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Ficou numa atitude inerte, espavorida;


"O meu pai, já não vês o olhar?'; perguntou Tsila;
Introdução
Respondeu: "Não me larga a tétrica pupila!':
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Victor Hugo, "A consciência"
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Procedente, nas suas, raízes, da Filologia e da escola históri-


ca alemãs oitocentistas, houve no século xx um reconhecimento
categórico de que a linguagem está no centro de toda atividade
humana. Sabe-se hoje que, sendo ela produzida pelo complexo
jogo de relações que os homens estabelecem entre si e com a rea-
'.
,. lidade, ela passou também a ser, a partir do próprio momento de
~
~ sua constituição, um elemento modelado r desse mesmo conjun-
to de relações.' A linguagem se torna, dessa forma, como que um
elemento praticamente invisível de sobredeterminação da expe-
riência humana, muito embora ela tenha uma existência concre-
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».: ta e onímoda. Foi a sua natureza ambígua oscilante entre o pal-

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pável e o impalpável, simultaneamente material e imaterial, que
suscitou num poeta essa imagem ao mesmo tempo muito estra-
~ nha e muito lúcida, pressentindo-a:
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[,..] comme le vent des greves, 7",.. .: •. :'
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Qui caresse l'oreille et cependant l'effraie.' ,. ,- .


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conjunto de significados condensados na sua dimensão social.'
Fonte do prazer e do medo, essa substância impessoal é um
'I~11'; .'.~\Afinal, todo escritor possui uma espécie de liberdade condicio-
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recurso poderoso para a existência humana, mas significa tam-
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bém um dos seus primeiros limites. As potencialidades do ho-


L/.I nal de criação, uma vez que os seus temas, moti;~'~, v~l~res, ~or- .j
}}W/..' .~. mas ou revoltas são fornecidos ou sugeridos pela sua sociedade
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mem só fluem sobre a realidade através das fissuras abertas pe-
e ,seu tempo - e,é destes que eles falam.' Fora de qualquer dú-
las palavras.' Falar, nomear, conhecer, transmitir, esse conjunto
vida: a literatura é antes de mais nada um produto artístico, des-
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de atos se formaliza e se reproduz incessantemente por meio da
tinado a agradar e a comover; mas como se pode imaginar uma
fixação de uma regularidade subjacente a toda ordem social: o
discurso. A palavra organizada em discurso incorpora em si, des-
árvore sem raízes, ou como pode a qualidade dos seus frutos não ::1
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\O depender das características do solo, da natureza do clima e das l'.~;1;
se modo, toda sorte de hierarquias e enquadramentos de valor (J c'
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condições ambientais?
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intrínsecos às estruturas sociais de que emanam. Daí por que 0'(
O estudo da literatura conduzido no interior de uma pes- ~~t
discurso se articula em função de regras e formas convencionais, :i
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quisa historiográfica, todavia, preenche-se de significados muito i
cuja contravenção esbarra em resistências firmes e imediatas.'
peculiares. Se a literatura moderna é uma fronteira extrema do dis- .,
1

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Maior, pois, do que a afinidade que se supõe existir entre as pa-, <;~r'
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, ,;,~~}o ~", curso e o pioscênio dos desajustados, mais do queo testemunho

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' lavras e o real, talvez seja a hom?lop~a que elas guardam c0!ll o' ,)J- ~
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,·!;ti! da sociedade, ela deve trazer em si a revelação dos seus focos mais,' ~~~
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candentes de tensão e 'a mágoa dos aflitos. Deve traduzir no seu
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Dentre as muitas formas que assume a produção discursiva,
a que nos interessa aqui, a que motivou este trabalho, é a litera- ,'j~{ .,
âmago mais um anseio de m~,~-ºça do que os mecanismos da
permanência. Sendo um produto do desejo, seu compromisso l,
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" tura, particularmente a literatura moderna. Ela constitui possi- : -~\-~l~~
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maior com a fantasia do que com a realidade. Preocupa-se com ~ ~ ~~


velmente a porção mais dúctil, o limite mais extremo do discur-v -.!~.,-o, ~~~t
aquilo que poderia ou deveria ser a ordem das coisas, mais do - -S-
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" so, o espaço onde ele se expõe por inteiro, visando reproduzir-se,
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que com o seu estado real.


