanto não seja possível
distinguir a arma do seu oponente (sica ou gládio curto?), o seu escudo,
simultaneamente redondo e abaulado, diferencia-o claramente do outro thraex. Em
contrapartida, ambos surgem protegidos pelos mesmos pares de grandes ocreae, que
compensavam a pequenez das suas parmae. Consequentemente, esta imagem
escultórica parece sugerir que os primeiros thraeces apareceram mediante estas duas
variantes. Se, por um lado, o gladiador com escudo quadrangular lembra os guerreiros
trácios que os Romanos enfrentaram muitas vezes 159, por outro, o combatente do
escudo redondo faz indubitavelmente referência ao guerreiro grego helenístico.

Igualmente próxima do hoplita, pelo seu equipamento composto por uma espada de
lâmina direita similar ao parazonium e pelas duas grevas que lembram as cnémides,
esta variante de thraex distingue-se do guerreiro da idade clássica através do seu
escudo de menores dimensões. Na realidade, esta parma redonda acerca-se do laiseion
dos falangistas macedónios 160. Ora tal tipo de equipamento recorda o dos soldados dos
monarcas helenísticos que defrontaram as legiões na Ásia, aquando da conquista do
Oriente por Roma. Assim, os dois combatentes figurados no relevo consistem,
indiscutivelmente, em «proto-gladiadores». Como sucedia com os samnites e os galli,
eles traduziam simbolicamente o expansionismo de Roma quando se comemoravam as
vitórias das suas legiões contra os sucessores de Alexandre Magno, os chamados
Diadochoi (Diádocos, que significa «sucessores»).

É.Teyssier viu no thraex a primeira armatura directamente «criada» pelos Romanos,


sem ter havido de permeio qualquer tipo de envolvimento dos Capuanos ou dos
Etruscos: «Ora esta inovação prova que os Romanos se tinham apropriado totalmente
da prática da gladiatura, convertendo-a num dos importantes rasgos da sua

158 É. Teyssier, La mort en face…, pp. 32-33.

159 Os Trácios viviam no Norte da antiga Grécia, numa região que corresponde, grosso modo, à actual
Bulgária. Conhecidos pelo seu valor guerreiro, os soberanos helenísticos serviram-se frequentemente deles
como mercenários, que lutaram muitas vezes contra os Romanos durante o século II a. C.

160 Descobriu-se um espécime de laiseion em 1875, num túmulo situado em Amathonte, na ilha de
Chipre. Tendo um diâmetro de 30 cm, ele corresponde aproximadamente ao tamanho da parma redonda
destes gladiadores.

48
civilização»161. Esta ideia, contudo, ao não assentar em sólidas bases probatórias,
resume-se a uma mera suposição. Continua a não haver uma explicação concludente
que mostre por que razão o thraex foi o único gladiador «étnico» que conheceu maior
longevidade. Provavelmente isto deveu-se ao singular estilo de combate do thraex162,
que tanto cativou os espectadores durante o século I d. C.

O que concretamente se pode afirmar é que nestas armaturae «étnicas» existiu uma
manifesta vontade de «representação» do inimigo 163. Desde tempos recuados que os
Romanos tiveram o cuidado de elaborar imagens figurativas referentes a batalhas
ganhas, quando comemoravam os triunfos dos seus generais. Essas representações
plásticas encontram-se, aliás, e em larga medida, nas próprias origens da arte dos
romanos. Não causa estranheza, pois, numa sociedade como a romana, que sempre se
mostrou sensível à comemoração das proezas mavórticas dos seus antepassados, que os
combates de gladiadores «étnicos» significassem uma espécie de «quadros vivos». Tal
como os triunfos, de que constituíam um prolongamento, estes combates permitiam
aos vencedores exibir ou «representar» os guerreiros inimigos derrotados à população
civil, que não participara nessas campanhas ou batalhas exitosas. À semelhança do que
sucedera nos tempos dos primeiros «gladiadores» na Campânia, estes espectáculos
simbólicos contribuíam largamente para dar ainda mais prestígio aos triunfadores e aos
seus soldados.

O mencionado relevo de Bolonha é outro testemunho plástico de um thraex antigo.


Nesta fonte, denota-se uma nova característica no seu elmo: a presença de uma cimeira
decorada com um protomo de grifo, que, até ao fim do fenómeno gladiatório
representaria uma marca emblemática da armatura thraex. Verifica-se, de igual modo,
que o casco veio a adquirir rebordos cada vez mais salientes em relação à sua parte
superior. Em princípio, é provável que estejamos a assistir a uma etapa da evolução
técnica, induzida pelos combates dos próprios gladiadores; ao contrário do capacete
anteriormente descrito, este tipo de elmo não foi decalcado a partir de um modelo
extraído do domínio militar, mas derivou de uma evolução interna na gladiatura. Neste
fenómeno, o desenvolvimento das panóplias dos combatentes da arena constituiu um
dos seus aspectos essenciais.

* * *

Neste período da gladiatura «étnica», o povo romano contemplava os bárbaros


subjugados do alto das galerias do Forum e, mais tarde, no Circo. Assim, Roma que se
imaginava normalmente como uma cidade rodeada pela barbárie, apresentava, graças à

161 La mort en face…, p. 34.

162 Sobre o thraex, veja-se a tese de Lukáš Kratochvil, Gladiátor Trák a jeho armatura od archeologicé
evidence po rekonstrkci, apresentada à Masarykova Univerzita/Filozofická fakulta, em 2012, sob a
orientação de E. M. Gagetti. O autor examinou as evidências arqueológicas (peças de equipamento) e as
fontes iconográficas (relevos, mosaicos, peças decorativas), bem como tentou reconstituir as técnicas de
combate utilizadas pelo thraex, seguindo a metodologia preconizada por M. Junkelmann. Sobre a origem e
a evolução desta armatura, veja-se Gladiátor Trák, pp. 12-14.

163 M. A. Janković afirmou que os Romanos criaram, na realidade, «etnicidades imaginárias»; segundo o
autor, nenhum dos tipos etnónimos de gladiadores – o Samnis, o Gallus e o Thraex – esteve relacionado a
priori com o povo que cada uma destas armaturae representava, nem mesmo a nível geográfico. Salientou
ainda que os estudiosos, ao lidarem com o rigor «das apresentações na arena de acordo com evidências
arqueológicas, repararam que o equipamento gladiatório dos gladiadores trácio, samnita ou gaulês não era
tão fidedignos como previamente se acreditou. Assim, temos diversas etnicidades construídas ao mesmo
tempo mediante as quais autores antigos e modernos tentaram definir diferentes populações no interior e
nas periferias do mundo romano»: «Violent ethnicities: Gladiatorial spectacles and display of power», pp.
53-54. Do mesmo académico, aconselhamos igualmente a leitura de outro artigo, «Konstrisanje identiteta
u rimskoj Dalmacijii salonitanski gladijatori i nijhov druŝteni status», Etnoantropoloŝki problemi 7.3
(2011), pp. 699-713.

49
gladiatura, uma imagem invertida. Os samnitis, os galli e os thraeces lutavam para
satisfazer os Romanos que os tinham subjugado. Ao coagi-los a participarem em
espectáculos, diante dos cidadãos reunidos, os Romanos tinham, indubitavelmente, a
sensação de estarem a rebaixar os seus antigos inimigos. No entanto, e aqui reside um
dos paradoxos da gladiatura, a humilhação dos antagonistas que se oferecia no
espectáculo podia, também, atenuada por uma certa admiração pelo valor guerreiro
daqueles.

Mas esta contradição é relativa, pois que embora ao «vencer-se sem perigo se triunfa
sem glória», a exibição de um valente guerreiro inimigo servia principalmente para
enfatizar a superioridade do povo vencedor. Por outro lado, é curioso constatar que em
nenhum momento histórico se criou um gladiador «romano»; esta ausência tem toda a
lógica, na medida em que, caso se introduzisse um combatente «romano», equivaleria a
admitir a possibilidade de ele poder ser vencido por um gaulês, um samnita ou por um
trácio, o que seria chocante e verdadeiramente inimaginável aos olhos do público.

Ressalve-se, igualmente, que nesta altura em que Roma ainda se encontrava na sua
fase conquistadora, a gladiatura já parecia fascinar os povos subjugados ou vencidos
pelos romanos. Como atrás vimos, até o próprio Aníbal organizou um munus a seguir
às suas vitórias em Itália. Em 206 a. C., por seu turno, Cipião Emiliano apresentou um
munus na Hispânia, em Carthago Nova (actual Cartagena), relatado por Lívio (Ab Urb.
cond. 28.21, 2-3): para o efeito, o célebre general romano recorreu aos serviços dos
lanistae; estes indivíduos desprezados, vistos como «mercadores de carne humana»
tornaram-se, doravante, nos profissionais incontornáveis da gladiatura: proprietários
de familiae gladiatórias, eles treinavam, alugavam ou vendiam os seus combatentes a
personagens eminentes que desejassem organizar um munus.

O espectáculo oferecido por Cipião, o primeiro, que se saiba, realizado fora de Itália,
suscitou grande interesse entre os Hispanos 164, dado que Tito Lívio conta que muitos
Iberos se terão apresentado voluntária e gratuitamente para participarem em
combates. Estas mobilizações espontâneas constituem, em nosso entender, o primeiro
testemunho específico da outra grande fonte de recrutamento que eram os homens
livres que escolhiam de plena vontade esta carreira, sob a designação de auctorati. Eis
um trecho de Valério Máximo (XI, ano de Roma 547):
«Cipião-o-Africano deu um espectáculo de gladiadores em Carthago Nova, em memória do
seu pai e do seu tio. Dois filhos de um rei que acabara de morrer apresentaram-se na arena e
anunciaram que iriam ali disputar a realeza, a fim de engrandecer, pelo seu confronto, o brilho
do espectáculo. Cipião aconselhou-os preferir a discussão às armas para decidir qual dos dois
deveria reinar [cujos nomes eram Corbis e Orsua, que disputavam o domínio sobre a cidade de
Ibes], e o mais velho aceitou a sua opinião; no entanto, o mais novo, fiando-se no seu vigor
físico, persistiu nesta louca determinação. Uma vez travada a luta, ele viu-se condenado pela sua
fortuna e pagou com a vida a sua obstinação».

