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TRANSEXUALIDADE, APOSENTADORIA POR

GÊNERO E PENSÃO POR MORTE

1. Introdução

Tradicionalmente o tratamento da questão do gênero no direito


previdenciário abstraía da noção do transgênero. Ou seja,
independentemente da orientação sexual de um ser humano, este
mesmo indivíduo, homem ou mulher, era, pela característica de sua
biologia, inserido no sistema como segurado e regrado pelas normas a si
aplicáveis.

No entanto, na última década e meia o direito vem


experimentando uma nova variável no tratamento dos seres humanos:
homens que querem ser considerados como mulheres, para todos os
fins inclusive jurídicos, bem como mulheres que, da mesma forma,
querem ser consideradas homens.

Não é necessário ser visionário para se antever que o direito


previdenciário terá que se deparar com essa versão moderna do enigma
da esfinge. Isto porque num sistema que diferencia elementos como
tempo de contribuição/serviço e idade ao tratar, principalmente, do
benefício da aposentadoria, é claro que terá tal sistema que se debruçar
com casos de transsexualidade, devendo responder aos seguintes
questionamentos: como computar o tempo de serviço/contribuição e
como computar a idade, tanto para casos de pessoas que realizaram a
transsexualização antes como durante o ingresso no sistema e, quiçá,
depois de obter o benefício.

A propósito, já deixamos alhures assentado que, quanto à


diferenciação tanto na idade quanto no tempo de contribuição, para
menos, para as mulheres decorre do atendimento do princípio da
equidade. Destarte, as mulheres podem se aposentar cinco anos antes
dos homens porque a lei considera que, tendo em visa a sua usual dupla
jornada, há um desgaste maior de sua força de trabalho1.

Em um aspecto mais próximo da teoria geral da previdência


social, também afirmamos que decorre da equidade intrageracional de
gêneros, uma vez que se destina a realizar transferências de fundos
previdenciários dos homens para as mulheres, tendo em conta as
especificidades destas com relação ao mercado de trabalho2.

1 Nosso: Manual dos Benefícios Previdenciários; Ed. Lumen Juris, p. 201.


2 Nosso: Teoria Geral do Direito Previdenciário; Ed. Lumen Juris; p. 200.
Responder a isto é o que nos propomos nestas linhas, certos de
que se, de um lado, como dizia a canção nada será como antes,
amanhã..., não se pode ter a ilusão de alcançar por agora uma resposta
definitiva e absolutamente correta.

2. Os dados sociais
2.1. O Gênero

A proto-definição fornecida por Haydée Birgin e Laura Pautassi3 é


fundamental para a correta compreensão do conceito de gênero e, por
decorrência, de sua aplicação à seguridade social. Ensinam que

El concepto de género se refiere a la construcción


social de las relaciones entre hombres y mujeres, por lo
cual debería tomarse en cuenta en todo análisis social
o económico.

Em seguida, as citadas autoras inserem a conceituação de gênero


dentro do quadro maior dos demais parâmetros sociais a serem
considerados em diversos campos:

El género es un estratificador social y, como tal,


similar a otros como raza, clase, etnia y edad4.

Enfim, fornecem uma adequada definição de gênero, já


encavilhada na destinação que se lhe quer emprestar aqui:

El género constituye una categoría analítica


imprescindible para comprender la iniquidad en
campos que se consideraron neutrales, como la
macroeconomía, y por consiguiente en la naturaleza y
la dinámica de la transformación de las economías y
las sociedades5.

3 Birgin e Laura Género en la reforma o reforma sin género? Desprotección


social en las leyes previsionales de América Latina. Ed. CEPAL; Serie Mujer y
desarrollo, n. 36.Nações Unidas, junho de 2001.
4 Birgin e Laura Género en la reforma o reforma sin género? Desprotección

social en las leyes previsionales de América Latina. Ed. CEPAL; Serie Mujer y
desarrollo, n. 36.Nações Unidas, junho de 2001.
5 Birgin e Laura Género en la reforma o reforma sin género? Desprotección

social en las leyes previsionales de América Latina. Ed. CEPAL; Serie Mujer y
desarrollo, n. 36.Nações Unidas, junho de 2001.
O gênero é um dado da natureza que é apreendido pelo direito
para determinados fins, portanto, assim como outros tantos, tais como
o a passagem do tempo, catástrofes, etc. A cada um deles, o regramento
jurídico a identificar como algo jurígeno, regulamenta e concede efeitos;
efeitos esses que nem sempre coincidem com os efeitos naturalísticos
destes dados ou fenômenos6.

Portanto, uma vez apreendido o conceito de gênero pelo direito, é


este quem vai estabelecer-lhe os contornos. Será no seio de direito que o
figurino de mulher e homem será estereotipado.

Resta evidente que, trabalhando com um paradoxalmente


intrincado sistema de simplificações da realidade que apreende, os
conceitos jurídicos nem sempre coincidirão com os conceitos
naturalísticos (ou de outras normatividades sociais). No entanto,
enquanto em outros ramos a simplificação que o direito opera em um
determinado dado social não cause maiores transtornos, no direito
previdenciário a questão apresenta elevada complexidade.

Um exemplo banal. O Direito Civil trabalha com a ficção jurídica


de que um ser humano aos 18 anos de idade é inteiramente capaz de
reger sua vida (salvo incapacidades específicas ou parciais, etc.). Não se
pode duvidar que tal simplificação é necessária. Os custos
transacionais e a insegurança seria enorme se cada pessoa tivesse que,
antes de praticar qualquer ato ou negócio jurídico, comprovar que
compreendia corretamente os seus efeitos. Assim, apesar de não se
poder afirmar isso sem ter em mente que haverá exceções, a
simplificação na questão do estabelecimento de uma idade de
maioridade civil chega mesmo a trabalhar em prol da convivência social.

Por outro lado, tais simplificações (seja por meio de ficções,


presunções absolutas ou outros mecanismos do sistema jurídico) nem

6 Num momento pré-jurídico, a definição oferecida por Rubin, bem como a


engendrada por Scott são bastante apropriadas, ao menos num parâmetro
didático. Assim, de acordo com a lição trazida por Birgin e Laura Género en la
reforma o reforma sin género? Desprotección social en las leyes previsionales
de América Latina. Ed. CEPAL; Serie Mujer y desarrollo, n. 36.Nações Unidas,
junho de 2001: Rubin definió el sistema sexo/genero como el conjunto de
acuerdos mediante los cuales una sociedad transforma la sexualidad biológica
en productos de la actividad humana, y en los que estas necesidades sexuales
transformadas son satisfechas” (Lamas, 1996). Por su parte, Joan W. Scott
propone una definición de género cuyo aspecto central es la conexión integral
entre dos ideas: Según ella el género es un elemento constitutivo de las
relaciones sociales basadas en las diferencias que distinguen los sexos y el
género, es una forma primaria de relaciones significativas de poder”. Há ainda
análises interesantes no sentido de que com o ingresso maciço da mulher no
mercado de trabalho, um outro critério extremamente importante, qual seja o
de classe social, perdeu a relevância. Isto sem dúvida não deixa de ser uma
verdade em nosso sistema de previdência social, embora não desejemos nos
alongar no tema que não é matéria por nós ora tratada.
sempre serão tão socialmente produtivas. O conceito de gênero é um
deles.

Assim: tradicionalmente trabalha-se com uma dualidade –


homem e mulher. Reconhece-se uma sobrecarga de trabalho sobre a
mulher para conceder-lhe o direito a uma vida de trabalho/contribuição
ligeiramente mais breve. Mas o número de exceções sociais ao
ordenamento jurídico é bem mais relevante, mormente nos dias
contemporâneos, nos quais homens mais e mais assumem funções
antes destinadas apenas às mulheres, bem como casais homossexuais
masculinos dividem tarefas, muita vez, com uma identificação de gênero
(homem/mulher) sem que o direito possa se atentar para tanto.

Na verdade, sequer seria necessário, para provar a tese, utilizar o


argumento do gênero como algo destacado da formação biológica.

Basta relembrar que as mulheres em regra, para as mesmas


funções, recebem renda inferior às dos homens. Portanto, ainda que
com um tempo de serviço/contribuição e/ou idade inferior para
aposentadoria, não terão como regra a mesma retribuições quantitativa
de benefício previdenciário. Seu salário de contribuição será menor,
sendo, portanto, menor, seu benefício.

