ENCOMENDA
PARA UM
NOVO
MUNDO
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UMA
ENCOMENDA
PARA UM
NOVO
MUNDO
Deco
Sampaio
ROMANCE
VENCEDOR
O GRIFO WATTYS
2016
O GRIFO
2021 3
2020
© Deco Sampaio 2021
Preparação e revisão
Danilo de Albuquerque
ISBN 978-65-990918-3-4
21-55623 CDD-B869.308762
Índices para catálogo sistemático:
1. Ficção científica: literatura brasileira B869.308762
Cibele Maria Dias — Bibliotecária — CRB-8/9427
www.ogrifo.com.br
/ogrifo
/ogrifoeditora
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ANDO POR NUVENS
ANDO POR FLORESTAS
ANDO POR SANGUE
ANDO POR FUGA
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ANDO POR REDENÇÃO
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ANDO POR AMOR.
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-
apresentacao
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Rodrigo C. Pereira
Que a vida não basta e a literatura venha em nosso socorro é tese an-
tiga e ainda em voga. Amarrados a uma linha temporal, a um recorte do
espaço, a um corpo canhestro e fadado ao desaparecimento, aspiramos a
horizontes mais amplos do que os disponíveis; e a arte literária tem sido
nosso consolo nessa inescapável condição.
Em nossos saltos para além das constrições presentes, lemos e es-
crevemos utopias para sonharmos; e, desde o século 20, escrevemos e
lemos distopias para lidarmos com nossos pesadelos. A ficção científi-
ca, embora não seja proprietária desses dois subgêneros, é que nos tem
apresentado seus exemplos mais marcantes.
Deco Sampaio é um escritor de ficção científica. Não que ele seja um
especialista, dado que explora com sua pena outras geografias literárias,
inclusive a poesia. Mas Deco tem a vocação para essa alquimia de arte e
ciência, de possível e impossível, de sonho e técnica.
Uma encomenda para um novo mundo, seu romance de estreia, foi
sucesso de público e crítica no Wattpad, plataforma digital de autopu-
blicação, síntese feliz de “editora”, biblioteca e rede social. Em 2016, ano
em que ingressei no Wattpad, o livro do Deco havia vencido o Wattys, o
mais cobiçado prêmio de lá. Também foi agraciado com o Prêmio Lín-
guas & Amigos e o Prêmio Drummond. Os comentários aos capítulos
da obra, em sua maioria carinhosos, eram constituídos em grande parte
por manifestações de surpresa e de interesse pelos próximos (o processo
de publicação no Wattpad lembra o dos folhetins do século 19), o que
mostra o quanto o autor soube manejar a trama futurista em que Tomás
Waldmann desperta do coma em um Brasil distante, no tempo e na con-
figuração social, das memórias do perplexo protagonista.
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Um Brasil em que as relações entre homens e natureza tendem à
harmonia e uma nova economia coloca o país como exemplo no con-
certo das nações. Uma utopia, portanto, em tempos nos quais a sci-fi
está saturada de pessimismo, vide o sucesso da série Black Mirror. O que
explicaria, então, o sucesso de um livro que nadava contra a corrente?
Sigamos além da qualidade do enredo; eu diria que a vitória do livro
de Deco está na esperança, essa incansável. Mas uma esperança funda-
da em premissas verdadeiras: o autor, ele mesmo cientista, ele mesmo
ambientalista, ele mesmo um homem que dedica a vida a encontrar so-
luções, construiu um universo em que as inovações tecnológicas não
saem do ar, mas de pesquisas existentes, cuja aplicação dependeria de
vontade política. Perguntei-lhe certa vez por que motivo ainda não es-
crevera um livro de divulgação científica, a exemplo de um dos seus
autores preferidos, Carl Sagan; Deco me respondeu que já teria feito isso
em grande parte no seu primeiro romance.
