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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

GISELE BRITTO CICERO DE SÁ

À SOMBRA DA FOGUEIRA:

UM ESTUDO SOBRE A CENSURA INQUISITORIAL AOS LIVROS

Rio de Janeiro

2004
GISELE BRITTO CÍCERO DE SÁ

À SOMBRA DA FOGUEIRA:
Um estudo sobre a censura inquisitorial aos livros

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à


Escola de Biblioteconomia da Universidade
Federal do Estado do Rio de Janeiro como
requisito parcial à obtenção do grau de Bacharel
em Biblioteconomia.

Orientador:
Profª. ESP Ludmila Popow Mayrink da Costa

Rio de Janeiro
2004
 
S111a              Sá, Gisele Britto Cicero de 
                               À sombra da fogueira: um estudo sobre a censura                    
inquisitorial aos livros / Gisele Britto Cícero de Sá. – 2004. 
123 p. 
 
Orientadora: Ludmila Popow Mayrink da Costa. 
Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação) – 
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Graduação 
em Biblioteconomia, 2004. 
 
1. Censura de livros. 2. Inquisição. 3. Idade Média. 4. 
Queima de livros. I. , Ludmila Powpow Mayrink da Costa, 
orient. II. Título. 
 
 
                                                                                                    CDD 098.11 
GISELE BRITTO CÍCERO DE SÁ

À SOMBRA DA FOGUEIRA:
Um estudo sobre a censura inquisitorial aos livros

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à


Escola de Biblioteconomia da Universidade
Federal do Estado do Rio de Janeiro como
requisito parcial à obtenção do grau de Bacharel
em Biblioteconomia.

Orientador:
Profª. ESP Ludmila Popow Mayrink da Costa

Aprovado em de 2004

BANCA EXAMINADORA

___________________________________________________________________
Profª. ESP Ludmila Popow Mayrink da Costa – Orientadora
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro - UNIRIO

___________________________________________________________________
Profª. Drª. Claúdia Beltrão Rosa
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro - UNIRIO

___________________________________________________________________
Profª. BS Maria Tereza Reis Mendes
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO
Dedico este trabalho

Aos meus pais, Denise e Horácio, responsáveis pelo maior incentivo que tive, não

somente na conclusão deste trabalho, mas bem como em cada passo da minha vida.

A meu namorado, por me aguentar algumas madrugadas em frente ao computador

com toda paciência do mundo. E a um anjinho que está sempre ao meu lado, mesmo

que eu não consiga o ver.


“Tal como os deuses e os monstros, o livro é

uma criação humana que que ganhou vida

própria e poderes que, na opinião de muitos,

deveriam ser rigorosamente controlados (ou,

se possível, suprimí-los)”

(Luciano Cânfora)
RESUMO

A inquisição, que durante séculos existiu em quase todo mundo, foi a mais forte arma

da Igreja contras as heresias ou qualquer tipo de perigo que ameaçasse sua estrutura,

até então, inabalável. Juntamente com as bruxas e os que interpretavam de forma

diferente ou contrária as Sagradas Escrituras, as obras literárias foram um de seus

principais alvos. Em vários países a Inquisição atuou queimando livros e prendendo,

torturando e/ou matando gênios e pensadores de várias épocas. Partindo de tal idéia,

o presente trabalho pretende demonstrar como funcionava a censura de livros no

decorrer de tais épocas, onde a inquisição atuava, quem eram suas vítimas, como

funcionava o sistema que mais puniu, torturou e matou pessoas, quais cientistas e

escritores foram mais atingidos – ou que pelo menos tiveram sua história registrada –

e nomes que entraram para o Index Librorum Prohibitorum como os mais perigosos.

Palavras-chave: Livro. Inquisição. Cencura. Queima de livros.


ABSTRACT

The inquisition, that existed for centuries almost everywhere, was the strongest

weapon of the church against heresies or any other threat that could menace it, until

then, unsinkable. Along with the witches ans those who interpreted in a wrong way the

Holy Scriptures, the book was one of its main target. In many countries it was acted

burning books and arresting, torturing and/or killing genious na thinkers of many ages.

Starting from that idea, the presente work shows how the censure to books worked the

system that most punished, tortured and killed people, what scients and writers were

the most affected – or that at least had their history registered – and the names that

went into the Index Librorum Prohibitorum as the most dangerous are some of themes

approached in this work.

Keywords: Book. Inquisition. Censure. Burn of books.


SUMÁRIO

 
1 INTRODUÇÃO ............................................................................................. 09

2 O QUE É A INQUISIÇÃO? .......................................................................... 10

3 O QUE É HERESIA? ................................................................................... 13

3.1 Quem são os hereges? ............................................................................. 14

4 COMO FUNCIONAVA A INQUISIÇÃO? ..................................................... 21

5 A INQUISIÇÃO NO MUNDO ....................................................................... 26

5.1 Alemanha .................................................................................................... 26

5.2 Espanha ...................................................................................................... 29

5.2.1 Thomás de Torquemada .............................................................................. 33

5.3 França ......................................................................................................... 35

5.4 Itália ............................................................................................................. 37

5.5 Portugal ...................................................................................................... 40

5.5.1 Marquês de Pombal .................................................................................... 43

5.6 Brasil ........................................................................................................... 44

6 OS REFORMADORES ................................................................................ 48

6.1 John Wicliffe ............................................................................................... 48

6.2 John Huss ................................................................................................... 61

6.3 Martinho Lutero .......................................................................................... 53

7 A ESTAGNAÇÃO DO PENSAMENTO ....................................................... 56

7.1 Espanha ...................................................................................................... 56

7.1.1 Miguel de Cervantes Saavedra .................................................................... 59


7.1.1.1 O Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de La Mancha .......................... 61

7.2 França ......................................................................................................... 65

7.2.1 François Rabelais ........................................................................................ 66

7.2.2 Voltaire ......................................................................................................... 70

7.2.3 Denis Diderot ............................................................................................... 73

7.3 Itália ............................................................................................................. 75

7.3.1 Galileu Galilei ............................................................................................... 75

7.4 Portugal ...................................................................................................... 83

7.4.1 Padre Antônio Vieira .................................................................................... 87

7.4.2 A Mesa do Desembargo do Paço ................................................................ 89

7.5 Brasil ........................................................................................................... 94

7.5.1 Antônio José, “O Judeu” .............................................................................. 99

8 OS LIVROS E A BRUXARIA .................................................................... 101

8.1 Malleus Malleficarum – O Martelo das Feiticeiras ................................ 103

9 INDEX LIBRORUM PROHIBITORUM ...................................................... 105

10 ARQUIVO NACIONAL DA TORRE DO TOMBO ...................................... 109

11 O SANTO OFÍCIO SE DEFENDE NO SÉCULO XIX ................................ 112

12 CONCLUSÃO ............................................................................................ 114

REFERÊNCIAS ......................................................................................... 117

ANEXO ...................................................................................................... 123 


9

1 INTRODUÇÃO

O período que abrange a Idade Média sempre me despertou grande interesse devido a

sua importância histórica e estética cultural. Esse fascinante capítulo da humanidade,

repleto de magia, misticismo, revoluções tecnológicas e desbravamento de “novos

mundos” ocupou não somente uma grande parte da nossa cronologia, como foi

essencial para a formação cultural, social e ideológica do mundo moderno.

Minha idéia para este presente trabalho surgiu antes mesmo do início do curso, mesmo

porquê sempre foi meu desejo trabalhar o tema. No entanto, pude mesclar a Idade

Média com os livros, produto e síntese maior do curso de biblioteconomia.

Tive oportunidade de elaborar um trabalho acadêmico cujo tema, “O livro e a

Inquisição”, sugerido pela minha orientadora, Sra. Ludmila Popow, me incentivou a

pesquisar maior diversidade sobre o assunto. A Biblioteca Nacional, o Real Gabinete

Português de Leitura e a Biblioteca do CCBB foram os principais pontos de referência

para a pesquisa, além de outras bibliotecas pontuais e o auxílio da internet. Deste

modo, pude reunir o material necessário para a elaboração desta monografia.

Procurei focar fragmentos da história da Inquisição no mundo, seu surgimento, seus

princípios e atuação até o seu término oficial. Uma perigosa mistura de política com

religião, que resultou em abuso, tortura e morte. É relevante para este trabalho a
10

certeza de que o acervo bibliográfico do mundo foi cruelmente modificado pelas

chamas da Inquisição.

2 O QUE É A INQUISIÇÃO?

Do latim “inquisitio”. Significa “procura”, “busca”, “investigação”.

Foi um tribunal eclesiástico, que vigorou durante toda a Idade Média. Tinha como

principal objetivo julgar os hereges e pessoas suspeitas de heresia, combater as

práticas e ideais religiosos que surgiam meio ao povo da Idade Média e fugiam do

controle da elite política e religiosa.

Por volta do século IV já existiam perseguições aos que contrariassem os princípios da

Igreja. O confisco dos bens e a pena de morte, mesmo que esporádica, já era colocada

em prática. Em 385, o imperador Maximus condenou o espanhol Prisciliano, mas os

bispos revoltaram-se, e do século VI ao século IX houve uma considerável queda do

número de mortos. Já na última metade do século X, mesmo não existindo um tribunal,

numerosos foram os casos de mortes pela fogueira ou por estrangulamento.

Os bispos já exerciam um meio de repressão que funcionava da seguinte forma: havia

em cada diocese um tribunal e os oficiais da Igreja examinavam as paróquias a procura


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de hereges. A intenção desses tribunais era eliminar a cultura religiosa folclórica e pagã

para impor seus valores.

Conflitos eram resolvidos com massacre que, na maioria das vezes, populações inteiras

morriam. No ano de 1162 a Igreja procurou estabelecer regras para esses conflitos. Daí

surgiram as primeiras práticas de todo processo inquisitorial. O papa Inocêncio

aceitando esse modo de inquirição da fé deu à heresia o status do crime de lesa-

majestade.1

Em 1179, no 3º Concílio de Latrão, Alexandre III decide combater os hereges com a

força, confiscar seus bens e reduzi-los à servidão. Cinco anos depois, Lucius III reúne

um concílio em Verona e elabora uma Constituição. Em 4 de novembro ele anunciava:

“- Que os condes, os barões e outros senhores jurariam auxiliar a

Igreja sob pena de excomunhão;

- Que os habitantes fariam juramento de denunciar ao bispo toda

[sic] e qualquer pessoa suspeita de heresia;

- Que os bispos visitariam em pessoa, duas vezes [sic] por ano, as


1cidades e aldeias da sua diocese, a fim de descobrir os heréticos;

- Que os fautores de heresia seriam declarados infames para

sempre e despojados do seu emprego [sic].” (TESTAS, 1968)

1 Infâmia ou atentado que se pratica contra a pessoa ou a autoridade do rei ou da família.


12

No ano de 1231 o senador de Roma Annibaldo publica um estatuto contra a heresia,

onde decretava que todos os bens dos heréticos deveriam ser confiscados e suas

casas demolidas; aqueles que não delatassem os heréticos seriam castigados com

multas e caso não as pagasse, seriam exilados. A Constituição do papa Gregório IX,

que codificava as prescrições já observadas na repressão dos Albigeneses e a

legislação do senador Annibaldo formaram Os Estatutos da Santa Sé. Nesse mesmo

ano, a Inquisição foi criada oficialmente pelo Concílio Provincial de Toulosse, na

França. Desde então, foi-se precisando a legislação e jurisprudência da Inquisição.

Em 1542, o papa Paulo III, alarmado com a difusão do protestantismo, estabeleceu o

Tribunal do santo Ofício. Livre do controle episcopal, o papa começou a se preocupar

com a ortodoxia dos textos eclesiásticos e teológicos.

Segundo Carlo Ginzburg (1987, p. 33): “a Inquisição tomou um novo sopro com a Contra-reforma

assinalou um período de busca de controle e extinção da cultura popular e da marginalização das

minorias e grupos dissidentes. A Igreja romana procurou extirpar da estrutura do cristianismo todos os

traços do folclore e do paganismo que ainda persistiam no seio da cultura medieval dos séculos XV e

XVI”.

É quando a crise dos valores medievais passa a ser uma problemática da hierarquia

feudal que a inquisição aparece impondo o catolicismo como eixo cultural. Ela começa

a destruir práticas e pensamentos religiosos que surgiam meio ao povo e fugiam do

domínio da nata política e religiosa. Medidas começaram a ser tomadas para a

construção de um novo Homem. Um Homem subordinado às leis religiosas e políticas.


13

3 O QUE É HERESIA?

A situação financeira do clero não era muito boa perante as transformações sociais do
século XII e XII. O capitalismo surgia, e com ele o questionamento dos cristãos. “Por
que se apegar às riquezas já que o que vale é a nossa fé?”. Eles queriam que o clero
adotasse um comportamento mais próximo de Cristo e seus apóstolos. Essa
insatisfação, quase generalizada, fez com que surgissem idéias contrárias à ortodoxia.
E essas doutrinas, discordantes dos ensinamentos oficiais da Igreja, foram
denominadas heresia. A palavra “heresia” é de origem grega (hairesis) e significa “erro,
opinião diferente”.

Leonardo Boff (1587, p. 12) define o herege como “(...) aquele que se recusa a repetir o

discurso da consciência coletiva. Ele cria novos discursos a partir de novas visões da realidade religiosa”.

No Manual do Inquisidores (EYMERICH, 1367), determina-se que:

“Aplicar-se-á, do ponto de vista jurídico, o adjetivo de herético em oito

situações bem definidas. São os heréticos:

a) Os excomungados;

b) Os simoníacos 2;

c) Quem se opuser à Igreja de Roma e contestar a autoridade que

ela recebeu de Deus;

d) Quem cometer erros na interpretação das Sagradas Escrituras;

e) Quem criar uma nova seita ou aderir a uma seita já existente;

f) Quem não aceitar a doutrina romana no que se refere aos

sacramentos;

2 Pessoas que pagavam a Igreja para livrarem-se de seus pecados.


14

g) Quem tiver opinião diferente da Igreja Romana sobre um ou vários

artigos da fé;

h) Quem duvidar da fé cristã.”

Podemos concluir que não foram poucas as vítimas das fogueiras da Inquisição. Os

judeus, cristão-novos, blasfemos, heresiarcas, protestantes, feiticeiros, bígamos,

polígamos, magos, sodomitas, bruxos, sodomia e bestialismo3 e até mesmo aqueles

que queriam apenas criar, exercer e divulgar simples idéias e pensamentos. A fé

deveria ser aceita, jamais pensada. A reflexão religiosa era monopólio exclusivo da

hierarquia.

3.1 Quem são os hereges?

 Cátaros – Pregavam o dualismo. O universo era composto por dois mundos: um

espiritual criado por Deus e outro material forjado por Satanás. Seus seguidores

caracterizavam-se pelo rígido ascetismo, procurando levar uma vida semelhante à dos

apóstolos. Os maiores grupamentos de cátaros, localizados no sul da França, eram os

albigenses.

 Albigeneses – Viveram por alta do ano de 1.200 e deve seu nome a cidade de Albi,

no sul da França. Seus ensinamentos eram semelhantes ao dos cátaros e ainda mais
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radicais que os valdenses. Pregavam a existência de dois deuses: um do bem, criador

da alma; e outro do mal; criador do corpo. Proibiam casamentos a fim de evitar a

procriação e legitimavam o suicídio.

Estavam divididos em dois grupos, os simples crentes e os “perfeitos”. Estes se

obrigavam a levar vidas de um ascetismo extremo. Os simples crentes podiam aspirar à

perfeição depois de um longo e duro período de iniciação.

O assassinato de um legado papal fez com que o papa Inocêncio III lançasse a

Cruzada dos Albigenses (1209 -1229). E sob a chefia de Simon Monfort, reprimiram

seus seguidores de forma brutal. Somente pequenos grupos sobreviveram e, mesmo

assim, logo foram perseguidos pela Inquisição até fins do século XIV.

 Valdenses – Iniciado em 1170 por Pedro Valdo em Lyon. Foi excomungado por

dizer que obedecia somente a Cristo e não à Igreja. Ele vendeu todos seus bens e doou

para pregar a pobreza. Sua idéia espalhou-se por toda Provença e Languedoc. No

norte da Itália surgiu uma outra linha derivada de suas idéias: os humildes. Seus

adeptos recusavam-se a prestar juramento, aceitar a pena de morte, a crer no

purgatório, nas indulgências e na veneração dos santos. Em 1184, o papa Lucius III os

condena pela bula Ad abolendam.

A resistência deles era tamanha que, em 1321, dois Frades Menores enviados pelo

inquisidor Jacques Bernard, foram massacrados em Montélier. Em 1332, obrigam o


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inquisidor Jean Albert a fugir de Castellazzo. O papa Bento XII, em 1335, persegui-os

com mais perseverança, mas dois outros inquisidores foram mortos. Em 27 de abril de

1487, uma nova bula, sob a direção do papa Alberto Cattaneo autorizou novas

perseguições. Ainda foram vítimas de uma expedição organizada por ordem do tribunal

de Aix-en-Provence, sob o reinado de Francisco I, o que provocou a morte de milhares

de pessoas.

Contudo, esta heresia não desapareceu por completo. Ainda hoje possui um grande

número de seguidores no Piemonte, na Lombardia, na Toscana, etc. Mas desde o ano

de 1848 eles vivem em paz.

 Espirituais – Exaltavam a pobreza a ponto de provocar uma profunda crise na ordem

dos Franciscanos. Também conhecidos como beguinos e faticelli, os seguidores dessa

doutrina desacreditavam na Igreja e a acusavam de acumular riquezas. A insegurança

material, incompatível com a vida consagrada nos estudos e pesquisas, era um de seus

maiores problemas. Foram feitas concessões a esse princípio a fim de facilitar a

preparação dos sermões nos refúgios dos mosteiros. Mas aos que quiseram

permanecer fiéis a São Francisco, reconheceram-se nos discípulos de Joaquim de

Flora. Uma corrente particular formou-se na ordem e os que a ela pertenciam

receberam o nome de espirituais, pois esperavam a vinda do Espírito.

João XXII quis acabar com eles e condenou-os em sua bula Quorumdam exigit, em 7

de outubro de 1317. Promulgou contra eles a excomunhão e ordenou aos inquisidores


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do Languedoc que o condenassem como hereges. Rapidamente os espirituais serão

eliminados.

 Judeus - Em meados do século X, o centro do saber deslocou-se da Mesopotâmia

para Andaluzia, na Espanha. Ali existiam colônias judaicas anteriores à chegada das

legiões romanas. Durante um longo período, os judeus tinham sido perseguidos,

sobretudo após a conversão dos visigodos ao catolicismo, no século VI. A invasão

muçulmana trouxe a tranqüilidade para os judeus espanhóis.

Com a decadência do domínio muçulmano na península Ibérica, em meados do século

XIII, terminou a pacífica Era Espanhola. Sob a monarquia católica, os judeus foram

degradados e sofreram perseguições periódicas. A Inquisição perseguiu também os

conversos e todos os judeus que não aceitaram o batismo foram expulsos da Espanha.

 Templários – Membros de uma ordem medieval de caráter religioso e militar, cuja

denominação oficial era Ordem dos Cavaleiros Pobres de Cristo (também Ordem do

Templo). Foi constituída a partir de um pequeno grupo militar formado em Jerusalém no

ano 1119 por dois cavaleiros franceses: Hughes de Payns e Godofredo de Saint Omer.

Seu objetivo era proteger os peregrinos que visitavam a Palestina depois da primeira

Cruzada. Seu caráter militar a diferenciava das outras duas grandes ordens religiosas

do século XII: os Cavaleiros de São João de Jerusalém e os Cavaleiros Teutônicos,

fundadas como instituições de caridade.


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A Ordem obteve a aprovação papal e, em 1128, no Concílio de Troyes, recebeu alguns

mandamentos austeros que seguiam as pautas da ordem monástica dos cistercienses.

Era chefiada por um grão-mestre (com posição de príncipe), sendo seguido por três

categorias: cavaleiros, capelães e sargentos. O quartel general dos Cavaleiros

Templários permaneceu em Jerusalém até a queda da cidade nas mãos dos

muçulmanos no ano 1187; mais tarde se instalou sucessivamente na Antioquia, Acre,

Cesaréia e por último em Chipre.

A Ordem foi suprimida em 1312 pelo Papa, e suas propriedades destinadas a seus

rivais, os Cavaleiros Hospitalários.

 Feitiçaria - Prática de poderes sobrenaturais por pessoas que se autodenominam

bruxas (os). A antropologia moderna diferencia a bruxaria simples - supostos cultos de

bruxas na Idade Média - do movimento neopagão.

O conceito de bruxaria na Idade Média baseava-se em certas pressuposições. Inclusive

a crença de que o diabo e seus subordinados — demônios, íncubos e súcubos — eram

reais e exerciam seus poderes no mundo tendo relações físicas com as pessoas e

estabelecendo pactos entre seres humanos e o mal.

Na Antigüidade, a crença nas práticas de bruxaria através da intervenção de espíritos e

demônios era universal. A feitiçaria e a magia também se desenvolveram na Grécia

antiga, através de figuras como Medéia e Circe. As práticas gregas chegaram a Roma e
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foram assimiladas pela população. Ao longo do século IV, desenvolveu-se o Código

Teodosiano onde se condenava, explicitamente, o culto idolátrico a qualquer espécie de

magia.