É nesse sentido a lição de Verónica Amarante, Maira Colacce e


Pilar Manzi7:

Las diferencias entre mujeres y hombres en el


mercado laboral son el origen de las diferencias
observadas en las prestaciones de la seguridad social,
y pueden ser potenciadas o mitigadas por el diseño de
los sistemas.

Ou seja, vem do próprio mercado de trabalho a diferença dos


valores de benefício de aposentadoria entre homens e mulheres. Assim,
para autores como Fernanda Fonseca Félix8:

O bônus de 5 anos na concessão de benefício


para as mulheres em relação aos homens é justificado
pelas desigualdades de gênero presentes no país.
Historicamente, o tempo que as mulheres gastam para

7 Verónica Amarante, Maira Colacce e Pilar Manzi La brecha de género en


jubilaciones y pensiones – Los casos de Argentina, Brasil, Chile y Uruguay.
Ed. CEPAL; Serie Asuntos de Género, n. 138, Nações Unidas, outubro de
2016.
8 Fernanda Fonseca Félix et alii. A questão previdenciária: simulações quanto

à igualdade de gênero. Vantagem para a previdência social e desvantagem


para a mulher. Trabalho apresentado no VII Congreso de la Associación Latino
Americana de Población e XX Encontro Nacional de Estudos Populacionais;
Foz do Iguaçu, Paraná, Brasil, 17 a 22 de outubro de 2016.
desempenhar os trabalhos domésticos e o cuidado com
os filhos e a família é bem mais elevado do que o
tempo gasto pelos homens.

Assim, ainda na dicção da citada autora9:

Com a intenção de compensar o desequilíbrio


entre os sexos no trabalho doméstico e a dupla jornada
feminina, a Previdência Social propõem regras mais
benevolentes para as mulheres e outros grupos
considerados mais vulneráveis economicamente.

Há dados relevantes no sentido de que, por exemplo, ainda em


2013 as mulheres brasileiras com ocupação e com ensino superior
completo recebiam, em média, 38% a menos que os homens com o mesmo
nível de instrução10.

Claro que aqui devemos fazer um reparo: não se trata de uma


verdade para o chamado RPPS – Regime Próprio de Previdência Social,
já que os vencimentos no serviço público são definidos em lei,
afastando, portanto, a distinção salarial entre homens e mulheres11.

De toda sorte, no RGPS – Regime Geral de Previdência Social – a


questão é reconhecida e causa forte impacto nos valores de
aposentadoria das mulheres.

Por isso, há quem advogue a tese de que caberia ao sistema


previdenciário, de alguma forma eliminar ou reduzir tal disparidade:

Resulta entonces importante asegurar el acceso


equitativo a las jubilaciones, lo que implica cumplir una
serie de requisitos durante la vida activa, requisitos
que difieren según países12.

9 Fernanda Fonseca Félix et alii. A questão previdenciária: simulações quanto


à igualdade de gênero. Vantagem para a previdência social e desvantagem
para a mulher. Trabalho apresentado no VII Congreso de la Associación Latino
Americana de Población e XX Encontro Nacional de Estudos Populacionais;
Foz do Iguaçu, Paraná, Brasil, 17 a 22 de outubro de 2016.
10 Trata-se de estudo da própria OCDE, trazido por Fernanda Fonseca Félix et

alii. A questão previdenciária (...), cit.


11 Confira-se o seguinte trecho de Verónica Amarante, Maira Colacce e Pilar

Manzi La brecha de género en jubilaciones y pensiones – Los casos de


Argentina, Brasil, Chile y Uruguay. Ed. CEPAL; Serie Asuntos de Género, n.
138, Nações Unidas, outubro de 2016: Adicionalmente, las diferencias de
ingresos entre hombres y mujeres, aunque se han reducido en los últimos años,
también continúan siendo significativas, y una porción muy relevante no puede
ser explicada por las diferencias en características de hombres y mujeres (…)
12 Verónica Amarante, Maira Colacce e Pilar Manzi La brecha de género en

jubilaciones y pensiones – Los casos de Argentina, Brasil, Chile y Uruguay.


Embora se possa reconhecer que a seguridade social tenha como
um de seus parâmetros a redução de tais desigualdades, ela é incapaz,
de por si mesma, eliminá-la13. No entanto, se não pode eliminá-la,
tampouco tem legitimidade para agravá-la.

Fato é que em nosso sistema, a ainda existente distinção se dá


também pela presunção de que há, por parte da mulher, um desgaste
maior de sua força de trabalho em virtude das multitarefas a que é
submetida, ainda que, como visto, a situação esteja mudando14 15 16.

Ed. CEPAL; Serie Asuntos de Género, n. 138, Nações Unidas, outubro de


2016. Fabio Zambitte Ibrahim, sobre o tema, manifesta-se da seguinte forma:
de modo geral, aponta-se a aposentadoria antecipada das mulheres como
instrumento de compensação pelas desigualdades entre gênero ainda
existentes, além de a mulher sofrer maiores encargos ao longo de sua vida,
especialmente na atualidade, quando muitas, não raramente, além de preservar
os encargos clássicos de gestão familiar e educação dos filhos, ingressam no
mercado de trabalho viabilizando o sustento familiar. (A Previdência Social no
Estado Contemporâneo. Editora Impetus).
13 Nem todos os sistemas, bom remarcar, trabalham com distinção de carência

(tempo de contribuição/serviço) e/ou idade entre homens e mulheres. Salvo


melhor juízo, por exemplo, a França tem idade unificada de 60 anos para
ambos os sexos. Tanto se depreende, por exemplo da chamada parte
legislativa do Código da Seguridade Social da França, no livro 1, título 1,
capítulo 1º (que cuida da organização da seguridade social), artigo L111-2-1,
II: La Nation assigne également au système de retraite par répartition un objectif
de solidarité entre les générations et au sein de chaque génération,
notamment par l'égalité entre les femmes et les hommes, par la prise en
compte des périodes éventuelles de privation involontaire d'emploi, totale ou
partielle, et par la garantie d'un niveau de vie satisfaisant pour tous les
retraités. Grifamos o trecho: e, no seio de cada geração, notadamente pela
igualdade entre mulheres e homens. Comentando a estruturação no que nos
interessa Laetitia Razé (L´âge em droit social. Etude em droit européen,
français e allemand; Tese apresentada à Universidade de Rennes 01 para
obtenção do título de Doutora em 09 de dezembro de 2013) afirma que já
desde antes do fim da segunda grande guerra, a idade legal de aposentadoria
na França havia estacionado nos 60 anos. Há variações atualmente quanto a
esta idade, mas não parece haver distinção entre os sexos. De toda sorte,
trata-se de um país que, certamente, possui avanços sociais com os quais o
Brasil de hoje sequer pode sonhar. Daí talvez a não distinção.
14 Essa mutação é denominada pela doutrina alienígena de metamorfoses do

risco social, ou, na língua original métamorphoses du risque social. A


caracterização de sexo em si (masculino/feminino) não é um risco. Mas a
forma sobre a qual o direito apreende o efeito da passagem do tempo sobre
indivíduos de cada um dos sexos é uma forma de compreensão diversificada
do risco social do envelhecimento. Há, para, maiores aprofundamentos, um
texto de Jean-Pierre Chauchard homônimo, publicado pela Universidade
Monesquieu Bordeaux IV, de março de 2013. (J-P Chauchard, Les
métamorphoses du risque social. Éléments de réflexion COMPTRASEC-
WPS/2013/2, mars 2013). Interessante, aliás, é refletir que tanto o
envelhecimento como a longevidade são riscos sociais para a seguridade.
Dissemos também porque, como explicita a doutrina a questão da
dupla jornada feminina é somente o fundamento mais conhecido para a
aposentadoria antecipada, havendo, assim outros, tais como: as
mulheres, em geral, casarem-se com homens mais velhos, justificando o
retiro precoce de modo a acompanhar o cônjuge na atividade, apoio no
cuidado de netos e familiares, que seria reduzido com maior tempo de
trabalho feminino, dentre outros17.