O entusiasmo dos habitantes da Hispânia face aos combates gladiatórios explica-se,


como anteriormente referimos, por haver idênticas práticas levadas a cabo por certos
povos da Península Ibérica, antes ainda da introdução dos munera romanos 165. Num

164 Para uma análise detalhada dos jogos gladiatórios de Cipião, remetemos para E. Hernández Prieto e
R. Martín Moreno, «Juegos funerarios: los munera gladiatoria de Escipión en Carthago Nova, una
fórmula de interacción com los pueblos hispanos», in G. Bravo e R. Gonzalez Salinero (eds.), Formas de
morir y formas de matar en la antigüedad romana, Madrid, Signifer Libros, 2013, pp. 439-458. Os
espectáculos gladiatórios cipiónicos significaram um fenómeno de interacção sociopolítica (p. 449) e um
«veículo ideológico e propagandístico».

165 De facto, voltemos a lembrar que se descobriram fontes iconográficas que provam a existência de
combates rituais já praticados por povos ibéricos: cf. J. M. Blásquez Martinez e S. Montero Herrero,
«Ritual funerario y status social: los combates gladiatorios prerromanos en la Peninsula Ibérica», Veleia 10
(1993), pp. 72-73.

50
relevo do Museo Arqueológico de Madrid, observamos possivelmente um desses
duelos: dois guerreiros armados com falcatas lutam entre si; à semelhança das cenas
tumulares de Paestum, ficamos com a impressão de se tratar de um combate ritual, já
que este é acompanhado por uma mulher tocando flauta. Seja como for, desde o século
II a. C., os Iberos terão definitivamente adoptado a gladiatura 166. Apiano (Iber. 6.75),
evoca um grande munus envolvendo duzentos pares de «gladiadores», aquando do
funeral do famoso caudilho lusitano Viriato, em 139 a. C. Neste caso, tais duelos
reflectiam, paralelamente, um costume local e uma influência das pugnas romanas 167.

Também no século II a. C., o monarca selêucida da Síria, Antíoco IV Epífanes (que


reinou de 175 a 164 a. C.), deu um munus em 166 a. C., integrado numa extraordinária
festividade que teve lugar no santuário de Apolo em Daphne, perto de Antioquía168,
para celebrar a sua vitória, obtida no mesmo ano, sobre Ptolemeu VI. Além desta razão
concreta, Antíoco, ao organizar um faustoso espectáculo, desejava competir com o
renomado general romano Emílio Paulo, conhecido por oferecer munera sumptuosos e
memoráveis. O soberano selêucida divulgou o evento, enviando anúncios para uma
série de cidades do Mediterrâneo, assim logrando reunir muitos espectadores e
embaixadores provenientes de todo o mundo conhecido. Em Antioquía, lutaram 240
pares (480 homens), adquiridos a alto preço e trazidos de Roma, sendo os primeiros
gladiadores profissionais a actuarem fora de Itália. Antíoco atingiu os resultados
pretendidos, melhorando as relações com a República do Lácio e, ao mesmo tempo,
promovendo o militarismo nos seus jovens súbditos. Importa notar que este soberano
helenístico vivera durante quase dois anos (188-187) em Roma como refém. Durante o
tempo que lá esteve ganhou gosto pelos combates gladiatórios, ao ponto de mais tarde
os «exportar», pela primeira vez, para o Oriente. Os jogos organizados por Antíoco
surpreenderam, obviamente, os gregos da Síria. De acordo com Tito Lívio:
«Este combate de gladiadores à maneira romana causou, primeiramente, mais pavor do que
prazer, já que as gentes não estavam habituadas a tais espectáculos. Com o tempo, o público
acostumou-se com este género de pugnas, que se suspendiam mal se registasse o primeiro
ferimento ou, então, continuavam até que sobreviesse a morte; acabou por ganhar gosto por este
espectáculo, que desenvolvia nos jovens a paixão pelas armas» (Ab Urb. Cond. 41.20).

A partir do início do século I a. C., os Romanos já contavam com vários tipos de


gladiadores, o que serviu para diversificar os prazeres de uma multidão decerto cada
vez mais exigente quanto à qualidade dos munera apresentados. Neste período, o
sucesso da gladiatura assumira tais proporções que ele veio mesmo a conduzir a sua
evolução técnica, ao mesmo tempo que assegurou a difusão do fenómeno fora dos

166 Mas, ao fazê-lo, mesclaram elementos tradicionais autóctones com o modelo romano gladiatório,
incluindo, por exemplo, entre as armas utilizadas pelos combatentes, a caetra e a falcata.

167 Mauricio Pastor Muñoz, Viriato, Lisboa, A Esfera dos Livros, 2006, pp. 189-191. Tanto Apiano como
Diodoro Sículo nos oferecem versões sobre o funeral de Viriato. De acordo com o relato do primeiro
historiador, «O cadáver de Viriato, magnificamente vestido, foi queimado numa pira altíssima. Imolaram-
se muitas vítimas, enquanto os soldados, tanto de infantaria como de cavalaria, corriam em formação em
redor da pira, com as suas armas e entoando as suas glórias ao modo bárbaro. Não se retiraram dali até
que o fogo da pira se extinguisse por completo. Terminado o funeral, celebraram combates singulares
sobre o seu túmulo»; segundo Diodoro, «O cadáver de Viriato foi honrado magnificamente e com um
esplêndido funeral. Fizeram combater duzentos pares de gladiadores frente ao seu túmulo, honrando
assim a sua extraordinária coragem». Não resta a menor dúvida de que os companheiros de Viriato o
consideravam como um verdadeiro herói, daí que participassem na homenagem em memória do seu
caudilho, derramando o seu próprio sangue junto do túmulo numa espécie de «torneio» fúnebre, idêntico
aos jogos celebrados por Aquiles em honrado seu amigo Pátroclo. Veja-se também E. Hernández Prieto e
R. Martín Moreno, «Juegos funerarios: los munera gladiatoria …», p. 443.

168 L. M. Günther, «Gladiatoren beim Fest Antiochus’ IV zu Daphne (166 v. Chr.)?», Hermes 117 (1989),
pp. 250-252; M. Carter, «The Roman Spectacles of Antiochus IV Epiphanes at Daphne, 166 BC
Nikephoros», Zeitschrift für Sport und Kultur im Altertum 14 (2001), pp. 45-62.

51
limites de Itália. A própria importância da gladiatura esteve, como oportunamente se
verá, na génese de uma crise profunda que implicou pesadas consequências.

A revolta de Espártaco

A revolta de Espártaco marcou uma ruptura incontestável no mundo da gladiatura.


Porém, antes de nos centrarmos neste episódio que chegou a estremecer os alicerces do
Estado romano, importa especificar o contexto no qual o mesmo ocorreu. Roma havia
entrado no século I a. C. já na qualidade de grande potência do Mediterrâneo.
Derrotara os Cartagineses e seus aliados e dominava a Península Ibérica, a Itália, a
Sicília, parte do Norte de África, a Grécia e os reinos helenísticos da Ásia Menor e da
Síria. Neste momento histórico, parecia que nada nem ninguém poderiam desafiar tal
hegemonia. A expansão territorial havia fornecido a Roma, entre outras riquezas,
ingentes quantidades de mão-de-obra e escravos para o desenvolvimento da economia
romana. A maioria deles era canalizada para as grandes explorações agrícolas,
trabalhando em condições desumanas, e para as minas que se estendiam por todos os
seus domínios. A crueldade no tratamento que lhes dispensavam levou a que na Sicília
eclodissem duas sublevações de escravos (as chamadas «Guerras Servis», entre 135-102
a. C.), mas que foram rapidamente sufocadas pelas tropas romanas.

Concomitantemente, a República atravessava um período marcado por uma profunda


instabilidade política: à Guerra Social (91-88 a. C.), seguiu-se a Guerra Civil (88-82 a.
C.) entre Caio Mário e Lúcio Cornélio Sula/Sila, as figuras maiores da altura que
representavam, respectivamente, os reformadores (populares) e os aristocratas
(optimates). Quase mesmo tempo, apareceram vários focos de insurreição contra a
dominação de Roma, em diferentes cenários geográficos: o levantamento do númida
Jugurta, o rei Mitridates VI do Ponto, que ameaçou pôr em pé de guerra todo o orbe
grego e, na Hispânia, Sertório veio a rebelar-se. Nesta conjuntura, foram os patrícios
que saíram vencedores do conflito em Roma e garantiram o poder numa república que
não tardaria em converter-se num império. No entanto, o clima de instabilidade
política conduziu a que a corrupção se instalasse nas instituições romanas e os que
acediam aos cargos públicos, fossem civis ou militares, reuniam as melhores
possibilidades para aumentar o património pessoal de maneira vertiginosa.

Neste pano de fundo apareceu, em 73 a. C., Espártaco (Spartacus). Pouco sabemos


sobre a sua origem e os escassos dados de que dispomos procedem de historiadores
greco-romanos como Plutarco, Floro ou Apiano. Se bem que estes autores tenham
narrado a sua revolta, conhecida como a «Terceira Guerra Civil» ou «Guerra dos
Gladiadores», as informações que nos oferecem sobre a sua biografia são reduzidas e
vagas ou, então, influenciadas pelo pensamento dos mesmos. De facto, ignoramos até o
seu verdadeiro nome. Uma das poucas certezas que temos é que Espártaco provinha da
Trácia (região histórica dos Balcãs) e, como em diversas ocasões se denominavam os
gladiadores de acordo com a sua terra-natal, o seu nome pode ter sido um derivado da
região trácia conhecida como Espartakia. Certos estudiosos modernos sugeriram que
ele poderia haver nascido na actual localidade búlgara de Sandanski, mas não existe
consenso académico sobre tal hipótese.

A historiografia greco-romana fornece versões distintas e informes vagos ou lacónicos


sobre o trácio. A hipótese que parece merecer mais crédito, até porque explicaria o
talento militar e os conhecimentos das tácticas romanas que Espártaco demonstraria
possuir durante a rebelião, é a de que Espártaco, talvez oriundo de uma família nobre

52
(se nos ativermos a Plutarco 169), terá servido como mercenário ou auxiliar no exército
romano, provavelmente no decurso da Primeira Guerra Mitridática, nos anos 80 a. C.
Depois, por motivos que nos escapam, desertou e tornou-se salteador. A dada altura foi
capturado pelos Romanos e, reduzido à condição de escravo, devido à sua força física e
experiência militar, saiu da pedreira onde fora enviado para trabalhos forçados, ao ser
vendido a Lêntulo Batiato170, proprietário de uma escola gladiatória (ludus) em Cápua,
no Sul de Itália171. Esta cidade era a principal da Campânia, região dotada de solo fértil e
que, com o influxo de escravos para trabalharem nos campos, gozava de grande
riqueza, assente numa economia eminentemente agrícola e pastoral. Cícero diz-nos que
essa opulência veio a gerar uma atitude pautada pela luxuria e pela superbia, o que
decerto influiu no recrudescimento dos espectáculos gladiatórios nessa zona 172. A
formação e o treino de escravos para se converterem em gladiadores de primeira
categoria, juntamente com as despesas com o seu armamento e manutenção,
constituíam, sem dúvida, um luxo. Os combatentes campanianos eram considerados a
crème de la crème da gladiatura. Note-se que a sua reputação estelar ainda estava
presente em 249 d. C., quando um munerarius de Minturnae (hodierna Minturno) se
vangloriou, numa inscrição, de ter ordenado a morte de onze gladiadores de topo da
Campânia (Gladiatores Primarii Campaniae XI) durante o espectáculo que ofereceu
aos seus concidadãos 173.