De acordo com os especialistas, os bruxos europeus, a partir da época medieval,

organizavam-se em grupos ou conciliábulos constituídos de doze membros. A maior

parte deles formado por mulheres e com um líder, geralmente do sexo masculino,

considerado o vigário do diabo. Muitos fiéis ingênuos o tratavam como se ele fosse o

próprio demônio. A febre da caça às feiticeiras assolou a Europa de 1050 até o final do

século XVII. O clérigo puritano Cotton Mather (1663-1728) narra, no livro Wonders of

the invisible world (Milagres do mundo invisível, 1693), o caso das feiticeiras de Salém.

Este caso foi o pretexto utilizado pelo dramaturgo norte-americano Arthur Miller para

sua peça The Crucible (As bruxas de Salém ,1953).

 Mouriscos – Sendo a favor da política de persuasão violenta, Ximenes de Cisneros,

em 18 de dezembro de 1499, procede a 4.000 batismos por aspersão. Os livros

muçulmanos foram deitados às chamas ou levados para Alcalá de Henares. Em 1501,

a mesquita de Granada foi transformada em Igreja e as conversões forçadas

prosseguiram. Resulta-se aí a revolta dos Mouros de Granada que vai se estender à

Ronda e aos Alpujarras. O cardeal Cisneros, em 1502, decreta que ou os judeus se

convertem ou seriam exilados.


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 Maniqueísmo - Antiga religião que recebeu o nome de seu fundador, o sábio persa

Mani (c.216 - c.276). Ele acreditava que um anjo lhe havia aparecido e o nomeara

profeta de uma nova e última revelação. Pregou por todo Império persa, inclusive

enviou missionários ao Império romano. Foi preso acusado de heresia e morreu pouco

tempo depois.

O Maniqueísmo reflete uma forte influência do agnosticismo. Sua doutrina baseia-se em

uma divisão dualista do Universo, na luta entre o bem (Deus) e o mal (Satã). Esses dois

âmbitos estavam separados, porém a escuridão invadiu a luz e se mesclaram. A

espécie humana é o produto desta luta. Com o tempo, poder-se-ia resgatar todos os

fragmentos da luz divina e o mundo se destruiria; depois disso, a luz e a escuridão

estariam novamente separadas para sempre.

Os maniqueístas dividiam-se em duas classes: os eleitos, celibatários rigorosos, eram

vegetarianos e se dedicavam somente à oração; e os ouvintes, cuja esperança era

voltar a nascer convertidos em eleitos.


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4 COMO FUNCIONAVA A INQUISIÇÃO?

Os tribunais inquisitoriais estavam submetidos a normas fixas. As bulas pontificais, um

conjunto de textos redigidos pelos concílios provinciais, como o de Narbonne em 1235

ou o de Béziers em 1246, determinavam seu funcionamento. Os próprios inquisidores

quiseram que os juizes aproveitassem a experiência adquirida para elaborar manuais.

Houveram muitos e o mais antigo deles foi escrito em 1244 e 1245 por quatro

dominicanos: Guilherme Raimundo, Pedro Durand, Bernard de Caux e Jean de Saint-

Pierre. O mais célebre é, sem dúvida alguma, o Practica Inquisitionis heretic pravitatis

de Bernard Gui que foi redigido por volta de 1320. Ainda merece destaque a coleção

Décrétales estabelecidas em 1230 por Raimundo de Peñaforte por ordem de Gregório

IX.

A época da tolerância era um período concedido aos hereges que quisessem se

apresentar perante o tribunal por espontânea vontade num prazo de quinze dias a um

mês. Um grupo de monges, quando chegava a uma aldeia, convidava todos os fiéis a

virem em seu socorro e os culpados a pedir perdão. Aquele que reconhecesse seu erro

dentro do prazo era tratado com misericórdia. Mas caso se apresentasse após o prazo

estipulado, o confessor sofria castigos e penas que iriam variar de acordo com seus

pecados. Também havia o edito de fé que ordenava todos os cristãos, sob pena de

excomunhão a denunciar os heréticos ou as pessoas suspeitas de heresia.


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Após o prazo máximo de um mês, não se podia mais contar com a misericórdia do

tribunal. Todos os suspeitos eram perseguidos, os inculpados eram convocados por

uma citação, às vezes verbal e na maioria das vezes escrita transmitida pelo cura da

paróquia que ia até a residência do suspeito. A recusa em obedecer ou em se fazer

representar, tornava o acusado passível de excomunhão. E ao fim de um ano,

definitiva. Quando o inculpado era perigoso ou já havia fugido, era necessário o

encarceramento.

O interrogatório desenrolava-se na presença de dois religiosos de espírito são e de um

notário ou de um clérigo que era encarregado de redigir um resumo das disposições.

Rapidamente, planos e modelos de interrogatórios foram criados para facilitar o

processo. É assim que Bernard Gui cria seu manual, formula uma série de questões

que devem ser postas ao crente de cada seita de forma a facilitar a confissão ou

acumular provas. No início, o acusador deveria ter a prova absoluta do que acusa, para

evitar as falsas condenações, mas, com o tempo, a denúncia acompanhada da audição

de testemunhas passou a ser aceita. Em 1261, Alexandre IV autorizou que se

escutasse o depoimento dos próprios hereges.

Na bula de Inocêncio III, Si adversus vos, o papa proíbe advogados e os notários de

prestar auxílio aos acusados, já Gregório IX desejava que todo suspeito fosse

secundado. O Concílio de Valência, em 1248, presidido pelo legado do papa, rejeita a

presença de advogados e Bernard Gui recusa-se em recebê-los. Ainda para

desencorajá-los, ameaçavam suspender o exercício dos homens de lei que estivessem


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ajudando os incriminados. Nicolas Eymerick, em seu Directorium Inquisitorium,

consentiu em deixar a defesa para procuradores e advogados na medida em que não

fossem, eles próprios, suspeitos de heresia. Mas seu papel era ínfimo, pois, na maioria

das vezes, eles assistiam às audiências e limitava-se a pedir ao acusado a confissão de

culpa.

Caso não houvesse a confissão, os inquisidores podiam mandar prender o acusado,

submetê-lo a jejuns e privá-lo de seu sono. Mas, caso ainda houvesse resistência, ele

era submetido à tortura. Em 15 de maio de 1252, Inocêncio IV autoriza, através da bula

Ad extirpanda, o uso de métodos de tortura. Somente uma restrição foi imposta: evitar a

mutilação e o risco de morte – citra membri diminutionem et mortis periculum – o que

não passava de uma fórmula para diminuir as falhas da irregularidade canônica.

Entramos em uma das partes mais covardes que toda nossa história conhece. A

Inquisição ficará eternamente marcada com a cara da crueldade. Vários foram os tipos

de tortura, equipamentos de extrema criatividade foram desenvolvidos especialmente

para essa prática. Queimar a planta dos pés dos interrogados, estraçalhar músculos e

carnes do corpo, esmagar ossos, queimá-los com ferro em brasa, eram algumas

dessas práticas. O machado, pela rapidez em ocasionar a morte e evitar maiores

sofrimentos, era um recurso reservado aos nobres somente. Uma das mais famosas

invenções é a máquina de quebrar ossos. Começava pelos dedos, em seguida, as

mãos, indo para os braços e assim por diante, até conseguirem a confissão. Também

usavam a “Virgem de Nuremberg”, de origem alemã, que foi criada em 1515 pelo bispo
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de Nuremberg; uma espécie de sarcófago onde o acusado era trancado e lâminas

pontiagudas transpassavam seu corpo. Essas lâminas eram tão bem colocadas, que

não era possível atingir nenhum órgão vital, fazendo assim com que a vítima morresse

lentamente por hemorragia.

Tal máquina foi criada por razões dogmáticas, pois, no início, os inquisidores não

podiam assistir às práticas de tortura, sob pena de incorrerem em irregularidade

canônica. Outra “incrível” invenção foi a caixa d’água; com o acusado preso, de forma

que não pudesse mexer a cabeça, era colocado uma caixa de onde pingava,

constantemente, no mesmo lugar, uma gota atrás de outra, dentro de um tempo

praticamente sincronizado. Pode parecer banal, mas a caixa d’água foi capaz de

produzir dores inimagináveis.

Em 1264, o papa Urbano IV autorizou os juízes inquisitoriais a presidirem a prova de

tortura, assim como seus associados, para relevarem os casos de irregularidade. Eles

não somente passaram a assistir como muitas vezes a aplicavam. Desde então muitas

queixas foram dirigidas ao Papa Clemente V pelo abuso do suplício, que em 1311

decreta a constituição Multorum querela, que o inquisidor não podia submeter um

acusado à tortura sem a opinião do bispo do lugar e que este não poderia agir sem o

consentimento do inquisidor. Mas não houve grande sucesso com a decisão, já que na

maioria das vezes os bispos aceitavam delegar os poderes nos tribunais inquisitoriais,

que desse modo deixavam de ter obrigações.


25

A sentença era proferida solenemente durante uma sessão pública chamada sermão

geral (sermo generalis), o auto-de-fé dos espanhóis, Uma grande praça ou em frente a

uma Igreja era montado um estrado a fim do acusado poder ser visto por todos.

Durante a manhã o inquisidor-mor pronunciava o sermão. Em seguida, os indultos

concedidos eram enunciados, os condenados abjuravam ajoelhados e oravam; a

excomunhão era levantada. Eram enumeradas as sanções contra os hereges, das mais

ligeiras as mais terríveis. Enquanto a condenação não fosse pronunciada, o inculpado

poderia apelar ao Papa; o que não o impedia de continuar com o processo, pois os

motivos poderiam ser considerados ilegítimos. Os juizes também não se mostravam

muito dispostos a receber apelações, e consideravam as declarações inaceitáveis. Já

as sentenças de morte eram passíveis de qualquer recurso.

O confisco total dos bens atingia os hereges que fossem abandonados à justiça secular

ou condenados à prisão perpétua. Os familiares de um condenado à morte também se

viam privados da herança.

As peregrinações foram uma das sentenças que apareceu pouco mais tarde no tribunal,

mas logo foram abandonadas porque um grande número de hereges encontrava

possibilidades de cair no mesmo erro. As peregrinações maiores iam do reino da

França até Roma, Santiago de Compostela, São Tomás de Caturbéria e Três Reis de

Colônia. As peregrinações menores iam à Notre-Dame de Roc-Amadour, de Puy, de

Chatres, Sainte-Foy de Conques, Saint Paul de Narbonne, etc. Após o sentenciamento,


26

o acusado tinha três meses para partir e trazer uma carta atestando que tinha cumprido

a penitência.

Em 1251, o Papa Inocêncio IV autorizou as penas em dinheiro caso nenhuma outra

sanção pudesse ser imposta. Caso as pessoas estivessem impossibilitadas de cumprir

as peregrinações (velhos, doentes, moças), admitia-se o resgate de certas punições

através de esmolas e doações ao Santo Ofício ou às obras de misericórdia.

Inocêncio III, em 1226, decretou que todas as casas, onde os hereges tivessem

encontrado asilo, fossem destruídas. Inocêncio IV quis ainda mandar destruir as que

pertencessem ao mesmo proprietário, mas a idéia iria chocar-se com o confisco dos

bens. Aos que tivessem relaxado à justiça secular ou punido com a prisão perpétua,

além de serem exumados, teriam seus bens confiscados e seus corpos queimados.

5 A INQUISIÇÃO NO MUNDO

5.1 Alemanha

Desde o início do século XII a heresia existe nos Países-Baixos, na Flandres e na

Alemanha. Tanchelin já tinha começado a pregar doutrinas neomaniqueístas na


27

diocese de Utrecht e muito rápido consegue adeptos, mas o arcebispo de Colônia o

prende e acaba sendo morto numa disputa em 1115.

Por volta de 1140 o clero de Liège se dirige ao papa Lucius III mostrando inquietações

perante a infiltração dos hereges. Muitos suspeitos foram aprisionados e um movimento

popular fê-los passar o suplício do fogo sem um prévio julgamento. Mesmo com essas

repressões violentas a heresia não deixou de se desenvolver no Vale do Reno.

Conrad Dorso e Jean, o Zarolho, tinham jurado acabar com os hereges e, como

homens de palavra, passaram aos atos com grande crueldade. Conrad de Marbourg,

um padre secular que havia sido confessor de Elizabeth da Hungria, recebia em 1227, a

missão de se opor aos luciferinos4 e reformar a Igreja Alemã.

Mesmo não tendo o título de inquisidor, o padre assumiu as funções de um e, unindo-se

a Conrad Dorso e Jean, o Zarolho mataram tantas pessoas que foi impossível contá-

los. O papa Gregório IX pediu que os Dominicanos de Carinthie e de Estrasburgo

viessem ajudá-lo e, tendo suspeitado de um conflito que iria instalar-se em Mogúncia, o

arcebispo Siegfrid se recusou a abandonar seus direitos e prestar auxílio aos

inquisidores. Mas em 1232, o papa insiste para o arcebispo secundar Conrad de

Marbourg e a inquisição atingirá toda a amplitude em 1233. Depois de ter matado

muitas pessoas humildes, Conrad de Marbourg logo ameaça os nobres para mostrar

sua força e poder. Um deles é o conde Sayn, um dos nobres mais poderosos de

4
A palavra “luciferino” vem do nome de um bispo de Cagliari, Lúcifer, que esteve na origem de um sisma,
e morreu por volta de 370 na Sardenha.
28

Mogúncia que se recusa a comparecer perante o tribunal e procura o arcebispo de

imediato. Em julho de 1233 o arcebispo organiza um Concílio em Mogúncia e os bispos

aceitam que fosse aplicada aos heréticos a pena de morte. Os bens seriam invioláveis

até que seu crime ou sua inocência não tivesse sido revelado. O Concílio inocenta o

conde e enviam ao papa um requisitório sobre os métodos empregados na Alemanha.

Surpreso com tal barbárie, Gregório IX decide opor-se a sangrenta repressão. Conrad

de Marbourg, irritado e desencorajado com as decisões do Concílio, retira-se para

Marbourg e é assassinado por seu fiel servidor, Gerhard. Era a vingança dos príncipes

os quais ele queria abater. O destino de seus ajudantes não foi muito diferente, Conrad

Dorso foi morto perto de Estrasburgo e Jean, o Zarolho, enforcado.

Gregório IX se vê na obrigação de excomungar os assassinos e ordenará os príncipes

que persigam os heréticos com armas. Essa espécie de cruzada provocará também

excessos, sobretudo na Baixa-Saxônia, na Diocese de Brême, onde cerca de dois mil

camponeses foram massacrados.

Depois da Alemanha, a inquisição irá estabelecer-se na Boêmia e na Hungria, sob a

direção do legado de Jacques de Préneste. A Flandres e os Países-Baixos tiveram

seus tribunais particulares por volta de 1240, depois de terem sido submetidos a partir

de 1233 à ação de Roberto, le Bougre.


29

5.2 Espanha

A inquisição espanhola foi a mais conhecida pela história pelo fato de do tribunal do

Santo Ofício ter trabalhado diretamente a favor do Estado e não somente para a Igreja

Romana. Após os primeiros cinqüenta anos de atuação, a Inquisição já havia

implantado sentimentos como o pavor e o rancor em quase todo seu povo. Isso se

deve, particularmente, a população judia, que possuía independência e por diversas

vezes ocuparam os mais altos cargos do governo.

Os árabes conquistaram a Espanha entre os anos de 711 e 714 e permitiram ao “povo

do livro” (judeus e cristãos) a proteção religiosa perante qualquer ataque, caso

houvesse uma contribuição financeira. O latim permaneceu como língua e adotaram o

árabe como língua culta e de comunicação. Mas com a segunda invasão, feita pelos

almôadas, a situação mudou consideravelmente. Judeus foram obrigados a

converterem-se ao islamismo e uma maior parte preferiu emigrar para território cristão.

Eles eram armas preciosas para os cristãos, pois sabiam falar árabe, conheciam as

técnicas comerciais mais avançadas e ainda entendiam a organização política, social e

econômica dos territórios muçulmanos.

Já no século XII, com Alfonso X no poder e a ocupação espanhola no vale de

Guadalquivir, muitas expulsões foram feitas. E, no século seguinte, os mudéjares5 eram

5
Muçulmanos submetidos à autoridade cristã
30

apenas 0,5% em Andaluzia. No ano de 1118, retomando Saragoça, muitos

camponeses quiseram fugir, mas ele impediu. Pois, para que o país funcionasse, era

necessário empregar os mudéjares nas terras de seus novos senhores e os cristãos

para a prática religiosas, mas em condição semi-servil. Já os judeus, sem renunciarem

às suas crenças, adotaram a língua e os modelos literários e filosóficos da população

hebraica. E o antijudaísmo passou a ser desnecessário ao país.

O judaísmo ressurgiu como parte integrante do reino em Castela, mas não como antes.

A participação deles na política e na economia era bem mais reduzida. No século XV,

caso um judeu fosse convertido, poderia ocupar até um cargo de administrador em uma

cidade ou como magistrado. Alguns entraram para ordens religiosas cristãs e ainda sim

foram acusados de falsos cristãos pela massa e, para escapar da ira de tais multidões,

certo número deles preferiram voltar à sua antiga religião. Mas isso os tornava hereges.

Sendo eles acusados de heresia, deveriam ser punidos. Foi a partir desse momento

que os reis católicos deram início ao Tribunal da Inquisição.

O Tribunal tratava apenas dos casos em que a conversão não tivesse sido sincera. Os

judeus que optaram por praticar sua religião ficaram livres até o decreto de 31 de março

de 1492, que os obrigava a deixar a Espanha em quatro meses.


31

Em 1478 o casal real Fernando e Isabel solicitou ao sumo pontífice Sisto IV (1471-

1484) uma bula que permitisse a atuação da Inquisição naquele reino da Península

Ibérica.

“Tomamos conhecimento que em diferentes cidades dos vossos

reinos, são numerosos aqueles que, por sua livre vontade, tendo

sido regenerados em Jesus Cristo pelas águas de batismo

voltaram secretamente às práticas das leis e costumes religiosos

da superstição judaica... incorrendo nas penalidades pronunciadas

contra os autores da heresia, pelas constituições do papa

Bonifácio VIII. Por causa dos crimes destes homens, e da

tolerância da Santa Sé em relação a eles, a guerra civil, homicídios

e numerosos males afligem os vossos reinos... queremos pois

atender à vossa petição e aplicar os remédios apropriados para

aliviar os males que vós assinalais. Autorizamo-vos a designar três

ou pelo menos dois bispos, ou homens provados, que sejam

padres seculares, de ordem mendicante ou não, com quarenta

anos de idade, pelo menos, de elevada consciência e vida

exemplar, mestres ou bacharelados em teologia, ou doutores e

licenciados em direito canônico, cuidadosamente examinados e

escolhidos, tementes a Deus, e que vós considerais digno de

serem nomeados para o tempo presente, em cada cidade ou

diocese dos ditos reinos, segundo as necessidades... Além disso,

em relação a todos os acusados de crime contra fé, e dos que os

ajudam ou os favorecem, concedemos a esses homens os direitos

particulares e as jurisdições segundo o que a lei e o costume lhe


32

atribuem aos ordinários e aos inquisidores da Heresia” (WALSH,

1948, p.177-78)

Os primeiros inquisidores foram os dominicanos Frei Miguel Murillo e Frei Juan de San

Martin que se estabeleceram em Sevilha, um centro de intensa atividade judaica. E a 6

de fevereiro de 1481, a primeira fogueira da Nova Inquisição foi acesa. Em 1482 quatro

inquisidores oficiavam em Córdova e organizaram o primeiro auto-de-fé em 28 de

fevereiro de 1483. A 11 de fevereiro de 1484 o papa nomeava em Castela oito

inquisidores. Um deles era Frei Torquemada (1420 – 1498). Como representante papal

e o oficial mais elevado da corte inquisitorial, Torquemada administrou toda inquisição

na Espanha. Quando o frei escreveu as Instruções, que era uma espécie de normas

que deveriam ser seguidas em todo processo inquisitorial, foram acatadas desde então.

Ficou conhecido como o grande Inquisidor de Castela, Aragão, Leão, Catalunha e

Valência.

A rainha Isabel pediu a criação de um tribunal supremo e a 25 de maio de 1483 o papa

nomeou a arcebispo de Sevilha, Iñigo de Manrique, para a presidência deste tribunal.

Em outubro de 1483, Torquemada foi nomeado inquisidor-geral de Castela, Aragão,

Leão, Catalunha e Valência.

A Inquisição espanhola se tornou independente do Vaticano no século 15, praticou os

abusos mais extremos, sobretudo com o uso dos autos da fé. Em 1545 o sumo

pontífice da Igreja Romana, devido ao declínio das atividades inquisitoriais, estabeleceu

uma das sedes gerais do Tribunal do Santo Ofício na Espanha. Outra se instalou em
33

Roma. A inquisição passou a atuar impetuosamente até 1808 quando houve a invasão

francesa de Napoleão Bonaparte (1769-1821). Os soldados franceses encontraram

muitas vítimas mortas ou ainda vivas no prédio do Tribunal do Santo Ofício. Segundo

eles, o ar estava empesteado com cheiro de carne em adiantado estado de putrefação.

Mas a trégua foi somente até o ano de 1814 quando os espanhóis retomaram o poder e

voltam a atuar em seu território por mais vinte anos, quando foi abolida a prática

inquisitorial.

O ano oficial do fim da Inquisição na Espanha data de 1843.