Aliás, em sendo as mulheres consideradas ainda as principais


cuidadoras familiares18 e, por outro lado, prevendo nosso texto
constitucional o dever do Estado no fornecimento de creches para
crianças e bem estar dos idosos, esse ônus das mulheres também pode
ser considerado como uma forma de compensar o papel social que a
mulher exerce no cuidado dos filhos e cuidado dos pais idosos19.

15 No entanto, embora reconhecamos que há uma paulatina modificação nas


situações de fato, ainda há distinções, como bem assevera Fernanda Fonseca
Félix et alii. (A questão previdenciária, cit): Em contra partida, Marriet al(2011)
explicam que, embora as conquistas femininas em relação à igualdade de
gênero tenham avançado nas últimas décadas, ainda existem desigualdades
quanto aos diferencias de salários e ao tempo dedicado ao trabalho doméstico.
Mesmo que, atualmente, o trabalho esteja mais compartilhado, a mulher
permanece como a responsável pela criação dos filhos, cuidado dos parentes
idosos e do lar, fato que as afastam do trabalho, direcionando-as a empregos de
pior qualidade, que proporcionam redução de jornada de trabalho e menor
proteção previdenciária. (sic).
16 Analisando a questão sob o viés da RDP (razão de dependência

previdenciária), Marcelo Caetano remarca a importância de se destacar a


maior inserção feminina no mercado de trabalho com distintas repercussões
intertemporais. Segundo o autor a curto prazo, a ampliação da cobertura
previdenciária atenua a evolução da RDP. Há, nas primeiras décadas, aumento
do número de contribuintes sem a respectiva elevação dos beneficiários. À
proporção que as primeiras mulheres que ingressaram no mercado de trabalho
envelhecem e se aposentam, a razão de dependência passa a assumir valor
crescente e, em seu estado de maturidade, torna-se superior àuqele de menor
participação no mercado de trabalho. Isso ocorre por duas razões. Em primeiro
lugar, as mulheres têm expectativa de vida superior à dos homens. Em segundo
lugar, as regras vigentes permitem aposentadoria feminina com condições de
elegibilidade menos restritas do que as masculinas. Em outras palavras, para o
sistema previdenciário como um todo, aumenta-se o tempo médio de fruição de
benefícios e reduz-se o de contribuição. Esses dois fatores elevam a razão de
dependência previdenciária. Pelo que se pode observar, o autor não
concordaria com o tratamento previdenciário diferenciado homem/mulher.
(Marcelo Abi-Ramia Caetano; Determinantes da sustentabilidade e do custo
previdenciário: aspectos conceituais e comparações internacionais; Texto para
discussão número 1226; IPEA; Brasília, outubro de 2006
17 Fabio Zambitte Ibrahim, A Previdência Social no Estado Contemporâneo.

Editora Impetus.
18 Ver, por todos: Fernanda Fonseca Félix et alii. A questão previdenciária (...),

cit.
19 Essa também é a opinião de Fernanda Fonseca Félix et alii. A questão

previdenciária (...), cit.


Há quem, no entanto, entenda que a distinção com relação à
idade e tempo de serviço/contribuição não seria a mais adequada para
compensar as desigualdades de gênero:

No entanto, como a prestação previdenciária visa


a atender a determinado risco e, no caso da
aposentadoria por idade, o risco coberto é a idade
avançada, em razão de presunção de incapacidade,
não haveria razão para a antecipação de benefício
para as mulheres, pois vivem, em média, oito anos a
mais que homens. A jornada de trabalho maior, para
tal fim, seria irrelevante, podendo, no entanto,
justificar outras formas de compensação social, que
não aposentadorias precoces20.

Fato também que a (hoje muito improvável) aprovação da


proposta de emenda constitucional de reforma da previdência teria tido,
ao menos num primeiro momento, a intenção de igualar as idades
mínimas para aposentadoria. Parece, no entanto, que, na
eventualíssima hipótese de aprovação, o texto poderia padecer de
inconstitucionalidade material. É certo que o direito pode trabalhar com
ficções e presunções, mas não ao ponto de agredir o princípio da
igualdade. Ainda não há entre nós um desenvolvimento social que
permita com que haja uma equiparação absoluta de idade mínima de
aposentadoria entre homens e mulheres. Uma redução da diferença,
sim, seria possível, mas não uma equalização. Esta seria iníqua.

As mulheres são ainda hoje, embora em menor grau do que no


passado – e dependendo também da pertença a esta ou aquela classe
social e econômica – um grupo economicamente mais vulnerável21.

20 Fabio Zambitte Ibrahim, A Previdência Social no Estado Contemporâneo.


Editora Impetus.
21 Confira-se, a respeito, o seguinte trecho de Izabel Guimarães Marri, Simone

Wajnman e Mônica Viegas Andrade: Como já bem documentado em diversos


trabalhos, apesar do aumento da participação das mulheres do mercado de
trabalho brasileiro ao longo das últimas décadas e da redução dos diferenciais
salariais observados entre os sexos, ainda são grandes as diferenças de gênero
no mercado de trabalho e nas atividades domésticas. Mesmo que coortes mais
jovens não experimentem incompatibilidade do trabalho doméstico com a
atividade econômica devido à maternidade, como ocorria em décadas passadas,
o efeito da presença dos filhos e do cuidado com a família reduz as
oportunidades de emprego para as mulheres e as direciona para ocupações de
pior qualidade, que oferecem jornadas de trabalho mais reduzidas e menor
proteção previdenciária. (Izabel Guimarães Marri, Simone Wajnman e Mônica
Viegas Andrade: Reforma da Previdência Social: simulações e impactos sobre
os diferenciais de sexo. Revista Brasileira de Estudos Populacionais; Rio de
Janeiro, v. 28, n. 01, p. 37-56, jan/jun 2011).
Ainda palmilhando a trilha para alcançar o âmago do tema, é
preciso agora discutir o seguinte ponto: a distinção jurídica feita pelas
regras previdenciárias entre homens e mulheres para fins de
aposentadoria tem referenciais biológicos, sociais ou de ambas as
espécies?

Ao nosso aviso, e respeitadas as doutas opiniões em contrário: a


última opção parece a correta. Há um referencial de natureza biológica,
pelos danos que o corpo da mulher sofre com o passar do tempo, talvez
mais pesados que o corpo masculino. Há, no entanto, um referencial de
natureza social, pelas multitarefas praticadas pelas mulheres. E, ainda
segundo nosso credo, o referencial social é predominante.

Não se pode deixar de lamentar também que em nosso sistema


previdenciário não haja uma distinção também baseada em nível de
ingressos e, portanto classe social. É evidente que nas classes mais
baixas de renda há um desgaste maior do trabalhador, em especial da
mulher. Não somente há sobrecarga como também maiores períodos de
não contribuição.

Não se trata de mera opinião. São assertivas baseadas em


estatísticas estampadas em estudos de peso. As características do
mercado de trabalho abrangido pelo RGPS são marcadamente diversas
para as chamadas famílias de baixa renda. Fato é que o mercado
brasileiro possui desempregados, trabalhadores autônomos e
trabalhadores remunerados sem carteira assinada e, com esta parte da
população fora das contribuições previdenciárias22, se torna mais difícil
aumentar a receita da Previdência Social. Afirma-se que geralmente
estes trabalhadores informais são de famílias de baixa renda, que não
tem condição fornecer o sustento ao idoso23

Pensamos que, houvesse este signo distintivo também, teríamos a


necessidade então de realizar distinções de gênero e classe, ou seja, no
que concerne à mulher, um tratamento diverso entre aquelas ocupantes
das diversas classes, de acordo com o nível de ingressos (salários ou
outra forma de renda).

Certamente que mulheres de níveis inferiores na escala social e


econômica têm um desgaste de sua força de trabalho maior do que
outras que ocupem níveis superiores na pirâmide.

22 F. Melo, Os impactos das mudanças demográficas na Seguridade social e o


ajuste fiscal. Plataforma Política Social. Artigo 30, de 28 de julho de 2016.
23 Izabel Guimarães Marri, Simone Wajnman e Mônica Viegas Andrade:

Reforma da Previdência Social: simulações e impactos sobre os diferenciais de


sexo. Revista Brasileira de Estudos Populacionais; Rio de Janeiro, v. 28, n. 01,
p. 37-56, jan/jun 2011.
Estando assim convictos, resta inegável que o signo social se
sobrepõe ao signo fisiológico (homem/mulher), quando postos em linha
de comparação.