A resposta foi surpreendente, porque Uma encomenda para um novo
mundo não é um livro paradidático. Trata de busca da identidade, como
tantos livros de Philip K. Dick; trata de novas disposições sociológicas,
como tantos livros de Asimov; trata de amor e sacrifício, como tantas
grandes obras, de ficção científica ou não.
De 2016 para cá, uma boa amizade vem se desenvolvendo entre mim
e Deco, um homem inteligente e íntegro. Isso foi possível por meio da
tecnologia de comunicação, que permitiu o encontro de um obscuro
escritor maranhense com o cientista, ficcionista e músico do Paraná.
No passado, alguma mente imaginativa vislumbrou coisas assim;
que a esperança vislumbrada por nosso autor, portanto, se concretize.
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O jovem militar encarregado de cuidar da moça foi ver o baú. Ve-
lharia. Cadernos, agendas, velhos postais, folhas com anotações, pala-
vras quase apagadas. Sabia que eram coisas pessoais e isso talvez aju-
daria. Separou tudo com carinho. Ele leria tudo para ela. Havia muitos
poemas. Intrigantes. O autor sempre assinava com iniciais.
Soneto Selvagem
Conheço bem quem faz o bem. As tantas janelas da alma que já vi.
Ensinaram-me a ver mais que a casca. Sei o pranto que tem no vão.
Quebrei os templos dos homens vis, doei o que tinham pra fazer jus ao que
vivi.
B. W.
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O que você procura está procurando você.
Jalāl ad-Dīn Muhammad Rūmī
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parte Um
em busca de
lembrancas
, 11
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1
Encontro marcado
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me queima ainda. Meu corpo sofre com a desidratação. A luz incomoda
meus olhos, mas não porque são azuis, sei bem que a cor dos olhos não
tem nada a ver com fotofobia. Nem mesmo com a alma, com benevo-
lência. Qualquer olho se incomodaria com tanta branquidão, com tanto
reflexo. Meu único alento vem da minha boa porcentagem de melanina,
uma proteção contra o sol impiedoso.
Para atingir este momento tive surpreendentes revelações. Enfrentei
uma jornada em busca de lembranças. Tenho boa parte do quebra-cabe-
ça da minha vida montado. Faltam as últimas peças. Que em breve terei.
Irei recapitular o que passei nos últimos meses, em que uma enxur-
rada de memórias, cronologicamente desconexas, de um passado remo-
to, me foi revelada.
Diferente do que se possa pensar, para se ter acesso a esse meu relato,
não será preciso retirar a “caixa-preta” do meu cérebro, não terão de me-
xer nos meus miolos, na minha massa cinzenta, no meu lobo parietal,
no meu cerebelo. Nenhum pensamento precisa ficar preso nos crânios.
Já existe tecnologia para transformar pensamentos em texto mental,
editá-los, lapidá-los e enviá-los ao vento. Alguns saberão sobre minha
jornada, receberão a mensagem.
Talvez alguém com talentos literários escreva um livro ou até pode
ser que façam um filme holográfico. Creio que em alguns anos essa nar-
ração poderá viajar no tempo, ser conhecida por pessoas do passado. É
justamente para essas que tenho interesse que ela chegue. Quem for do
passado achará ainda mais insólito.
Viver no deserto é complicado, poucas espécies se adaptaram. Mi-
lhões de anos foram necessários para se ter os seres que habitam aqui.
Por isso, faz todo sentido que este fatídico encontro seja nessa aridez. Ao
final da minha narrativa vocês vão entender por que digo isso.
Não conheço bem o homem que irei reencontrar. Ele esculpiu mi-
nha vida. Acredito ser a pessoa que trará coerência às minhas memórias.
Preparem-se, em muitos aspectos o que vou contar será estranho, não
linear. Foi assim que tudo me veio. Existe algo linear nos pensamentos,
alguma retidão em todo o trabalho de nossas sinapses? Ainda não digeri
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por completo o que essas lembranças me passaram, é atordoante. Acho
metodologicamente apropriado contar seguindo a ordem vivenciada.
