Resumo
No século V, os pensadores cristãos Agostinho de Hipona e Pelágio da Bretanha
desenvolverem uma polêmica em torno dos conceitos de natureza e de graça. As
concepções de Pelágio ficaram conhecidas como a heresia do pelagianismo. Pelágio
acreditava que o homem poderia evitar o pecado pelo próprio esforço. Agostinho dizia
que não. Para isso, o homem dependeria da graça divina, pois esse pensamento
pelagiano negava o sacrifício salvífico de Jesus na cruz. A polêmica interessa à
antropologia filosófica por discutir a natureza do homem e os conceitos de liberdade e
de vontade.
1. Introdução
1
Texto-referência para a comunicação no estudo de antropologia filosófica de 14/03/2021.
1
ocorre dentro de sua polêmica com Pelágio (350-423). Segundo alguns, Pelágio era um
monge originário das Ilhas Britânicas. Por motivos de decadência moral dos cristãos de
Roma para onde se mudou, escreveu a obra De Natura na qual defendia a capacidade
natural do ser humano em ser virtuoso, independentemente da intervenção divina. Sua
obra reflete um otimismo em relação à natureza do ser humano e demonstra uma
confiança que o homem pode ser bom pelo seu próprio esforço. Seus posicionamentos
se chocaram com algumas doutrinas católicas e seus oponentes o acusaram de três
heresias: a negação do pecado original e de que a graça de Deus seja essencial para a
salvação e a defesa de que o homem pode usar sua liberdade para decidir seu destino.
Ele se baseava no fato de que há pessoas que decidem voluntariamente resistir a tudo
que se refere a Deus.
As crenças de Pelágio influenciaram a Igreja Católica de sua época. Elas foram
consideradas uma heresia e ficou conhecida como pelagianismo. A polêmica
antipelagiana se iniciou no norte da África em 411 e se deslocou para região oriental do
Império Romano. Pelágio difundiu suas ideias em Roma, no norte da África e na
Palestina. Essa polêmica durou até o Concílio de Éfeso de 431 que condenou o
pelagianismo. Agostinho foi o principal polemista contra os pelagianos na África.2 Os
monges de Adrumeto receberam a obra de Pelágio e a enviaram a Agostinho para
análise. Então, a obra de Agostinho surge como resposta à de Pelágio.
Antropologicamente, a concepção pelagiana da natureza considera o homem como
saudável, capaz de emendar-se e fazer o bem. Para ele o evangelho não era impossível
de ser cumprido. O esforço levaria o homem à perfeição moral. O homem possui todas
as habilidades e competências necessárias para viver uma vida moral correta. A graça
necessária para isso já foi depositada no homem por Deus.
Por outro lado, Agostinho tem uma consideração pessimista da natureza
humana. Ele acreditava que ela foi criada boa, mas foi corrompida pelo pecado original.
Portanto, no estado atual da humanidade, o homem necessita da graça divina para
conseguir ser fiel ao propósito de uma vida moral boa. O enfraquecimento da natureza
na queda original foi transmitido às gerações posteriores. Uma vez corrompido, o
homem depende da colaboração divina para a salvação. Esse auxílio divino é dado
independente dos méritos: Gratia gratis data, unde et gratia nominatur.
2
REIS, Raphael Leite. O discurso de Agostinho de Hipona contra o pelagianismo a partir da obra De
gestis Pelagii: identidade, diferença, católicos e hereges no século V d.C. Dissertação de Mestrado.
Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2017, p. 15.
2
A cooperação humana age com a graça. A natureza e a graça são forças
coadjuvantes: Gratia non tollit, sed perficit naturam. A graça não age contra a natureza
e nem comprime a liberdade, mas as aperfeiçoam. Pelágio também acreditava que a
graça pode ser uma ajuda a mais, no entanto, o homem não seria inteiramente
dependente dela. Da polêmica entre Agostinho e Pelágio, se consolidaram as doutrinas
católicas ocidentais do pecado original, da graça, da predestinação e da satisfação
vicária. Todas essas doutrinas têm suas origens na literatura paulina. Esses temas serão
resgatados e se tornarão os principais motivos teológicos da Reforma Protestante do
século XVI.
2. A natureza e a graça
3
é um auxílio de cooperação com a natureza e é gratuita, não depende do mérito de
algum homem.
Pelágio considera que o pecado é individual. Quando as Escrituras afirmam que
todos os homens pecam, diz isso em termos de possibilidade. Todo homem está sujeito
a pecar, no entanto, o homem pode usar a sua vontade e liberdade para não o fazer. As
próprias Escrituras mostram exemplos de homens irrepreensíveis. Abraão foi um
homem justo. Isso equivale a dizer que um homem pode por seus esforços viver uma
vida moral sem erros. Ele não descarta a possibilidade da graça e nem do auxílio da
oração. Há pecados leves que são quase inevitáveis. Pelágio não defende a absoluta
perfeição do homem, mas sua possibilidade de não cometer pecados graves. No entanto,
é otimista em relação à natureza humana. O pecado não é fraqueza da natureza humana,
mas negligência individual. Enfim, o pecado não é uma condição inevitável como
Agostinho ensinava.
