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DO BARRACO À CASA

Tempo, espaço e valor(es) em uma favela consolidada*

Mariana Cavalcanti

Os homens não produzem habitação ou abrigo. Poduzem moradias


de tipos definidos, como a cabana de um camponês ou o castelo de
um nobre. Essa determinação de valores de uso, de uma casa
particular como uma moradia particular, representa um processo
contínuo da vida social, em que os homens reciprocamente definem
* Este artigo resume alguns pontos-chave de minha tese objetos em relação a si mesmos e a si mesmos com relação a objetos.
de doutorado (Cavalcanti, 2007), cuja pesquisa foi pos- SAHLINS (1976, p. 169)
sibilitada graças ao apoio da Fundação Capes, por meio
da concessão de bolsa de Doutorado Pleno no Exterior
(2001-2005), e da Foundation for Urban and Regional Introdução
Studies (FURS). Trabalho apresentado no 31º Encontro
da Anpocs, no GT 5 – Cidades: Perspectivas e Interlo- Maio de 2005. Cheguei à favela de Bela Vista1
cuções nas Ciências Sociais. Agradeço a todos os pre-
sentes no fórum, em particular aos coordenadores Laura
mais tarde do que o usual; eram cerca de duas ho-
Graziela Gomes e Heitor Frúgoli Jr. (também debate- ras da tarde. Após estacionar no pé do morro, con-
dor) pelos comentários, discussão e indicação de pu- templei a possibilidade de subir de Kombi. Mas,
blicação. O texto foi também discutido no Seminário
do Núcleo de Pesquisas em Cultura e Economia do
além de ter perdido a hora do rush das crianças
PPGAS/Museu Nacional, e esta versão incorpora mui- voltando do turno matutino da escola – o que impli-
tas das sugestões feitas pelos colegas, a quem também caria uma longa espera para a Kombi encher –
agradeço.
gostava mesmo de subir a pé. Tomei o caminho
Artigo recebido em outubro/2007 do principal beco de acesso à Bela Vista. Este con-
Aprovado em novembro/2008 duz o pedestre por um caminho tortuoso que

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desemboca na única rua da favela. Nessa junção, instalação de relógios de luz e de contas individuais
lancei (como sempre fazia) um olhar discreto para (que hoje cumprem o papel de comprovantes da
a “boca”. Como era de se esperar a essa hora do propriedade no mercado imobiliário de favelas)
dia, os seis ou sete enormes fuzis (além de algumas também constituiriam uma impossibilidade nesse
pistolas) ostensivamente à vista contrastavam com recuo imaginário a meados dos anos de 1970.
o semblante entediado dos jovens que os seguravam. O presente artigo visa a constituir uma genealo-
Aglomerados em torno de um banco de concreto gia histórica dessa cena, tendo como fio condutor a
à sombra de uma amendoeira, jogavam conversa produção social, os usos e as apropriações do espa-
fora; relaxados, fumavam um enorme baseado. ço construído das favelas cariocas. Seu objetivo prin-
Algo parecia fora do lugar, mas eu não identi- cipal é elaborar, a partir de uma perspectiva etno-
ficava de imediato a fonte do meu estranhamento. gráfica, um termo que, ao longo dos últimos dez
Um segundo olhar, agora menos discreto, revelou ou quinze anos vem ganhando espaço no léxico de
o que me inquietava: cerca de três metros dos jo- urbanistas, arquitetos, engenheiros e técnicos da ad-
vens com suas armas, havia uma caminhonete da ministração pública que trabalham com e nas fave-
Light – a empresa provedora de eletricidade do las cariocas: a “favela consolidada”.
Rio de Janeiro. Pouco acima da “boca”, um técnico Termo de uso corrente na literatura especializada
da empresa, amarrado ao poste, distraidamente (tanto técnica como acadêmica), a “favela consoli-
consertava os estragos do tiroteio da noite anterior. dada” é raramente definida. A própria naturaliza-
Ele parecia tão indiferente aos jovens armados quan- ção do termo (que parece duplicar a indiferença
to estes à sua presença. recíproca entre o técnico da Light e os jovens arma-
A cena é, sem dúvida, banal. E é esta banalidade dos na “boca”) aponta para o fato de que, em seu
que a torna um bom ponto de partida para pensar uso corrente, não chega a constituir conceito, mas
sua novidade histórica: a imagem torna visível uma deve-se à necessidade prática de distinguir, do pon-
série de transformações ocorridas no mundo social, to de vista do planejamento e da governança urba-
que abrem a possibilidade de reconstituirmos suas nos, favelas já estabelecidas e bem equipadas em
trajetórias históricas, de esboçar uma genealogia do termos de infra-estrutura de favelas mais recentes e
presente. Há apenas trinta anos, a cena seria uma im- outros modos de produção de moradia de baixa
possibilidade: talvez houvesse “bandidos”2 na “boca”, renda.3 Afinal, como diversos estudos vêm demons-
mas suas armas seriam menores e certamente não trando, as características que tradicionalmente defini-
usadas de modo ostensivo. A “boca” não exigiria ram as favelas cariocas – ilegalidade do solo, preca-
tanta vigilância, pois a maconha, que seria então sua riedade de infra-estrutura, concentração da pobreza
principal mercadoria, não mobilizava tantos recur- extrema da cidade – já não dão conta seja da diver-
sos ou lucros. De todo modo, a “boca” estaria em sidade de realidades que o termo favela nomeia (do
outro lugar, pois o platô de concreto onde se encon- ponto de vista legal ou urbanístico), seja do tipo
tra, assim como o banco em torno do qual os jovens ideal cristalizado no imaginário social da cidade que
se sentam, foi erguido como parte do programa ele evoca, a saber, a favela dos grandes contrastes
“Favela-Bairro”, projeto de urbanização de favelas socioespaciais, tipicamente localizada em encostas
iniciado na segunda metade dos anos de 1990, orça- de morros (Valladares, 2005). A comparação entre
do em cerca de 600 milhões de reais, parcialmente os indicadores sociais e econômicos referentes a
financiados pelo Banco Mundial. Aliás, há trinta anos áreas de favelas e outras regiões habitadas por po-
o concreto seria escasso por toda a favela; no lugar pulações de baixa renda revela que já não é mais
das casas de alvenaria de vários andares, barracos possível afirmar que os níveis mais extremos de
de estuque e madeira constituiriam a forma cons- pobreza, de precariedade na infra-estrutura urbana,
truída dominante. A presença do técnico da Light ou no acesso a serviços públicos se concentrem nas
constitui outra novidade. Ainda que redes de eletri- favelas cariocas (Preterceille e Valladares, 2000). Isto
cidade – clandestinas ou “de cabine” – já existam não significa que não há pobreza extrema nas fave-
há algumas décadas em muitas favelas cariocas, a las, mas que a segregação socioespacial na cidade

