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Sistema de competidores usado por aprendizes de L2: descrição e explicação View project
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Rio de Janeiro
PPGLEN - Faculdade de Letras (UFRJ)
ROBERTO DE FREITAS JUNIOR
LIA ABRANTES ANTUNES SOARES
JOÃO PAULO DA SILVA NASCIMENTO
(organizadores)
Rio de Janeiro
PPGLEN - Faculdade de Letras (UFRJ)
2020
Ficha Catalográfica
P418fr
ISBN: 978-85-93470-04-2
Modo de acesso: https://corpusneis.wixsite.com/home/producoes
CDD 419
PREFÁCIO .......................................................................................................................................... 5
Marília Uchôa Cavalcanti Lott de Moraes Costa
INTRODUÇÃO .................................................................................................................................. 7
Uma pesquisadora que desbravou os estudos das línguas de sinais do Brasil foi Lucinda Ferreira.
Ela abriu caminhos para os estudos da língua Urubu Kaapor e da Língua de Sinais Brasileira, doravante
Libras. Lucinda começou seus trabalhos na UFRJ e, com seus esforços em uma área nova que ainda
sofria muito preconceito, conseguiu grandes feitos, formando diversos pesquisadores que se espalharam
por instituições Brasil a fora.
Dentro da UFRJ, continuou-se pesquisando Libras, mas foi apenas com a fundação do
Departamento de Letras - Libras com dois cursos de graduação (licenciatura e bacharelado) que se
começa a olhar profundamente sobre a aquisição de segunda língua pelo surdo, o Português do Brasil.
Esse trabalho começa, então, em 2015, na figura do Professor Roberto de Freitas Junior e, em seguida,
recebe ampliação de forças com a chegada da Professora Lia Abrantes A. Soares. Os dois têm construído
importantes contribuições para área, sobre o que quer dizer “português como L2 do surdo”.
Responder a pergunta sobre o que seria o português como segunda língua do surdo, exige
debruçar-se sobre essa escrita, livre de uma visão prescritivista e punitiva a fim de conduzir uma análise
científica a partir dos dados da produção surda. É necessário se perguntar: Em que se apoia essa segunda
língua? Há uma primeira língua? O surdo teve acesso à Libras antes do processo de alfabetização?
Como são as metodologias de alfabetização e letramento para surdos? Quais as marcas encontradas no
português deste surdo que se remetem a primeira língua e quais são advindas de outros fatores? Não é
tarefa simples analisar a escrita do surdo, mas os organizadores deste livro fizeram um trabalho profundo
a partir de um curso de extensão – “Pensando a Escrita do Surdo: descrição, demandas e propostas
pedagógicas” – em que foi possível debater práticas para sala de aula bem como elementos teóricos,
fundamentais para pensar o campo da escrita do surdo.
APRENDIZES SURDOS E ESCRITA EM L2:
REFLEXÕES TEÓRICAS E PRÁTICAS
Como chefe do Departamento de Letras - Libras, é um orgulho ver o trabalho pulsante de nossos
docentes que mantêm a força da Faculdade de Letras da UFRJ, ao abrirem novos campos de pesquisa,
uma marca desde sua fundação em 1968. Essa marca está presente nos trabalhos da Professora Lucinda
Ferreira e da Professora Deize Vieira, ao fortalecerem o campo de pesquisa e serem força propulsora
para a abertura dos cursos de graduação e agora também presente nos trabalhos dos Professores Lia e
Roberto e seus orientandos e colaboradores.
Trazer ao público uma abordagem cientifica da escrita do surdo é imprescindível para sairmos
do viés assistencialista e derrotista na educação de surdos. Não há mais espaço para trabalhos anedóticos
do que seria o sujeito surdo ou de como funcionaria sua escrita. A linguística como campo teórico e
empírico já possui ferramentas suficientes para análises sérias, como as que encontramos aqui neste livro.
Os artigos deste e-book demonstram um diálogo entre a área da escrita de surdos, documentos oficiais
do país para Educação, análises do trabalho de professores de surdos e de outros agentes educacionais.
O objetivo é que com este livro seja possível abrir vias de diálogo para que a real transformação na
educação de surdos possa ocorrer desde a mais tenra idade, com trabalhos das creches públicas, até a pós-
graduação. Atuar sem critérios no ensino do Português Brasileiro escrito para o surdo é um desserviço a
toda comunidade surda, a toda a comunidade escolar brasileira e ao país de uma maneira ampla.
Espero que a partir deste e-book, o leitor, surdo ou ouvinte, possa repensar suas práticas e fazer
mudanças necessárias na educação de surdos. É necessário conclamar a comunidade acadêmica e escolar
para reformular e pagar a dívida histórica com a comunidade surda que merece ensino de qualidade
tanto quanto qualquer outro aluno no Brasil.
6
INTRODUÇÃO
Essas questões são arroladas a outras diversas questões que surgem na atuação dos docentes do
Departamento de Letras-Libras da UFRJ. São questões motivadoras para o surgimento de um grupo
de pesquisa com o propósito básico de pensar a questão da aprendizagem/aquisição de uma L2, em
particular, do surdo aprendendo uma L2: o Núcleo de Estudos sobre Interlíngua e Surdez (NEIS/UFRJ).
O NEIS/UFRJ consiste em um grupo de pesquisa que visa desenvolver atividades nos campos
do ensino, pesquisa e extensão, tendo como foco questões relacionadas ao ensino/aprendizagem de
línguas, à aquisição de linguagem (L1 e L2), à tradução/interpretação, dentre outros aspectos no
contexto da surdez. O grupo, que surge em meados de 2015, vem, portanto, desenvolvendo pesquisas
linguísticas descritivas sobre a produção textual de pessoas surdas, ofertando atividades de formação
7
APRENDIZES SURDOS E ESCRITA EM L2:
REFLEXÕES TEÓRICAS E PRÁTICAS
para docentes no âmbito da extensão, promovendo pesquisas em nível de iniciação científica e pós-
graduação (especialização e mestrado), dentre outras ações.
Com foco na formação global de profissionais que atuam no âmbito de ensino de português como
L2 para surdos, seria importante registrar o conteúdo das aulas do PES, de forma a tornar tal registro
uma referência teórica, mesmo que inicial, para nossos alunos. Os alunos sairiam do curso com algum
material palpável para auxiliá-los em sua prática pedagógica regular. Esta foi a primeira motivação do
e-book: registrar nossas aulas, nossas discussões, permitindo que elas continuassem, de alguma forma,
para além dos muros da FL/UFRJ, para que elas alcançassem ainda mais profissionais.
Assim se organiza essa primeira coletânea. Os capítulos iniciais são os conteúdos discutidos no
Módulo I do PES, compondo a seção teórica da obra. A seção aplicada, e final, do trabalho é composta,
assim, pelas sequências didáticas propostas pelos alunos do curso de extensão e que representam uma
contribuição primorosa para todo o trabalho.
As bases teóricas que permeiam o presente trabalho encontram-se principalmente nos documentos
públicos que tratam do ensino de língua materna (LM) e estrangeira (LE) no país, a saber, os Parâmetros
Curriculares Nacionais (PCN) e as Orientações Curriculares para o Ensino Médio (OCEMLE). Ainda,
há de se destacar a contribuição direta do pensamento teórico desenvolvido pelo modelo da Gramática
8
INTRODUÇÃO
das Construções Baseada no Uso (GCBU), mais especificamente, sua visão de língua e aquisição nas
quais se fundamenta o livro.
Nesta empreitada, contamos com a colaboração preciosa dos membros do NEIS/UFRJ, dos
professores da FL/UFRJ que ministraram suas aulas, dos alunos dos cursos de Bacharelado e Licenciatura
em Letras-Libras da UFRJ e com o apoio dos colegas do Departamento de Letras-LIBRAS da UFRJ,
particularmente do servidor João José Macedo, que fez toda a editoração do trabalho.
Que esta leitura seja útil para todos! Que o trabalho seja bem aproveitado como uma contribuição
robusta para formação do profissional verdadeiramente interessado em pensar o ensino de PBL2 para
surdos, tal como ele deve ser, tal como eles merecem.
Os organizadores.
Roberto de Freitas Jr.
Lia Abrantes Antunes Soares
João Paulo da Silva Nascimento.
9
LINGUÍSTICA FUNCIONAL-COGNITIVA:
FUNDAMENTOS TEÓRICOS E APLICAÇÃO AO
ENSINO DE LÍNGUA
Diogo Pinheiro1
INTRODUÇÃO
O termo Linguística Funcional-Cognitiva (LFC) não designa uma teoria linguística particular. Em
vez disso, trata-se de um rótulo abrangente, que faz referência a uma empreitada intelectual heterogênea
e difusa. Três princípios teóricos fundamentais caracterizam essa empreitada: (i) a crença de que saber
uma língua é conhecer um inventário estruturado de construções gramaticais2; (ii) a hipótese de que
habilidades cognitivas não especificamente linguísticas são relevantes para explicar o conhecimento
linguístico; e (iii) a ideia de que o conhecimento linguístico é permanentemente moldado pela experiência
concreta de uso da língua3.
2 O termo “construção gramatical” inclui elementos de natureza tanto “gramatical” quanto “lexical”. O conceito será
definido com precisão na próxima seção.
3 Neste capítulo, o termo “Linguística Funcional-Cognitiva” recobre um conjunto de pesquisas tributárias das tradições do
Funcionalismo norte-americano (que um dia foi conhecido como Funcionalismo da Costa Oeste) e da Linguística Cognitiva.
Ele não abrange, por outro lado, outras escolas funcionalistas, como a Linguística Sistêmico-Funcional de M.A.K Halliday,
a Gramática de Papel e Referência de Robert Van Valin, a Gramática Funcional de Simon Dik e a Gramática Discursivo-
Funcional, associada sobretudo aos nomes de Kees Hengeveld e J. Lachlan Meckenzie.
10
LINGUÍSTICA FUNCIONAL-COGNITIVA:
FUNDAMENTOS TEÓRICOS E APLICAÇÃO AO ENSINO DE LÍNGUA
Uma das perguntas centrais da ciência linguística é a seguinte: o que nós sabemos quando
sabemos uma língua? Fazer essa pergunta equivale a perguntar: qual é o formato, ou arquitetura, do
conhecimento linguístico armazenado na mente do falante? Desde os anos 1960, a resposta hegemônica
a essa questão no mercado teórico da linguística tem sido a seguinte: saber uma língua é conhecer uma
lista de palavras e um conjunto de regras de derivação sintática e interpretação semântica. Essa resposta,
que está associada à tradição da linguística gerativa, reflete um modelo específico de representação
do conhecimento linguístico, às vezes referido informalmente como modelo dicionário-e-gramática
(HILPERT, 2014) ou modelo palavras-e-regras (PINKER, 1999).
Essa, porém, não é a única resposta possível. Abordagens concorrentes à tradição da linguística
gerativa têm investido em formas alternativas de caracterizar o conhecimento linguístico do falante.
Entre essas alternativas, está aquela na qual a LFC aposta suas fichas: a ideia de que o conhecimento
linguístico deve ser concebido, muito simplesmente, como um grande inventário de unidades simbólicas4.
Essa é uma ideia bastante simples – mas ao mesmo tempo poderosa. Para entendê-la, vamos
tentar responder à pergunta que abriu esta seção: o que nós sabemos quando sabemos uma língua?
Para a maioria das pessoas, a resposta mais evidente é a seguinte: sabemos um conjunto de palavras. De
fato, quem fala português, por exemplo, conhece palavras que designam entidades concretas (“raquete”,
“bola”, “rede”), palavras que denotam propriedades (“justo”, “justiça”, “belo”, “beleza”), palavras que
expressam eventos (“chutar”, “chute”), palavras com significado altamente abstrato (“de”, “a”), e por aí
vai.
Mas não é só: com um breve momento de reflexão, é fácil lembrar que os falantes também
memorizam sequências de palavras. Por exemplo: em sentido estrito, “bom dia” não é uma palavra –
são duas. Mas, intuitivamente, sabemos que elas se comportam como um bloco, como uma unidade: ao
encontrar alguém pela manhã, é quase tão estranho dizer “dia bom” no lugar de “bom dia” quanto “laô”
no lugar de “olá”5. Moral da história: falantes não memorizam apenas palavras isoladas, como “bola” e
“raquete”; eles também memorizam expressões fixas, como “bom dia” – ou ainda: “com licença”, “nem
4 Na verdade, o mercado teórico da linguística contemporânea abriga uma variedade significativa de modelos de representação
do conhecimento linguístico. O modelo “palavras-e-regras” da tradição gerativa e o modelo do inventário de unidades
simbólicas, associado à LFC, são apenas dois deles. Quem se interessar por esse tema pode consultar outras alternativas na
coletânea Sintaxe, sintaxes (OTHERO; KENEDY, 2015) e no livro Grammatical theory: from transformational grammar to
constraint-based models (MÜLLER, 2019).
5 Ok, foco no “quase”: eu reconheço que “laô” é mais esquisito que “dia bom”, e há um motivo para isso: por mais que “bom
dia” constitua uma sequência fixa, imutável, suas partes componentes correspondem a palavras independentes, que podem
ser usadas em outras sequências e em diferentes ordens (“bom jogo”, “jogo bom”, “feliz aniversário”, “aniversário feliz”).
11
APRENDIZES SURDOS E ESCRITA EM L2:
REFLEXÕES TEÓRICAS E PRÁTICAS
Palavras e sequências de palavras não podem, contudo, ser toda a história. Afinal, se nosso
conhecimento do português, por exemplo, fosse apenas uma lista de palavras (“mesa”, “justiça”, “de”)
e expressões fixas (“bom dia”, “nem tudo o que reluz é ouro”), jamais seríamos capazes de produzir (e
entender) enunciados inéditos. E, evidentemente, nós temos essa capacidade: eu posso produzir agora
uma sentença estranhíssima – digamos, “meus nove bisnetos vermelhos e hexagonais comeram arroz
azuis” – e você não terá a menor dificuldade de interpretá-la (você pode, claro, estranhar a coloração
dos meus bisnetos, mas isso só prova sua capacidade de interpretar a frase). Para a LFC, os grandes
culpados por essa capacidade são os padrões gramaticais que nós armazenamos como parte do nosso
conhecimento linguístico.
Mas aqui há uma ressalva importante. Para a LFC, uma estrutura sintática não é apenas uma
estrutura sintática: é um padrão formal pareado a um valor semântico. Em outras palavras, o que o
falante armazena não é simplesmente uma estrutura do tipo SUJEITO + VERBO + OBJETO, e sim
algo como SUJEITO/AGENTE + VERBO/AÇÃO + OBJETO/TEMA8. Trata-se, portanto, de
um padrão simultaneamente sintático e semântico, já que especifica, ao mesmo tempo, informações
sintáticas (a estrutura de constituintes) e semânticas (incluindo o tipo de evento veiculado e os papéis
temático envolvidos).
Nesse modelo, como se vê, um dado padrão sintático é atrelado direta e convencionalmente a
um valor semântico específico. Isto é, dizemos que o padrão sintático SUJEITO + VERBO + OBJETO
6 Na verdade, quaisquer palavras que apareçam juntas com frequência tendem a ser armazenadas pelo falante como uma
unidade – mesmo que o significado do todo seja computável a partir da soma das partes (o que não é o caso de sequências
como “bom dia” e “chutar o balde”). Por exemplo, dependendo da sua experiência com a língua portuguesa, é possível que
você armazene como uma unidade coisas como “frio e calculista”, “cão bravo”, “chã, patinho e lagarto” e “Hoje tem gol do
Gabigol”.
7 Esta é uma notação simplificada e imprecisa dessa estrutura. Uma representação completa deveria, no mínimo, especificar
a estrutura hierárquica de constituintes e o fato de que o sujeito e o objeto são sintagmas nominais. A opção pela notação
simplificada se justifica na medida em que se trata de uma representação (i) convencional e amplamente utilizada, o que torna
seu emprego uma estratégia didática e (ii) suficiente para os propósitos deste capítulo.
8 O padrão SUJEITO + VERBO + OBJETO pode veicular outros significados, como o de experiência (“João gostou do
sorvete”), indicação de pesos e medidas (“João pesa 80 quilos”, “O objeto mede 30 centímetros”), etc. Uma hipótese plausível
é a de que esses diferentes significados estejam associados a construções gramaticais distintas. Nesse sentido, a descrição
acima, evidentemente informal e incompleta, se aplica a apenas uma das construções SUJEITO + VERBO + OBJETO do
português brasileiro.
12
LINGUÍSTICA FUNCIONAL-COGNITIVA:
FUNDAMENTOS TEÓRICOS E APLICAÇÃO AO ENSINO DE LÍNGUA
significa ALGUÉM AGE SOBRE ALGO, exatamente da mesma maneira como podemos afirmar que a
sequência fonológica /meza/ significa “móvel formado por uma superfície horizontal e um ou mais pés
que o sustêm [...]”9, que a sequência fonológica /boN dia/ significa “cumprimento ou saudação que se
dirige a alguém na parte da manhã”10 ou que o padrão entoacional ascendente significa uma pergunta.
Observe a analogia:
FORMA SIGNIFICADO
/meza/ “Móvel formado por uma superfície horizontal e um ou
mais pés que o sustêm [...]”
/boN dia/ “Cumprimento ou saudação que se dirige a alguém na parte
da manhã”
SUJEITO + VERBO + OBJETO ALGUÉM AGE SOBRE ALGO
No vocabulário da LFC, dizemos que todos os itens acima (na ordem: uma palavra, uma
expressão fixa, uma estrutura sintática e uma estrutura prosódica) são unidades simbólicas. Para entender
esse conceito, imagine duas crianças que, ao brincar de luta, usam colheres de pau como espadas. As
colheres, claro, não são espadas (felizmente): seu material e seu formato são bem diferentes dos de uma
espada real. Mas, naquele contexto, elas simbolizam espadas. Temos então uma forma (um instrumento
específico, feito de madeira e exibindo um formato particular) que, por força de uma convenção (entre
as duas crianças), passa a significar – ou simbolizar – algo que ela não é inerentemente (a espada). O
mesmo acontece acima: trata-se de elementos formais que, por convenção, simbolizam ideias que não
lhe são inerentes: a forma /meza/ simboliza a ideia de um tipo de móvel, a forma SUJEITO + VERBO
+ OBJETO simboliza a ideia de um alguém agindo sobre alguma coisa, e por aí vai11.
9 Adaptei aqui a definição do Michaelis Moderno Dicionário da Língua Portuguesa, disponível em michaelis.uol.com.br,
acessado em 06/10/19.
10 Mais uma vez, o Dicionário Michaelis online me salvou – acesso novamente em 06/10/19.
11 Sobre os exemplos da tabela acima, fazemos aqui duas observações marginais. Em primeiro lugar, é evidente que a
descrição de cada construção está constrangedoramente simplificada. Isso é decorrência do fato de que este não é um estudo
descritivo, e sim um texto teórico, no qual a apresentação de um conjunto de construções particulares serve tão-somente
para ilustrar os conceitos que estão sendo desenvolvidos (a rigor, cada uma das construções mencionadas aqui mereceria um
extenso estudo próprio). Em segundo lugar, e apesar disso, vale notar que as construções elencadas ilustram diferentes tipos
de significado: enquanto “mesa” e SUJEITO + VERBO + OBJETO apresentam um significado representacional (isto é,
mais propriamente “semântico”), “bom dia” e entonação ascendente têm uma função interacional (isto é, mais propriamente
“pragmática”).
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APRENDIZES SURDOS E ESCRITA EM L2:
REFLEXÕES TEÓRICAS E PRÁTICAS
Para a LFC, saber uma língua é, fundamentalmente, dominar um amplo repertório de unidades
simbólicas – incluindo palavras, expressões fixas e padrões12. Desses três tipos de unidades, os padrões são
os mais importantes, já que são eles, como dissemos, os responsáveis pela nossa capacidade de produzir
e compreender enunciados inéditos. No entanto, diferentemente das palavras e expressões, padrões não
estão diretamente presentes no input a que a criança tem acesso: ela pode ouvir alguém dizer “mesa”,
mas não ouvirá uma frase do tipo “Filhinho, sujeito verbo objeto!” (espera-se)13. Como, então, o falante
chega a conhecer esses padrões? Essa pergunta nos leva ao nosso segundo princípio.
Em 1980, a psicóloga Mary Gick e o cientista cognitivo Keith Holyoak relataram um experimento
interessante. Nesse experimento, um grupo de pessoas era apresentado a um desafio médico e deveria
pensar em soluções. Eis o desafio:
Suponha que você é um médico que se depara com um paciente que
tem um tumor maligno no estômago. É impossível operar o paciente,
mas, se o tumor não for destruído, ele morrerá. Existe um tipo de raio
que pode ser usado para destruir o tumor. Se os raios alcançarem o tumor
de uma só vez com intensidade suficientemente alta, ele será destruído.
Infelizmente, nessa intensidade, o tecido saudável que será atravessado
pelos raios também será destruído. Em intensidades mais baixas, os raios
são inofensivos para o tecido saudável, mas também não afetam o tumor.
Que tipo de procedimento pode ser usado para destruir o tumor com os
raios e, ao mesmo tempo, evitar a destruição do tecido saudável? (GICK;
HOLYOAK, 1980:307-308).
Este não é um desafio fácil; com efeito, entre os participantes que tentaram resolvê-lo sem
nenhum tipo de pista ou ajuda, apenas 20% conseguiram oferecer uma resposta apropriada. E mais:
das duas respostas que os pesquisadores consideravam aceitáveis, uma delas não foi citada por nenhum
participante.
Mas, no mesmo experimento, um outro grupo teve vida um pouco mais fácil: foram pessoas que,
antes de receber o desafio acima, leram uma história sobre a deposição de um ditador autoritário. Diz a
história:
12 Isto é uma simplificação. Para além disso, é preciso saber ainda em que condições essas unidades simbólicas podem ser
combinadas a fim de produzir sentenças concretas – e que combinações gerariam resultados agramaticais.
13 Evidentemente, a tarefa de destacar uma palavra – como “mesa” – na corrente contínua da fala não é trivial; no entanto,
não vamos tratar desse ponto aqui.
14
LINGUÍSTICA FUNCIONAL-COGNITIVA:
FUNDAMENTOS TEÓRICOS E APLICAÇÃO AO ENSINO DE LÍNGUA
Para as pessoas que leram a história acima, o desafio do tumor maligno pareceu bem menos
misterioso: 100% delas foram capazes de oferecer pelo menos uma resposta correta para o dilema médico.
E, mais do que isso, todos eles propuseram a seguinte solução: se vários raios de baixa intensidade
fossem administrados ao mesmo tempo sobre o paciente, a partir de pontos de partida distintos, eles não
afetariam o tecido saudável mas, ao se juntarem na região do tumor, teriam força suficiente para destruí-
lo14.
Evidentemente, o que permitiu que esse segundo grupo se saísse muito melhor do que o primeiro
foi o fato de ter acesso à história sobre a derrocada do ditador autoritário. Mas, convenhamos, uma
narrativa militar sobre um ditador autoritário é uma coisa muito diferente de um dilema médico sobre
um paciente terminal. Por isso, para conseguir tirar vantagem da história do ditador, os participantes
tiverem que colocar em uso uma habilidade mental poderosa: a analogia.
Funciona assim: ao ler a história do ditador e o dilema médico, os participantes foram capazes
de estabelecer, de forma mais ou menos consciente, correspondências analógicas entre as duas situações.
Por exemplo: o tumor corresponde à fortaleza; o médico corresponde ao general; o raio corresponde
ao exército; os raios de baixa intensidade correspondem ao exército dividido em pequenos grupos;
14 O artigo de Gick e Holyoak (1980) é mais complexo: na verdade, foram feitos cinco experimentos distintos, e neste que
estamos relatando alguns participantes ofereceram mais de uma solução – ora igualmente correta, ora incorreta. Mas nada
disso afeta o argumento que desenvolveremos aqui.
15
APRENDIZES SURDOS E ESCRITA EM L2:
REFLEXÕES TEÓRICAS E PRÁTICAS
as trajetórias com tecidos saudáveis correspondem às estradas com minas, e por aí vai. E mais: como
resultado dessas correspondências, esses participantes provavelmente criaram uma espécie de padrão
genérico, que traduz a uma situação abstrata. Algo mais ou menos assim: se eu tenho algo prejudicial
(seja um tumor ou a fortaleza de um ditador, ou qualquer outra coisa) que só pode ser destruído com uma
força intensa (seja um raio ou um exército, ou qualquer outra coisa) e, ao mesmo tempo, o uso dessa força
pode destruir algo benéfico no caminho (seja um tecido saudável ou uma estrada, ou qualquer outra
coisa), posso dividi-la em “forças menores” em um primeiro momento e induzi-las a se juntar logo antes
de alcançar o alvo.
A formação desse padrão genérico é útil porque nos ajuda a lidar com situações futuras. Por
exemplo, no momento em que você for o cientista da NASA responsável por destruir um meteoro
gigante antes que ele se choque com a Terra, mas esteja impedido de lançar seu raio laser superpotente
de uma só vez porque o meteoro está cercado por satélites artificiais que só conseguem resistir a raios de
baixa intensidade, não vai ter dificuldade em se sair com uma solução brilhante: basta lançar vários raios
fraquinhos de posições distintas.
Estou aqui falando de uma forma de raciocínio que pode ajudar um médico a salvar a vida dos
seus pacientes (ou generais audaciosos a libertar povos oprimidos, ou cientistas da NASA a impedir o
extermínio da raça humana). Mas a habilidade de estabelecer correspondências analógicas, levando
assim à emergência de padrões genéricos, é muito mais trivial e cotidiana: no fim das contas, é isso que
nós fazemos quando vemos vários gatos diferentes (estabelecemos correspondências analógicas entre eles
e formamos uma representação abstrata do conceito de GATO), quando assistimos a vários jogos de
futebol distintos (estabelecemos correspondências analógicas entre eles e formamos uma representação
abstrata do conceito de JOGO DE FUTEBOL), ou quando provamos uma série de pratos salgados
(estabelecemos correspondências analógicas entre eles e formamos uma representação abstrata do
conceito de SALGADO).
E o que isso tem a ver com linguagem? Ora, se a experiência com gatos diferentes (amarelos,
brancos, pretos; com orelha maior ou menor; mais magros e mais gordos) nos leva a construir uma
representação genérica de GATO, que por sua vez nos permite reconhecer novos gatos como pertencentes
a essa categoria, por que o mesmo não aconteceria como resultado da experiência de ouvir uma série de
sentenças distintas? Muito bem: essa é precisamente a aposta da LFC. A ideia aqui é que o mecanismo
cognitivo geral de analogia permite a formação de padrões gramaticais (exatamente do mesmo modo
como ele possibilita a formação de padrões não gramaticais), que por sua vez nos permitem reconhecer
e produzir enunciados inéditos que se encaixem nos padrões previamente formados (exatamente do
mesmo modo como ele permite reconhecer gatos nunca antes vistos).
É esse tipo de processo cognitivo que, segundo a LFC, leva à formação de um padrão como
SUJEITO + VERBO + OBJETO, usado como exemplo de unidade simbólica na seção anterior. Por
essa lógica, a experiência com sentenças variadas do tipo Gabriel chutou a bola, Jorge empurrou a
16
LINGUÍSTICA FUNCIONAL-COGNITIVA:
FUNDAMENTOS TEÓRICOS E APLICAÇÃO AO ENSINO DE LÍNGUA
porta e O menino enfeitou a sala leva o falante a (i) observar as correspondências formais e semânticas
entre elas e (ii) formar, a partir dessas correspondências, um padrão genérico que capture as afinidades
formais e semânticas observadas e (iii) utilizar esse padrão genérico em situações futuras, produzindo e
interpretando sentenças novas (por exemplo, O gato rosa arranhou a nuvem).
O ponto principal aqui é que tanto a habilidade de fazer analogias quanto a capacidade (dela
decorrente) de construir padrões genéricos (e, ainda, de utilizar esses padrões para fazer sentido de
experiência novas) não são especificamente linguísticas: são operações mentais que atravessam diferentes
domínios da cognição humana, e por isso são amplamente estudados por psicólogos e cientistas
cognitivos que não estão interessados, primariamente, em questões de linguagem – como vimos no caso
do experimento de Gick e Holyoak (1980). A lógica da LFC é exatamente esta: se existe um conjunto de
operações mentais cuja existência e importância deve ser reconhecida independentemente de questões
relacionadas à linguagem, então o plano A dos linguistas deve ser o de tentar descrever e explicar o
conhecimento linguístico recorrendo unicamente a essas operações – postular processos adicionais,
especificamente linguísticos, é uma carta na manga que deveria ser usada apenas no caso de fracasso do
plano A.
A tradição da linguística gerativa tende a aderir a duas premissas claramente relacionadas: (i) o
conhecimento linguístico do falante é parcialmente inato, isto é, já nascemos com algumas informações
sintáticas instaladas “de fábrica” e (ii) a exposição aos dados linguísticos do ambiente contribui para
o desenvolvimento da competência linguística do falante até uma certa idade – depois desse estágio,
conhecido como período crítico, o conhecimento linguístico se congela, não sendo mais afetado pela
experiência. A LFC vai na contramão dessas duas ideias: sua aposta é a de que (i) não existe conhecimento
especificamente sintático inato, de modo que todas as generalizações gramaticais devem ser inferidas a
partir dos dados do ambiente e (ii) a experiência linguística afeta o conhecimento subjacente de forma
permanente, durante toda a vida do indivíduo.
17
APRENDIZES SURDOS E ESCRITA EM L2:
REFLEXÕES TEÓRICAS E PRÁTICAS
Mas como, exatamente, a experiência linguística do falante – isto é, suas interações cotidianas
mediadas pela linguagem (seja falando/sinalizando, ouvindo/vendo, escrevendo ou lendo) – afeta o
seu saber gramatical implícito? De várias maneiras. A mais óbvia delas, talvez, é o reforço de certas
representações cognitivas – e o “desbotamento” de outras. Se nós vemos um rosto repetidamente,
conseguimos evocá-lo na memória de forma muito vívida; inversamente, se deixamos de encontrar
alguém, a imagem do rosto dessa pessoa vai se esvaecendo aos poucos. Se o que vale para a cognição não-
linguística vale também para a cognição linguística (lembre-se do nosso princípio número 2), podemos
esperar que palavras muito frequentes tenham representações particularmente fortes na memória do
falante, que palavras pouco frequentes tenham representações relativamente mais fracas e que palavras
que deixem de ser frequentes tenham suas representações progressivamente mais enfraquecida. Além
disso (lembre-se também do nosso princípio número 1), o que vale para palavras vale também para
expressões fixas e para padrões: como regra geral, unidades simbólicas mais frequentes na experiência (no
uso) têm uma representação mais enraizada, mais reforçada na memória (no conhecimento subjacente).
Interessantemente, esse fato tem consequências não triviais para a mudança linguística.
Considere, por exemplo, um tipo de mudança morfológica do inglês que resulta de analogia. Nessa
língua, a maneira mais comum de se flexionar um verbo no passado é acrescentar um -ed ao final: “play”
(‘jogar’), “played” (‘joguei’, ‘jogou’, etc.); “kick” (‘chutar’), “kicked” (‘chutei’, ‘chutou’, etc.). Mas nem
todos os verbos seguem esse padrão: “weep” (‘chorar’, ‘derramar lágrimas’), por exemplo, tem como
forma de passado “wept” (‘chorei’, ‘derramei lágrimas’; ‘chorou’, ‘derramou lágrimas’, etc.). Ou seja:
“everyday I weep” (‘todos os dias eu choro / derramo lágrimas), “yesterday I wept” (‘ontem eu chorei
/ derramei lágrimas’). O padrão se aplica a “sleep” (‘dormir’), cujo passado é ‘slept’ (‘dormi’, ‘dormiu’,
etc.): “everyday I sleep” (‘todos os dias eu durmo’), “yesterday I slept” (‘ontem eu dormi’).
E o que isso tem a ver com a frequência de uso e seu efeito sobre a memória? Tudo. Se você prestar
atenção em como falantes nativos do inglês falam no mundo real (ou fizer uma busca no Google), vai ver
que às vezes eles dizem “weeped” – ou seja, formam o passado de “weep” da mesma maneira como fazem
com “play” (“played”) e “kick” (“kicked”), como se fosse um verbo regular. Mas, surpreendentemente,
isso não acontece com “sleep”: eles não dizem (ou muito raramente dizem) “sleeped”.
Por que isso? Por que os falantes tratam “weep” e “sleep” de forma diferente? Duas respostas:
(i) frequência de exposição; (ii) efeito da frequência de exposição sobre a representação das palavras na
memória. A lógica é a seguinte: como “sleep” é um verbo mais frequente que “weep”, falantes do inglês
ouvem muito mais “slept” do que “wept”. Como nós já dissemos, a exposição repetida a um determinado
item fortalece sua representação na memória do indivíduo. Por isso, quando um norte-americano (por
exemplo) precisa contar ao médico que dormiu mal na noite passada, a forma “slept” está quase gritando
dentro cabeça dele – quer dizer, a representação mental dessa palavra é bastante robusta, o que significa
que ela está facilmente disponível. Por outro lado, se ele quiser dizer que a causa do sono ruim foi ter
chorado muito, e para isso decidir usar o verbo “weep”, é possível que tenha problemas: como a forma
“wept” é bem menos frequente, sua representação mental é menos robusta, o que significa que ela não
18
LINGUÍSTICA FUNCIONAL-COGNITIVA:
FUNDAMENTOS TEÓRICOS E APLICAÇÃO AO ENSINO DE LÍNGUA
está tão prontamente disponível para ser usada. Como resultado, pode ser que na hora, no calor do
momento, ele se saia com um “weeped”, aplicando para esse item o padrão dos verbos regulares15.
O fato de que falantes do inglês regularizam bem mais frequentemente o verbo “weep” (produzindo
“weeped”) do que o verbo “sleep” (produzindo “sleeped”) é uma evidência de que a frequência de
exposição a uma palavra (ou expressão, ou padrão gramatical) afeta a maneira como ela é registrada
na memória – e pode até mesmo selar o destino de certas formas linguísticas (se a forma “wept” acabar
morrendo de vez, terá sido consequência do fato de ser pouco usada). No fim das contas, vale para
unidades linguísticas o que vale para rostos, números de telefone (que ninguém mais decora, depois do
advento do celular) e tudo o mais: a experiência concreta, ou a falta dela, afeta a maneira como são
construídas as representações mentais. É o que sustenta o princípio 3 da LFC.
Por limitações de espaço (e, sobretudo, de competência do autor), esta seção sobre ensino de
língua será necessariamente breve. O objetivo aqui é apenas dar uma ideia de como a concepção de
língua da LFC pode fornecer insights úteis para o ensino de língua adicional (incluindo o ensino de
português escrito para aquelas pessoas que têm outro idioma, incluindo a Libras, como sua primeira
língua).
A ideia-chave aqui é a de que (i) saber uma língua é dominar um repertório de unidades simbólicas
e (ii) entre essas unidades, estão palavras, expressões fixas e padrões gramaticais. Em particular, gostaria
de chamar atenção especial para os padrões: embora, para a maioria das pessoas leigas, a palavra seja
a unidade mais evidente quando se pensa em língua, o coração da nossa capacidade linguística reside
nos padrões – porque são eles que permitem criar e compreender sentenças inéditas (como vimos lá na
primeira seção deste texto).