Na ausência de dados mais concretos, só nos resta conjecturar quanto ao período de


treino de Espártaco no ludus capuano. Por esta altura, a gladiatura achava-se
suficientemente estruturada, pelo que os instruendos se viam submetidos a uma
formação rigorosa e especializada. Não há grandes dúvidas que recebeu um tratamento
intenso e duro a fim de o preparar adequadamente para lutar na arena. Mas existia
outro motivo para que tenha sido objecto de violência por parte dos instrutores: muitos
dos instruendos que lá se encontravam haviam sido condenados a servir numa escola
gladiatória (damnatio ad ludos) por vários tipos de crimes. Espártaco e os seus colegas
estavam literalmente presos no ludus, sob apertada vigilância. Desconhecemos se o
trácio terá lutado alguma vez num munus. Seja como for, apesar de estar confinado ao
ludus, Espártaco terá aí gozado da companhia de uma mulher, supostamente uma
sacerdotisa.

169É o único autor clássico a conferir uma certa dignidade a Espártaco, apresentando-o como uma nobre
trácio helenizado. No entanto, convém frisar que isto talvez se explique pelo propósito de Plutarco em
querer estabelecer um contraste com Crasso, em relação ao qual o historiador alimentava uma forte
animosidade.

170 O nome oficial romano de Batiato (Batiatus) seria, provavelmente, Cn. Cornelius Lentulus Vatia. A
variante Batiatus só aparece em Plutarco, uma fonte grega, que substitui o V pelo B e acrescenta um sufixo.
A confusão do B e V era um fenómeno linguístico relativamente corrente no Império. A este respeito,
consulte-se E. H. Sturtevant, The Pronunciation of Greek and Latin: The Sounds and Accents, Chicago,
1920, pp. 8, 142-143.

171 A escola de Batiato englobava, na sua maior parte, escravos e prisioneiros de origem trácia e gaulesa:
Brent Shaw, Spartacus and the Slave Wars: A Brief History with Documents, Boston, 2001, p. 131. Neste
livro, o leitor pode ter acesso directo a um considerável acervo de fontes textuais antigas, bem como a uma
visão circunstanciada das Guerras Servis. Aconselhamos igualmente: S. Bussi e D. Foraboschi, «Spartaco:
il personaggio, il mito, la vicenda», in A. La Regina (ed.), Sangue e Arena, Roma, 2001, pp. 29-41; Nick
Fields, Spartacus and the Slave War 73-71 BC, Oxford, Osprey, 2009; P. J. Pacheco López, La rebelión de
Espartaco, Madrid, Sátrapa Ediciones, 2010; Barry Strauss, La guerra de Espartaco, Barcelona, 2010; e,
por fim, a recente abordagem de É. Teyssier, Spartacus, entre le mythe et l'histoire, Paris, Perrin, 2012:
mediante um exame crítico das fontes, este historiador francês, tenta desmistificar e, ao mesmo tempo,
oferecer-nos o verdadeiro rosto de Espártaco: um grande chefe de guerra, um notável táctico, um
excepcional condutor de homens mas um diplomata medíocre, que acabaria «dar» final trágico à sua
«guerra servil», a terceira com esta designação.

172 Leg. Agric. 2.95.

173 ILS 5062. Noutro capítulo abordamos novamente esta fonte.

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O que se sabe é que, em 73 a. C., Espártaco e outros duzentos gladiadores iniciaram a
revolta no ludus, mas, de novo, a pouca clareza das fontes antigas impede que
conheçamos quais foram, exactamente, os motivos que impulsionaram o trácio e os
seus companheiros a evadirem-se. Um deles, todavia, relacionava-se claramente com a
vergonha e a humilhação de que eram vítimas, ao exibirem-se para pura diversão de
outros. Pelo menos, segundo Apiano, terá sido um dos argumentos esgrimidos por
Espártaco no discurso proferido aos seus camaradas, a fim de os convencer a fugirem
da escola 174. Como não tinham acesso às armas (guardadas a sete chaves num depósito,
sendo utilizadas apenas nos espectáculos, uma vez que nos treinos se empregavam
réplicas de madeira), assaltaram a cozinha para se apropriarem de facas, conforme nos
relata Plutarco. Os confrontos que se seguiram com os guardas devem ter sido
realmente duros, já que apenas uns setenta homens conseguiram escapar. Uma vez já
fora de Cápua, Plutarco informa-nos que Espártaco e os seus colegas tiveram a sorte de
encontrarem pelo caminho uma carroça carregada com armas, que se dirigia,
ironicamente, para o ludus de Batiato 175.

Espártaco e os seus homens refugiaram-se no Monte Vesúvio, o famoso vulcão que


cerca de cem anos depois entraria em erupção, e a notícia da rebelião propagou-se
como pólvora. Muitos escravos dos latifúndios da região campaniana fugiram para se
unir aos ex-gladiadores, e o tamanho do grupo foi aumentando rapidamente. Estes
fugitivos revelar-se-iam especialmente úteis para Espártaco, já que muitos deles eram
guerreiros gauleses, trácios ou germânicos aprisionados nos recentes conflitos contra
Roma.

Apesar de serem claros os sinais de revolta, o Senado inicialmente não considerou o


assunto um verdadeiro desafio ao seu poder, mas antes distúrbios provocados por um
grupo de bandidos, daí que se tenha subestimado o carácter belicoso dos sublevados.
Ademais, as guerras na Ásia Menor e na Hispânia exigiam o envio e a presença dos
principais recursos militares nestes teatros de operações. Consequentemente, para
reprimir a revolta, o Senado mandou um exército de 3000 homens da milícia, com
reduzida experiência em combate e sob o comando do pretor Clódio Glabro: não eram,
portanto, as melhores legiões, já que nessa altura dois grandes exércitos romanos
lutavam fora de Itália, um chefiado por Pompeio, contra Sertório na Hispânia, e outro,
por Licínio Lúculo na Ásia Menor, enfrentando o rei Mitrídates. As tropas romanas
rodearam o Vesúvio, à excepção de uma das suas encostas, julgada inacessível. Foi
então que Espártaco deu a sua primeira amostra de audácia enquanto comandante:
ordenou aos seus homens que fizessem cordas com plantas trepadeiras e as utilizassem
para descerem pelo flanco desprotegido, atacando, de surpresa e pela retaguarda, o
acampamento romano. Os gladiadores massacraram os romanos e lograram apoderar-
se de uma grande quantidade de equipamento militar.

Com esta vitória esmagadora, o grupo dos revoltosos ganhou redobrado estímulo e
coragem. As notícias das suas proezas levaram a que cada vez mais escravos se
evadissem, a tal ponto que não demorou que Espártaco viesse a estar à frente de um
«exército» totalizando aproximadamente 40 000 pessoas, que não parava de crescer.
No entanto, deve matizar-se esta imagem tão romântica de um grupo de escravos
lutando contra a «tirania», já que no seu seio se desenvolviam vários problemas: em
primeiro lugar, havia tensões étnicas entre os sublevados devido à heterogeneidade do
grupo, um «exército» composto por representantes de orgulhosas culturas guerreiras

174 Bellum Civile, 1.14.116.

175 Vida de Crasso, 8-9.1. Mais tarde, durante o reinado de Nero, registou-se uma tentativa de sublevação
num ludus situado em Praeneste (hodierna Palestrina), a leste de Roma, mas que foi prontamente
sufocada pela própria guarda militar. G. Ville (La Gladiature, p. 284, n. 134), em face desta escola provida
de tropas, sugeriu que devia tratar-se decerto de um ludus imperial (em geral, as escolas privadas não
dispunham de uma tal protecção). A caserna de Praeneste comportava essencialmente condenados e
prisioneiros de guerra mantidos sob apertada vigilância.

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como os trácios ou os gauleses. Embora a solução para evitar fricções tenha sido o de
entregar o comando supremo nas mãos de Espártaco, os seus dois coadjutores directos,
Crixo e Eromao, eram gauleses, o que devia suscitar invejas e ressentimentos. Em
segundo lugar, apesar de o grupo haver atraído um elevado número de seguidores, tal
facto tornava-o um objectivo ainda mais perigoso para Roma, que não hesitaria em
empregar mais recursos contra os revoltosos.

O Senado romano enviou outros dois exércitos, provavelmente mais numerosos que o
anterior (sob o mando do pretor Varínio), mas, de novo, formados por tropas
auxiliares. Espártaco não se deixou encurralar e actuou com discernimento, vencendo
os soldados romanos em três recontros. A rebelião continuou a alimentar-se de
«recrutas», mas estes já não eram só escravos, mas igualmente pequenos agricultores
arruinados pelo sistema das grandes propriedades dos patrícios e, até, gente
empobrecida proveniente das cidades. É caso para dizer que o Sul de Itália talvez
sonhasse com uma revolução em grande escala.

Até aí, o «exército» de rebeldes limitara-se a agir por impulsos erráticos, sem ter um
objectivo claro. Mas, no fim de 73 a. C., Espártaco e os seus «lugares-tenentes»
decidiram que deviam regressar às suas terras-natais. Propuseram-se, então, dirigir-se
para o Norte de Itália, atravessar os Alpes e depois chegar às suas regiões de origem na
Gália, na Trácia e na Germânia. Essa decisão coincidiu com uma mudança de atitude de
Roma, que finalmente tomou mais a sério a ameaça. Enviou dois exércitos, mas desta
feita o Senado nomeou dois cônsules (o cargo mais elevado na República), Lúcio Gélio e
Cneu Lêntulo, para generais das tropas e recrutaram-se quatro legiões. As forças
lideradas por Gélio partiu para sul e o outro dirigiu-se rumo a norte para bloquear a
marcha para Picenum.