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vem se complexificando ao longo das últimas dé- em estruturas que conectam a favela – agora como
cadas (Lago, 2000). território do tráfico – a uma economia política no
A perspectiva ampla que embasa tais trabalhos bojo do que se convém chamar de “criminalidade
é a consolidação de favelas como um fato social violenta” (cf. Machado da Silva, 2004).
consumado e bem documentado.4 Como já dizia Da perspectiva das práticas, dos usos e das
Michel de Certeau, a perspectiva “do alto” dos urba- apropriações que produzem o espaço da favela,
nistas (ou da sociologia quantitativa) “transforma o portanto, sua apropriação pelo tráfico impõe-se
mundo enfeitiçante pelo qual foi outrora ‘possuído’ como uma entre várias espacialidades que consti-
em um texto que repousa diante dos olhos, oferecen- tuem a favela, atuando inclusive como elemento po-
do-se à leitura, permitindo ao leitor tornar-se um tencializador de novas intervenções urbanísticas,
Olho Solar, olhando para baixo como um Deus” dada a centralidade da questão da segurança públi-
(1984, p. 92). No entanto, essa mesma perspectiva ca na política – não só carioca, mas nas grandes
também silencia os efeitos das estruturas territoriais cidades em geral, no Brasil e no mundo. Aqui, pro-
do tráfico sobre a experiência fenomenológica, coti- jetos de urbanização e programas sociais figuram
diana e discursiva do espaço da favela. Em suma, a como estratégias de contenção do “risco social”
visão “do alto” produz suas próprias categorias representado pelas desigualdades que constituem o
analíticas e descritivas – tais como a noção de favela espaço urbano. Tal paradigma é surpreendentemente
consolidada – que impõem indagações sociológicas consensual: de políticos mais conservadores a mo-
acerca de transformações recentes que só podem vimentos sociais endógenos, as três esferas do go-
ser exauridas se complementadas pela perspectiva verno, bem como no discurso do urbanismo e do
míope, “do chão” à qual tem acesso no campo. social, um consenso emerge de que é por intermé-
Assim, de um ponto de vista antropológico ou, dio de mais investimentos que será possível conter
mais precisamente, etnográfico, pensar a favela con- a “violência urbana”. ONGs, ativistas e moradores
solidada implica levar em consideração a historici- encampam esses mesmos discursos na disputa por
dade da favela como forma social e espacial, ou investimentos (Pandolfi e Grynszpan, 2003).
melhor, pensar a consolidação de favelas como pro- Assim, o que parece à primeira vista uma con-
cesso espaço-temporal, atravessado por relações de tradição transmuta-se em uma interconexão: do
poder que se (re)produzem em diversas escalas. ponto de vista da consolidação de favelas, a territo-
A hipótese aqui desenvolvida é a de que essa rialização do tráfico figura como elemento poten-
conjuntura é marcada pelos efeitos sociais de dois cializador de novas melhorias urbanísticas, repro-
processos sócio-históricos, que vêm paulatinamente duzindo também a crescente desigualdade entre os
se interconectando. De um lado, a substituição de pobres (Preterceille e Valladares, 2000). Reconfigu-
programas de remoção por projetos e programas ram-se, assim, as relações historicamente constituí-
de urbanização, o que possibilitou um boom de cons- das entre pobreza, (i)legalidade e espaço urbano no
trução civil nas favelas ao longo das últimas décadas Rio de Janeiro contemporâneo. Enquanto vigora-
e no incremento do mercado imobiliário das mes- vam as políticas de remoção, era a (i)legalidade ur-
mas, e a conseqüente mercantilização de seus espaços. banística que possibilitava o desenvolvimento de
De outro lado, a apropriação do espaço da favela outras ilegalidades, tais como as redes de contra-
pelo tráfico de drogas, por meio da imposição de venção sobre as quais a territorialização do tráfico
novos usos e rotinas sociais que produzem e refor- iria reestruturar (Misse, 2006). Hoje, as condições
çam as fronteiras sociais e simbólicas entre a favela para a visibilidade e relevância política inéditas da
e o dito “asfalto”. Em suma, pensar a consolidação favela residem em sua constituição, no nível dos
de favelas traz à tona a questão de como as espaciali- discursos e das práticas, como uma ameaça à cida-
dades da consolidação urbanística e da “melhoria” – de. Essa imagem, paradoxalmente, traduz-se em
para usar uma expressão cara aos agentes nela envol- melhorias e investimentos no espaço físico da fave-
vidos – se choca, intersecta ou justapõe ao que é la que, por sua vez, se revestem de sentidos e valo-
sabido ser o aspecto mais crucial da vida cotidiana res particulares para os atores assim beneficiados.