Por isso, se alguém pretende ensinar uma língua para um falante não-nativo, deve dar uma
atenção especial a essas estruturas. Em particular, é importante que, nas produções linguísticas do aluno,
o professor procure verificar quais sequências de palavras correspondem a padrões que não existem na
língua-alvo. Se saber uma língua é conhecer um inventário estruturado de unidades simbólicas, esse
exercício, por parte do professor, permitirá que ele identifique quais unidades ainda não estão presentes
no repertório do aprendiz. A título de exemplo, pensemos em um aluno brasileiro hipotético, falante
nativo de português, que esteja se dedicando a aprender inglês. É possível que esse aluno produza
19
APRENDIZES SURDOS E ESCRITA EM L2:
REFLEXÕES TEÓRICAS E PRÁTICAS
Um professor que se depare com esse tipo de uso precisará identificar qual é o padrão que está
por trás dos dois enunciados. Vamos lá: nos dois casos temos um sujeito (respectivamente, “I” ‘eu’ e
“He” ‘ele’) seguido de um verbo (respectivamente, “wonder” ‘perguntar-se’ / ‘querer saber’ e “ask”
‘perguntar’) seguido de uma oração em função de complemento verbal (respectivamente, “where is his
office” ‘onde fica o escritório dele’ e “where live my parents” ‘onde vivem meus pais’). Por sua vez, essa
oração, que funciona como complemento verbal, é introduzida pela palavra “where” e tem seu próprio
sujeito (respectivamente, “his office” ‘o escritório dele’) e seu próprio verbo (respectivamente, “is” ‘fica’
‘é’ e “live” ‘vivem’). Podemos representar esse padrão, informalmente, da seguinte maneira:
O professor de inglês, porém, sabe que um falante nativo não produziria sentenças como (1) e (2).
Em vez disso, ele falaria assim:
16 Por sorte esta será uma tarefa de outros capítulos deste e-book.
20
LINGUÍSTICA FUNCIONAL-COGNITIVA:
FUNDAMENTOS TEÓRICOS E APLICAÇÃO AO ENSINO DE LÍNGUA
Com base em sentenças como (3) e (4), o professor pode concluir que o padrão gramatical
verdadeiramente presente no repertório linguístico de um falante nativo é o seguinte:
Ao identificar quais são os padrões da gramática do aprendiz que não coincidem com aqueles do
falante nativo, o professor se torna capaz de intervir didaticamente sobre eles. Isto é, ele pode desenvolver
atividades que (i) tornem o aluno consciente da discrepância e (ii) promovam a produção de sentenças
compatíveis com o padrão do falante nativo. Evidentemente, essa intervenção pode tomar diferentes
formas – desde tarefas que promovam a análise linguística consciente por parte do aluno até atividades
de produção mais ou menos controlada.
Como dissemos acima, o objetivo aqui não é o de desenvolver longamente uma reflexão teórica
acerca do ensino de língua adicional – e, muito menos, o de propor atividades didáticas específicas16.
Nosso objetivo, na verdade, era bem mais modesto: tratava-se simplesmente de mostrar como a concepção
de língua como repertório de padrões (mais precisamente, repertório de unidades simbólicas, incluindo
padrões) permite entrever um tipo de prática pedagógica que pode ser útil no ensino de língua adicional.
5. PALAVRAS FINAIS
Este capítulo procurou apresentar uma síntese do paradigma teórico conhecido como Linguística
Funcional-Cognitiva, que se caracteriza pela concepção de conhecimento linguístico como inventário de
unidades simbólicas, pela ênfase sobre processos cognitivos de domínio geral (isto é, não especificamente
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APRENDIZES SURDOS E ESCRITA EM L2:
REFLEXÕES TEÓRICAS E PRÁTICAS
linguísticos) e pela centralidade atribuída ao uso linguístico (na formatação do conhecimento subjacente).
Em particular, é minha expectativa que esta introdução permita ao professor de língua adicional conceber
o conhecimento linguístico do aprendiz como um amplo conjunto de padrões sintático-semânticos, o
que talvez possa levar, num segundo momento, ao desenvolvimento de práticas didático-pedagógicas
eficazes.
REFERÊNCIAS
GICK; M. L.; HOLYOAK, K. Analogical problem solving. Cognitive Psychology, 12, 1980, pp. 306-
355
OTHERO, G. A.; KENEDY, E. Sintaxe, sintaxes: uma introdução. São Paulo: Contexto, 2015.
PINKER, S. Words and rules: the ingredients of language. New York: Harper Collins, 1999.
22
AQUISIÇÃO DE LINGUAGEM E
MODELOS BASEADOS NO USO
INTRODUÇÃO
Não é recente o interesse dos estudos linguísticos pelas questões relativas à aquisição da linguagem:
como adquirimos uma língua? qual a importância da experiência? adquirir uma língua pressupõe
externalizar um conhecimento prévio, herdado geneticamente? ou adquirir uma língua pressupõe a
construção de um conhecimento, o que é possível graças a habilidades cognitivas de domínio geral
inerentes à espécie humana? Ao longo do tempo, os estudos linguísticos – sobretudo após o século XX –
tentam explicar como uma criança, em tão pouco tempo e sem treinamento específico, é capaz de passar
de um estado em que não se expressa verbalmente para um outro em que domina um conjunto de itens,
estruturas e mecanismos complexos que lhes permitem não só a própria produção verbal, como também
a compreensão do que outros usuários de sua língua expressam verbalmente.
O presente capítulo tem por objetivo apresentar os princípios e mecanismos para aquisição de
linguagem de acordo com os Modelos Baseados no Uso (MBU), trazendo evidências para se pensar a
linguagem – e, portanto, sua aquisição – em um plano mais geral da cognição humana. Em um primeiro
momento, as duas grandes hipóteses para a aquisição da linguagem serão apresentadas, ressaltando-se as
divergências entre as referidas hipóteses, a fim de estabelecer um marco inicial para as reflexões que serão
desenvolvidas. Em seguida, serão expostos os princípios teóricos de aquisição da linguagem na visão dos
MBU, de forma a explicitar as propriedades cognitivas inatas que, para tal modelo, regem a aquisição
2 Universidade Federal do Rio de Janeiro; Faculdade de Letras; Departamento de Letras - Libras; robertofrei@letras.ufrj.br
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APRENDIZES SURDOS E ESCRITA EM L2:
REFLEXÕES TEÓRICAS E PRÁTICAS
de linguagem. Por fim, será feita uma reflexão a partir dos pressupostos e evidências apresentados, para
tratarmos, em linhas gerais, da aquisição de linguagem de crianças surdas.
De uma maneira geral, podemos situar questões referentes à aquisição da linguagem em torno de
duas grandes hipóteses: a inatista e a emergentista. A perspectiva inatista assume que aspectos importantes
do conhecimento linguístico das crianças não são adquiridos simplesmente pela experiência, posto que
determinadas informações linguísticas estariam presentes desde o nascimento do bebê e, para alguns
pesquisadores, estariam codificadas no genoma. Essa perspectiva assume que o conhecimento linguístico
da criança consiste no conhecimento de regras formais ou operações a que são submetidas categorias
linguísticas abstratas, tais como, as regras para formação de uma sentença (combinação de nome + verbo
= Maria comprou uma bolsa) ou a formação de plurais regulares (acréscimo de –s no final da palavra).
Essa hipótese assume, portanto, que o conhecimento das categorias gramaticais, estruturas e operações
é inato.
Dentre as propostas sob a perspectiva inatista, aquela mais difundida foi formulada por Chomsky
e tem como ponto de partida a crítica à proposta behaviorista que o antecedeu. Em síntese, a crítica
de Chomsky baseava-se no conhecido Problema de Platão: como sabemos tanto, se temos tão poucas
evidências frente à riqueza de possibilidades de nossa produção? Em outras palavras, Chomsky refutou
a ideia segundo a qual uma criança adquiriria uma língua com base em princípios de associação e
indução, uma vez que a criança não teria evidências linguísticas, a partir do input, suficientes para
construir aspectos muito abstratos, e por conseguinte, produtivos, da língua. Chomsky situa a questão da
aquisição de linguagem na aparente lacuna entre conhecimento e experiência, lacuna esta que ficaria
evidente no fato de as crianças aprenderem qualquer língua de forma rápida e eficiente, mesmo que
sejam expostas a dados ambientais com – os assim considerados – ruídos, limitações e imperfeições.
Assim, a solução de Chomsky para preencher essa lacuna é a assunção segundo a qual os seres
humanos seriam dotados de uma faculdade inata da linguagem, geneticamente programada e que
possuiria um conjunto abstrato de princípios norteadores da aquisição. A teoria gerativa utiliza-se desses
e outros argumentos para postularem a existência de uma Gramática Universal (GU) específica do ser
humano. Chomsky (1965) propõe que a criança teria um dispositivo inato (Language Acquisition Device
(DAL)) que é ativado, no curso de aquisição, e trabalha a partir da exposição a uma língua. O resultado
da exposição ao input seria a aquisição da gramática da língua à qual a criança está exposta. Esse
dispositivo, por sua vez, seria formado por uma série de regras e a criança, em contato com as sentenças
de uma língua, selecionaria as regras que funcionam naquela língua em questão, descartando as que
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AQUISIÇÃO DE LINGUAGEM E
MODELOS BASEADOS NO USO
nela não teriam papel significativo (aprendizagem por esquecimento). Para a hipótese inatista, existiria
“um módulo mental para a linguagem”, o que faz com que a inteligência geral e a capacidade linguística
sejam entidades separadas (cf. JABLONKA e LAMB, 2010: 356).
Ainda de acordo com Ferrari (2016: 149), partindo desta nova perspectiva, os MBU defendem que
a estrutura linguística emerge a partir da experiência, do uso, com a língua, minimizando, assim, o possível
papel de estruturas inatas e específicas da linguagem. Ao postularem que a aprendizagem de estruturas
linguísticas ocorre, em grande parte, a partir da aprendizagem real, via experiência, os MBU não negam
a existência de uma base biológica necessária à aquisição de linguagem, mas questionam a necessária
existência de um sistema cognitivo inato específico da linguagem. Em outras palavras, os MBU refutam
a existência de uma Gramática Universal, sem, no entanto, negar o caráter biológico da linguagem.
Para tal, os MBU sustentam que habilidades sociocognitivas são usadas na aquisição de uma língua e
enfatizam que a estrutura linguística emerge do uso, destacando a dimensão simbólica como essencial à
linguagem. Assim, conforme Jablonka & Lamb (2010: 356), essa hipótese concebe a linguagem como um
produto de processos de transmissão cultural e mecanismos cognitivos gerais, resultado independente de
um mecanismo genético próprio para que uma criança adquira uma determinada língua.
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APRENDIZES SURDOS E ESCRITA EM L2:
REFLEXÕES TEÓRICAS E PRÁTICAS
aquisição da linguagem seria explicada pelo papel de habilidades sociocognitivas humanas e os dados do
input teriam caráter mais realístico em função de fatores como a frequência de uso e o papel do contexto
comunicativo em que emergem.
A linguagem humana constitui, então, uma das habilidades sociocognitivas e revela a capacidade
dos seres humanos para simbolizar de acordo com as experiências vivenciadas, bem como por meio da
interação com outros usuários maduros. Da mesma forma, a linguagem revela a capacidade dos seres
humanos para discriminar e produzir uma variedade de padrões, sonoros e visuais, linguisticamente
relevantes. Nesse sentido, por meio do uso de símbolos empregados na comunicação intersubjetiva,
padrões de uso emergem e se consolidam como construções gramaticais. Assim, a competência linguística,
para os MBU, consiste no domínio de pareamentos forma/função, itens e estruturas, que compõem uma
determinada língua e que se constituem em representações linguísticas diversas e que reformulam o
conceito de gramática nuclear.
De acordo com os MBU, itens lexicais específicos constituem símbolos linguísticos com significados
particulares que dão origem a um conjunto de construções gramaticais do repertório dos adultos. Assim,
a aquisição da linguagem consiste no armazenamento cognitivo de construções - pareamentos forma/
função - que se constituem em “unidades linguísticas de tamanhos variados e graus de abstrações
crescentes” e no fato de que “conforme o tamanho e grau de abstrações das construções aumentam, a
criatividade linguística também começa a emergir de forma compatível com o evento de uso em curso”
(Ferrari, 2016: 150).
Tomasello (2005: 690) sustenta que “a linguagem não é primária; é derivada”, ou seja, não surge
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AQUISIÇÃO DE LINGUAGEM E
MODELOS BASEADOS NO USO
na espécie como uma cognição específica e independente de outras cognições, sendo derivada dessas.
Em outras palavras, para o autor (op. cit.)
a linguagem repousa sobre as mesmas habilidades cognitivas e sociais
subjacentes que levam as crianças a apontar para as coisas e mostrar as
coisas para outras pessoas declarativa e informativamente, de uma forma
que os outros primatas não fazem (2005:690).
O autor acrescenta ainda que a linguagem emerge junto com outras habilidades exclusivamente
humanas, tais como gestos declarativos, colaboração, imitação etc., sendo a linguagem “responsável pela
compreensão e partilha de intenções”. Ainda de acordo com Tomasello, as habilidades cognitivas gerais
que permitem a aquisição de linguagem são a leitura de intenções e a identificação de padrões, revisadas
a seguir.
3. LEITURA DE INTENÇÕES
Bybee (2016) coloca, então, duas questões a respeito da imitação e de seu papel para a aquisição
de linguagem: (a) a imitação seria uma atividade ou capacidade inferior, a ponto de não participar da
aquisição de algo tão complexo quanto a linguagem? (b) o uso da imitação impediria outros mecanismos
cognitivos? No que se refere à primeira questão suscitada, Arbid (2003) oferece evidências de que a
capacidade de imitar entre os não-humanos é bastante limitada. O autor mostra que, entre os chimpanzés,
a capacidade de imitar outros chimpanzés e até mesmo seres humanos é um processo muito mais longo
e trabalhoso se comparada à mesma habilidade entre os humanos.
Assim, se faz necessária a distinção proposta por Arbid (op. cit.) entre imitação simples e imitação
complexa. A imitação simples se limita à repetição de novas sequências de ações de curta duração, as
quais são orientadas diretamente para o objeto. Por outro lado, a imitação complexa envolve vários
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APRENDIZES SURDOS E ESCRITA EM L2:
REFLEXÕES TEÓRICAS E PRÁTICAS
processos, dentre os quais muitos são necessários à aquisição da linguagem (segmentar, reconhecer
variações, coordenar várias partes, entre outros). Ainda em relação à maior facilidade dos seres humanos
quanto à capacidade de imitar, o experimento de Bates et. al. (1991), em que um bebê humano e um
bebê chimpanzé foram criados na mesma casa, foi colocado em risco por várias vezes porque a criança
imitava e fazia uso produtivo de muitos comportamentos do chimpanzé, o qual, no tocante à imitação
do bebê humano, pouco se desenvolveu.
Relativamente à segunda questão levantada por Bybee (2016), a autora afirma que o papel da
imitação não exclui o papel de outros processos cognitivos. Ainda segundo Bybee, é certo que a imitação,
sozinha, não é suficiente para transmitir linguagem, sendo necessária uma capacidade que permita
que novas sequências imitadas sejam usadas produtivamente em situações novas. Para a autora, “[o]
reconhecimento de um nível alto de habilidade para imitação junto com habilidade para segmentar,
categorizar e recombinar dá uma oportunidade melhor de explicar o funcionamento da língua” (p.
39). Assim, os MBU ressignificam o papel da imitação para a aquisição de linguagem: não se trata
de uma imitação mecânica e descontextualizada, conforme defendido, na primeira metade do século
XX, pela teoria behaviorista (SKINNER, 1957); a imitação, para os MBU, se relaciona ao processo de
aprendizagem cultural e, portanto, consiste em uma ideia oposta à mímica simples em que o aprendiz
reproduz gestos e/ou comportamentos de modo desprovido de entendimento sobre o objeto que está
reproduzindo. A imitação nos MBU pressupõe que o aprendiz reproduza algo do qual compreenda o
propósito ou a função do referente ao comportamento que está reproduzindo (TOMASELLO, 2000:
238).
Além da habilidade para aprender culturalmente por meio das ações de outros, a leitura de
intenções abarca ainda a habilidade dos seres humanos de compartilhar atenção com seus semelhantes.
Assim, os seres humanos são capazes de dividir a atenção em torno de objetos e interesse em comum,
bem como dirigir sua atenção em direção a objetos que estejam distantes (ato de apontar). Todas as
habilidades envolvidas na leitura de intenções – e que, conforme já observado, não são específicas da
linguagem – são responsáveis por definir “a dimensão simbólica ou funcional da comunicação humana,
que envolve a tentativa de manipular os estados mentais ou intencionais de outras pessoas” (FERRARI,
2016: 153). Em outras palavras, por meio dessas habilidades, as crianças, por volta dos 09 a 12 meses
de vida, começam a acompanhar a direção do olhar dos adultos em direção aos objetos e, por meio da
imitação, aprendem a agir, de forma semelhante, sobre os objetos.
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AQUISIÇÃO DE LINGUAGEM E
MODELOS BASEADOS NO USO
4. IDENTIFICAÇÃO DE PADRÕES
Além da leitura de intenções, outra habilidade de domínio cognitivo geral que permite a aquisição
de linguagem é a habilidade para formar e identificar padrões. Por meio dessa habilidade, as crianças são
capazes de não só reconhecer padrões, como também de realizar análises estatísticas a partir dos eventos
que experienciam, incluindo os elementos de diferentes níveis que constituem a linguagem. Em outras
palavras, essa habilidade permite que crianças identifiquem padrões de uso de símbolos linguísticos e,
com base na identificação de tais padrões, construam níveis mais abstratos do conhecimento linguístico.
Saffran et al. (1996) realizaram experimento com bebês de 08 meses de idade, em que apresentaram
às crianças dois minutos de fala sintetizada com não-palavras (bidaku, padoti, golatuetupiro), as quais
eram ouvidas em diferentes sequências. Em seguida, novas sequências eram também apresentadas às
mesmas crianças, sendo as sequências com não-palavras colocadas ao lado esquerdo das crianças e as
que as crianças não haviam sido expostas, ao lado direito. De acordo com os resultados, as crianças
testadas tendiam a olhar em direção às cadeias sonoras que apresentavam palavras já conhecidas. Os
resultados trouxeram evidências de que as crianças, mesmo sem serem até então capazes de realizar
as primeiras palavras, já conseguiam inferir distribuição probabilística a partir do input, ao mostrarem
serem capazes de reconhecer, graças ao papel de sua frequência de uso, padrões silábicos em dada cadeia
sonora.
Além das habilidades cognitivas inatas, alguns mecanismos de processamento básico são necessários
para dar estrutura à língua: mecanismos por meio dos quais categorias são criadas (categorização) e
mecanismos por meio dos quais o uso de determinadas estruturas é estendido (analogia). As habilidades
cognitivas aliadas aos mecanismos cognitivos propiciam o aprendizado de determinado comportamento
humano, dentre os quais destaca-se a linguagem.
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APRENDIZES SURDOS E ESCRITA EM L2:
REFLEXÕES TEÓRICAS E PRÁTICAS
no input em um curto período de tempo. O autor sustenta que os bebês possuam uma faculdade inata
para categorizar a informação percebida no input e que tal capacidade permitiria aos bebês distinguir,
de uma forma mais geral, os diferentes falares. Segundo Jusczyk, os bebês agrupariam os sons, percebidos
desde a mais tenra idade de acordo com suas características acústicas, no caso das línguas orais, o que
lhes permitiria observar as frequências presentes em certos tipos de fala existentes no input. Num estágio
final, as discrepâncias observadas dentre as categorias poderiam ser um fator que levaria a uma seleção
de tipos particulares de falares, conduzindo a uma reorganização das categorias em si.
Jusczyk (1997) sustenta que as crianças nascem prontas para capturar sinais acústicos da fala,
sendo certo que a percepção de tais sinais começa mesmo antes do nascimento. A partir da captura de
sinais acústicos da fala, a criança, por meio de processos culturais transmitidos, começa a selecionar
os sons da língua a que se encontra exposta e, assim, constrói o seu conhecimento linguístico. O autor
sustenta que os bebês possuam uma faculdade inata para categorizar a informação contida no input e
que tal capacidade permitiria os bebês distinguir, de uma forma mais geral, os diferentes falares.
Segundo Jusczyk, os bebês agrupariam os sons percebidos desde a mais tenra idade de acordo
com suas características acústicas – ou dimensões fonéticas gerais –, o que lhes permitiria observar as
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AQUISIÇÃO DE LINGUAGEM E
MODELOS BASEADOS NO USO
frequências presentes em certos tipos de fala existentes no input. Num estágio final, as discrepâncias
observadas dentre as categorias poderiam ser um fator que levaria a uma seleção de tipos particulares
de falares, conduzindo a uma reorganização das categorias em si. Nesse sentido, de acordo com Jusczyk,
tais habilidades de categorização num estágio inicial forneceriam os fundamentos para o que poderia
ser descrito como aprendizado inato guiado. “A noção básica que está por trás desse aprendizado vem
da observação de que muitos organismos são programados para aprenderem coisas particulares de uma
maneira particular” (JUSCZYK, 1997:76).
Um aspecto interessante desse aprendizado inato guiado, segundo Jusczyk, é a velocidade com
que manifestam padrões de comportamento relativamente complexos durante um curto período de
desenvolvimento. Para o autor, o entendimento adequado para esse fato não está ligado à existência de
uma GU ou de um dispositivo biológico inato que aciona um conhecimento linguístico prévio e herdado
geneticamente. Para o autor em referência,
as habilidades perceptuais das crianças as colocam em posição de perceberem
o tipo de informação que lhes servirá futuramente para desenvolvê-las. No
caso da percepção da fala, adaptarem-se à categorização de sons da língua
que reflitam as regularidades estruturais subjacentes ao input, o que não
envolveria mecanismos de processamento perceptual especializados para
uma categorização inicial do sinal da fala, mas sim, uma propensão ou
interesse para abordarem tais sinais de uma determinada maneira. Esses
sinais particulares mais provavelmente sofreriam futuro processamento e
seriam armazenados na memória. Já os sons que se localizam fora dessa
margem de sinais significativos poderiam ainda ser processados pelo
conjunto de mecanismos perceptuais subjacentes. (JUSCZYK, 1997: 76).
Em outras palavras, sob o ponto de vista filogenético, inata seria a capacidade dos seres humanos
em aprender algo que já foi aprendido por usuários mais maduros: se a linguagem é um dos produtos
de uma evolução cultural, o seu aprendizado será guiado pela experiência transmitida por meio dessa
mesma evolução cultural. Ademais, sob o ponto de vista ontogenético, Jusczyk ressalta que há indícios de
que as crianças respondem de maneira diferenciada a sinais de fala com relação a outros tipos de sinais
acústicos e que há também indícios de que bebês demonstram maior preferência pela voz feminina. Essa
propensão dos bebês em reagir de maneira diferenciada à voz humana – de preferência, à voz feminina
– tem origem na fase uterina, quando a voz da mãe é o estímulo sonoro melhor percebido pelos fetos.
Durante o primeiro ano de vida, dramáticas mudanças ocorrem no modo pelo qual crianças
processam os sons da fala. Além disso, os tipos de mudanças que ocorrem parecem estar especificamente
relacionados aos tipos de input a que as crianças estão expostas. Há evidência de que elas podem
perceber contrastes de sons da língua nativa e sons que não pertencem à língua nativa, em fases iniciais
do desenvolvimento. Porém, observa-se um declínio de tal faculdade entre 06 e 12 meses, indicando
uma possível migração de uma classificação fonética para uma fonêmica, a qual refletirá a organização
da língua nativa em fase de aquisição. Essa capacidade para distinguir contrastes da língua não-nativa
se deteriora quando não são recebidos estímulos suficientes. Ocorre que, segundo Jusczyk, tal declínio
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APRENDIZES SURDOS E ESCRITA EM L2:
REFLEXÕES TEÓRICAS E PRÁTICAS
tem mais a ver com a falta de atenção do que uma atrofia. Isto indica que os bebês aprendem o que é
importante para a aquisição da língua a que estão expostos e, ainda, quais são os sons mais relevantes - e
frequentes - para a língua nativa a ser adquirida.
Ao mesmo tempo em que declina a sensibilidade para distinguir sons com relação a muitas das
diferenças que não são frequentemente encontradas no input, as crianças parecem absorver informações
sobre características de ocorrência regular nos padrões sonoros da língua nativa. Além disso, a sensibilidade
desenvolve-se precisamente em direção àquelas características que se mostram mais úteis na segmentação
de palavras do input. Talvez, de acordo com Jusczyk, “não seja surpresa nenhuma que as habilidades da
criança para a segmentação de palavras esteja se desenvolvendo juntamente com seu conhecimento do
modo com que os padrões sonoros sejam estruturados em sua língua nativa” (1997:105).
Em relação às mudanças que ocorrem no primeiro ano de vida da criança, Jusczyk explica que
“refletem uma interação entre o input e as capacidades perceptivas subjacentes da criança” (p. 105). Tais
capacidades equipam-na com meios de agrupar e selecionar a margem de produções de fala à qual elas
estão expostas. Contudo, como as línguas variam fortemente no que tange os modos de padronização
dos sons, a capacidade de categorização por parte da criança deve ser necessariamente refinada de modo
que ela seja capaz de lidar com os padrões da língua a qual é exposta.
O autor observa que os bebês adquirem muita informação sobre a organização estrutural
de padrões sonoros da língua nativa à qual são expostos dentro de um período relativamente curto,
especialmente no primeiro ano de vida, durante o qual outros níveis de especialização da língua nativa
(como a organização sintática) não se fizeram presentes. Por essa razão, o autor defende que, embora
as crianças possam estar aprendendo também conceitos e sentidos durante os primeiros meses de vida,
os sons da linguagem e sua organização devem comandar uma grande parcela de sua atenção. Assim,
ainda segundo o autor, à medida que a criança aprimora a habilidade de apreender informações sobre
os padrões sonoros da língua nativa, ela estará pronta para receber outros níveis de informação contida
no sinal da fala. Baseando-se em dados disponíveis, as crianças parecem descobrir, num período muito
curto de tempo, que características críticas são pertinentes à sua língua nativa. Conclui Jusczyk que “[a]
rapidez com que descobrem tais características é justamente o que se deve esperar de um processo de
desenvolvimento resultante do aprendizado inato guiado” (p. 108).
Tomasello (2000) sustenta que, inicialmente, a criança constrói estrutura gramatical em torno
de alguns itens lexicais específicos, motivo pelo qual a criança aprende, em um primeiro momento,
construções individuais com base em item linguístico (por exemplo, construções verbais ilha). Caso
existam padrões a serem distinguidos entre essas construções baseadas no item em diferentes usos feitos
pelos adultos, a criança poderia, então, fazer abstrações e criar heranças de hierarquias de construções.
Assim, no que se refere à linguagem e sua aquisição, observa-se uma continuidade não de estruturas, mas
sim de processos: os adultos apenas possuem um conjunto mais diversificado e abstrato das construções
do que as crianças, sendo os processos de aprendizagem e abstração os mesmos onde e quando eles são
32
AQUISIÇÃO DE LINGUAGEM E
MODELOS BASEADOS NO USO
aplicáveis. Uma abordagem baseada no uso sustenta que a estrutura linguística deriva do uso e, assim
sendo, quanto maior for a experiência do indivíduo com a língua, em maior número serão as estruturas
robustas a partir das quais derivam novas possibilidades de uso.
7. E AS CRIANÇAS SURDAS?
O que parece estar em jogo, entretanto, para além da questão das modalidades, é o fato de apesar
de os modos de produção e percepção poderem se diferenciar, é o papel exercido pela mente/cérebro no
processo de aquisição, tanto de línguas orais, quanto de línguas de sinais, que importa para entendermos
a associação do modelo aquisicionista dos MBU e a explicação sobre como se adquire, também, uma
língua de sinais.
Em outras palavras, da mesma forma que percebemos, por exemplo, no contexto de línguas
orais, a associação entre uma percepção facilitada de informações sonoras específicas, fato relacionado
à saliência fônica e frequência, são comuns os relatos sobre manipulação/uso de sinais frequentes de
línguas de sinais por parte de bebês surdos em fase de aquisição, representando um período de balbucio
sinalizado tenro. As questões referentes ao desenvolvimento da consciência fonológica de bebês expostos
a línguas orais são, desta maneira, as mesmas emergentes no contexto de desenvolvimento da consciência
fonológica de bebês expostos a línguas de sinais, seja no nível da discussão articulatória/fonêmica, da
relação frequência/estatística e probabilidade de ordem aquisição, entre outros fatores.
Nesse sentido, o efeito de modalidade é apenas uma diferença superficial entre línguas orais
e de sinais. Línguas de sinais e orais são adquiridas de forma análoga e, segundo o modelo teórico de
aquisição aqui defendido, pelos mesmos princípios: a)pelo papel dos processos cognitivos de domínio
geral - como a capacidade de categorização e o pensamento analógico; b) pela questão da cognição
social, c) pela habilidade de leitura de intenções e d) pela crença de que a construção gramatical, um
33
APRENDIZES SURDOS E ESCRITA EM L2:
REFLEXÕES TEÓRICAS E PRÁTICAS
8. CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
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AQUISIÇÃO DE LINGUAGEM E
MODELOS BASEADOS NO USO
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LÍNGUA, SOCIEDADE E RELAÇÕES DE PODER:
A PRODUÇÃO ESCRITA DE SURDOS
INTRODUÇÃO
É fundamental considerar a relação entre língua e sociedade, quando se tem como meta
o mapeamento e/ou a conscientização do que está em jogo no processo de domínio de uma língua
para: (re-)existência (construção de identidade ou reconfiguração desta), interação (ação em relação
ao interlocutor, a outrem), leitura do mundo (acesso ao mundo escrito, compreensão de interlocutor/
outrem) e/ou, enfim, comunicação numa determinada comunidade linguística.
A produção textual escrita feita por sujeitos surdos (sinalizantes ou não) em língua portuguesa
como L2 sujeita-se a todas as implicações que essa relação tem, como qualquer outra produção em
qualquer modalidade expressiva e em qualquer domínio discursivo-pragmático, bem como a outras
complexidades advindas de circunstâncias (diversas) em que se dá a aprendizagem (i) do Português escrito,
(ii) da configuração das redes sociais de interação/comunicação escrita de que o sujeito surdo participa e/
ou a que tem ou quer ter acesso, (iii) do conceito de gramática(s)/norma(s) em jogo quando ele aprende,
interage ou se comunica e, assim, constrói sua identidade de usuário de uma língua. E uma área da
Linguística que lida com essas questões é a Sociolinguística, especialmente a Sociolinguística de Contato
de Línguas (Português e Línguas de Sinais/LIBRAS em comunidades surdas). A pluralidade linguística
nacional manifesta-se em diferentes situações de/em contato: línguas orais (línguas de imigração, línguas
em fronteiras hispânicas e francófonas, línguas estrangeiras) e línguas visuais-espaciais (em que a língua
brasileira de sinais é apenas uma delas, e adquirida às vezes mais cedo, outras vezes mais tardiamente).
1 Universidade Federal do Rio de Janeiro; Faculdade de Letras; Departamento de Letras Vernáculas; marcia@letras.ufrj.br
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LÍNGUA, SOCIEDADE E RELAÇÕES DE PODER:
A PRODUÇÃO ESCRITA DE SURDOS
E desse processo de produção escrita só temos acesso ao que esses indivíduos materializam como
produto textual com base nas generalizações que fazem a partir das experiências linguísticas a que são
submetidos, entre outros caminhos, via processo de educação linguística. Naturalmente, esse produto
revela as consequências do contato entre Português e Línguas de Sinais/LIBRAS, manifesta indícios
de uma interlíngua que se configura a partir de normas/variedades em jogo em Português escrito e
normas/variedades em Língua(s) de Sinais/LIBRAS.
A proficiência escrita em uma dada língua situa-se num processo de aquisição ou aprendizagem de
língua que abarca processos cognitivos gerais, como pensamento analógico e parsing/análise linguística2.
A proficiência escrita em uma segunda língua por aprendizes surdos também envolve esses processos
cognitivos.
Em linhas gerais, para lidar com a temática decorrente do título deste capítulo do livro, trata-se
aqui de práticas teórico-analíticas sociolinguísticas que podem colaborar para o conhecimento das línguas
em contato e a conscientização de quem se envolve com situações de acionamento de generalizações
relativas a essas línguas. Focalizam-se princípios, problemas, temáticas e conceitos fundamentais em
Sociolinguística, bem como contato e preconceito linguísticos. E recorre-se ao alinhamento de conceitos
e pressupostos da Sociolinguística com outros enfoques linguísticos (e, mais especificamente, do enfoque
2 Adiante tais termos serão brevemente retomados. De todo modo, vale antecipar que o primeiro diz respeito à nossa
capacidade de fazer associações por comparabilidade no que nos chega como input linguístico e o segundo relaciona-se à
nossa capacidade analítica de discernir e processar, em meio a um input linguístico rico e complexo, unidades simbólicas.
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APRENDIZES SURDOS E ESCRITA EM L2:
REFLEXÕES TEÓRICAS E PRÁTICAS
Assim sendo, diz respeito a um conhecimento que abarca (meta)construções e suas instanciações
em constructos/dados do uso e que se relaciona a diferentes dimensões de configuração gramatical/
linguística (desde unidades simbólicas que envolvem unidades menores que os lexemas até unidades que
impliquem materializações discursivo-textuais).
4 “A Linguística Histórica normalmente está interessada na mudança e no que causa a mudança, mas o advento de abordagens
cognitivas e baseadas no uso linguístico trouxe consigo um interesse complementar pela estabilidade, resultante da “ resistência
à mudança por instâncias de construções de alta frequência” (Bybee, 2005).
A estabilidade construcional tem duas dimensões. A construção é um pareamento forma-significado, e podemos falar sobre
estabilidade da forma e estabilidade do significado. A estabilidade do significado implica manutenção ao longo do tempo das
distinções entre as construções. Estabilidade de forma envolve a manutenção de estruturas em circunstâncias nas quais, por
exemplo, o alinhamento/nivelamento analógico poderia causar mudanças estruturais.”
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LÍNGUA, SOCIEDADE E RELAÇÕES DE PODER:
A PRODUÇÃO ESCRITA DE SURDOS
Em situações de aprendizagem de um idioma como segunda língua (L2), entra em jogo a relação
entre (i) generalizações que configuram o conhecimento da primeira língua já estocado na mente do
aprendiz (na esfera em foco, possivelmente LIBRAS, por exemplo) e (ii) generalizações que configuram
o conhecimento da língua-alvo que o professor do idioma procura ensinar aos aprendizes de um idioma
como L2. Estas generalizações, assim como aquelas, são configuradas com base em experiências com
formatações múltiplas, conforme a figura abaixo procura ilustrar, sem a pretensão de ser exaustiva na
captação da potencialidade de saberes/generalizações de normas/variedades linguísticas envolvido(a)s
numa e noutra língua.
5 A totalidade de nosso conhecimento de uma língua é capturada, em Gramática de Construções, por um inventário de
unidades simbólicas chamado de “construct-i-con”, uma rede de construções (generalizações sobre pareamentos de forma-
função moldadas pela experiência linguística) com base nas quais configuramos os constructos/usos constitutivos dos
enunciados/textos que produzimos nos mais diversos domínios discursivos. E dele fazem parte também metaconstruções,
que são: generalizações sobre padrões construcionais em variação por relação de similaridade, variação condicionada
estatisticamente.