5.2.1 Thomás de Torquemada (1420 – 1498)

Frei Thomás de Torquemada era prior dominicano do convento de Santa Cruz em

Sergóvia. Tornando-se presidente de um quinto conselho real e confessor do casal real

Fernando e Isabel, passa a ser o símbolo da hipocrisia beata. Essa reputação está

diretamente ligada não somente aos escritores inimigos da Inquisição - Llorente,

Sabatini e Lea – mas também como às Instruções que ele redigiu e que o tornou

organizador real da instituição.


34

Seus autos-de-fé são a encenação mais refinada de um sistema de terror destinado a

impressionar a imaginação e a educar a população. Em 16 anos, Torquemada levanta

cerca de 100 mil processos, seguidos de 2 mil execuções.

Desde 1484, Torquemada convocou em Sevilha uma assembléia dos inquisidores, em

seguida à qual editou a primeira parte de Instruções. Outras reuniões se efetuaram em

Sevilha (1485), em Valladolid (1488) e em Ávila (1498) que permitiam completar o

regulamento. O sucessor de Torquemada, Deza, edita por seu lado as Instruções de

Sevilha (1500) e as de Medina del Campo (1504). Ximenes de Cisneros, finalmente

termina a obra em 1516. Por ordem de Alonso Manrique foi organizada uma compilação

geral destas diferentes instruções. Nela se incluem os suplementos formulados pelos

inquisidores gerais de Aragão, Engueza e Marcander, já que, de 1507 a 1518, Aragão e

Castela tinham tido Inquisições distintas. Mas tarde, Fernando Valdez dará forma

definitiva aos estatutos.

Vitor Hugo consagra, ao inquisidor-geral de Espanha, em 1869, as seguintes palavras:

“Para que o inferno se feche e o céu se abra, é necessária esta fogueira.

Porque

O inferno de uma hora anula o inferno eterno

O pecado arde com o vil andrajo carnal

E a alma sai, esplêndida e pura, da sua chama

Porque a água lava o corpo, mas o fogo lava a alma”


35

5.3 França

Em agosto de 1235, o papa Gregório IX nomeia inquisidor geral da França F. Robert

dito Bougre que já havia perseguido os cátaros. Em 1233 mandou queimar seus

primeiros culpados e logo foi enviado à uma missão secreta. Mostrou-se impiedoso no

começo do ano de 1239 quando mandou matar cinqüenta heréticos, uns queimados na

fogueira e outros enterrados vivos. Em maio do mesmo ano enviou ao carcereiro cento

e oitenta e sete.

O Santo Padre ordenou um inquérito que foi confiado ao Beneditino Mathieu Paris. Os

abusos e erros foram descobertos e Bougre suspenso de suas funções e condenado,

diz-se, à prisão perpétua.

No Sul da França, Gregório IX confiou aos Dominicanos a perseguição da heresia.

Foram designados Pedro Cella ou Seila e F. Guilherme Arnaud aos quais se juntou em

seguida Arnaud Catala nomeado pelo arcebispo legado de Viena. As condenações

mais uma vez foram severas. Os inquisidores tendo-se dirigido a Cahors instruíram

processos póstumos e um certo número de cadáveres, depois de terem sido levados

em ‘jaulas’, foram queimados. Em Moissac, foram duzentos e dez heréticos

condenados à fogueira. Novamente em Toulousse, instruindo novos processos contra

os cátaros, mandaram desenterrar os corpos. A pedido do conde Raimundo VII os

inquisidores cessaram esses procedimentos, mas as sentenças contra os vivos


36

tornaram-se mais numerosas. Motins libertaram os prisioneiros, inquisidores morreram

durante um levante popular. Guilherme Arnoud excomungou o conde, os cônsules e o

legado do papa confirmaram a sentença. Gregório IX apelou para o rei, a quem se

dirigiu, por seu lado, Raimundo VII. O papa mostrou-se conciliador anulando as

excomunhões e pedindo que agissem com maior ponderação. Com sua morte em 1241

os Dominicanos retomaram a sua ação. E em Lavour condenam cátaros à fogueira.

Raimundo VII voltou a ser excomungado. Em 1243, as tropas reais cercaram

Montségur, local que os Albigenes sempre encontraram refúgio.

No dia 23 de julho de 1295 foi instituído um novo tribunal para cuidar dos assuntos da

região. O Conde de Foix, Roger IV tornou-se um ardente apoiador dos inquisidores.

Mas o mesmo não escapou das ameaças devido a seu pai, que suspeito de heresia,

corria o risco de ter seu cadáver desenterrado da terra benta para ser queimado.

Vale lembrar que, por mais que os cátaros fossem o alvo principal da inquisição

francesa, os valdenses, beguinos, feiticeiros e judeus também entravam na lista de

perseguidos. Muitos deles viviam secretamente e a declaração de familiares, parentes e

amigos passou a ser válida para que os inquisidores conseguissem prender tais

hereges. Essa era também uma maneira de algumas pessoas verem-se livres de uma

esposa indesejada ou um falso amigo.

As inúmeras reclamações chegaram ao ouvido do rei Felipe, o Belo, que pediu

imediatamente uma investigação. Ele interveio e melhorou o regime nas prisões, fez
37

com que o rendimento dos bens dos condenados servisse à manutenção das prisões e

dos prisioneiros. Mas logo em seguida teve que usar a Inquisição contra os templários,

com o objetivo essencialmente político.

Já no começo do século XIV a Inquisição passou a tomar forma mais regular. Foi nessa

mesma época que o Directorium Inquisitorum (Manual dos Inquisidores) é escrito por

Nicolau Eymeric. Bernard Guy também detalha a religião cátara nessa mesma obra.

Os processos de inquisição tornaram-se cada vez menos numerosos, as sentenças

menos severas e depois de 1326 não se tinha mais conhecimento de pregadores

cátaros. A Inquisição francesa passou a se preocupar mais com outras heresias até

desaparecer no começo do século XV.

5.4 Itália

Desde a primeira metade do século XI a heresia encontrava-se na Lombardia. Os

conhecidos como patarinos, foram responsáveis pela expulsão do bispo de Brescia por

volta do ano de 1146 e com o apoio de Arnaldo de Brescia, o papa Eugênio III foi

obrigado a abandonar Roma e seu palácio, mas seu poder foi retomado com o auxílio

de Rogério da Sicília após longas batalhas. Em 1155 Arnaldo foi preso, decapitado e

seu corpo, queimado.


38

Com o refúgio dos Albigenes no norte da Itália a heresia foi reforçada. E em 1224,

Honorius III opõem-se e ordena aos bispos a perseguição. Em 1228, citando o decreto

publicado por Frederico II6, Geofredo7 mandou expulsar os heréticos de Milão e suas

adjacências. O podestante8 se comprometeu em aplicar esta constituição e não vendo

muitos resultados, Gregório IX revelou sua indignação e pediu para que o arcebispo da

Santa Sé aplicasse com urgência os estatutos. No mesmo ano, com todas as

dificuldades encontradas na resistência da nobreza, Gregório já tinha mandado prender

vários cátaros que tinham abjurado seus erros. Em Bolonha, o frade mendicante Jean

de Vicence não teve qualquer dificuldade em expulsar os patarinos e em Trevisa

(1233), mandou queimar sessenta contrariamente do dominicano Aldobrandino

Cavalcante, que, em Florença, encontrou muitas dificuldades frente às famílias mais

nobres.

O poder da inquisição é enorme. Mas não podemos deixar de lembrar que, ainda sim, a

Igreja tinha muitos inimigos poderosos como foi o caso de Ezzelin de Romano que

possuía Verona, Pádua, Vicence, Trento, Brescia, etc. e foi excomungado sem nenhum

resultado. No dia 29 de abril de 1245, Pedro de Verona, inquisidor de Milão, foi

assassinado.

6 Visava a confiscação dos pertences dos heréticos e a demolição de suas habitações. Os que
encobrissem seria aplicada multa de vinte e cinco a cem libras. Seus objetivos eram mais políticos
encarava a heresia como crime de lesa-majestade, portanto, passível de morte.
7 Legado da Santa Sé em Lombardia.
8 Antigo nome do primeiro magistrado de várias cidades da Itália e sul da França.
39

Em Parma, tendo a Inquisição mandado queimar duas mulheres (uma de família nobre

e outra esposa de um albergueiro), o povo atacou o convento dos Dominicanos,

matando um dos frades e ferindo outros. Os monges tiveram que esperar oito anos

para voltarem a Parma depois de terem tentado inutilmente o interdito contra a cidade.

Em 1260 a Igreja consegue fundar uma liga católica com o apoio dos senhores de

Borgonha, Parma e Régis que foi encarregada de tomar as cidades que resistiam à

inquisição. Em Sermione, onde o bispo era cátaro, foi tomada em 1273 e duzentos

patarinos foram queimados cinco anos mais tarde.

Oficialmente, a Inquisição romana foi instituída em 21 de julho de 1542, pela bula Licet

ab Initio do papa Paulo III. Originalmente, ela foi formada por seis cardeais: Gian Pietro

Carafa9, Giovanni Morone, Pietro Paolo Parisio, Bartolomeo Guidiccioni, Dionisio

Laurerio e Tommaso Badia. No final desse mesmo ano, a instituição criada tinha seu

poder aumentado. França e Espanha, por serem os dois estados católicos mais

importantes, passaram a ser fontes de inspiração. Durante séculos o tribunal romano

exerceu autoridade sobre todos os italianos. O prestígio da congregação do Santo

Ofício da Inquisição foi garantido: presidido pessoalmente pelo papa, era-lhe concedida

a precedência sobre todas as outras instituições da cúria romana.

No ano de 1559, com a morte de Paulo IV, o povo de Roma libertou os presos das

masmorras e queimou documentos com informações consideradas perigosas. Já no

9
Maior opositor das doutrinas luteranas e cardeal arcebispo de Nápoles.
40

final do século XVIII, quando chegaram as tropas francesas de Napoleão à Itália e o

poder do papa foi derrubado deveras, outros milhares de documentos foram

queimados. Uns como protesto ao fim do obscurantismo e outros para dar fim aos

segredos inconfessáveis, como foi o caso dos arquivos de Bolonha, segunda cidade

dos Estados da Igreja.

5.5 Portugal

Data de 23 de maio a bula papal que instituiu a inquisição em Portugal. Mas, na prática,

ela estabeleceu-se em 1547. Seu objetivo era manter puros os dogmas da fé católica.

Para isto, prendia, processava e punia os hereges, ou seja, aqueles que, sendo

cristãos, não acreditavam na doutrina da Igreja ou não cumpriam seus deveres

espirituais. Foi instalado pelo papa, a pedido do rei, em uma época que cumpria ao

Estado zelar pela pureza da fé de seus súditos.

A inquisição portuguesa perseguiu protestantes, portugueses descendentes de

islâmicos, os chamados mudéjares, homossexuais, mulheres (geralmente, acusadas de

bruxaria) e, principalmente, cristãos-novos. Todos, segundo a crença oficial, capazes de

ameaçar a soberania do trono na metrópole e nas colônias.


41

O Tribunal do Santo Ofício funcionou com apoio do rei e da Igreja. Existia marcada

hierarquia que começava no inquisidor-geral, seguindo-se os inquisidores, deputados,

qualificadores, comissários, notários, promotores, até chegar, na base da pirâmide, a

anônimos cidadãos. Estes eram pessoas comuns que, aceitas nos quadros da

inquisição - depois de demonstrar conhecimento de assuntos da fé, capacidade de

guardar segredo, posses materiais e, principalmente, provar ter sangue limpo que, na

linguagem inquisitorial, significava não descender de judeus - contavam aos superiores

qualquer problema de heresia que viessem saber.

A inquisição portuguesa teve três tribunais no reino: Lisboa, Coimbra e Évora, esta

última particularmente violenta. Os julgamentos podiam demorar meses. Mas quem

caía nas mãos do Santo Ofício sabia que o menos ruim que poderia lhe acontecer era a

desgraça pública. Mesmo quem não era condenado a morrer na fogueira, tinha os bens

confiscados e recebia a pena de humilhação: não podia falar com ninguém, afastava-se

dos familiares e vestia, obrigatoriamente, uma bata que o apontava como condenado

da inquisição. Para obter uma confissão, a Igreja aprovara o uso de tortura, aplicada

pelos padres envolvidos nos interrogatórios. A ordem dominicana, a mesma de Tomás

de Torquemada, o famoso inquisidor espanhol, foi particularmente atuante na caça aos

hereges e judeus.

A expulsão dos judeus da Espanha ocasionara uma verdadeira invasão de Portugal. D.

João II (1481-1495) tinha fixado em 600 o número de famílias judias que podiam ser

acolhidas em seu país. Em vão. Seu sucessor, D. Manuel I (1495-1521) enfrentou


42

graves problemas. Em dezembro de 1496 expulsou os Judeus que não se convertiam.

Foi a vez de Portugal travar combate com os cristãos-novos. A guerra foi tão sangrenta

que em Lisboa, D. Manuel I mandou executar de uma só vez 50 cristãos culpados e

dois dominicanos instigadores. D. João III julgou encontrar uma solução instalando o

Santo Ofício em Coimbra, Évora e Lisboa. Portugal foi parte integrante da Espanha de

1580 (Filipe II) até 1640 (Filipe IV) e dependia do Conselho de Madri. Com a

independência, a Inquisição sobreviveu um século mais: até as reformas de Pombal em

1773

Após uma condenação, o culpado tinha direito a suplicar clemência. Entre a sentença e

sua execução, às vezes corria mais de um ano. As execuções aconteciam em Autos da

Fé, procissões que começavam pela manhã com os condenados vestindo suas

melhores roupas, caminhando em direção às fogueiras armadas no atual Rocio ou às

margens do rio Tejo, em Lisboa. O Auto era uma festa para a população que se

comprimia para assistir o espetáculo e, muitas vezes, contou com a assistência da

família real: rei, rainha e infantes. Por isto mesmo - e por considerá-lo didático - a Igreja

o esticava por muitas horas. Era comum o condenado esperar que os inquisidores

fizessem uma refeição festiva, antes de ouvirem a sentença final.

Poderia acontecer de um ou outro ser perdoado na última leitura da sentença e receber

uma pena mais leve. Os destinados às fogueiras tinham dois destinos. Se admitissem a

culpa, recebiam um garrote antes de o fogo ser aceso. Se não o fizessem, insistindo em

jurar inocência, eram queimados vivos.


43

A tal ponto a inquisição tornou-se violenta que muitos condenados que morreram de

causas naturais antes da execução da sentença, foram enterrados e, na época do Auto

de Fé, desenterrados para que seus corpos pagassem a culpa devida.

Tanta perseguição provocou, entre os cristãos-novos, uma fuga maciça de Portugal.

Como não podiam atravessar a fronteira da Espanha porque uma ordem real impedia,

determinando que os cristãos-novos fugitivos de Portugal e presos em território

espanhol fossem levados diretamente à fogueira, restava a eles a opção dos

arquipélagos Madeira e Açores e o Brasil. É significativo o número de cristãos-novos

que emigraram para o Brasil nos três séculos em que, oficialmente, funcionou a

inquisição portuguesa, encerrada no século XIX (1821).

5.5.1 Marquês de Pombal (1699 – 1782)

Político português, verdadeiro dirigente de Portugal durante o reinado de José I, o

Reformador Sebastião José de Carvalho e Melo, nasceu em Lisboa no dia 13 de maio

de 1699. Estudou na Universidade de Coimbra. Em 1738, foi nomeado embaixador em

Londres e, cinco anos depois, embaixador em Viena, cargo que exerceu até 1748. Em

1750, o rei José nomeou-o secretário de Estado (ministro) para Assuntos Exteriores.

Quando um terremoto devastador destruiu Lisboa em 1755, organizou as forças de


44

auxílio e planejou a reconstrução da cidade. Foi nomeado primeiro-ministro neste

mesmo ano.

A partir de 1756, seu poder foi quase absoluto e realizou um programa político de

acordo com os princípios do Século das Luzes ou Iluminismo. Aboliu a escravidão,

reorganizou o sistema educacional, elaborou um novo código penal, introduziu novos

colonos nos domínios coloniais portugueses e fundou a Companhia das Índias

Orientais. Além de reorganizar o Exército e fortalecer a Marinha portuguesa, foram

desenvolvidos a agricultura, o comércio e as finanças, com base nos princípios do

mercantilismo.

No entanto, suas reformas suscitaram grande oposição, em particular dos jesuítas e da

aristocracia. Quando ocorreu o atentado contra a vida do rei em 1758, conseguiu

implicar os jesuítas, expulsos em 1759, e os nobres; alguns destes foram torturados até

morrer. Em 1770, o rei lhe concedeu o título de marquês.

Depois da morte do rei José I, foi condenado por abuso do poder. Expulso da corte,

retirou-se para a sua propriedade rural em Pombal, onde faleceu no dia 8 de maio de

1782.

5.6 Brasil
45

Oficialmente, a inquisição nunca foi estabelecida no Brasil. Tanto o país como as ilhas

atlânticas ficaram sob a jurisdição do Tribunal de Lisboa. Os suspeitos de heresia

contra a Fé Católica eram mantidos presos enquanto aguardavam embarcações que os

transportassem para Lisboa. Para aqui vieram algumas Visitações como as da Bahia

(1591 e 1618), a de Pernambuco (1593 a 1595) e a do Pará (1762). O processo

inquisitorial era diferente na medida em que podia ser interrompido no momento em que

houvesse a confissão completa. A tortura foi aplicada, mas não como regra. A escala

penal também não era fixa, dependendo da gravidade da falta e da atitude do réu: ia

desde a admoestação à pena pecuniária. No entanto, houve casos de cristãos-novos

serem repatriados do Brasil para Portugal, onde acabaram sendo executados na

fogueira. Entre eles destaca-se o escritor Antônio José, conhecido pelo apelido de O

Judeu.

Em toda a América, somente três tribunais foram instaurados nos seguintes lugares:

México (Nueva España), Lima (Ciudad de los Reyes) e em Cartagena das Índias (Tierra

Firme). O procedimento dos tribunais era semelhante ao utilizado pelos tribunais

espanhóis, mas, ao que parece, a atuação foi menos agressiva. Isso se deve a dois

motivos: a conduta que deveriam ter para com os índios e com os prisioneiros

reformados.

Isabel, a Católica, sempre quis também que os índios fossem tratados com respeito e

bondade. Segue um trecho extraído das instruções dada aos inquisidores:


46

“É vos assinalado que não podeis agir contra os índios do vosso

distrito. Com efeito, de momento e até a nova ordem, a nossa

vontade é que apenas useis dos vossos poderes contra os cristãos

de velha data, os seus descendentes e as outras pessoas contra

quem se age normalmente na Espanha. Devereis julgar os casos,

que haveis de reconhecer, com moderação e doçura, como

convém, de modo que a Inquisição seja temida e respeitada e que

não provoque o ódio.”

Os índios então não poderiam ser julgados pelo Santo Ofício, a não ser que fossem

batizados. Em 1583, concedeu-se aos índios, que todo padre escolhido pelo bispo tinha

o poder de os absolver do pecado de heresia. Um exemplo nos mostra como era tal o

cuidado que se tinha com eles: na metade do século XVIII, o cura mandou chicotear,

depois de julgamento, várias índias que pretendiam ser feiticeiras e sair durante a noite

de sabá; ele entregou-as como escravas para várias famílias. O presidente da

Audiência rapidamente interferiu para colocar tudo em ordem.

Os indígenas tinham uma igual civilidade, houve casamentos entre raças, filhos entre

eles e pleno respeito. Consta que os únicos brasileiros que receberam a pena de morte

na fogueira foram cristãos-novos acusados de praticar suas cerimônias. Já os que se

aliavam à Igreja, eram quase todos sentenciados com o “cárcere e hábito penitencial

perpétuo”. Que significava vestir, até o último dia de sua vida, uma vestimenta

específica infame sobre seu corpo, além de ter seus bens serem tomados pelo rei ou

pela Igreja.
47

Até os dias de hoje, as pesquisas afirmam que foram presos, no Brasil, 1.076 pessoas.

E desse número, 29 receberam pena de morte1. Sociedades secretas viviam

espalhadas por todo território brasileiro. Citemos como exemplo Diogo Nunes

Henriques, de Minas Gerais, que foi preso por pensar e dizer que “cada homem deveria

ter o direito de adorar Deus segundo sua própria consciência, por possuir “livros”, não

ensinar a doutrina cristã aos seus escravos e por dizer “Ah! Deus!”, ao invés de “Ah!

Jesus!”, quando suspirava.

Muitas das pessoas que lutaram pela liberdade brasileira, de acordo com nossa

história, tiveram descendência judaica. Como é o exemplo de Joaquim Nabuco,

defensor da liberdade dos negros, que tinha descendência direta de rabinos judeus.

São Paulo, por ser uma região pouco visada pela inquisição, abrigou os mais

importantes bandeirantes de origem judaica: Antonio Raposo Tavares, Pedro Vaz de

Barros, Garcia Rodrigues Pais, André Fernandes entre outros.

Diferentemente de alguns países europeus, o Brasil traz uma pequena lembrança em

sua memória do que realmente foi a inquisição. Justamente por estar sendo colonizado

na época em que pessoas eram queimadas vivas na Europa, ele foi poupado da

história sangrenta que o Santo Ofício protagonizou.