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É a partir desse campo problemático que o mente como pertencente à família de Benedito na
presente artigo pretende explorar o fenômeno his- ocasião do programa pioneiro de regularização fun-
tórico da consolidação de favelas no Rio de Janeiro diária “Cada Família, um Lote”, ele me convidou
contemporâneo. Desde esta perspectiva, a história para tomar um suco na sala de estar. Sinceramente
da mudança de paradigma das políticas governa- impressionada com as dimensões e o acabamento
mentais calcadas na remoção para programas que da construção, perguntei quando a casa havia sido
visam à “integração” da favela à cidade dita “for- concluída. Ele sorriu, um tanto condescendente, e
mal” pode ser lida como a história da passagem do disse: “casa na favela nunca fica pronta, minha filha”.
“barraco” de estuque para a “casa” de alvenaria. De fato, uma das coisas que mais chama aten-
ção em Bela Vista – ou em parte considerável das
cerca de setecentas favelas cariocas – são as visões e
Do barraco à casa os sons de trabalho de construção civil em anda-
mento. Diversas fotografias que tirei ao longo do
Benedito mora em uma casa de três andares na trabalho de campo apresentavam múltiplas obras
favela de Bela Vista. Ou melhor, em um dos três em andamento, sem que fosse minha intenção retra-
andares de uma casa que é uma espécie de condo- tá-las.5 No entanto, o interesse acadêmico pelo tema
mínio familiar, pois abriga o que são, na realidade, parece ter se dissipado nas últimas décadas, depois
quatro residências distintas que dividem uma área de alguns trabalhos seminais que exploraram a auto-
interna. A fachada que dá para a rua é revestida de construção como modo privilegiado de produção
azulejos em tons de azul, que combinam com as de moradia em comunidades de baixa renda (Valla-
grades das duas janelas que dão para a rua, bem dares, 1983; Maricato, 1979; Durham, 1973). O hiato
como uma terceira, que protege a porta de vidro. em estudos sobre o tema corresponde, justamente,
Esta última, através de uma escada um tanto íngre- ao período em que a consolidação das favelas deu-
me, dá acesso a três residências: a de Benedito, ma- se de fato. Assim, faz-se necessário um breve recuo
triz original do edifício, localizada no primeiro andar histórico para reconstruir os sentidos sociais e valo-
onde ele viveu durante mais de meio século com res atribuídos à prática da autoconstrução.
sua esposa que faleceu já há alguns anos; a de sua A história dos grandes projetos, planos e inter-
filha, casada e mãe de uma filha, e a de seu filho, venções governamentais nas favelas cariocas é bas-
que permanece solteiro. Essas duas casas possuem, tante conhecida. Faço, portanto, apenas um histórico
ainda, entradas separadas, acessíveis por um beco. impressionista, de modo a contextualizar a etnogra-
Vistas dessa perspectiva não parecem sequer parte fia que segue. Ainda que haja indícios de construções
da mesma construção, pois possuem fachadas in- nas encostas de morros do centro da cidade desde
teiramente distintas: a do filho é pintada em um os anos de 1870, foi apenas no Estado Novo que as
tom róseo, com janelas e uma porta de madeira, favelas foram, pela primeira vez, objeto de legislação:
pintadas em azul; a da filha é revestida de tijolinhos categorizadas como uma “aberração”, foram proi-
rústicos, e conta com uma grande varanda repleta bidas pelo código de obras de 1937 (Burgos, 1998).
de plantas, no segundo andar da construção. Na Quatro anos depois, Vargas lança o projeto dos “Par-
ocasião de minha visita, Benedito concluía a última ques Proletários Temporários”,6 primeiro programa
residência, que ocupa o espaço térreo voltado para de remoção pelo Estado, cuja importância reside não
a rua principal de Bela Vista. Sua intenção era alugar tanto em sua escala ou efeitos concretos, mas no
o quarto e sala (com cozinha e banheiros próprios) fato de ter estabelecido dois precedentes: o da re-
de modo a complementar sua aposentadoria. O moção e, diante da proibição, o de possíveis incur-
valor do aluguel seria de R$250, segundo Benedito sões policiais (Burgos, 1998; Lima, 1989; Valla, 1992;
me disse ao indicar a obra quase pronta. Zaluar e Alvito, 2008). Desde então, o espectro da
Depois de me mostrar as casas separadas, e de remoção passou a constituir o cotidiano das favelas,
contar um pouco da história da construção – que coexistindo com pequenas obras de melhoria, como
ocupa cada centímetro do espaço marcado oficial- parte de um esforço mais amplo de moralização dos