Há autores que parecem concordar, ainda que em tese, com o que


dissemos. Com efeito:

A aposentadoria antecipada das mulheres,


talvez, pudesse ser admitida se, concretamente,
houvesse comprovação dos encargos da maternidade,
como por exemplo, prevê o modelo de transição da
República Tcheca. Em verdade, se fosse criada tal
premissa, o modelo previdenciário poderia antecipar a
aposentação tanto para homens quanto para mulheres,
superando a questão do sexo e privilegiando aqueles
que, efetivamente, investiram tempo na educação e
cuidados da prole24.

Tecemos ainda os seguintes comentários.

O primeiro é o de que a proteção à prole, ou quiçá, o incentivo à


reprodução é um valor jurídico que, além de fundamental, está
intrinsecamente ligado à viabilidade da previdência social. Portanto, em
nada agrediria a razoabilidade e proporcionalidade exigidas pelo nosso
sistema constitucional.

O segundo é o de que a concepção supra transcrita faz sentido na


medida em que, mormente no cenário moderno, embora haja uma
predominância, não se pode dizer seja exclusividade as tarefas de
educação, guarda, etc., dos filhos.

Dito, isto, consideremos que, sem embargo, quando nos


deparamos com um homem que passa a ser considerado mulher para
todos os efeitos perante o direito, com aquisição de identidade com
nomenclatura feminina, etc., se faz mister saber se a proteção social
aplicável a tal indivíduo deve ser o da mulher ou do homem. E vice-
versa.

Se optarmos pela prevalência da referência biológica, seria


defensável que o homem que se transforma em mulher deveria manter-
se dentro de um subsistema endereçado ao homem, visto que, apesar
de haver uma mudança genital, biologicamente o organismo permanece
com muitas características masculinas.

24Fabio Zambitte Ibrahim, A Previdência Social no Estado Contemporâneo.


Editora Impetus, Rio de Janeiro, p. 222.
Esse questionamento também poderia ser feito, por exemplo, em
sede laboral, para trabalhos proibidos para mulheres, com limites de
esforço físico, etc. Certamente aqui não se duvidaria que um homem
que tornou-se mulher poderia continuar a operar laboralmente acima
dos limites impostos para a mulher. O contrário também se diria.

Mas, se optarmos pela prevalência da referência social – segundo


a qual, assumindo a identidade feminina, aquele que outrora foi homem
passa a ser mulher, assumindo o papel social de mulher, com as
variadas tarefas que a mulher costuma assumir na sociedade, então, o
subsistema aplicável seria o que rege as mulheres.

E ainda há um outro ponto a ser elucidado: quando ocorre essa


modificação de sexo, é necessária a alteração genital ou basta a
modificação reconhecida por sentença?

E, por último, em havendo a alteração em algum período da vida


laborativa do indivíduo, como se fará a contagem de tempo, tanto para
tempo de contribuição/serviço como para idade mínima?

2.2. Transexualismo25

O transexualismo é um fenômeno social, atualmente reconhecido


pelo direito, causado pela incompatibilidade entre o sexo biológico e a
identificação psicológica no transexual26.

A doutrina especializada refere-se à identidade de gênero


(preferível ao termo sexo, por ser este equívoco) da seguinte forma:

A identidade de gênero é um constructo


constituído por vários componentes estruturados em
diferentes épocas e por várias influências. Perpassa
pelo sexo genético, gonádico, hormonal, legal de
nascimento e de criação. Não é exclusivamente
biológico mas sim o produto de suas interações27.

Prossegue:

A identidade sexual ou de gênero é um conceito


extremamente complexo, composto por componentes

25
Evidentemente que nossa busca e nosso objetivo aqui não se constituem do
estudo do transexualismo em si, mas de suas consequencias para o direito
previdenciário. No entanto, com a mesma evidência, não há como se furtar a
uma análise ao menos razoável do tema.
26 Ana Paula Ariston Barion Peres. Transexualismo – o direito a uma nova

identidade sexual. Editora Renovar, RJ/SP, 2001, p. 89.


27 Ana Paula Ariston Barion Peres. Transexualismo – o direito a uma nova

identidade sexual. Editora Renovar, RJ/SP, 2001, p. 90.


conscientes e inconscientes. Possuindo elementos
altamente associados ao sexo a que se pertence e às
características estabelecidas pela estrutura social a
cada gênero. Assim, a idéia de gênero não é um
constructo mental unitário, pois grande número de
diferentes componentes estruturados em diversas
épocas do desenvolvimento e advindos de várias
influências, formarão a composição final do que se
convencionou chamar de identidade de gênero28.

A questão de gênero está inserida em uma opção maior, que diz


respeito à própria identidade do ser humano e ao fenômeno do que se
chama de fragmentação das identidades modernas29.

Os autores inclusive se referem a transexuais que assim o são


ainda que não efetuada a intervenção cirúrgica. Assim, afirma-se que
para o transexual, a questão está na forma como ele se sente ou se
percebe, que não tem relação com o seu físico, ou seu corpo. Diz-se,
então, que o sexo é um e a identidade de gênero é outra30. Mais adiante,
a mesma autora reforça: o que tipifica um transexual é a inadequação
que ele percebe entre seu corpo e sua identidade de gênero. Ou seja, ele
está convicto de que, apesar de ser homem (ou mulher), não tem qualquer
relação com os papéis masculinos (ou femininos) socialmente
construídos31.

Importa-nos, como já referido, perquirir acerca das questões


referentes ao tempo de contribuição/serviço e idade para fins de
aposentadoria no caso de transexualismo.

2.2.1. O tratamento jurídico dos transexuais já operados

28 Ana Paula Ariston Barion Peres. Transexualismo – o direito a uma nova


identidade sexual. Editora Renovar, RJ/SP, 2001, p. 90.
29 É a expressão utilizada por Douglas César Lucas em seu texto: Direito à

identidade: itinerários de um paradoxo. Revista Pensar, Fortaleza, v. 18, n. 2,


p. 401-430, mai./ago. 2013. Eis extrato de seu trecho: Nessa trilha de
argumentos, Hall (2005) destaca que a sociedade da modernidade tardia
processa mudanças constantes, rápidas e provisórias, as quais têm contribuído
para o descentramento, deslocamento e fragmentação das identidades
modernas. Não apenas as localizações sociais tradicionais (família, gênero,
religião, nacionalidade, raça) são enfraquecidas, mas o próprio “sentido de si”
perde sua referenciabilidade nesse contexto, menciona Hall (2005).
30Ivone Zeger; Direito LGBTI – perguntas e respostas, Mescla Editorial, SP, p.

229.
31Ivone Zeger; Direito LGBTI – perguntas e respostas, Mescla Editorial, SP, p.

231.
Primeiramente vamos analisar o caso daqueles ou daquelas que já
realizaram a cirurgia de transgenitalização ou de redesignação sexual32.

2.2.1.1. Precedentes da Corte Europeia de Direitos


Humanos

A matéria, ainda muito pouco discutida entre nós, já foi objeto de


discussões e decisões na Corte Europeia de Direitos Humanos. Embora
tivesse se manifestado de forma diversa anteriormente, a Corte referida,
em 11 de julho de 2002, no caso Christine Goodwyin vs. United
Kingdom, bem como no caso I. vs. United Kingdom reconheceu que a
Inglaterra falhava no reconhecimento da troca de gênero de transexuais
pós operados.

No caso Grant x UK, julgado em 23 de maio de 2006, a


reclamante apresentou à Corte Europeia a alegação de que o
Departamento de Seguridade Social deixou indevidamente de reconhecer
sua mudança de gênero, negando, por consequência, seu direito ao retiro
(aposentadoria) na idade que, à época, era concedida às mulheres -
sessenta anos.