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APRENDIZES SURDOS E ESCRITA EM L2:
REFLEXÕES TEÓRICAS E PRÁTICAS
figura; com base nele, o utente dá conta da representação linguística de seu objeto de enunciação em uma
língua como L2. Essa interlíngua é afetada por saberes oriundos da norma exemplar/padrão, conjunto
de recursos (construções, lexemas, relações entre estes) idealizado normalmente a partir de processo
histórico de unificação/homogeneidade (cujo alvo é particularmente a escrita em línguas oralizadas),
da norma prescritivo-pedagógica (norma linguística ensinada e/ou cobrada, norma sistematizada em
processos didático-pedagógicos, com base frequentemente numa tradição de escolarização), da norma
efetivamente concretizada (seja ela culta ou não, a efetivamente usada em domínios de letramento, no
domínio familiar, no dia a dia, entre outros domínios).
Conceptualizações sobre o que é língua numa sociedade e sobre sua esfera de uso6, especialmente
as relacionadas a L2, interferem também na elaboração desse conhecimento interlíngua que se desenvolve
em diversas situações de contato (mais frequente ou não, mais diversificado ou não) com experiências em
L2 e cuja trajetória em prol de algum domínio de L2 demanda tempo e prática.
Esse processo pode envolver uma comunidade linguística de indivíduos surdos aprendizes do
Português que não conta necessariamente com o domínio de LIBRAS (mas de outras línguas de sinais
adquiridas no processo de comunicação na “rede familiar”7 e outras vezes nem exatamente domínio
destas em razão de isolamento). Pode envolver uma comunidade que objetiva aprender a expressar-se na
língua escrita com base na qual normalmente se efetivam processos de comunicação na rede mais ampla
que a familiar ou em cujo processo de aprendizagem de L2 não se dá em instituições de ensino voltadas
para a formação de aprendizes surdos. Nesses casos, a configuração dessa “interlíngua” ainda pode ter
6 Com relação a estatuto de uma língua na sociedade, tem-se em mente o fato de uma língua poder ser considearada:
patrimônio sociocultural, língua de herança, língua pátria/nacional, língua oficial (inclusive, de documentos). Quanto à esfera
de uso, leva-se em conta o fato de uma língua poder ser de maior ou menor difusão (internacional, transcultural), língua
curricular (de escolarização, de letramento), língua de serviço/ofício, língua não-curricular (vernáculo), língua de uma certa
prática social (modalidade escrita).
7 Algumas nem alcançam o estatuto propriamente de línguas, uma vez que se constituem com base numa espécie de pacto
em prol de viabilizar a comunicação que é estabelecido no próprio grupo que se serve delas.
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LÍNGUA, SOCIEDADE E RELAÇÕES DE PODER:
A PRODUÇÃO ESCRITA DE SURDOS
8 Similaridade decorre da habilidade dos falantes de associarem elementos independentes a um mesmo output. Já a
dissimilaridade, que caracteriza situações de polissemia, diz respeito à possibilidade de diferentes outputs estarem ligados a
um mesmo elemento (padrão construcional, lexema).
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APRENDIZES SURDOS E ESCRITA EM L2:
REFLEXÕES TEÓRICAS E PRÁTICAS
Ademais, é, desde sua concepção, um enfoque que propicia diferentes agendas de investigação:
Sociolinguística Variacionista, Dialectologia/Geolinguística, Sociolinguística Etnográfica, Etnografia
da Comunicação, Sociologia da Linguagem, Sociolinguística Cognitiva, Sociofuncionalismo,
Socioconstrucionismo, Socioparamétrica, entre outras possibilidades. Outra via na área é a da discussão
de questões de contato linguístico, línguas minoritárias, identidade linguística, políticas linguísticas e de
ensino de línguas.
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LÍNGUA, SOCIEDADE E RELAÇÕES DE PODER:
A PRODUÇÃO ESCRITA DE SURDOS
CARACTERÍSTICAS EXEMPLOS
ABORDAGEM “MACROSSOCIOLÓGICA”
Primeira onda • Levantamento de comunidades Labov (1966) – a estratificação
geograficamente definidas; social do inglês na cidade de
Nova York (a realização do
• Hierarquia socioeconômica como mapeamento /R/ posvocálico); e, em linhas
do espaço social; gerais, a maior parte dos estudos
• Variáveis como marcadores de categorias sociais desenvolvidos no âmbito da
primárias e portadoras de traços de prestígio/ Sociolinguística Brasileira.
estigma;
• Estilo como atenção prestada à fala e
controlado pela orientação em direção ao
prestígio/estigma.
ABORDAGEM “LOCAL”
Segunda onda • Investigação etnográfica de comunidades Eckert (2000) – subgrupos em
linguísticas definidas geograficamente; uma escola na periferia de
Detroit;
• Categorias locais como elos para as categorias
demográficas; Ferrari (1994) – variáveis
fonológicas e sintáticas na
• Variáveis como indicadores de categorias comunidade do Morro dos
localmente definidas; Caboclos (Zona Oeste, RJ)
• Estilo como ato de filiação.
ABORDAGEM “ESTILÍSTICA”
Terceira onda • Estudos etnográficos de comunidades de Labov (1972) – centralização
prática; dos ditongos /ay/ e /aw/ em
Martha’s Vineyard.
• Categorias locais construídas com base em
posições comuns;
• Variáveis como indicadores de posições,
atividades, características;
• Estilo como construção de persona, identidade.
Fonte: Quadro formulado por MACHADO VIEIRA; GOMES (2017), em slides para aula da disciplina do Programa de
Pós-Graduação em Letras Vernáculas da UFRJ: Estudos de Interface 1 (LEV812), Tópicos em fonética e em morfossintaxe
e interfaces.
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APRENDIZES SURDOS E ESCRITA EM L2:
REFLEXÕES TEÓRICAS E PRÁTICAS
A chamada segunda onda de práticas também toma como amostra comunidades de fala e parte
da identificação padrões regulares de distribuição de variantes linguísticas em abordagem quantitativa.
Entretanto, segue uma perspectiva de base mais etnográfica, o que implica coleta(s) de dados a partir
de maior envolvimento com a comunidade, e a abordagem de categorias sociodemográficas mais
abstratas/“subjetivas” (não identificáveis em uma coleta rápida, como o julgamento de pertencimento à
comunidade, valores, atitudes, etc.).
Ademais, como uma área de investigação que lida com sociedades/comunidades potencialmente
heterogêneas, pode descrever experiências linguísticas no âmbito de comunidades linguísticas (delimitadas
por categorias mais macrossociais, como espaço geográfico, recorte temporal, delimitação socioeconômica
ou demográfica, categorização sociocultural ou de letramento, recorte de gênero/sexo, de geração, entre
outros) ou de comunidades de prática (por redes (densas ou não) de contato social/sociocultural, no
meio digital ou não-digital/presencial-social, por relações de poder entre interlocutores – simétricas ou
assimétricas). De modo geral, comunidade de prática é um grupo de pessoas as quais compartilham
interesses em comum e interagem regularmente em torno de certa(s) atividade(s) de interesse comum. É
possível enumerar três critérios que caracterizam essas comunidades:
A comunidade de prática é uma construção social, cuja configuração está sujeita às práticas dos
indivíduos, que interagem entre si e interagem com outras comunidades. Logo, é um conceito-chave
quando se pensa na prática de escrita de surdos. Esta é influenciada pela densidade e pela configuração
das redes sociais de comunicação em Português escrito de que o surdo (sinalizante ou não) participe.
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LÍNGUA, SOCIEDADE E RELAÇÕES DE PODER:
A PRODUÇÃO ESCRITA DE SURDOS
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APRENDIZES SURDOS E ESCRITA EM L2:
REFLEXÕES TEÓRICAS E PRÁTICAS
Vemos, nesses exemplos, que, a partir de uma expressão de convite “[Vamos embora
_________SP/SO9] predicação de convite”, passamos a contar com padrões construcionais em
que vamos embora, vambora, vamos e bora são formas inputs alternantes para configurar um convite
(como output):
9 Considerações terminológicas: 1) SP – Sintagma Preposicional: é uma unidade linguística que tem como núcleo uma
preposição, é a projeção máxima a partir da relação de uma preposição e um elemento de natureza nominal (um SN,
Sintagma Nominal, ou um SO, Sintagma Oracional). 2) Predicação – unidade linguística (i) projetada a partir de um
predicador (frequentemente um verbo, pessoal ou impessoal) que pode envolver ou não papel(éis) participante(s) e (ii)
configurada de modo a representar linguisticamente um estado de coisas (dinâmico ou não, controlado ou não; por
exemplo, ação, processo, estado, posição), uma relação semântico-sintática entre participantes, uma caracterização de
participante ou um fenômeno da natureza que não envolva participante.
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LÍNGUA, SOCIEDADE E RELAÇÕES DE PODER:
A PRODUÇÃO ESCRITA DE SURDOS
Bora marcar!
Vamos marcar! Vamos encostar o pé … pra sair!
Vambora botar o bloco na rua!
Outro exemplo de variação diz respeito ao emprego ou não de preposição em locução verbal, por
exemplo: [começar (a) Vinfinitivo].
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APRENDIZES SURDOS E ESCRITA EM L2:
REFLEXÕES TEÓRICAS E PRÁTICAS
A variação linguística não é própria apenas de certas normas, mas de qualquer norma. A própria
gramática normativa (cf. CUNHA; CINTRA, 1985) contempla, na sua descrição, exemplos de variantes
(registrados na literatura). A título de exemplificação, cabe citar: (i) a descrição das estratégias de
indeterminação do sujeito (normalmente duas – recorrendo-se ao pronome se índice de indeterminação
do sujeito ou recorrendo-se ao verbo flexionado na terceira pessoa do plural) e (ii) a descrição de sujeito
partitivo, que considera como legítima, além da concordância com o núcleo (do sujeito) singular, como
na regra geral de concordância verbal, a concordância no plural com o termo nominal plural no adjunto.
Esses breves destaques são feitos para que se considere que, no processo de aprendizagem de L2, o
aprendiz terá experiências linguísticas ligadas à descrição de norma standard e de norma non-standard.
Todas as experiências linguísticas em L2 contribuirão para a sistematização que gerará a interlíngua que
se refletirá na escrita em L2. Cabe ao professor/orientador do aprendiz nesse processo de aprendizagem
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LÍNGUA, SOCIEDADE E RELAÇÕES DE PODER:
A PRODUÇÃO ESCRITA DE SURDOS
de L2 ter “olhos de ver” o que o aprendiz conquista no percurso de aprendizagem (e o que permanece
em desacordo) e intervir didaticamente mantendo-se antenado ao que os materiais didático-pedagógicos
e as referências bibliográficas científicas oferecem em termos de descrição disponível, de conhecimento
já alcançado sobre as línguas em contato.
E, a depender do estatuto10 que tenha a língua para quem (surdo) produz texto ou para quem
avalia subjetivamente a escrita do surdo, as expectativas quanto ao atendimento a normas em L2 podem
ser muito diversas.
É necessário admitir, na atividade reflexiva e/ou crítica do ofício de ensino, entre outras questões
estas: até que ponto a escola promove um ensino comunicativo de língua,
um ensino que organiza as experiências de aprender em termos de
atividades relevantes/tarefas de real interesse e/ou necessidade do aluno
para que ele se capacite a usar a língua-alvo para usar ações de verdade na
interação com outros falantes-usuários dessa língua. (ALMEIDA FILHO,
1993:36)
Como o professor encara, no processo de avaliação, os textos escritos de seus alunos surdos?
Adota uma perspectiva observacional que mobiliza/dinamiza “seu fazer” de modo a efetivamente afetar
o processo de produção textual e o produto resultante deste? Ou se alinha a uma perspectiva de correção
centrada numa concepção idealizada de materialização de linguagem em Português escrito, noutro tipo
10 Uma língua pode ter inúmeros estatutos: a) quanto ao estatuto numa sociedade, língua antiga (patrimônio cultural), língua
de herança, língua nativa, língua pátria/territorial/nacional, língua vernácula; b) quanto ao estatuto na esfera do uso, língua
internacional, transcultural, transversal ao curriculum escolar, de maior ou menor difusão, língua oficial (dos documentos
oficiais), língua curricular/de escolarização/letramento, língua de uma prática discursiva; c) quanto à ordem de aquisição,
L1 ou L2.
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APRENDIZES SURDOS E ESCRITA EM L2:
REFLEXÕES TEÓRICAS E PRÁTICAS
de concepção de norma?
revela já conhecer construções de estado (com ser e ter) ao cruzar os padrões construcionais de que
resultariam usos como “sou surda” e “tenho surdez profunda”, padrões em associação no dado acima.
Também revela estruturação de adjunto adverbial centrada em algum conhecimento de conectivo
temporal (“depois ano do presente”, seu estatuto semântico de localização situada em relação ao tempo
da enunciação), bem como de predicação com o recurso a uma forma verbal analítica com verbo suporte
(“me surpresa que fazer”), com o recurso de “fazer/causar/dar Vsuporte surpresa” em vez da forma
sintética “surpreender”, ou seja, lançando mão de verbo suporte (fazer), dentre os verbos suportes mais
acionados (fazer, dar, ter, entre outros) para esse fim (operador de verbalização de elemento não-verbal
(cf. MACHADO VIEIRA, 2018)). Naturalmente, a escrita de um surdo (sinalizante ou não) revelará
indícios da intensidade e do tempo de seu contato com Português escrito (que, na verdade, se materializa
segundo diferentes normas, a depender da comunidade de prática), assim como a escrita em L2 por um
ouvinte também o faz.
Um aprendiz ouvinte que materialize linguagem, em Português como L2, também se sujeita a
uma produção que não corresponde a uma expectativa de concretização em norma standard, quer pela
falta de preposição envolvida na representação do padrão construcional de predicação em jogo, quer
pela falta de manifestação da flexão plural em sintonia com a referência plural do participante sujeito:
Apelo todos os cabo-verdianos que enveste fortemente na Língua
Portuguesa sem deixar de lado a nossa, para o bom desenvolvimento do
nosso país. (SILVA, 2017:94)
11 Texto extraído da plataforma Moodle. EaD virtual Letras Libras/UFPB, 1º sem. 2011.
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LÍNGUA, SOCIEDADE E RELAÇÕES DE PODER:
A PRODUÇÃO ESCRITA DE SURDOS
Certos tipos de sociedades tendem a produzir certos tipos de línguas. Os correlatos sociais que
mais interferem na complexificação ou simplificação linguísticas são: grau de contato e isolamento de
indivíduos e comunidades, grau de densidade e debilidade de redes sociais, grau de expansão e retração
de comunidades linguísticas (de pequeno ou grande porte).
(…) na atividade de produção textual, social/individual, alteridade/
subjetividade, cognitivo/discursivo coexistem e condicionam-se
mutuamente, sendo responsáveis, em seu conjunto, pela ação dos sujeitos
empenhados nos jogos de atuação comunicativa ou sócio-interativa.
(KOCH, 1997: 20)
Variedades linguísticas com uma história de intenso grau de contato, sobretudo do tipo que
envolve aprendizagem generalizada de uma língua por indivíduos já mais velhos ou adultos, tenderiam
a demonstrar altos níveis de simplificação, que estariam, por sua vez, vinculados aos processos de (i)
regularização de irregularidades; (ii) aumento de transparência lexical e morfológica e (iii) perda de
redundância morfológica (como a redução da repetição de informação de número/pessoa, no caso de
concordância gramatical; maior recorrência a categorias analíticas em vez de sintéticas/evitando-se as
formas que envolvem categorias morfológicas, por exemplo).
Tendo em vista esse conjunto de considerações, é preciso levar em conta, no processo de produção
textual de surdos, o seguinte:
2) Também não cabe pensar que um nativo/brasileiro não sabe a sua língua e só
português sabe Português ou usuário de variedade de época pretérita usava bem o
Português! Urge entender que Português do Brasil e Português de Portugal são duas variedades
nacionais com históricos diferentes de mudança linguística. Um falante nativo tem domínio de
L1 diferente do domínio que alcança em L2.
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APRENDIZES SURDOS E ESCRITA EM L2:
REFLEXÕES TEÓRICAS E PRÁTICAS
4) Não se pode dizer que a maneira certa de usar a língua é a que vemos concretizar-
se na escrita! Não tem cabimento supervalorizar a escrita e/ou fazer pouco da oralidade. São
duas modalidades diferentes! A escrita em Português tende a ser a única modalidade a promover
12 “(…) deaf and hearing people use a broad range of semiotic resources to communicate. These examples include combining
and rapid switching between linguistic features and modalities such as signing, gesturing, speaking, mouthing, writing (in the
air, on paper, on hands or arms), typing (on mobile phones, on calculators, on computers), fingerspelling in different (named)
languages, pointing at text, placing a sign on a PowerPoint slide, and so on (see e.g. Holmström and Schönström 2018; Kusters
2017b; Safar 2017). Sometimes these strategies are successful, sometimes not, but all of the above examples could probably,
in principle, be called ‘translanguaging’.
Translanguaging, first used by Baker (2001), has now become a well-established concept in (critical) sociolinguistics and
applied linguistics (see Canagarajah 2013; Creese and Blackledge 2010; García 2009; García and Li 2014; Li 2011) and has
expanded beyond its original conceptualisation to include everyday multimodal communicative acts in markets, libraries,
and other public spaces (e.g. the TLANG project1 ). Originally, translanguaging described a pedagogy in which a minority
language was used in the classroom along with a majority language (LEWIS, JONES, and BAKER 2012), but since then,
it has become a ‘terminological house with many rooms’ (JASPERS, 2018, 2). An often-cited recent definition is that
translanguaging is ‘the deployment of a speaker’s full linguistic repertoire without regard for the watchful adherence to the
socially and politically defined boundaries of named … languages’ (OTHEGUY, GARCÍA and REID, 2015, 281). García
and Li (2014, 19) suggested that we are witnessing a ‘translanguaging turn’ with the term now referring to ‘both the complex
language practices of plurilingual individuals and communities, as well as the pedagogical approaches that use those complex
practices’.
‘Translanguaging’ is currently used in both descriptive and prescriptive ways. It can be used to refer to a bilingual pedagogy,
multilingual spontaneous language practices, everyday cognitive processes, a theory of language in education, as well as a
process of personal and social transformation (Jaspers 2018). The concept has been extended to include the political project
of transformation as a matter of social justice and the linguistic human rights agenda (García and Li 2014), and has been seen
as a means of transforming linguistic inequalities and as such having the potential to reframe everyday language practices and
legitimize the mixing of diverse semiotic and modal repertoires (García and Li 2014:116).” (De Meulder; Kusters; Moriarty;
Murray, 2019).
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LÍNGUA, SOCIEDADE E RELAÇÕES DE PODER:
A PRODUÇÃO ESCRITA DE SURDOS
o acesso de um surdo (sinalizante ou não) a essa língua. Deve ser descrita/ensinada com base em
diversas experiências e práticas discursivas escritas, considerando-se, inclusive, que algumas destas
procuram representar a espontaneidade de práticas conversacionais (efetivadas naturalmente na
modalidade oral), configurar discursos com feição dialógica, entre outras intenções.
2) Justamente em razão desse fato e da aptidão linguística que caracteriza qualquer pessoa, é
necessário garantir os direitos de acessibilidade dos surdos a uma educação ao menos bilíngue,
em que o Português seja foco de ensino (mediado por LIBRAS, por língua de sinais) desde a
alfabetização (entendendo a escola como uma das comunidades de prática de letramento; outras
estão em outras redes sociais de que o surdo (sinalizante ou não) participa).
3) A consciência linguística de um surdo pode estar apenas baseada nas línguas de sinais/
em LIBRAS, nas práticas discursivas situadas nas comunidades de fala de que ele participa
(comunidades surdas ou não), na experiência sensório-espacial/visual. E isso não constitui
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APRENDIZES SURDOS E ESCRITA EM L2:
REFLEXÕES TEÓRICAS E PRÁTICAS
impedimento para a apropriação da escrita em L2, processo que envolve vários estágios de escrita
(como para ouvinte).
4) Uma política linguística para o letramento em Português L2 de surdos precisa ser guiada por
parâmetros oriundos de pesquisa científica e, no caso de sala de aula, por parâmetros detectados
a partir da observação do público-alvo. E o mapeamento sociolinguístico é fundamental nesse
processo, nessa prática, para que se possa (re)conhecer o caráter variável do que nomeamos
língua portuguesa escrita, celebrar a diversidade e a possibilidade de uma INTERLÍNGUA
HETEROGÊNEA, para a qual contribuem: diferentes referenciais do que é norma a servir de
exemplo (para o professor, para a sociedade, para o indivíduo que aprende), bem como diversas
realidades no que diz respeito a quantidade (de tempo) e qualidade de acesso a esses referenciais.
E, assim, reúnem-se condições de aumentar as oportunidades de participação social relativamente
“igual”.
5) Não se pode introduzir um indivíduo no mundo da escrita sem que esse processo mergulhe
em uma reflexão sobre o poder da manifestação escrita (menos efêmera, em geral), seu impacto
social e individual, seu caráter transformador. É preciso considerar o lugar de aprendizagem e/
ou de acesso ao Português L2, o lugar de escrita (e fala/sinalização), o lugar de leitura, recepção,
reação e percepção, bem como o lugar de interlocução, ação, intervenção do surdo ao buscar
comunicação em L2. O sentido da escrita está no poder de o surdo: (a) adquirir e aprender
uma segunda língua ou uma língua adicional (cada língua apresenta seus papéis e valores sociais
representados); (b) (re)elaborar uma identidade ou várias no mundo exterior, o mundo interior,
a linguagem concebida cognitivamente; (c) expressar-se, comunicar-se, interagir, afetar o outro;
(d) conceber e articular práticas discursivas, redes sociais, bem como administrar suas várias
identidades nestas; (e) (re-)existir, resistir, somar-se. E, nestas palavras, nem de longe se chega ao
potencial da palavra PODER…!
Aquele que aprende a enunciação de outrem não é um ser mudo, privado
da palavra, mas ao contrário, um ser cheio de palavras interiores. Toda a
sua atividade mental (…) é mediatizada para ele pelo discurso interior e
é por aí que se opera a junção com o discurso aprendido do exterior. A
palavra vai à palavra. (BAKHTIN, 1992)
Translanguaging exists within a dense web of new, inherited, and regenerating
relations of power, difference, and stigmatisation. Translanguaging is here
to stay. The emancipatory potential of acknowledging deaf people’s skills
at translanguaging must acknowledge the historical and contemporary
contexts constantly conditioning individual languaging choices.13 (DE
MEULDER; KUSTERS; MORIARTY; MURRAY, 2019:12)
13 Translanguging/”tradução” existe dentro de uma densa rede de relações de poder, diferença e estigmatização novas,
herdadas e regeneradoras. Translanguaging está aqui para ficar. O potencial emancipatório de reconhecer as habilidades
dos surdos na translanguaging de idiomas deve reconhecer os contextos histórico e contemporâneo que condicionam
constantemente as escolhas individuais de linguagem.
54
LÍNGUA, SOCIEDADE E RELAÇÕES DE PODER:
A PRODUÇÃO ESCRITA DE SURDOS
REFERÊNCIAS
ALMEIDA FILHO, José Carlos Paes. Dimensões comunicativas no ensino de línguas. Campinas,
Pontes, 1993.
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2006 [1966]. p. 40-57.
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55
APRENDIZES SURDOS E ESCRITA EM L2:
REFLEXÕES TEÓRICAS E PRÁTICAS
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partir de conteúdo de aulas de teorias linguísticas em curso de graduação de Letras/
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Austin, University of Texas Press, 1968. p. 97-195.
56
LINGUÍSTICA E ENSINO
Dennis Castanheira1
INTRODUÇÃO
Nas últimas décadas, a Linguística brasileira tem avançado muito na investigação de inúmeros
fenômenos por meio de abordagens teórico-metodológicas cada vez mais refinadas e completas. No
entanto, ainda parece haver um grande desafio para os linguistas brasileiros: a transposição e popularização
das complexas e avançadas descobertas científicas para a sociedade. Diante dessa demanda, nos últimos
anos, têm se multiplicado os trabalhos que visem a esse objetivo por meio de projetos de pesquisa e
extensão universitária e, sobretudo, de propostas/sugestões de intervenção em aulas de língua portuguesa/
estrangeira.
Nesse cenário relativamente novo, um dos papéis da Linguística passou a ser a contribuição
para mudanças nas práticas de ensino em diferentes contextos pedagógicos. Embora ainda haja uma
grande resistência por parte de muitos pesquisadores, esses trabalhos têm tido cada vez mais espaço em
eventos científicos, programas de pós-graduação, revistas acadêmicas, livros e projetos em diferentes
universidades brasileiras.
De forma geral, eles buscam retomar pressupostos teóricos basilares de teorias já consagradas no
cenário brasileiro, como a Sociolinguística Variacionista e a Análise do Discurso, e estabelecer sugestões
de atividades, propostas de intervenção ou caminhos a serem seguidos por professores, sobretudo,
em escolas da rede pública de ensino. Essas pesquisas estão ligadas, principalmente, a questões de
interpretação de texto, ensino de gramática e produção textual e estão diretamente relacionadas às
57
APRENDIZES SURDOS E ESCRITA EM L2:
REFLEXÕES TEÓRICAS E PRÁTICAS
diretrizes para o ensino, como os Parâmetros Curriculares Nacionais, as Orientações Curriculares para
o Ensino Médio e a Base Nacional Curricular Comum.
Além disso, muitos professores de universidades têm dedicado parte de suas trajetórias acadêmicas
à formação continuada de docentes da educação básica por meio do oferecimento de cursos e da
publicação de textos que possam, de alguma forma, auxiliá-los em sua prática. Essa tendência tem se
espalhado por todo o Brasil, tendo como alguns dos seus mais expressivos nomes: Maria Helena Moura
Neves, Leonor Werneck dos Santos, Stella Maris Bortoni-Ricardo, Maria Aparecida Lino Pauliukonis,
Mônica Magalhães Cavalcante, Silvia Rodrigues Vieira, Maria Alice Tavares e Maria Cecília Mollica.
Dessa forma, mesmo diante de um cenário de resistência de muitos pesquisadores, algumas iniciativas
tornaram possível a proliferação de trabalhos sobre ensino de línguas no Brasil.
Em meio a esse cenário profícuo, podemos dizer que já existem inúmeros avanços tanto na
elucidação da interface da Linguística com o ensino, como de sua aplicabilidade em sala de aula. No
entanto, essas discussões, no geral, estão ligadas ao ensino de língua portuguesa como L1 e/ou de línguas
estrangeiras modernas, como inglês, francês e espanhol. Assim, o caminho na aplicação dos pressupostos
teórico-metodológicos da interface Linguística e ensino ainda representa um grande desafio, por exemplo,
para o ensino de português para surdos.
Dessa forma, neste capítulo, discutiremos como articular o variado arcabouço teórico de teorias
baseadas no uso bastante populares no cenário brasileiro (Sociolinguística, Funcionalismo, Linguística do
Texto, Análise do Discurso) com o ensino de línguas de forma ampla a partir de um caminho conjunto.
Além disso, apresentaremos alguns exemplos de possíveis abordagens em sala de aula, (re)pensando o
ensino de leitura, gramática e produção textual e focalizando, também, a escrita do surdo.
2 <http://www.profletras.ufrn.br/repositorio/dissertacoes#.XywPAlrQjIU>
58
LINGUÍSTICA E ENSINO
Ao lermos as diretrizes oficiais para o ensino de língua atualmente, percebemos que, de forma
geral, o texto é colocado como o objeto de ensino central, configurando, portanto, o foco das aulas do
eixo de linguagens. No entanto, muitas vezes, essa ideia pode ser vista como excludente em relação ao
trabalho com os aspectos gramaticais. Assim, o foco nos efeitos de sentido e no papel dos elementos na
construção textual seria mais importante do que seus processos de identificação, análise e classificação.
Na verdade, tais aspectos não devem ser vistos como dicotômicos, pois não representam questões
excludentes. Eles precisam ser tratados como complementares e integrados em um ensino de línguas que,
ao mesmo tempo, lide com conteúdos e exercícios tidos como tradicionais, mas também acrescente, à
prática docente, o trabalho com os diferentes jogos de sentidos presentes no processo de interação e na
coconstrução discursiva.
Dessa forma, ao discutirmos o ensino de língua portuguesa, podemos retomar o debate proposto
por Bagno (1999). De acordo com o autor, a visão preconceituosa em relação à nossa língua está ligada a
alguns mitos: (i) a língua portuguesa falada no Brasil apresenta uma unidade surpreendente, (ii) brasileiro
não sabe português /só em Portugal se fala bem português, (iii) português é muito difícil, (iv) as pessoas
sem instrução falam tudo de forma errada, (v) o lugar onde melhor se fala português no Brasil é o
Maranhão, (vi) o certo é falar como se escreve, (vii) é preciso saber gramática para falar e escrever bem e
59
APRENDIZES SURDOS E ESCRITA EM L2:
REFLEXÕES TEÓRICAS E PRÁTICAS
Assim, se a variação é um aspecto natural nas línguas, ela deve, consequentemente, ser considerada
como um elemento central de suas investigações. Vieira (2017), por exemplo, defende que sejam adotados
três eixos no ensino de gramática. De acordo com a autora, é possível efetuar trabalhos pedagógicos a
partir de “(i) elementos que permitem a abordagem reflexiva da gramática; (ii) recursos expressivos na
construção do sentido do texto; e (iii) instâncias de manifestação de normas/variedades” (VIEIRA, 2017,
p. 71).
No primeiro eixo, são focalizadas questões que englobem aspectos linguísticos, epilinguísticos e
metalinguísticos por meio de uma abordagem reflexiva, em que estão em voga o ensino e a sistematização
das regras. No segundo, com base em fundamentos do Funcionalismo e da Análise do Discurso, na
perspectiva de Charaudeau, são explorados os efeitos de sentido dos elementos linguísticos, tendo em
vista o papel da gramática na construção do texto. No terceiro, estão em foco questões de variação e de
diferentes normas.
Apesar de didaticamente separados, esses eixos devem ser integrados para um ensino mais
produtivo. Ou seja,
o ensino de gramática como atividade reflexiva (Eixo 1), aliado ao
desenvolvimento da competência comunicativa (Eixo 2), deve ser conjugado
ao trabalho com variação linguística como condição, na maioria dos casos,
para a promoção do letramento, seja no nível da recepção (leitura), seja no
da criação (produção textual) (VIEIRA, 2017, p. 80).
Tal proposta implica, necessariamente, trabalhar com diferentes contextos de uso, pois, de acordo
com os estudos sociolinguísticos, a variação é motivada por fatores intra e extralinguísticos, incluindo
questões, como faixa etária, sexo, região e escolaridade. Assim, nessa visão, “quem”, “onde” e “como”
são aspetos centrais e, portanto, devem ser considerados no estudo da língua. Ou seja, não é possível
separar o estudo científico e, consequentemente, pedagógico da variação do seu entorno discursivo, o
60
LINGUÍSTICA E ENSINO
Essa abordagem pode ser bastante relacionada ao que tem sido denominado como
Sociofuncionalismo (TAVARES, 2013; TAVARES; GÖRSKY, 2015). Nessa perspectiva, os estudos
variacionistas incorporam, em seus trabalhos, aspectos discursivos em busca de uma visão mais ampla e
integrada dos fenômenos linguísticos. Ou seja, a variação é analisada, também, a partir de motivações
contextuais e da absorção dos pressupostos teóricos do Funcionalismo norte-americano.
Ressaltamos, porém, que o trabalho com a variação e com os aspectos contextuais a ela ligados
não implica a exclusão da observação e da análise dos postulados da gramática tradicional. É necessário
que haja, na verdade, a integração entre o que a visão normativa postula e que, frequentemente, os
alunos já aprendem no ambiente escolar com as descobertas da Linguística contemporânea. Ou seja,
não deve ser eliminado o ensino de gramática normativa, havendo, apenas, uma forma diferente de fazê-
lo, congregando com exemplos não previstos e usuais na vivência linguística dos alunos e com as pressões
do discurso.
Para que essa abordagem seja efetuada, conforme o quadro abaixo, alguns temas possíveis são:
61
APRENDIZES SURDOS E ESCRITA EM L2:
REFLEXÕES TEÓRICAS E PRÁTICAS
TEMAS
Ordenação SV/VS
Concordância nominal
Concordância verbal
Colocação pronominal
Estratégias de indeterminação do sujeito
Ordenação de adverbiais qualitativos/ modalizadores/ temporais/ locativos
Estratégias de modalização
Usos de preposições
Usos de conjunções coordenativas/ subordinativas
Usos de pronomes
Usos de adjetivos
Assim, no estudo da língua, precisamos considerar a variação como um aspecto central, levando
ao mapeamento das diferentes formas de comunicação. Tal processo implica considerar que toda
interação ocorre por meio de textos, ou seja, de usos linguísticos reais. Eles podem ser agrupados a partir
de padrões discursivos mais abstratos, denominados gêneros discursivos/textuais, que são caracterizados,
em linhas gerais, por meio de critérios temáticos (assuntos/ temas possíveis), estilísticos (seleções lexicais
e gramaticais) e composicionais (partes constitutivas do texto e tipologias textuais, por exemplo).
Para contemplar essas questões, uma possibilidade de trabalho é unir o ensino de gramática com
as competências de leitura e produção textual que, embora estejam diretamente ligados, muitas vezes
são exploradas de forma separada. Isso se liga à proposta de Geraldi (1984), segundo a qual, o ensino
de línguas deve ser pautado em três práticas de linguagem constantemente articuladas: leitura, análise
linguística e produção de textos. Nessa visão, o ensino de gramática funciona como parte de um todo,
em que também estão inseridas atividades de interpretação e, em última instância, de produção. Embora
essa proposta não seja nova, ela ainda parece ser pouco executada, como demonstramos no quadro
abaixo:
62
LINGUÍSTICA E ENSINO
Para que tais propostas sejam executadas, porém, alguns conceitos tradicionalmente consagrados
devem ser repensados. Não é possível adotar uma visão de ensino pautada no texto e nos efeitos de
sentido sem considerar uma nova concepção de língua, por exemplo. Não podemos analisá-la sob um
ponto de vista estático e descontextualizado, da mesma forma que não podemos entender a variação
como o lugar do erro, como demonstraremos no quadro abaixo:
63
APRENDIZES SURDOS E ESCRITA EM L2:
REFLEXÕES TEÓRICAS E PRÁTICAS
Diante dessas discussões, podemos dizer que o ensino de línguas pautado na reflexão deve passar
por uma concepção científica, (re)pensando alguns aspectos basilares. Dessa forma, há a necessidade
de integrar conceitos e práticas para um ensino produtivo e que, efetivamente, seja coerente com uma
proposta baseada no uso, como demonstramos na figura a seguir:
variação
contexto
gramática
texto
produção textual
leitura
Tais discussões podem ser aplicadas à análise da produção textual de alunos surdos (cf. SOARES,
2018; FREITAS JR et al., 2018). Freitas Jr. et al. (2018) apontam que a escrita do surdo, mesmo em
contextos com nível superior de escolaridade, apresenta problemas específicos, resultantes, dentre outros
aspectos, de políticas públicas equivocadas e de metodologias de ensino que não se adequam a tal grupo.
Em busca de possíveis soluções, os autores mapearam problemas na escrita de surdos universitários em
defesa, também, de uma metodologia didática diferenciada e adaptada.