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pobres, processo em que a Igreja Católica foi a gran- bou com o espectro da remoção ao trazer a regu-
de protagonista, por intermédio da Fundação Leão larização fundiária para o horizonte normativo de
XIII, criada em 1947, e da Cruzada São Sebastião, intervenções urbanísticas em favelas (cf. Burgos,
fundada em 1955 por Dom Hélder Câmara. 1998; Fiori, Riley e Ramirez, 2000). Assim, a im-
Como vários autores já assinalaram, ambas as plantação do programa “Favela-Bairro”, a partir
instituições objetivavam desconectar as demandas de meados dos anos de 1990, constituiu menos uma
dos moradores de questões políticas mais amplas, ruptura do que uma consolidação e ampliação da
de modo a diluir os possíveis efeitos da mobilização escala – tanto das obras como do financiamento –
política esboçada como resistência a ameaças de re- das políticas iniciadas no primeiro governo Brizola.
moção (Rios, 1992, p. 47; Burgos, 1998, p. 30; Lima, Mas se essa história é pensada como narrativa
1989, p. 100). Em 1954 é fundada a Fafeg, associação das condições de possibilidade da produção de
de nível estadual, reunindo as associações de mora- moradia nas favelas cariocas – isto é, da produção
dores e lideranças dos movimentos contra a remo- social do espaço da favela desde a perspectiva de
ção. O período de mobilização política, no entanto, seus moradores – e como fio condutor para uma
esbarrou em uma conjuntura que justapôs os primei- possível análise do espaço como construção social,
ros programas de remoção ao regime militar. Não deparamo-nos com outros sentidos atribuídos aos
cabe, aqui, uma análise mais detalhada dos programas mesmos fatos e dinâmicas sociais. A história da
de remoção, que já constituíram objeto de estudos mudança de paradigma das políticas governamen-
já clássicos (Lima, 1989; Valladares, 1978; Zaluar, tais calcadas na remoção para programas que vi-
1985; Burgos, 1998). O fato é que em meados dos sam à “integração” da favela à cidade dita “for-
anos de 1970, quase 140 mil moradores já haviam mal” torna-se a história da passagem do “barraco”
sido removidos de cerca de noventa favelas, sendo de estuque para a “casa” de alvenaria.
realocados para áreas distantes das favelas de origem.7 Nessa narrativa, no lugar do relativo “vazio”
De um modo geral, portanto, ao longo do sécu- narrativo que precede os anos de 1930, proliferam-
lo XX esboçou-se um padrão nas políticas públicas se relatos da chegada ao Rio de Janeiro de famílias
direcionadas às favelas: durante períodos de gover- de migrantes que, quase sem exceção, se espantam
no autoritário, iniciativas de remoção ganhavam for- com o “mato”, a “selva”, o “ermo” nas cercanias
ça e eram efetivamente implementadas. Em perío- de seus barracos. Ainda que os primeiros relatos de
dos de democracia, a urbanização – parcial, no mais jornalistas10 das favelas da zona central do Rio de
das vezes – caminhava a passos lentos por meio de Janeiro dessem a entender que elas “brotassem”
arranjos clientelistas, a dita “política da bica d’água”, quase que espontaneamente, como se os migrantes
que garantia certa tolerância em relação às favelas, construíssem barracos de modo aleatório em qual-
traduzindo-se em melhorias de infra-estrutura, sem, quer encosta de morro disponível, as narrativas de
no entanto, constituir uma política sistemática. moradores concatenam uma outra história: a maio-
É esse panorama que se transforma nos anos ria relata ter alugado seu primeiro barraco de grilei-
de 1980, especificamente no primeiro governo Bri- ros – sobretudo no caso de moradores mais anti-
zola (1983-1986).8 No período, mais de 245 mil gos.11 Com a relativa estabilização dos núcleos das
moradores de favelas passaram a ter acesso a inédi- comunidades, a partir dos anos de 1950, tais relatos
tas redes de esgoto, cerca de cem comunidades re- passam a privilegiar a figura do presidente da As-
ceberam eletrificação pública, por intermédio do sociação de Moradores, que “marcava” lotes e au-
programa de “Eletrificação de Favelas” da Light, a xiliava na organização de mutirões para a constru-
coleta de lixo passou a ser organizada, no âmbito ção do barraco de estuque – mediante inscrição dos
do programa “Gari Comunitário”, por uma série interessados em construir seus barracos na Associa-
de iniciativas que articularam diversas secretarias de ção. No mais das vezes, a construção dos barracos
governo em níveis estadual e municipal. Apesar do era realizada à noite, de forma clandestina, como
fracasso do ponto de vista institucional, o progra- modo de evitar a vigilância seja da polícia, seja dos
ma “Cada Família, um Lote”9 efetivamente aca- capangas dos grileiros.

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A superação de tantas dificuldades tende a ser como elemento central da vida cotidiana – não só
expressa em função da “luta” – individual e coleti- em casa, na favela, onde “o tráfico está na porta”,
va – dos moradores. A expressão “as lutas” no- mas também na “rua”, pois o medo ligado à pos-
meia tanto um período específico na memória co- sibilidade de vitimização pela “violência” aleatória,
letiva de Bela Vista (isto é, as “lutas contra a constitutivo da experiência do espaço da cidade é
remoção”) que constitui “a comunidade” como um fenômeno agravado pelas próprias temporali-
sujeito da “luta”, quanto um recurso narrativo para dades engendradas pela territorialização da favela,
expressar uma atitude diante do mundo, marcada sobretudo em momentos de escalada de conflitos.
pela resiliência diante de dificuldades cotidianas que Todo esse contexto engendra narrativas de de-
marcam a trajetória individual de cada morador. clínio social ou moral, e de um futuro pior do que
Nesse último caso, encontra correlatos nos termos o presente. A narrativa de progresso oferece um
“ralar” ou “batalhar”. Alba Zaluar já discutiu como contraponto à criminalidade violenta, que produz
esses termos também expressam uma distância e suas próprias temporalidades, entre as quais, de
diferenciação deliberada com relação ao modo de modo geral, a mais corrente e constitutiva do ritmo
vida dos “bandidos”, cuja vida é fácil, pois “não cotidiano é aquela instaurada pela onipresente pos-
trabalham” (Zaluar, 1985, pp. 132-172). Meu objeti- sibilidade de eclosão de um tiroteio (cf. Cavalcanti,
vo, aqui, é ampliar essa teorização de modo a levar 2008). Não resta dúvida de que a territorialização da
em conta o modo como a idéia de “luta” é produti- favela pelo tráfico também produz narrativas de declí-
va de noções de valor atreladas ao espaço da favela. nio social, de esgarçamento das relações comunitá-
A frase tem efeito teleológico, que produz os rias, da decadência e da falta de respeito.
moradores como sujeitos de sua própria história, e é Nesse contexto, a imaginação da melhoria gra-
constitutiva de uma ética que valoriza o trabalho duro dativa é necessariamente reflexiva. Ela requer uma
e a perseverança: nada vem facilmente. Mas apesar abstração das vicissitudes e das “lutas” da vida coti-
das lutas cotidianas, pequenas vitórias sucedem-se, diana (ontem e hoje) para que os processos de longo
melhorias são implementadas e o futuro será melhor prazo – todos esses componentes da “melhoria” (ou-
do que o passado. A glorificação (muitas vezes nos- tro termo nativo) – concatenem uma narrativa mais
tálgica) dos sujeitos da “luta”, da “luta” em si e das coesa de progresso, cujas evidências são visíveis, ir-
relações sociais e comunitárias por estas engendra- refutáveis e expressas justamente nessa passagem do
das convertem-se em evidência de força moral em “barraco” à “casa”. O fato é que o impacto do pri-
diálogos intergeracionais. Perdi a conta de quantas meiro governo Brizola em muito excedeu as inter-
vezes testemunhei situações em que pais repreendiam venções e as obras em si. Uma vez sepultado o es-
seus filhos por ter a vida “fácil”. Como disse uma pectro da remoção, transforma-se a própria relação
de minhas informantes sobre seus filhos de oito e dos moradores com o espaço da favela; a promes-
dez anos: “Não dão valor a nada! Abrem a torneira sa da permanência permitiu-lhes investir em suas
e sai água! Destrocei minhas costas carregando lata casas. O barraco de estuque sem valor de mercado
d’água! Água em casa e eles ainda reclamam!”. foi substituído por casas de alvenaria que podem
Nesses testemunhos podemos discernir uma chegar a valer o equivalente a um apartamento pró-
narrativa subjacente que, na maioria das vezes, elabo- ximo da favela, em alguns casos extremos, produ-
ra a percepção de – progressivas, porém inegáveis – zindo, assim, casos (mais emblemáticos do que
melhorias materiais do lugar. É certo que essa ima- exemplares) de ascensão social. A construção da casa
ginação de um progresso ao longo do tempo coe- e as melhorias coletivas dos espaços comunitários
xiste com expressões de desespero e desalento no emergem, então, como atividades que constroem
que concerne ao futuro imediato, marcado por um futuro e constituem os moradores como sujeitos
contexto de grande desemprego e subemprego, de de sua própria história, de sua própria melhoria.
poucas perspectivas e de um acesso precário à edu- Assim, essas múltiplas temporalidades – da
cação, à saúde etc. Como os moradores do “asfal- memória, mas também da imaginação do futuro –
to”, a preocupação com a segurança dos filhos figura produzem uma tensão que é constitutiva do pro-