As dissenções no seio do já enorme tropel dos revoltosos causaram uma cisão entre os
mesmos: Crixo e os que preferiram segui-lo foram atacados pelas legiões de Gélio e
sofreram uma estrondosa derrota, junto ao monte Garganus. Aqui pereceu o chefe
celta e perto de 20 000 homens. Espártaco, porém, defrontou os dois cônsules e
venceu-os um após o outro. As fontes romanas, sempre parciais, ocultaram como os
gladiadores levaram de vencida tais legiões com uma força teoricamente pior
preparada. Em contrapartida, os historiadores latinos mais hostis ao trácio discorreram
sobre a sua crueldade: como homenagem póstuma a Crixo, sacrificou trezentos
prisioneiros, mas ultrajando-os, visto que obrigou os soldados romanos a combaterem
entre si como gladiadores até à morte (segundo Floro 176) ou, segundo outra versão
(Apiano), mandou que fossem executados. Sob a óptica romana, este acto constituiu
uma afronta e uma ignomínia, uma vez que subvertera o costume romano de se
utilizarem escravos como Espártaco e os seus colegas para combaterem em funerais de
ilustres patrícios. Agora, os papéis invertiam-se: à semelhança de um rico aristocrata
em Roma, um gladiador fez de editor num munus em que os soldados romanos
proporcionaram o entretenimento para o público.

Depois, Espártaco marchou para norte, rumo aos Alpes. Perto de Mutina, porfiou
contra outro exército romano, liderado por Caio Cássio, o pretor da Gália Cisalpina,
também o derrotando. No entanto, o trácio não cruzou a cordilheira para fugir de Itália:
pelo contrário, numa atitude enigmática, decidiu voltar de novo para o sul, talvez por
causa da falta de víveres ou devido a uma eventual oposição manifestada pelos seus
seguidores, que, inebriados pelas vitórias e pelos despojos obtidos (tudo o que
capturavam era distribuído equitativamente), continuaram a saquear campos e aldeias.
Corria o Verão do ano 72 a. C. Os insurrectos passaram próximo de Roma, como
acontecera com as tropas do cartaginês Aníbal cerca de século e meio antes, durante a
Segunda Guerra Púnica, o que gerou o pânico em muitos cidadãos, mas as forças de

176 Floro, Epitomae, 28. Também, Orósio, Historiarum Adversum Paganos, 5.24.

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Espártaco, embora numerosas, careciam de meios para assediar a Urbs ou tentar
realizar um assalto contra as suas muralhas.

Em face desta alarmante situação, o Senado procurou um novo líder para esmagar a
rebelião. Parece que ninguém queria defrontar Espártaco e os seus homens, uma vez
que não havia glória alguma para aquele que lograsse derrotar um «exército» de
escravos e gladiadores, envolvendo, em contrapartida, muitos riscos em sofrer uma
derrota diante de Espártaco. Ainda assim, um patrício romano ofereceu-se para salvar a
República: de uma família nobre, chamava-se Marco Licínio Crasso e tinha a fama de
ser o homem mais rico de Roma, possuindo muitos escravos e latifúndios no Sul, pelo
que ansiava aniquilar rapidamente os rebeldes. Anos antes, participara na Guerra Civil
do lado de Sila e dos plebeus, o que lhe permitiu aumentar a sua fortuna.

Ainda que as suas riquezas tenham impulsionado a sua ambição política, conseguindo
alguns êxitos no Senado, Crasso foi eclipsado pelas vitórias militares de Pompeio em
África e na Hispânia, e pelas de Lúcio Licínio Lúculo na Ásia. Consequentemente, ele
precisava de obrar uma façanha bélica que lhe conferisse prestígio acrescido, e por esta
razão resolveu aceitar o repto para vencer Espártaco em 72 a. C. O Senado nomeou-o
pretor e concedeu-lhe um poder militar excepcional; Gélio e Lêntulo (que ainda
mantinham o cargo) cederam-lhe o mando das tropas. Crasso reuniu seis novas legiões,
uns 30 000 homens, adicionando as quatro dos dois cônsules, ou o que restava delas, e
avançou para sul. Era um exército com quase 50 000 legionários, muito superior a
todos os anteriores, comandado por um general duro e implacável, apostado em obter
uma vitória retumbante.

Crasso mandou à frente o seu «lugar-tenente», Múmio (Mummius), comandando as


legiões anteriormente castigadas, para acossar e vigiar os rebeldes. Mas, num ímpeto de
audácia, Múmio foi para além das ordens recebidas e, ao confiar na sua posição
vantajosa, resolveu carregar sobre o inimigo. Sofreu uma clara derrota: grande parte
dos seus homens fugiu diante das forças de Espártaco. Crasso, enfurecido, castigou
quinhentos legionários, ordenando que fossem dizimados (através da prática da
decimatio, isto é, executando um em cada dez homens), mortos pelos seus próprios
camaradas. Ele não admitia a mínima manifestação de fraqueza ou de cobardia nas
suas tropas. Esta medida drástica serviu para restaurar a disciplina, já que, a partir de
então, os soldados passaram a temer mais o castigo por debandar do que pelejar até à
morte.

O plano da campanha de Crasso consistia em empurrar os sublevados para o extremo


sudoeste de Itália, em direcção a Reggio, e encurralá-los aí até que se livrasse a batalha
final. Em Janeiro de 71 a. C., Espártaco tentou passar com os seus homens para a
Sicília, que se situava perto, mas havia falta de meios de transporte. Buscou a ajuda de
uns piratas da Cilícia para chegar à ilha (através do estreito de Messina) onde
pretenderia sublevar os escravos, transformando a Sicília na sua fortaleza e, ao mesmo
tempo, num território livre sem escravos. Mas os piratas não cumpriram a sua palavra.
Como se isto não bastasse, houve uma nova dissenção entre os revoltosos e alguns
grupos separaram-se, avançando para norte outro problema; estes depressa foram
perseguidos e chacinados pelas tropas de Crasso.

O general romano ergueu uma longa paliçada de madeira, de maneira a impedir que
os rebeldes escapassem. Estava-se no Inverno e os Romanos estavam bem cientes que a
falta de víveres debilitaria o inimigo. Seja como for, Espártaco não hesitou em usar de
crueldade para manter a disciplina, ordenando que a crucificação de um prisioneiro
romano à frente das suas fileiras, enquanto exortava os seus seguidores a não
esmorecer, dizendo-lhes que seria esse o funesto destino que os esperava caso fossem
capturados. Sem mais delongas, o líder trácio investiu e, numa noite de tempestade,
assaltou um sector da paliçada. O ataque apanhou os romanos desprevenidos, mas a

56
acção não resultou num sucesso, já que nesse assédio terão sucumbido uns 12 000
insurrectos.

Os membros do Senado, indignados e furiosos com o arrojo de Espártaco, reclamaram


o regresso das legiões da Hispânia e da Ásia Menor. Mas Crasso não queria partilhar a
sua vitória com os seus rivais Pompeio e Lúculo, pelo que continuou a perseguir os
revoltosos. Em 71 a. C., Espártaco deslocou-se a Brindisium (actual Brindisi, na Apúlia,
no calcanhar da «bota» de Itália), tencionando, ao que parece, retornar por via
marítima à sua terra-natal. Porém, em vez disso, deparou com as legiões de Lúculo,
recém-chegadas ao solo itálico. Crasso, por seu lado, não desistia de levar de vencida os
revoltosos. Espártaco tentou negociar uma saída, mas a resposta do pretor foi
categórica: Roma não pactuava com escravos. Só restava pelejar.

Em Abril de 71 antes da nossa era, Espártaco dispôs os seus homens junto do rio
Silarius, e degolou o seu cavalo à vista de todos: num gesto de forte dramatismo, ele
terá dito que se vencesse arranjaria muitos outros equídeos e, caso perdesse, não
precisaria de uma montada. Assim, com a morte do seu cavalo, o trácio mostrava que
apenas existiam duas opções, lutar ou morrer 177. A batalha campal travada contra
Crasso e Lúculo (aliados, desta vez, por força das circunstâncias) foi extremamente
encarniçada e cruenta. As legiões fizeram valer a sua disciplina face a um antagonista
esgotado por uma fuga constante. A dada altura, Espártaco arremeteu directamente
contra Crasso, mas os legionários acumularam-se à frente do trácio, protegendo o seu
comandante. O ex-gladiador ainda matou dois centuriões, mas depressa se viu
suplantado pelo inimigo. Como era expectável, a morte do líder provocou a debandada
do «exército» de escravos, que foi massacrado. Cerca de 6 000 homens saíram vivos da
contenda, mas não tardou que fossem capturados. Crasso ordenou que todos eles
fossem crucificados, em intervalos regulares, ao longo da Via Ápia, para servirem de
exemplo e simultaneamente de aviso contra futuros actos de rebeldia contra Roma 178.
No campo de batalha, depois da carnificina, não foi possível reconhecer o cadáver de
Espártaco.

Alguns sobreviventes trataram de escapar para norte, mas na Etrúria (na actual
Toscana) toparam com o exército de Pompeio, que aproveitou a ocasião para massacrá-
los. Não tardou que se vangloriasse de ter sido ele a pôr o ponto final à guerra: «Crasso
havia derrotado os escravos numa batalha, mas ele, Pompeio, destroçara as raízes da
guerra», fazendo assim sombra aos méritos do seu rival político. Se bem que Crasso
tivesse logrado derrotar e matar Espártaco em meio ano, de Outono de 72 a Abril de 71
a. C., não pôde monopolizar a vitória. No último ano, Pompeio e Lúculo festejaram,
com um triunfo, as suas respectivas façanhas bélicas (na Hispânia e na Ásia Menor),
mas Crasso viu-se obrigado a contentar-se com uma celebração menor, ovação pública
(ovatio). O triunfo só se concedia por lei aos vencedores em guerras contra inimigos
externos, não a quem só derrotara uma turba de escravos e miseráveis rebeldes em solo
itálico. A «Revolta dos Escravos» vaticinou, em certa medida, a decadência da
República: as injustiças do seu sistema esclavagista permitiram que um pequeno grupo
de gladiadores reunisse um grande «exército», e o regime político, caracterizado pela
soberba e pela corrupção, mostrou-se incapaz de reprimir a sublevação com celeridade.
Pompeio e Crasso foram eleitos cônsules em 70 a. C. Ambos compartilharam o poder
durante lustros e perderam a vida de forma violenta. Mas a glória de Espártaco
sobreviveu à dos dois generais vitoriosos. O nome do rebelde trácio não se eclipsou com

177É possível, igualmente, que ao matar o seu cavalo Espártaco pretendesse fazer um sacrificio ritual aos
seus deuses, o que, aliás, estaria conforme a um costume típico de algumas tribos trácias.