64
LINGUÍSTICA E ENSINO
Dessa forma,
investigar o texto escrito do aluno surdo universitário significa, em última
análise, contribuir para o pensar da práxis educacional nos diferentes
níveis de ensino. Ao mapearmos, minimamente, os aspectos que podem
comprometer a produção textual do aluno universitário, além de criarmos
a oportunidade necessária para a melhoria do ensino desse aluno, estamos
abrindo um espaço de discussão acerca do ensino desses aspectos nos níveis
mais elementares do ensino para surdos (FREITAS JR et al., 2018, p. 8).
Defendemos, então, que, para um ensino produtivo, devemos trabalhar, sempre que possível,
com exemplos reais de uso, pois eles refletem a realidade dos alunos e permitem que eles conheçam
outros padrões discursivos. Assim, será considerado, como parte dessa trajetória, o trabalho com a
variação, impreterivelmente presente nos mais variados textos, e, consequentemente, com o contexto,
pois as formas linguísticas estão inseridas em alguma situação comunicativa. Além disso, acreditamos
que, ao trabalhar a gramática considerando, também, seu papel no texto, ou seja, seus efeitos de sentido,
os alunos conseguirão perceber a funcionalidade dos itens na construção da língua e, por conseguinte,
se bons leitores e analistas, estarão mais propensos a produzirem bons textos, como exemplificaremos na
próxima seção.
Para que sejam formados bom produtores de texto, é impreterível que haja bons leitores. Só é
possível produzir bem um gênero se suas características são, de alguma forma, conhecidas pelo futuro
produtor, o que deve ser feito, prioritariamente, por meio da leitura de diferentes textos pertencentes ao
gênero a ser produzido. Dessa forma, o ensino de produção textual está diretamente ligado ao ensino de
interpretação, pois ele guiará a compreensão e a constituição do gênero.
Um exemplo desse encadeamento didático pode ser visto em Castanheira e Fortuna (2019). Nesse
trabalho, os autores analisam a adaptação de “Pinóquio” na coleção “Turma da Mônica – Grandes
65
APRENDIZES SURDOS E ESCRITA EM L2:
REFLEXÕES TEÓRICAS E PRÁTICAS
clássicos”, publicada em 2017 pela editora Girassol. De forma geral, os autores demonstram que a
construção da história envolve constantes adaptações a partir de seu público-alvo por meio de suavizações,
mudanças no enredo e novos entrechos narrativos guiados, também, pela escolha dos personagens.
Castanheira e Fortuna (2019) apontam, por exemplo, que, nessa nova versão, há representações
claramente motivadas, como, por exemplo: Chico Bento g Pinóquio, Mauricio de Sousa g Gepeto,
Dona Marocas g Fada Azul e Zé Lelé g Grilo Falante. A construção do eixo central do livro é toda
adaptada a partir da Turma do Chico Bento, subgrupo inserido no contexto mais amplo da Turma da
Mônica, o que representa a busca pela coerência da construção narrativa. Além disso, características
compartilhadas pelos personagens também marcam tais escolhas: Pinóquio e Chico Bento são meninos
levados, Mauricio de Sousa e Gepeto são criadores, Dona Marocas e Fada Azul são representações
maternas e Zé Lelé e Grilo Falante são melhores amigos do protagonista.
Diante disso, são apresentados cerca de 40 exercícios em busca de um caminho conjunto, unindo
a constituição do gênero conto de fadas a questões de interpretação ligadas à construção da narrativa e
ao processo de intertextualidade. Nelas, há atividades divididas em três etapas (pré-textual, textual e pós-
textual), que são caracterizadas pela sistematicidade de atividades leitura. A partir dessas etapas, ao fim
de todo o processo, é feita uma proposta de produção textual, vinculada à produção de uma nova versão
da mesma história, respeitando as características do gênero e visando à circulação do texto.
Outro aspecto relevante é a inserção das atividades voltadas para o ensino de gramática em
contextos de leitura e produção textual. Sob essa perspectiva, é possível demonstrar que os elementos
linguísticos estão a serviço da construção do texto e, consequentemente, dos efeitos de sentido construídos
dentro dos contextos em que eles estão incluídos. Ler, nessa visão, implica entender o papel da gramática
no texto e, produzir, consequentemente, considera utilizá-la de forma consciente e ordenada.
Assim, se o objetivo é produzir um artigo de opinião, devem ser lidos e analisados artigos opinativos
66
LINGUÍSTICA E ENSINO
para que haja a conscientização das estratégias linguísticas e contextuais usadas pelos articulistas em seus
textos. Isso só pode ser feito por meio da leitura e da análise de textos representativos do gênero, o que
implica necessariamente na sistematização e, consequentemente, no uso da modalização como uma
estratégia representativa do gênero em destaque.
Isso pode ser feito, também, por meio da análise das marcas de concordância (cf. CHAGAS,
2016). Um dos aspectos mais estigmatizados no português brasileiro, a ausência de marcação da
concordância está diretamente ligada a fatores sociais, sobretudo o grau de escolaridade. Dessa forma,
muitas pessoas sofrem preconceito linguístico por fugirem ao prescrito pela norma padrão, o que gera
exclusão e silenciamento.
Demonstrar aos alunos contextos em que há tais usos e confrontá-los quanto ao seu processo
de percepção em relação a esses e a outros usos é essencial, pois abre espaço para discussões mais
sistemáticas sobre a existência e o papel da variação na construção discursiva dos textos. Além disso,
também permite que sejam exploradas as variáveis linguísticas que influenciam seus usos, como posição
do sujeito e saliência fônica. Ao se depararem com textos mais formais, a percepção possivelmente
será diferente, pois há outras regras pragmáticas envolvidas, o que, consequentemente, leva a distintas
discussões linguísticas e pedagógicas.
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante da discussão efetuada, podemos dizer, de forma geral, que a linguística brasileira, apesar
dos inúmeros avanços teóricos, ainda parece não explorar de forma acentuada o potencial de seus estudos
em busca de diferentes impactos sociais, sobretudo em relação à interface com o ensino. Nesse cenário,
novos caminhos precisam ser explorados em busca de uma trajetória mais integrada aos múltiplos
contextos de ensino-aprendizagem, como já têm feito alguns pesquisadores.
Além disso, a partir dos exemplos apresentados, podemos dizer que é possível – e necessário –
incluir discussões linguísticas na sala de aula. Além disso, a variação e o discurso não devem ser vistos
como polos distintos e opostos, mas como aspectos complementares e dialogados. É preciso, então,
considerar todas as discussões estabelecidas pela gramática tradicional, mas vinculá-las às descobertas
67
APRENDIZES SURDOS E ESCRITA EM L2:
REFLEXÕES TEÓRICAS E PRÁTICAS
Sob essa perspectiva, é preciso repensar conceitos cristalizados no ambiente escolar a partir de
uma nova concepção de ensino. Dessa forma, questões de variação, por exemplo, deixam de configurar
o lugar do erro, ou um conteúdo isolado, e passam a fazer parte de um todo complexo, ligado a aspectos
contextuais, visto que os usos da língua assumem lugar de destaque. Ressaltamos, ainda, que, em relação
à escrita do surdo, essas questões devem ser tratadas com refinamento metodológico ainda maior, pois
há diversos aspectos linguísticos e culturais a serem considerados, tendo em vista o processo de aquisição
de segunda língua.
REFERÊNCIAS
BAGNO, M. Preconceito linguístico: o que é, como se faz. São Paulo: Edições Loyola, 1999.
FREITAS JR, R. et al. Será um grande de aprendizado: uma análise descritiva dos aspectos linguísticos
da escrita de surdos em PBL2 – interfaces entre textualidade, uso e cognição no estado de interlíngua.
Pensares em revista, v. 01, p. 07-29, 2018.
68
LINGUÍSTICA E ENSINO
VIEIRA, S. R. Três eixos para o ensino de gramática. In: VIEIRA, S. R.. (Org.). Gramática, variação
e ensino: diagnose e propostas pedagógicas. Rio de Janeiro: Letras UFRJ / FAPERJ, 2017, p. 64-82.
69
PORTUGUÊS E LIBRAS: DISTORÇÕES E
SUPERGENERALIZAÇÕES
INTRODUÇÃO
A motivação para essa complexa situação tem uma alegação antidiscriminatória, em favor da
interação social de surdos. No entanto, os benefícios educacionais da integração de aprendizes surdos em
classes seriadas, sem que tenham desenvolvido capacidade de uso do PB e, em muitos casos, da Libras,
equivale à submersão em um ambiente sem ferramentas específicas para um trabalho especializado.
Evidências como as apresentadas em estudo de Luccas et al. (2012) oferecem indicativo do que
provavelmente acontece em escolas regulares de outras partes do país. O estudo, com abrangência de
35 escolas inclusivas da rede pública de São Paulo, relata que as fichas dos alunos surdos, encontradas
nas secretarias das escolas, trazem pouca informação sobre suas especificidades. Indicações tais como
1 Universidade Federal do Rio de Janeiro; Faculdade de Letras - Departamento de Letras - Libras; lia.abrantes@letras.ufrj.br
70
PORTUGUÊS E LIBRAS:
DISTORÇÕES E SUPERGENERALIZAÇÕES
idade e grau da perda auditiva, tipo de comunicação utilizada e nível de oralização, não integram
obrigatoriamente o perfil sociolinguístico desse público-alvo. As autoras ainda ressaltam que professores
relatam não saberem como essas informações poderiam favorecer o trabalho com surdos, o que evidencia
a necessidade de formação especializada para professores que passaram a atuar com essa população.
Como contribuição para ampliar o entendimento dos fenômenos relativos à linguagem, direciono
a discussão para a relação estabelecida entre as condições linguísticas e sociocognitivas de aprendizes
surdos e as distorções consequentes das supergeneralizações que embaçam conceitos difundidos por várias
pesquisas na área de aquisição de linguagem. Com essa discussão, pretendo oferecer aos interessados
em ensino e pesquisa sobre desenvolvimento de linguagem por um viés cognitivo-funcional, seguindo o
modelo baseado no uso, capaz de explicar fenômenos que envolvem o público-alvo surdo.
DISTORÇÕES E SUPERGENERALIZAÇÕES
Afirmações supergeneralizadas ou ingênuas, tais como as de que (i) “a Libras é a L1 dos surdos.”;
(ii) “a Libras é a língua natural do surdo.”; (iii) “O português é L2 do surdo.”; (iv) “O português surdo
é a forma de comunicação escrita possível entre surdos e ouvintes.”; (v) “A escrita não é natural para os
surdos.”, deixam saliente o fato de que há desconhecimento científico sobre linguagem humana e sobre
fenômenos ligados a condições para emergência de línguas (e de conhecimento em geral) na mente de
qualquer indivíduo.
As condições inicias para que crianças surdas e ouvintes iniciem o processo de desenvolvimento
da L1 impõem que seus canais perceptuais estejam disponíveis a fim de que possam (i) ler intenções de
seus interlocutores e (ii) identificar padrões da língua usada por eles (TOMASELLO, 2003). Se crianças
71
APRENDIZES SURDOS E ESCRITA EM L2:
REFLEXÕES TEÓRICAS E PRÁTICAS
surdas não têm o canal perceptual auditivo disponível para desenvolverem a língua oral, nem contam
com parentes que usem uma língua de sinais – língua compatível com o canal perceptual da visão –,
particularmente no ambiente doméstico, elas não desenvolvem esta língua durante os primeiros anos de
vida, como é esperado para uma L1. Nesse caso, o sistema de comunicação que surge do contato com os
familiares é o primeiro a emergir, não representando, um sistema linguístico per si, com complexidade
comunicativa simbólica e estrutural, mas ainda assim, cumprindo papel relevante para o desenvolvimento
inicial da criança.
Essa situação experimentada em âmbito familiar e observada pelo viés teórico sociocognitivista
evidencia os pressupostos de que sistemas de comunicação são convenções criadas e compartilhadas entre
participantes de uma comunidade (nesse caso, a família) e, ainda, de que não há passividade por parte
das crianças surdas. Ao contrário, elas têm papel ativo na leitura das intenções de seus familiares e na
busca de padrões nos gestos dêiticos e imperativos, e nos movimentos corporais e faciais, que, apesar de
constituírem repertório limitado para expressão de significados complexos que se poderia produzir por
meio de línguas, funcionam no ambiente familiar. Em tal contexto, “esse sistema evita o isolamento da
criança e exerce alguma influência em seu desenvolvimento e organização mentais, ainda que seja pouca
e parcial a informação trocada por ambas as partes” (SOARES, 2018:67). Embora não corresponda a
um quadro ideal para desenvolvimento infantil, esse sistema de comunicação tem sua importância, dada
a vital necessidade de interação entre sujeitos e referentes externos para um inicial desenvolvimento das
capacidades cognitivas, sociais e emocionais da criança.
Ainda que o sistema de comunicação familiar tenha sua importância como a primeira forma
de interação e de representação do ambiente, é inegável a necessidade de que haja evolução para
comunicação simbólica rica em itens linguísticos, ou seja, construções, (semi)abstratas/substantivas,
atômicas e complexas, com forma e significado (cf. TRAUGOTT & TROUSDALE, 2013). Caso tal
evolução não se inicie ainda na infância, processos cognitivos de domínio geral (analogia, categorização,
associação transmodal, dentre outros) (BYBEE, 2010), recrutados durante o desenvolvimento de qualquer
conhecimento, encontram poucas oportunidades para se fortalecerem no âmbito das experiências
comunicativas antes de as crianças iniciarem a escolarização. Nessas condições, mesmo crianças surdas
de primeira geração2 são iniciadas aos conteúdos escolares munidas de representações cognitivas e de
mundo que puderam construir principalmente pelo canal visual, usando o sistema de comunicação
familiar.
2 Surdos de primeira geração se referem àqueles que têm pais ouvintes e os de segunda geração, àqueles que têm pais surdos.
72
PORTUGUÊS E LIBRAS:
DISTORÇÕES E SUPERGENERALIZAÇÕES
Mesmo que para muitos surdos a LS não emerja em condições características de uma L1, em vários
casos é a eleita para interação em comunidades surdas. A esse respeito, cabem algumas considerações.
Do ponto de vista linguístico, se não se pode afirmar que a Libras, por exemplo, é a primeira língua de
surdos brasileiros de primeira geração, politicamente é legítimo e necessário o empenho de pesquisadores
e de membros das comunidades surdas para que crianças surdas possam ter acesso precoce a essa língua.
Há ainda outra implicação nesse contexto a qual não se pode deixar de mencionar. Assim como
surdos de segunda geração, ouvintes filhos de surdos também desenvolvem a Libras como L1, já que
há condições necessárias à percepção de input (insumo da língua-alvo) produzido por seus pais. Sendo
assim, parece que a afirmação de que a Libras é a L1 do surdo não contempla a população ouvinte
bilíngue. A Libras é uma das quase 7 mil línguas do mundo que pode emergir como L1 de qualquer
criança que esteja em condições ambientais e perceptuais adequadas para seu desenvolvimento, e não
somente por crianças surdas, como pode fazer crer a afirmação.
Equívoco semelhante se encontra na ideia de que o português seria a L1 usada por todos os
brasileiros. Essa ideia desconsiderou por muito tempo que há no Brasil, além de surdos, uma população
indígena ouvinte que aprende primeiro a língua de sua tribo e nem sempre aprende o português. Essa
supergeneralização que integra o mito do monolinguismo no Brasil foi bem discutida em trabalhos,
como os de Bagno, (1999), Cavalcanti (1999), Grannier (2001) dentre outros.
Em relação aos surdos brasileiros, a afirmação de que o português é sua L2 indica uma ingenuidade
que não combina com a seriedade de questões aquisicionais e políticas que precisam ser discutidas e
resolvidas, com vistas a reavaliar ideias supergeneralizadas e de senso comum. Axiomas propostos a
respeito da L1 e da L2 não representam as realidades dessa população, intrinsecamente heterogênea,
que têm surdos usuários de Libras, surdos cujo contato com o PB se iniciou, ou não, precocemente e
surdos com bom, ou nenhum, desenvolvimento de capacidades comunicativas nesta língua. Para muitos
surdos, o português é usado como L1. Para outros, que não contaram com meios para desenvolverem
bem o português, nem como L1 nem como L2, um sistema híbrido com características diversas, como
apagamentos de itens, colocações divergentes e mescla de construções (FREITAS et al., 2018; SOARES,
2018; NASCIMENTO et al., 2019), é o meio de contato por vários anos, antes de a Libras surgir em suas
vidas.
73
APRENDIZES SURDOS E ESCRITA EM L2:
REFLEXÕES TEÓRICAS E PRÁTICAS
da exposição a uma metodologia de ensino incompatível com suas condições perceptuais, surdos afirmam
que o PB é a L2 dos surdos brasileiros, sendo apoiados por ouvintes com pouco ou nenhum conhecimento
de pesquisas linguísticas com fundamentação teórica. Questionar afirmações que parecem ser de senso
comum aponta elementos imprecisos com significados nebulosos sobre o conhecimento linguístico desse
público-alvo. Tais elementos prejudicam a tomada de decisão relativa a quais rotas seguir no âmbito do
processo de ensino/aprendizagem tanto do PB quanto da Libras, a exemplo das frágeis discussões sobre
os métodos de alfabetização para surdos (cf. COSTA et al., 2020).
Seja em contexto de imersão seja em contexto de ensino formal, é usual que aprendizes e usuários
de L2 se refiram não ao status que a língua assume em sua vida, mas (i) ao seu nível de proficiência
(básico, intermediário ou avançado), destacando sua melhor ou pior atuação dentre as quatro habilidades
linguísticas (compreensão oral/sinalizada e leitora, produção oral/sinalizada e escrita), ou (ii) ao tempo
de estudo da língua não nativa. A informação sobre o nível de proficiência parece trazer mais objetividade
às decisões a serem tomadas em âmbito escolar. Saber o que aprendizes são capazes de compreender
e produzir em uma língua (LS e/ou LO) é ponto primário para elaboração de um plano de trabalho
consistente.
No caso dos surdos de primeira geração, as afirmações de que o português é sua L2 e a Libras
é sua L1 consistem em uma convenção estabelecida no contexto de educação de surdos, mesmo que a
aprendizagem da Libras tenha se iniciado tardiamente e o sistema de comunicação familiar tenha sido
o primeiro a emergir. Talvez a intenção seja resguardá-los de julgamentos a respeito do nível de suas
habilidades de leitura e escrita em português. Essa frágil convenção, entretanto, assume papel de anteparo
e estabelece um bloqueio que freia ações transformadoras do produto de leitura e escrita dos aprendizes
surdos. Com essa perspectiva, impedem-se ações teórico-metodológicas para mudança no “metabolismo
linguístico” (cf. SOARES, 2018) desses sujeitos, sem projeção do alcance de bons níveis de desempenho
em PB. Ou seja, mantém-se o baixo desempenho na língua escrita, sem avanços consistentes em direção
aos níveis mais altos da língua alvo, como demonstra revisão de teses publicadas nos últimos 40 anos
sobre leitura, empreendida por Andrews et al. (2015). O estudo, consistente com pesquisas revisadas por
Bochner e Albertini (1988), indica nível médio de leitura em inglês dos surdos americanos, ao final da
educação básica, correspondente ao quarto ano de escolaridade.
Vincula-se a afirmação de que a escrita não é natural para os surdos à ressalva de que o português
é sua L2. A escrita, no entanto, não é natural nem para surdos nem para ouvintes, já que demanda
instrução explícita do funcionamento de sua arquitetura para as duas populações. Dados de exames
governamentais, tais como Avaliação Nacional da Alfabetização (ANA) e Programa Internacional de
Avaliação de Estudantes (PISA) demonstram que resultados de estudantes brasileiros em atividade de
produção e compreensão escritas não são de alto desempenho quanto se poderia esperar para uma
atividade com desenvolvimento espontâneo.
Em contexto tão desfavorável, o PB escrito assume condição de “português surdo” como uma
74
PORTUGUÊS E LIBRAS:
DISTORÇÕES E SUPERGENERALIZAÇÕES
variante específica em uso pela comunidade surda. A naturalização dessa ideia pode ser perigosa, caso se
assuma impossibilidade de mudança nas condições de ensino e de aprendizagem. Tenha características
de interlíngua ou de um sistema em que as construções do PB e da Libras competem entre si dada
a fraqueza de suas relações (cf. SOARES, 2018), a literatura na área de aquisição de L2 e resultados
de exames de proficiência demonstram ser possível que não-nativos ultrapassem fases de instabilidade
durante aprendizagem da língua-alvo, progredindo satisfatoriamente para níveis de proficiência cada vez
mais altos. Para tanto, requisitos, tais como o de professor com formação específica e o de metodologia
adequada, devem ser atendidos.
Outra distorção relacionada ao “português surdo” diz respeito à classificação ‘oralizado’ e ‘não
oralizado’ e o que suas definições não gradientes significam em termos de conhecimento e uso de um
sistema linguístico. Muitos dos adultos com surdez profunda, submetidos a tentativas de oralização que
podem levar em média 12 anos, a depender da idade da perda auditiva e do engajamento familiar
(GOLDFELD, 1997), atingem resultados nem sempre expressivos em relação não só à qualidade
articulatória e à capacidade de leitura labial, mas também no encadeamento de sequências de itens de
acordo com restrições morfossintáticas do sistema da língua oral, observados em interações entre surdos
e ouvintes.
Embora haja casos bem-sucedidos, o que se nota com frequência é uma produção oral com
muitos e variados tipos de lacunas – sem realização sonora de diferentes tipos de itens (gramaticais e
lexicais) do PB –, que, por vezes, são preenchidos por sinais. Esse tipo de produção com característica
bimodal aponta tanto para a qualidade do input recebido em interação com ouvintes durante muitos
anos quanto para a representação do português na mente desses muitos surdos. A informação linguística
oferecida pela população ouvinte e recebida via canal visual apresenta, por exemplo, “velocidade e
intensidade variáveis e não permite identificação integral dos padrões construcionais que constituem o
PB” (SOARES, 2018:73). Em termos quantitativos, estima-se que 75% da compreensão via leitura labial
seja dependente de hipóteses e inferências contextuais (SACKS, 1990). Essas condições tão instáveis
para emergência de língua parecem ter efeitos na representação mental que o PB assume na memória
dos surdos e que se pode verificar na produção escrita desses sujeitos, como veremos mais adiante.
Estudo de Garcia (2001) apresenta transcrições de amostras orais relativas à descrição de uma
imagem. As amostras foram produzidas por 12 adultos (entre 18 e 39 anos) com surdez profunda e
congênita, oralizados e usuários de Libras. Apesar de o objetivo da autora estar centrado na investigação
de níveis de fluência3 de surdos oralizados, os exemplos da produção oral dos participantes são
3 Em razão da confusão entre fluência e proficiência, importa diferenciar os dois termos. O conceito de proficiência contempla
a capacidade dos usos das formas (fonologia, morfologia, sintaxe e prosódia) e dos significados (semântica e pragmática),
medida em níveis a partir da observação das habilidades de compreensão e de produção dos usuários de uma língua. Fluência
traz em seu conceito elementos do domínio da prosódia, integrando-se, portanto, como um dentre outros componentes
que integram o conceito de proficiência. Fluência é observada como uma medida gradiente de desempenho linguístico,
cujas características mais salientes são a duração e a localização das pausas, que contribui para julgamento de proficiência
(SOARES, 2017).
75
APRENDIZES SURDOS E ESCRITA EM L2:
REFLEXÕES TEÓRICAS E PRÁTICAS
(1) [...] menino mora favelado. triste sentir, é difícil de explicar. admirando fotógrafo. tem
olhos azuis, moreno, imundo. num tem lugar bom. deve ser mora longe São Paulo [...] (39 anos;
ensino médio completo) (p. 81)
(2) ele tem roupa com amarelo tem short tem sujo tem sapato pé está sentado sozi- não
aparece família tá sozinho está na rua parece lugar sujo [...] (19 anos; 3º do ensino médio) (p.99)
(3) [...] tô vê pessoas, as criança boni-, olho azul, muito pobre, casa difícil tem um Brasil
dinheiro pobre difí-. eu medo não. gosta muito ele. ele não culpa não. ~~~~ [...] (23 anos; 7º ano)
(p.102)
Em (1), observa-se uso divergente de padrões combinatórios do PB, tais como os dos verbos:
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PORTUGUÊS E LIBRAS:
DISTORÇÕES E SUPERGENERALIZAÇÕES
• “ele tem roupa com amarelo tem short tem sujo tem sapato Ø pé” diverge do padrão [ter +
substantivo].
Em (3), há preenchimentos divergentes, tais como:
• “tô vê pessoas”, em que a sequência apresenta divergência na forma do verbo principal (vê),
recrutada pelo padrão [estar + gerúndio + complemento];
• “tem um Brasil dinheiro pobre difi-”, em que há uma sequência de itens que não se
combinam como complemento de ‘tem’, comprometendo emergência de significado;
• “eu medo não” e “ele não culpa não”, em que parece não haver preenchimento de dois possíveis
núcleos verbais com alguma das formas de ‘ter’ ou de ‘sentir’, divergindo dos padrões [eu Ø
medo] e [ele Ø culpa].
A forma com que os itens são combinados durante a produção oral oferece evidências da
constituição do sistema usado pelos participantes do estudo. Os enunciados dos oralizados indicam que
há muitas lacunas na representação mental do PB, assim como as identificadas na produção escrita dos
surdos oralizados e daqueles não oralizados. As evidências sugerem, portanto, o direcionamento das
investigações para quantidade e a qualidade do input (escrito e oral) oferecido aos dois grupos de surdos.
Além do insumo de língua escrita, a prática da leitura labial integra as formas de recepção de
input a que os surdos estão expostos. Assim, insisto na necessidade de um olhar mais cauteloso sobre essa
prática, pois pode ser um fator a contribuir para o armazenamento de padrões construcionais divergentes
na constituição do PB representado na mente de adultos surdos. A representação divergente pode ser
decorrente de perdas perceptuais de elementos linguísticos, por exemplo, em fronteiras de palavras que
se conectam durante a enunciação de nativos. Essas perdas podem afetar desde segmentos até itens
gramaticais e lexicais, como por exemplo: -te em [gen’direita] e de em [faculda’de medicina]4.
Divergências encontradas por Vincent-Durroux (2013) são semelhantes às que encontro em Garcia
(2001). A partir da observação da produção oral dos surdos anglófonos e francófonos não sinalizantes,
o estudo aponta divergências relativas aos usos de preposição, determinação nominal e tempos verbais,
também mapeadas em produções escritas de surdos oralizados e de não oralizados apresentadas em
Freitas et al. (2018), Nascimento et al. (2019), dentre outros. As evidências indicam que a oralização
não garante aprendizagem dos variados padrões construcionais da língua-alvo. Sem instrução explícita,
profissional especializado e metodologia específica para ensino de L2, o sistema emergente, observado
por meio da produção de surdos que oralizam ou não, apresenta características semelhantes, como
veremos nas produções (4) e (5).
Os textos a seguir foram escritos por surdos: o primeiro, por um adolescente e o segundo, por
um adulto universitário. Ambos são sinalizantes com surdez profunda pré-linguística e passaram por
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APRENDIZES SURDOS E ESCRITA EM L2:
REFLEXÕES TEÓRICAS E PRÁTICAS
“Patinho feio”
mamãe está chocando os ovos. Nasce o primeiro patinho. O segundo ovo quebra e nasce outro
patinho. Ela vê dois patos amarelos iguais e o terceiro ovo quebra e nasce mais um patinho.
A mamãe vê e acha estranho o patinho branco e ao mamãe pata vêr que eles são diferentes e
estranhos. A briga acabar. O patinho feio andar. Vem os amigos.
(5) Eu estava conselho a vida com ele de principal procurando seja feliz e trabalho a vida
sucesso cuide família pagamento o corsu, depois no faculdade, o depois futuro formatura no
faculdade. O que aconteceu futuro a aumentar o salirio. (Texto de um estudante universitário,
disponível no Corpus Neis.)
Eu estava aconselhando sobre a vida dele. Principalmente, procure ser feliz, trabalhar.
Para ter uma vida com sucesso, cuide da família, pague o curso, depois inicie a faculdade, e
depois, quando se formar, o salário aumentará. (SOARES, 2018:73)
Em uma breve análise, é possível identificar as divergências já mapeadas e discutidas nos estudos
citados anteriormente, tais como o não preenchimento de posições de determinantes (“Ovos nascer”) ou
sua inserção em posições equivocadas (“o depois futuro”), além de outras divergências morfossintáticas
e semânticas (“O que aconteceu futuro”). Tais divergências, também observadas nos textos (1), (2) e (3)
(oralizados), causam problemas de legibilidade por não seguirem padrões combinatórios determinados
pelo sistema do PB.
O ponto de distinção de melhor ou pior desempenho em uma língua aprendida via oralização ou
só pela via escrita não parece ser o da capacidade de oralizar. De fato, o alcance dos níveis de consciência
de padrões fonológicos, morfológicos e sintáticos, desenvolvidos por meio de metodologia específica em
que não há espaço para ensino de listas de palavras ou de sentenças descontextualizadas, parece ter
maior relevância. O acesso durante a primeira infância a uma língua que possibilite interação social
e representação do mundo em curto espaço de tempo, como a Libras, também é um diferencial que a
criança deve ter constituído para iniciar o processo de aprendizagem de qualquer conhecimento, seja
linguístico ou de outra natureza.
78
PORTUGUÊS E LIBRAS:
DISTORÇÕES E SUPERGENERALIZAÇÕES
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Seja por poucas pesquisas na área, seja pela desarticulação dos achados sobre a emergência de
conhecimento representado na mente, envolvendo a população surda, a fragilidade do que é veiculado
sobre educação de surdos é um fator importante para que distorções, como as que aqui foram trazidas
para discussão, persistam.
É um grande equívoco tratar situações complexas como se fossem simples. Repensar ideias tão
fortemente instauradas na comunidade científica e fora dela é saudável e esperado, tendo em vista o
surgimento de resultados e de propostas de estudos recentes nas diversas áreas de conhecimento.
As afirmações discutidas neste artigo têm impacto nas abordagens e metodologias de ensino/
aprendizagem de línguas e na formação dos professores que passaram a ter surdos em suas salas de
aula. Os efeitos das distorções e supergeneralizações que rondam a área de educação de surdos, mais
especificamente sobre linguagem, podem comprometer uma efetiva mudança de paradigma no ensino
de línguas para surdos. A necessária especialização dos profissionais que lidam com essa população,
cuja formação deve contemplar aspectos concernentes à grande área de investigação sobre aquisição de
primeira e de segunda línguas, tem o potencial de promover mudanças no quadro atual que se encontra
embaçado por afirmações simplistas.
REFERÊNCIAS
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review of 40 years of dissertation research (1973–2013): Implications for research and practice. American
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As guerras do ensino da leitura: um olhar a partir da epistemologia surda. Revista Espaço. 2020.
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APRENDIZES SURDOS E ESCRITA EM L2:
REFLEXÕES TEÓRICAS E PRÁTICAS
FREITAS JR, Roberto; SOARES, Lia A. A.; XAVIER, Hosana S. da R., & NASCIMENTO, João Paulo
da S. “Será um grande aprendizado”: Uma análise descritiva dos aspectos linguísticos da escrita
de surdos em PBL2 – interfaces entre textualidade, uso e cognição no estado de interlíngua. Pensares em
Revista, n. 12, 2018.
LUCCAS, Marcia Regina Zemella; CHIARI, Brasília Maria; GOULART, Bárbara Niegia Garcia de.
Compreensão de leitura de alunos surdos na rede regular de ensino. J. Soc. Bras. Fonoaudiol.,
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NASCIMENTO, João Paulo da Silva; SOARES, Lia Abrantes Antunes; DE FREITAS JUNIOR,
Roberto. Os bastidores da escrita: análise cognitivo-funcional de processos cognitivos operantes na
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SACKS, Oliver. Vendo vozes: uma jornada pelo mundo dos surdos. Rio de Janeiro: Imago,
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SOARES, Lia Abrantes Antunes. Aspectos que caracterizam fluência em segunda língua.
Matraga-Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras da UERJ, v. 24, n. 41, p. 463-477, 2017.
TOMASELLO, Michael. (ed.) The New Psychology of Language, Cognitive and Functional
Approaches to Language Structure. Volume 2. Mahwah, New Jersey & London: Erlbaum, 2003.
80
REFLEXÕES E POSSÍVEIS CAMINHOS PARA O
ENSINO DE PORTUGUÊS PARA SURDOS A PARTIR
DA ANÁLISE DOS PCN DE LÍNGUA PORTUGUESA
E LÍNGUAS ESTRANGEIRAS MODERNAS
João Paulo da Silva Nascimento1
Dennis Castanheira2
INTRODUÇÃO
Parece haver um consenso, nos estudos dedicados ao ensino, de que há inúmeros problemas no
tratamento da língua portuguesa em ambientes de aprendizagem. Há anos, são observadas as mesmas
metodologias e práticas, mesmo diante do avanço das teorias linguísticas e da multiplicidade de trabalhos
sobre ensino, produzidos na academia. Tais discussões reforçam a ideia de que há uma grande distância
entre as reflexões e a prática de sala de aula no ensino básico e de que esse cenário precisa ser modificado.
Esses problemas não se encontram restritos ao ensino de português como língua materna, mas se
expandem, também, ao seu ensino como segunda língua (L2), seja para estrangeiros ou para surdos. Tal
panorama chama atenção para um debate mais amplo sobre a maneira como diretrizes curriculares, tais
como os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), refletem-se no processo de ensino-aprendizagem de
língua portuguesa no cotidiano.
Neste sentido, com o intuito de promover uma discussão sobre caminhos metodológicos possíveis
para o ensino de português do Brasil como L2 (PBL2) para surdos, o presente capítulo se propõe a lançar
mão de reflexões a respeito dos PCN de língua portuguesa e de línguas estrangeiras modernas (BRASIL,
1998). A escolha por tais documentos deu-se em função de não haver, ainda, estruturações curriculares
1 Universidade Federal do Rio de Janeiro; graduando em Letras (Português e Literaturas) de Língua Portuguesa;
jpn0401@gmail.com
3 Estes conceitos serão tratados aqui como sinônimos, apesar de termos consciência da tênue fronteira entre eles.
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APRENDIZES SURDOS E ESCRITA EM L2:
REFLEXÕES TEÓRICAS E PRÁTICAS
especificamente voltadas ao ensino de PBL2 para surdos, o qual se encontra deslocado da realidade
sofrendo, de modo mais acentuado, com problemas comuns tanto ao ensino de português como língua
materna, quanto ao ensino de L2/LE3.
Assim, na primeira parte serão apresentadas algumas considerações críticas acerca dos PCN de
língua portuguesa por meio da exploração de questões relativas ao ensino de português e de propostas
para o ensino de leitura, análise linguística e produção textual. Na segunda, a discussão será encaminhada
para um olhar crítico sobre definições dos PCN de línguas estrangeiras modernas por meio de proposições
sobre o ensino de PBL2 para surdos em suas esferas metodológica e avaliativa, considerando um trabalho
pedagógico com os conhecimentos sistêmico, de mundo e de organização textual.
Apesar de tantos estudos e esforços, ainda há um foco excessivo na norma padrão, desconsiderando
a heterogeneidade ordenada das línguas e seus processos de variação e mudança em diferentes níveis
linguísticos. Em linhas gerais, a aula de português parece ser centrada em uma língua que não pertence
aos alunos, havendo, constantemente, uma sensação de aprendizado de algo que não está em sua cultura
e em sua vivência, o que está ligado ao fato de o português brasileiro não ser focalizado nas aulas de
língua.