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cesso de consolidação de favelas. A “favela”, nas Helena continuaram juntando dinheiro e, na oca-
narrativas dos moradores, oscila entre uma realiza- sião do nascimento de sua primeira filha, em 1986,
ção – como evidenciam as melhorias efetuadas pelo já haviam anexado um segundo quarto à estrutura
próprio trabalho – e um estigma, a forma de cate- inicial. Os anos seguintes foram de muita economia
gorização externa e a priori de seus moradores que e dificuldades financeiras. Helena voltou à escola,
tem efeitos concretos sobre suas vidas. A própria concluiu o segundo grau, inscreveu-se em um cur-
consolidação das favelas reforça essa tensão ao re- so de enfermagem. Ficou grávida. Os nove meses
produzir, no nível dos discursos e de práticas das de gravidez foram marcados por uma obra de vul-
políticas públicas e sociais, a dicotomia favela-asfalto: to, em 1993, possibilitada pela indenização que Pe-
o que legitima muitas das iniciativas sociais e urba- dro recebera ao perder o emprego e à sorte de ter
nísticas recentes é o consenso de que são concebidos arrumado trabalho logo em seguida, agora como
como medidas de inclusão social justificadas pelo corretor de seguros. A obra foi além da expansão
discurso da segurança pública – que também afeta usual. Os tiroteios constantes com a favela vizinha
diretamente a própria construção da casa na favela. deixavam marcas em uma das paredes da casa –
justo o lado da construção onde estavam localiza-
dos os quartos. A nova obra visava a ampliar a se-
A fortaleza de Helena gurança interna da casa: a janela do que havia sido,
desde sempre, o quarto do casal foi fechada, e o
Helena e Pedro se conheceram em 1981 em cômodo convertido em cozinha. Pedro e Helena
Bela Vista, onde ambos haviam sido criados (Hele- ficaram com o segundo quarto, ainda na linha de
na viera do Espírito Santo com apenas 1 ano, mas tiro, mas um pouco mais protegido. Os quartos das
se considera nativa de Bela Vista). Pedro vivia em crianças foram construídos com as janelas voltadas
um barraco de estuque, com sua mãe, duas irmãs, para o pátio interno da vila.
um cunhado, e os três filhos de sua irmã mais velha. A segunda etapa da obra – concluída na mes-
Havia acabado de conseguir um emprego no (hoje ma época do nascimento do segundo filho do ca-
extinto) Banco Econômico e guardava dinheiro todo sal – constituiu na construção de uma varanda, onde
mês para realizar melhorias na casa de sua família. foi colocada a máquina de lavar, e de uma escada
As obras começaram em 1984, com a demolição que dava para a laje, onde as roupas eram pendura-
de parte do barraco de estuque e sua substituição das para secar. A família prosperava. Helena pas-
por um quarto de alvenaria. Foi mais ou menos sou em concurso público. Após uma breve crise
nessa época que técnicos do governo visitaram a conjugal, o casal se reconciliou, e logo depois se
vila e demarcaram seis lotes, um dos quais foi regis- converteu a uma Igreja neo-pentecostal, pouco an-
trado no nome de Pedro, por ser o “chefe” da fa- tes do nascimento da caçula, em 1996.
mília, uma vez que seu cunhado havia abandonado Enquanto ela ainda mamava, realizaram nova
a irmã mais velha. Aproveitando o espaço demar- obra: fecharam por completo a varanda, instalan-
cado, deu-se início a transformação completa do do um segundo portão, que permanecia trancado,
barraco de estuque em casa de alvenaria: Pedro uti- e também gradearam a janela da sala, para dificul-
lizou todo o espaço disponível, a casa ganhou uma tar o acesso da casa do vizinho (que também havia
sala de estar, além de dois quartos. Mas a maior expandido consideravelmente no período, como as
realização, para Pedro, foi a execução de uma laje, de tantos outros moradores da favela).
sobre a qual já planejava construir sua própria casa Toda essa trajetória me foi relatada por Hele-
onde iria morar com Helena. na, em meados de 2004, enquanto me mostrava
Em 1985 os recém-casados Pedro e Helena fotos de família. As melhorias da casa encontra-
foram morar em uma casa – que na verdade não vam-se amplamente documentadas, junto com ima-
passava de um quarto que fazia as vezes de sala, gens de aniversários, festas familiares e outras datas
cozinha, sala de estar e quarto de dormir. Era o que memoráveis. Helena demonstrava um enorme or-
foi possível realizar naquele momento. Pedro e gulho de suas realizações, de suas “lutas”. Ela se