48

6 OS REFORMADORES

6.1 John Wycliffe (1330-1384)

Wycliffe era saxão de Hipswell, Inglaterra. Professor da Universidade de Oxford e,

atualmente é considerado um dos grandes sábios de sua época; discípulo de Ockham e

adversário da supremacia do Papa. Aproveitava as fraquezas do clero para ridicularizá-

las. Apoiou o parlamento, que recusou o tributo do Papa e a Lancastre, que propunha

que se retirassem os benefícios dos bispos. Escreveu De Domínio Divino, onde provava

que a autoridade é Deus. Entre seus princípios estabelecia que as relações de Deus

para com os homens eram diretas: não eram necessários os intermediários, e isso era

um golpe contra Roma. Foi trazido á corte eclesiásticas de S. Paulo e teve Lancastre a

seu lado, como defensor. Achava mais, que os eclesiásticos deviam ser submetidos ao

tribunal civil.

Atacou e ironizou perdões, indulgências, absolvições, peregrinações, cultos de santos,

etc. E Roma teve o desgosto de não o poder levar para a fogueira. Morreu

tranqüilamente, depois de um ataque de paralisia.

Em 1376, enunciou a doutrina do ‘poder fundado na graça’, segundo a qual toda

autoridade é concedida pela graça de Deus. É, portanto, um direito perdido por aqueles
49

que cometem pecados mortais. Proibido de pregar pelo Bispo de Londres, em 1378,

perante alguns professores de Oxford, desafiou a tradição escolástica ao traduzir a

Vulgata*(Bíblia, em latim) para o inglês. Wycliffe acreditava na relação direta entre a

humanidade e Deus, sem mediação sacerdotal. Opinava que os cristãos podiam

governar-se pela observância das Escrituras e sem ajuda de papas e prelados.

Depois de sua morte, seus ensinamentos propagaram-se e os Lolardos, seus

seguidores, distribuíram a Bíblia publicada em 1388. Seus escritos inspiraram o

reformador religioso da Boêmia, John Huss, a se rebelar contra a Igreja. Martinho

Lutero também admitiu ter recebido influência de Wycliffe. Em maio de 1415 o Concílio

de Constança revisou suas heresias e ordenou que o corpo de Wycliffe fosse

desenterrado e queimado. Trinta e um anos depois da sua morte, o Concílio de

Constança condenou todos os seus livros à fogueira, seus ossos foram desenterrados e

queimados, e sua cinzas dispersas sobre o Rio Tâmisa.

6.1 John Huss (1369 – 1415)

John Huss nasceu em 1369 em Husinec, Boêmia. Filho de pais camponeses, formou-se

como bacharel em Artes em 1393 e em Teologia em 1394. Em 1398 passa trabalhar

como professor na fixação da ortografia e na reforma da língua literária tcheca. Três

anos depois é nomeado decano da faculdade de filosofia. Nessa época, passa a


50

conhecer e se aproximar da obra do reformador inglês John Wycliffe e considera-se

teologicamente seu discípulo. Em 1402 passa a ser reitor da Capela de Belém, em

Praga. E, no ano seguinte, com o apoio do bispo de Zbynek, é nomeado pregador do

sínodo anual que o clero tcheco celebrava em Praga.

Assim como Wycliffe, Huss não aceitava a supremacia papal, mas sim que Cristo era o

chefe de uma Igreja. Começa a traduzir as obra de Wycliffe, faz uma propaganda anti-

romana, ataca o clero e começa, dessa forma, a formular suas doutrinas. O pontificado

começa a despertar justos receios, pois Huss nega a necessidade da confissão

auricular, ataca como idolátrico o culto das imagens, a inefabilidade do Papa, declarou

anti-cristãs as censuras eclesiásticas e reivindicou comunhão entre as duas espécies

humanas.

A Capela de Belém, onde Huss pregava, fora fundada para que nela só se falasse em

tcheco, pois, antes disso, só podia se falar latim. A Igreja ocupava um lugar excepcional

na Boêmia; a opulência e os privilégios que gozava produziram o enfraquecimento das

regras canônicas e da moral e Praga revoltou-se contra os abusos eclesiásticos. As

preocupações de uma reforma religiosa, juntaram-se com as reivindicações nacionais.

Em 1408, a pedido do Papa Inocêncio VII, o bispo de Zbynek o proibiu de atacar Roma

e preconizar as doutrinas de Wycliffe. Ainda assim, Huss apoderou-se da Universidade

de Praga que o rei Venceslau concedera à nação tcheca a 18 de janeiro de 1409.

Desde então, declarou-se abertamente defensor das obras de Wycliffe e contra o clero
51

e o Papa. O bispo afirma que Huss publicara um tratado onde desenvolvia a tese de

que um cristão não deve correr atrás de milagres. E, em seguida, retiram-lhe o cargo de

pregador sinodal.

Mas a rainha Sofia gostava de ouvi-lo, e daí surge um conflito político e religioso. John

Huss aparece como chefe do partido nacional. A oposição cresceu contra ele e, em

1410, foi excomungado pelo bispo de Zbynek e pelo legado papal Oton Colonna. Mas

isso resultou em um enorme tumulto popular, pois, com o apoio do rei Venceslau, foi

festejado como o herói nacional.

Por instigação de Huss, o rei modificou os Estatutos que permitia aos alemães, como

partidários de Gregório XII, terem direito a três votos como representantes da nação

polonesa contra um da nação Tcheca para decidir pela neutralidade entre dois papas

que, na época, pretendiam chefiar o mundo cristão. Com isso, a nação Tcheca ficou

com os três votos e a alemã com um. Cerca de 5.000 alemães, entre eles professores e

alunos, abandonaram Praga. Foi então que John Huss assumiu a reitoria da

Universidade, que se tornou inteiramente eslava.

Ora, o bispo, que era por Gregório XII, acusou Huss de heresia wiclifita e transmitiu sua

queixa a Alexandre II, eleito pelo Concílio de Pisa. O Papa então, pela bula de 1409,

exigiu a retratação dos erros wiclifitas e mandou apreender todos os livros de Wycliffe e

interditar a pregação em Igrejas que não fossem as antigas. Huss ainda apelou, mas o

bispo fez queimar os escritos de Wycliffe e excomungou seus partidários. Mas o clero
52

inferior, a Universidade, o povo e o rei ficaram do lado de John Huss. A prédicas na

Capela de Belém continuaram apesar da bula, ninguém se incomodou com o interdito

contra Praga.

O tráfico das indulgências e a política guerreira do Papa escandalizaram Huss e seus

discípulos. Huss sustentava que o perdão dos pecados só de poderia obter por

contrição e penitência sincera e não por dinheiro; que nem o Papa, nem qualquer

sacerdote, poderiam levantar a espada em nome da Igreja; que a infalibilidade do Papa

era uma blasfêmia.

Houve o discurso inflamado de Jerônimo de Praga, cortejos satíricos, onde se

ridicularizava a Igreja Oficial. A Igreja foi desmoralizada, a bula papal foi queimada por

Jerônimo, debaixo de uma forca, como vingança pelos livros queimados de Wycliffe. O

rei de Nápoles estabeleceu a pena de morte para quem ofendesse o Papa, e logo três

homens foram decapitados. Hussitas enterraram solenemente os corpos e Huss lhe fez

o necrológio.

Boêmia estava sob a ameaça de excomunhão do Papa e Venceslau aconselhou Huss,

pela segunda vez excomungado, a deixar a capital em 1412. E ele o fez. Mas o

imperador Sigismundo, irmão de Venceslau, entendia-se com João XXIII para convocar

o Concílio de Constança, de cujo programa constava a pacificação religiosa. E, em

1414, tendo o imperador prometido a Huss um salvo-conduto, ele comparece ao

Concílio. Recebe o salvo-conduto que dizia que ele podia transire, stare, morari et
53

redire libere. Mas, pedindo para retirar-se, João XXIII manda prende-lo e é internado no

Convento dos Dominicanos, em um lugar repugnante. Instauram-lhe um processo; o ato

de acusação coube a Etienne Palec.

John Huss ficou sob guarda do Bispo de Constança e o transferiram para o torreão do

castelo de Gottlieben, por medida de maior segurança. Foi encadeado assim

permaneceu dias e noites até ser transferido para o Convento dos Franciscanos.

O Concílio condena as obras de Wycliffe e apresentam a Huss seu tratado De Ecclesia;

sem poder se defender, Huss se cala perante as vozes do tribunal. Fizeram-no abjurar

e submeter-se à prisão da Igreja. A 6 de julho de 1415 é proclamada a condenação de

John Huss e logo é executada. Foi degredado e lhe fizeram um chapéu de papel, onde

se lia: Hic est hoere siarcha (Eis o herege). Conduzido a um terreno vazio, tiram-lhe a

roupa, amarram-no a um poste, juntaram a lenha envolta e põem fogo. Ouviram-no

cantar a primeira linha da litania - Christo, Fili Dei vivi, miserere nobis. Mas a fumaça lhe

tirou a voz e suas cinzas foram jogadas no Reno.

6.3 Martinho Lutero (1483-1546)

Nascido na Alemanha, o teólogo e reformador religioso foi personagem fundamental da

história moderna européia. Sua influência reformista alcançou não somente a religião,
54

mas a política, a economia, a educação, a filosofia, a linguagem, a música e outras

áreas culturais. Em 1512, doutorou-se em Teologia na Universidade de Wittemberg e

assumiu a cátedra de Teologia Bíblica como pregador oficial do convento de

Wittemberg, que conservou até a morte. Foi atuante pregador, professor e

administrador. Ao estudar o Novo Testamento para a preparação de suas aulas,

convenceu-se de que os cristãos são salvos não por seus próprios esforços e méritos,

mas pelo dom da graça de Deus, aceita pela fé. Lutero conservou apenas dois dos sete

sacramentos do catolicismo: batismo e eucaristia, ou comunhão. Mesmo assim, na

eucaristia acreditava apenas na presença de Jesus no pão e no vinho, e não na

transformação do pão e do vinho no corpo e no sangue de Cristo, como os católicos

acreditam.

Em 1517, expôs, na porta da Igreja de Todos os Santos de Wittemberg, suas 95 teses,

escritas em latim, contra a venda de indulgências. Elas diziam que a verdadeira

penitência não podia ser comprada, que eram obras somente de Deus, ligadas ao

mérito de Cristo ao qual nos une a fé e não as preocupações mercantis. Lutero

defendeu suas opiniões, energicamente, nos debates universitários públicos em

Wittemberg e outras cidades.

Esta posição acabou provocando um inquérito por parte da Igreja romana e Lutero se

nega a retratar de suas teses. Nesse mesmo período escreveu os livros que serviriam

de base para sua nova doutrina: “O papado de Roma”, “Manifesto à nobreza cristã da

nação alemã”, “O cativeiro babilônico da Igreja” e “Da liberdade do cristão”. Em 1520, A


55

bula Exsurge Domine condena suas obras ao fogo por serem consideradas heréticas.

Como resposta, Lutero queima a tal bula e um exemplar do direito canônico como

protesto e acaba sendo excomungado pelo papa Leão X. Logo é chamado para

comparecer ante à Dieta de Worms. Com um salvo conduto, comparece para responder

a seu processo que durou três dias. Sua resposta ao papa é simples e direta: “Fui

dominado pelos argumentos bíblicos que citei, e minha consciência está ligada a

palavra de Deus. Não posso e não quero desdizer nada, pois é perigoso e não temos o

direito de agir contra nossa própria consciência. Deus me ajude. Amém.”. No final, sai

vitorioso do tribunal.

Após ser banido por Carlos V do Sacro Império pelo edito de Worms e ter seus livros

queimados, decidiu ir para o castelo de seu amigo príncipe Federico da Saxônia. E por

lá permaneceu icógnito por um ano para proteger-se. Lá iniciou a tradução do Novo

Testamento do original grego para o alemão (de grande importância para o

desenvolvimento da língua alemã). Em 1526 a cidade de Espira não aceitou o Edito de

Worms contra as obras de Lutero. E Carlos V, forçando-os a isso, provocou o protesto

de 6 príncipes e 14 cidades. Três anos depois, as cidades protestantes se reuniram na

Liga de Smaikalde contra Carlos V que, em guerra contra a França e contra o Império

Otomano, não teve como reagir para impedir o avanço do luteranismo.

Em 1529, Lutero publicou seu Pequeno Catecismo onde explica, em linguagem

simples, a teologia da Reforma evangélica. Seus princípios eram os seguintes:


56

1. A única fonte de fé é a Bíblia, livremente interpretada pelos cristãos;

2. O único meio de salvação é a fé em Cristo. Os Sacramentos e as boas obras não

são válidos como meio de se obter a salvação;

3. A Igreja é a simples reunião dos crentes, e todos têm o mesmo direito;

4. O culto consiste na pregação feita pelos pastores ou “ministros de Deus”

Proibido de assistir à Dieta de Augsburg por ter sido excomungado, Lutero delegou a

defesa dos reformadores, formulada na Confissão de Augsburg (1530), a seu amigo, o

humanista Felipe Melanchthon. Em março de 1522 abandona o refúgio e durante 24

anos será pregador, professor, panfletário, escritor, orientador de consciências, chefe

de Igreja e, às vezes, homem de estado. Sua influência estendeu-se ao norte e a leste

da Europa e seu prestígio contribuiu para que Wittemberg se tornasse um centro

intelectual.

7 A ESTAGNAÇÃO DO PENSAMENTO

7.1 Espanha

No início do século XVI, a Espanha criou uma barreira contra a difusão das obras de

Lutero. No ano de 1523, medidas foram tomadas para que não houvesse uma

propagação de idéias luteranas. Cada barco que atracava em um porto era visitado
57

com prioridade pelos inquisidores. Mas com a astúcia de alguns contrabandistas, era

possível fazer com que os livros proibidos traduzidos entrassem na península. Os

marinheiros que aportavam só conseguiam ir à terra se fossem discretos. Caso

cruzasse com algum padre, tinha a opção de se ajoelhar eu se esconder rapidamente.

Oficialmente, nenhum contato era possível entre o mundo da reforma e a população

espanhola.

Os livros que na própria Espanha eram publicados tinham que passar por dois exames.

Um antes de impressão e o outro após. Caso uma publicação não contivesse essas

aprovações, seria uma obra proibida e, conseqüentemente, herética e passível de

morte ao que a possuísse. Essa automatização da avaliação causava uma opressão ao

pensamento, condenava as pessoas a ignorância total. E os que ousavam ir mais além,

divulgando um pensamento, por exemplo, corria o risco de ser intimado ao um tribunal

devido a sua audácia.

Desde a instauração do primeiro auto-de-fé de 1680, grandes nomes foram incluídos na

lista de homens de letras apanhados pelo tribunal da Santa Inquisição: F. de Rojas

(autor presumido de La Celestina), Cervantes, Gógora, Tirso de Molina, Lope de Veja e

muitos outros.

Em La Celestina (1499), uma obra prima mundialmente tida como referência das

conquistas do império romano, o autor descreve, nitidamente, uma bruxa e suas

práticas. Celestina conjura Satanás. É possível nos imaginar onde ela está e como está
58

fazendo seus encantamentos - juntamente com a presença de Plutão - de tão detalhista

descrição. Sua mediação será fatal à virtude da bela Mélibée. E o amoroso Calixto, não

se contendo de tanto desejo, conversa com seu criado: “Eu preferia não ter alma

nenhuma como um animal a suportar semelhantes agruras no purgatório”. Espantado, o

criado diz: “Mas isso é uma heresia denominada...”. Sem parecer se importar muito,

Calixto responde: “Que me importa isso?...” “Não és cristão?” “Eu sou Mélibée; eu

adoro Mélibée, eu creio em Mélibée e eu amo Mélibée.” Mesmo que a história seja

seguidas de grandes cenas de amor e tendo um final terrível para aqueles que

mereciam os castigos, não seria essa uma obra recheada de suspeitas? Qual inquisidor

a deixaria passar por seu crivo?

Outro exemplo é Lazarillo de Tormes (1554). O livro nos conta sobre um padre

avarento, hipócrita e vil. Seu criado quase dá a vida frente a um prato de comida. Numa

visita que eles fazem a uma família com um velho doente moribundo, Lázaro ora

veemente a Deus para que ele tire rapidamente a vida do homem. Ele sonha com a

refeição depois do funeral: “Meu Deus, levai-o! Meu Deus, levai-o!”. Esse humor negro

não foi muito favorável a imagem da Igreja. O inquisidor-geral Valdez incluiu a Vida de

Lazarillo de Tormes em seu Catálogus librorum Qui prohibentur de 1559. Mas o

sucesso da obra foi tão grande, que outras vinham do estrangeiro e uma nova edição,

de 1573, que circulava pela Espanha foi expurgada por Juan Lopes de Velasco. Mesmo

sendo até 1835 a única oficial na península, os intelectuais da época a conheciam

integralmente.
59

Alguns autores, como o da obra citada logo acima, tiveram que viver no anonimato por

muito tempo. Mas muitos outros não puderam. Tiveram que se apresentar perante a

censura e tribunal, como é o exemplo de Frei Luís de Leon e Quevedo.

No ano de 1640 o Index espanhol proíbe as traduções da bíblia, no seu todo ou em

parte. As proibições de Sourbonne e os Index romanos não queriam somente vetar os

pensamentos heterodoxos, o objetivo era mesmo o de eliminar. Eles foram muito mais

rigorosos que as listas espanholas.

7.1.1 Miguel de Cervantes Saavedra (1547-1616)

Miguel de Cervantes Saavedra nasceu em Alcalá de Henares, Madri. Provavelmente no

dia 29 de setembro de 1547. Com apenas 24 anos participou com heroísmo da batalha

de Lepanto, de onde saiu ferido, perdendo os movimentos do braço esquerdo. Em

1575, quando voltava para a Espanha, os corsários o prenderam e o levaram para

Argel, onde passou cinco anos preso.

Liberado pelos frades trinitários, publicou sua prosa narrativa: primeira parte de La

Galatea (1585) e lutou, sem êxito, para apresentar o texto no teatro. A segunda parte

nunca foi publicada.


60

Sua obra poética abrange sonetos, canções, éclogas, romances e outros poemas

menores, dispersos ou incluídos em seus romances e comédias. Também escreveu

poemas maiores, como Canto de Calíope (que incluía o La Galatea).

Em 1605, publicou a primeira parte de Dom Quixote, com o título original de El

ingenioso hidalgo don Quijote de la Mancha. O êxito foi imediato. A segunda parte foi

escrita em 1615, com o título El ingenioso cavallero don Quijote de la Mancha. Em

1617, as duas partes foram publicadas juntas em Barcelona e, desde então, se

converteu em um dos livros mais vendidos em todo o mundo. Com o tempo, foi

traduzido para todas as línguas com tradição literária.

Cervantes afirmou várias vezes que sua primeira intenção foi mostrar aos leitores da

época, os disparates dos romances de cavalaria. Com certeza, escreveu um livro

divertido, pleno de comicidade e humor, com o ideal clássico de prazer.

Para o teatro, escreveu El trato de Argel, Numancia e Oito comédias e oito entremezes,

nunca representados (1615). As comédias são: El gallardo español, La casa de los

celos y selvas de Ardenia, Los baños de Argel, El rufián dichoso, La gran sultana doña

Catalina de Oviedo, El laberinto de amor, La entretenida y Pedro de Urdemalas. E os

entremezes: El juez de los divorcios, El rufián viudo, La elección de los alcades de

Daganzo, La guarda cuidadosa, El vizcaíno fingido, El retablo de las maravillas, La

cueva de Salamanca e El viejo celoso.


61

Em seus últimos anos de vida escreveu as Novelas exemplares (1613) uma série de

romances curtos que escreveu entre os anos de1590 e 1612. No prólogo, anuncia sua

novidade: “eu sou o primeiro romancista a escrever na língua castelhana”. A coleção

começa com La gitanilla, seguida de El amante liberal, Rinconete e Cortadillo, La

española inglesa, El licenciado Vidriera, La fuerza de la sangre, El celoso extremeño,

La ilustre fregona, Las dos doncellas, La señora Cornelia, El casamiento engañoso e El

coloquio de los perros. Com esta última, o autor pretende superar as limitações do

romance velhaco incluindo a perspectiva que faltava, a do destinatário.

Em seguida escreve Viaje al Parnaso (1614) e a segunda parte de Dom Quixote (1615).

Dedicou seus últimos meses de vida a Los trabajos de Persiles y Segismunda (de

publicação póstuma, em 1617) que foi, talvez, o livro mais repleto da fantasia de

Cervantes. Uma idealizada novela de aventura que constrói uma linda ficção, cheia de

modernidade e cosmopolitismo. Miguel de Cervantes Morreu em Madri em 22 de abril

de 1616.

7.1.1.1 O engenhoso fidalgo Dom Quixote de la Mancha

Tendo eu a honra de possuir a obra traduzida, arrisco aqui fazer algumas observações

acerca de tal obra prima:


62

1. Logo no início do livro, temos o “privilégio” escrito pelo rei de Castela. Ele acorda

com o autor a publicação da obra, prometendo cumprir com lei de pagar os direitos

autorais e punir aqueles que não agirem dentro da mesma, publicando-a de forma

incorreta e clandestinamente.