Assim, questões, como a variação “nós” e “a gente”, a entrada do “você” no quadro de pronomes,
os diferentes padrões de colocação pronominal, concordância verbal e nominal e regência são ignorados a
partir de uma cultura punitiva. Aquilo que não está previsto pela gramática tradicional é visto como fora
do padrão e, portanto, passa a não ser considerado ou explicado pelos docentes. Com isso, o conteúdo
de português tende a ser vista como algo difícil e muito distante do que os alunos vivenciam em suas
comunidades de fala.
82
REFLEXÕES E POSSÍVEIS CAMINHOS PARA O ENSINO DE PORTUGUÊS PARA SURDOS
A PARTIR DA ANÁLISE DOS PCN DE LÍNGUA PORTUGUESA E LÍNGUAS ESTRANGEIRAS MODERNAS
Além disso, como aponta Pauliukonis (2013), muitas vezes, a gramática é ensinada a partir de
exercícios descontextualizados e com frases soltas, focalizando apenas a metalinguagem. Ressaltamos
que, na verdade, não constitui um problema ensinar os aspectos gramaticais, discutindo questões de
nomenclatura e classificação. O grande problema é a centralização do ensino de língua portuguesa
apenas a essa prática, reduzindo, consequentemente, outros aspectos que devem ser considerados, como
os efeitos de sentido dos elementos gramaticais e seu papel na tessitura textual.
Essa discussão relaciona-se com a ressalva de Pauliukonis (2013) acerca do ensino de interpretação
de texto. Para a autora, essa prática, ou é pautada na crença do “vale tudo”, ou na ação de colocar o
texto como um mero pretexto para exercícios fragmentados de aplicação e reconhecimento de conteúdo
gramatical. Nessa visão, não há um trabalho efetivo com o texto e, consequentemente, com os sentidos
nele presentes, tendo em vista que sua representação é vista como uma sequência de frases que podem
ser lidas de qualquer forma, sem uma sequenciação semanticamente mapeável.
Diante disso, a autora defende que é necessário adotar uma nova visão de ensino sem considerar
que a interpretação ou a produção textual sejam dons relacionados à sensibilidade do aluno e sem utilizar
o texto como um mero pretexto para atividades de metalinguagem. Tal debate torna-se ainda mais
emergencial diante do fato de os PCN de português há mais de duas décadas discutirem tais questões e
alertarem que o texto deva ser o objeto central do ensino. Sendo assim, parece haver, ainda, um caminho
longo a ser percorrido na interface entre os estudos linguísticos e o ensino de línguas.
Ou seja, para que esse cenário seja modificado, é necessário adotar, junto ao trabalho com a
metalinguagem, uma abordagem variacionista e discursivo-textual. No viés defendido pela autora, (a) a
língua é vista como uma ação interlocutiva, suscetível a constantes processos de variação e mudança, (b)
a gramática é moldada pelas vicissitudes do discurso e (c) o uso é tido como central no ensino. Tal visão,
como veremos na próxima subseção, é defendida, também, pelo PCN.
Os PCN apresentam três práticas de linguagem que devem guiar o ensino de língua portuguesa.
A primeira delas é a prática de leitura, que consiste no trabalho com a compreensão dos sentidos a
partir de diferentes padrões textuais (gêneros, suportes, domínios discursivos) no processo de formação
de leitores críticos. Para isso, é necessário que seja adotada uma outra concepção de texto, passando
a concebê-lo a partir de suas heterogeneidades pragmáticas e de suas multiplicidades de instanciação.
Nessa nova perspectiva, o texto pode ser oral ou escrito e deve ser trabalhado a partir de seu contexto
83
APRENDIZES SURDOS E ESCRITA EM L2:
REFLEXÕES TEÓRICAS E PRÁTICAS
comunicativo. Além disso, o texto não é apenas o material “perfeito”, sem problemas de articulação
textual, nem dotado, necessariamente, de uma grande extensão (GERALDI, 1984).
Apesar de tais elucidações não serem uma novidade nos trabalhos sobre ensino, elas ainda não
são efetivamente colocadas em prática na sala de aula. Santos, Cuba Riche e Teixeira (2012, p. 40)
atestam, por exemplo, que os PCN “defendem que a escola deve preparar os alunos para organizar
textos orais mais elaborados, como debates e seminários”, mas, muitas vezes, o texto falado acaba sendo
colocado em segundo plano, ou sequer é explorado. Além disso, a análise do material escrito é feita de
forma assistemática e desconectada do seu contexto social, dificultando o processo de interpretação.
O ensino de leitura, na perspectiva dos PCN, implica o adentramento efetivo do texto a partir de
atividades de compreensão textual e de estratégias de levantamento de hipóteses. Aprender a ler, então,
é trazer a experiência de mundo para o texto lido, fazendo com que palavras tenham significado para
além do que está efetivamente dito, ou seja, do que está explícito. Dessa forma, ler implica uma atividade
que, ao mesmo tempo, envolve a decodificação de grafemas e os seus processos combinatórios, bem
como o seu processamento discursivo a partir de um letramento crítico (SOARES, 2003). Dessa forma, é
preciso ativar diferentes conhecimentos (linguísticos, textuais, intertextuais, enciclopédicos, interacionais,
contextuais, dentre outros) para efetivamente compreender os sentidos de um texto.
Diante dos postulados apresentados, podemos dizer que os textos devem ser trabalhados a partir
de sua significação e de uma análise que vai além da superfície textual. No entanto, basta um eficiente
ensino de leitura para que sejam sanados todos os problemas de reflexão sobre a língua portuguesa na
escola? É evidente que, embora seja essencial, o trabalho pedagógico não deve se limitar a tal aspecto,
sendo necessário articulá-lo com algumas outras questões, como o ensino de gramática, o que será
explicitado na próxima subseção.
Dessa forma, é preciso buscar outros caminhos para o trabalho com os elementos linguísticos
em sala. Os PCN apresentam, como alternativa, o tratamento da gramática a partir de seu papel no
texto. Essa abordagem, atualmente rotulada como prática de análise linguística, vem sendo defendida
84
REFLEXÕES E POSSÍVEIS CAMINHOS PARA O ENSINO DE PORTUGUÊS PARA SURDOS
A PARTIR DA ANÁLISE DOS PCN DE LÍNGUA PORTUGUESA E LÍNGUAS ESTRANGEIRAS MODERNAS
por diversos autores que trabalham com uma perspectiva discursiva de discussão linguística. Para eles,
a língua deve, necessariamente, ser analisada a partir das vicissitudes do discurso, considerando as
especificidades contextuais dos múltiplos usos dos elementos linguísticos.
Nessa visão, defendida por João Wanderley Geraldi e, posteriormente, revisitada por autores,
como Mendonça (2006), Santos, Cuba Riche e Teixeira (2012) e Bezerra e Reinaldo (2013), é adotada
uma nova concepção de ensino de gramática, pois há uma ruptura com a visão tradicional de exercícios
gramaticais descontextualizados e o alçamento do texto como unidade de ensino central. Ou seja, o texto
deixa de funcionar como um pretexto para exercícios de identificação e classificação formal de frases
soltas e passa a ser a base para o trabalho em sala de aula.
Além disso, é adotada uma nova visão de língua, alinhada com teorias do uso, como a
Sociolinguística, o Funcionalismo, a Linguística do Texto e a Análise do Discurso. Nessa concepção, a
língua está em constantes processos de variação e mudança e deve ser vista como uma ação interlocutiva
sujeita às pressões do discurso. Consequentemente, o ensino de língua portuguesa passa a ser focalizado
a partir desses processos, indo além do que prevê a gramática tradicional e dialogando com as pesquisas
acadêmicas.
No entanto, para que essa abordagem seja efetivamente colocada em prática, é preciso uni-la
com o ensino de leitura, já elucidado neste capítulo. Essa integração deve ocorrer por meio de atividades
que demonstrem que a gramática está relacionada à construção do texto, tendo papel fundamental
em sua tessitura. Assim, os elementos linguísticos devem ser analisados, também, como pistas textuais
que atuam no processo de construção dos sentidos presentes na interação. Para que isso seja efetuado,
devemos adotar uma nova visão de produção textual, como discutiremos na próxima subseção.
Já vimos que as práticas de leitura e análise linguística devem ser relacionadas a partir de uma
perspectiva interlocutiva, mas, para que esse trabalho seja efetuado, devemos apresentar, sempre que
possível, um resultado dessa articulação, o que pode ser feito a partir da prática de produção textual.
Com a concepção do texto como um aspecto social e interacional, a sua confecção passa a ser vista como
um resultado da compreensão de suas características e de seu contexto comunicativo.
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APRENDIZES SURDOS E ESCRITA EM L2:
REFLEXÕES TEÓRICAS E PRÁTICAS
Isso vai de encontro ao que, majoritariamente, se entende como aula de produção textual, pois,
como aponta Geraldi (1984, p. 64-65),
o exercício de redação, na escola, tem sido um martírio não só para os
alunos, mas também para os professores. Os temas propostos têm se
repetido de ano para ano, e o aluno que for suficientemente vivo perceberá
isso. (…) Para o professor, por outro lado, vem a decepção de ver textos
mal redigidos, aos quais ele havia feito sugestões, corrigido, tratado com
carinho.
Diante disso, é necessário salientar que o ensino de produção textual deve englobar diferentes
modalidades, priorizando gêneros orais e escritos. Ao contrário do que geralmente é feito, a aula não
deve focar apenas textos voltados para o vestibular, ou para a tipologia argumentativa, oferecendo,
amplamente, outros padrões textuais, como seminários, debates, histórias em quadrinhos e editoriais.
Isso não significa que a escola não deva preparar os alunos para produção de dissertações argumentativas
nos padrões esperados pelo Exame Nacional do Ensino Médio, por exemplo.
Dessa forma, podemos dizer que a produção textual deve ser tida como um resultado esperado
de etapas anteriores de trabalho com o texto na sala de aula, ou seja, das atividades de interpretação
e análise gramatical a partir de seus aspectos formais e discursivos. Com isso, os alunos conseguirão
entender a configuração textual e explorá-la, também, em seu processo de produção. Assim, as práticas
de leitura, análise linguística e produção de textos devem ser vistas de forma integrada na busca de um
ensino reflexivo e produtivo.
Diante dos debates feitos ao longo desta seção, podemos dizer que uma alternativa de trabalho
com o ensino de língua portuguesa é a união de atividades de leitura, gramática e produção textual a
partir de um mesmo tema e dos mesmos textos, reunindo perspectivas em busca de um ensino baseado
no uso e centrado em metodologias interativas. Salientamos, porém, que esse é, possivelmente, um dos
maiores desafios dos professores atualmente e, por isso, apresentaremos um exemplo de proposta de
aplicação.
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REFLEXÕES E POSSÍVEIS CAMINHOS PARA O ENSINO DE PORTUGUÊS PARA SURDOS
A PARTIR DA ANÁLISE DOS PCN DE LÍNGUA PORTUGUESA E LÍNGUAS ESTRANGEIRAS MODERNAS
Dessa forma, é preciso buscar caminhos já trilhados e exemplos de como trabalhar a partir dos
gêneros textuais, considerando os elementos linguísticos em seus diferentes papéis formais e discursivos.
Santos, Cuba Riche e Teixeira (2012), Köche e Marinello (2015; 2017) e Pauliukonis (2017) defendem
essa abordagem por meio de atividades divididas em três etapas: pré-leitura/pré-textual, leitura/textual
e pós-leitura/pós-textual. Para as autoras, é preciso partir do gênero para que sejam elaboradas questões
de interpretação e de gramática, considerando, também, os efeitos de sentido dos elementos no texto.
Esse percurso pode ser aplicado aos adverbiais modalizadores. De acordo com Castanheira
(2017) e Castanheira e Santos (2018), esses elementos apresentam algumas características típicas, como
podemos ver no quadro abaixo:
Castanheira e Santos (2018) defendem que, para que esse trabalho seja efetuado, é preciso seguir
as seguintes etapas: (i) escolher um gênero textual a ser trabalhado (artigo de opinião, editorial); (ii)
selecionar um suporte a ser usado (jornal, revista, blogue); (iii) definir um ou mais veículos a serem usados
(O Globo, O Dia, Folha de São Paulo, Veja, Carta Capital); (iv) escolher textos representativos do gênero
que tenham adverbiais modalizadores; (v) elaborar atividades pré-textuais de leitura (levantamento
de hipóteses sobre o texto e a tese defendida a partir da leitura do título e da explicação do veículo
de publicação, por exemplo); (vi) formular atividades textuais de leitura e análise linguística (destaque
das partes constitutivas do artigo, da relevância das estratégias argumentativas para construção da tese
defendida pelo texto, da relação entre os adverbiais modalizadores e a construção argumentativa do
texto, da relação entre os modalizadores e a construção subjetiva do texto, dentre outras); (vii) elaborar
87
APRENDIZES SURDOS E ESCRITA EM L2:
REFLEXÕES TEÓRICAS E PRÁTICAS
Diante dessa proposta, é possível unir leitura, análise linguística e produção textual como um
processo cíclico e continuado. Essas atividades podem ser uma importante iniciação ao estudo da
argumentação, tão cara ao ensino atualmente e tão necessária na construção de cidadãos críticos. Ao
mesmo tempo, serão trabalhados os elementos linguísticos e a produção escrita, o que, posteriormente,
pode ser utilizado para sistematização da classe dos adverbiais, partindo das características comuns a
todos os seus subgrupos, já trabalhadas na análise do texto e, posteriormente, demonstrando as demais a
partir de outros exemplos.
Uma das muitas questões que atravessam a prática docente, seja ela no ensino de línguas, seja
direcionada a outros campos do saber, é a diz respeito à problemática sobre as tendências político-
filosóficas subjacentes ao currículo. Basicamente, tal problema, presente na maioria das instituições de
ensino brasileiras e perpetuado por práticas pouco consistentes, inibe o desenvolvimento dos indivíduos
em formação, na medida em que negligencia um aparato crítico das dimensões curriculares e, em
princípio, do próprio conceito de currículo.
De acordo com Moreira & Silva (1994, p.7), entende-se por currículo o artefato da práxis docente
demarcado na “moldura mais ampla de suas determinações sociais, de sua história e de sua produção
contextual”. Nesse sentido, necessariamente, o currículo implica em relações de poder à medida que é
suficientemente capaz de formular identidades individuais e sociais particulares.
Ancorados nesta perspectiva de currículo, bem como no intuito de ampliar e aprimorar o debate
educacional, os PCN, apesar de carecerem de estudos que lhes atribuam uma leitura cada vez mais
crítica, apresentam-se como possibilidades de enxergar o ensino em suas abrangências conteudinal,
procedimental e atitudinal, posto que
foram elaborados procurando, de um lado, respeitar diversidades regionais,
culturais, políticas existentes no país e, de outro, considerar a necessidade
de construir referências nacionais comuns ao processo educativo em todas
as regiões brasileiras. Com isso, pretende-se criar condições, nas escolas,
que permitam aos nossos jovens ter acesso ao conjunto de conhecimentos
socialmente elaborados e reconhecidos como necessários ao exercício da
cidadania. (BRASIL, 1998, p. 5).
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REFLEXÕES E POSSÍVEIS CAMINHOS PARA O ENSINO DE PORTUGUÊS PARA SURDOS
A PARTIR DA ANÁLISE DOS PCN DE LÍNGUA PORTUGUESA E LÍNGUAS ESTRANGEIRAS MODERNAS
Por si só, de alguma maneira tais alegações a respeito dos PCN salientam o grau de sua
importância à oferta de uma escolarização minimamente coerente e compromissada com a formação
de sujeitos críticos e autônomos. Em relação ao ensino de uma L2, a situação é ainda mais delicada por
envolver uma série de outras inquirições atreladas ao desenvolvimento de determinada competência
linguística nos educandos, o que implica certa rigidez estrutural quanto aos objetivos do processo de
ensino-aprendizagem.
Apesar de dispor do direito legal ao acesso à modalidade escrita da língua portuguesa como L2
após anos de lutas que marcam a história da Educação de Surdos, a comunidade surda brasileira se vê
em um entrave de maiores proporções no que se refere ao ensino do PBL2. Dentre muitos fatores a serem
apontados como causadores da ineficiência de um ensino de PBL2 para surdos, indubitavelmente, a
ausência de diretrizes nacionais nos moldes dos PCN mostra-se um empecilho alarmante e incompatível
com a realidade educacional desse grupo étnico-linguístico.
Com base nas discussões apresentadas na primeira parte deste capítulo e nas informações acima,
a presente seção visa a discutir alguns aspectos dos PCN de LE de modo a refletir sobre as demandas
educacionais – sobretudo aquelas relativas ao ensino de PBL2 – da comunidade surda brasileira. Para
isso, serão considerados os objetivos e as pressuposições quanto aos conhecimentos imprescindíveis ao
ensino de L2 expressos por esse documento diante da delineação reflexiva de algumas questões centrais
sobre o ensino de PBL2 para surdos.
Como apontam Nascimento et al. (2019), o ensino de uma L2/LE exige que o professor
desenvolva uma didática polivalente, capaz de elevar o ensino de língua
a um contexto sociocomunicativo não limitado ao paradigma linguístico
estrutural que pouco reflete aspectos do uso linguístico real em função
de demandas comunicativas e de adaptações aos mais variados gêneros
discursivos que circulam em sociedade. (NASCIMENTO et al., 2019, p. 2).
Dessa maneira, logo emergem os questionamentos: o que ensinar? Por que ensinar? E,
89
APRENDIZES SURDOS E ESCRITA EM L2:
REFLEXÕES TEÓRICAS E PRÁTICAS
principalmente, com que objetivo ensinar? Analisemos, pois, alguns objetivos listados pelos PCN de LE
(BRASIL, 1998):
Vivenciar uma experiência comunicativa pelo uso de uma língua estrangeira, no que se refere a
novas maneiras de se expressar e de ver o mundo, refletindo sobre os costumes ou maneiras de agir e
interagir e sobre suas próprias visões. Possibilitar maior entendimento de um mundo plural e de seu
próprio papel como cidadão.
Construir conhecimento sistêmico sobre a organização textual e sobre como e quando utilizar a
linguagem nas situações comunicativas, tendo como base os conhecimentos da língua materna.
Construir consciência linguística e consciência crítica dos usos que se fazem da língua estrangeira que
está aprendendo.
Ler e valorizar a leitura como fonte de informação e prazer, utilizando-a como meio de acesso ao
mundo do trabalho e dos estudos avançados.
Além disso, vale ressaltar que, do ponto de vista do trabalho estrutural, os próprios objetivos dos
PCN de LE são pensados em função de um suposto conhecimento metacognitivo da língua materna,
que seria (ou ao menos deveria ser) anterior ao contato com a nova língua em etapa de aprendizagem.
90
REFLEXÕES E POSSÍVEIS CAMINHOS PARA O ENSINO DE PORTUGUÊS PARA SURDOS
A PARTIR DA ANÁLISE DOS PCN DE LÍNGUA PORTUGUESA E LÍNGUAS ESTRANGEIRAS MODERNAS
Tal relação entre L2/LE e língua materna, embora compreendida dentro da proposta do documento à
época de sua elaboração, mostra-se problemática por muitos motivos, dentre os quais podemos destacar
a heterogeneidade de níveis de letramentos coexistentes em sala de aula.
Outro fator importante a ser considerado a partir da observação dos objetivos dos PCN de LE
é a expressão de um trabalho funcional capaz de suscitar os conhecimentos sistêmico, de mundo e de
organização textual na atribuição de significância. Tais conhecimentos serão melhor elucidados na seção
seguinte.
91
APRENDIZES SURDOS E ESCRITA EM L2:
REFLEXÕES TEÓRICAS E PRÁTICAS
Como dito na seção anterior, há grandes problemas ao supor que os aprendizes de L2/LE tragam
consigo determinada bagagem metacognitiva oriunda do ensino formal de suas línguas maternas4, o
que se aplica também à pressuposição de que o mesmo ocorra com tais conhecimentos. Muitas das
vezes, professores de L2/LE encontram-se diante de situações não muito favoráveis justamente pela
pouca (ou quase nenhuma) familiaridade dos alunos com com habilidades cognitivas, tais como analogia,
associação e categorização. Desse modo, é de suma importância que se estimule, por meio de atividades
didáticas alternativas, a autonomia nesses níveis componentes da aprendizagem de L2/LE.
4 Chamamos atenção ao fato de que não nos referimos aqui à competência linguística dos indivíduos (cf. CHOMSKY, 2015
[1957]). Ao falarmos de consciência metacognitiva, fazemos menção à capacidade que indivíduos podem desenvolver de
exploração dos aspectos cognitivos sobre a própria língua, os quais incluem a percepção do estabelecimento de categorizações,
analogias e associações, bem como suas utilizações como potencializadores do processo de aprendizagem de uma nova língua.
A consciência metacognitiva é, assim, fator crucial para se definir níveis distintos de autonomia linguística de aprendizes de
L2/LE (BACKER & BROWN, 1980; KODA, 2005).
92
REFLEXÕES E POSSÍVEIS CAMINHOS PARA O ENSINO DE PORTUGUÊS PARA SURDOS
A PARTIR DA ANÁLISE DOS PCN DE LÍNGUA PORTUGUESA E LÍNGUAS ESTRANGEIRAS MODERNAS
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APRENDIZES SURDOS E ESCRITA EM L2:
REFLEXÕES TEÓRICAS E PRÁTICAS
Nota-se, assim, que apesar de os PCN de LE definirem preceitos indispensáveis à prática docente
de êxito, dado que propõem um aglomerado de embasamentos teórico-metodológicos orientados por
proponentes da Linguística Aplicada, tais reflexões devem ser confrontadas com a realidade em vista
das condições em que ocorrem os processos de ensino-aprendizagem. Esse teor crítico, amplamente
difundido pelas teorias pós-críticas do currículo, bem como baseado no constante e necessário diálogo
entre teorização e prática, é o primeiro passo a se tomar a fim de se formular uma síntese esclarecedora
a respeito das contribuições da análise de alguns pontos-chave desse documento para o ensino de PBL2
para surdos, que ainda carece de políticas linguísticas legitimadoras e estruturantes.
2.3 Mas o que muda quando a questão é o ensino de PBL2 para surdos?
Apesar de muitos avanços conquistados nas últimas décadas, é de conhecimento geral que a
Educação de Surdos no Brasil carece de mudanças efetivas no que concerne especificamente ao ensino
de PBL2. Entretanto, tais mudanças pressupostas são incontáveis e abrangem paradigmas de diferentes
ordens, dada a tamanha delicadeza da questão, que compreende o cenário (i) de ausências de políticas
linguísticas centradas na promoção de um currículo de fato bilingue, (ii) de desconhecimento geral a
respeito da aprendizagem de indivíduos surdos e de melhores aparatos metodológicos para o ensino e
(iii) de estereótipos em torno da produção escrita em PBL2 por surdos. Nesta seção, situamos, pois, as
contribuições dos PCN de LE como estopim para se pensar o ensino de PBL2 para surdos.
Por meio da apreciação crítica das recomendações e dos objetivos dos PCN de LE, sobretudo
pautando-se no que esse documento define sobre os níveis do conhecimento a serem tomados como base
para o ensino de uma L2/LE, são oportunas as seguintes indagações:
94
REFLEXÕES E POSSÍVEIS CAMINHOS PARA O ENSINO DE PORTUGUÊS PARA SURDOS
A PARTIR DA ANÁLISE DOS PCN DE LÍNGUA PORTUGUESA E LÍNGUAS ESTRANGEIRAS MODERNAS
De acordo com os autores, percebe-se que o entendimento do PB como L2 para surdos ainda
se constitui um desafio a ser superado em termos descritivos. Afinal, é nítido que uma modalidade de
ensino pouco reconhecida devido à escassez de elucidações a respeito do que lhe compõe contará com
metodologias não amparadas nas vastas propostas de ensino de L2. Em detrimento disso, analisemos, no
quadro abaixo, algumas produções de indivíduos surdos de faixas etárias distintas retiradas do Corpus
NEIS-UFRJ5:
5 “Esse corpus é constituído por textos escritos de diferentes gêneros e tipos textuais, produzidos por alunos graduandos
do curso de Letras-Libras/UFRJ, surdos e ouvintes, e visa a investigação linguística sobre possíveis problemas de escrita
acadêmica desses alunos, em particular, dos surdos” (FREITAS, SOARES, NASCIMENTO & XAVIER, 2018, p. 14).
95
APRENDIZES SURDOS E ESCRITA EM L2:
REFLEXÕES TEÓRICAS E PRÁTICAS
Tais produções ilustradas no quadro acima exibem divergências comumente observadas, por
exemplo, em produções de estrangeiros ouvintes aprendizes de PBL2, ou mesmo de aprendizes ouvintes
brasileiros de uma LE. Dessa maneira, observa-se que a aprendizagem de PB escrito por surdos deve
96
REFLEXÕES E POSSÍVEIS CAMINHOS PARA O ENSINO DE PORTUGUÊS PARA SURDOS
A PARTIR DA ANÁLISE DOS PCN DE LÍNGUA PORTUGUESA E LÍNGUAS ESTRANGEIRAS MODERNAS
ser legitimada em sua essência, isto é, como uma L2, uma vez que se trata de um sistema linguístico
totalmente autônomo da L16 desses indivíduos e, por conseguinte, exige metodologia de ensino
diretamente orientada ao desenvolvimento das habilidades de leitura e escrita.
Entende-se, desse modo, que o olhar para o PBL2 de surdos no momento da avaliação não deve
estar restrito a parâmetros pouco fundamentados que somente exibem listas de “desvios previsíveis”.
Assumir essa postura, além de enquadrar equivocadamente o texto escrito em PBL2 por surdos como
unicamente corroborado por transposições da L1, mostra-se pouco funcional e, portanto, incompatível
com uma proposta de ensino de L2/LE por níveis. Isso posto, deve-se conceber uma avaliação gradiente,
em respeito ao equilíbrio dos níveis sistêmico, de conhecimento de mundo e de organização textual, e
maleável o suficiente para abrangê-los de modo integrado (ver capítulo sobre unidades didáticas neste
mesmo volume).
Por fim, em relação a (3), podemos discutir a respeito da ausência de reflexão metalinguística da
Libras – a exploração de seu nível sistêmico e textual, portanto – como um fator que interpõe problemas
ao desenvolvimento de metodologias de ensino de PBL2 para surdos. Através da leitura dos PCN de
LE, percebemos que em diversas passagens há menção ao uso de aspectos da gramática da L1 como
facilitadores do processo de ensino-aprendizagem da L2/LE. Em vista disso, apesar de a realidade ser
diversa, não se pode deixar de lado o fato de que o ensino formal da L1 pode contribuir para o êxito da
performance em L2/LE, ainda que não seja condição sine qua non. Obviamente, essa é uma questão a
6 Nesse caso, nos referimos à parcela da população surda que tem uma L1 adquirida. Reconhecemos, portanto, o fato de que
somente uma minoria inicia a escolarização com domínio da Libras.
97
APRENDIZES SURDOS E ESCRITA EM L2:
REFLEXÕES TEÓRICAS E PRÁTICAS
ser explorada com mais precisão, principalmente por meio de estudos sobre o desenvolvimento de PBL2
de alunos surdos oriundos de escolas bilingues que disponham do ensino de Libras em seus componentes
curriculares – discussão que não se esgota neste capítulo.
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
BAKER, L; BROWN, A. L. Metacognitive Skills and Reading. Technical Report n. 188. 1980.
BEZERRA, M. A.; REINALDO, M. A. Análise linguística: afinal, a que se refere? São Paulo: Cortez,
2013.
BROWN, D. Principles of language learning and teaching. New Jersey: Prentice Hall, 1994.
98
REFLEXÕES E POSSÍVEIS CAMINHOS PARA O ENSINO DE PORTUGUÊS PARA SURDOS
A PARTIR DA ANÁLISE DOS PCN DE LÍNGUA PORTUGUESA E LÍNGUAS ESTRANGEIRAS MODERNAS
KÖCHE, V. S.; MARINELLO, A. F. Gêneros textuais: práticas de leitura, escrita e análise linguística.
Petrópolis: Vozes, 2015.
MARQUESI, S.; PAULIUKONIS, M. A. L.; ELIAS, V. Linguística textual e ensino. São Paulo:
Contexto, 2017.
MENDONÇA, M. Análise linguística no ensino médio: um novo olhar, um outro objeto. In: BUNZEN,
C.; MENDONÇA, M. (orgs.) Português no ensino médio e formação do professor. São Paulo:
Parábola, p. 199-226, 2006.
MOREIRA, A. F.; SILVA, T. T. Sociologia e teoria crítica do currículo: uma introdução. In: SILVA, T.
T. & MOREIRA, A. F. (Orgs). Currículo, cultura e sociedade. São Paulo: Cortez, 1994.
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APRENDIZES SURDOS E ESCRITA EM L2:
REFLEXÕES TEÓRICAS E PRÁTICAS
PAULIUKONIS, M. A. Texto e discurso: desafios no ensino de português. Letras & Letras (Online),
v. 29, p. 01-10, 2013.
SANTOS, L. W.; CUBA RICHE, R. M.; TEIXEIRA, C. S. Análise e produção de textos. São
Paulo: Contexto, 2012.
100
LETRAMENTO DE SURDOS E OUVINTES:
QUESTÕES DE USO DA LÍNGUA E
CIRCULAÇÃO SOCIAL
INTRODUÇÃO
É bem verdade, contudo, que, apesar de a escola combater esse cenário de analfabetismo, seria
inusitado, para nós, dizer que visamos ao alfabetismo. Segundo Ribeiro (1997:144), esse conceito,
antônimo afirmativo do anterior, “mesmo já tendo sido dicionarizado, soa estranho aos falantes do [nosso]
idioma.” É com tranquilidade, no entanto, que falamos de alfabetização e pessoas alfabetizadas. Parece
haver, em um primeiro momento, apenas uma confusão, um desequilíbrio terminológico. Entretanto, o
cenário, como se sabe, é mais complexo.
Apesar da estranheza, de acordo com Ribeiro (1997: 145), pode-se utilizar o termo alfabetismo,
em referência a indivíduos que, além de simplesmente saberem ler e escrever, “utilizam a leitura e a
escrita, incorporam-na[s] em seu viver, transformando por isso sua condição [social].” Contudo, Soares
(2004: 16) indica que o conceito de alfabetização vem se distanciando desse caráter de transformação
101
APRENDIZES SURDOS E ESCRITA EM L2:
REFLEXÕES TEÓRICAS E PRÁTICAS
As diferenças entre essas definições nos permitem compreender, então, a existência de diferentes
graus, mesmo dentro da categoria de indivíduos alfabetizados funcionalmente: alguns com níveis mais
baixos de proficiência; outros com níveis mais altos.
3 Não se deve concluir disso, porém, que as práticas de alfabetização não têm lugar no ensino. Soares (2004: 16) defende ser
necessário que se reconheça a especificidade da alfabetização. A conclusão à qual se deve chegar é a de que o ensino não deve
se encerrar na formação de indivíduos alfabetizados, pois a alfabetização deve, de acordo com a autora, se desenvolver em
um contexto de letramento.
102
LETRAMENTO DE SURDOS E OUVINTES:
QUESTÕES DE USO DA LÍNGUA E CIRCULAÇÃO SOCIAL
com distintos graus de letramento, inclusive daqueles alunos que sequer conhecem o sistema de escrita.
Precisamos, ainda, ter em mente que a nossa atuação deve visar à formação de indivíduos letrados: não
apenas alfabetizados (tampouco funcionalmente alfabetizados), mas plenamente aptos para as diversas
situações de interação social e, dessa forma, capazes de se inserir nos eventos da cultura hegemônica,
tipicamente associada a altos níveis de escolarização e de classe socioeconômica. Afinal, de acordo com
Soares (2017: 123), “é fundamental que a escola e os professores compreendam que ensinar por meio da
língua e, principalmente, ensinar a língua são tarefas não só técnicas, mas também políticas” (grifos no
original). Em um contexto no qual as práticas docentes e a educação – sobretudo o ensino público – se
encontram fragilizadas, pois se deseja limitá-las, é necessário reconhecermos que, como todo discurso
(cf. LEMKE, 1995) e como o desejo de controlar e banalizar a educação, o trabalho na escola – oposto
a essa imposição de controle – também é ideológico. Nesse sentido, a ideologia – ou seja, o sistema de
crenças, de pontos de vista – que nos orienta deve ser aquela que busca a formação dos estudantes para
a transformação social, ao invés de simples mantenedores das hierarquias sociais que valorizam uns e
marginalizam outros.
Dessa maneira, nas próximas seções, comentaremos sobre algumas especificidades das práticas
de ensino de língua portuguesa que devem ser levadas em consideração na nossa atuação docente. A fim
de indicarmos semelhanças e divergências entre elas, destacaremos dois cenários distintos: (1) o ensino
de português como língua materna de alunos ouvintes, e (2) o ensino de português como língua adicional
de alunos surdos. Apontaremos, assim, para diferentes concepções acerca do que seja a sala de aula e
de quais abordagens teórico-pedagógicas devam ser valorizadas no ensino de português. Esperamos,
portanto, apresentar reflexões que contribuam para as nossas práticas docentes.
Se hoje nós, professores ouvintes, revisitarmos as nossas memórias da escola, do tempo quando
éramos alunos do Ensino Básico, possivelmente nos lembraremos – ou o farão muitos de nós – de aulas
de língua portuguesa exclusivamente voltadas a questões de ortografia, nomenclatura ou à separação
de termos sintáticos. A preocupação com essas atividades, como demonstra Soares (2017), associa-se
sobremaneira a uma tradição prescritiva, à qual se aliam tarefas de natureza metalinguística (isso é,
tarefas preocupadas com a utilização do código linguístico para caracterizar esse mesmo código). Assim,
segundo Halliday, McIntosh & Strevens (1974), práticas de ensino prescritivas, como o nome indica,
prescrevem para os aprendizes determinadas formas linguísticas como corretas e, de modo geral, buscam
anular a língua que os alunos já trazem de suas casas, pois esta deve ser substituída pela língua da
escola. Nesses casos, há um foco tamanho na estrutura linguística em si, foco para o qual atividades
103
APRENDIZES SURDOS E ESCRITA EM L2:
REFLEXÕES TEÓRICAS E PRÁTICAS
De acordo com Halliday, McIntosh & Strevens (op. cit.), o ensino de línguas4 deve se pautar,
então, por um viés produtivo. Este se diferencia da postura prescritiva e também da abordagem
descritiva (voltada para a descrição da língua que o aluno já conhece e usa em casa), pois, em um ensino
produtivo, não se tem por objetivo impor determinadas formas linguísticas aos aprendizes, tampouco
substituir o uso de uma língua (ou variedade linguística) por outra; em um ensino produtivo, quer-se
ampliar o repertório linguístico dos estudantes, a fim de que eles consigam adequar os seus usos da
língua às situações comunicativas nas quais se inserirem. Assim, quanto ao ensino de português como
língua materna de alunos ouvintes, faz-se possível que a escola promova o que, segundo Soares (2017),
seria um bidialetalismo para a transformação social: “falantes de variedades estigmatizadas devem
aprender as variedades de prestígio para usá-las nas situações em que elas são requeridas” (p. 79). Não
se visa, contudo, à adaptação do aluno às exigências das hierarquias sociais preestabelecidas; visa-se,
sim, à “instrumentalização do aluno, para que adquira condições de participação na luta contra as
desigualdades inerentes a essa estrutura [hierárquica]” (p. 116).