178 Para a crucificação dos seguidores de Espártaco, cf. Apiano, Bell. Civ. 1.14.120. Para a distância que
haveria entre as cruzes plantadas ao longo da Via Ápia, veja-se B. Shaw, Spartacus and the Slave Wars, p.
144, n. 8. Contudo, Plutarco não menciona tal modalidade de punição capital, afirmando que fora
Pompeio, que acabar de regressar da Hispânia, que massacrou os sobreviventes das forças de Espártaco
(Vida de Crasso, 11.11)

57
o seu fracasso e morte. Volvidos menos de dez anos, formou-se o Primeiro Triunvirato
com Pompeio, Júlio César e o próprio Crasso. A seguir eclodiriam novas guerras civis e
o Império instaurar-se-ia definitivamente sob o Principado de Octávio Augusto.

A percepção dos Romanos sobre este episódio marcante da sua história evidencia
grande ambiguidade. Os gladiadores eram, e continuaram a sê-lo, tanto admirados pela
sua bravura e destreza na porfia, como, no outro extremo, desprezados pela sua
condição infame. A narração que Floro nos fornece sobre a revolta liderada por
Espártaco transmite perfeitamente tal ambivalência. No início do relato, o autor, que
escreveu cerca de duzentos anos depois dos factos descritos, manifesta cabalmente o
seu desdém pelos rebeldes:
«Mas que nome dar à guerra provocada por Espártaco? Não sei, já que nela participaram
escravos, nela comandaram gladiadores. Os primeiros são de uma condição infame, os últimos
da pior das condições, servindo de joguetes para outros homens» 179.

O desprezo de Floro, que o fez situar os gladiadores ainda mais abaixo do que os
simples escravos, ainda sobressai com maior acuidade quando descreve o chefe dos
sublevados:
«Espártaco, um trácio mercenário tornado soldado, e que a seguir passou a desertor e a
salteador, foi depois gladiador por causa da sua força. Ele celebrou os funerais dos seus oficiais
mortos, apresentando combates com a solenidade reservada a generais e forçou os prisioneiros a
lutarem entre si, de armas na mão, em torno das suas piras. Este antigo gladiador esperava
deste modo apagar a infâmia do seu passado, ao oferecer jogos gladiatórios»180.

Não obstante estas asserções, Floro acaba por prestar homenagem à coragem
evidenciada pelos gladiadores:
«Por fim, lançaram-se sobre os Romanos e morreram como bravos. Como convinha os
soldados de um gladiador, combateram sem pedir perdão [sine missione pugnatum est]. O
próprio Espártaco pelejou com valentia e pereceu na primeira linha como um verdadeiro
general»181.

Plutarco, que estava longe de ser admirador dos combates gladiatórios romanos,
critica a «injustiça» que havia recaído sobre Espártaco e os seus companheiros,
obrigados pelo seu proprietário a lutarem como gladiadores 182. Sendo um escritor
versado em filosofia, as suas opiniões a este respeito estavam conformes às de alguns
outros intelectuais gregos, mas diferiam das do resto da sociedade helénica, que, como
os Romanos, acreditavam que os gladiadores, homens de baixíssima condição e
desprovidos de dignidade, mereciam o seu destino183.

Piores que simples escravos empregues em tarefas domésticas ou agrícolas, embora


títeres ao serviço de outros homens, mas igualmente valentes como os legionários e os
autênticos profissionais do combate, os gladiadores foram, em simultâneo, tanto
objecto de repulsa como modelo, ao mesmo tempo infames e heroicos, perigosos mas
indispensáveis.Esta relação passional representa, sem dúvida, outra razão fundamental
para se compreender a longevidade que atingiu o fenómeno gladiatório e a sua

179 Epit. 28.

180 Ibidem.

181 Ibidem.

182 Vida de Crasso, 8.1; Mor. 997 C.

183 Outros autores gregos mostraram pontos de vista similares aos de Plutarco, haja em vista, por
exemplo, Demonax (Luciano, Demonax, 57). Veja-se também Dião Crisóstomo, Orationes, 31.121. Cf. L.
Robert, Les gladiateurs dans l'Orient grec, pp. 239-248.

58
importância social em Roma e em todo o Império. Ela permite também explicar porque
é que os Romanos chegaram a fazer evoluir a gladiatura a fim de melhor a controlar. A
presença de escravos treinados no combate com armas significava um perigo constante
face ao qual Roma só teve plena consciência depois de haver sufocado a revolta de
Espártaco. Em 73 a. C., os guardas do ludus de Cápua foram incapazes de conter o
trácio e os seus colegas. A própria vigilância dos grupos de gladiadores também se
converteu num pesadelo, sempre que os soldados de Roma se viam mobilizados para
empreender campanhas fora de Itália.

Actualmente, Espártaco continua a representar o gladiador mais célebre no imaginário


colectivo. A sua rejeição da carreira que a escravidão lhe impôs e a luta desesperada
pela liberdade ganharam popularidade com a novela histórica Spartacus, de Howard
Fast, publicada em 1951 e, ainda mais, com o filme protagonizado pelo actor Kirk
Douglas e realizado por Stanley Kubrick em 1960 (cujo argumento se baseou no
referido livro). Na realidade, desde o século XVIII que a figura de Espártaco foi
resgatada do olvido, sendo utilizada por novelistas, dramaturgos e cineastas para
desenvolverem o tópico da liberdade pessoal: por exemplo, a tragédia da autoria do
francês Bernard-Joseph Saurin (que se escorou em Plutarco), titulada Spartacus (1792)
serviu para dar voz pública ao desejo pela liberdade que a Revolução Francesa
alimentou. Por seu turno, a peça teatral de Robert Montgomery Bird, The Gladiator
(1831) constituiu um ataque velado contra a instituição da escravatura nos Estados
Unidos da América. O próprio Karl Marx encarou a figura do trácio como um
antecedente para a sua teoria da luta de classes: a partir daí, Espártaco transformou-se
numa referência para o socialismo revolucionário.

Em Itália, na película (1913) de Giovanni Enrico Vidali, Spartaco o Il gladiatore della


Tracia, Espártaco tornou-se no símbolo do nacionalismo italiano (o realizador
inspirou-se no épico de Raffaello Giovagnoni, Spartaco, dado à estampa em 1874) 184.
Depois da Primeira Grande Guerra, vários partidos de extrema-esquerda adoptaram
nomes alusivos ao gladiador trácio, como foi o caso da Liga Espartaquista alemã em
1919. No entanto, na segunda metade do século passado, graças à obra de Howard Fast
é que Espártaco se converteu num revolucionário comunista, no seu intento de fazer de
Roma uma sociedade sem classes. Entretanto, os países comunistas canonizaram o
mito de múltiplas maneiras: desde estudos historiográficos (sem dúvida distorcidos
pela doutrina política), o célebre ballet de Aram Kachaturian e, inclusive, os desportos.
A URSS promoveu as Espartaquíadas, uma espécie de alternativa aos Jogos Olímpicos,
a qual se celebrou entre 1928 e 1952. Fundaram-se também numerosos clubes de
futebol na Europa de Leste, como, por exemplo, o Spartak de Moscovo ou o A. C.
Spartak de Praga.

Quando o romance histórico foi adaptado ao grande ecrã, a mensagem comunista de


Fast viu-se deliberadamente esbatida de maneira a tornar o filme aceitável para o
público norte-americano do período pós-McCarthy 185. Espártaco passou a ser
simplesmente um homem nascido já escravo que começou a rebelião por causa do
amor a Varínia, outra escrava (duas das licenças introduzidas pelos guionistas, em nada
correspondendo à realidade histórica), que tenta conduzir o seu «exército» de
seguidores de regresso às suas terras de origem, sugerindo, simbolicamente e ao
mesmo tempo, as aspirações coevas tanto dos negros como dos judeus e o ideal
incontroverso da liberdade humana. Ainda que se tenha diminuído a carga ideológica
da obra de Fast, esta longa-metragem contém um poderoso discurso político: os
gladiadores representam a luta dos oprimidos pela liberdade contra uma Roma que
184 Para uma discussão minudente dos romances históricos, peças teatrais e filmes que Espártaco
inspirou, consulte-se Maria Wyke, Projecting the Past: Ancient Rome, Cinema and History, Nova Iorque,
1997: «Chapter 3 – Spartacus: Testing the Strength of the Body Politic», pp. 34-72.

185 Referimo-nos à chamada «caça às bruxas» e à «cruzada» anti-comunista liderada pelo senador
McCarthy na década de 50 do século XX.

59
encarna a dupla moral dos poderosos e a corrupção do «capitalismo». Curiosamente, o
filme até cativou os segmentos populacionais mais conservadores (a nível político e
religioso) dessa altura nos E.U.A., ao apresentar um Espártaco crucificado na última
cena, equivalendo a Jesus Cristo, e ao substituir a luta de classes pela piedade religiosa
enquanto motivação da resistência do trácio contra a tirania de Roma. Assim, esses
elementos conservadores viram em Espártaco um símbolo da guerra fria dos E.U.A
contra as ditaduras comunistas ateias, em especial a União Soviética e Cuba.

CAPÍTULO II - Início de uma profunda mutação na


gladiatura: dos derradeiros tempos da República até ao
Principado augustano. Os munera sob o Alto-Império

60
Nos cinquenta anos a seguir à rebelião de Espártaco, Roma acabou por transformar o
Mediterrâneo no Mare Nostrum. Esta extraordinária expansão territorial exigiu um
aumento proporcional de efectivos militares, tanto para conquistar novas regiões, como
para conservar as que já tinham sido dominadas. Se a esta conjuntura acrescentarmos
as guerras civis, que ocuparam o essencial deste período, salta à vista que Roma não se
podia dar ao luxo de colocar milhares de soldados a vigiarem um número tão grande de
escravos peritos no manejo das armas. Embora cientes do perigo que estes homens
representavam, os Romanos não tiveram grande escolha para a resolução deste
problema. A solução mais sensata seria, naturalmente, a de renunciar a tais
espectáculos, que os Modernos sempre consideraram indignos de Roma. Mas é muito
provável que nem se tenha pensado nessa hipótese ao tempo.