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tornou uma das maiores entusiastas de meu proje- rou, resignada: “enquanto eu não posso me mudar,
to, apresentando-me a novos informantes, e ela vou construir a minha fortaleza aqui mesmo”.
própria refletindo sobre as transformações do es- Em menos de três semanas estava concluída a
paço da favela ao longo dos anos, reflexões essas fortaleza: um enorme muro cercou a laje, dificul-
que dividia sempre comigo. Ela falava que planeja- tando a passagem para a casa do jovem “bandi-
va, ainda, cobrir parcialmente a laje, para ter um do”. Qualquer observador externo pensaria que a
espaço de lazer, onde poderia colocar a churras- obra de emergência era apenas mais uma “melho-
queira (que ficava na varanda) e, no verão, uma pis- ria”. Mas, na realidade, a fortaleza de Helena já es-
cina de plástico para as crianças se divertirem. tava sendo paulatinamente erguida desde o início
Em fevereiro de 2005, uma pilha de tijolos da década de 1990. De melhoria em melhoria, He-
apareceu no centro da vila. Dois dias depois, sacos lena viu-se presa em sua prosperidade relativa.
de concreto apareceram na laje da casa de Pedro e O fato é que as obras de melhoria cada vez
Helena. Helena nada me contou. Achei estranho, mais levam em consideração os efeitos da territoria-
pois assim que eu havia começado o trabalho de lização da favela pelo tráfico. O que parece à pri-
campo, a irmã mais nova de Pedro estava concluindo meira vista como uma expansão, como a constru-
a construção de sua casa, aproveitando a laje ex- ção de uma cobertura ou área de lazer revela-se
pandida da casa de Pedro e Helena como teto para uma questão de segurança. A fortificação, lá, como
o seu pequeno quarto-e-sala. Naquela época, não aqui no dito asfalto, passa a constituir o imaginário
se falava em outra coisa na vila, tamanha a em- da construção de moradias. A adição de muros, bar-
polgação com a expansão. Dessa vez, as pilhas de ras em janelas (para manter as crianças dentro e a
materiais de construção não despertavam nada além polícia fora), tem sua contrapartida em investimen-
de silêncio. to em televisões, DVDs, computadores e videoga-
Como Helena não estava em casa, perguntei à mes, como modo de manter as crianças em casa,
sua cunhada sobre os planos do material. Seus olhos em um ambiente seguro. O medo é assim incorpo-
encheram-se de lágrimas: um jovem que havia pra- rado à atividade de construção (e ao imaginário de
ticamente crescido na vila, por morar em uma casa melhorias que a constitui), gerando novas formas
logo abaixo, cujo acesso principal era precisamente sociais e novos espaços construídos.
através de uma porta da vila, havia entrado para o
tráfico. Sua avó – que havia encontrado uma pis-
tola e munição escondidas em seu jardim – dera a Conclusão: um fato social total
notícia para os moradores da vila na semana anterior.
Em outras palavras, a vila tornara-se, potencialmente, Em meu estudo de caso, a casa, constituída como
um atalho que a polícia poderia vir a usar caso ten- processo que envolve investimentos cotidianos e de
tasse prender (ou matar, pegar, que eram as expres- longo prazo, subjetivos e econômicos, fornece uma
sões utilizadas) o jovem. O atalho passava pela laje perspectiva privilegiada para o estudo da experiência
de Helena, fato que todos conhecíamos por ser o fenomenológica da favela – e de sua consolidação –
caminho que crianças faziam para pegar pipas caídas. desde a perspectiva de seu entrelaçamento na traje-
No dia seguinte, encontrei uma Helena desola- tória de sujeitos sociais: barracos, casas e fortalezas
da. Ela, que era das poucas informantes que jamais correspondem a modos distintos de se estar no
havia mencionado a possibilidade de sair da favela, mundo – e de se habitar uma favela. Para a antropó-
dizia que dali para frente todas as suas economias loga, ofecerem uma janela através da qual é possível
seriam investidas em uma caderneta de poupança vislumbrar e construir a consolidação de favelas como
para que um dia pudessem dar entrada em um apar- um processo histórico, como história do presente.
tamento “na rua”. “Mas”, dizia, “para onde eu vou, A fortaleza de Helena oferece uma perspectiva
Mariana? Onde eu vou achar um lugar que não te- por meio da qual podemos vislumbrar a – por ve-
nha esse problema? Quem vai comprar minha casa? zes paradoxal, por vezes perversa – simbiose de
Investi tudo que eu tinha nessa casa!” Helena suspi- mercantilização e territorialização do tráfico que