No entanto, a quais textos estamos nos referindo? Quais gêneros do discurso devem ter lugar
nas aulas de língua portuguesa? Para respondermos a essas perguntas, podemos pensar, de antemão, em
uma clássica oposição na Linguística: os gêneros da fala, contrapostos aos gêneros da escrita. Com base
no trabalho de Marcuschi (2004), podemos caracterizar as modalidades falada e escrita da língua da
seguinte maneira:
4 Os autores se referem mais especificamente ao ensino de inglês como língua materna. Entretanto, não nos parece haver
razão para limitar as reflexões dos autores a esse contexto específico, pois, conforme entendemos e tentamos justificar aqui,
as suas ideias também se aplicam a outras circunstâncias de ensino de línguas.
104
LETRAMENTO DE SURDOS E OUVINTES:
QUESTÕES DE USO DA LÍNGUA E CIRCULAÇÃO SOCIAL
FALA ESCRITA
Contextualizada Descontextualizada
Dependente Autônoma
Implícita Explícita
Redundante Condensada
Não-planejada Planejada
Imprecisa Precisa
Não-normatizada Normatizada
Fragmentária Completa
Pinheiro (2017), ao estudar conversas pelo WhatsApp, indica que tais interações, por incorporarem
elementos de outras semioses, não apenas do texto escrito, se aproximam das interações face-a-face.
É o que se nota, por exemplo, pelo uso de emoticons5. Além disso, ainda segundo o autor, o fato de
as mensagens muitas vezes se encontrarem ‘interpostas’ também aproxima as conversas de WhatsApp
das interações tipicamente face-a-face. Na escrita prototípica, a tendência é que, primeiramente, um
interlocutor produza o seu texto; em seguida, envie-o para outra pessoa que, apenas após receber o
material, poderia produzir a sua resposta. Porém, há outros padrões de interação possíveis na escrita pela
Web, como ilustrado no exemplo abaixo, retirado de uma conversa de WhatsApp (PINHEIRO, 2017: 7):
5 Do inglês emotion (‘emoção’) + icon (‘ícone’), usam-se emoticons, de acordo com Lima (2017), para representar a emoção
ou expressão facial dos interlocutores.
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APRENDIZES SURDOS E ESCRITA EM L2:
REFLEXÕES TEÓRICAS E PRÁTICAS
Por outro lado, como afirma Marcuschi (2010: 22), os textos digitados – ou seja, escritos – têm
papel fundamental nas interações pela Web. Ainda que outros recursos, como o compartilhamento de
mídias de áudio e vídeo, venham sendo incorporados à comunicação digital, não se abandonou, de modo
geral, a língua escrita. Além disso, apesar de o exemplo (1) ter apontado para o caráter síncrono nas
conversas de WhatsApp, tipicamente associado à comunicação face-a-face, isso não significa que todas
as interações na internet ocorram assim, conforme ilustrado pelo exemplo abaixo, também retirado de
Pinheiro (2017: 8). Note-se, portanto, nas mensagens a seguir a distância temporal destacada em negrito
– o que aproxima tais interações daquelas prototipicamente escritas.
106
LETRAMENTO DE SURDOS E OUVINTES:
QUESTÕES DE USO DA LÍNGUA E CIRCULAÇÃO SOCIAL
Todas essas evidências já confirmam o caráter híbrido dos gêneros discursivos digitais, apontado
por Paredes Silva (2017). Embora a pesquisadora volte suas análises para questões mais específicas, suas
evidências corroboram a identificação desse hibridismo. Seu estudo abrange fenômenos morfossintáticos
variáveis que, conforme defende, também nos auxiliam a compreender tanto o funcionamento das
interações na Web quanto o contínuo fala-escrita. À luz dessa perspectiva, comentaremos, brevemente,
sobre a variação do objeto direto de 3ª pessoa em referência anafórica e do sujeito de 1ª pessoa do
singular, em dados de WhatsApp e do aplicativo de mensagens instantâneas do Facebook.
Imaginemos a sentença: “Outro dia numa loja, encontrei uma camisa muito bonita.” Pensemos,
em seguida, em algumas possibilidades de sentenças que poderiam se apresentar subsequentemente à
anterior:
Em (3), retoma-se o sintagma nominal ‘a camisa’ por um outro sintagma nominal: ‘essa camisa’;
em (4), pelo pronome nominativo ‘ela’; em (5), pelo pronome oblíquo ‘a’; e finalmente em (6), pela
anáfora zero (também denominada objeto nulo), na qual o referente não se materializa na superfície
textual. Apesar de as quatro alternativas serem possíveis no português brasileiro contemporâneo, elas
apresentam comportamentos diferentes a depender da situação comunicativa. O gráfico a seguir,
adaptado de Pinheiro & Guimarães (2018), contém os índices percentuais de cada uma das variantes de
objeto direto de 3ª pessoa exemplificadas acima, distribuídas entre dados da escrita digital (conversas de
Facebook e WhatsApp), da fala e da escrita prototípicas.
Gráfico 1: Distribuição geral dos dados de objeto direto de 3ª pessoa em referência anafórica
no chat do Facebook, no WhatsApp, na fala e na escrita tradicionais (em %)
107
APRENDIZES SURDOS E ESCRITA EM L2:
REFLEXÕES TEÓRICAS E PRÁTICAS
O gráfico acima nos mostra que a distribuição dos dados de objeto direto na escrita digital está
demasiadamente mais próxima da distribuição dos dados da fala, com altos percentuais da variante
anáfora zero. Esses casos entram em contraste com os percentuais da escrita, que recupera fortemente
o uso de pronomes oblíquos. Todo esse cenário, no entanto, opõe-se ao observado para a variação do
sujeito de 1ª pessoa do singular em conversas pelo aplicativo de mensagens instantâneas do Facebook.
Consideremos, pois, a alternância entre a expressão e a não expressão do pronome-sujeito, respectivamente
exemplificadas abaixo:
108
LETRAMENTO DE SURDOS E OUVINTES:
QUESTÕES DE USO DA LÍNGUA E CIRCULAÇÃO SOCIAL
Quais são, porém, as implicações disso para o ensino de língua portuguesa? As interações em
ambiente digital deixam claro o fato de que as estruturas linguísticas produzidas por nós – todos nós –
dependem das situações sociointerativas nas quais nos inserimos. Indicam, também, a necessidade de nos
atentarmos para as diferentes experiências sociolinguísticas com as quais se deparam os nossos alunos
de língua portuguesa – com destaque, aqui, para os alunos ouvintes, cuja língua materna é o português.
Visto que as nossas práticas linguísticas são efetivamente plurais, variáveis e sempre contextualizadas,
devemos orientar as nossas práticas docentes por esta perspectiva, ao invés de uma postura prescritiva que
não ofereça aos aprendizes condições suficientes para circularem por diferentes instâncias comunicativas
e, então, tornarem-se plenos cidadãos e possíveis agentes da transformação social. Afinal, é objetivo
da escola e dos professores de português, conforme defendemos aqui, não apenas a alfabetização dos
sujeitos, mas a formação de indivíduos letrados.
Na seção anterior, defendemos que o ensino de português como língua materna de alunos
ouvintes deve se basear em uma postura produtiva, a fim de valorizar os usos linguísticos em diferentes
contextos de interação e, assim, preparar os estudantes para a plena vivência em sociedade. Defendemos,
portanto, que o ensino prescritivo, associado às atividades metalinguísticas que tendem a sustentar as
desigualdades sociais, não deve ser o foco do ensino de língua portuguesa; ao invés disso, as nossas aulas
devem se voltar para os textos, contextualmente situados, e, assim, para as práticas discursivas.
Segundo Pereira (2014), por muito tempo, no ensino de português para estudantes surdos,
utilizava-se apenas da língua portuguesa, graças, principalmente, ao tardio reconhecimento e à tardia
regulamentação do uso da língua brasileira de sinais (Libras) em território nacional (cf. também MORAIS
& CRUZ, 2017). Nesse período, o enfoque do ensino recaía sobre o código linguístico a ser aprendido
– ou seja, o português –, e os alunos deveriam voltar a sua atenção para cada palavra individualmente,
6 Cabe ressaltar que não se deseja afirmar que exista um único perfil de ‘aluno surdo’. Apresentamos, efetivamente, uma
análise do ensino de português como língua adicional para surdos usuários de Libras (língua materna). Isso não esgota,
ainda, a discussão maior sobre a proficiência e a reflexão metalinguística desses sujeitos sobre sua própria língua – algo que
merece olhar atento de professores e pesquisadores que pretendam avaliar surdos usuários de língua portuguesa como língua
adicional.
109
APRENDIZES SURDOS E ESCRITA EM L2:
REFLEXÕES TEÓRICAS E PRÁTICAS
Aqui, faz-se necessário lembrar isto: nem mesmo no ensino de português como língua materna
as atividades centradas no código se demonstram as mais adequadas. Destaca-se, então, como ainda
mais imediato o fracasso dessas atividades em contexto de educação de surdos. Afinal, Santos & Leal
(2013: 167) afirmam que o ensino de língua portuguesa para surdos e para ouvintes não há como ser o
mesmo, e as autoras indicam dois motivos para isso: (1) se o português é a língua materna de um ouvinte
brasileiro, para um surdo usuário de Língua de Sinais tende a ser língua adicional, pois a sua língua
materna é a Libras (o que faz dos surdos – que podem, inclusive, saber outras línguas de sinais – pelo
menos bilíngues); (2) há substanciais diferenças na forma como as informações que circulam no mundo
(especialmente aquelas que encontram registro nas línguas orais-auditivas) são percebidas por sujeitos
ouvintes ou surdos. De acordo com Maher (1997), o sujeito bilíngue – nesse contexto, o sujeito surdo – se
diferencia do sujeito monolíngue em termos educacionais (e também sociais), pois tem competência para
transitar de uma língua para outra. Assim, nas palavras da autora,
A mudança de código e os empréstimos linguísticos são recursos
comunicativos poderosos dos quais [o bom bilíngue] lança mão com
frequência, para, pragmaticamente, atribuir sentidos vários aos seus
enunciados: para expressar afetividade, relações de poder, mudanças de
tópico, identidade social/étnica, etc... (MAHER, 1997: 24)
Compreendemos, então, que os usos linguísticos nunca se dissociam de práticas culturais. Desse
modo, se o uso da Libras pelos alunos surdos se insere nas experiências, vivências e identificações
com a cultura surda, as práticas com o português tenderão a se relacionar com a cultura dos ouvintes,
hegemônica, na qual se circunscrevem os surdos brasileiros. Por isso, como ressaltam Morais & Cruz
(2017), a aprendizagem de uma segunda língua (ou de línguas adicionais, em termos mais amplos) é,
necessariamente, também a aprendizagem de uma nova cultura, e o sujeito bilíngue, segundo aponta
Maher (1997: 24), “funciona num universo discursivo próprio, específico”, diferente do universo
discursivo do monolíngue em qualquer um dos dois códigos em questão. Além disso, o universo discursivo
do bilíngue “não é produto da somatória de competências equivalentes às competências dos sujeitos
monolíngues e, portanto, não deve ser assim avaliado” (MAHER, 1997: 24-25).
Devemos, portanto, refletir sobre as especificidades do ensino de português como língua adicional
para surdos usuários de Libras. Justamente porque a comunicação desses sujeitos surdos se dá por meio
gesto-visual (modalidade pela qual eles elaboram textos em sua língua materna), a aquisição de língua
portuguesa, conforme aponta Pereira (2014), se dá por intermédio da leitura. Eis a importância de
possibilitar a esses alunos práticas com textos escritos, autênticos e relevantes à vida dos estudantes, desde
110
LETRAMENTO DE SURDOS E OUVINTES:
QUESTÕES DE USO DA LÍNGUA E CIRCULAÇÃO SOCIAL
o início da sua escolaridade. Dessa forma, como defende a autora, “o aluno surdo poderá aprender o
sistema da língua, bem como ampliar seu conhecimento letrado” (PEREIRA, 2014: 150).
Segundo Santos & Leal (2013: 174), o estudante surdo que conheça, em alguma medida, as
propriedades da língua portuguesa “pode tentar utilizá-las, mas sempre haverá alguma marca em
seu texto que mostre as influências de sua primeira língua, a Língua de Sinais.” Trata-se do estágio
reconhecidamente denominado interlíngua (cf. DECHANDT, 2006), comum a qualquer aprendizado
de língua adicional. Afinal, é a partir das suas próprias experiências e dos seus conhecimentos linguísticos
que o sujeito surdo – como qualquer outro sujeito – buscará dar significado a novas práticas e a novos
saberes. É exatamente o que faz um sujeito ouvinte brasileiro no processo de aprendizagem da língua
escrita: esta, enquanto tentativa de representar uma ‘codificação padronizada’ da fala, funciona, para
o aprendiz ouvinte, como uma ‘segunda língua’, visto que a sua língua materna, aquela adquirida
naturalmente em casa, é o português falado. Daí se depreende a relevância do ensino da escrita e de
práticas de leitura.
Nesse contexto, analisemos, portanto, alguns dados de escrita de surdos aprendizes de português,
disponíveis em Leal (2016). Esses alunos, de início, assistiram a um vídeo, no qual se narrava, em Libras,
um conto de Carlos Drummond de Andrade. Em seguida, cada estudante teria como tarefa a criação do
seu próprio texto, agora escrito em língua portuguesa, no qual recontasse a história narrada, de modo
tão próximo ao original quanto possível. A autora coletou nove textos e, entre eles, atestou que havia
graus distintos de influência da Libras na produção textual em português. De toda forma, essa influência
se fazia presente. Notemos no exemplo a seguir.
(9) Apresentação, Paulo viu o campo de dragão briga. Ele falou que aí vi o campo de dragão
estava brigando mas mãe estava falando a mentira meu filho levar aqui no quarto ficará o castigo
em 10 dias.
A mãe falou que não deixa dar os doces com meu filho. Ele pediu que é o objeto por mãe
falou que não posso mesmo. Ele falou que sem problema. O menino estava admirando a janela
de lua ficava bonita. Aí, a lua está caindo no chão acima um queijo.
O menino vi andar pegando o queijo. Ele comi o queijo delicioso. Que droga! Ele anda
ver a borboleta na floresta ficará bonita. Ele conta que viu a borboleta é muito grande e bonita
por minha mãe estava não ainda acreditando ser estranho. Que acontecer a mentira da problema
111
APRENDIZES SURDOS E ESCRITA EM L2:
REFLEXÕES TEÓRICAS E PRÁTICAS
com meu filho precisa ir lá no médico. Eles entram bater a porta. O médico está abrindo a porta.
A mãe te explica que meu filho está mentindo a problema na vida. Por favor, a mãe me
ajuda o meu filho estava diferente na vida. O médico vou aconselhar e tentar o seu filho. Ele
pesquisa saber na vida por dele. O médico descobri a coisa é uma poesia.
Quando ele chega encontrar de mãe quer saber motivo o meu filho. O médico falou que
é por isso é poesia. A mãe ficará compreender a mesma coisa. (LEAL, 2016: 93)
Há, no texto acima, estratégias de referenciação bem empregadas pelo aluno surdo que produziu
essa narrativa. Nesse sentido, destaca-se, por exemplo, a retomada de “Paulo” pelo pronome “ele”, pelos
sintagmas nominais “meu filho” e “o menino” e pela elipse em “Ele conta que ___ viu a borboleta”.
Nota-se, também, a referência a “problema na vida” como “a coisa”, dentre outras estratégias utilizadas
pelo estudante.
Entretanto, evidenciam-se também, no conto produzido, diversas estruturas cujo uso se associa
ao conhecimento de Libras do qual o aluno já dispunha. Encontram-se, assim, diferentes casos nos quais
a conjugação verbal e o emprego de preposições divergem do padrão esperado da escrita em língua
portuguesa, visto que o paradigma de flexão verbal e o arsenal de preposições do português são mais
vastos do que na Libras. Exemplo desse caso se encontra no seguinte excerto: “Ele pesquisa saber na
vida por dele.” Além disso, podemos observar uma mistura entre ‘personagem-enunciador’ e o eu-sujeito
(e, inclusive, o você) em diversas sentenças. É o que ocorre em “A mãe te explica que meu filho está
mentindo a problema na vida.” Nessa sentença, “A mãe” se apresenta como sujeito, com o qual o verbo
principal (“explica”), na 3ª pessoa do singular, concorda, mas os demais referentes (“te” e “meu filho”)
se apresentam de um ponto de vista de 1ª pessoa: o ponto de vista da mãe, que, sem marcas textuais que
o indiquem, agora se torna a personagem-enunciadora de um discurso direto. Isso se deve à construção
dos diálogos na Libras, pois, nesta língua, se espera que as referências aos enunciados de terceiros sejam
feitas por meio do discurso direto, conforme discutido por Leal (2016: 65).
Como já exposto, aprender uma nova língua significa aprender uma nova cultura. No Brasil, a
comunidade surda, de modo geral, circula por ambientes onde é a língua portuguesa – junto à cultura
ouvinte, dotada de prestígio social – que se apresenta como dominante. Portanto, os surdos brasileiros
tendem a estar em contínuo contato com textos escritos produzidos por ouvintes, desde contextos mais
formais e monitorados, até circunstâncias mais casuais, como textos compartilhados pela internet, nas
112
LETRAMENTO DE SURDOS E OUVINTES:
QUESTÕES DE USO DA LÍNGUA E CIRCULAÇÃO SOCIAL
redes sociais. Nestas, como já vimos, é comum que os ouvintes incorporem, nos seus textos digitados,
marcas da sua fala. Consequentemente, os surdos que têm acesso à internet e estão em contato (direto ou
indireto) com pessoas ouvintes podem ler textos compostos por estruturas tipicamente associadas à fala
dos brasileiros ouvintes. Se essa aproximação é possível, então também é possível que sujeitos surdos –
conscientes disso ou não – levem, para as suas produções escritas em português, usos que, na verdade, são
comuns na fala de ouvintes, por se relacionarem a aspectos da fonologia do português brasileiro. As frases
abaixo, por exemplo, foram produzidas por uma mulher surda, graduada e pós-graduada em Libras, que
compartilhou tais sentenças na sua rede social:
A grafia “amu” aponta para o alteamento da vogal na última sílaba, fenômeno bastante comum
na fala de brasileiros ouvintes, mas inesperado na escrita de uma brasileira surda, pois ela não seria
necessariamente sensível à diferença entre [o] e [u]. Além disso, também poderíamos supor que
a repetição dos grafemas no exemplo (11) pressupõe o conhecimento de que, na língua portuguesa
escrita padrão (em alusão a práticas fora dessa modalidade), o recurso da reiteração promove o efeito
de ênfase7. Mesmo no corpus escrito analisado por Leal (2016), é possível observar usos linguísticos
que se aproximam ao português falado e, embora a autora não tenha aprofundado seu estudo nesse
aspecto, nota-se a presença de vogais repetidas e uso de letras maiúsculas buscando a simbologia escrita
da intensidade do grito, ou mesmo contrações entre palavras próprias do uso do português por ouvintes.
A título de exemplo, podem-se destacar dois – “Paulo grita: ‘MAAÃE’” e “Paulo diz: preaí [i.e., peraí]
quero falar com você” –, ambos extraídos de um mesmo texto do corpus analisado pela autora. Podemos
entender o fenômeno com a apropriação que os sujeitos surdos em questão fazem da língua portuguesa
em uso, oral ou escrito, dada a sua maior ou menor interação com ouvintes (usuários dessa língua como
língua materna).
A essa altura, novamente nos perguntamos: quais são as implicações disso para o ensino de língua
portuguesa (agora, para alunos surdos)? Compreendemos, pois, que não se deve ensinar português para
surdos dando ênfase apenas no código linguístico, de acordo com uma tradição sobretudo prescritiva,
que visa a anular a língua materna dos surdos e hipervalorizar a língua portuguesa. Ao contrário, é
necessário (a) que se valorize o conhecimento que os estudantes surdos já detêm acerca da Libras, a fim
de aplicar esses saberes às suas práticas com o português, em um ensino de natureza produtiva (ou seja,
que amplie o repertório linguístico dos aprendizes); e (b) que o trabalho do professor, na formação de
sujeitos capazes de circular por diferentes situações comunicativas – ou seja, de sujeitos letrados –, parta
7 É verdade, entretanto, que esse caso requer cautela, pois na Libras a repetição também pode gerar efeito semelhante.
113
APRENDIZES SURDOS E ESCRITA EM L2:
REFLEXÕES TEÓRICAS E PRÁTICAS
sempre da língua em uso, inserida em contextos discursivos variados. Dessa forma, entendemos que
cabe ao professor de alunos surdos muito mais que o simples papel de
informar regras e classificar termos. O professor, neste caso, precisa
entender que ele será o meio de contato desse aluno surdo com o mundo
externo e que, ao fornecer instrumentos para que este aluno decodifique
a Língua Portuguesa em diferentes tipos de texto, está ensinando mais
do que a língua ‘portuguesa’: está promovendo conhecimento da forma
mais abrangente do termo. E isso só é possível quando se parte de textos.
(SANTOS & LEAL, 2013: 169)
Com este artigo, esperamos, portanto, ter propiciado reflexões que apontam para semelhanças
e diferenças entre o ensino de português como língua materna de ouvintes e como língua adicional
de surdos. Esperamos, ainda, que se tenha exposto a necessidade de a prática docente na educação
linguística partir da análise de textos e da valorização da língua dos alunos, considerando, no entanto, as
especificidades de cada grupo de estudantes e, assim, as relações que eles mantêm com a língua ensinada.
REFERÊNCIAS
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Muller de (Org.). Estudos Surdos I. Petrópolis, Rio de Janeiro: Arara Azul, 2006.
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e traços léxico-gramaticais no macrogênero blog. Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro:
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MARCUSCHI, Luiz Antônio. Gêneros textuais emergentes no contexto da tecnologia digital. In:
__________; XAVIER, Antonio Carlos (Org.). Hipertexto e gêneros digitais: novas formas de
construção de sentido. 3ª ed. São Paulo: Cortez, 2010, pp. 15-80.
114
LETRAMENTO DE SURDOS E OUVINTES:
QUESTÕES DE USO DA LÍNGUA E CIRCULAÇÃO SOCIAL
__________. Da fala para a escrita: atividades de retextualização. São Paulo: Cortez, 2004.
MORAIS, Fernanda Beatriz Caricari de; CRUZ, Osilene Maria de Sá e Silva da. A história em
quadrinhos na aula de língua portuguesa como Segunda Língua (L2): relato de uma experiência com
alunos surdos. Domínios da Lingu@gem, v. 11, n. 1, 2017, pp. 233-250.
PAREDES SILVA, Vera Lúcia. Gêneros digitais: o hibridismo de fala e escrita. GRATO 6th
International Conference on Grammar and Text, Universidade Nova de Lisboa, mimeo., jun.,
2017.
PEREIRA, Maria Cristina da Cunha. O ensino de português como segunda língua para surdos: princípios
teóricos e metodológicos. Educar em Revista. Curitiba, Brasil, ed. especial, n. 2, 2014, pp. 143-157.
SANTOS, Leonor Werneck dos; LEAL, Christiana Lourenço. Referenciação e leitura em textos
escritos de alunos surdos. In: CAVALCANTE, Mônica Magalhães; LIMA, Silvana Maria Calixto de.
Referenciação: teoria e prática. São Paulo: Cortez, 2013, pp. 160-180.
SOARES, Magda. Linguagem e escola: uma perspectiva social. 18ª ed. São Paulo: Contexto,
2017.
115
AQUISIÇÃO E ENSINO DE PBL2 PARA SURDOS:
UM ESTUDO DE CASO SOBRE A HIPÓTESE DO
CHOQUE CONSTRUCIONAL NA INTERLÍNGUA
INTRODUÇÃO
Os avanços provenientes das lutas protagonizadas pela comunidade surda permitiram que as
concepções sobre a surdez e as demandas de pessoas surdas sofressem revolução considerável nas últimas
décadas. Com o reconhecimento legal da Língua Brasileira de Sinais - Libras e, sobretudo, graças à pressão
exercida pela massiva produção científica de interface com a surdez, questões tangentes à aquisição da
linguagem, ao ensino e à cultura surda passaram a ser evocadas cotidianamente, propiciando subsídios
para o entendimento das recentes, ou não, demandas desta população.
Dentre estas, destacam-se pesquisas acerca dos processos envolvidos na aquisição de L2 escrita
por surdos, além de abordagens de ensino, no caso de surdos brasileiros, do Português do Brasil como
segunda língua (PBL2). Tais pesquisas podem propiciar avanços no que diz respeito ao letramento e ao
desenvolvimento de habilidades cognitivas de leitura e escrita de indivíduos surdos.
Um ponto importante em estudos sobre aquisição de segunda língua (ASL) é a transferência L1-
L2, em particular, a transferência negativa e que, em geral, resulta em agramaticalidades ou problemas
de aceitabilidade e/ou adequação linguística. Seja por questões relacionadas a diferenças tipológicas
das línguas em questão, pela diferença de modalidades, ou mesmo de registros, a transferência se torna
um dos principais fatores a serem observados nesse campo de estudo, por qualquer que seja seu aporte
teórico. Estudos linguísticos de orientação funcional-cognitivista, os Modelos Baseados no Uso - MBUs
1 Universidade Federal do Rio de Janeiro; Faculdade de Letras; Departamento de Letras - Libras; robertofrei@letras.ufrj.br
116
AQUISIÇÃO E ENSINO DE PBL2 PARA SURDOS: UM ESTUDO DE CASO
SOBRE A HIPÓTESE DO CHOQUE CONSTRUCIONAL NA INTERLÍNGUA
(BARLOW; KEMMER, 2000; BYBEE, 2010; TRAUGOTT; TROUSDALE, 2013), por exemplo,
enfatizam o papel da analogia e da categorização como processos cognitivos principais atuantes na
(super)generalização, na aquisição de L1 e na de L2.
Como toda produção em L2, o texto escrito de surdos em língua portuguesa apresenta
especificidades que o identificam como instrumento do processo transitório L1-L2, Libras-PB, na medida
em que revela a influência da gramática da Libras, sua L1, no curso da produção escrita do Português,
sua L2. A análise da produção escrita de aprendizes surdos pode também espelhar o fenômeno da
transferência negativa, emergente em contextos de aquisição de L2 e na produção escrita em L1, no
caso dos ouvintes, quando verificamos informações gramaticais e/ou textual-discursivas transferidas da
modalidade oral.
O presente capítulo, entretanto, além de propor uma breve revisão sobre a questão da ASL em uma
perspectiva aplicada à aprendizagem de PBL2 por surdos, apresenta uma discussão acerca de aspectos
gramaticais da escrita de surdos, que pode estar localizada para além da instância da transferência. O
estudo salienta instâncias de uso no texto escrito em L2 de surdos resultantes de processos cognitivos de
domínio geral além do analógico, atuantes em diferentes estágios de aquisição.
A ASL foi abordada sob diferentes perspectivas que refletem tanto a evolução da Linguística, quanto
a diversidade teórica que a compõe. Tal diversidade, ao longo da história, não reflete homogeneidade
de pensamento, mesmo entre adeptos de uma mesma corrente linguística, sobre aspectos que se referem
à ASL, o que expõe seu nível de complexidade. Em geral, as teorias concebem explicações para um
ou outro aspecto referente aos fenômenos emergentes, não contemplando, por outro lado, a totalidade
da questão, se pensarmos em respostas para fenômenos que se estabelecem no contínuo da natureza
117
APRENDIZES SURDOS E ESCRITA EM L2:
REFLEXÕES TEÓRICAS E PRÁTICAS
Nitidamente, no contexto de ensino de L2, esse pensamento mostra-se mais elucidativo, uma
vez que o esquema (ERR) é utilizado em estratégias didáticas, desenvolvidas principalmente no método
audiolingual. Vale apontar que a utilização de tais estratégias reflete suposto sucesso do método ao longo
de anos de tradição de ensino de L2 no Brasil e no mundo.
O suposto sucesso, no entanto, não pode ser explicado simplesmente como resultado direto da
aplicação de um método de ensino teoricamente justificado. Também em sua vertente de abordagem da
ASL, a abordagem behaviorista-estruturalista per si sofre críticas teóricas, dada sua limitação sobre como
explica o papel da repetição em confronto com a noção de criatividade linguística e sua limitação sobre
como explica o papel da cognição do aprendiz no processo de aquisição da L2. Uma reflexão acertada
acerca dos aspectos cognitivos e da frequência de uso de construções da L2 parece ser uma lacuna desse
contexto teórico e, consequentemente, do prático.
A pergunta a que chega o presente capítulo, então, é a que aponta para como tal proposta teórica
explicaria a aquisição de L2 por surdos, particularmente na modalidade escrita: será que propostas que
se baseassem apenas na excessiva prática da repetição alcançariam a respostas para os problemas de
agramaticalidade e textualidade típicos do contexto de produção escrita de surdos?
118
AQUISIÇÃO E ENSINO DE PBL2 PARA SURDOS: UM ESTUDO DE CASO
SOBRE A HIPÓTESE DO CHOQUE CONSTRUCIONAL NA INTERLÍNGUA
Assim, a hipótese inatista estipula que os seres humanos nascem biologicamente “programados”
ao desenvolvimento linguístico. Essa concepção define a noção de Gramática Universal (GU) como o
estágio inicial da FL, composto por um conjunto de princípios e parâmetros a serem fixados a partir da
exposição do indivíduo aos dados linguísticos primários de determinada língua. Nesse sentido, teríamos
uma resposta, por exemplo, ao fato de não apenas surdos, mas também ouvintes poderem adquirir uma
língua de sinais como L1, já que os canais de percepção e de produção envolvidos na e para a linguagem
seriam periféricos a este mecanismo complexo e completo, que seria a FL.
Daí, a crítica à repetição e ao reforço como princípios basilares para a aquisição era inevitável.
Seria a perspectiva behaviorista-estruturalista uma forma limitada para a explicação de um objeto
que em si demandaria um modelo explanatório e descritivo melhor: a língua. Assumir simplesmente o
esquema ERR como modelo explanatório significaria, nesta visão, limitar o output às ofertas do input, o
que não se justifica empiricamente, segundo o argumento da pobreza de estímulo e que explicaria o fator
da criatividade linguística.
O senso comum, no âmbito dos estudos gerativistas, difere aquisição de aprendizagem, uma
distinção diretamente relacionada ao papel exclusivo e biologicamente determinado da FL para a aquisição
de uma língua. Entretanto, embora não tenha postulado a teoria gerativa pensando na ASL, Chomsky
afirma que “há muitas questões interessantes e importantes para responder e uma boa quantidade de
variações individuais na aquisição tardia que ainda não são bem compreendidas” (CHOMSKY, 2000b,
p.61).
De fato, as pesquisas que seguem tal hipótese não apresentam consenso quanto à disponibilidade
desse mecanismo de aquisição no contexto da ASL. As pesquisas equilibram-se entre as possibilidades
de: (a) o aprendiz reconstruir a gramática da L2 a partir da L1; (b) algumas áreas da GU estarem
disponíveis ao acesso, enquanto outras não; e (c) o aprendiz precisar recorrer a outros processos mentais
para adquirir conhecimentos da L2.
É inegável o poder explanatório que tal modelo representa, em particular em confronto com a
perspectiva behaviorista-estruturalista. A presente indagação, que se relaciona à discussão sobre surdez,
no entanto, diz respeito ao fato de encontrarmos com certa frequência surdos e ouvintes que adquiriram
a Libras ou o PB tardiamente, mas que devido à alta frequência com que utilizam as duas línguas são
frequentemente confundidos dentro da comunidade surda como nativos da língua adquirida tardiamente.
Entendemos, assim, que a existência de indivíduos bilíngues, cujas L2 foram adquiridas tardiamente, mas
que se comportam linguisticamente como citado, pode relativizar o poder de um modelo que distingue
categoricamente aquisição e aprendizagem de línguas.
119
APRENDIZES SURDOS E ESCRITA EM L2:
REFLEXÕES TEÓRICAS E PRÁTICAS
não fazem a distinção clássica entre aquisição e aprendizagem. Falamos aqui de modelos que concebem
a aquisição de uma L1, ou de uma L2, a partir dos mesmos princípios, gerais e inatos, acerca do
funcionamento cognitivo humano e que explicam a aprendizagem como fenômeno geral. Não separam,
assim, o que se entende por aprendizagem de uma L1 de outras formas de aprendizagem, como a de
uma L2, ou do que não é de natureza linguística. Tampouco ignoram as mudanças decorrentes do
tempo e que afetam o funcionamento global da mente, influenciando o resultado da aprendizagem ao
longo dos anos.
Ainda, se considerarmos a não divisão rígida entre léxico e gramática em categorias discretas,
se entendermos suas diferenças a partir da perspectiva de contínuo, em que de um lado temos o pólo
lexical e do outro o gramatical, vemos que as construções podem ser [+/- abstratas], de natureza mais
gramatical, como as de estrutura argumental, ou [+/- concretas], de natureza mais lexical, como as
palavras e os idiomatismos.
A língua consiste na reunião dessas unidades, o constructicon, uma rede de construções ligadas
entre si por semelhanças no nível da forma e/ou do significado. Nesse sentido, o modelo abarca,
perfeitamente, tanto em termos explanatórios, quanto em termos descritivos, línguas orais e de sinais.
Assim, por exemplo, a Libras e o PB constituem-se diferentes constructicons, com distintos canais de
produção e percepção, mas que mantêm, cognitivamente, a mesma natureza de gramática graças ao
papel das unidades que a constituem: as construções, os diferentes pareamentos convencionalizados de
formas e sentidos.
Bybee (2008) discute a importância da frequência de uso para a aquisição de L2. Segundo a
120
AQUISIÇÃO E ENSINO DE PBL2 PARA SURDOS: UM ESTUDO DE CASO
SOBRE A HIPÓTESE DO CHOQUE CONSTRUCIONAL NA INTERLÍNGUA
autora, as línguas são sistemas adaptativos complexos e emergentes, resultantes da atuação dos processos
cognitivos que lhes são subjacentes. Nesse sentido, também no âmbito da ASL, para entendermos os
fenômenos linguísticos emergentes no curso da aquisição de L2, é preciso considerar a existência dessas
forças na produção de padrões produtivos e que afetam nossa cognição/memória, mesmo quando nos
encontramos diante de uma rede construcional distinta daquela aprendida durante nossa primeira
infância.
O tratamento do papel da frequência de uso por este modelo pode ser, grosso modo, análogo
ao sentido de “repetição” da perspectiva behaviorista-estruturalista, apesar de esta se tratar de uma
abordagem teórica de base estatística e cognitivo-interacional complexa e que não desloca o papel de
agência do indivíduo em curso de aquisição.
Portanto, defendemos que a frequência de uso, contextualizada e guiada a partir dos processos
cognitivos de domínio geral, com que construções emergem na dinâmica real da língua impacta a
gramática, em termos cognitivos, do aprendiz. Assim, construções são representações mentais, que
emergem via experiência com a língua e sujeitas ao efeito da frequência de uso. Por conseguinte, as
construções mais frequentes de uma L1, por exemplo, poderiam ser as mais suscetíveis a serem transferidas
no uso de uma L2.
Bybee (2008) mostra, ainda, que na ASL, além do impacto da frequência das novas construções
da língua-alvo (LA) para a formação da representação cognitiva da L2 na mente do aprendiz, a estrutura
construcional da L1 interfere no processo, o que explicaria a transferência e casos de supergeneralização
no processo de aquisição da nova língua.