De facto, não era mais possível suprimir os combates gladiatórios, nem em Roma, nem
nas províncias romanizadas. Tornados quase «consubstanciais» ao exercício do poder,
numa República agonizante, os munera não podiam ver-se abolidos nem substituídos
por lutas de animais. Longe de concorrerem para a sua revogação, as conquistas vieram
a estimular ainda mais a gladiatura. Cada campanha vitoriosa trazia consigo um
general que arrebatava elevada quantidade de despojos ao inimigo, o qual se mostrava
impaciente por brilhar, ao nível político, em Roma, tentando deslumbrar a plebe, assim
como as classes dirigentes. Com os troféus e as riquezas que se ostentavam aquando do
triunfo do imperador, este mostrava também representações de novas batalhas
vitoriosas. Então, os combates gladiatórios converteram-se no ponto fulcral de uma
demonstração de força: força política daquele que oferecia espectáculos mais brilhantes
do que os adversários; força simbólica, que transmitia, nos combates travados no Circo
e nos novos anfiteatros, a manifestação concreta do poder de Roma. Um poder que
provocava a humilhação dos vencidos ao ponto de serem obrigados a exibir-se e a
morrer em público.

Pese embora a ameaça de emergir um novo Espártaco no horizonte, como privar a a


população deste tipo de espectáculos? Em vez de se assistir à supressão da gladiatura,
esta, pelo contrário, não cessou de se reforçar após o revés de Espártaco. Ante a
apresentação de um crescente número de combatentes, oferecidos pelos editores, o
público só podia tornar-se mais exigente. Para evitar a monotonia, os editores deviam
exigir aos lanistae mais qualidade nos combates, bem como uma maior variedade. É
neste contexto que se explica certamente a aparição de novas armaturae; numa
primeira fase, estas derivaram das mais antigas sem, no entanto, as substituir.

Este período de transição situou-se, aproximadamente, entre meados do século I a. C. e


a morte de Augusto. Tal lapso temporal foi suficiente para que os doctores dos ludi
inventassem e adaptassem novos combatentes, permitindo ao público familiarizar-se
com as novas finuras da sua arte. Sem dúvida alguma que os espectadores encararam
os provocatores ou os murmillones como produtos da evolução natural dos samnitis ou
do galli ao apreciarem as diferenças das técnicas empregues comparativamente ao
thraex e, a fortiori, ao retiarius. Mas a aparição destes novos tipos de combatentes,
mais técnicos, requeria mais treino. Tais aperfeiçoamentos contribuíram para agravar o
perigo, já que os Romanos se encontravam «condenados» a manter as massas de
escravos votados à morte, os quais, não obstante a sua condição social, tinham ao
alcance da mão os meios para reconquistarem a sua liberdade. Aceitar uma tal situação,
sem proceder a qualquer tipo de mudança, após a experiência traumatizante de
Espártaco, teria sido um acto suicida por parte de Roma. Mas, como aliás sucedeu em
muitas ocasiões, o pragmatismo habitual dos «Filhos de Marte» na esfera militar

61
permitiu uma adaptação da gladiatura. O reinado de Augusto conduziu, pois, a um
justo equilíbrio entre as exigências da plebe e os imperativos da segurança pública.

Foi o próprio entusiasmo dos Romanos que proporcionou uma solução para esta
«quadratura do círculo»: os espectadores, ou pelo menos parte deles, transformaram-
se em actores da sua paixão a partir deste período 186. Depois da revolta de Espártaco,
os romanos não podiam mais coagir indefinidamente milhares de escravos a morrerem
na arena, e isto por claras razões de segurança. A melhor solução que serviria para
impedir a eclosão de revoltas dos gladiadores radicaria, então, no recurso a
combatentes voluntários. Foi sem dúvida neste contexto posterior à rebelião de
Espártaco e anterior à estabilização augustana que a «instituição» dos gladiadores
voluntários se disseminou.

Aparição dos auctorati

Independentemente do estatuto social, o aristocrata, o cidadão romano plebeu, o


homem livre de estatuto inferior (ingenuus) ou o liberto ingressaram nesta carreira por
sua própria e livre vontade. Ao fazê-lo, renunciavam a todas as suas prerrogativas
jurídicas para se tornarem, durante alguns anos, escravos de um lanista 187. Este género
de indivíduo que ingressava na gladiatura desta forma tornou-se conhecido como
auctoratus («contratado»), isto é, um indivíduo que se vendia. Este género de contrato
(auctoratio) estava perfeitamente enquadrado pela lei, já que devia ser previamente
declarado diante de um magistrado antes de um candidato a gladiador assinar o
contrato com o lanista. Ao entrarem formalmente na gladiatura, os auctorati recebiam
o prémio que estava previsto das cláusulas contratuais, o chamado pretium. Por fim, o
auctoratus prestava um juramento que o arrojava para o nível mais baixo da escala
social.

Ao cotejar o compromisso assumido pelo filósofo ao do gladiador, Séneca menciona a


fórmula de juramento (sacramentum). Ela mostra, de maneira bem explícita, que os
voluntários se comprometiam, com pleno conhecimento de causa, em enveredar por
uma carreira de risco. De acordo com as palavras de Séneca, «o mais nobre e o mais
infame dos compromissos comportam a mesma fórmula: aceitar suportar o fogo, as
correntes, a morte pelo ferro [gládio]»188. Praticamente na mesma época, Petrónio, no
Satyricon, evocou também o mesmo juramento (assunto que desenvolvemos mais nos
capítulos V e VII). Seja no quadro de uma encenação burlesca, ou numa abordagem
filosófica, é interessante verificar que as duas fórmulas se identificam perfeitamente
uma com a outra; esta concordância na fraseologia demonstra que tal juramento era
bem conhecido entre os Romanos. Eram múltiplas as razões que impeliam os homens
livres a enveredar pela gladiatura. Horácio sugere-nos algumas:
«Eutrápelo … prosperava habilmente, oferecia a si mesmo vestes magníficas. Quando alguém
se vê tão bem ataviado, dizia ele, sentir-se-á feliz, ele aspirará a algo de grande, dormirá durante
toda a manhã e preferirá uma acção vil aos seus deveres mais essenciais, pedirá empréstimos
aos usurários e tudo isto fará com que ele acabe por se tornar um thraex ou um auxiliar de
jardineiro» (Ep. 1.18).

186 É. Teyssier, La mort en face…, pp. 38-39.

187 M. Lemosse, «La condition ancienne des auctorati», in Revue Historique de droit français et
étranger, nº 2 (avril-juin, 1983); A. Guarino, «I gladiatores e l’auctoramentum», Labeo, 29 (1983), pp. 7-
24. Noutro capítulo aprofundamos este assunto.

188 Ad Atilius, 4.37.1.

62
Segundo este excerto, escrito no início do Principado, a gladiatura atrairia sobretudo
desempregados, ociosos, aventureiros, as «ovelhas negras» de famílias de elevada
condição e homens endividados, ou seja, uma parte potencialmente significativa da
população. Além disso, os mais miseráveis podiam acalentar a esperança, afora o
atractivo dos ganhos, de ter uma vida relativamente estável, pelo menos durante alguns
meses ou anos. Estes e outros poderosos motivos garantiam aos lanistae um número
considerável de voluntários. Para se compreender esta escolha tão singular, cabe ter em
mente que a existência da maioria dos homens livres estava longe de ser invejável: sem
protectores e sem fontes de rendimento, muitos cidadãos indigentes possuíam poucas
possibilidades de sobreviver por muito tempo na sociedade romana de finais da
República ou sob o Principado de Augusto.

Se quisermos estabelecer uma analogia com um fenómeno mais tardio, na Europa da


Idade Moderna, este género de «alistamento» na gladiatura conhece, em certa medida,
paralelos na Veneza do século XVI e na França, sob o reinado do Luís XIV, no que
respeita à sorte bem pouco invejável dos galerianos: fossem estes prisioneiros
berberescos reduzidos à escravidão, malfeitores condenados às galés, gente de baixa
condição ou protestantes obstinados, a sua existência era a mais miserável de todas aos
olhos dos súbditos do Rei-Sol. No entanto, o seu destino via-se partilhado por um
apreciável número de galeotes voluntários chamados em italiano buonevoglie «de boa
vontade», que, na segunda metade da centúria de Quinhentos, na República do
Adriático, bem como mais tarde, no século XVII, cuja condição, na realidade se
acercava mais da chusma (ciurma) dos remeiros forçados do que dos tripulantes livres
a bordo das galés189.

Os auctorati encontravam-se numa situação idêntica sob o ponto de vista social. É


certo que os gladiadores voluntários poderiam decerto temer o índice de mortalidade,
talvez superior aos dos galerianos livres. Em contrapartida, os auctorati beneficiavam,
durante o período de vigência do seu «contrato», de um nível de vida superior,
podendo, além disso, alimentar a ambição de adquirir fortuna ou glória, aspiração à
qual os infortunados buonevoglie não tinham acesso. Nos primeiros tempos, em face
dos riscos da arena, os cidadãos romanos voluntários deveriam ser, indubitavelmente,
pouco numerosos. Os perigos da «profissão» e, talvez mais ainda, o desprezo de que
eram vítimas os indivíduos que participavam nos espectáculos, só poderiam atrair para
junto dos lanistae a escória social de Itália. No entanto, apesar de haver poucas fontes
ilustrativas para este período, supõe-se, através de certos indícios, que este movimento
de «alistamentos» voluntários veio naturalmente a recrudescer com o passar do tempo,
pois diversos factores estavam a contribuir para isso.

As maiores ofertas de numerário dos editores, em busca constante por novos talentos,
levaram a que essa actividade de risco se tornasse mais recompensadora para os que
conseguissem sobreviver aos combates e ascendessem à categoria de vedetas dos
munera. O afluxo de capital propiciado pelas vitórias bélicas de Pompeio e de Júlio
César concorreu, também, para tal evolução. Por esta altura, as rixas que opuseram os
partidários dos dois homens mais poderosos de Roma ilustram bem o clima de
violência que reinava em Itália. Nestes conflitos políticos que Salústio e Cícero
evocaram, a figura do gladiador começou a aparecer, por fim, mais frequentemente nas
ruas, envolvendo-se em actos violentos e agressões armadas (aspecto que abordaremos
noutra alínea), do que no Circo, para se apresentarem ao público. Segundo Marco Túlio
Cícero, o próprio termo «gladiador» servia mais para qualificar um homem pronto a
tudo fazer sem olhar aos meios, violento e com liberdade de movimentos, do que o
combatente-escravo mantido acorrentado no ludus.