Vamos analisar mais detidamente este último caso (Grant v. The


United Kingdom; Application n. 32570/03). Como visto acima, o ponto
nodal diz respeito a questão da mudança de gênero sexual e suas
implicações nos assuntos previdenciários. A Sra. Grant tentou obter
junto ao Departamento de Seguridade Social (DSS) Inglês sua
aposentadoria aos 60 (sessenta) anos, com o pagamento da
consequente pensão. Importante ressaltar que no tempo dos fatos –
condição que vem paulatinamente se modificando – havia ainda

32 A Resolução 1955, de 03 de setembro de 2010 do Conselho Federal de


Medicina autorizou aos profissionais da área realizar a cirurgia de
transgenitalização, desde que atendidos os seguintes requisitos estejam
presentes: Desconforto com o sexo anatômico natural; desejo expresso de
eliminar os genitais, perder as características primárias e secundárias do
próprio sexo e ganhar as do sexo oposto; permanência desses distúrbios de
forma continua e consistente por, no mínimo, dois anos; ausência de outros
transtornos mentais. O paciente deve ainda contar com no mínimo 21 anos.
Para que haja o diagnóstico de transexualismo, o interessado deverá passar,
pelos já referidos dois anos, por uma equipe multidisciplinar integrada por
psiquiatra, cirurgião, endocrinologista, psicólogo e assistente social. Deve-se
ainda fazer menção à Portaria 1707 do Ministério da Saúde, datada de 18 de
agosto de 2008, permitindo a cirurgia de mudança de sexo no Sistema Único
de Saúde. Este instrumento normativo assim define o transexualismo: é um
desejo de viver e ser aceito na condição de pessoa do sexo oposto, que em geral
vem acompanhado de um mal-estar ou de sentimento de inadaptação por
referência a seu próprio sexo anatômico, situações estas que devem ser
abordadas dentro da integralidade da atenção à saúde preconizada e a ser
prestada pelo SUS.
diferença de 05 anos de idade entre a aposentadoria de mulheres e de
homens.

A Sra. Grant tinha seu sexo biológico (masculino) declinado em


sua certidão de nascimento. Sua opção por ser mulher ocorreu aos 24
(vinte e quatro) anos, marco a partir do qual passou a portar-se como
mulher (1963). Ela é identificada como mulher perante o Seguro
Nacional Inglês e pagou contribuições para este órgão como mulher (até
1975, quando a diferença de quotas entre homem e mulher foi abolida).
Em 1972 ela se tornou autônoma, passando a pagar um fundo de
pensões privado.

Em agosto de 1997 informou ao departamento governamental


para pagamento de aposentadorias que desejava começar a receber seu
benefício em 22 de dezembro de 1997, quando completaria 60 anos. No
entanto, sua solicitação foi recusada, em 1º de junho de 2000, sob o
argumento que teria sido feita antes do tempo, sendo que ela somente
teria o direito à jubilação a partir de seus 65 anos, a idade de retiro
para homens. Apresentou recursos para segunda e terceira instâncias,
mantendo-se a denegação.

É de bom tom esclarecer que, na Inglaterra, o segurado é


reconhecido pelo serviço de seguro nacional pelo sexo constante na
certidão de nascimento. Ao segurado é fornecido uma sigla
alfanumérica imutável para toda sua vida, por meio da qual toda sua
vida de contribuições e outros fatos relevantes para o seguro social são
documentos e armazenados.

O chamado Social Security Commissioner (uma espécie de corte


judicial especializada em seguridade social) até abril de 2005 tinha o
seguinte entendimento:

Ao meu modo de ver, o termo ‘mulher’, na seção


27 da Lei de Contribuições e Benefícios da Seguridade
Social de 1992 refere-se a uma pessoa que é
biologicamente uma mulher. As seções 28 e 29 contém
várias referências ao termo ‘mulher’ a indicar uma
pessoa que poderá ter um casamento válido com um
marido. Assim, somente pode-se interpretar como
mulher no sentido biológico.
Duvido que a distinção entre alguém que é
biologicamente, e outra que é socialmente uma mulher,
não esteve presente nas mentes dos legisladores de
então. E, ainda que assim não fosse, certo é que o
Parlamento jamais conferiu a alguém o direito ou
privilégio de alterar os dados do seu seguro social, seja
de homem para mulher, seja de mulher para homem.
Ao meu aviso, tal direito ou privilégio deveria estar
garantido expressamente.
Por outro lado, em 12 de julho de 2002, baseando-se no
precedente Goodwin v. United Kingdom , ela solicitou a reabertura de
seu caso. Ocorre que no precedente citado, a Corte Européia de Direitos
Humanos determinara que a Inglaterra havia falhado no sentido de
garantir total reconhecimento legal para os transexuais pós operados.
Ainda tal pedido foi indeferido.

Importa ressaltar que em 1º de julho de 2004 foi editado na


Inglaterra o Gender Recognition Act. De acordo com tal diploma legal,
indivíduos que preenchessem determinados requisitos estariam aptos a
solicitar um julgamento de reconhecimento de gênero, com o fito de
obter uma certidão de reconhecimento de gênero. A partir da data de tal
certidão, que é feita com efeitos ex nunc, o respectivo indivíduo passa a
ser reconhecido pelo gênero adquirido. Na espécie, benefícios sociais e
aposentadorias passam a ser pagos de acordo com o gênero adquirido.

E, com base neste novo diploma, a Sra. Grant requereu uma


certidão de reconhecimento de gênero, chegado até a Corte Européia de
Direitos Humanos, que reconheceu a violação e determinou que o
Estado Inglês pagasse à referida Sra o valor devido da pensão no perído
a partir do julgamento do caso Goodwin. A determinação de tal
pagamento se deu porque, quando da recusa em 2002, por parte do
Estado Inglês, o precedente Goodwin já havia sido julgado pela Corte
Européia de Direitos Humanos, tornando a conduta do Estado Membro
inaceitável.

O caso acima referido foi apenas um dos inúmeros que


começaram a aparecer na Corte Européia. No entanto, no geral, as
linhas mestras são as mesmas. E, é preciso reforçar o seguinte: refere-
se a transexuais operados.

De outra parte, especificamente na Inglaterra, como já referido, a


partir da edição do Gender Reconition Act, em 2004, é possível a
alteração dos dados oficiais do interessado, ou interessada. No entanto,
tal modificação tem, também como assinalado, efeitos prospectivos, ou
seja, apenas para o futuro.

2.2.1.2. Ordenamento Jurídico Nacional

Visto o que restou anteriormente consignado, devemos agora


lançar os olhos sobre o ordenamento pátrio.

Lembramos que tanto nos chamados Regimes Próprios de


Previdência Social quanto no Regime Geral de Previdência Social há
uma distinção, no que se refere à idade de aposentação, entre homens e
mulheres. Portanto, em se acatando a possibilidade de aplicação da
aposentadoria feminina para transexuais operados (masculino para
feminino) e vice-versa, haverá consequências que também deverão ser
tratadas (contabilização do tempo de contribuição, idade, etc.)

Alertamos, por outro lado, que por conta da coincidência da


distinção em idade e tempo de contribuição entre o RPPS e o RGPS (ou
seja, o intervalo é de 5 anos em ambos) 33, trataremos apenas do RGPS,
para facilitar o estudo. Mas tudo o quanto se disser para este, valerá
para aquele. Quando não for o caso, restará consignado.

A Lei 8213/91, em seu art. 48 estatui, para a aposentadoria por


idade, 65 anos para homem e 60 para mulher. No que respeita à
aposentadoria por tempo de serviço (contribuição), o art. 52, determina
30 anos de serviço (contribuição) para o homem e 25 para a mulher. O
art. 53 estabelece uma regra de cálculo proporcional também levando
em consideração a distância de 05 anos entre homens e mulheres.

Por outro lado, sempre que faz referência a quem não seja
homem, a lei usa, exclusivamente o termo mulher. Assim como, aliás, o
ordenamento jurídico inglês, antes da introdução do Gender Recognition
Act. Portanto, tal qual entendeu o julgador britânico, poder-se-ia
advogar a tese segundo a qual os transexuais operados não podem ser
enquadrados na aposentadoria da mulher. Inda mais porque não temos
entre nós legislação semelhante ao Gender Recognition Act.