Seguindo o aporte teórico funcionalista, Freitas (2011) propõe uma visão de Interlíngua que
reflete a proposta descrita por Bybee (2008) a respeito do papel da frequência de uso de construções
da L1 e da L2 e seus impactos na gramática do aprendiz de L2. Sendo assim, o autor refina o termo
Interlíngua (SELINKER, 1972 & 1979; ODLIN, 1980), atribuindo-lhe características de uma perspectiva
sociocognitiva, na medida em que o considera como
um recorte adaptado de um sistema linguístico, o qual é, potencialmente
falando, um modelo a ser adquirido/aprendido. Seria ela [a Interlíngua]
121
APRENDIZES SURDOS E ESCRITA EM L2:
REFLEXÕES TEÓRICAS E PRÁTICAS
Segundo Freitas (2011), a Interlíngua, é um estágio de aquisição no qual o aprendiz constrói, com
base no uso, uma rede de representação cognitiva formada tanto por construções de sua L1, quanto da
LA.
Tais dados refletiam, portanto, o impacto representacional de construções das duas línguas
em questão. Elas estariam mescladas na interlíngua por influência de seu papel de frequência nos dois
sistemas e pelo papel do pensamento analógico, que levaria a associação das duas construções no espaço
da Interlíngua, gerando supergeneralizações.
A HCCI pode contribuir para o avanço dos estudos linguísticos acerca da ASL, e por consequência
ampliar as práticas referentes ao ensino de L2, inclusive, para surdos.
122
AQUISIÇÃO E ENSINO DE PBL2 PARA SURDOS: UM ESTUDO DE CASO
SOBRE A HIPÓTESE DO CHOQUE CONSTRUCIONAL NA INTERLÍNGUA
a) a performance em L2, que pode ser diferenciada da performance nativa, mesmo em níveis mais
altos de proficiência, dado o papel de fatores como tempo/natureza de exposição e memória/
cognição e
b) o texto escrito em PBL2, que pode apresentar características construcionais da Libras (L1),
do PBL2 escrito, ou ainda do PB oral, em casos de surdos altamente oralizados (FREITAS et al,
2018a).
Nesse sentido, o entendimento da Interlíngua como sistema adaptativo emergente do uso mostra-
se potencial para a contribuição didática sobre aspectos linguísticos dos textos escritos de aprendizes
surdos, a partir da noção de construção.
Seguindo o presente modelo, via descrições gramaticais de produções escritas de surdos, Freitas
et al (2018a) propõem uma análise linguística pautada em três eixos sobre a produção textual em PBL2,
a saber: (a) gramaticalidade e adequação à norma culta do português; (b) composição da textualidade;
e (c) atuação de processos cognitivos subjacentes aos desvios observáveis no plano textual. Os autores
perceberam que a Interlíngua de seus informantes – todos de escolaridade universitária – apresentou
problemas importantes relacionados aos pontos de investigação e que comprometiam de modo significativo
o resultado da produção escrita desse público. A pesquisa demonstrou a necessidade de adequação
de abordagens de ensino para surdos para que atendam às necessidades exclusivas apresentadas na
produção de sua escrita, tornando-se verdadeiramente de caráter inclusivo.
Dentre seus achados, Freitas et al (2018a) mostram que, também no texto escrito em L2 de
surdos, problemas de agramaticalidade, inteligibilidade e aceitabilidade na Interlíngua não se restringem
à transferência de construções da Libras (L1) para a escrita em PBL2. A interlíngua, no fim das contas,
fundamenta-se como uma rede de construções oriundas das redes construcionais da L1 e da L2, e que
emergem a partir das vicissitudes do discurso em L via atuação de processos cognitivos de domínio
geral. Nesse processo, podem emergir uma gama de fenômenos linguísticos, que muitas vezes podem ser
textualmente comprometedores, como o fenômeno da Mescla Construcional, apontado no trabalho de
123
APRENDIZES SURDOS E ESCRITA EM L2:
REFLEXÕES TEÓRICAS E PRÁTICAS
(L1) (L2)
INTERLÍNGUA
(IL)
IL
L1 L2
124
AQUISIÇÃO E ENSINO DE PBL2 PARA SURDOS: UM ESTUDO DE CASO
SOBRE A HIPÓTESE DO CHOQUE CONSTRUCIONAL NA INTERLÍNGUA
Com base nas informações apresentadas nas seções anteriores, esta seção tem por finalidade
apresentar um estudo que exemplifica a discussão acerca da aplicabilidade do modelo da GCBU, para o
entendimento da natureza da interlíngua e consequente contribuição teórica para a melhoria de ensino
de texto escrito por surdos.
Nos dados coletados por Freitas et al (2018a) em 2017, são observadas incidências desse
problema em textos produzidos pelos surdos universitários no gênero e-mail. Em todos os casos, o
choque construcional se deu entre construções específicas da LA, o que culminou com a proposição do
processo cognitivo mescla construcional, derivado do processo cognitivo maior da analogia. A tabela
abaixo mostra a relação dos dados de Freitas et al (2018a) e ilustra, com maiores detalhes, o fenômeno
do choque envolvendo construções da LA:
125
APRENDIZES SURDOS E ESCRITA EM L2:
REFLEXÕES TEÓRICAS E PRÁTICAS
Por outro lado, dados coletados em 2018 pelos mesmos pesquisadores mostraram que o choque
construcional pode ocorrer não só entre construções da LA, como também entre construções da L1 e da
LA. Assim, com base na análise de textos pertencentes aos gêneros relato de acontecimento, postagem
de Facebook e mensagem de Whatsapp, foi possível perceber instâncias de sequências textuais que
identificam o fenômeno do choque construcional. Os dados abaixo mostram três exemplos de choques
envolvendo construções da LA e um envolvendo construções da L1 e da LA:
126
AQUISIÇÃO E ENSINO DE PBL2 PARA SURDOS: UM ESTUDO DE CASO
SOBRE A HIPÓTESE DO CHOQUE CONSTRUCIONAL NA INTERLÍNGUA
Para fins de exemplificação, selecionamos o terceiro dado da tabela de 2018, visto que a mescla
entre as construções [Que SN Pron Obl SV] (“Que Deus te abençoe”) e [Que SN SV Pron] (“Que Deus
abençoe você”) parece ser proveniente de uma reanálise interpretativa das duas sequências da LA. De
fato, parece haver justificativa para a mescla de construções, devido ao acréscimo do pronome “você” à
sequência escrita reinterpretada.
Com relação ao choque entre construções da L1 e da LA, chama-se atenção ao dado do gênero
127
APRENDIZES SURDOS E ESCRITA EM L2:
REFLEXÕES TEÓRICAS E PRÁTICAS
conversa de Whatsapp. Nesse caso, acreditamos que o aprendiz surdo, ao representar via escrita minha
amiga piada, mescle padrões construcionais de predicação que refletem, em nível abstrato, construtos
tanto da Libras quanto do PB, tomando como referente um significante adjetival polissêmico de sua
L1, substituindo-o por um sinônimo correspondente na L2, porém equivocado no contexto escrito em
questão. Isto é, ao mesclar construções específicas de atos de fala semanticamente convergentes, mas
incompatíveis em forma, entre os padrões da L1 e da L2, o resultado foi o de uma sentença agramatical.
Bybee (2010) define o processo cognitivo de domínio geral de associação transmodal como a
capacidade de fazer associações entre experiências co-ocorrentes, como, por exemplo, a associação de
uma forma linguística a um dado sentido. Acreditamos que a natureza do choque construcional do caso
de [minha amiga piada] possa ser motivado por esse processo pelo fato de, entre outras coisas, transpor
para a escrita em PBL2 o referente polissêmico utilizado na Libras, que apresenta um único signo
linguístico para designar o adjetivo “engraçad@” e o substantivo “piada”. Nesse sentido, a associação
transmodal se justificaria pelo emprego de um item polissêmico da L1 na construção correspondente da
L2, que não abrange a polissemia presente na L1.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Que rumos devemos tomar no ensino de PBL2 para surdos? Em que medida abordagens
teóricas, como a perspectiva behaviorista-estruturalista, o gerativismo e os MBUs podem contribuir
ao entendimento da Interlíngua escrita dessa comunidade linguística? Notadamente, a resposta a essas
indagações precisa ser oferecida em face da importância e especificidades desta modalidade de ensino.
128
AQUISIÇÃO E ENSINO DE PBL2 PARA SURDOS: UM ESTUDO DE CASO
SOBRE A HIPÓTESE DO CHOQUE CONSTRUCIONAL NA INTERLÍNGUA
REFERÊNCIAS
BARLOW, Michael; KEMMER, Suzanne. Usage Based Models of Language. The University
Chicago Press, 2000.
BYBEE, Joan. Usage-based grammar and second language acquisition. In: P. Robinson and N. Ellis(eds.),
Handbook of Cognitive Linguistics and Second Language Acquisition. New York: Routledge.
216-236, 2008.
BYBEE, Joan. Language, usage and cognition. Cambridge: Cambridge University Press, 2010.
BROWN, Douglas. Principles of language learning and teaching. New Jersey: Prentice Hall,
1994.
FREITAS JR, Roberto; MARQUES, Priscilla Mouta; CASTANHEIRA, Dennis da Silva; LACERDA,
João Miguel Henriques de. A construção [(X)[VAUX VPP SN]]FOC no gênero abstract: choque
de construções na interlíngua? Revista UNIABEU. 2018
FREITAS JR, Roberto; SOARES, Lia Abrantes Antunes; XAVIER, Hosana Sheila Rosa;
NASCIMENTO, João Paulo da Silva. Será um grande de aprendizado: uma análise descritiva
dos aspectos linguísticos da escrita de surdos em PBL2 - Interfaces entre textualidade, uso e cognição no
estado de interlíngua”. Rio de Janeiro. Pensares em revista, v. 01, p. 07-29, 2018.
NASCIMENTO, João Paulo da Silva; SOARES, Lia Abrantes Antunes; DE FREITAS JUNIOR,
Roberto. Os bastidores da escrita: análise cognitivo-funcional de processos cognitivos operantes na
aquisição de PBL2 por surdos bilíngues. Revista Diálogos, v. 7, n. 2, p. 143-155, 2019.
129
POR UMA ABORDAGEM CONSTRUCIONAL E
APLICADA DE ENSINO DE PBL2 PARA SURDOS:
INTEGRANDO A GCBU AOS PCNLE E ÀS OCEMLE
INTRODUÇÃO
Um ponto crucial em nossa experiência com o Curso de Extensão Pensando a escrita do Surdo:
descrição, demandas e propostas pedagógicas (PES) foi a proposta de articulação entre teoria e prática
que desenvolvemos no âmbito do Núcleo de Estudos sobre Interlíngua e Surdez - NEIS/UFRJ e que
foi aplicada pelos alunos, na sua maioria professores, deste curso. A proposta consistia na aplicação dos
conhecimentos teóricos desenvolvidos ao longo do curso, com enfoque no modelo teórico da Gramática
das Construções Baseada no Uso (GCBU) e em princípios defendidos pelos Parâmetros Curriculares
Nacionais de Língua Estrangeira (PCNLE) e as Orientações Curriculares do Ensino Médio de Língua
Estrangeira (Línguas Códigos e suas tecnologias), para fins de elaboração de sequências didáticas.
Em suma, a ideia foi a de que os alunos preparassem aulas, nas quais articulariam os conhecimentos
adquiridos, na tentativa de futuramente desenvolverem suas próprias unidades de ensino de Português
do Brasil como L2 (PBL2). A elaboração deste material aconteceu em oficinas de produção, parte
componente do PES. Em grupos, dentro e fora das aulas do curso, os integrantes pesquisaram, pensaram
e repensaram suas propostas de sequências didáticas, tudo sob orientação dos professores e alunos/
pesquisadores do NEIS/UFRJ.
1 Universidade Federal do Rio de Janeiro; Faculdade de Letras; Departamento de Letras - Libras; robertofrei@letras.ufrj.br
130
POR UMA ABORDAGEM CONSTRUCIONAL E APLICADA DE ENSINO DE PBL2
PARA SURDOS: INTEGRANDO A GCBU AOS PCNLE E ÀS OCEMLE
para uma proposta de ensino ajustadas às demandas do aluno surdo, no que tange ao ensino de língua
portuguesa escrita.
As demandas do surdo, nesse sentido, não são necessariamente diferentes das do ouvinte.
Aspectos como o papel instrumental da L2, de certo modo análogo ao papel de uma língua estrangeira,
e a perspectiva de ensino no escopo da leitura crítica, dos letramentos e multiletramentos, com foco
no mundo digital/global, são abordagens que devem compor as aulas no âmbito das linguagens e suas
tecnologias, tanto de alunos ouvintes, como de surdos.
Nesse sentido, os PCNLE oferecem subsídios importantes que podem ser transpostos para a
elaboração de material e de práticas didáticas com foco no ensino de PBL2 de surdos. Os PCNLE
defendem, entre diferentes aspectos, o foco no ensino de uma habilidade, qual seja, a leitura. Ainda,
fornecem arcabouço para pensarmos o ensino de LE com ênfase na visão sociointeracional da linguagem
em articulação com a visão de uso e prática social, via L2, na perspectiva do trabalho com gêneros textuais,
em prol do desenvolvimento de cidadãos críticos e significativamente inseridos em seus contextos sociais,
em particular, em tempos de globalização. Pensamos que tais pressupostos também devam ser levados
em conta na perspectiva de ensino de PBL2 de surdos.
As OCEMLE contribuem para a elaboração das sequências didáticas via discussão sobre o
ensino no campo das linguagens em contato com o mundo digital, no contexto da globalização e que
coloca a L2 como objeto que permite a ampliação do entendimento da diversidade de culturas e usos
diferenciados de linguagens, por diferentes comunidades de práticas. Novamente, é possível fazer a ponte
entre o papel da LE desenvolvido pelo documento e o papel do PBL2 para o surdo. No contexto da
internet e do mundo contemporâneo digital, são bem-vindas práticas pedagógicas apoiadas nas teorias
sobre a linguagem e as novas tecnologias, a saber, as de letramentos, multiletramentos, multimodalidade
e hipertexto (BRASIL, 2006).
131
APRENDIZES SURDOS E ESCRITA EM L2:
REFLEXÕES TEÓRICAS E PRÁTICAS
Fica evidente, então, que a discussão acerca da exclusão, antiga e há muito vivida pela comunidade
surda, torna-se assunto de extrema importância na pauta dos interesses mundiais, tudo isso graças ao
advento das novas Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs) e da internet. A exclusão digital,
oriunda entre outros fatores da falta de domínio de novas linguagens e letramentos, torna-se uma
realidade também para ouvintes, o que força a escola, oportunamente, a pensar em novas práticas de
ensino para o campo das linguagens e suas tecnologias. Novos tempos, novas línguas, novas linguagens
implicam mudanças e forçam o repensar da prática pedagógica, também, no âmbito de ensino de
línguas adicionais (LE/L2).
O inglês nesse sentido, a língua franca do nosso tempo, possui papel de destaque por permitir
o acesso ao variável, ao diverso, ao contraditório, ao conhecimento, enfim, à inclusão significativa de
indivíduos de todo o globo. E aqui funciona uma interseção que queremos destacar: o PB escrito, para
pessoas surdas brasileiras, funciona de modo análogo ao Inglês LE para o resto do mundo. Conhecê-lo
é ampliar suas possibilidades de inclusão. Dominá-lo é ampliar suas possibilidades de empoderamento.
Abraçá-lo é ampliar suas possibilidades de entendimento do outro, dos outros, e, acima de tudo, do
papel de sua própria cultura e de sua própria língua, a Libras, no contexto do mundo globalizado
contemporâneo.
De fato, a discussão sobre o papel da LE promovida pelos PCNLE e pelas OCEMLE funciona
como gatilho inevitável para um diálogo acerca de novas propostas de ensino de PBL2 para surdos. Há
de se considerar ainda que o PB não é uma língua estrangeira para essa comunidade, na medida em que
é a língua de seu país e, por conseguinte, sua por direito. Essas questões são de extrema relevância para
a discussão com foco no ensino de escrita para surdos, mas a situação não deve parar por aí.
A contribuição do modelo da GCBU (GOLDBERG, 1995 & 2006; HILPERT, 2014; PEREK,
2015; BYBEE, 2008 & 2010), na busca de uma metodologia e elaboração de materiais para ensino de
PBL2 para surdos, consistiu em um aspecto diferencial para o que entendemos ser um ponto específico
e extremamente negligenciado nesse campo: a aprendizagem desta língua, incluindo seus aspectos
estruturais, das formas e sentidos, dos idiomatismos, que constituem um conhecimento caro no contexto
de quem aprende uma L2.
132
POR UMA ABORDAGEM CONSTRUCIONAL E APLICADA DE ENSINO DE PBL2
PARA SURDOS: INTEGRANDO A GCBU AOS PCNLE E ÀS OCEMLE
É bem verdade que falamos aqui de fatos comuns ao contexto de aquisição de uma L2 em
geral, e não apenas no contexto de educação de surdos. Falamos do reconhecimento da língua escrita
como L2, tanto para surdos, quanto para ouvintes, e de um contexto de ensino em que o conhecimento
linguístico da L1, por exemplo, pode se mostrar um fator atuante na interlíngua em maior ou menor
grau, também, tanto para surdos, quanto para ouvintes. De todo modo, os problemas de textualidade e
agramaticalidades, de que aqui tratamos, destacam-se sobremaneira nos textos de muitos surdos, o que,
muitas vezes, representa um fator real de dificuldade para sua inserção no mundo letrado.
A produção escrita do surdo torna-se, assim, um desafio significativo e atual da educação bilíngue,
trazendo desafios à Pedagogia, à Psicologia e particularmente, aqui queremos destacar, à Linguística. A
questão que se coloca acerca dos problemas de agramaticalidade e textualidade dos textos dos surdos
passa diretamente pela discussão do conceito de gramática, da noção de conhecimento linguístico, da
interface L1-L2, pontos inerentemente de interesse de qualquer modelo teórico linguístico.
Assim, defendemos que o grande problema do ensino de PBL2 para surdos, para além da discussão
sobre o papel da Libras como língua de instrução, encontra-se no fato de tal discussão não estar, com
regularidade, no lócus da investigação, da teorização e da aplicação de um modelo teórico linguístico. Em
outras palavras, metodologias educacionais, abordagens psicológicas, enfim, toda e qualquer tentativa de
contribuição ao ensino de L2 escrita para surdos deverá ser pautada em uma discussão de, no mínimo,
dois pontos: (a) o entendimento de que no contexto de interlíngua sempre haverá o papel da L1 e o da
ação de princípios mentais atuantes no curso de sua formação e (b) a necessidade de um modelo teórico
que possua capacidade explicativa e descritiva do que seja, no nível da cognição, uma gramática.
Eis a porta de entrada que leva a uma abordagem construcional de ensino de PBL2 para surdos.
Há necessidade de uma abordagem pautada na produção morfossintática, com foco na aprendizagem
de produção de sentenças gramaticais, o que não significa dizer que o trabalho com foco na produção
textual global seja secundário. Apenas reconhecemos a necessidade de contemplarmos de modo sincero
esta questão, ou nunca teremos uma abordagem eficaz de ensino de escrita para surdos no Brasil.
Para entendermos melhor o papel da GCBU nessa proposta metodológica de ensino de PBL2
para surdos, passamos a discutir um pouco de seus fundamentos teóricos2.
Para tal, retomamos a pergunta clássica, objeto de investigação de toda e qualquer teoria linguística:
afinal, no que consiste nosso conhecimento gramatical? Que tipo de conhecimento apresentamos ao
produzir uma sentença simples, cuja interpretação revela multiplicidade de informações de natureza
formal, semântica, pragmática, discursiva, entre outras? E como tal conhecimento acontece quando
tratamos de uma L2?
2 Ao longo deste e-book diferentes autores trataram do tema. Não seria objetivo primário do presente capítulo voltar a este
ponto, não fosse a importância da GCBU para a elaboração do Esquema de Aula apresentado.
133
APRENDIZES SURDOS E ESCRITA EM L2:
REFLEXÕES TEÓRICAS E PRÁTICAS
O trabalho Construction grammar and its application to English (HILPERT, 2014), retoma a
discussão acerca do que sabemos “quando sabemos uma língua” e apresenta uma lista que resume a
visão, um tanto tradicional, sobre o ponto. Segundo o autor, quando sabemos uma língua:
No entanto, para responder a tal pergunta, seria preciso, na verdade, um modelo que representasse
uma visão suficientemente abrangente sobre nossa competência gramatical, dando conta de todos os
aspectos acima. É neste momento que o autor apresenta a visão construcionista da linguagem, o conceito
de construção como a unidade elementar de nosso conhecimento linguístico, e o de Constructicon
como uma rede organizada dessas construções.
Nesse sentido, o autor se alinha a diversos teóricos, e seus diferentes modelos de Gramática das
Construções, ao defender a construção, uma unidade de forma e sentido próprios, como a unidade
mínima que representa nosso conhecimento linguístico.
Em suma, tal como definido em Goldberg (2006), é possível mapear a totalidade do conhecimento
da linguagem a partir da visão de que a gramática consiste em um conjunto organizado de pareamentos
forma-sentido interrelacionados, segundo características de forma e/ou sentido entre si compartilhados.
Um ponto importante que parece emergir nesse contexto é a possibilidade de entendermos, também, a
natureza do conhecimento adquirido, quando aprendemos uma L2: não seria ele também construcional?
134
POR UMA ABORDAGEM CONSTRUCIONAL E APLICADA DE ENSINO DE PBL2
PARA SURDOS: INTEGRANDO A GCBU AOS PCNLE E ÀS OCEMLE
entender tudo o que é dito, mas envolve também crucialmente a capacidade de usá-lo idiomaticamente”
(HILPERT, 2014:13). Em outras palavras, saber usar as formas existentes em uma língua e seus papéis
de sentidos convencionais é uma tarefa nada fácil, seja no contexto de aquisição de L1, seja no de L2.
A respeito do fenômeno da aquisição da linguagem, Hilpert (2014) explica, ainda, como os esquemas
formais adquiridos pelas crianças são altamente dependentes do material lexical a eles relacionados. Na
visão construcionista acerca da aquisição da linguagem, as crianças aprendem, inicialmente, unidades
concretas e gradualmente, pelo reconhecimento de semelhanças entre unidades, formam padrões,
categorias, esquemas, modelos que podem ser a resposta para a criatividade linguística, combinações
semântica e sintaticamente controladas e via preenchimento de material linguístico adequado e previsto
para o preenchimento de slots.
Assim, supõem-se que as representações mentais, esquemáticas ou não, são resultados de exposição
robusta de dados linguísticos comuns, que gradualmente permitem tais generalizações. Tal visão, assim,
trata-se de uma abordagem de aquisição baseada no item e na experiência com a língua. A gramática
não é vista como reflexo de padrão subjacente, tal como defendem teóricos formalistas, mas é formada
diretamente no que é experienciado e observado no uso linguístico e com internalização direta de itens,
definindo a noção emergentista de gramática (TOMASELLO, 2003). A aquisição, assim, consiste em
um processo de movimento da experiência para a abstração, bottom-up, através do qual adquirem-se
construções mais concretas, que, aos poucos, quando for o caso, são categorizadas em construções mais
abstratas.
3 Alguns pesquisadores brasileiros vêm sugerindo o uso do termo construcionário, para uma melhor representação deste
conceito.
135
APRENDIZES SURDOS E ESCRITA EM L2:
REFLEXÕES TEÓRICAS E PRÁTICAS
o que também parece acontecer com surdos, os quais também transferem as construções de sua L1,
sinalizada, para o contexto da L2 escrita4.
Pautados, então, nos pressupostos da GCBU, defendemos a necessidade de que o aluno surdo
aprenda a L2, para fins de comunicação escrita, a partir das unidades de forma/sentido da língua alvo
e em um processo de construção paulatina da gramática. Nesse caminho, seriam introduzidos os itens/
padrões da L2 e suas possibilidades combinatórias, para o trabalho no nível sentencial, em consonância
com o trabalho no nível da leitura/produção textual na L2, articulado com abordagens de (multi)
letramentos, multimodalidades e hipertexto.
O esquema abaixo representa uma suposta rede de construções, que estão relacionadas entre si,
por fatores de forma e/ou sentido tal como se organiza o constructicon, e que representam os diferentes
tipos de itens, possivelmente objetos de ensino em sala de aula de PBL2 para surdos. Cabe observar, assim,
a existência de palavras, como [pegar], esquemas gramaticais, como [SUJ pegar OBJ], e idiomatismos,
como [pegar fogo]. O foco na natureza formal e funcional dos itens da L2 permitirá uma abordagem de
ensino abrangente para atender a demandas de produção a partir de esquemas gramaticais mais abertos,
como no padrão da construção transitiva [SUJ pegar OBJ] e de esquemas substantivos, idiomatizados,
como no padrão [pegar fogo], de leitura mais lexicalizada:
4 Vale citar aqui o artigo Aquisição e ensino de PBL2 de surdos: um estudo de caso sobre a hipótese do choque construcional
na interlíngua, de Freitas & Nascimento, também parte deste e-book.
136
POR UMA ABORDAGEM CONSTRUCIONAL E APLICADA DE ENSINO DE PBL2
PARA SURDOS: INTEGRANDO A GCBU AOS PCNLE E ÀS OCEMLE
A ênfase dada ao ensino de construções, a partir de um trabalho de nível mais sentencial, permite
resolver uma série de pontos problemáticos do texto escrito por pessoas surdas, relacionados às questões
morfossintáticas, como combinações e concordâncias, e de discussões semânticas e discursivas-pragmáticas,
como a interpretação de sentidos contextualmente localizados e idiomáticas dos pareamentos. Trata-se,
assim, de um trabalho que garante a manipulação no nível da forma e do sentido dos objetos de ensino,
as construções, o que pode minimizar problemas de produções de agramaticalidades e de compreensão
de texto, típicas do espaço de aquisição de uma L2, em particular, no de surdos aprendendo PBL2.
O quadro até aqui apresentado, de integração entre o modelo da GCBU e dos princípios dos
PCNLE e das OCEMLE representa, portanto, o arcabouço teórico apresentado aos alunos do curso
PES. Como dito, esses alunos, professores, tradutores/intérpretes de Libras, alunos de graduação dos
cursos de Letras/UFRJ, entre outros, organizaram suas unidades didáticas tendo por base um template
elaborado a partir dos princípios oriundos deste mesmo arcabouço.
Vale salientar que este mesmo modelo prevê ainda a abordagem tradicional de ensino de
português, com foco na metalinguagem, na análise sintática e em classificações que, a nosso ver, só fazem
sentido no contexto de ensino para surdos, se for apoiada em uma abordagem maior de ensino de L2,
que inclui o ensino do conteúdo linguístico, o foco na habilidade de leitura e escrita e o trabalho no nível
dos (multi)letramentos, multimodalidades e hipertexto, em prol da formação global desses indivíduos
como cidadãos socialmente empoderados.
137
APRENDIZES SURDOS E ESCRITA EM L2:
REFLEXÕES TEÓRICAS E PRÁTICAS
(ESQUEMA A) (ESQUEMA B)
Pré-Leitura Pré-Leitura
Leitura -Texto 1 Leitura - Texto 1
Foco Construcional (Gramatical) Foco Construcional (Gramatical)
Foco Construcional (Lexical) Foco Construcional (Lexical)
Prática de Escrita - nível sintático Prática de Escrita - nível sintático
Prática de Escrita - nível textual Leitura - Texto 2
Dialogando Foco Construcional (Gramatical)
Discutindo Metalinguagem Foco Construcional (Lexical)
Pós-Leitura Prática de Escrita - nível textual
Auto-testagem Dialogando (Texto 1 & Texto 2)
Discutindo Metalinguagem
Pós-Leitura
Auto-testagem
Uma breve observação do quadro nos permite identificar, nas etapas da proposta de aula,
diferentes aspectos desenvolvidos nos PCNLE, como nas etapas da pré-leitura/leitura, nas OCEMLE,
como nas múltiplas possibilidades de trabalho de leitura do texto multimodal e no de múltiplas formas
de letramentos. Há também a garantia de tratamento do aspecto tradicional, metalinguístico, próprio da
abordagem da escola e do caráter de desenvolvimento crítico do aluno, por exemplo, nas atividades de
Auto-testagem e Dialogando.
138
POR UMA ABORDAGEM CONSTRUCIONAL E APLICADA DE ENSINO DE PBL2
PARA SURDOS: INTEGRANDO A GCBU AOS PCNLE E ÀS OCEMLE
Etapa 3) Siga os passos abaixo para organização da unidade (escolha um dos esquemas
para aplicação (A) ou (B):
i. Pré-Leitura
Atividade que visa discussão inicial sobre a temática do texto. Contextualização. Uso da LIBRAS.
Utilização de Textos Multimodais por uma leitura inicial do tema. Foco no conhecimento de mundo do
aluno.
139
APRENDIZES SURDOS E ESCRITA EM L2:
REFLEXÕES TEÓRICAS E PRÁTICAS
x. Dialogando
Debate oral ou sinalizado sobre as questões levantadas no(s) texto(s). Foco no desenvolvimento do
pensamento crítico, reconhecimento das diversidades, tecnologias e questões sociais contemporâneas.
Sugere-se o trabalho com diferentes gêneros discursivos orais.
xii. Pós-Leitura
Atividades em geral que permitam uma conclusão crítica acerca dos temas discutidos na unidade.
Sugere-se uma produção final, talvez escrita, talvez online, que sintetize os conteúdos.
xiii. Auto-testagem
Exercícios reflexivos críticos que reflitam individualmente ou em grupo o conhecimento adquirido. Aqui
é possível ter sob foco qualquer um, ou mais, dos pontos trabalhados na unidade.
Como dito no início deste capítulo, os alunos do curso PES aplicaram este modelo para a
confecção de propostas de aulas de PBL2 para surdos. Muitos já apoiam a elaboração de suas aulas nesta
linha de pensamento e testemunham resultados relativamente positivos de suas práticas.
Em suma, o que visamos apresentar no presente capítulo foi uma discussão sobre uma abordagem
de ensino que pode oferecer subsídios significativos para o ensino de surdos, calcada em um modelo
linguístico teórico consistente e em diálogo com princípios e propostas modernas acerca do ensino de L2
no Brasil.
Apenas desta maneira, considerando a complexidade da questão, com objetivos claros e com
ênfase em resultados positivos, podemos tratar das mudanças salutares de que tanto precisa a área de
educação de surdos voltada para sua produção escrita.
140
POR UMA ABORDAGEM CONSTRUCIONAL E APLICADA DE ENSINO DE PBL2
PARA SURDOS: INTEGRANDO A GCBU AOS PCNLE E ÀS OCEMLE
REFERÊNCIAS
BRASIL. Orientações Curriculares para o Ensino Médio: linguagens, códigos e suas tecnologias.
Brasília: Secretaria de Educação Básica. SEB/MEC, 2006.
BYBEE, Joan. Usage-based grammar and second language acquisition. In: P. Robinson and N. Ellis(eds.),
Handbook of Cognitive Linguistics and Second Language Acquisition. New York: Routledge.
216-236. 2008.
____________. Language, usage and cognition. Cambridge: Cambridge University Press, 2010.
__________; SOARES, Lia Abrantes Antunes; NASCIMENTO, João Paulo da Silva; XAVIER, Hosana
Sheila Silva Rosa. Será um grande de aprendizado: uma análise descritiva dos aspectos linguísticos
da escrita de surdos em PBL2 - Interfaces entre textualidade, uso e cognição no estado de interlíngua.
Rio de Janeiro. Pensares em revista (FFP-UERJ), v. 01, p. 0729, 2018.
NASCIMENTO, João Paulo da Silva; SOARES, Lia Abrantes Antunes; FREITAS, Roberto de. Os
bastidores da escrita: análise cognitivo-funcional de processos cognitivos operantes na aquisição de
PBL2 por surdos bilíngues. Revista Diálogos (RevDia, UFMT), Dossiê Temático “Surdez e aquisição de
línguas” v. 7, n. 2, maio-ago, 2019.
141
APRENDIZES SURDOS E ESCRITA EM L2:
REFLEXÕES TEÓRICAS E PRÁTICAS
PINHEIRO, Diogo. Sintaxe Construcionista. In: OTHERO, Gabriel Ávila; KENEDY, Eduardo. (Org.).
Sintaxe, sintaxes: uma introdução. São Paulo: Contexto, 2015.
142
A PRODUÇÃO DE MATERIAIS PARA ENSINO DE
PORTUGUÊS ESCRITO
POR UMA ABORDAGEM BASEADA NO USO
INTRODUÇÃO
A demanda por orientação sobre como preparar materiais didáticos de português escrito como
segunda língua (L2) para o público-alvo surdo não é recente. Sem investimentos e ofertas no mercado
editorial, professores de língua materna, sem formação específica para lidarem com sua língua em
perspectiva de L2, têm buscado a contribuição de linguistas a fim de encontrarem caminhos consistentes
para desenvolvimento de seus próprios materiais de português para aprendizes surdos.
Há no mercado editorial para ensino de línguas, mais diversificado para umas que para outras,
2 Curso de extensão ligado ao grupo de pesquisa do Núcleo de Estudos sobre Interlíngua e Surdez - NEIS/UFRJ
(http://dgp.cnpq.br/dgp/espelhogrupo/4481596787655919), coordenado pelos professores Roberto de Freitas Júnior e Lia
Abrantes Antunes Soares.
143
APRENDIZES SURDOS E ESCRITA EM L2:
REFLEXÕES TEÓRICAS E PRÁTICAS
materiais para fins específicos com foco no desenvolvimento de pronúncia, na produção escrita em gêneros
textuais acadêmicos, dentre outros. Em geral, são materiais procurados para aprimorar e expandir as
capacidades linguístico-comunicativas já alcançadas por aprendizes de níveis mais altos de proficiência.
Os materiais com foco na produção escrita de gêneros textuais, por exemplo, pressupõem, dentre outros
aspectos, que o aprendiz já tenha compreendido o funcionamento da base morfossintática da L2, sem a
qual não se constroem sentidos nem se desenvolve o letramento via língua-alvo escrita.
1. PRIMEIRAS ESCOLHAS
De forma geral, a preparação de uma unidade didática pode partir das seguintes escolhas:
(i) de um texto, por diferentes motivações (temática, tipologia, gênero discursivo); (ii) de uma função
comunicativa ou (ii) de uma construção linguística. Quando o propósito é o ensino de L2, comumente
definem-se pontos gramaticais do sistema linguístico alvo para que em seguida se passe à seleção de
textos que apresentem tais pontos, apesar de, nem sempre, uma função comunicativa ser definida.
Ocorre que a decisão referente ao ponto de partida para elaboração de unidades didáticas, ao
ser definido pelo conteúdo gramatical, em geral, se apoia no critério de maior ou menor complexidade
em relação à aprendizagem, embora esse critério seja questionável. A definição de que ‘gênero do
substantivo’, por exemplo, seja um ponto gramatical menos complexo (e por isso apareça nas primeiras
lições de livros didáticos) que tempos verbais, como pretéritos perfeito e imperfeito, pode ser analisada
sob outra perspectiva. Se complexidade é uma propriedade de qualquer sistema linguístico, com a qual
aprendizes e professores terão de lidar durante todo o percurso de ensino/aprendizagem da L2, seria
produtivo definir conteúdos para níveis de ensino tendo como critério sua complexidade?