2. No prólogo do livro, o trecho: “Desocupado leitor, não preciso prestar aqui um

juramento para que creias que com toda a minha vontade quisera que este livro, como

filho do entendimento, fosse o mais formoso, o mais galhardo e discreto que se

pudesse imaginar: porém não esteve na minha mão contravir à ordem da natureza, na

qual cada coisa gere outra que lhe seja semelhante; que podia portanto o meu

engenho, estéril e mal cultivado, produzir neste mundo, senão a história de um filho

magro, seco e enrugado, caprichoso e cheio de pensamentos vários, e nunca

imaginados de outra alguma pessoa? Bem como quem foi gerado em um cárcere, onde

toda a incomodidade tem seu assento, e onde todo o triste ruído faz sua habitação?”

me deu a entender que, sendo o início da obra, foi ainda escrita quando Cervantes

esteve preso.

3. Na página seguinte, ainda no prólogo, li: “... com uma legenda seca como as

palhas, falta de invenção, minguada de estilo, pobre de conceitos, e alheia a toda a

erudição e doutrina, sem notas às margens, nem comentários no fim do livro, como vejo

que estão por aí muitos outros livros (ainda que sejam fabulosos e profanos) tão cheios

de sentenças de Aristóteles, de Platão, e de toda a caterva de filósofos que levam a

admiração ao anônimo dos leitores, e fazem que estes julguem os autores dos tais
63

livros como homens lidos, eruditos, eloqüentes? Pois que, quando citam a Divina

Escritura, se dirá que são uns Santos Tomasses, e outros doutores da Igreja,

guardando nisto um decoro tão engenhoso, que em uma linha pintam um namorado

distraído, e em outra fazem um sermãozinho tão cristão, que é mesmo um regalo lê-lo

ou ouvi-lo”. Na nota, Cervantes se dirigia a um grande inimigo seu, o mesmo que

também foi alvo da ironia de Antônio José, acusado e morto pela inquisição, Lope de

Vega.

4. Mesmo não tendo sido um alvo do ódio censorial, Cervantes não se intimida ao

narrar, com riqueza de detalhes, a cena em que seu personagem é esse alvo. Uma

crítica? Nada está explícito, mas creio que sim. O fidalgo possuía uma vasta biblioteca

sobre os mais variados assuntos, mas, o que sobressaía eram os livros de cavaleiros,

sua grande paixão. No capítulo VI, “do curioso e grande expurgo que o padre-cura e o

barbeiro fizeram na livraria do nosso engenhoso fidalgo” Cervantes coloca os livros

como culpados da insanidade do fidalgo:

“Pediu à sobrinha a chave do quarto em que estavam os livros ocasionadores do prejuízo; e ela a deu de

muito boa vontade. A ama, assim que deu com os olhos neles, saiu muito à pressa do aposento, e voltou

logo com uma tigela de água benta e um hissope, e disse:

- Tome Vossa Mercê, senhor licenciado, regue esta casa toda com água benta, não ande por aí algum

encantador, dos muitos que moram por estes livros, e nos encante a nós, em troca do que nós lhes

queremos fazer a eles desterrando-os do mundo.

...
64

- ... Tomai, senhora ama, abri essa janela, e atirai-o ao pátio; daí princípio ao monte para a fogueira que

se há de fazer.

...

- Quem é agora esse tonel? – perguntou o cura.

- Este é – respondeu o mestre – Dom Olivante de Laura.10

- O autor desse livro – disse o cura – foi o que também compôs o Jardim de flores, e em verdade não sei

determinar qual das duas obras é mais verdadeira, ou, por melhor dizer, menos mentirosa. O que sei é

que esta há de ir já para o pátio por disparata e arrogante.

- Este que segue é Florismate de Hircânia* (Obra de Melchor Ortega, cavaleiro de Ubeda, publicada em

Valladolid, em 1556) – disse o barbeiro.

- Oh! Temos aí o Senhor Florismate? – replicou o cura - Pois à fé que há de ir já ao pátio, apesar do seu

estranho nascimento, e sonhadas aventuras; não merece outra coisa pela dureza e secura do estilo. Ao

pátio com ele, e mais com este, senhora ama.

- Belo! – falou ela, que executava as ordens com grande alegria.”

Podemos notar que não só o cura, como o barbeiro, a ama e a sobrinha do fidalgo,

concordam em atribuir toda a culpa aos livros. Acreditam que uma influência perniciosa

entre as letras foi capaz criar o cavaleiro andante. Mas o livro tem mesmo esse poder.

O poder da imaginação, da criação. Um poder que é de direito à todos, mas foi vetado

pelo Estado e pela Igreja para os homens não pensassem, e sim obedecessem.

10
Obra de Antônio Torquemada, editada em Barcelona em 1564.
65

7.2 França

Com o crescimento contínuo do número de livros no século XVI, o Imperador Alexandre

VI nomeia Jacques Oessler, de Estrasburgo, censor e superintendente das imprensas

do Santo Império e em pouco tempo, forma uma comissão imperial de ocupar-se das

censuras e da ação contra os livros heréticos.

Na primeira metade do século XVI, Sorbonne e o Parlamento multiplicavam as

censuras, proibições e peregrinações. O rei intervinha cada vez mais diretamente em

matéria de policiamento do livro. Em 1563, passa a autorizar somente os livros que lhe

tivesse sido outorgado. Sendo assim, ele passa a controlar diretamente toda nova

publicação.

Apesar de todos os esforços feitos, os livros proibidos continuam a circular. E ainda nos

séculos XVII e XVIII, eles permaneciam com a mesma facilidade. Mas a situação torna-

se grave quando Colbert empreende a criação de uma polícia eficaz e a supervisão da

imprensa. As penas passaram a ser mais severas. Para impedir a cópias dos livros

heréticos, ele não hesita em limitar o número dos impressores e em arrasar a edição da

província. Havia a entrada de muitos livros estrangeiros, sobretudo os holandeses,

impressos longe de sua polícia e freqüentemente ameaçador à região e à realeza. Já


66

passava pela sua cabeça proibir a entrada de tais livros. Mas Chapelain o dissuade,

lembrando que alguns desses livros eram de grande utilidade aos eruditos.

Com o enfraquecimento da edição francesa, imitadores e editores de livros proibidos

aproveitam o vazio que foi criado introduzindo seus escritos na França. E, em algumas

vezes, até mesmo nas prisões. Mas não havia maneira para impedir o contrabando de

algo pequeno e fácil de se transportar como o livro. O principal resultado dos rigores da

censura foi o de, no século XVIII, favorecer a criação, ao redor da França, perto da

fronteira, uma série de impressoras onde se editam, sem o menor perigo, cópias de

livros proibidos. É lá que passam a ser impressas obras dos principais filósofos. Com

Malesherbes, as autoridades se esforçaram para abrandar o regulamento da censura.

Desde então, estabelece-se o fracasso da censura.

7.2.1 François Rabelais

François Rabelais nasceu em Chinon, na região francesa da Touraine. Filho de um rico

advogado, o barão de Lerné, fez noviciado entre os franciscanos em 1510. Durante

seus anos de clausura, conheceu Pierre Amy e André Tiraqueau, que o iniciaram no

helenismo. Correspondeu-se com o humanista Guillaume Budé e traduziu Heródoto.

Em 1523, conforme as diretrizes da Sorbonne, que interditavam a leitura de livros

gregos, foram-lhe retirados os meios de estudo. Para fugir dos rigores dessa regra,
67

passou, em 1524, para a ordem dos beneditinos. Prosseguindo suas leituras, dedicou-

se ao estudo de Direito que logo trocou pela Medicina, na Universidade de Montpellier.

Abandonou, então, a vida monástica, teve dois filhos e, em seguida, tornou-se médico

no hôtel-Dieu de Lyon em 1532.

No mesmo ano traduziu para o latim textos de Hipócrates e de Galeno e publicou uma

obra dedicada ao Direito romano. Logo após, escreveu Os horríveis e espantosos feitos

e proezas do mui afamado Pantagruel, rei dos Dipsodos, filho do grande Gargantua,

crônica divertida e truculenta da vida de um gigante insaciável. Rabelais assinou este

romance com um anagrama de seu nome e sobrenome: Alcofribas Nasier. Apesar do

sucesso do livro, seu autor não escapou de uma condenação pela Sorbonne. Para

livrar-se das conseqüências desta censura, colocou-se sob a proteção de seu antigo

bispo, Geoffroy d'Estissac (1533). No ano seguinte, publicou A vida inestimável do

grande Gargantua, pai de Pantagruel, sob o mesmo pseudônimo, e o livro foi

igualmente condenado. Então, abandonou a França e acompanhou o cardeal Jean du

Bellay à Itália, na condição de médico particular. De volta a Lyon, publicou Topografia

de Roma antiga e O terceiro livro dos fatos e ditos heróicos do nobre Pantagruel. Após

aprovação de Francisco I, O terceiro livro foi editado em 1546. Três anos mais tarde,

surgiram os onze primeiros capítulos do Quarto livro de Pantagruel, cujo desfecho só foi

revelado ao público em 1552, um ano antes de sua morte. Em 1562, apareceu Ilha

Sonante, uma parte do Quinto livro de Pantagruel, cujo conjunto foi publicado em 1564.

Acredita-se que esta tardia conclusão da epopéia de Pantagruel não é de autoria de

Rabelais.
68

Inspirado em romances de cavalaria, entre eles o Amadis de Gaula, muito em moda na

época, Pantagruel apresenta as infâncias e proezas do herói que dá título à obra. A

idéia de escrever sobre uma personagem gigante, mergulhando o leitor na fantasia,

parece vir de um romance anônimo, Grandes et inestimables cronicques de l'énorme

géant Gargantua, publicado em Lyon, quando Rabelais lá residia, exercendo a

medicina. Porém, mais do que apenas um modelo, estas narrativas serviram de

pretextos para que Rabelais criasse histórias cômicas. É possível ver em Pantagruel

uma sucessão de episódios patéticos, cujo aspecto humorístico endossa os princípios

do humanismo. Testemunha disto é a carta de Gargantua a Pantagruel, um verdadeiro

programa pedagógico, onde se encontra diagnosticada toda a crise da sociedade e da

civilização do século XVI. Decididamente antidogmática, não faz caso nem da lógica,

nem da verossimilhança: propõe, ao contrário, uma constante liberdade. O simbolismo

de Rabelais deságua na utopia. Gargantua desenvolve o célebre tema da sociedade

ideal da abadia de Thélème: “Faça o que quiser”. O homem, bom por natureza, é

convidado a administrar em liberdade e segundo suas próprias crenças, auxiliado pelo

otimismo, regra básica do humanismo, a própria vida. Mais do que em Pantagruel, nota-

se a dimensão séria da obra que o leitor deve ir buscar para além do tom cômico. O

prólogo do Gargantua convida o leitor a aprofundar o sentido da narrativa a ponto de

“romper os ossos” para ir sugar a “substantiva medula”. Subjetivo, porém, é que este

convite deve ser considerado com ironia, como indica o tom em que se dirige aos que o

lêem: esses “bebedores muito ilustres”, esses “muito preciosos bexiguentos”. No século

XIV, Juan Ruiz, o arcipreste de Hita, dava um conselho similar aos seus leitores do
69

Livro de bom amor. A alegria explosiva do texto, justifica-se, segundo Rabelais, “porque

rir é próprio do homem” e toda brincadeira é significativa: Rabelais instiga o leitor a

superpor à leitura cômica uma leitura simbólica, sem que uma prejudique a outra.

O terceiro livro, publicado com seu nome, ao contrário do Gargantua e do Pantagruel,

retoma as mesmas personagens, mas concede o primeiro papel ao monge Panurgo.

Reflexão sobre as dívidas e sobre o casamento, este livro é mais inspirado que os

precedentes pela atualidade do tema e pela querela entre as mulheres. O texto é uma

sátira da busca da verdade, oposta ao ideal estóico que valorizava a paz, a alegria, a

saúde, e os prazeres corporais. A decisão de formular uma questão ao oráculo da

Divina Garrafa, serviu de pretexto para o Quarto e para o Quinto livro, na evocação de

novas questões. Assim, no Quarto livro, Rabelais se posicionou claramente contra as

pessoas da justiça e, sobretudo, contra o papa, com quem Henrique II estava em

conflito. O livro foi censurado pela Sorbonne em 1552. O Quinto livro termina com a

palavra do oráculo: “Trinck!”, que o incita ao prazer do bom vinho, capaz de “encher a

alma de toda verdade, todo saber e toda filosofia”. Como bom discípulo de Erasmo,

Rabelais não hesitou em alinhar todas as línguas e todos os dialetos em uma obra onde

se mesclam cultura popular e cultura erudita, realismo, filosofia, alegoria, folga, piadas e

brincadeiras verbais. As crônicas de Rabelais são, também, sob o ponto de vista das

figuras de linguagem — especialmente a hipérbole e, muitas vezes, o nonsense — e da

desenvoltura no uso da língua, uma sinfonia verbal polissemântica, onde o criador se

avizinha aos jogos de conceitos e ao artifício do barroco.


70

7.2.2 Voltaire (1694 – 1778)

“Adeus, meus respeitos ao Diabo, porque ele é quem governa o mundo.”

(Voltaire a D’Alembert, em 15 de agosto de 1769 referindo-se ironicamente ao “mal” do livro)

François-Marie Arouet foi um dos maiores militantes do Iluminismo. Alguns

historiadores, escritores, críticos, literários e ensaístas culturais até nomearam o século

XVIII de O Século de Voltaire de tão fabuloso que foi.

Nasceu em uma família burguesa no dia 21 de novembro de 1694 e desde novo

tornara-se um familiar dos libertinos nos salões parisienses. No ano de 1716, por

escrever um poema satirizando o cavaleiro La Motte e o regente, foi mandado a Sully-

sur-Loire e, em seguida, preso pela Bastilha. Enquanto esteve em seu cárcere,

escreveu La Henriada, um poema em homenagem à tolerância do rei Henrique IV,

Henrique de Navarra, que foi morto por um católico a facadas por ter permitido a

liberdade religiosa aos hugenotes. E depois, foi exilado na Inglaterra.

Tornou-se poderoso divulgador de Newton e suas teorias epreparou um escrito

chamado Elementos da Filosofia de Newton (1738). Ajudou Madame du Chatelêt na

tradução para o francês da obra clássica Philosophiae Naturalis Principia Mathematica,

no momento ainda desconhecida por toda Europa.


71

Graças as suas Cartas Filosóficas ou Cartas da Inglaterra, sua fama repercutiu por toda

Europa. Na França, a censura inquisitorial corria atrás de pensadores como ele. E

Voltaire a tinha como inimiga declarada. O perseguiam sem tréguas, ameaçando-o com

prisões e condenando suas obras a fogueira. Suas Cartas, como era de se esperar,

foram reduzidas a pó pelas chamas. Para satirizar a perseguição a Encyclopédie,

escreveu um pequeno artigo intitulado De I’horrible danger de la lecture11. Mas para que

tal não o levasse às fogueiras inquisitoriais, estudou os preconceitos que os europeus

tinham em relação ao Império Turco-Otomano.

Em sua história, o mufti do santo Império Otomano, Joussouf Cherébi, responde ao ex-

embaixador, tendo ele conhecido e ficado maravilhado com a imprensa, a opinião dos

sábios do reino turco. Os argumentos foram os seguintes:

1. Ela, a imprensa, é perigosa porque facilita a comunicação dos pensamentos, tendendo

evidentemente a dissipar a ignorância que, afinal, é a guardiã e a salvaguarda dos Estados bem

policiados.

2. É especialmente temível que cheguem, entre os livros que aportam vindos do Ocidente, alguns

que tratem da agricultura e sobre os meios de aperfeiçoar-se nas artes mecânicas, obras que podem, a

longo prazo (o que não agradaria a Deus), revelar o gênio dos nossos cultivadores e dos nossos

manufatureiros, exercitando-lhes a indústria, aumentando-lhes a riqueza, inspirando-lhes assim a

revelação das suas almas e um certo amor ao bem público, sentimentos que são opostos à são doutrina.

11
Do horrível perigo da leitura.
72

3. Chegará por fim o tempo em que teremos livros de história descomprometidos com o

maravilhoso, o que sempre entreteve uma nação numa feliz estupidez: haverá nesses livros a

imprudência de fazer justiça às boas e às más ações e de recomendar a equidade e o amor à pátria, o

que é visivelmente contrário aos nossos direitos locais.

4. Logo chegará a vez dos miseráveis filósofos que, sob pretextos especiosos, mas puníveis, irão

querer esclarecer o homem comum e tentar fazê-los melhores, ensinando-lhes virtudes perigosas as

quais o povo jamais deve tomar conhecimento.

5. Argumentando que têm enorme respeito por Deus, eles, os pensadores, terminarão imprimindo

escandalosamente, fazendo por diminuir os peregrinos a Meca, provocando um grande detrimento da

saúde das suas almas.

6. Sem dúvida chegará o momento em que, à força de ler os autores ocidentais que tratam das
doenças contagiosas e da maneira de preveni-las, ficaremos infelizes por nos garantirem contra as
pestes, o que seria um grave atentado contra a providência.

E no final, o mufti propõe que alguém jamais leia um livro sob pena da danação eterna.

Voltaire também ataca muitos pensadores de sua época. Como exemplos, o caso de

Leibniz com seu otimismo, que é satirizado em Cândido ou o otimismo, de 1759 e Jean-

Jacques Rosseau, sua vítima mais notável.

Rosseau afirmou que a cultura e a civilização pervertem o homem, que o mesmo

deveria estar mais em estado natural. Voltaire não aceita tal ataque feito a civilização -

ainda mais tratando-se de um dos mais ardorosos defensores da luz - e convida-o para

visitá-lo em Ferney, colocando os pastos de sua propriedade à disposição para que ali,

ruminando com os bois e as vacas, encontrasse sua verdadeira natureza, e que ele o
73

fazia surtir o desejo de voltar a ser animal e andar de quatro patas, mas que já havia

abandonado esse hábito há sessenta anos.

Não restam dúvidas de que ele atribuía o progresso da cultura e das letras à existência

de grandes príncipes e chefes de estado. Sua afortunada aliança com o poder deixa

clara a exuberância que os impérios alcançaram outrora. Tudo se dava a uma elite

refinada. Seu objetivo não era desprezar as massas e sim afirmar que o avanço não

dependia dos reis e padres, mas sim dos cientistas, artistas e homens de letra.

Com seus 84 anos retorna à Paris, de onde foi banido por Luís XV. Uma enorme

multidão acolheu-o com grandes homenagens. Seguidamente ao seu falecimento, em

30 de maio de 1778, alguns de seus dentes foram distribuídos. O Jornalista Lamaítre o

guardou com a seguinte frase: “Les pêtres ont causé tant mal à la terre, que j’ai guardá

contre eux une dent de Voltaire”12. Hoje, seus restos mortais estão no Panteão.

7.2.3 Denis Diderot (1713 – 1784)

“Nossa divisa é: sem quartel aos supersticiosos, aos fanáticos, aos ignorantes, aos loucos, aos

perversos, aos tiranos (...) será que nos chamamos de filósofos para nada?”

(Diderot a Voltaire em carta de 29 de setembro de 1762)

12
Os padres causaram tanto mal à Terra que eu guardei um dente de Voltaire contra eles.
74

Diderot foi filósofo e escritor francês. Sua primeira peça importante da sua carreira

literária é Lettres sur les aveugles à l’usage de ceux qui voient, em que resume a

evolução do seu pensamento desde o deísmo até ao cepticismo e o materialismo ateu.

A obra de sua vida é a edição da Encyclopéedie, publicada entre 1751 e 1772, com

ajuda do matemático d' Alembert e da maioria dos pensadores e escritores. Proibida

pelo governo por divulgar as novas idéias, a obra passou a circular clandestinamente.

Os economistas pregaram essencialmente a liberdade econômica e se opunham a toda

e qualquer regulamentação. A natureza deveria dirigir a economia; o Estado só

interviria para garantir o livre curso da natureza. Eram os fisiocratas, ou partidários da

fisiocracia (governo da natureza). Quesnay afirmava que a atividade verdadeiramente

produtiva era a agricultura, que leva a cabo com empenho e entusiasmo apesar da

oposição da Igreja e dos poderes estabelecidos. Escreve também algumas peças

teatrais de pouco êxito. Destaca-se particularmente nos romances, nos quais segue as

Normas dos Humoristas Ingleses, em especial de Sterne: A Religiosa, O Sobrinho de

Rameau, Jacques, o Fatalista. Escreve numerosos artigos de crítica de arte.

Em um trecho do diário do Marquês d’Argerson, ministro em tal época, uma observação

no dia 10 de agosto: “Em paris aumenta o descontentamento pelas contínuas

detenções, praticadas todas as noites, de escritores e doutos abades suspeitos de

escrever tais livros, cançonetas, e de pôr em circulação más notícias nos cafés e

passeios públicos. Isso agora chama-se Inquisição Francesa”.


75

No ano de 1746, com a publicação de Pensées philosophiques, Diderot já estava sob

suspeita da inquisição. Após Lettre sur les aveugles à l’usage de ceux, sendo diretor da

Encyclopédie ou Dictionaire raisonné des sciences, des arts et desméties, é preso no

verão de 1749 em Vincennes, França. Mas os editores que investiram na Encyclopédie

pediram sua liberdade, alegando que iriam à falência. Tendo sua prisão durado pouco

mais de três meses, assim que foi liberto, lançou o prospecto de Encyclopédie, que logo

atingiu mais de mil assinaturas.