É interessante relembrar a evolução da concessão do benefício da


licença maternidade. Como bem asseveram Daniel Machado da Rocha e
José Paulo Baltazar Júnior34, na concepção original da Lei de Benefícios,
o gênero feminino era uma exigência inafastável para o reconhecimento
do direito. No entanto, a evolução da concepção acerca dos objetivos do
benefício levaram, primeiro a jurisprudência e, depois, o Conselho de
Recursos da Previdência Social (CRPS) a reconhecer a licença
maternidade para homem (no caso, de um casal homossexual). E mais,
com a nova redação do art. 71-A, trazida pela Lei 12.873/13, deixa
indene de dúvidas tal possibilidade. Confira-se a redação do dispositivo:

Art. 71-A. Ao segurado ou segurada da


Previdência Social que adotar ou obtiver guarda
judicial para fins de adoção de criança é devido

33Com efeito, dispõe, quanto aos RPPS, a Carta da República em seu art. 40 ,
inciso III alíneas “a” e “b”, respectivamente: sessenta anos de idade e trinta e
cinco de contribuição, se homem, e cinquenta e cinco anos de idade e trinta de
contribuição, se mulher; sessenta e cinco anos de idade, se homem, e sessenta
anos de idade, se homem, e ssenta anos de idade, se mulher, com proventos
proporcionais ao tempo de contribuição. De outra parte, o art. 201 parágrafo 7º
incisos I e II, respectivamente, também apõe trinta e cinco anos de contribuição
se homem, e trinta anos de contribuição, se mulher; sessenta e cinco anos de
idade, se homem, e sessenta anos de idade, se mulher (....)
34Daniel Machado da Rocha e José Paulo Baltazar Júnior, Comentários à lei de

benefícios da previdência social; Gen/Atlas, 15ª edição, p. 458.


salário-maternidade pelo período de 120 (cento e
vinte) dias.

Mas é preciso ressaltar que, mesmo antes dessa alteração, obrada


em 2013, já se reconhecia tal direito aos homens35. Tal não tem outra
explicação senão pela mutação no sentido da legislação, adaptando-se
aos novos fatos sociais que a cercam. Pode-se argumentar, aqui, que a
questão não tem a ver com o gênero biológico do pai, mas à proteção da
criança. De fato muitas decisões foram proferidas sob tal argumento. No
entanto, inegável é que estendeu-se um benefício, antes exclusivamente
feminino, para os homens (pais biológicos ou por adoção). Ou seja, onde
estava redigido mulher passou-se a entender quem cuida da criança
recém nascida ou adotada, independentemente do sexo biológico.

2.2.1.3. Concessão do benefício aos transexuais


operados
Pois bem, cremos que o mesmo processo deve ser aplicado aos
transexuais operados. A justiça comum já vem reconhecendo inclusive
o direito à alteração do prenome (masculino para feminino e vice-versa).
Ou seja, o transexual operado é considerado como mulher para todos os
feitos. O mesmo se diga para quem fez o caminho inverso.

Ou seja, o significado mulher constante na Carta Constitucional


(pelo menos no que respeita à seguridade social), na Lei 8213/91 e nas
leis dos Regimes Próprios deve ser interpretada de forma a considerar
também o gênero social da pessoa. Ou seja, se um homem realiza
operação de alteração de sexo, deve ser considerado mulher pela
previdência. O mesmo vale para mulheres que tenham se
transgenitalizado para homem.

2.2.1.4. Contabilização do tempo de contribuição e


da idade

35 Por exemplo: SALÁRIO-MATERNIDADE. REQUERENTE O PAI VIUVO. ART. 71


DA LEI 8.213/91. INTERPRETAÇÀO AMPLIATIVA. Conquanto mencione o art. 71
da Lei 8.213/91 que o salário-maternidade é destinado apenas à segurada,
situações excepcionais, como aquela em que o pai, viúvo, é o responsável pelos
cuidados com a criança em seus primeiros meses de vida, autorizam a
interpretação ampliativa do mencionado dispositivo, a fim de que se conceda
também ao pai o salário-maternidade, corno forma de cumprir a garantia
constitucional de proteção à vida da criança, prevista no art. 227 da
Constituição Federal de 1988. Recurso do autor provido. (RECURSO CIVEL N.
5002217-94.2011.404.7O16/PR, por maioria, julgado em 28/02/2012).
Conforme já asseverado, a nossa legislação previdenciária como
um todo estabelece intervalos, seja de idade, seja de tempo de
contribuição, entre o homem e a mulher biológicos.

Assim por decorrência do direito à aposentadoria por gênero


social para os transexuais operados, estaremos diante de uma questão:
como fazer a contabilização do tempo de contribuição e da idade para
fins de concessão do benefício.

O nosso direito – leia-se, jurisprudência – está muito afeito a


tratar de questões acerca de alteração de regime jurídico. A questão, de
certa forma já pacificada, é, no mais das vezes, resolvida com a
expressão: não há direito adquirido a regime jurídico.

Nestas hipóteses, o indivíduo permanece o mesmo. A legislação é


que muda.

No entanto, no caso ora em estudo, é justamente o oposto. O


indivíduo se transmuta e a legislação (ainda) permanece na mesma.

Pois bem. Quando escrevemos nossa obra Segurado Contribuinte


Individual (...)36, fizemos referência ao chamado direito adquirido
fracionado.

Naquela ocasião, deixamos consignado que:

Quanto ao direito adquirido, é de se ver que


sempre vigeu entre nós o princípio segundo o qual não
há direito adquirido a regime jurídico, tema que sempre
voltava ao centro das discussões quando havia (e há)
modificações nos regimes de previdência. Assim, a
instituição de regras de transição era a solução para
pacificar as regras anteriores e atuais. Por outro lado,
vem nascendo no Direito Previdenciário, com méritos
iniciais principalmente para os estudiosos da
previdência complementar, a tese do direito adquirido
fracionado.
O direito adquirido fracionado também trabalha
com a idéia do regime jurídico, mas entendido este em
sua acepção temporal mínima: o mês. Com efeito, a
contagem de tempo, seja de serviço, seja de
contribuição, sempre se dá pela unidade mês. Assim,
completado o ciclo mínimo de contagem, haveria
aquisição ao direito, ou seja, aquele mês trabalhado,
com sua forma de cálculo e demais consectários, já
estaria incorporado ao patrimônio do segurado,

36Társis Nametala Sarlo Jorge, Segurado Contribuinte Individual –


Configuração legal e Regime Jurídico Previdenciário após a Lei Complementar
123/06; Paraná, Juruá Editora, 2007.
estando assegurado em face de posteriores
modificações. Seria, em verdade, a consagração
absoluta da regra segundo a qual a lei que rege o
tempo de contribuição é aquela que eslavo em vigor
quando houve a prestação de serviços. Tal tese nos
parece amplamente razoável, posto que, em sendo a
Previdência instrumento de dignidade da pessoa
humana, procurando proteger a força de trabalho do
homem - enquanto instrumento daquela dignidade -
não poderia obrar de forma diversa, uma vez que
aquela força de trabalho despendida jamais retomará
ao segurado37.

A aplicação desta tese, portanto, determina uma contagem


mensal proporcional do tempo de contribuição do segurado.

Para proporcionar um melhor entendimento e, simultaneamente,


demonstrar que a solução não é inédita em nosso Direito Previdenciário,
lancemos os olhos sobre a chamada aposentadoria especial.

Já deixamos, outrora, assinalado que:

A aposentadoria especial nada mais é do


que uma espécie de retiro antecipado, em relação a
modalidade geral de aposentadoria. Isso ocorre em
virtude de ter o segurado laborado em atividades que
desgastam mais intensamente sua força de trabalho
do que as demais atividades. Assim, em atendimento
ao princípio da igualdade, em seu aspecto material,
permite-se que aquele trabalhador possa retirar-se do
mercado mais cedo do que o restante.
E se esse é o fundamento, por evidência que não
somente as aposentadorias decorrentes de exposição a
elementos agressivos, mas também as aposentadorias
dos professores e dos trabalhadores rurais também
podem e devem ser consideradas como especiais, visto
que também permitem ao respectivo trabalhador uma
retirada do mercado anterior em relação ao restante38.

Especificamente a aposentadoria especial por exposição a agentes


nocivos desperta três perplexidades básicas.