189 Cf. Luca Lo Basso, Uomini da Remo. Galee e galeotti del Mediterraneao in età moderna, Milão,
Edizioni Selene, 2003, pp. 24-31 («Parte I – Il problema dei galeotti»); André Zysberg e René Burlet,
Venise: La Sérénissime et la mer, Paris, Gallimard, 2007, pp. 44-47

63
A conexão entre os munera e a política em finais da época republicana

A tendência para se gastarem somas cada vez maiores de dinheiro nos munera e nos
eventos a eles associados continuou a verificar-se durante o século I a. C. Cícero criticou
este despesismo, invectivando aqueles que esbanjavam as suas posses em banquetes
públicos, em actos de distribuição de carne à plebe, nos munera, ludi e venationes,
considerando o famoso político e orador romano tudo isto um desperdício inusitado,
defendendo que o capital deveria ser melhor gasto em iniciativas bem mais edificantes
e úteis, como o pagamento de resgates de cativos que estivessem nas mãos dos seus
raptores ou, ainda, ajudando amigos de maneiras diversas, designadamente na
liquidação das suas dívidas, na oferta de dotes para as suas filhas ou apoiando-os na
aquisição de bens190. Cícero afirmava também que as pessoas se lembrariam dos
espectáculos apenas por pouco tempo ou depressa os olvidariam. No entanto, estas
asserções pecam nitidamente pelo exagero, além de que elas apenas se aplicariam
efectivamente a espectáculos que nada tivessem de excepcionais. Os munera mais
grandiosos mantinham-se na memória de muita gente e, como já o dissemos, serviam
não só para honrar o ilustre defunto e a sua família, como também contribuíam
eficazmente para as aspirações políticas dos seus organizadores. Cícero aproveitou
também para demonstrar a sua discordância em relação ao filósofo grego Teofrasto
(370-285 a. C.), que tinha uma imagem positiva sobre os espectáculos:
«[Teofrasto] vai demasiado longe ao louvar o magnífico aparato dos espectáculos populares e
acredita que a habilidade de se gastar dinheiro desta forma é a recompensa da riqueza» 191.

No entanto, o mundo antigo em geral partilhava a mesma visão que Teofrasto. Os


homens ricos, tanto na Grécia como em Roma, encontravam-se, na realidade, sob o
efeito de uma grande pressão social para gastarem o seu dinheiro em espectáculos para
entretenimento dos seus concidadãos. Ora este facto, em Roma, era especialmente
aplicável aos munera. Era difícil resistir a essa pressão. Mas os benefícios que
advinham de tais eventos não seguiam numa «rua de sentido único»: o editor obtinha a
gratidão e a boa vontade da multidão. As recompensas para um editor são especificadas
numa carta de Plínio-o-Moço, já citada, dirigida a Máximo: ganhava reputação pela sua
generosidade e magnanimidade geral192. Atente-se, a propósito, que o autor de um
exercício retórico, imaginando-se na pele de um indivíduo que havia sido condenado a
combater como gladiador, lamentava-se amargamente que o editor ganhava o apoio
popular à custa do derramamento do seu sangue 193. A fama gerada pela munificência
podia beneficiar grandemente um editor numa altura em que fosse haver eleições para
cargos públicos. Neste âmbito, Júlio César constitui um exemplo paradigmático sobre a
influência que os espectáculos e um faustoso munus podiam exercer nas decisões
políticas do povo romano. Como Plutarco escreveu:
«Enquanto ele [Júlio César] foi edil, apresentou 320 pares de gladiadores e, com outras
despesas e extravagâncias, como peças de teatro, cortejos e banquetes públicos, conseguiu que o
povo se esquecesse das ambiciosas exibições oferecidas por outros antes dele. Assim, ele

190 De Officiis, 2.55-56.

191 Ibidem, 2.56.

192 Epistulae, 6.34.

193Pseudo-Quintiliano, Declamationes Maiores, 9.6.

64
predispôs o povo a buscar novos ofícios e novas honras através das quais lhe pudesse
retribuir»194.

Cícero minimizou a importância dos munera para uma carreira política: numa missiva
endereçada a C. Escribónio Curião, questor na província da Ásia, ele tentou convencer o
seu destinatário, ainda jovem, a não se envolver na organização de um espectáculo
gladiatório tremendamente dispendioso. Cícero defendia a ideia de que um candidato a
um cargo político tinha de se fiar no seu próprio «carácter, estudos e fortuna», ao invés
de apostar avultadas somas nos jogos gladiatórios195. Não há dúvida de que, em teoria,
um candidato político devia ser julgado por esses critérios, e não de acordo com a sua
capacidade ou engenho em financiar e oferecer espectáculos extremamente onerosos,
mas dizer, como Cícero, que toda a gente estava «farta» de tais entretenimentos, não
correspondia à verdade. Aqui, Cícero escreveu mais como filósofo do que como político.
Quanto a Curião, viu-se enredado na competição política, traduzida na oferta de um
munus e de outros eventos. Ele já enviara um agente a Roma com o expresso propósito
de anunciar o munus em honra do seu pai, um dos primeiros passos essenciais para a
apresentação deste género de espectáculo.

Depois de anunciado o munus, não havia forma de se voltar atrás na decisão tomada,
sem que provocasse no povo mal-estar e ressentimento. Mais, significaria um
«suicídio» político, se, depois de publicitado, o munus não se concretizasse. Ignoramos
quantos pares de gladiadores participaram no munus patrocinado por Curião: seria um
número «decente», não excessivamente grande, nem embaraçosamente pequeno. Mas
Curião introduziu uma inovação que parece nunca mais haver sido adoptada: no último
dia do munus, resolveu apresentar gladiadores que tinham saído vitoriosos no primeiro
dia (não era invulgar que gladiadores lutassem mais do que uma vez num munus) 196.
Aparentemente, Curião terá ficado na bancarrota após o munus, daí que, mais tarde,
César viria a ter a possibilidade de comprar o seu apoio político 197. Com efeito, a
bancarrota não constituía uma consequência incomum após se oferecer um munus nos
derradeiros tempos da República: o próprio Júlio César experimentou a insolvência a
seguir ao dispendioso espectáculo que apresentou em 65 a. C.

Cabia aos edis curuis a organização dos ludi que se celebravam anualmente contando
com a ajuda financeira do aerarium, isto é, o tesouro estatal, mas, em finais da
República, esperava-se que estes magistrados contribuíssem nos gastos com dinheiro
saído dos seus próprios bolsos, para mais abrilhantar os jogos. Embora tal
responsabilidade fosse deveras pesada, a maioria dos patrícios romanos aceitavam
levar a cabo este dever por se revelar um factor essencial para singrarem na carreira
política 198. Se um edil impressionasse o povo romano com os seus ludi, era quase
garantido que aumentava grandemente as suas hipóteses de se ver eleito para o cargo
seguinte, mais elevado, da magistratura, o de pretor, que funcionava como porta de

194Caesar, 5.9. Por outro lado, apresentar sumptuosos espectáculos não era, por si só, garantia absoluta
para se ganhar o favor do público, dado que este também se via influenciado pela personalidade do
organizador de tais eventos. Tanto Júlio César como Pompeio Magno ofereceram aos habitantes de Roma
espectáculos extravagantes, mas o primeiro gozou de maior boa vontade por parte da população do que o
último. Veja-se Z. Yavetz, Plebs and Princeps, Oxford, 1969, p. 49.

195 Ad Familiares, 2.3.1.

196 Naturalis Historia, 36.120.

197Suetónio, Divus Iul. 29.2; Díon Cássio, 40.60.1-3; R. C. Beacham, Spectacle Entertainment of Early
Imperial Rome, New Have/CT, 1999, p. 72.

198G. Ville (La gladiature…, p. 86) advertiu para o facto de todos os munera republicanos mencionados
nas fontes antigas terem sido apresentados por membros da ordem senatorial, para os quais a política era a
sua carreira. Com efeito, não temos registo de um munus oferecido por um membro da ordem equestre.
Esta incluía homens consideravelmente ricos, só que não perseguiam objectivos políticos.

65
acesso para o consulado, o ponto culminante do cursus honorum de um político 199.
Uma estratégia ainda melhor consistia em patrocinar um munus privado, para além
dos ludi públicos. Por causa da tremenda popularidade dos combates gladiatórios, em
detrimento dos ludi públicos, os edis mais ambiciosos investiram enormes montantes
de dinheiro nos seus munera.

A popularidade dos munera não se restringiu obviamente à Urbs: estendeu-se pelas


demais cidades de Itália, nas quais os habitantes frequentemente exerciam pressão no
sentido de forçar a oferta de um munus: por exemplo, o comportamento dos cidadãos
de Pollentia (actual Pollenzo) mostra bem até que ponto a multidão, desejosa de se
divertir com um belo espectáculo, estava disposta a ir; quando um centurião morreu na
cidade, a populaça local, com o assentimento de alguns magistrados, recusou-se a
permitir que o corpo do defunto fosse retirado do forum (onde teve lugar o funeral), até
que os herdeiros do militar decidissem contribuir com numerário para realizar um
munus. O imperador Tibério, ao inteirar-se do facto, reagiu com prontidão, fazendo uso
da força, e para lá enviou um destacamento de tropas, daí resultando o encarceramento
de considerável número de cidadãos e de vários magistrados. Alguns deles foram
condenados à prisão perpétua, pena raramente aplicada sobre romanos 200.

Como Wilfried Nippel notou, distúrbios deste género não foram habituais em Roma,
principalmente porque na Urbs se ofereciam mais jogos gladiatórios201. O mesmo
obviamente não sucedia no caso das cidades dotadas de recursos relativamente
escassos no resto do território itálico. Havia, contudo, limites para a vontade do povo
em desfrutar de um munus. Nicolau de Damasco conta que num testamento ficara
estipulado que os jovens amantes do falecido teriam de lutar um contra o outro como
gladiadores. A reacção dos habitantes dessa localidade (cujo nome desconhecemos) foi
tão negativa que teve de se proceder à anulação dessa disposição testamentária 202.

Frequentemente muitos consideram que os munera em Roma usufruíam sobretudo de


popularidade entre a gente comum ou a plebe, e que seriam menos apreciados pela
elite, mas esta visão está incorrecta: na realidade, as classes mais elevadas e ricas
constituíam um alvo bem mais importante, enquanto grupo, para todos os que
aspirassem a ocupar cargos políticos ao oferecerem munera. Os romanos mais
desfavorecidos e mesmo indigentes não eram, efectivamente, o único público para os
combates gladiatórios. As duas importantes e típicas ordens da sociedade romana, a
dos senadores e dos equites (cavaleiros), tinham nas suas fileiras muitos indivíduos que
eram igualmente espectadores entusiásticos, além de que dispunham do privilégio de
ter bons lugares no anfiteatro, situados perto da arena. De facto, sublinhemos que aos
munera assistia uma percentagem bastante maior dos membros da elite do que do
resto da população urbana.