Diderot foi um dos primeiros autores que fez da literatura um ofício, mas sem esquecer

nunca que era um filósofo. Preocupam-no sempre a natureza do homem, a sua

condição, os seus problemas morais e o sentido do destino. Admirador entusiasta da

vida em todas as suas manifestações, ele não reduz a moral e a estética à fisiologia,

mas situa-as num contexto humano total, tanto emocional como racional.

7.3 Itália

7.3.1 Galileu Galilei (1564 – 1642)

No dia 15 de fevereiro de 1564, em Pisa, nasce Galileu. Com uma família ilustre, tinha

como antepassados Tomasso di Bonaiutom, que desempenhara papel no governo


76

democrático de Florença em 1343, o magiter Galilaeus Galilaeis, um grande médico de

muitos méritos. Mas na época de Galileu, a família se encontrava em uma situação

financeira pouco favorável. Seu pai, Vincenzo, cultor das matemáticas, tocador de

alaúde e teorizador de estética musical, teve que dedicar-se ao comércio e transferir-se

para Pisa, onde casou-se com Julia Ammanati em 1562.

A maior herança deixada por seu pai foi uma grande cultura e um espírito vivaz. Em

suas conversas utilizava-se não de sua autoridade para as controvérsias, e sim da

evidência e da razão. E assim, sendo, em 1581, Galileu inscreveu-se na Faculdade de

Medicina da Universidade de Pisa. Mas, desiludido com a esperança de uma profissão

muito bem remunerada, passou a freqüentar, às escondidas, as lições de matemática

de um amigo da família, Ostilio Ricci.

Sua primeira descoberta veio em 1583. Quando estava no Domo de Pisa, observou as

oscilações de uma lâmpada movida por uma corrente de ar e medindo o tempo com o

bater do seu pulso descobriu a lei das isocronismos das oscilações pendulares. Em

1585, voltou a Florença, abandonando seus estudos e dedicando-se aos

conhecimentos da matemática e da física. Inventou a pequena balança hidrostática

para a medida do peso específico, e demonstrou alguns teoremas sobre o baricentro

dos corpos.

Ao mesmo tempo que ensinava o sistema ptolomaico na Cátedra de Pisa, escreveu um

tratado de mecânica, De motu; onde separou-se do ensinamento aristotélico e adotou o


77

método experimental. Galileu sustentou que a velocidade da queda é igual para todos

os corpos. Arquimedes (287 a.C – 212 a.C) exerceu influência no trabalho de Galileu.

Foi Arquimedes que fez nascer a ciência da Hidrostática e através de sua obra “Sobre

corpos flutuantes” que Galileu se inspirou para relacionar a velocidade de queda ou de

subida de um corpo em um dado meio com o peso específico do corpo e do meio por

onde ela se desloca.

Em 1591, seu pai faleceu e Galileu ficou completamente só para sustentar sua família.

Mas no ano seguinte, o Marquês Guidobaldo del Monte fez com que ele recebesse a

cátedra de Matemática em Pádua. Em Veneza, Galileu encontrou um ambiente

estimulante e extrovertido, passou a morar em um lugar modesto, mas onde podia

receber seus amigos. Freqüentava círculos aristocráticos e intelectuais de Veneza.

Durante esse período publicou Da ciência mecânica e do emprego que se consegue

dos seus instrumentos. Nesse tratado ele expôs a teria das máquinas simples e

demonstrou o teorema dos momentos. Já no ano de 1597, construiu uma espécie de

termoscópio para medir as temperaturas. Galileu é nitidamente antiaristotélico. Ele

ensinou que o calor (a temperatura da terminologia moderna) seria um fantasma dos

sentidos:

“inclino-me bastante a crer que o calor seja deste gênero, e que as matérias, que em nós produzem ou

fazem sentir o calor, e que indicamos com a denominação geral de fogo, sejam uma multidão de

corpúsculos mínimos; corpúsculos configurados deste ou daquele modo, porém movidos com velocidade

muito alta: tais corpúsculos, encontrando nosso corpo, nele penetram, devido a sua extrema sutileza.
78

Inclino-me a crer que em seu contato, na passagem deles para nossa substância, sentido por nós,

constitua a sensação que nós chamamos de calor, agradável ou molesta, conforme a multidão e a

velocidade, menor ou maior, destes corpúsculos mínimos, que nos vão pungindo e penetrando”

Galileu conheceu uma veneziana, de nome Marina Gamba, que lhe deu três filhos:

Virgínia, Lívia e Vicente. Seu vencimento de 180 florins por ano não estava sendo

suficientes e se viu obrigado a dar lições particulares de matemática, bem como abrir

uma oficina mecânica. Onde construía e vendia bússolas e compassos mecânicos por

ele aperfeiçoados. Ainda empenhado nos estudos da astronomia e de mecânica,

começou a trocar cartas com Kepler.

Com o surgimento do telescópio na Holanda por volta de 1.600, Galileu, já em 1.609,

constrói seu próprio telescópio, sem sequer ter visto um. Com as descobertas que se

sucederam rapidamente, publica em 12 de março de 1610, o Sidereus Nuncius:

“... deixando as coisas terrenais, voltei-me para as especulações celestes; em primeiro lugar, vi, com ele,

tão próxima, a Lua, como se ela estivesse distante apenas uns dois semidiâmentros da terra. Depois da

Lua, com incrível alegria observei muitas vezes as estrelas, fixas e errantes; e vendo-as tão grandes,

comecei a pensar sobre o modo pelo qual eu poderia medir suas distâncias; e finalmente o consegui.”

Desde então, a fama de Galileu Galilei, passou a ser universal. Em julho de 1610, pelo

Grão Duque de Toscana foi nomeado professor de matemática do Instituto de Pisa.

Depois de dezoito anos atuando, decidiu abandonar Pádua, transferindo-se para Arceti,

perto de Florença. De sua nova sede, Galileu continuou suas observações


79

astronômicas. Descobertas sobre Saturno e Vênus fizeram com que enviasse a Kepler

e Juliano de’ Medici anagramas nomeados Salvae umbistineum geminatum Marzia

proles, isto é: altissimum planetam tergeminum observavi (observei que o planeta mais

alto, Saturno, é trigêmeo) e Haec immatura a me iam frustra leguntur o y, isto é:

Cynthiae figuras aemulatur mater amorum (a mãe dos amores, Vênus, imita as figuras

de Cíntia, a lua). Diz a lenda que Kepler chorou de emoção ao ler Sidereus Nuncius (O

Mensageiro das Estrelas). Era um relatório conciso e despojado, mas talvez o tratado

científico que mais profundamente abalou a visão do mundo de uma época.

Essas descobertas provocaram críticas ásperas ao mesmo tempo em que provocavam

controvérsia apaixonada. Como explicar as fases de Vênus a não ser com o sistema

copernicano? Muitos homens se recusam a olhar pelas lentes do binóculo para não

terem que constatar a falsidade de suas doutrinas.

Em 1611, Galileu conheceu o Papa Paulo V e foi acolhido pela Academia dos Lincei.

De volta a Arcetri, escreveu um tratado de hidrostática e de aerostática – Discurso em

torno das coisas que estão na água, ou que nela se movem, e que defendeu a teoria de

Arquimedes sobre a flutuação dos corpos e passou a mostrar, desmentindo os

acadêmicos aristotélicos (mas de acordo com o verdadeiro pensamento de Aristóteles),

que o ar tem peso.

Galileu procurou conciliar o pensamento copernicano com as Sagradas Escrituras.

Enviou cartas a príncipes e vários homens de ciência. Em vão. Cada vez mais as
80

autoridades eclesiásticas se preocupavam com as teorias copernicanas e as

descobertas de Galileu. Em 1616, o Santo Ofício incluiu no Index os livros de Copérnico

e proibiu Galileu de ensinar e disseminar o sistema heliocêntrico. Com toda essa má

repercussão, decidiu retirar-se para vila de Belloguardo, em Florença e dedicar-se aos

estudos. Em 1623, saindo de seu isolamento, escreve Saggiatore, uma verdadeira obra

prima de prosa polêmica, onde abordou as hipóteses do Padre Grassi sobre os

cometas.

No ano de 1624 Galileu visita o novo papa, Urbano VIII (Cardeal Maffeo Barberini,

admirador de Galileu, a quem inclusive havia dedicado uma poesia latina em que

louvava seus descobrimentos astronômicos) e leva-lhe uma homenagem, uma de suas

invenções: o microscópio. Com a autorização papal em 1628, passou a se dedicar ao

Diálogo dos maiores sistemas, publicado em Florença em 1632. O título exato dessa

obra é Diálogo de Galileu Galilei, linceu, em que, no transcurso de quatro dias, se

discorre sobre os dois maiores sistemas do mundo, o ptolomaico e o copernicano e é

composta de quatro diálogos, cada um imaginado em um dia diferente, entre três

interlocutores: Filippo Salviati, Simplício e Giovan Francesco Sagredo. Salviati,

sustentador do copernicanismo, representa Galileu; Simplício, personagem imaginário,

é um defensor das teorias ptolomaicas; e Sagredo representa o homem de espírito

aberto à cultura e tem, no livro, a função de juiz entre as duas concepções do universo.

Galileu propunha que a Terra e os seres humanos não estavam separados do cosmos.

A Terra era parte do Sistema Solar, que fazia parte de um Universo ainda maior. Os
81

seres humanos e tudo mais que existisse sobre a Terra estavam sujeitos as leis

naturais da física e da matemática. Seu livro continha avanços em muitas outras áreas

da física. A obra de Galileu era extremamente revolucionária, um marco na ciência e na

sua evolução. A obra foi escrita em italiano ao invés de latim para que todos pudessem

lê-la e entendê-la sem dificuldades.

Mesmo tendo a obra sido publicada com o imprimatur das autoridades eclesiásticas,

subvertia toda a ordem que a Igreja defendia desde muitos séculos; pois então, deveria

ou não ser a obra condenada e seu autor punido? Inimigos de Galileu conseguiram

fazer com que o papa Urbano VIII acreditasse que Galileu houvesse apresentado

próprio papa com o pseudônimo de Simplício. Imediatamente o papa o abandona, e

Galileu recebe no dia 12 de abril de 1635 a ordem de se apresentar perante o Santo

Ofício. Antes de começar o processo, Galileu ficou hospedado na embaixada de

Toscana em Roma, situada no Palazzo Firanze, morada do embaixador Francesco

Niccolini, que como grande admirador de Galileu, fez com que ele sofresse o menos

possível. Durante o processo, por alguns momentos, foi necessário que se alojasse no

edifício da Inquisição, mas então lhe ofereceram umas estâncias que estavam

reservadas para os eclesiásticos que ali trabalhavam. Ele foi processado sob “veemente

suspeita de heresia” e após três meses de interrogatórios, desgastado e desiludido, no

dia 22 de junho, sua pena foi ler a fórmula de abjuração, de joelhos, em que renegava o

sistema copernicano, prometer denunciar ao Santo Ofício “qualquer herege ou quem

quer que seja suspeito de heresia” e ter o Diálogo queimado. Diz-se que, no final,

Galileu murmurou “Eppur si mouve” – “Ainda sim ela se move” – Referindo-se à Terra.
82

Ao acabar o processo foi permitido que ficasse alojado na Vila Médici, uma das

melhores vilas em Roma, que era propriedade do Grande Duque de Toscana. Poucos

dias depois, ficou no palácio do arcebispo, monsenhor Ascanio Piccolomini. E em

dezembro do mesmo ano, teve permissão para voltar a Arcetri em liberdade limitada.

Galileu nunca foi submetido a tortura ou a maus tratos físicos. Sem dúvida, fazê-lo ir a

Roma vindo de Florença para ser julgado, tendo 69 anos, supõe maltrato, e o mesmo

se pode dizer da tensão psicológica que teve que suportar durante o processo e na

condenação final, seguida de uma abjuração forçada. É certo. Desde o ponto de vista

psicológico, com a repercussão que isto pode ter na saúde, Galileu teve que sofrer por

estes motivos e, de fato, quando chegou a Siena depois do processo, se encontrava em

más condições.

Além desse processo, houve um anterior no ano de 1616. Mas é pouco falado devido

ao fato de Galileu nunca ter sido convocado pelo Santo Ofício. Alegou que foi feita uma

denúncia à Inquisição romana, o processo foi adiante, mas só soube através de

comentários de outrem. Galileu era acusado de ser contra os princípios da Bíblia

afirmando que a Terra não está quieta no centro do mundo, como geralmente se

acreditava, mas que gira sobre si mesma e ao redor do Sol.

Confortado em sua solidão, mas com afeto de seus filhos e admiração de seus

discípulos Viviani, Cavalieri, Torricelli, Galileu volta aos estudos da física. Mas já se

encontrava enfermo, estava ficando cego e, em 1634 tinha morrido sua filha Sóror
83

Maria (Virgínia citada anteriormente), e só conseguiu superar sua dor escrevendo sua

obra-prima científica: Discursos e Demonstrações Matemáticas em torno de duas

Novas Ciências, publicado em Leyde no ano de 1638, que teve que ser

contrabandeada por causa da proibição de suas obras. O tratado ainda está em forma

de diálogo e permanece com os mesmos interlocutores, mas dessa vez, ele não

mantém o estilo áspero e polêmico. A esta altura, Galileu já se encontrava cego, mas

continuou a trabalhar por quatro anos, ditando aos seus discípulos suas pesquisas

sobre movimentos.

Galileu morre no dia 8 de janeiro de 1642. E a Igreja reconhece o erro cometido após

alguns séculos na entrega do Prêmio Nobel, frente a centenas de cientistas do grupo

Ciência para a Paz, reunidos para homenagear o 350o aniversário do livro proibido, o

papa João Paulo II admitiu: “A experiência da Igreja durante o caso Galileu e depois

dele, levou a uma atitude mais madura e uma compreensão mais acurada de sua

própria autoridade”.

7.4 Portugal

Em Portugal, embora os portugueses estivessem bem conscientes da grande

contribuição dos judeus para sua nacionalidade, com as negociações com Castela de

novembro de 1496 para o casamento do rei D. Manuel II com a infanta Isabel,


84

assumiram a obrigação de expulsá-los. Mas, temendo perdê-los, na Semana Santa de

1497, o rei decide batizá-los à força. Em seguida, com medo das impressões judaicas,

rapidamente proscreveu a posse de todos os livros hebraicos, com exceção dos de

medicina e cirurgia. A tipografia judaica deixou de trabalhar e seus proprietários

fugiram.

O entusiasmo causado pela nova arte de imprimir tinha sido tamanho que, vários

governos já tinham abolido os impostos de importação dos livros. Mas logo que os

governantes se deram conta do perigo da difusão de idéias entre seus súditos, esse

entusiasmo começou rapidamente a declinar. Primeiramente a Igreja começou a alertar

sobre os perigos da heresia. O papa Alexandre VI, em 1501, passou a exigir que os

príncipes cristãos instituíssem um sistema de controle tipográfico. E em julho de 1502,

em Castela, foi baixada uma Real Pragmática.

O primeiro privilégio de impressões que se conhece, data do dia 20 de fevereiro de

1537. Concedido por D. João III ao escritor cego Baltazar Dias (autor de “Em prosa

como em metro”), esse alvará atesta a primeira determinação censória que dizia:

“se elle fizer algumas obras que toquem em cousa da nossa sancta fee, nam se ymprimiram sem primeio

semrem vistas e enjaminadas por mestre Pedro Margallo, e sendo por elle vistas, e achando que nam

falle em cousa que se nam deua fallar, lhe passe disso sua certidam, com a qual certidam ey por bem

que se ymprimam as taes obras e doutra maneira não”.


85

Os primeiros livros com a indicação “aprovado pela Santa Inquisição” surgem em 1539.

Os impressores receberam uma notificação do inquisidor para que não imprimissem

coisa alguma sem mostrar aos censores, sob a ameaça de penas severas. Todas as

livrarias e todos os navios que chegassem aos portos do reino deveriam ser

examinados pelos “visitadores das naus”. Os censores e visitadores eram sempre

membros do clero. À medida que a Inquisição se fortalecia, mais severa tornava-se a

censura a até as bibliotecas de particulares falecidos eram imediatamente revistadas.

O primeiro Índice de Livros Proibidos de Portugal data do ano de 1547 e tem como

nomes como Gil Vicente e João de Barros incluídos. Dos 495 títulos inclusos, 13 eram

em idioma português e castelhano. Já em 1559, o papa Paulo IV publica o primeiro

Índice extensivo a todo espaço católico. O terceiro índice português (1561) já possui 47

folhas e mais de 50 títulos em português e castelhano. Em dois anos, o número eleva-

se a 1.100 obras proibidas. O índice tridentino (Index Librorum Proibitorum) surge no

ano de 1564 e impõe a censura não somente aos livros considerados heréticos, mas

como também controla a edição de obras de todos os gêneros. O índice de 1624,

contém uma página e meia de obras de Baltazar Dias censuradas. Uma delas é o Auto

do Príncipe Claudiano.

Luís de Camões esteve preso duas ou três vezes. O autor teve de submeter seus textos

aos censores do Santo Ofício. Os Lusíadas, em 1584, foi publicado pela Segunda vez,

mas com várias partes censuradas. Mais exatamente as que dizem respeito à Ilha dos

Amores e às passagens mitológicas. Sua primeira edição tinha passado em segurança


86

nas mãos do mesmo inquisidor, Frei Bartolomeu Ferreira. O sexto e último índice

vigorou até o ano de 1768, quando o Marquês de Pombal o revogou.

Damião de Góis, cronista de reis e príncipes, após escrever por escrever a “Crônica do

Felicíssimo Rei D. Manoel”, publicada em quatro volumes, esteve preso por quatro

anos. O monarca em questão viu críticas desfavoráveis à sua pessoa e à política do

reino.

Os censores davam-se o direito de riscar ou rasgar partes inteiras de livros e muitas

vezes as obras eram publicadas totalmente reformadas. Os livros que tratavam de

assuntos considerados perigosos como o judaísmo ou textos escritos em hebraico,

Tamuld, eram queimados nos autos-de-fé. A castração do pensamento surtiu efeito

durante séculos. O Santo ofício transformou a maior parte dos portugueses em

autômatos sem opinião nem críticas. A vida cultural portuguesa raramente deixou de

permanecer controlada a bloqueada pelo zelo das censuras e outros afrontamentos à

liberdade de expressão e de pensamento. A inquisição impediu Portugal de

acompanhar o progresso científico e cultural da Europa, levando-o à total escuridão.

Mas a corrupção existia. E era o meio mais eficiente de minar os regimes ditatoriais.

Viajantes, mercadores, contrabandistas introduziam textos manuscritos e impressos

proibidos no reino. O rol dos livros proibidos nos mostra que, por mais rigorosa que

fosse a fiscalização, o controle e a punição, a força de uma nova vida, novos

horizontes, a sede de aprender e conhecer fez com que, mesmo que clandestinamente,
87

os pensamentos foram formando-se, as idéias moldando-se e a consciência crítica se

opôs à nulidade imposta pela religiosidade.

7.4.1 Padre Antônio Vieira (1608 - 1697)

A 6 de Fevereiro de 1608 nasce em Lisboa Antonio Vieira. Com 6 anos de idade parte

para o Brasil junto com sua família, pois seu pai fora nomeado escrivão da Relação na

Baía. Torna-se aluno do Colégio dos Jesuítas na Baía. Quando os holandeses ocupam

a cidade, ele refugia-se numa aldeia no sertão brasileiro. No ano de 1633 prega pela

primeira vez e dois anos depois, já sendo mestre em artes, é ordenado sacerdote.

Nos anos seguintes, pronuncia alguns dos seus mais notáveis Sermões. Em 1641,

quando chega a Portugal em visita ao rei, é preso em Peniche logo ao desembarcar.

Tornando-se amigo e confidente de D. João IV, um ano depois se declara favorável aos

cristãos novos e apresenta um plano de recuperação econômica. É nomeado pregador

régio e inicia uma atividade diplomática indo para a Holanda.

Em 1649 foi ameaçado de expulsão da Ordem dos Jesuítas, mas D. João IV opõe-se.

Três anos depois retorna ao Brasil como missionário no Maranhão. Mas ainda voltou à

Portugal com intuito de conseguir mais leis favoráveis aos índios e retorna novamente
88

com as novas leis. Em 1661 é expulso do Maranhão, com os outros jesuítas, pelos

colonos.

O profeta do Quinto Império não escapou dos cárceres da Inquisição, foi detido em

1665 e 1667 pela publicação do livro Esperança de Portugal, Quinto Império do Mundo,

Primeira e Segunda Vidas de El-Rei D. João IV, em que defendia os cristãos-novos e

sibilava contra os dominicanos do Santo Ofício. Desterrado para Coimbra depõe no

Santo Ofício sobre a suas obras. Escreve a História do Futuro, mas logo adoece

gravemente. Em 1665 é preso pela Inquisição e mantido em custódia. Depois de ter

sido interrogado inúmeras vezes, a sentença o priva da liberdade de pregar e D. Afonso

VI é afastado do trono.

Quando foi anistiado - mas impedido de falar ou escrever sobre certas matérias – e

chegou em Roma, pregou vários Sermões que lhe deram grande notoriedade na Corte

Pontifícia e na da Rainha Cristina. Tentando combater os métodos da Inquisição em

Portugal, volta a defender novamente os cristãos novos. Culto e inteligente como era,

ao conseguir livrar-se da perfídia dos inquisidores, foi queixar-se ao papa Clemente X

dos métodos inquisitoriais. Em 1674 o papa suspendeu os trabalhos dos inquisidores.