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DO BARRACO À CASA 77

constitui essa (nova) forma urbana e social, a favela no noroeste da Tailândia, Tambiah (1969) vislum-
consolidada. Na cena com a qual abri o artigo, a brou a configuração espacial das moradias como
justaposição da provisão de um serviço urbano homóloga a classificações relativas a regras de casa-
básico com os armamentos ilegais da “boca” mos- mento e a classificações de diferentes tipos de ani-
tra como diferentes espacialidades podem habitar mais. Já Lévi-Strauss (1982, 1987) abstraiu a materia-
um mesmo espaço. O relato da fortaleza de Helena lidade da casa para desenvolver o conceito da casa
aborda as mesmas dinâmicas da perspectiva do es- como uma “pessoa moral”, isto é, uma instituição
paço privado, a casa, levando-nos a constatar como resultante de agrupamentos de pessoas reunidas por
Helena se encontra presa em sua própria prosperi- “princípios antagonísticos” – aliança, descendência,
dade relativa e nos investimentos materiais e subje- endogamia, exogamia – em sociedades em que se
tivos que fez em sua casa ao longo dos anos. operava a transição de uma ordem social baseada
Em suma, a fortaleza de Helena fornece uma em regras de parentesco para uma em que interes-
daquelas raras oportunidades interpretativas, onde ses econômicos e políticos começavam a estruturar
“tudo se mistura”, um fato social total, tal como o mundo social. Bourdieu (1979) responde com
concebido pelo texto clássico de Marcel Mauss: uma leitura estruturalista da casa Berber, teorizada
como o meio privilegiado para a incorporação das
Exprimem-se, de uma só vez, as mais diversas institui- disposições sociais que produzem e são produzi-
ções: religiosas, jurídicas e morais – sendo estas políticas das pelo habitus. Mais tarde, elaborou o próprio
e familiares ao mesmo tempo – ; econômicas – estas mercado imobiliário como lugar para se pensar a
supondo formas particulares da produção e do consumo,
ou melhor, do fornecimento e da distribuição – ; sem construção social do valor (Bourdieu, 2001). E es-
contar os fenômenos estéticos em que resultam esses ses são apenas alguns exemplos clássicos de como
fatos e os fenômenos morfológicos que essas instituições a antropologia já buscou na casa uma chave de in-
manifestam (Mauss, 2003, p. 187). terpretação e apreensão das regras e dos valores
sociais de diversas sociedades.
Assim o é com a fortaleza de Helena – para No entanto, essas abordagens tendem a se apli-
compreender os sentidos de um mero muro cons- car a sociedades ditas primitivas – ou então distantes
truído em uma de quase setecentas favelas na cida- no tempo, como a literatura sobre as cidades medie-
de do Rio de Janeiro é necessário reconstruir todo vais. Será que a moradia perde seu potencial inter-
um trajeto de transformações sociais e históricas pretativo em sociedades complexas, capitalistas?
que transcendem a favela em si; é preciso atentar Certamente não; as condições habitacionais cons-
para um contexto social, histórico e econômico tituem uma importante fonte de conhecimento so-
muito mais amplo, de um lado, bem como para as bre a sociedade, sobretudo conhecimento estatístico,
narrativas e memórias locais de outro. na forma de estatísticas. Mercados imobiliários e
Conceber a casa como um fato social total não condições habitacionais fornecem mapas concretos
é, nem de longe, um movimento original. A mora- da desigualdade e da segregação nas grandes cidades.
dia há muito vem capturando a atenção de antro- A gentrificação e a suburbanização constituem cam-
pólogos por seu potencial hermenêutico. Estamos pos estabelecidos de pesquisa acadêmica, sobretudo
de fato diante de um objeto clássico da antropolo- no campo da sociologia (particularmente na vertente
gia. Lewis H. Morgan (1965) realizou uma compi- norte-americana). Como a própria produção
lação detalhada de diferentes tipos de moradia para acadêmica sobre a autoconstrução no Brasil urbano
fins comparativos; Griaule e Diertelen (1965) deci- demonstrou nos anos de 1960 e 1970, a moradia
fraram a planta da casa dos Dogon como “o mun- oferece um rico ponto de partida para análises das
do em miniatura” por sua representação do Deus mais diversas facetas da vida social. De fato, a pró-
Nommo deitado de lado e procriando-se; Turner pria centralidade da casa própria em sociedades capi-
(1955) encontrou na distribuição espacial de mora- talistas permite uma teorização da casa ou da mo-
dias através de princípios de geração a chave para a radia, bem como sua produção e experiência vivida
compreensão de relações de parentesco e afinidade; como um processo, como um fato social total.