37Társis Nametala Sarlo Jorge, Segurado Contribuinte Individual –


Configuração legal e Regime Jurídico Previdenciário após a Lei Complementar
123/06; Paraná, Juruá Editora, 2007, p. 30.
38Társis Nametala Sarlo Jorge, Manual dos Benefícios Previdenciários (De

acordo com a EC 47/05 – Benefícios do RGPS (INSS) e dos Servidores Públicos


(e atuação do Tribunal de Contas), Editora Lumen Juris, RJ, 2006, p. 215.
A primeira diz respeito a alguém que trabalhou em uma atividade
sempre considerada especial, mas que em tempos pretéritos, em relação
a tal condição, não eram exigidas provas que vem a ser exigidas
posteriormente. Não é a hipótese que nos interessa.

A segunda, que é a que pretendemos explorar, é aquela em que


um segurado trabalha um período em atividade especial e outro em
atividade comum.

A terceira, também de necessária abordagem, diz respeito a um


segurado que trabalha em uma atividade que era considerada especial
em um determinado tempo e, posteriormente, vem a ser considerada
atividade comum.

Tanto a segunda quanto a terceira suscitam a questão da


conversão do tempo de serviço, seja especial em comum, seja de comum
para especial. E, evidentemente que, em tais conversões, haverá fatores
multiplicadores de acordo com o peso daquele período de trabalho.

Há algumas controvérsias acerca da possibilidade da conversão


de tempo especial em comum e vice-versa. Como não é nosso tema,
asseveramos apenas que a jurisprudência tem admitido a conversão de
tempo especial em comum.

O que desejamos realçar é que nosso direito admite a


contabilização proporcional do tempo de contribuição em situações em
que cada mês trabalhado em uma e em outra atividade (especial e
comum, ou o contrário) tem um valor diferente.

Confira-se o seguinte julgado:

“PREVIDENCIÁRIO. APOSENTADORIA POR


TEMPO DE SERVIÇO. CONVERSÃO DE TEMPO
ESPECIAL EM COMUM. POSSIBILIDADE. LEI
8.213/91, ART. 57, §§ 3º E 5º. O segurado que presta
serviço em condições especiais, nos termos da
legislação então vigente, e que teria direito por isso à
aposentadoria especial, faz jus ao cômputo do tempo
nos moldes previstos à época em que realizada a
atividade. Isso se verifica à medida em que se
trabalha. Assim, eventual alteração no regime ocorrida
posteriormente, mesmo que não mais reconheça aquela
atividade como especial, não retira do trabalhador o
direito à contagem do tempo de serviço na forma
anterior, porque já inserida em seu patrimônio jurídico.
É permitida a conversão de tempo de serviço prestado
sob condições especiais em comum, para fins de
concessão de aposentadoria. Recurso não conhecido.”
(Superior Tribunal de Justiça, Quinta Turma, RESP
433441/RN, Relator Ministro Felix Fischer, unânime,
DJ 07.10.2002.)

Assim se manifestou o relator em seu voto condutor:

O segurado que presta serviço em condições


especiais, nos termos da legislação então vigente, e
que teria direito por isso à aposentadoria especial, faz
jus ao cômputo do tempo nos moldes previstos à época
em que realizada a atividade.

Mais adiante consigna de forma cristalina:

Isso se verifica à medida em que se trabalha.


Assim, eventual alteração no regime ocorrida
posteriormente, mesmo que não mais reconheça
aquela atividade como especial, não retira do
trabalhador o direito à contagem do tempo de
serviço na forma anterior, porque já inserida em
seu patrimônio jurídico. (Grifos nossos).

Portanto, a cada mês laborado e contribuído, o período se


incorpora ao patrimônio de seu titular, devendo ser contabilizado na
forma prevista quando da própria prestação/contribuição, ainda que
haja modificações a posteriori.

Daí que podemos sugerir a mesma solução para a contabilização


de tempo de serviço/contribuição do transexual operado.

Assim, no caso de homem transgenitalizado para mulher, o


período anterior à sua alteração de gênero documentalmente, deverá ser
contabilizado como de homem. E, posteriormente, como de mulher. Isso
significa dizer, a grosso modo, que este indivíduo provavelmente terá
que contribuir mais do que uma mulher biológica e menos do que um
homem biológico. A idade também deverá ficar entre os dois limites.

A situação inversa também importará nestes cálculos


proporcionais e, em ambas as hipóteses, teremos variações de idade e
tempo de serviço/contribuição de acordo com a especificidade de cada
caso.

Cabe ainda, neste tópico, uma última explanação. Estabelecemos


como divisor de águas para a contabilização de idade e tempo de
serviço/contribuição a alteração do gênero da pessoa em sua
documentação pois, ao nosso ver, é a partir deste momento que ele ou
ela passa ter o “novo” gênero.

Mas, evidentemente que ainda assim outras controvérsias


poderão surgir, visto que há decisões da justiça comum dos Estados
permitindo a alteração de gênero em documentos sem que o transexual
tenha se submetido à cirurgia de transgenitalização.

Trataremos do tema no item seguinte.

2.2.2. O caso dos transexuais não operados

Como visto, casos há em que o Poder Judiciário admite a


alteração de gênero nos documentos do indivíduo sem que ele tenha
passado pela multi referida cirurgia.

Com efeito, hodiernamente são encontradiças várias decisões


nesse sentido, de diversos tribunais do país39.

A primeira a colacionarmos é do TJMG:

Data de publicação: 03/04/2017 Tribunal:


TJMG Relator: Yeda Athias Apelação cível - ação de
retificação de registro civil - alteração do prenome e do
sexo - transexual - interessado não submetido à
cirurgia de transgenitalização - princípio constitucional
da dignidade da pessoa humana - possibilidade in
abstracto - instrução probatória - ausência -
cerceamento de defesa - ocorrência - necessidade de
instrução probatória exauriente para o deslinde do
feito. O reconhecimento judicial do direito dos

39Deve-se, outrossim, alertar o leitor da existência de ADI e RE acerca da


matéria, pendentes de julgamento no STF trata-se da Ação Direta de
Inconstitucionalidade 4.275/DF e do Recurso Extraordinário 640.422/RS. No
bojo da ADI 4.275/DF, ajuizada pela Procuradoria Geral da República,
pretende-se atribuir ao artigo 58 da Lei 6.015/73, interpretação conforme à
Constituição da República, viabilizando se aos transexuais a alteração do
prenome e do sexo no registro civil, independentemente de realização de
cirurgia de transgenitalização. Tal processo foi distribuído ao eminente
Ministro Marco Aurélio em 31.07.2009. Por sua vez, no RE 670.422/RS, de
relatoria do eminente Ministro Dias Toffoli, distribuído em 03.02.2012, foi
reconhecida a repercussão geral da matéria referente à possibilidade de
alteração do gênero no assento de registro civil de transexual, mesmo sem a
realização de procedimento cirúrgico de redesignação de sexo.
transexuais à alteração de seu prenome conforme
o sentimento que eles tem de si mesmos, ainda
que não tenham se submetido à cirurgia de
transgenitalização, é medida que se revela em
consonância com o princípio constitucional da
dignidade da pessoa humana.
Presentes as condições da ação e afigurando-se
indispensável o regular processamento do feito, com
instrução probatória exauriente, para a correta solução
da presente controvérsia, impõe-se a cassação da
sentença, sob pena de se configurar o cerceamento de
defesa da parte autora. (TJMG - Apelação Cível
1.0702.14.043172-8/001, Relator(a): Des.(a) Yeda
Athias , 6ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em
07/07/2015, publicação da súmula em 17/07/2015)
(Destaques nossos).

Em seguida, temos do TJRS:

APELAÇÃO CÍVEL. ALTERAÇÃO DO NOME E


AVERBAÇÃO NO REGISTRO
CIVIL.TRANSEXUALIDADE. CIRURGIA DE
TRANSGENITALIZAÇÃO. O fato de o apelante ainda
não ter se submetido à cirurgia para a alteração
de sexo não pode constituir óbice ao deferimento
do pedido de alteração do nome. Enquanto fator
determinante da identificação e da vinculação de
alguém a um determinado grupo familiar, o nome
assume fundamental importância individual e social.
Paralelamente a essa conotação pública, não se pode
olvidar que o nome encerra fatores outros, de ordem
eminentemente pessoal, na qualidade de direito
personalíssimo que constitui atributo da
personalidade. Os direitos fundamentais visam à
concretização do princípio da dignidade da pessoa
humana, o qual atua como uma qualidade inerente,
indissociável, de todo e qualquer ser humano,
relacionando-se intrinsecamente com a autonomia,
razão e autodeterminação de cada indivíduo.
Fechar os olhos a esta realidade, que é
reconhecida pela própria medicina, implicaria infração
ao princípio da dignidade da pessoa humana, norma
esculpida no inciso III do art. 1º da Constituição
Federal, que deve prevalecer à regra da imutabilidade
do prenome. Por maioria, proveram em parte.
(Segredo de Justiça) (Apelação Cível nº
70013909874, Sétima Câmara Cível, Tribunal de
Justiça do RS, Relatora: Maria Berenice Dias, Julgado
em 05/04/2006). (Destaques nossos).