Quando o Breve do Papa o louva e o isenta da Inquisição, o padre regressa a Lisboa.

Seu nome encontra-se registrados nas atas do ano de 1667 do tribunal da cidade de

Coimbra, fechando os tribunais.


89

Alguns anos após sua libertação emigrou para o Brasil de onde nunca mais voltará. No

ano de 1679 sai o primeiro volume dos Sermões e ele volta à Baía e aos trabalhos de

evangelização. Em 1688 é nomeado Visitador Geral dos Jesuítas no Brasil mas resigna

ao cargo após 3 anos por força da idade e sua falta de saúde. Padre Antônio Vieira

morre na Baía, a 18 de julho, com 89 anos.

7.4.2 A Mesa do Desembargo do Paço

Até o reinado de Afonso V, oficialmente, o Supremo Tribunal de Portugal era

denominado “Casa d’El Rei”. Conhecido também como “Desembargo do Paço”. Sua

principal função era cuidar dos deveres civis. Pedidos de legitimação, restituição de

famas, impostos, graças e perdões, emancipação de menores, confirmação de juizes,

entre outros, eram algumas de suas obrigações. Somente em 1477, no reinado de D.

João II, o Desembargo do Paço passou a ser um tribunal distinto da Casa d’El Rei com

duas seções ou “mesas”:

- A “Casa d’El Rei”, propriamente dita, também conhecida como “Mesa Grande” e que

mais tarde, com D. João I, passou a se chamar “Casa da Suplicação”13;

13
Atribuiu-se esse nome por tratar dos crimes mais graves, para suplicarem a condescendência real
perante às penas.
90

- A outra “mesa” foi designada por “Casa do Cível” e, posteriormente, “Relação”. Com

sede em Lisboa e depois no Porto. As decisões, em certas ocasiões, poderiam ser

resolvidas pela Mesa Grande.

Portugal contava com o apoio de diversos órgãos, que se reuniam ocasionalmente,

para cuidar das questões da política interna e externa do país. Mas constantemente,

contava com o Desembargo do Paço, que se reunia diariamente e toda sexta-feira

despachava com o vice-rei. O Desembargo do Paço cuidava exclusivamente do poder

civil. Juntamente com a Casa da Suplicação, funcionava a Mesa da Consciência e

Ordens, que tinha como principal competência cuidar das causas que envolvessem a

Igreja ou os membros das ordens militares-religiosas. Os tribunais do Santo Ofício de

Coimbra, Évora e Lisboa deveriam funcionar paralelamente, mas eram praticamente

independentes.

O Brasil era afetado, direta ou indiretamente, pelos fatos que aconteciam em Portugal

por ainda ser uma colônia. Como é o exemplo da prática da censura em que as

publicações deveriam ter as aprovações indispensáveis, oriundas das seguintes três

entidades: O Santo Ofício, o Ordinário e o Desembargo do Paço.

Em 1536, a censura exercida pelo Santo Ofício, o Ordinário e o Desembargo do Paço,

cabia ao Brasil. Para qualquer publicação que fosse era necessário um carimbo da

inquisição, ao pé da página de rosto, contendo os escritos: “Com todas as licenças

necessárias”.
91

Essa estrutura durou até o ano de 1768, quando Marquês de Pombal, pela lei de 5 de

abril, unifica todo o sistema em um só criando uma repartição do Estado: a “Real Mesa

Censória”, composta por eclesiásticos e funcionários leigos nomeados pelo rei. Entre

suas atribuições, constava o exame de livros em papéis que circulavam entre Portugal e

suas colônias.

No livro “História do Ensino e Portugal”, Antonio Gedeão, constata o seguinte:

“Todos os barcos eram vistoriados à chegada de Portugal. Todos os livros e manuscritos eram

seqüestrados para efeitos de censura, e todos os que se publicavam no país eram sujeitos à mais

rigorosa fiscalização ideológica. Com Pombal tudo se multiplicou na prática repressiva, sob sua vigilância

superior, chegando onde nunca ninguém tinha chegado, obrigando a nação inteira a entregar na Real

Mesa Censória a lista dos livros que tinham em suas casas!’. Em 24 de Setembro de 1774, um edital da

Real Mesa Censória torna pública uma lista de livros proibidos por conterem doutrina ‘ímpia, falsa,

temerária, blasfema, herética, cismática, sediciosa, ofensiva da paz e do sossêgo público’. Na longa lista

figuram Hobbes, Diderot, Rousseau, Voltaire, La Fontaine, Espinosa, etc. De todos os livros apreendidos

mandou o Marquês proceder a grandes fogueiras no Terreiro do Paço e na Praça do Pelourinho em

Lisboa. E se duvida ainda que houvesse acerca dos desígnios da reforma pombalina - lá rezavam os

estatutos da Universidade de Coimbra - , no volume II, p. 233, que ‘há dois Poderes pelos quais se rege e

governa o Mundo. Convém saber: a Autoridade Sagrada da Igreja e o Poder Real. Que ambos procedem

imediatamente de Deus”. 14

14
Disponível em http://www.apagina.pt/arquivo/artigo.asp?!ID=753
92

Um regimento foi promulgado para que se cumprissem todas as leis da censura

corretamente e, assim como todo plano de trabalho, houvesse um funcionamento

correto. Os critérios da censura, segundo Rubens Borges, eram os seguintes:

1. Os livros de autores ateus;

2. Os de autores protestantes que combatessem o poder espiritual do Papa e dos bispos ou

atacassem os artigos da Fé Católica;

3. Os que negassem a obediência ao Papa;

4. Os livros de feitiçaria, quiromancia, magia e astrologia;

5. Os que, apoiados num falso fervor religioso, levassem à superstição ou fanatismo;

6. Os livros obscenos;

7. Os infamatórios;

8. Os que contivessem "sugestões de que se siga perturbação do estado político e civil e

desprezando os justos e prudentes ditames dos direitos divinos, natural e das gentes, ou

permitam ao Soberano tudo contra o bem-comum do vassalo, ou vão na outra extremidade

fomentar a abominável seita dos sacrilégios monarcomanos... que tudo concedem ao Povo

contra as Sagradas e invioláveis pessoas dos Príncipes";

9. "Os livros que utilizam os textos das Sagradas Escrituras em sentido diferente do usado pela

Igreja";

10. Dos autores que misturassem artigos de fé com os de mera disciplina;

11. Os que impugnassem os Direitos, Leis, Costumes, Privilégios, etc. da Coroa e dos Vassalos;

12. As obras "dos pervertidos filósofos destes últimos tempos...";

13. "Os livros publicados na Holanda e na Suíça atribuídos a advogados do Parlamento da França e

que tratam da separação entre o sacerdócio e o Império";


93

14. Todas as obras de autores jesuítas baseadas na autoridade extrínseca da razão particular";

15. Os livros "compostos para o Ensino das Escolas Menores que foram contrários ao Sistema

estabelecido pela lei anterior".

Apesar da rigorosidade nas medidas, os livros interditos continuavam a entrar em

Portugal, trazido por viajantes ou contrabando. E insatisfeita com os resultados da Real

Mesa Censória, D. Maria I substitui-a com a Comissão Geral para o Exame e a Censura

dos Livros. “Em 1794, novas alterações foram introduzidas no sistema com a extinção

da Real Mesa e divisão de suas atribuições entre o Santo Ofício, a autoridade episcopal

e o Desembargo do Paço em que se modificasse, entretanto, a forma de controle à

circulação dos livros. Com a transferência da corte para o Brasil, em 1808, instituiu-se,

por Alvará Régio, a Mesa do Desembargo do Paço no Rio de Janeiro, destinada, entre

outras atividades, a examinar os livros importados e os escritos submetidos à

Impressão Régia. A extinção do Santo Ofício em Portugal no ano de 1821 fez com que

a Secretaria da Censura do Desembargo do Paço de Lisboa passasse a se

responsabilizar pela matéria. Embora o controle e a circulação e impressão de livros

tenha sofrido modificações significativas na natureza dos documentos submetidos e

apreciação”.15

No decreto de 22 de junho de 1808, o Príncipe Regente autoriza aos governantes das

capitanias a atuação da Mesa do Desembargo do Paço:

15
PENTEADO, Pedro. Real Mesa Censória, inventário preliminar. Arquivos Nacionais – Torre do Tombo,
Direção de serviços de Arquivística e Inventário, Lisboa, Março de 1994.
94

“Sendo-me presente que se não tem continuado a conceder sesmarias nesta Côrte e Provincia do Rio de
Janeiro que até agora eram dadas pelos Vice-Reis do Estado do Brazil; e que muitas outras, já
concedidas pelos Governadores e Capitães Generaes de diversas Capitanias, estão por confirmar, por
causa da interrupção de communicação com o Tribunal do Conselho Ultramarino, a quem competia faze-
lo: e desejando estabelecer regras fixas nesta importante materia, de que muito depende o augmento da
agricultura e povoação, e segurança do direito de propriedade: hei por bem ordenar, que daqui em diante
continuem a dar as sesmarias nas Capitanias deste Estado do Brazil, os Governadores e Capitães

Generaes dellas; devendo os sesmeiros pedir a competente confirmação à Mesa do Desembargo do

Paço, a quem sou servido autorizar para o fazer; e que nesta Côrte e Provincia do Rio de Janeiro,

conceda as mesmas sesmarias á referida Mesa do Desembargo do Paço, precedendo as informações e

diligencias determinadas nas minhas reaes ordens; ficando as cartas de concessão e de confirmação

dellas dependentes da minha real assignatura. A Mesa do Desembargo o tenha assim entendido e o faça

executar.”

Palacio do Rio de Janeiro em 22 de junho de 1808.

Com a rubrica do Principe Regente Nosso Senhor.

7.5 Brasil

No Brasil Colonial os livros eram bastante raros. A imprensa era proibida e os poucos

livros que se tem notícia eram aqueles que passavam pela censura. A liberdade de

leitura era privilégio de pouquíssimas pessoas. E possuir a obra era um privilégio de um

número menor ainda.


95

A guerra inquisitorial não era somente entre pessoas. O Santo Ofício destruía os seres

humanos e a história. As autoridades religiosas acabaram com um número considerável

de códex que eram, por elas, considerados demoníacos.

Em 1531, a rainha escrevia mostrando sua preocupação:

“Fui informada que chegavam às Índias numerosos livros em espanhol, de histórias vãs e profanas como

o Amadis de Gaula e obras semelhantes. É um nefasto exercício para os índios: não é conveniente que

eles se entreguem a isso. Por conseguinte, ordeno que de futuro proíbam a quem quer que seja de

introduzir nas Índias livros profanos, e de só permitirem obras que ocupem da religião cristã e da virtude

para que os ditos índios e outros habitantes desses lugares se dediquem a esse estudo...”

Filipe III também se mostrou inquieto em 1609:

“Tendo em vista que os piratas heréticos, por ocasião dos assaltos e dos resgates, tiveram certos

contatos nos portos das Índias, muito perigosos para a pureza com a qual os nossos vassalos crêem e se

mantém na Santa Fé Católica, que em razão dos livros heréticos e das proposições que eles expandem

entre as populações ignorantes, nós ordenamos aos governantes, tribunais, e pedimos aos arcebispos e

bispos das Índias que cuidem de recolher todos os livros que os heréticos tenham introduzido ou venham

a introduzir nessas regiões”

Todas as precauções possíveis foram tomadas, mas parece que os livros, a informação

e a cultura sempre foram um problema sem fim para a Inquisição. A 23 de fevereiro de

1713, Filipe V escreve:


96

“Já que importa à pureza da nossa religião católica que nenhum entrave seja posto ao livre exercício dos

poderes do Santo Tribunal da Inquisição, tão caro à Santa Sé e aos reis meus antepassados; já que

importa que os ministros do Santo Ofício possam visitar os navios que tocam os portos dos meus

domínios para preservarem a entrada de qualquer livro que seja contrário à pureza da nossa Santa Fé,

eu ordeno pela presente, aos meus vice-reis do Peru e da Nova Espanha, aos meus governadores e a

outros membros da Justiça real, e peço aos arcebispos e bispos desse território que não ponham

nenhum entrave sob nenhum pretexto, às visitas que os ajudem com a sua autoridade, dando-lhes (em

caso de necessidade) o seu apoio e todo o socorro que lhes for pedido. É no interesse do serviço de

Deus e do meu. Feito em Madri a 23 de fevereiro de 1713.

Eu, o Rei”

No ano de 1793, George, o conde Macartney, esteve por duas semanas no Rio de

Janeiro antes de chegar na China para chefiar a primeira missão diplomática da Grã-

Bretanha. Ele observou que somente duas livrarias existiam na capital. No almanaque

da cidade do mesmo ano, existiam 17 casas de pasto, 18 tabacarias, 52 cabeleireiros e

216 tavernas. Uma dessas duas livrarias era, provavelmente, de Paul Martin, que

consta como o primeiro livreiro carioca depois de Antônio Máximo de Brito (que aparece

no almanaque de 1799) que pediu licença a Mesa Censória para trazer ao Rio pouco

mais de vinte obras em português e francês.

De acordo com que se conhece das edições portuguesas da época, o visitante escocês

Alexander Caldcleugh, encontrou nesse pobre comércio de livros, mas já em 1820,

gravuras inglesas, sérias e cômicas, e limitados livros de medicina e religião.


97

Vinte e cinco anos depois, o francês François Tollenare, visitando Recife, notou que os

livros franceses eram os mais procurados, particularmente as obras dos filósofos da

Ilustração (filósofos ilustrados), que eram as obras que mais exigiam atenção dos

censores por serem consideradas obras libertinas e a Bíblia política da América do Sul.

Mas a obrigatoriedade dos livros importados passaram pelo crivo censorial era

facilmente surrupiada.

Com absoluta certeza, era o francês Paul Martin (citado anteriormente) o livreiro de

merecido destaque nessa época. Ele foi o primeiro livreiro-editor. Em 1811 publica os

primeiros romances no Brasil, mandava para a impressão régia os mais variados

gêneros de livros e recebia as novidades de Portugal. Com a liberdade de imprensa e a

abolição da Inquisição pelas Cortes no ano de1820, aproveitou a oportunidade de trazer

livros como Hyssope de Antonio Diniz da Cruz e Silva (que foi proibida em Portugal,

impressa em Paris e contrabandeada para Portugal novamente), Cartas sobre a

Framaçonaria de Hipólito da Costa, Werther de Goethe, Tratado dos delitos e penas de

Beccaria, Cartas Americanas de Teodoro José Biancardi e o Ensaio sobre os

melhoramentos de Portugal e o Brasil de Francisco Soares Franco.

Entre os anos de 1768 e 1822 era de exclusividade do rei e do clero a concessão da

leitura e/ou a posse de livros. Nem mesmo a condição social ou profissional do leitor lhe

dava o direito de ler ou ter posse de um livro. O acesso e a leitura eram proibidos aos

padres e advogados, mesmo quando eles se justificavam dizendo que deveriam ler

para combater a heresia. Somente poderiam ler aqueles que tivessem uma licença
98

especial da Coroa Portuguesa em conformidade com os preceitos do Tribunal da Santa

Inquisição. A prática da leitura deveria ser feita em lugar fechado e restrito.

A maioria considerável dos livros era proveniente da França ou traduzida para o

francês. Entre os autores estavam: d’Alembert, Buffon, Condorcet, Diderot, Condillac,

Raynal, Montesquieu, Mably, Rosseau e Voltaire.

“As obras de Clément Marot, consideradas obscenas, eram proibidas. A Princesse de Cléves, de

Madame de La Fayette, o Voyage du jeune Anacharsis en Grèce do abbé Barthelémy, as Fables de La

Fontaine, traduzidas por Francisco Manuel do Nascimento, os Contes Mourax de Marmontel ou eram

proibidas ou só podiam ser lidos mediante licença. Na mesma categoria estavam as obras historiadores

como Gibbon, Robertson e Raynal e pensadores como Hume, Beccaria, Filangieri, Bielfeld, Bentham,

Hobbes, Helvetius, Locke, etc. Todas as obras de Voltaire, o espantalho dos absolutistas, eram proibidas,

mas a Henriade foi traduzida pelo brasileiro Tomás de Aquino de Belo Freitas e publicada no Porto em

1796. Isso não impediu que fosse reimpressa no Rio de Janeiro em 1812. O mesmo aconteceu com o

Diable Boitex, de Le Sage, que foi traduzido afinal e publicado no Rio em 1810.” (MORAES, Rubens,

1979, p. 56-57).

Com a chegada da corte ao Rio de Janeiro no ano de 1808, o comércio de livros mudou

sua estrutura. Nas livrarias aparecem não somente livros europeus como também

publicações brasileiras anunciadas na Gazeta do Rio de Janeiro. Os leilões também

eram freqüentes. O próprio Correio Braziliense de Hipólito da Costa, proibido em

Portugal era lido no Rio de Janeiro sem maiores alardes, inclusive, pelo próprio Príncipe

Regente.
99

A falta da atuação da censura ocasionou a entrada de muitos livros proibidos nas

bibliotecas brasileiras no século XVIII. As autoridades dificilmente acabariam com o

contrabando em todo litoral brasileiro, seria mais fácil fiscalizar as livrarias. E em 30 de

maio de 1809, Paulo Fernandes Vianna, chefe de polícia na época, proibiu os livreiros

de publicar qualquer lista de suas mercadorias até que o material contrabandeado fosse

eliminado. Mas não adiantou de muita coisa. O número de livrarias passou a aumentar.

O Brasil participou pouco da censura inquisitorial comparando-se ao processo em todo

o mundo. A severidade em algumas capitanias em determinadas épocas e a ausência

da mesma em outras, fez com que a entrada dos livros proibidos fosse facilitada. Um

exemplo disso foi a entrada de uma coleção da Encyclopéedia de Diderot e d’Alembert

na Bahia e outra em São João-del-res enquanto proibida. Mas, ainda assim, a cultura

de nosso país se arrastou até a Independência. O Brasil herdou a ignorância e a cultura

e o conhecimento restrito de Portugal, que possuía um Index de obras proibidas muito

maior que o de Roma.

7.5.1 Antônio José, “O Judeu” (1705 - 1739)

Antônio José da Silva, “o Judeu”, oriundo do Rio de Janeiro. Nasceu em 1705 em uma

família de critãos-novos que se refugiaram no Brasil. Seu pai era poeta e advogado,
100

mesmo aparentando ser católico até o fim de seus dias, manteu a fidelidade ao

judaísmo secretamente.

Sua mãe, Lourença Coutinho, teve que voltar para Portugal novamente no ano de 1713,

presa pelo Santo Ofício. Começou a estudar direito na Universidade de Coimbra e,

ainda quando estudante, começa escrever comédias para o teatro. Apesar de ter sido

preso e torturado em 1726 sob acusação de judaizar, dedica-se mais às suas peças

que a profissão que se formara. Ficou conhecido como um dos maiores dramaturgos de

sua época e o maior comediógrafo do teatro de marionetes. Antônio José escreve

sátiras sobre o comportamento da época, critica os demônios e sociedade

contemporânea.

Dentro da relativa pobreza do teatro português, cabe-lhe a iniciativa de ter ensaiado um

gênero dramático novo, assimilando as influências do teatro espanhol, da ópera italiana

e da tradição vicentina. Representadas por marionetes, suas peças se caracterizavam

pela variedade de cenários, pela intriga bem conduzida à Lope de Veja, pela presença

do criado inteligente (gracioso), por modinhas e canções cantadas no final de cada

cena, pela pujança falsa e a crítica de costumes à Gil Vicente.

Em 1737 voltou à prisão com sua mãe e sua esposa, acusados novamente de judaizar.

A ordem dos franciscanos o acusou de heresia e, depois de ser torturado inúmeras

vezes, em 1739 foi garroteado e queimado em público auto-da-fé, com a presença do

rei D. João V.
101

Suas obras de destaque foram: Vida do Grande D. Quixote de la Mancha e do Gordo

Sancho Pança (1733), Esopaida ou Vida de Esopo (1734), Os Encantos de Medéia

(1735), Anfitrião (1736), Labirinto de Creta (1736), Guerras do Alecrim e da Manjerona

(1737), As Variedades de Proteu (1737) e Precipício de Faetone (1738).

8 OS LIVROS E A BRUXARIA

Em 1484, o Papa Inocêncio VIII, publica, para defesa do mundo cristão e contra os

inimigos da Igreja, a bula Summis desiderantes affectibu, na qual a máxima autoridade

eclesiástica reconhece, oficialmente, a existência das bruxas. Esse tema inspirou

muitos autores de obras literárias fictícias. Como é o exemplo de Fausto de Goethe. Na

segunda parte do livro, aparece a noite das Walpurgis, na qual acontece o conhecido

Sabbath16, no monte Broken, em Harz, lugar intitulado Plataforma das Bruxas.

Pequenos livros, conhecidos como Grimórios, foram pouco citados e falados. São obras

que contém orações e ilustrações ditas como demoníacas. A maior coleção que se tem

conhecimento é a que se encontra na Biblioteca do Arsenal, em Paris. Os mais famosos

foram publicados na Espanha e América do Norte pelo estudioso Mago Bruno. São os

quatro seguintes volumes:

16
Nome que franceses atribuíram às festas dadas pelos feiticeiros em um lugar isolado. O nome se
explica porque a festa era realizada no dia de saturno – sábado.
102

1. Enchiridion Leonis Papae (Manual do papa Leão) - Com orações misteriosas

enviadas pelo papa como presente a Carlos Magno.