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Assim, minha análise etnográfica da consolida- 5 O tema vem, inclusive, sendo abordado com bastan-
ção de favelas mostra que a metamorfose de um te freqüência pela mídia carioca, em particular o jornal
barraco de estuque em uma casa de alvenaria ao longo O Globo, por exemplo na campanha “Ilegal, e daí?”,
dos anos – quiçá décadas – não apenas transforma iniciada em outubro de 2006 e esporadicamente reedi-
tada, e da série premiada de reportagens “Favela S/
a forma e a qualidade da moradia. A transformação
A”, publicada em agosto de 2008.
produz uma temporalidade particular – uma que
abre a promessa de um futuro melhor – em parte 6 Foram removidos cerca de oito mil moradores para
os Parques Proletários, de três favelas, duas das quais
devido à própria experiência de acúmulo de capital
localizadas em valiosos terrenos de uma zona sul que
na forma de uma casa que participa de um mercado já constituía objeto de políticas urbanísticas mais ri-
imobiliário dinâmico e cuja tendência é a valoriza- gorosas, por seu potencial para a moradia das classes
ção, ainda que com os limites impostos pelas estrutu- mais abastadas.
ras territoriais do tráfico. Essas estruturas, por sua 7 Como Valladares (1978) demonstrou, o pagamento
vez, não podem ser reduzidas à mera obediência de das prestações, o aumento nos custos de transporte, a
leis não escritas, mas amplamente compartilhadas; elas distância de oferta de emprego e o esgarçamento das
são incorporadas à vida dos moradores, na forma redes sociais que facilitavam a vida na favela fizeram
de rotinas que visam a diminuir os riscos cotidianos com que muitos “passassem” suas casas e retornas-
e produzem uma sensação de alerta constante. Além sem para favelas localizadas nas zonas mais centrais
disso, a mera presença do tráfico torna os morado- da cidade.
res vulneráveis à violência e ao desrespeito típico da 8 De um ponto de vista legal, esta transformação foi
polícia dentro da favela. A presença – e a co-exis- possibilitada pelos artigos 182 e 183 da Constituição
tência – com o tráfico também reforça estereótipos de 1988 e, principalmente, pela aprovação do Esta-
que associam os moradores a traficantes e bandidos, tuto das Cidades em 2001, depois de mais de uma
década de debates, discussões e negociações envol-
tornando a vida cotidiana difícil dentro e fora da
vendo políticos, ativistas e militantes de movimentos
favela. Mas, paradoxalmente, pelo fato de o tráfico sociais. A ênfase do Estatuto na “função social da
trazer a favela para o centro do debate político no cidade” e, sobretudo, a criação de Zonas de Especial
Rio de Janeiro contemporâneo também vem trazen- Interesse Social, cuja regulamentação visa a lançar as
do mais investimentos e programas de urbanização. bases para a regularização fundiária em um futuro
próximo. No entanto, na ocasião da promulgação da
Notas Constituição de 1988, a consolidação das favelas ca-
riocas já constituía um processo em franco andamento.
1 Bela Vista é um pseudônimo para uma das 29 favelas 9 O objetivo original desse programa era conceder títu-
distribuídas por sete bairros da cidade dita “formal” los de propriedade a cerca de um milhão de famílias
que compõem a região conhecida como “Grande Ti- residentes em favelas e em loteamentos irregulares.
juca”, na zona norte do Rio de Janeiro. Menos de 35 mil títulos foram efetivamente conce-
2 Mantenho aqui e em outros trechos do texto um dos didos.
termos “nativos” para nomeá-los. 10 Para esses primeiros relatos que evocam narrativas de
3 Por exemplo, a “favela-loteamento”, proposta por viagem, ver Costallat ([1924] 1990), Edmundo (1938)
Lago (2003). e Rio (1911).
4 Sobre fluxos migratórios internos na cidade, cf. Abra- 11 Para uma análise dos mercados imobiliários de fave-
mo (2003), Abramo e Faria (1998) e Lago (2000); so- las neste primeiro momento, cf. Fischer (2008).
bre o acesso da população de baixa renda à infra-estru-
tura pública e aos equipamentos urbanos, ver IETS
(1998), IPP (2002), Cunha (2000), Ribeiro e Lago BIBLIOGRAFIA
(2001) e Torres et al. (2006); sobre transformações na
produção de moradia e impactos de programas de
urbanização de favelas, ver Compans (2003) e Fiori et
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RESUMOS / ABSTRACTS / RESUMÉS 203

DO BARRACO À CASA: TEMPO, FROM A SHACK TO A HOUSE: DE LA BARAQUE À LA MAISON:


ESPAÇO E VALOR(ES) EM UMA TIME, SPACE, AND VALUE(S) IN TEMPS, ESPACE ET VALEUR(S)
FAVELA CONSOLIDADA A CONSOLIDATED FAMILY DANS UNE FAVELA
CONSOLIDÉE

Mariana Cavalcanti Mariana Cavalcanti Mariana Cavalcanti

Palavras-chave: Favelas; Espaço urba- Keywords: Favelas; Urban space; Home; Mots-clés: Favelas; Espace urbain; Ha-
no; Moradia; Valor; Etnografia. Value; Ethnography. bitation; Valeur; Ethnographie.

Este artigo constitui uma análise etno- Cet article propose une analyse ethno-
gráfica do fenômeno da consolidação de The article consists of an ethnographic graphique du phénomène de la consoli-
favelas no Rio de Janeiro contemporâ- analysis of the favela consolidation in dation de favelas dans la ville de Rio de
neo, concebido aqui como resultado da contemporary Rio de Janeiro, understood Janeiro contemporaine, conçue, dans ce
justaposição de dois processos sócio-his- here as a result of the juxtaposition of cas, comme le résultat de la juxtaposition
tóricos aparentemente contraditórios: (1) two seemingly contradictory socio-his- de deux processus socio-historiques appa-
a substituição, pelo Estado, de progra- torical processes: (1) the replacement of remment contradictoires: (1) la substitu-
mas de remoção por programas de urba- favela removal programs by urbanization tion par l’État de programmes de suppres-
nização, que deu origem um boom na cons- programs and projects, giving rise to a sion par des programmes d’urbanisation,
trução civil, e à mercantilização sem recent construction boom in the favelas qui a été à l’origine du boom dans la cons-
precedentes do espaço das favelas; (2) a and to an unprecedented commoditiza- truction civile, et de la mercantilisation
apropriação do espaço da favela pelo trá- tion of their space; (2) the appropriation sans précédents de l’espace des favelas;
fico de drogas, que (re)produz e reforça of the space of the favelas by the drug (2) l’appropriation de l’espace de la favela
as fronteiras físicas, sociais e simbólicas trade, which (re)produces and reinforces par le trafic de drogues, qui (re)produit
entre a favela e o dito “asfalto”. Esse the physical, social, and symbolic bound- et renforce les frontières physiques, socia-
contexto é aqui explorado a partir de aries between the favela and the so-called les et symboliques entre la favela et le
uma concepção da casa como fato social “asphalt.” This context is explored soi-disant “asphalte”. Ce contexte est
total: a passagem do barraco de estuque through a conception of the house as a exploré dans cet article à partir d’une
à casa de alvenaria (convertida cada vez total social fact: the transition from the conception de la maison en tant que fait
mais em “fortaleza”) torna legível a stucco shack to the masonry house (in- social total: le passage de la baraque en
maneira pela qual o espaço da favela, e creasingly converted into a “fortress”) pisé à la maison en briques (convertie, de
sobretudo da casa, constitui-se como renders the space of the favela and par- plus en plus, en “forteresse”) rend lisible
processo, projeto de futuro e instância ticularly of the house as process, future la manière par laquelle l’espace de la fa-
produtora de valores – tanto monetários project, and a source of value, both eco- vela et, surtout, de la maison, se consti-
como subjetivos. nomic and subjective. tue en tant que processus, projet de fu-
tur et instance productrice de valeurs –
aussi bien monétaires que subjectives.

15 rbcs 69 resumos abstracts résumés.p65 203 14/4/2009, 13:34

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