No mesmo tom, o seguinte julgado do TJSE:

Apelação Cível - Retificação de Registro -


Transexual não submetido a cirurgia de
alteração de sexo - Modificação do prenome -
Possibilidade - Autor submetido a situações
vexatórias e constrangedoras todas as vezes em
que necessita se apresentar com o nome
constante em seu Registro de Nascimento -
Princípio da Dignidade da Pessoa Humana -
Alteração do gênero biológico constante em seu registro
de masculino para transexual sem ablação de genitália
- Impossibilidade - Sentença reformada - Recurso
conhecido e parcialmente provido. (Apelação Cível nº
3976/2012, 1º Vara Cível de Estância, Tribunal de
Justiça do Estado de Sergipe, Desa. Maria Aparecida
Santos Gama da Silva , Relatora, Julgado em
09/07/2012)

Pode-se colher, na mesma toada, entendimento do TJSC:

Apelação cível. Ação de retificação de registro


civil de nascimento para alteração de prenome e
redesignação de sexo. Procedência na origem. Apelo do
ministério público insurgindo-se contra a mudança do
gênero no registro civil sem que tenha sido realizada a
cirurgia de transgenitalização. Recurso conhecido e
desprovido. "A retificação do prenome e do gênero
no registro no registro civil possibilita o exercício
dos atos da vida civil e o convívio em sociedade,
sem constrangimento ou discriminação, e realiza
o direito da autora à dignidade humana, à
identidade sexual, à integridade psíquica e à
autodeterminação sexual. Não se pode
condicionar a retificação do registro civil à
realização de cirurgia de transgenitalização, que
tem alto custo e impõe riscos, porque o que se
busca tutelar é a identidade sexual psíquica"
(TJSC, Apelação Cível n. 2015.015342-4, Relator:
Domingos Paludo, j. 05-11-2015) (Destaques nossos).
Outras muitas decisões poderiam ser adicionadas às acima
transcritas, mas serviriam apenas para demonstrar o que já resta
provado.

Sobre o tema, ainda, deve-se ter em conta a decisão do STJ tanto


no RESp. 1.043.004, de relatoria do Ministro Marco Buzzi (05/08/13) e
no REsp. 876.672, de relatoria do Min. João Otávio de Noronha
(05/03/2010) no sentido de que a retificação oriunda de decisão
judicial somente pode ter tal circunstância assinalada no livro
cartorário, vedada a menção a respeito nas certidões do registro
público, para que não se mantenha a situação vexatória.

Neste caso, entendemos que a solução deverá ser a mesma dos


transexuais operados, devendo ser considerado ponto de alteração de
contabilização de tempo de serviço/contribuição e idade a modificação
documental.

Cumpre ainda salientar a existência de recente decisão do


Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, em matéria penal, o
que realça inclusive o sentido da marcha jurisprudencial nesse sentido.
Isto porque, para o enquadramento nos moldes da conhecida Lei Maria
da Penha (Lei 11.340/06), é necessário que a vítima seja mulher.
Portanto, mulher, na dicção penalista, é elementar do tipo.

E, como se sabe, em Direito Penal vige o princípio da legalidade


estrita. A princípio, se o tipo não prevê tal conduta ou outro elemento
de determinada conduta (comissiva ou omissiva), o fato é atípico e,
portanto, não constitui crime.

Pois bem, o TJRJ, ao cuidar da questão, afirmou:

Passando a análise da competência, entendemos


tratar-se de violência doméstica familiar. Nota-se pela
narrativa dos fatos que, ao menos em tese, está
ilustrado um típico caso de reprodução da cultura
machista e patriarcal arraigada em nossa sociedade,
de modo que deve a pessoa aceitar o sexo biológico
“escolhido por Deus.
Verifica-se que a vítima, já internada na clínica,
foi submetida a uma série de constrangimentos, tendo
inclusive sido “raspado” seu cabelo (fl. 05), em clara
violação aos direitos fundamentais da mesma, ferindo
o princípio da dignidade da pessoa humana,
consagrado no art. 1º, III, da CRFB. (...) COM EFEITO,
APESAR DE NÃO TER SIDO SUBMETIDA AINDA À
CIRURGIA DE TRANSGENITALIZAÇÃO, A VÍTIMA SE
CONSIDERA MULHER. (...)
Há que se reconhecer que outro ponto nevrálgico
do tema se refere à incidência da Lei Maria da Penha
nas relações homoafetivas. O parágrafo único do art.
5.º da lei em exame dispõe que AS RELAÇÕES
PESSOAIS ALI REFERIDAS INDEPENDEM DA
ORIENTAÇÃO SEXUAL ”. 40

Assim, evolui a jurisprudência para um posicionamento


dominante no sentido de entender que ainda que não operado, o
transexual deverá ser considerado de acordo com sua opção de gênero,
independentemente do sexo biológico.

No entanto, em outros casos, há transexuais que, além de não


transgenitalizados, também não obtiveram manifestação judicial
autorizando a troca de nome em seus documentos.

Neste caso, diversamente, aventamos que a solução é não admitir


a alteração da contabilização junto ao respectivo regime previdenciário.
É necessário um grau razoável de segurança jurídica, para evitar
abusos que poderiam advir de algo tão importante quanto o
reconhecimento de tais direitos fundamentais dos transexuais. Aliás,
nos precedentes da Corte Européia de Direitos Humanos alteração
previdenciária foi autorizada a transexuais operados e com alteração
documental, ainda que perante a previdência social.

3. A questão da pensão por morte – um caso


especial
Em relação ao RGPS e aos RPPS, não há o que se questionar
acerca da transexualidade e a pensão por morte, visto que a lei não
traça distinções entre homem e mulher.

No entanto, no regime previdenciário dos militares, com especial


atenção para a Lei 3765/60, vê-se que, em sua redação original (antes
do advento da Medida Provisória 2.215-10 de 31 de agosto de 2001, em
especial em seu art. 7º, podíamos observar o seguinte:

Art. 7º . A pensão militar defere-se na seguinte


ordem:
I – à vúva;
II – aos filhos de qualquer condição, exclusive
os maiores do sexo masculinos, que não sejam
interditos ou inválidos;
(...)

40Processo 0018790-25.2017.8.19.0004.
V – às irmãs germanas e consanguíneas,
solteiras, viúvas ou desquitadas (...)
VI – ao beneficiário instituído, desde que viva na
dependência do militar e não seja do sexo
masculino e maior de 21 (vinte e um) anos, salvo
se for interdito ou inválido permanentemente.

A redação atual não mais prevê a distinção entre filhos e filhas,


concedendo a ambos os mesmos direitos. No entanto muitas pensões
estão ainda em vigor, concedidas sob o pálio da Lei 3760/60.

Assim, o que cabe perquirir é se, para o percebimento de tais


pensões, a transexualidade tem qualquer consequência. Ao nosso ver, e
diante de tudo que defendemos até agora, a resposta é positiva. A filha
que se torna transexual para o gênero masculino, deve ser tratada
agora como homem e perderá a pensão a partir do reconhecimento
judicial.

A contrario sensu, o filho que se transexualiza para o gênero


feminino, passa a ter o direito à pensão, evidentemente, se cumprir os
demais requisitos da legislação específica, ainda que essa
transexualização se dê após a morte do instituidor da pensão. Pensar ao
contrário seria estabelecer uma injusta diferença entre aqueles que já o
eram quando da morte do militar e os que se tornaram depois, uma vez
que a morte tenha se dado ainda sob a égide da regulamentação antiga.

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