O apoio político do patriciato era bem mais valioso para os candidatos a cargos
públicos do que o proporcionado pela plebe203. A razão maior para isto relacionava-se
com a própria maneira como se conduziam as eleições para as duas magistraturas mais
elevadas romanas: nos actos eleitorais respeitantes à pretura e ao consulado, quanto
mais abastado um indivíduo fosse, mais o seu voto influiria no resultado final. As

199 Lily Ross Taylor, Politics in the Age of Caesar, Berkeley, University of California Press, 1964, pp. 30-
31.

200 Suetónio, Divus Tiberius, 37.3.

201 Public Order in Ancient Rome, Cambridge, 1995, p. 41.

202 Ateneu, Deipnosoph. 4.39.

203Paul J. J. Vanderbroeck, Popular Leadership and Collective Behavior in the Late Roman Republic (c.
80-50 BC), Amesterdão, 1987, pp. 79-80.

66
eleições decorriam nos comitia centuriata, assembleia em que o povo romano estava
dividido em unidades de votantes, as «centúrias», que, em teoria, compreendiam 100
indivíduos; na prática, porém, podiam englobar menos pessoas e, muitas vezes, até
mais. Cada «centúria» tinha um voto determinado pela vontade da maioria no seio da
mesma. A ordem de voto efectuava-se de acordo com os dados do recenseamento
cadastral, isto é, quanto mais rico fosse um homem mais cedo votaria. Os cidadãos mais
prósperos, uma minoria no Estado, encontravam-se distribuídos pelo maior número de
centúrias, que votavam antes dos que tinham menos posses. Por exemplo, se bem que a
gente mais pobre fosse em muito maior número do que os membros das classes
privilegiadas, ela achava-se reunida numa centúria que votava só em último lugar.

À luz da mentalidade oficial romana, tal disposição justificava-se pelo princípio de que
as duas magistraturas que detinham o poder de vida e morte sobre os seus concidadãos
deviam ser eleitas por aqueles que tivessem maior participação financeira na
administração estatal. Assim, caso as «centúrias» constituídas pelos cidadãos mais
ricas mostrassem unanimidade na sua escolha, então ficariam logo conhecidos os
vencedores candidatos aos postos de pretores e cônsules, isto depois, repare-se, de
apenas 197 das 373 centúrias terem votado. Podia até dar-se o caso de os cidadãos mais
pobres nem chegarem a ter a oportunidade de votar.

Estabeleceu-se outra salvaguarda, com a finalidade de aumentar a influência exercida


pela elite romana na assembleia de voto: escolhia-se, mediante sorteio, uma «centúria»
de entre as que englobassem os cidadãos mais ricos para que votasse primeiro, o que
serviria de sinal para as demais unidades eleitorais de em quem deveriam votar
(centuria praerogativa, a centúria que possuía a prerrogativa de votar em primeiro
lugar). Como, de acordo com a ideologia oficial, se considerava que a selecção da
centúria por meio de um sorteio traduzia a vontade dos deuses, acreditava-se que esta
prática conferia ao Estado uma maior possibilidade de eleger magistrados que
usufruíam do facto de receberem aprovação divina 204. Porém, quando os cidadãos mais
abastados não chegassem a consenso na escolha dos candidatos aos cargos, nestas
ocasiões as camadas mais desfavorecidas da população conseguiam ter a possibilidade
de influir na no acto eleitoral. Mas mesmo nestas circunstâncias, a boa vontade dos
membros dos grupos principais da sociedade ainda se revelava importante para os
candidatos em questão, já que os clientes (dependentes) dos primeiros votariam nos
homens que os seus ricos patronos apoiavam.

Posto isto, embora um editor procurasse agradar a todos quantos assistissem ao seu
munus, é mais do que claro que obter a satisfação dos elementos pertencentes às
classes mais elevadas constituía o objectivo crucial no contexto político. Seja como for,
os espectáculos exitosos oferecidos por um indivíduo que viesse a ocupar a posição de
edil não significavam garantia absoluta para se atingir um alto cargo político 205.
Observe-se, a título ilustrativo, o caso de M. Emílio Escauro (Scaurus), que, durante a
sua edilidade (58 a. C.), esgotou todos os seus recursos financeiros e contraiu grandes
dívidas: se bem que tenha ascendido à pretura, não logrou tornar-se cônsul. Em
contrapartida, Cícero, enquanto foi edil, evitou gastos excessivos nos espectáculos e não
chegou a oferecer um munus, mas atingiu a pretura e o consulado 206.

Mas alguém com aspirações políticas que ignorasse o entusiasmo dos Romanos pelos
espectáculos podia ver o seu futuro seriamente em risco: Lúcio Cornélio Sula, que

204 L. Ross Taylor, Roman Voting Assemblies from the Hannibalic War to the Dictatorship of Caesar,
Ann Arbor, Michigan, 1966, pp. 56-57.

205 P. Veyne (Bread and Circuses, pp. 224-225) salientou que os espectáculos eram apenas um dos
factores importantes para as eleições.

206 De Off. 2.59. Cícero era um caso especial. Os seus enormes dotes oratórios e o seu ascendente político
libertaram-no da necessidade de apresentar espectáculos extravagantes.

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posteriormente se converteu no primeiro dictator de Roma, perdeu a sua corrida pela
pretura porque optou por não se candidatar à edilidade, não apresentando, pois,
quaisquer jogos. A amizade que Cornélio Sula tinha com o rei da Mauritânia, no Norte
de África, tinha criado a esperança, no povo romano, de que quando ele ocupasse a
edilidade, ofereceria certamente extraordinárias venationes com grandes felinos norte-
africanos, que eram imensamente apreciados em Roma. Depois, em jeito de desforra,
os eleitores rejeitaram-no nas eleições para a pretura 207.

Mais do que qualquer outro romano, Júlio César serviu-se amplamente da estratégia
da oferta de entretenimentos para alcançar muitos dos seus intentos: em 65 a. C., ele,
juntamente com o seu colega, Marco Bíbulo, ambos edis, apresentaram tanto os Ludi
Romani como os Ludi Megalenses numa escala que, ao tempo, foi grandiosa. Mas, no
mesmo ano, César decidiu financiar um munus opcional em honra de seu pai, no qual
exibiu 320 pares de gladiadores, o que resultou num espectáculo sem precedentes, não
só quanto ao número de combatentes envolvidos, mas também pela sua duração 208. G.
Ville sugeriu que o munus se desenrolou ao longo de quinze a vinte dias 209. Plutarco,
por seu lado, considerou que o munus de César, afora outros entretenimentos
associados como peças teatrais, procissões e banquetes, significara o evento mais
dispendioso que até então se apresentara210.

O grande munus de César em 65 a. C. concorreu em larga medida para as elevadas


dívidas que ele veio a acumular quando estava prestes a partir para governar a
província de Hispânia, no ano seguinte à sua pretura (era habitual que ex-cônsules e
ex-pretores desempenhassem as funções de governadores provinciais no ano a seguir à
sua magistratura) 211. Com efeito, César contraira diversos empréstimos para custear os
seus vários espectáculos, a tal ponto que, na altura em que já viajava rumo à Península
Ibérica, se viu impedido de prosseguir pelos seus credores até que saldasse as dívidas.
Crasso, um dos homens mais ricos dessa altura, pagou o montante das mesmas, de
forma a permitir que César pudesse deixar Roma212.

De acordo com Suetónio, em 65 a. C. Júlio César tinha planeado apresentar mais do


que os 320 pares de gladiadores que efectivamente exibiu 213. O biógrafo não nos diz
qual seria o número de combatentes que ele inicialmente pensava mostrar à multidão,
mas certamente que representaria uma cifra que terá assustado de imediato os seus
opositores políticos, que suspeitaram que César talvez recorresse a esses gladiadores
para levarem a cabo actividades revolucionárias, para além de os utilizar no munus 214.
Lembremos que, afinal de contas, só tinham passado seis anos após a derrota de
Espártaco e dos seus colegas gladiadores, que reuniram um «exército» composto por

207 Plutarco, Sull. 5.1.

208 Plutarco, Vida de César, 5.9.

209 La gladiature…, p. 82. A maneira como Júlio César se aplicou tanto na produção deste munus
(mesmo sendo ele dono de um grande ludus em Cápua) demonstra que os seus espectáculos não eram
apenas um meio para atingir objectivos políticos, mas também uma paixão sua.

210 Vida de César, 5. 9.

211 Plutarco refere que as dívidas acumuladas por César ascendiam a 1 300 talentos (31. 200.000 HS),
uma enorme soma de dinheiro.

212 Plutarco, Vida de Crasso,7.6; Vida de César, b 11.1-2. Para a ascensão ao poder através de uma
bancarrota deliberada, veja-se P. Veyne, Bread and Circuses…, p. 14.

213 Divus Iul. 10.2.

214 Cícero, Ad Att. 7.14.2.

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uns 12.000 escravos e camponeses e infligiram várias e surpreendentes derrotas sobre
tropas romanas.

Ao longo anos 60 a. C., César era visto como um homem ambicioso e temível,
alegadamente apoiante de Catilina, cuja conspiração Cícero veio a desmascarar, a qual
se viu sufocada em 63 a. C. 215. Os rivais e inimigos de César temiam que ele viesse a
empregar esse grande número de gladiadores para os silenciar através de uma
demonstração de força ou, até, para derrubar o próprio governo. De qualquer modo,
perante tais rumores e a proibição, decretada pelas autoridades, a qual limitava a
quantidade de gladiadores a poder encontrar-se em Roma de uma só vez, César
reconsiderou e aceitou apresentar um número menos grande, mas apesar de tudo
imponente, 320 pares, isto é, 640 combatentes216.

***

Ao voltarmos a pegar no valor de 30 talentos que Políbio referiu para um munus no


século precedente, concluimos que o custo médio desses 640 gladiadores seria de 1 335
HS 217. No entanto, os combates não poderiam constituir a única animação do munus.
Torna-se difícil de dizer se o montante apontado por Políbio incluiria as caçadas, mas,
em princípio, as venationes já fariam part