;- . t· mas expo~do-se ~gualmente à infiltração corrosiva. da dúvida e '}~Lo Nesse sentido, enquanto a Historiografia procura o ser das-
da perplexidade. E por onde o desafiam também os mconforma-~4;j
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i dos e os socialmente mal-ajustados. Essa é a razão por que ela ~:;;1 /, 'c estruturas sociais, a literatura fornece uma expectativa do seu'
vir-a-ser. Uma autoridade tão conspícua quanto Aristóteles já se
..., aparece como um ângulo estratégico notável, para a avaliação-6! --,.~". .
, havia dado conta desse contraste. Comentava ele na sua poética:
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r. das forças e dos níveis de tensão existentes no seio de determina- \ ;:,~'- ..,:)
da estrutura social. Tornou-se hoje em dia quase que um truís- ,:2" ~. ''-~~~~1
mo a afirmação da interdependência estreita existente entre os '. ':1 Com efeito, não diferem o historiador e o poeta por escreverem

estudos literários e as ciências sociais.' . F~t verso ou prosa (pois que bem poderiam ser postas em verso as
obras de Heródoto, e nem por isso deixariam de ser de história, se
.; ..•. ,': A exigência metodológica que se faz, contudo, para que não ·:é~:.
"[' fosse em verso o que eram em prosa) - diferem, sim, em que diz
se regrida a posições reducionistas anteriores, é de que se preser-··A
um as coisas que sucederam, e outro as que poderiam suceder.'
ve toda a riqueza estética e comunicativa do texto literário, cui- '.;~
dando igualmente para que a produção discursiva não perca o '.~
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\~ .. Ocupa-se portanto o historiador da realidade, enquanto o consumidas. A produção dessa Historiografia teria, por conse- '-~
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"',"!'" escritor é atraído pela possibilidade. Eis aí, pois, uma diferença
't! qüência, de se vincular aos agrupamentos humanos que ficaram
crueial, a ser devidamente considerada pelo historiador que se marginais ao sucesso dos fatos. Estranhos ao êxito mas nem por ~,
serve do material literário.
isso ausentes, eles formaram o fundo humano de cujo abandono
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Mas e se invertermos as perspectivas: qual a posição do es- e prostração se alimentou a literatura. Foi sempre clara aos poe- 'JJ
critor diante da história? Quem nos responde é um crítico con- };\
tas a relação intrínseca existente entre a dor e a arte." Esse é o ca- .~
temporâneo.
minho pelo qual a literatura se presta como um índice admirá- .\1jf
vel, e em certos momentos mesmo privilegiado, para o estudo da s
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A História, então, diante do escritor, é como o advento de uma história social. I~r,
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opção necessária entre várias morais da linguagem; ela o obriga a O caso em estudo é típico. As duas primeiras décadas desse
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significar a Literatura segundo possíveis que ele não domina.' século experimentaram a vigência e o predomínio de correntes .!,<1

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,}J':v' ! realistas de nítidas intenções sociais. Inspiradas nas linhagens in-' .-:
A história, assim, ao envolver um escritor, o arroja contra- Jo ).o/" .
telectuais características da Belle Epoque - utilitarismo, libera-
ditoriamente para fora de si. Para que ele cumpra o papel e o des- lismo, positivismo, humanitarismo -, faziam assentar toda a sua
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tino que lhe cabem, é necessário que se perca nos meandros & k
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energia sobre conceitos éticos bem definidos e de larga difusão i·,t.f.
possíveis inviáveis. Desejos inexeqüíveis, projetos impraticáveis: em todo esse período. Assim, abstratos universais como os de hu-
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.:.\ todos, porém, produtos de situações concretas de carência e pri- manidade, nação, bem, verdade e justiça operavam como os pa- Si
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vação' e que encontram aí o seu âmbito social de correspondên- ej);'"
drões de referência básicos, as unidades semânticas constitutivas :~~
cia, propenso a transformar-se em público leitor. ";1l
:-- ...;- dessa produção artística. O dilema entre o impulso de colaborar
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A literatura, portanto, fala ao historiador sobre a história ~~;
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:', para a composição de um acervo literário universal e o anseio de
,,} que não ocorreu, sobre as possibilidades que não vingaram, so- i:'.jf;' interferir na ordenação da sua comunidade de origem assinalou --:::--.
bre os planos que não se concretizaram. Ela é o testemunho tris- -'t.~~ a crise de consciência maior desses intelectuais. ,~'j/!.,If.i
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te, porém sublime, dos homens que foram vencidos pelos fatos. . ~~,··~,··"li
- .. A leitura dos seus textos literários nos levou a perscrutar o, ~ _ 1·1
Mas será que toda a realidade da história se resume aos fatos e ao ~:;: "

seu cotidiano, familiarizando-nos com o meio social em que con-j:~, ,A:;'lJJ..::>


seu sucesso? Felizmente, um filósofo bastante audacioso nos re- /~
i'i viviam: a cidade do Rio de Janeiro no limiar do século xx. As pos- .