Como consequência da postura pelagiana, uma criança ou um adulto que
viveram em um tempo e lugar nos quais não tiveram acesso à pregação cristã e nem ao
batismo, podem salvar somente pela fé em Deus. A salvação pode ocorrer por
presunção de inocência do evento Cristo. Para Agostinho, não é possível. Em qualquer
circunstância, prescindir-se da redenção de Cristo é anular o seu ato salvífico da cruz.
Isso quer dizer que povos de cultura e de religiões que desconhecem o cristianismo não
podem ser salvos por não terem acesso à pregação de Cristo. Visto que suas naturezas
permanecem corrompidas, eles não podem conhecer a verdade e fazer o bem segundo a
vontade divina. Ao seguir, as argumentações de Paulo na Carta aos Romanos,
Agostinho não aceita a possibilidade de salvação fora da fé em Cristo. A lei natural é
somente um guia. É a graça que possibilita com que o homem não reincida no erro.
4
seria possível aprender a não errar.3 Os ensinamentos de Pelágio têm reflexos de
posturas filosóficas antigas.
Aristóteles considerava que a vida virtuosa se aprende com a prática. Quanto mais
você pratica a virtude, menos erro irá cometer. Os estoicos acreditavam em semelhante
ideia. Conforme sua doutrina moral, o sábio poderia chegar à perfeição das virtudes
pelo uso da razão e pela prática. Zenão de Cítio tinha o sábio como o modelo da
perfeição moral. Isso porque esses antigos filósofos acreditavam no poder da razão e de
sua capacidade de moldar as paixões e os vícios.
A antropologia pelagiana tem uma preocupação de cunho moral. Ele quis provar que
não há desculpas para o pecado. O homem pode vencer o mal pela força de sua
natureza. Ele se apoia na tradição escriturística apegando-se a exemplos de homens que
viveram uma vida justa. Seu ponto difere de Agostinho por não considerar os problemas
teológicos gerados pela literatura paulina. Pelágio considera a natureza humana como
única no espaço e no tempo. A responsabilidade do fracasso e dos acertos é individual.
Duas condições são (…) exigidas para fazer o bem: um dom de Deus, que é a
graça, e o livre-arbítrio. Sem o livre-arbítrio, não haveria problemas; sem a
3
HIPONA, Agostinho de. A graça (I). A natureza e a graça. Tradução de Agostinho Belmonte. São
Paulo: Paulus, 1998, p. 52-53.
4
SANTOS, Wesley Pires. A concepção de homem em Agostinho. Disponível em: <
http://famariana.edu.br/blog/2017/10/03/a-concepcao-de-homem-em-agostinho/>. Acesso em 11 mar.
2021.
5
graça, o livre-arbítrio (depois do pecado original) não iria querer o bem ou, se
o quisesse, não poderia realizá-lo. A graça, portanto, não tem o efeito de
suprimir a vontade, mas sim de torná-la boa, pois que se havia transformado
em má. Esse poder de usar bem o livre-arbítrio é precisamente a liberdade. A
possibilidade de fazer o mal é inseparável do livre-arbítrio, mas o poder de
não fazê-lo é a marca da liberdade – e encontrar-se confirmado na graça a
ponto de não poder mais fazer o mal é o grau supremo da liberdade. Assim, o
homem que está mais completamente dominado pela graça de Cristo é
também o mais livre: libertas vera est Christo servire. (REALE; ANTISERE,
1990, p.458).
5. Considerações finais
5
HIPONA, Agostinho de. O Livre-arbítrio. São Paulo: Paulus, 1995, p. 80-86.
6
SILVA, Nilo César B. A antropologia de Agostinho de Hipona, fortitudo corporis na hierarquia dos bens
criados. Dissertatio, 44, 2016, p. 170 – 186.
6
Portanto, entre Pelágio e Agostinho, há duas abordagens sobre a natureza do
homem totalmente distintas. Eles quiseram enfatizar aspectos diferentes e acabaram
gerando uma polêmica. As perguntas que ficam são: a) Seria lógico derivar uma
descrição atual da natureza humana a partir de um mito de origem (Gênesis)? b) Como
sustentar a hereditariedade do pecado original se a ciência hoje sabe que a humanidade
desenvolveu a partir de pontos distintos? c) Como conceber uma noção de isenção de
pecados se há diversos códigos morais nas culturas e estamos sempre em choque com
alguma norma? São antropologias que podem ser entendidas somente no contexto da
religião crist. E, é claro, para tomá-las como referências há que se universalizarem os
conceitos do cristianismo para todas as culturas.
Por fim, as duas posições estudadas representam uma clássica discordância sobre
se o homem é naturalmente bom ou mal. Na Idade Moderna, encontramos a mesma
oposição no pessimismo de Thomas Hobbes e no otimismo de Jean-Jacques Rousseau.
No entanto, esses enfatizam as dimensões políticas e educacionais do ser humano. Em
suma, o bem e o mal sempre estarão com o ser humano. Esse é o desafio para a
perfeição moral, mas também representam seu grande atributo: a liberdade.
Referências:
7
SANTOS, Wesley Pires. A concepção de homem em Agostinho. Disponível em: <
http://famariana.edu.br/blog/2017/10/03/a-concepcao-de-homem-em-agostinho/>.
Acesso em 11 mar. 2021.