Meu registro vai soar como uma mentira deslavada. Não tem como
ser diferente. Talvez o que reste é sorrir da piada que uma vida pode ser.
Para começar, apesar de minha idade avançada (tenho mais de tre-
zentos anos), meu corpo se assemelha a alguém de 48 anos, e, diante
das circunstâncias, apresento uma saúde resistente. Eu falei que seria
estranho. Fato importante sobre mim: tenho culpa pelo mundo ser o
que é hoje. Ele, no ano 2333, não é ruim, é paradisíaco e justo com a
população. No entanto, algo de ruim se esconde no paraíso. Por isso esta
viagem é necessária.
Um poema reflexivo me vem à mente. Não lembro quando eu o li
pela primeira vez. Acabei decorando-o. Ele tem a essência da minha
extensa vida.
(Gislaine Canales)
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malditas surpresas da vida
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Eu concordava com a estratégia. Boa parte da humanidade não. Afi-
nal, as maiores indústrias de alimentos, energia e combustíveis teriam
de fazer adequações que trariam o que eles chamavam de holocausto
econômico.
Além da restauração de áreas naturais eu previa que o segredo da
mudança do mundo estava, em grande parte, concentrado na agricultu-
ra e na criação de animais. Foi a partir deles que formamos nosso siste-
ma social que, nos anos 2000, avançava para um desastre. Pensava que,
conduzindo essas produções para ideais conservacionistas, seria como
girar a chave para uma melhora. Muitos pensavam como eu. Talvez você
que esteja recebendo essa mensagem também. Claro que tudo associado
a uma mudança comportamental da humanidade de proporções escan-
dalosas. Nem sei se “escandalosa” é o termo mais apropriado. Talvez não
exista adjetivo para dimensionar o tamanho disso.
Era evidente que, com a globalização e o crescimento populacional,
alterações sociais e econômicas, com vistas à conservação da Natureza,
eram necessárias para se ter um desenvolvimento que levasse à uma
melhor qualidade de vida para todos. Parece tolice dizer isso agora que
tudo é tão óbvio, loucura pensar que um dia isso foi polêmico.
Em 2313, acreditem, a Floresta Atlântica, tecnicamente chamada
por nós especialistas de Floresta Ombrófila Densa, a floresta amiga das
chuvas, que foi grotescamente desmatada em um passado trágico, já re-
cobria uma área imensa do Brasil, em especial a do Estado do Paraná,
abrigando a maior diversidade de vida do planeta. Eu presenciei essa
floresta sendo restaurada, foi como um milagre. Enfatizo o “como”, por-
que sei que não foi nada místico, nada mágico. Foi o trabalho como de
um restaurador de obras de arte.
O litoral paranaense, em 2313, já era considerado um dos mais sel-
vagens do Brasil. Após alguns maremotos e a destruição completa de
municípios como Matinhos, Paranaguá, Antonina e dos principais bal-
neários dali, uma extensa praia ocupou o que antes era urbano.
As chamadas comunidades anárquicas instalaram-se em locais pla-
nejados e estruturados no litoral, em todo o Brasil, na verdade. Trou-
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xeram um turismo eficiente e cuidadoso, pesca produtiva e sustentável.
Passei férias nessas comunidades. Nos divertíamos nas águas trans-
lúcidas e mornas, nadávamos com golfinhos que nos ajudavam na pes-
ca, mergulhávamos na companhia de centenas de espécies marinhas,
nos deliciávamos com as comidas das barraquinhas voadoras. Dante,
meu filho, fazia uma coleção com milhares de conchas, toda vez que
íamos. Voltávamos com uma mala de conchinhas. Depois ele as deixava
flutuando em seu quarto, como se fossem estrelas.