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dimiu dessa compreensão tão estreita, condenando "o 'poder da
história', que, praticamente, se transforma, a todo instante, numa
~i turas, as ênfases, as críticas presentes nas obras nos serviram como
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guias de referência para compreendermos e analisarmos as suas
~; admiração nua do êxito que leva à idolatria dos fatos': 10 tendências mais marcantes, seus níveis de enquadramentos sociais _ ~~,
"T\ Segundo um outro pensador, esse nosso contemporâneo, "o
·t,:,)' " e sua escala de valores. O material compulsado: a imprensa perió- '\ ;;:f/-::-
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\'~~al não se subordina ao possível; o contingente não se opõe ao (". -~"


,~ ...•"". dica (jornais, magazines), crônicas, biografias e opúsculos. Ato " ,
.{,,-, necessário"." Pode-se, portanto, pensar numa história dos dese- t ·jt
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,;:. contínuo, esse material vultoso nos forneceu indicações precio- !~,I.I

. jos não consumados, dos possíveis não realizados, das idéias não sas, que urgiram a releitura e a reinterpretação das obras literá-
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rias. Dessa forma, os textos narrativos nos ajudaram a iluminar ,{éial repousava sobre insólitas clivagens existentes no interior do
a realidade que Ihes era imediatamente subjacente, e o conheci- (~~'1ini~erso
social da Primeira República, com que as suas obras se
mento desta contribuiu para deslindar os interstícios da produ- ~~L~f;;~'(:s6lidarizavam.
Seus livros distinguem-se ainda por isso, pela
~. . 1-:) I
...:l.ção artística, ;"--»,)j.') ",,~~, fu/i"(),.,,. 18)f'ú:ansparência com que resumem nas propostas e respostas esté-
à;v-<»' Uma pesquisa abrangente dos meios intelectuais, com uma ;~~!:f:tcas os conflitos mais agônicos que' marcaram a sociedade bra-
~ii,,'~~' .
c•.C:~ amostragem geral da sua produção no tocante aos temas, crité- ~~';;si1eira nessa fase. Cada um deles é como que uma síntese das al-
·i::~·:\;j{·,·~:,:
rios, objetivos e disposições, permitiu-nos avaliar as peculiarida- ;!~:teJ:'llativas históricas possíveis, que se colocavam diante dos olhos
des dessa pequena comunidade e a sua ânsia de enraizar-se num ~~;,~'dos autores, pelas quais lutaram energicamente, derrubando
substrato social mais amplo. Demonstrou-nos igualmente o quan- ':5,i;:.~Il!ºinhosde vento para o sorriso desconfortável dos poderosos.
to a sua produção se vincava conforme o ritmo e o sentido das .Esta é a história daquela batalha contra os moinhos e da sua tris- \
I
transformações históricas que agitaram a sociedade cario~a nes- te derrota.
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-: se período. Orientaram-nos, nesse momento da pesquisa, não só
~- i; a leitura de obras expressivas, mas também uma sondagem mais
" (comPleta das práticas de edição, das expectativas do público, da
:.~/{ atmosfera cultural criada na cidade, dos pontos de encontro, as-
.~~, ) sociações d~i~t~-;"ess'~-;;i~~iciadés'que distinguiam a comunida-
-;,,':.~\ de dos homens de letras.
I

Do interior desse panorama mais complexo que entrecruza


os níveis social e cultural, sobressaem-se com grande destaque as
y obras de Euclides da Cunha e Lima Barreto. Nenhuma outra apre-

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i~.:...:..
...,...•.':',~.~.
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sentava tantos e tão significativos elementos para a elucidação,
quer das tensões históricas cruciais do período, quer dos seus di-
lemas culturais. Mas mais notável ainda que o seu relevo indivi-
dual era a contradição irremissível que opunha a obra de um à de
outro. Contraste centrado nos processos de elocução radicalmen-
I
!,
I

v, • \j- te opostos de cada escritor, ele se estendia para todo o conjunto I!


;, y;' . da sua produção literária, atestando um estranho e completo di-
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, vórcio intelectual entre dois autores, cujas condições gerais de
, .' vida e cuja militância pública denotavam uma enorme seme- 'j,,~,I',:,,'
, lhança.{' :'.'..
'l O estudo mais detido de cada um desses conjuntos de tex- .;.~:.:."
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tos deixaria entrever com clareza que o seu antagonismo essen-··,Ii
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