Considerando que poucos substantivos com traço animado recebem em português marca [a]
distintiva de gênero (pato/pata) (ROCHA, 1988), ensinar a aprendizes de L2 que substantivos com traço
inanimado são classificados como femininos ou masculinos pode ser tão complexo quanto ter de explicar
144
A PRODUÇÃO DE MATERIAIS PARA ENSINO DE PORTUGUÊS ESCRITO
POR UMA ABORDAGEM BASEADA NO USO
que uma sentença produzida por um aprendiz não apresenta combinação adequada de itens. Em geral,
professores lançam mão de generalizações, tais como: palavras que terminam em [-a] são femininas e as
que terminam em [-o] são masculinas e, por isso, aparecem combinadas com outro [a] ou [o] (artigos) a
sua esquerda. Após tal generalização, é bastante comum que aprendizes produzam combinações do tipo
[a sistema da biblioteca] e [a problema mecânica].
Retomando discussão proposta em Soares (2018), palavras com traço menos animado classificadas
como femininas não são só aquelas terminadas em [-a], como por exemplo, [cadeira], mas também outras
terminadas em [-dade] (felicidade, faculdade) e [-ção]3 (produção, aquisição). Já as palavras terminadas
em [-ema], com origem do grego, tais como [sistema] e [problema], mantiveram classificação original
masculina, o que não causa dificuldade de uso para um falante nativo do português. Casos como esses
indicam o quão relevante é a formação específica do professor de L2 que, diferente do professor de
língua materna, não pode pressupor que seus aprendizes já tenham conhecimentos de vários domínios
do sistema alvo. Esses poucos exemplos demonstram que definir o que é complexo no ensino de L2 não
se configura tarefa simples nem essencial, na medida em que nada é óbvio e tudo pode ser complexo para
um aprendiz de L2.
A discussão, portanto, parece mais eficiente, não em termos de complexidade das construções
linguísticas, mas, sim, em termos do que ocorre com mais frequência na língua-alvo, em associação aos
contextos em que o aprendiz transita. Pesquisas mostram que o fator frequência é determinante para
percepção e armazenamento de padrões linguísticos (e não linguísticos) (BYBEE, 2008; ELLIS, 2008;
ELLIS e OGDEN, 2015). Sendo assim, é razoável que as escolhas, tanto das construções linguísticas
quanto das funções comunicativas, sigam um percurso gradiente de evolução para aprendizagem da
L2, que leve em conta a frequência de ocorrência com que são usadas na língua em situações em que
os aprendizes se inserem. Nesse sentido, a ocorrência de palavras acompanhadas de especificadores
classificados como femininos ou masculinos [ESPECIFICADOR (masculino; feminino) + NOMINAL]
tem proeminente frequência de ocorrência nos enunciados usados em diversos contextos de interação e
modalidades de expressão, em português.
A escolha dos textos também está fortemente ligada a esse fato. O equilíbrio entre construções
de maior ou menor frequência de uso que aparecem nos textos deve ser observado. Textos mais extensos
têm maior probabilidade de apresentarem maior número de construções ainda não conhecidas e/ou
menos frequentes, e por isso podem frustrar as expectativas do aprendiz durante a atividade leitora,
dando a ele a sensação de não estar progredindo na aprendizagem da L2. Em termos de adequação a
níveis de proficiência, a melhor decisão seria a escolha de textos menos extensos em níveis mais baixos,
podendo sua extensão ser aumentada de acordo com o progresso de nível do aprendiz. Um percurso
gradiente parece ser a melhor indicação, quando o objetivo é a construção de uma base sólida relativa
ao funcionamento/uso da L2.
3 São femininas aquelas palavras cuja forma verbal se pode recuperar: comunicação/comunicar; eleição/eleger, dentre
outras. Para palavras como ‘coração’ e ‘cação’, não se encontra em uso uma forma verbal correspondente.
145
APRENDIZES SURDOS E ESCRITA EM L2:
REFLEXÕES TEÓRICAS E PRÁTICAS
Seja em que ordem for, do texto para a construção linguística, ou o contrário, é importante
que fique clara a função comunicativa das construções linguísticas escolhidas como foco da unidade
didática, a fim de que o professor não se perca de seu propósito de ensinar a usar a L2. São exemplos de
algumas funções comunicativas materializáveis em textos e exploradas implícita ou explicitamente em
livros didáticos de L2:
A lista de atos comunicativos e suas funções, os quais aprendizes devem ser capazes de produzir
para interagir em determinados contextos e modalidades de uso da L2, seguindo determinadas restrições
socioculturais, é bastante longa. Quais palavras e como se combinam em uma sequência não aleatória
para que formem construções que pareiam forma e significado/função na língua-alvo é um ponto central
que não deve ser perdido de vista.
4 Ver capítulos 1 e 2.
5 Para essa vertente da linguística, a premissa básica para uma teoria baseada no uso é que a experiência frequente com uma
língua cria representações (forma, significado e contexto) que formam a gramática. (BYBEE, 2010; 2013)
146
A PRODUÇÃO DE MATERIAIS PARA ENSINO DE PORTUGUÊS ESCRITO
POR UMA ABORDAGEM BASEADA NO USO
(2) [O/A + MAIOR + X (SN) + DO/A + X (espaço)] = expressão de grau máximo de grandeza
ou intensidade;
• “O maior amor do mundo.”
Os exemplos, se analisados item a item, por meio de uma prática de tradução “palavra-sinal”6
não constituiriam boas amostras para aprendizagem de como itens devem se colocar em uma sequência
combinatória que expresse significado A e não, B. Os itens IR e ESPERAR, por exemplo, podem ser
usados em outros tantos padrões combinatórios que expressam outros sentidos, assim como o item
MAIOR. De acordo com Croft (2001), cada padrão, dentre os vários que compõem o repertório de uma
língua, vincula fortemente uma correspondência entre propriedades relativas ao sentido (semânticas,
pragmáticas, discursivas) e à forma (fonológicas e morfossintáticas). Tal vinculação (i) dificulta, por
exemplo, a inversão de ordem dos itens em enunciados de dada língua, evitando agramaticalidade, e (ii)
condiciona a inserção de itens a certo tipo específico, como mostram as indicações entre parênteses, nos
exemplos (1), (2), e (3).
Assim, a opção por um material de ensino pela perspectiva baseada no uso prevê uma abordagem
construcional da L2, em que o trabalho com unidades de forma-sentido-uso (com extensão variada)
constitui um dos elementos centrais.
Para exemplificar as primeiras escolhas de que tratamos até aqui, a Figura 1 materializa a função
comunicativa principal e o texto em que se equilibram construções novas a serem abordadas com outras
que se pressupõem já conhecidas de aprendizes com nível intermediário de proficiência em português.
147
APRENDIZES SURDOS E ESCRITA EM L2:
REFLEXÕES TEÓRICAS E PRÁTICAS
O primeiro texto selecionado para compor a unidade didática corresponde ao parágrafo inicial
do texto assinado por Bia Reis, publicado no blog Estante de Letrinhas do Estadão. Apesar de curto,
o parágrafo traz conteúdo cultural e oferece variedade de construções de cunho lexical e gramatical,
além de equilibrar vocabulário de alta frequência, usado em situações cotidianas – família, amigos,
colegas, gato, criança, festa –, e combinações idiomáticas para expressão de idade e de datas – [100
anos], [segunda-feira que passou], [dia 18 de março]. Os verbos também são de ocorrência frequente,
ainda que alguns se apresentem em forma e sentido que se suponha desconhecidos, tanto em relação ao
tempo verbal quanto ao tipo de argumento selecionado: [estar + adj.], diferente de [estar + ao redor],
[ter + substantivo] (com sentido de ‘haver’), diferente de [ter + particípio], [trabalhar + com], diferente
de [trabalhar + para; em; como]. A configuração equilibrada do novo com o já conhecido permite ao
aprendiz uma leitura sem muitas lacunas a serem preenchidas com o auxílio do professor. As lacunas
serão justamente os alvos para os quais serão direcionados os esforços do professor e dos alunos.
O título da unidade introduz parcialmente uma das construções selecionadas como alvo da
148
A PRODUÇÃO DE MATERIAIS PARA ENSINO DE PORTUGUÊS ESCRITO
POR UMA ABORDAGEM BASEADA NO USO
unidade, cuja função comunicativa é a expressão de hipótese. Um dos objetivos é que o aprendiz seja
capaz de formular hipóteses sobre pessoas, coisas ou eventos que ele suponha haver remota ou nenhuma
possibilidade de realização nas condições observadas. A construção semipreenchida usada para formular
esse tipo de hipótese é [[SE + (S) + V (pret. imperfeito do subj.) (X)] + [(S) + V (fut. do pret. do indicativo)
+ (Y)]].
Embora o texto permitisse, não foi alvo da unidade desenvolver a capacidade de formulação de
outro tipo de construção condicional bastante usada para expressar arrependimento ou lamentação em
relação a um evento ou fato já acontecido, mas que, como não se pode mais voltar no tempo, assume-se a
perda de oportunidade de reação (e.g. Se eu tivesse estudado, teria passado de ano.). É importante
que o professor reconheça e saiba explicar as diferenças de forma-significado-uso de cada construção
para que possa selecionar materiais e elaborar exercícios e atividades adequados.
Sobre a temática, o texto traz informações relativas a uma festa de aniversário para uma escritora
que não está mais viva. Apresenta-se a quebra de expectativa do leitor, da qual se lança mão para
introduzir o significado de hipótese. O texto também proporcionou a interlocução com as temáticas
sobre reconhecimento de escritores e de suas produções (Figura 8) e sobre a importância da leitura
especificamente de livros, materializada em outro texto (Figura 12) e nos doze exercícios e atividades, ao
longo da unidade. A indicação do material, quanto à temática, pode contemplar um público de faixa
etária juvenil e, quanto ao nível de proficiência, aprendizes que tenham atingido algum nível pós-básico.
A partir desses três elementos essenciais – função comunicativa, construção linguística e texto -,
passa-se a definir as atividades para composição da unidade didática.
Apesar das críticas a certas técnicas didáticas (TD), entendemos como Balboni (1991; 2007)
que, se tomadas em valores absolutos – boas ou más, positivas ou negativas –, as técnicas deixam de ser
exploradas pelo real potencial que têm. Questionamentos, tais como a que se prestam as TD e qual sua
função em determinado momento do percurso organizado em fases determinadas no plano de aula, são
importantes para alcance do objetivo mais geral do processo de ensino/aprendizagem de línguas, ou
seja, tornar o aprendiz um usuário da L2.
A escolha aleatória das TD não aproveita todos os potenciais efeitos observáveis em um percurso
de aprendizagem que integra escolhas conscientes e planejadas das TD, com vistas a um percurso
progressivo e gradiente. As TD constituem parte essencial de uma unidade didática com as quais se pode
149
APRENDIZES SURDOS E ESCRITA EM L2:
REFLEXÕES TEÓRICAS E PRÁTICAS
150
A PRODUÇÃO DE MATERIAIS PARA ENSINO DE PORTUGUÊS ESCRITO
POR UMA ABORDAGEM BASEADA NO USO
Outra distinção merece ser descrita neste capítulo, com vistas a melhor organização de uma
unidade didática. Propostas da linguística aplicada ao ensino de L2 diferenciam exercícios, atividades
(BALBONI, 2007; SEMPLICI, 2016) e tarefas (ELLIS, 2003; BRASIL, 2012; SOARES, 2016, dentre
outros). Por um viés cognitivo-funcional, propomos definições que consideram os três elementos em um
contínuo a ser explorado em unidades didáticas.
151
APRENDIZES SURDOS E ESCRITA EM L2:
REFLEXÕES TEÓRICAS E PRÁTICAS
A primeira prática a integrar uma unidade de ensino de língua é proposta na fase ‘Pré-Leitura’
(ou contextualização). Após definição do(s) texto(s), das construções linguísticas e de suas funções
comunicativas, já se pode elaborar uma atividade que articule os objetivos e a temática da unidade.
Atividades de pré-leitura precedem o encontro com o texto e prepara o aprendiz para a leitura do texto
introdutório. São acionados elementos contextuais, multimodais e funcionais, a fim de elicitar o que o
aprendiz já conhece e o que não conhece sobre a temática e sobre a função comunicativa que constituem
foco da unidade, evitando que a atividade leitora seja atravessada por interrupções que entravem a
compreensão do texto.
152
A PRODUÇÃO DE MATERIAIS PARA ENSINO DE PORTUGUÊS ESCRITO
POR UMA ABORDAGEM BASEADA NO USO
A atividade ainda conta com o recurso didático de imagens. A foto das capas dos livros da escritora
Tatiana Belinky, em que aparecem a autora e sua caricatura, promove possível associação transmodal do
nome escrito a seu referente animado. De acordo com Bybee (2010), o processo cognitivo de associação
transmodal é acionado a partir de experiências co-ocorrentes cuja representação assume armazenamento
robusto na memória. A atividade proposta tem o potencial de promover ligações entre as informações
elicitadas, a observação das capas, as informações disponíveis no quadro ‘CURIOSIDADE’ (Figura 2)
e a observação do mapa que concretiza os espaços contextuais vividos por Tatiana Belinky. Todas essas
informações oferecem ainda condições de proposição de um sinal para referenciar a escritora, o que
contribui para o enriquecimento da memória dos aprendizes.
153
APRENDIZES SURDOS E ESCRITA EM L2:
REFLEXÕES TEÓRICAS E PRÁTICAS
Essa proposta ilustra bem um ponto muito caro à comunidade surda: a pedagogia visual. Os
recursos de imagens, esquemas e gráficos em atividades e exercícios são frequentemente utilizados
em materiais de ensino de línguas estrangeiras, assim como em materiais destinados ao público-alvo
infantil. Não é, portanto, uma exclusividade para aprendizes surdos nem deve ser usado como um
recurso a substituir o insumo verbal, imprescindível para aprendizagem de línguas. Seja com o objetivo
de contextualização da temática a ser abordada no texto inicial (Figura 2), seja com o objetivo de
composição dos exercícios configurados em várias TD (Figuras 7 e 8), os componentes imagéticos não
são meros adornos para a unidade de ensino. Sua função pedagógica deve ser explorada, na medida em
que preenchem vazios e auxiliam na compreensão, ativando processos cognitivos que “operam com o
uso da composição de informações linguística e contextual ou verbal e não verbal, fortalecendo as redes
de conexões na memória.” (SOARES, 2018:144).
154
A PRODUÇÃO DE MATERIAIS PARA ENSINO DE PORTUGUÊS ESCRITO
POR UMA ABORDAGEM BASEADA NO USO
Sem solicitação de produção escrita na L2, a TD ‘verdadeiro ou falso’ mostra-se condizente com
um percurso que se pretende gradiente, com inicial oferecimento de input para observação de padrões
construcionais aplicáveis. Na sequência, seguem exercícios e atividades com propósito de desenvolvimento
da produção escrita.
155
APRENDIZES SURDOS E ESCRITA EM L2:
REFLEXÕES TEÓRICAS E PRÁTICAS
As fases seguintes à ‘Leitura’ têm o objetivo de desenvolver a capacidade de uso das construções
selecionadas. Em geral, os exercícios apresentam inicialmente um exemplo para guiar o aprendiz e têm
configuração em TD mais controladas (Figuras 5, 6 e 7) (para observação e manipulação dos padrões-
alvo) que devem progredir para TD menos controladas (Figuras 8 e 9), de forma a prepará-los para
tarefas de produção escrita (Figura 10) no nível textual. É importante que nessa etapa já apareçam
quadros com breves explicações que chamem a atenção do aprendiz para generalizações e possíveis
divergências referentes à forma e ao significado, a serem retomadas na fase específica para discussão de
metalinguagem.
156
A PRODUÇÃO DE MATERIAIS PARA ENSINO DE PORTUGUÊS ESCRITO
POR UMA ABORDAGEM BASEADA NO USO
157
APRENDIZES SURDOS E ESCRITA EM L2:
REFLEXÕES TEÓRICAS E PRÁTICAS
isso, sem perspectiva de realização. O exercício apresenta uma codificação mista (verbal e não verbal),
em que a composição sentença e imagem usada para o item modelo deve ser estendida para as sentenças
seguintes.
Na atividade que completa a fase ‘Dialogado’ (Figura 9), a autora do livro, Ana Maria Machado,
também é destacada. A atividade, cujo enunciado direciona o aprendiz para uma situação hipotética,
oferece mais autonomia que os exercícios anteriores. Se no primeiro texto a hipótese se refere a escritora
Tatiana Belinky que não está mais viva, na atividade (I), a escritora Ana Maria Machado está viva e a
formulação de hipótese diz respeito a uma sugestão de tema para um livro, caso um improvável encontro
acontecesse. É possível ampliar a atividade, solicitando ao aprendiz que ele também proponha um título
para o tal livro. Como não há muitas informações sobre Ana Maria Machado, o quadro ‘AMPLIANDO
CONHECIMENTO’ incentiva a busca por mais informações sobre ela, podendo o aprendiz se interessar
pela leitura de alguns de seus livros.
158
A PRODUÇÃO DE MATERIAIS PARA ENSINO DE PORTUGUÊS ESCRITO
POR UMA ABORDAGEM BASEADA NO USO
159
APRENDIZES SURDOS E ESCRITA EM L2:
REFLEXÕES TEÓRICAS E PRÁTICAS
Todo o percurso seguido até a solicitação da tarefa proporcionou análise da construção em foco
por meio de ocorrências nos textos, nos exemplos e nos itens que compõem cada exercício e atividade
e ainda em quadros distribuídos pela unidade didática com o propósito de ativarem percepção dos
componentes e suas posições sequenciais.
160
A PRODUÇÃO DE MATERIAIS PARA ENSINO DE PORTUGUÊS ESCRITO
POR UMA ABORDAGEM BASEADA NO USO
O quadro da Figura 11, a seguir, aparece ao lado do primeiro exercício que aborda a construção
de hipótese.
161
APRENDIZES SURDOS E ESCRITA EM L2:
REFLEXÕES TEÓRICAS E PRÁTICAS
consciente para monitoramento de suas capacidades durante o processo de aprendizagem. A ideia é que
comportamento consciente evita que o aprendiz desenvolva um sistema de formas competidoras que
não se adequam aos ambientes intra e pós-lexicais, por exemplo, em razão de não terem sido orientados
sobre as restrições de uso da L27. Aprendizes não são especialistas da área da linguagem, por isso adequar
as explicações ao perfil do público-alvo também é fator importante, sem, no entanto, deixar de integrar
metalinguagem ao ensino da L2.
As atividades apresentadas na Figura 12, abaixo, integram as fases finais ‘Pós-leitura’ e ‘Auto-
testagem’. A unidade é finalizada conjugando leitura, inclusive de gráfico, com atividades de reflexão
individual e em grupo, configuradas com as TD perguntas diretas com justificativa e perguntas
abertas. Essas duas TD exigem do aprendiz capacidade de elaboração de enunciados, sem auxílio de
sentenças semipreenchidas. Dada a maior exigência para construção de respostas, tanto em relação ao
conhecimento sobre o tema quanto ao uso de construções da língua-alvo, perguntas com justificativa e
perguntas abertas são uma boa opção para fases finais de uma unidade didática, em que já se espera que
o aprendiz tenha alcançado os propósitos da unidade didática, previamente estabelecidos e desenvolvidos
com os exercícios e atividades propostos.
A atividade (J) promove discussão de ideias trazidas no texto “Crianças estão lendo cada vez
menos”. O aprendiz, após ter experimentado insumo sobre escritores e seus livros durante as práticas
propostas na unidade, tem a oportunidade de ampliar a discussão sobre a importância da leitura de
livros, podendo expressar concordância ou discordância, por escrito e/ou em Libras, em relação às
afirmações trazidas no texto e partilhadas ou não com seus colegas.
A atividade seguinte propõe continuidade da temática sobre leitura de livros, iniciada no texto
anterior, promovendo, como indicam os Parâmetros Curriculares Nacionais de línguas estrangeiras,
desenvolvimento da capacidade de engajamento dos aprendizes em questões socioculturais. A atividade
(K) integra informações desatualizadas (2007 – 2011) apresentadas em um gráfico, o que oferece
condições de explorar elaboração de hipóteses condicionadas (1) a uma suposta nova pesquisa que
mostrasse mudanças positivas nos índices de leitura e (2) ao efeito que teria o conhecimento sobre os
escritores como forma de despertar interesse do público infanto-juvenil.
7 Para mais detalhes sobre metacognição e formas competidoras, ver Soares (2018).
162
A PRODUÇÃO DE MATERIAIS PARA ENSINO DE PORTUGUÊS ESCRITO
POR UMA ABORDAGEM BASEADA NO USO
O percurso para cumprir o propósito de descrever e ilustrar cada fase de uma unidade didática
para ensino de L2 escrita para o público-alvo surdo chega ao fim, sem, no entanto, esgotar as tantas
formas de exploração de recursos linguísticos e didáticos, disponíveis para materialização de bons
instrumentos de ensino/aprendizagem de L2.
163
APRENDIZES SURDOS E ESCRITA EM L2:
REFLEXÕES TEÓRICAS E PRÁTICAS
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A proposta apresentada neste capítulo teve a pretensão de unir teoria e prática na materialização
de uma unidade didática para ensino de português escrito como L2. Essa união e sua materialização é
uma demanda antiga de professores de português que lidam com aprendizes surdos.
Embora seja relevante a oferta de material para ensino de línguas para surdos, não é menos
importante a oferta de formação de professores de português como L2. Conhecimentos teórico,
metodológico e aplicado dão condições aos professores de prepararem seu próprio material didático que
atenda as especificidades de seu público-alvo.
Este capítulo fecha o volume cujo objetivo mais geral é partilhar conhecimento e suscitar interesse,
relacionados à linguagem.
REFERÊNCIAS
BALBONI, Paolo E., Tecniche didattiche e processi d’apprendimento linguistico, Padova, Liviana,1991.
________. BALBONI, Paolo E. Operational models for language education. Perugia, Guerra Edizioni,
2007.
BYBEE, Joan. Usage-based grammar and second language acquisition. In: Handbook of cognitive
linguistics and second language acquisition. Routledge, 2008. p. 226-246.
________. 2010. Língua, uso e cognição. Maria Angélica Furtado da Cunha (trad); Sebastião Carlos
Leite Gonçalves (rev). São Paulo: Cortez, 2016.
164
A PRODUÇÃO DE MATERIAIS PARA ENSINO DE PORTUGUÊS ESCRITO
POR UMA ABORDAGEM BASEADA NO USO
________. Usage-based theory and exemplar representation of constructions. In: HOFFMANN, T.;
TROUSDALE, G. (eds.). The Oxford handbook of construction grammar. Oxford: OUP, 2013. p. 49-
69.
ELLIS, Rod. Task-based language learning and teaching. Oxford: Oxford University Press, 2003.
ELLIS, Nick. The Dynamics of second language emergence: cycles of language use, language change,
and language acquisition, 2008.
ELLIS, Nick; OGDEN, Dave C. Language cognition: comments on Ambridge, Kidd, Rowland, and
Theakston ‘The ubiquity of frequency effects in first language acquisition’. Journal of child language, v.
42, n. 2, p. 282-286, 2015.
FREITAS JR, Roberto; SOARES, Lia A. A.; XAVIER, Hosana S. da R., NASCIMENTO, João Paulo
da S. “Será um grande aprendizado”: Uma análise descritiva dos aspectos linguísticos da escrita de
surdos em PBL2 – interfaces entre textualidade, uso e cognição no estado de interlíngua. Pensares em
Revista, n. 12, 2018.
NASCIMENTO, João Paulo da S.; SOARES, Lia A. A.; FREITAS JR, Roberto. Os bastidores da escrita:
análise cognitivo-funcional de processos cognitivos operantes na aquisição de PBL2 por surdos bilíngues.
Revista Diálogos, v. 7, n. 2, p. 143-155, 2019.
SEMPLICI, Stefania. Tecniche didattiche: strumenti per una didattica comunicativa. Rivista
Aggiornamenti. Nº. 9, ano 6. 2016. p.12-27.
ROCHA, Luis Carlos de A. Estruturas morfológicas do português. Belo Horizonte: UFMG, 1998.
SINCLAIR, John. Corpus, concordance, collocation. Oxford: Oxford University Press, 1991.
SOARES, Lia Abrantes Antunes. Escrita como prática social: a tarefa como um atrator. Revista
Linguagem & Ensino, v. 19, n. 1, p. 81-97, 2016.
165
APRENDIZES SURDOS E ESCRITA EM L2:
REFLEXÕES TEÓRICAS E PRÁTICAS
ANEXO
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A PRODUÇÃO DE MATERIAIS PARA ENSINO DE PORTUGUÊS ESCRITO
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A PRODUÇÃO DE MATERIAIS PARA ENSINO DE PORTUGUÊS ESCRITO
POR UMA ABORDAGEM BASEADA NO USO
173
UNIDADE DIDÁTICA:
“ESTE SOU EU”
PÚBLICO ALVO:
Alunos surdos, entre 12 e 14 anos, usuários de Libras com proficiência em nível básico de português
SÉRIE / ANO
8º / 9º anos do Ensino Fundamental
OBJETIVO
Entender o uso das construções “eu sou / tenho um@...”
FUNÇÃO COMUNICATIVA
Apresentação pessoal
CONSTRUÇÃO LINGUÍSTICA
“Eu sou (um@) …” / “eu tenho (um@)…”
GÊNERO DISCURSIVO
Meme / Post do Facebook
174
UNIDADE DIDÁTICA:
“ESTE SOU EU”
Eu sou ____________________________________________________________________________.
ATIVIDADE 2 – Leitura
175
APRENDIZES SURDOS E ESCRITA EM L2:
REFLEXÕES TEÓRICAS E PRÁTICAS
Exemplo:
Eu sou simpático.
Eu sou alto.
Eu não sou chato.
Eu não sou careca.
__________________________________________________________________________________
__________________________________________________________________________________
__________________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________________.
Exemplo:
176
UNIDADE DIDÁTICA:
“ESTE SOU EU”
O verbo SER exprime características que fazem parte da natureza permanente de uma pessoa,
animal ou coisa. Por exemplo: o nome, a profissão, a nacionalidade, as características físicas e
psicológicas etc.
Exemplos:
a) Eu SOU a Alessandra.
b) Eu SOU professora.
c) Eu SOU brasileira.
d) Eu SOU negra e alta.
e) Eu SOU legal.
a) Eu TENHO um gato.
b) Eu TENHO uma casa bonita.
c) Eu TENHO olhos castanhos.
d) Eu TENHO vários amigos.
177
APRENDIZES SURDOS E ESCRITA EM L2:
REFLEXÕES TEÓRICAS E PRÁTICAS
Exemplos:
) Eu __SOU__
médico.
) Eu _TENHO_
um carro.
)( Eu ________
uma mochila.
Eu ______ um
astronauta.
( Eu _______
inteligente.
) Eu ________
um cachorro.
178
UNIDADE DIDÁTICA:
“ESTE SOU EU”
( Eu _______
uma filha.
) Eu ________
um mecânico.
Modelos:
Eu _TENHO_ um ursinho.
179
APRENDIZES SURDOS E ESCRITA EM L2:
REFLEXÕES TEÓRICAS E PRÁTICAS
Eu _______________ um hamster.
Eu _______________ um pintor.
Eu _______________ um pedreiro.
180
UNIDADE DIDÁTICA:
“ESTE SOU EU”
Eu _______________ bombeiro.
Eu _______________ cozinheiro.
Exemplos:
181
APRENDIZES SURDOS E ESCRITA EM L2:
REFLEXÕES TEÓRICAS E PRÁTICAS
Exemplo:
182
UNIDADE DIDÁTICA:
“ESTE SOU EU”
Exemplos:
B) Complete as frases com suas características (o que você é) e com coisas que você tem,
observando o comando dentro dos parênteses. Se necessário, utilize os complementos
(o, a, um, uma):
Exemplos:
183
APRENDIZES SURDOS E ESCRITA EM L2:
REFLEXÕES TEÓRICAS E PRÁTICAS
a) Eu / motorista / um / sou.
__________________________________________________________________________________
__________________________________________________________________________________
__________________________________________________________________________________
d) Eu / coragem / tenho.
__________________________________________________________________________________
__________________________________________________________________________________
__________________________________________________________________________________
__________________________________________________________________________________
184
UNIDADE DIDÁTICA:
“ESTE SOU EU”
Eu, _______ Fred e _______ Eduardo comemos _______ pizza. Depois, eu e meu amigo vamos
(o/a) (o/a) (um/uma)
andar de skate.
185
APRENDIZES SURDOS E ESCRITA EM L2:
REFLEXÕES TEÓRICAS E PRÁTICAS
A) Você vai receber uma carta com uma figura. Escreva uma apresentação como se fosse a
pessoa, o animal ou o objeto que aparece na carta. O texto precisa possuir as estruturas:
Exemplo:
Com base no seu texto, um colega terá que descobrir “quem é você”!
__________________________________________________________________________________
__________________________________________________________________________________
__________________________________________________________________________________
__________________________________________________________________________________
__________________________________________________________________________________
186
UNIDADE DIDÁTICA:
“ESTE SOU EU”
Você costuma postar muitas coisas? Que tipos de postagem você costuma fazer?
187
APRENDIZES SURDOS E ESCRITA EM L2:
REFLEXÕES TEÓRICAS E PRÁTICAS
Post
Social Post – ou apenas Post – é um termo em inglês que se refere às “chamadas de redes
sociais”. Pode ser construído por texto, imagem ou qualquer outro recurso visual e publicado numa
página na internet como Facebook, Instagram, blogs, etc.
Meme
Meme é qualquer tipo de informação, ideia ou conceito – podendo ser na forma de uma imagem,
vídeo, frase, expressão, parte de um texto etc., - que é copiada e compartilhada rapidamente através
da Internet, por muitas pessoas, geralmente com um teor satírico, humorístico ou para zoar uma
situação ou pessoa.
Isso é um meme a
Observe as imagens da atividade 7 e identifique quais podem ser classificadas de post e quais seriam
memes.
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UNIDADE DIDÁTICA:
“ESTE SOU EU”
Para finalizar, faça uma FICHA DE APRESENTAÇÃO sua, incluindo uma foto (ou um desenho!):
Eu sou ___________________________________________
_________________________________________________
_________________________________________________
[Cole aqui uma foto
ou um desenho seu]
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Eu tenho _________________________________________
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APRENDIZES SURDOS E ESCRITA EM L2:
REFLEXÕES TEÓRICAS E PRÁTICAS
https://www.youtube.com/watch?v=XF7t38iv00s
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SOBRE OS AUTORES
Graduado em Português/Inglês pela UFRJ com especialização em Língua Inglesa pela PUC-Rio e
Mestrado e Doutorado em Linguística pela UFRJ. Diretor Adjunto de Cultura e Extensão da FL/
UFRJ; Membro do Colegiado de Extensão da FL/UFRJ; Professor Adjunto de Estudos Linguísticos
do Departamento de Letras-Libras/UFRJ. Professor colaborador do Programa de Pós-Graduação
em Linguística da UFRJ e do Programa de Pós-Graduação em Letras e Linguística da UERJ/FPP.
Interessado em estudos sobre o PB sincrônico, a LIBRAS e o PBL2 de Surdos à luz da Gramática das
Construções Baseada no Uso (GCBU), com ênfase na discussão sobre aquisição de L2, interface estrutura
argumental/estrutura informacional e descrição linguística. Coordenador do Núcleo de Estudos Sobre
Interlíngua e Surdez (NEIS/UFRJ) e professor pesquisador do grupo Discurso & Gramática (D&G/
UFRJ).
Doutora em Letras (Língua Portuguesa) pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), Mestre
em Linguística e Graduada em Letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), onde
atualmente é Professora Adjunta do Setor de Estudos Linguísticos do Departamento de Letras-Libras e
vice coordenadora do Núcleo de Estudos sobre Interlíngua e Surdez (NEIS/UFRJ). Desenvolve pesquisa
sobre os seguintes temas: efeitos de processos cognitivos e metodológicos sobre nativos e não nativos
durante processos de aquisição/aprendizagem de línguas, descrição do português do Brasil como L2
para estrangeiros e surdos, leitura e produção de textos e avaliação de proficiência oral e escrita.
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SOBRE OS AUTORES
Possui graduação em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2000), graduação em Letras
pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2010), mestrado em Linguística pela Universidade Federal
do Rio de Janeiro (2012) e doutorado em Linguística pela Universidade Federal do Rio de Janeiro
(2017). Atualmente é Professor Adjunto de Linguística da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Tem
experiência na área de Linguística, com ênfase em Sociolinguística e Dialetologia, atuando principalmente
nos seguintes temas: variação linguística, mudança linguística, modelos baseados no uso.
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APRENDIZES SURDOS E ESCRITA EM L2:
REFLEXÕES TEÓRICAS E PRÁTICAS
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SOBRE OS AUTORES
Licenciado em Letras: Português-Inglês pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), tem
experiência nas áreas de Ensino de Língua Portuguesa, Sociolinguística Variacionista e Linguística
Funcional Norte-Americana. Atualmente, é aluno do Mestrado em Linguística pela UFRJ e investiga
a correlação entre fenômenos variáveis da Língua Portuguesa e a sua expressão em gêneros discursivos
digitais. Além disso, é professor de Língua Portuguesa do Centro Educacional Espaço Integrado
(CEI) e do Programa de Leitura, Interpretação e Produção Textual (Plipt) do Colégio Mopi, atuando
especialmente com projetos interdisciplinares. Ao longo de 2019, foi corretor de redações da Escola
Sesc de Ensino Médio (ESEM), com foco no modelo Enem. É autor de livros de ficção publicados pela
Editora Multifoco.
Mestrando em Educação Bilíngue pelo Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES); Pós-
graduando em Língua portuguesa: leitura e escrita no ensino de surdos também pelo INES; graduado
em Letras (Português e Literaturas de língua portuguesa) com láurea acadêmica pela Universidade
Federal Fluminense – UFF (2018); graduado em Ciências Econômicas pela Universidade do Estado do
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APRENDIZES SURDOS E ESCRITA EM L2:
REFLEXÕES TEÓRICAS E PRÁTICAS
Rio de Janeiro – UERJ (2002) e em Ciências Contábeis pelo Centro Universitário Celso Lisboa (2001).
Possui experiência na área de Letras, com ênfase em ensino de português para surdos e também como
facilitador de treinamentos em grandes empresas, atuando principalmente nos seguintes temas: EAD,
organização, técnicas de estudo e administração do tempo.
Especialista em Educação Especial e Gestão Educacional Integrada pela Faculdade de Vitória (2018) e em
Língua Portuguesa pela Universidade Simonsen (2010), graduada em Letras pela Universidade Estácio
de Sá (2007). Participou como colaboradora/avaliadora no Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) e
na Avaliação Nacional da Alfabetização (ANA). Participou do curso à distância, oferecido pelo Ministério
da Educação (MEC), do Pacto Nacional pelo Fortalecimento do Ensino Médio. Recentemente, compõe
a Equipe ProBNCC como redatora/formadora de Língua Portuguesa no Estado do Rio de Janeiro
(SEEDUC) e desempenha a função de professora docente I da Secretaria de Educação do Estado do
Rio de Janeiro e da Prefeitura Municipal de Nova Iguaçu. Possui experiência em docência na Educação
Básica (1º e 2º segmentos e Ensino Médio), bem como, em coordenação pedagógica e formação de
equipes educacionais presenciais e EaD.
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