Uma rodovia especial foi instalada na Serra do Mar, adaptada para
veículos que funcionam à base de energia solar. Um sinuoso trajeto cor-
tando a grandiosa floresta e seus desfiladeiros. Pontes e túneis engenho-
samente inseridos na paisagem, trazendo maior segurança ao trânsito
de animais e pessoas. Agora eu sei, consigo lembrar que fiz parte dos
primórdios desse projeto, colaborei no planejamento dessa rodovia.
Por ironia, foi nessa rodovia que tudo aconteceu. As estradas que
passamos, que nos transformam, quando olhamos para trás, sempre fi-
cam enevoadas de coincidências, de sincronicidades. Foi ali o local em
que se iniciou a jornada que me trouxe até o Atacama.
Era para ser um dia feliz. No rádio do carro tocava uma versão da
música “Do Leme ao Pontal”, com os vocais de Tim Maia sincronizados
a arranjos novos e intrincados. Uma música que fazia nossas mentes
vibrarem, que formava ondas de alegria.
Como mencionei, naquele momento eu acreditava que havia nasci-
do no ano de 2285 e que era uma pessoa feliz. Um absurdo e um fato.
Minha esposa gargalhava das perguntas do nosso casal de filhos, se
cutucando e tagarelando no banco de trás.
Não quero me gabar, mas tive a família perfeita. Pena que não durou
muito. Pelo retrovisor eu via os olhos escuros de Julia, a mulatinha mais
linda do Brasil. Naquele dia, com cinco anos de idade. Meu filho, Dante,
com apenas oito anos era dotado de imensa sensibilidade e coragem.
Aquilo sim era vida. Vocês vão perceber, as coisas costumam ser trá-
gicas para mim.
— Pai, o Dante tá me esmagando — reclamou minha filha.
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— Dante, para — falei com firmeza.
Dante se afastou, mas não sem finalizar com um cutucão em Julia. Vi
seu sorriso arteiro pelo retrovisor.
Minha esposa, Mariana, suspirou e disse:
— Tomás, férias em uma comunidade praiana é tudo de que preci-
sávamos.
— É bem mais do que preciso, para mim vocês já bastam — falei
sorrindo.
Lembro que Mariana passou a mão em meus cabelos e nossos olha-
res se cruzaram. Nossa! A vida sem eles é um martírio. Naquele mo-
mento senti saudades dela, mesmo ela estando ali tão perto. Tive a sen-
sação de ela ser parte de mim, literalmente, talvez meu inconsciente, a
maior parte do que sou.
Só de olhar para Mariana as pessoas se intimidavam. Ela tinha uma
beleza agressiva. Conquistava as pessoas com facilidade. Os olhos leve-
mente puxados revelavam sua descendência asiática e as curvas de seu
corpo confirmavam a brasilidade que fervia em seu sangue.
A morte levou partes de mim naquele dia. Acho que só poderia ser
um rascunho feito da dor que sobrou. Minha sobrevivência seria base-
ada na distração, não podendo vasculhar em mim os detalhes daquelas
pessoas, a dor me faria desintegrar. Como estou desintegrando agora,
nesse deserto.
Provavelmente depois de tempos, quando a minha memória se des-
gastasse, como uma velha foto embaçada, é que poderia ter uma vida
livre do afogar da saudade. Foi isso que pensei naqueles segundos, um
escárnio, porque logo após me esqueci de tudo.
No ano de 2313, acidentes de carro eram raríssimos. Os satélites mo-
nitoravam e guiavam os carros por grande parte dos trajetos programa-
dos. Não tenho explicação para o que aconteceu.
Quando meus olhos desviaram do paraíso contido nos olhos de
Mariana, tudo que vi foi um veículo na contramão. Tomei o controle
do carro e desviei da morte. Tive esperança por milésimos de segundo.
Depois, o carro deslizou na pista, para o abismo. Meus sonhos e razões
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despencaram para a imensidão verde da floresta. O som de Tim Maia
continuou tocando no rádio. Não existia felicidade nele.
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