2. As Clavículas de Salomão ou Segredos dos Segredos - Uma cópia da edição de

1721. Ele circulou na Europa no século XII. Sua autoria é de papa Honório III, acusado

de feitiçaria. Assim como foram também os papas Leão II, João XXII e Silvestre II.

Ainda não se tem certeza se essa é uma verdadeira cópia do livro de Salomão, tendo-

se em vista que o papa Inocêncio VI mandou queimá-lo em 1350.

3. O Grande Grimório do Papa Honório - Uma cópia da edição feita em Roma no

ano de 1629.

4. Os Segredos do Inferno – Cópia de um manuscrito de 1522. Nele encontram-se

pactos com o demônio e da Pedra filosofal.

Escrito em 1484 para orientar os inquisidores, o Malleus Maleficarum – editado em

português com o título O martelo das feiticeiras – foi, durante séculos, o mais lido

manual europeu para o estudo das técnicas de identificação de bruxas e de como fazê-

las confessar heresias. No trecho a seguir, os autores explicam como, "pela

misericórdia de Deus" e a aplicação de torturas, uma mulher de nome Agnes confessou

seus crimes.
103

8.1 Malleus Maleficarum - O Martelo das Feiticeiras

“Convém aqui relatar um caso que chegou aos nossos ouvidos. Na diocese de Constance, a vinte e oito

milhas alemãs da cidade de Ratisbon, na direção de Salzburg, uma violenta tempestade de granizo

destruiu todas as plantações e parreiras num cinturão com raio de uma milha, a tal ponto que as vinhas

deixaram de dar uvas durante três anos. O fato chegou ao conhecimento da Inquisição, já que o povo

exigia que se investigasse o ocorrido. Muitos dos moradores do local eram da opinião de que a

tempestade fora causada por bruxaria. Consequentemente, depois de quinze dias de deliberação formal,

chegamos à conclusão de que era um caso de bruxaria a ser investigado. Entre um grande número de

suspeitos, examinamos com particular atenção duas mulheres, uma de nome Agnes, mulher de Bath, e

outra de nome Anna von Mindelheim. As duas foram capturadas e trancafiadas em prisões separadas,

para que uma não tivesse a menor idéia do que à outra acontecia. No dia seguinte, Agnes foi interrogada

pelo magistrado principal, um juiz chamado Gelre, muito zeloso da Fé, e por outros magistrados também.

Todo o interrogatório foi conduzido na presença de um escrivão. No primeiro julgamento a moça afirmou

ser inocente de qualquer crime contra homem ou mulher, embora tivesse indubitavelmente o dom

maligno do silêncio, a maldição constante dos juizes. Contudo, graças à misericórdia Divina, para que tão

monstruoso crime não ficasse sem punição, Agnes, depois de uma sessão na câmara de tortura e de

haver sido retirada dos ferros, repentinamente confessou todos os crimes que cometera. Embora não

houvesse testemunha para provar que ela abjurara a Fé ou praticara o coito com algum Íncubo - dado o

extremo sigilo em que cometera tais crimes -, depois de ter admitido que causara mal a homens e a

animais, também confirmou que praticara esses dois outros crimes. Contou que há dezoito anos se

entregava em corpo a um Íncubo, na mais completa negação da Fé.

Quando perguntada sobre o que sabia a respeito da tempestade de granizo que ocorrera na região, ela

confessou então tudo o que fizera.


104

- Eu estava em minha casa, e ao meio-dia veio até a mim um demônio. Disse-me para acompanhá-lo até

a planície de Kuppel, trazendo comigo um pouco d'água. E quando lhe perguntei o que ele queria que eu

fizesse, disse-me que queria fazer chover. Fui assim até os portões da cidade e encontrei o demônio

postado de pé debaixo de uma árvore.

- Debaixo de que árvore? - indagou-lhe o juiz.

- Daquela ali, defronte da torre - respondeu-lhe, apontando para a árvore.

- E o que fizeste lá? - prosseguiu o juiz.

- O demônio me disse para cavar um buraco pequeno e despejar a água dentro dele.

- Sentaram-se tu e ele juntos para cavar?

- Não. Só eu. Ele permaneceu de pé.

- E depois? - insistiu o magistrado.

- Depois eu despejei a água no buraco e comecei a revolvê-la com o dedo enquanto invocava o próprio

Satanás e todos os outros demônios.

- E o que aconteceu à água?

- O demônio a fez subir pelos ares e desaparecer.”

O povo medievo, independente da classe social: burgueses, nobres, servos, clérigos,

etc, habituado à crença numa magia existente no mundo, não conseguiam distinguir o

real do imaginário, o possível e o impossível, do mito do racional. Acreditavam em tudo.

Era muito fácil temer qualquer um que se mostrasse fora dos padrões da aceitação do

mundo e da religião.

No Brasil, muitos habitantes foram acusados de fazerem sortilégios pelo fato de

saberem como administrar e manipular remédios aos necessitados. Essas pessoas, em

geral uma mulher ou homem curandeiro, acabavam quase sempre sendo vítimas do
105

Tribunal do Santo Ofício. Algumas mulheres que se diziam feiticeiras, o faziam para

adquirir prestígio e status diferenciador em sua comunidade ou mesmo assegurar-lhes

clientes que a pagassem pelos serviços prestados. A situação era tão precária que

frades e padres que habitavam a colônia, atestando estranhas doenças que no Brasil

existiam e eram de desconhecido dos poucos médicos da época, viam-se na situação

de recomendarem aos seus fiéis que procurassem ajuda calunduzeiros17. Muitos

desses padres e frades foram denunciados ao Tribunal do Santo Ofício.

9 INDEX LIBRORUM PROHIBITORUM

A prática de destruir livros perniciosos, além de ser antiga, é oriunda de culturas

diversas. Já no final do século III, o imperador pagão Diocleciano, em Roma, mandou

queimar todos os livros egípcios de alquimia. Entre os cristãos, a primeira notícia que se

tem da destruição de livros, data do final do século II.

Os livros da Idade Média eram feitos por monges copistas, que faziam verdadeiras
edições dos livros mais importantes. Todos eles eram escritos em latim e a maioria
deles tratavam de temas religiosos: a Bíblia, os escritos dos padres, os livros oficiais,
etc. Em uma biblioteca, nessa época, raras eram aquelas que possuíam mais de cem
livros.

17
Praticantes do calundu. Ritual de origem africana que invocava a entidade sobrenatural responsável
pelo destino humano.
106

No ano de 1501 o papa Alexandre VI emite uma bula que proíbe os impressores de
todas as zonas submetidas a Roma de qualquer obra que não tivesse o visto eclesial,
sob pena de excomunhão e multa. Entre os anos de 1545 e 1563 ocorreu o Concílio de
Trento. Era a Contra-reforma, um movimento que nasceu dentro da Igreja Católica
Apostólica Romana nos séculos XVI e XVII como uma tentativa de revitalizar a Igreja,
opondo-se ao protestantismo. Este Concílio reafirmou os dogmas da Igreja Católica,
passou a exigir maior disciplina do clero, proibiu terminantemente a venda de
indulgências, estabeleceu que seminários deveriam ser com o intuito de educar os
padres. O Index Tridentino foi publicado em 1564, e logo passou a ser conhecido como
Index Librorum Prohibitorum (Índice de Livros Proibidos).

O Index era uma relação oficial de livros, atualizada periodicamente, que trazia todas as

obras que estivessem proibidas a leitura dos fiéis. Uma relação dos livros considerados

perigosos para a fé e a moral. O principal objetivo de se criar um instrumento como

esse, era o de impedir aos católicos de terem algum tipo de contato com as idéias

protestantes ou com qualquer outra que pudesse surgir naquela época. A Igreja queria

vetar qualquer tipo de produção científica ou a disseminação do saber.

Durante toda a Idade Média, foram condenadas várias doutrinas heréticas e os livros

que as continham. Todos os livros que fossem proibidos não deveriam ser lido e muito

menos possuídos. As penas para a posse de tais livros, a partir do século XIV,

passaram a ser a excomunhão. O Rol dos Livros Defesos publicado no ano de 1561

pela Inquisição é o mais volumoso de todos; consta que mais de dois mil autores foram

censurados.
107

Muitas pessoas tiveram seus escritos e pensamentos censurados: Nicolau Copérnico

(1473-1543) e Galileu Galilei (1564-1642) como cientistas, Giordano Bruno (1548-1600)

como humanista, Miguel Serveto (1511-1553) como médico e até mesmo artistas como

Miguelangelo Buonarroti (1475-1564) foram perseguidos e desmoralizados dentro da

idéia inquisitorial.

Na setença de Giodarno Bruno enviada ao governador de Roma no ano de 1600 temos

o seguinte escrito:

“Condenamos, reprovamos e proibimos todos os livros mencionados e outros livros e escritos seus como

heréticos e errôneos, eivados de inúmeras heresias e erros, ordenando que os que foram até agora

confiscados e no futuro venham a cair nas mãos do Santo Ofício sejam publicamente rasgados e

queimados na praça de São Pedro, diante da escadaria, sendo como tais inscritos no Index dos livros

proibidos, conforme ordenamos que se faça”18.

Outro exemplo é o do Beato Amadeu, da ordem dos Franciscanos, que escreveu

“Raptus et Revelationes: Apocalypsis Nova”, que foi incluído no “Catálogo dos Livros

que se prohibem nestes Regnos e Senhorios de Portugal”, segunda parte do Index

Librorum Prohibitorum impresso em Lisboa no ano de 1581.

Somente alguns estudiosos católicos poderiam ter acesso a uma obra inserida no

Index, mas, mesmo assim, seria necessária uma permissão especial. Toda obra

18
Cópia da sentença endereçada ao governador de Roma, 8 de fevereiro de 1600. In: Firpo, L. Il
processo di Giordano Bruno. Roma: Salermo, 1993, p.343.
108

impressa deveria passar pelo crivo dos censores. Logo após, o órgão responsável pela

listagem das obras passaria ser a Congregação do Index. Mas oficialmente, somente

no ano de 1571 o pontífice Pio V (1566-1572) instituiria a Congregação, cuja atribuição

e responsabilidade baseava-se na censura de obras publicadas na época.

Até mesmo a bíblia, que nos dias de hoje continua sendo o livro mais vendido de todo

mundo, nos anos de 1547 e 1641 já esteve na lista de livros proibidos. Com a criação

do Index em 1559, foram as traduções bíblicas em vernáculo passaram a atuar. Vale a

pena também dizer que a autoria intelectual nasce da própria censura. Antes disso, os

responsáveis pelas obras eram somente escribas que tinham sua inspiração vinda de

Deus. Mas com o Index, passou a ser necessário que o contraventor tivesse um nome

para ser punido.

Os católicos, até o ano 1966, estavam proibidos, sob pena de excomunhão, de possuir,

ler, vender ou difundir qualquer livro incluído no Índice. Foi somente nesse ano que o

Vaticano aboliu a vigésima edição do Index, publicado em 1948 pela Congregação da

Doutrina da Fé, sucessora da Inquisição. Figuravam nele autores seculares como

Goethe e Voltaire.

Em 14 de outubro de 1966, uma decisão aprovada pelo papa Paulo VI, decreta que

poderiam se difundir livremente, na Igreja, livros e mensagens provenientes de

presumidas revelações. Na verdade, era a abolição do Índice de Livros Proibidos.

Promulgada em 15 de novembro do mesmo ano, a decisão estipulava que, mesmo


109

eliminada a censura relativa, permanecia a obrigação moral de não propagar nem ler

escritos que pudessem colocar em perigo a fé e os bons costumes.

10 ARQUIVO NACIONAL DA TORRE DO TOMBO

O Arquivo Nacional da Torre do Tombo é o mais antigo e importante arquivo de

Portugal. Sua origem remonta ao arquivo do Condado Portucalense, instituído pelo

conde Henrique de Borgonha em uma torre do Castelo de Guimarães. A partir da

independência de Portugal, este arquivo acompanhou a corte na sua itinerância pelo

reino - da primeira metade do século XII a meados do século XIV -, ressaltando-se os

períodos de permanência em Guimarães e Coimbra.

Entre 1352 e 1378, após a fixação definitiva da capital em Lisboa, o arquivo foi

instalado na torre de menagem do Castelo de São Jorge. Na dinastia de Borgonha

(1140-1383), o arquivo tinha funções fiscais e patrimoniais (onde se conservavam os

livros de cadastro ou de tombo dos bens régios), pelo que sua direção foi normalmente

exercida por fiscais da fazenda.

A partir de João I (1383-1433), os monarcas da dinastia de Avis perceberam a

importância histórica do arquivo real. Desde então, sua direção passou a estar

associada também à nova função de cronista-mor do reino. Exerceram estes cargos


110

figuras importantes como Fernão Lopes, Gomes Eanes de Zurara, Vasco Fernandes de

Lucena, Rui de Pina, Fernão de Pina e Damião de Góis, sendo que este último exerceu,

apenas, o cargo de guarda-mor.

Manuel I (1495-1521), consciente da importância da conservação da memória lusitana,

promoveu a transcrição dos documentos mais importantes - em letra de difícil leitura -

para caracteres regulares e uniformes, em volumes de grande dimensão e ricamente

iluminados, os chamados livros da Leitura Nova.

No período da monarquia dual (1580-1640), o arquivo perdeu importância e sofreu

sérias depredações devido às ordens de transferência para Espanha de importantes

códices. Após a Restauração (1640), passou por diversas reestruturações

empreendidas por A. Carvalho de Parada (1650) e pelos seus sucessores,

principalmente António Álvares da Cunha. O terremoto de 1755 fez ruir a torre que

soterrou a quase totalidade do arquivo. A determinação do guarda-mor, engenheiro

Manuel da Maia, na função desde 1745, foram fundamentais para reduzir as perdas.

Manuel Maia promoveu, de imediato, a construção de instalações provisórias em

madeira onde acondicionou os documentos. Por sua iniciativa, o marquês de Pombal

alugou uma ala do Mosteiro de São Bento à Estrela para onde os documentos foram

transferidos (1757) e o arquivo reestruturado.

Com a extinção e confisco dos bens da Companhia de Jesus portuguesa (1759), parte

dos arquivos da ordem - sob a denominação Armário jesuítico - foi incorporado ao


111

Tombo. O guarda-mór José Seabra da Silva (1773) mandou proceder à cópia de alguns

dos documentos mais preciosos, nomeadamente a Carta do achamento do Brasil (Porto

Seguro, 1 de Maio de 1500), dirigida a Manuel I pelo escrivão cabralino Pero Vaz de

Caminha, tendo José de Azevedo Coutinho dirigido o primeiro inventário geral (1776).

A lei das cortes vintistas que extinguiu a Inquisição (1821) decretou a incorporação dos

arquivos do Conselho Geral do Santo Ofício e dos Tribunais de Lisboa, Coimbra, Évora

e Goa (mais de 36 mil processos, entre os quais se contam os de Damião de Góis,

Bandarra, António Vieira, José Anastácio da Cunha e Bocage) no arquivo nacional.

Com a extinção das ordens religiosas (1834) foram incorporados os cartórios de

dezenas de mosteiros e conventos, ao que se seguiram papéis da proclamação da

República (1910). A queda do Estado Novo enriqueceu o arquivo do Tombo com

arquivos dos organismos repressivos ou da juventude do regime, principalmente os da

Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE), mais tarde Direção Geral de

Segurança (DGS), Legião Portuguesa, União Nacional e Mocidade Portuguesa.

Na Torre do Tombo destacam-se as Gavetas, com milhares de cartas, doações,

sentenças e testamentos dos séculos XII a XVI; o Corpo Cronológico, com 82.900

documentos de 1123 a 1699, sobressaindo-se as cartas dirigidas aos reis, enviadas do

Oriente e Brasil; os Livros das Chancelarias, com 1.100 códices que vão do reinado de

Afonso II (século XIII) a Pedro IV (século XIX); o Bulário, com bulas papais dirigidas a

Portugal desde o século XII. O Tombo tem, ainda, a Junta do Comércio, o Desembargo
112

do Paço, a Leitura de Bacharéis, os Manuscritos do Brasil, os Manuscritos da Livraria, a

Real Mesa Censória, a Intendência Geral da Polícia, o Ministério do Reino, o Ministério

dos Negócios Estrangeiros, o Ministério das Finanças, os cartórios de casas senhoriais,

os arquivos de empresas e particulares, além de uma rica livraria.

Em 1990 - depois de um longo processo em que foi decisiva a determinação de José

Pereira da Costa, seu antigo diretor -, os arquivos da Torre do Tombo foram

transferidos para modernas instalações, situadas na cidade universitária. Entre seus

últimos responsáveis destacam-se os historiadores António Baião, Silva Marques,

Humberto Baquero Moreno, Jorge Borges de Macedo e José Matoso. O endereço de

sua página na Internet é o seguinte: http://www.iantt.pt.

11 O SANTO OFÍCIO SE DEFENDE NO SÉCULO XIX

Após longos anos de relatos, documentos oficializados, tornara-se impossível negar os

atos da Inquisição. Seus defensores foram obrigados a defendessem com os

argumentos, que quase sempre são os mesmos.

1. A inquisição teve um papel, benéfico naturalmente, ao mesmo tempo religioso e social. Ela
protegeu com as menores despesas a civilização cristã, permitindo, principalmente na península ibérica,
a economia das guerras de religião. Ela impediu a subversão por parte de elementos estranhos à ordem
social estabelecida. Pouco importa, portanto, sua “severidade”: o fim justifica os meios.
113

2. A inquisição fez, certamente, vítimas, porém bem menos do que se diz. Além disso, o poder real
deve ser responsabilizado pelas execuções, cujo número foi muito exagerado por Llorente *(O Padre de
La Pinta Llorente teve documentos inquisitoriais em mãos e pôde reconstituir um certo número de causas
célebres. Sua obra “Histoire critique” acompanha um índice, de sumário cronológico e de documentos
justificativos às afirmações tidas como ofensivas à Igreja).

3. A inquisição foi “branda e generosa” em comparação com os tribunais leigos de sua época, suas
prisões bem conservadas, e ela usou a tortura apenas moderadamente, distinguindo-se aí também
favoravelmente com relação à justiça contemporânea.

4. As vítimas da Inquisição mereciam seu destino. Certos autores relatam, dando sua aprovação, as
expulsões de judeus e de mouros; outros afirmam que não foram jamais perturbados. Os judaizantes e
os mouriscos apóstatas eram merecedores de castigos como desleais e infiéis. Quanto à heresia, ela
eqüivale-se à traição e merece portanto sua pena de morte.

5. A inquisição não prejudicou em nada a prática e o desenvolvimento das letras, das artes e das
ciências. A censura do Santo Ofício foi aplicada apenas às obras sem valor e “perniciosas”.

6. A inquisição igualitária, pois exercia seus rigores tanto contra ricos e nobres como contra pobres
e plebeus, contra eclesiásticos e contra leigos, representava o poder do povo e era amada.

7. É preciso julgar o Santo Ofício à luz dos princípio vigentes à sua época, notadamente o da
conformidade com a religião do soberano. Sua ação deve ser comparada à de outras autoridades
religiosas e civis igualmente conhecidas por sua severidade; isto visa em geral os países protestantes.
Aqueles que condenam os rigores da Inquisição merecem o qualificativo de “sectários” e de “fanáticos
liberais”.19

19
Tais afirmações e muitas outras do mesmo gênero são enunciadas no livro de Joseph de Maistre
intitulado “Lettres à un gentilhomme russe sur L’inquisition espagnole” de 1822 (um ano após sua morte).
114

12 CONCLUSÃO

A divulgação da idéia e o surgimento de novos pensadores durante toda a Idade Média

foram alguns dos maiores pesadelos dos inquisidores. A publicação de novas obras e a

entrada de pensamentos contrários - ou que não fossem idênticos - aos da Igreja eram

sinônimos de suspeita, violência e mortes.

Somente no século XX o Index foi abolido. A decisão foi aprovada em 1966 pelo papa

Paulo VI em 14 de outubro. Isso significa que até o referido dia foram séculos de

perseguições, interrogatórios, torturas, destruição de livros e documentos que eram

parte integrante de nossa história mundial. Alguns papas nunca deixaram de combater

o cientismo, o liberalismo e o socialismo, bem como os padres e teólogos que

simpatizam com estes pontos-de-vista.

Mesmo com todo o combate à censura de livros ainda existiram (e existem) fatos que

não nos mostram exatamente uma liberdade concreta. Um grande exemplo foi durante

o governo de Hitler. Os ditadores sempre souberam que uma multidão analfabeta e

ignorante é bem mais fácil de se governar. Mas uma vez que a leitura não pode ser

desaprendida, a solução é limitá-la. A ilusão daqueles que queimam os livros é a de

que podem acalentar a história e abolir o passado. No dia 10 de maio de 1933, em

Berlim, o ministro da propaganda Paul Joseph Goebbels discursou durante a queima de

mais de 20 mil livros para uma multidão de 100 mil pessoas: “Essa noite vocês fazem
115

bem em jogar no fogo essas obscenidades do passado. Este é um ato poderoso,

imenso e simbólico, que dirá ao mundo inteiro que o espírito velho está morto. Destas

cinzas irá se erguer a Fênix do espírito novo.”

“Contra a exacerbação dos impulsos inconscientes baseada na análise destrutiva da

psique, pela beleza da alma humana, entrego às chamas as obras de Sigmund Freud”,

declarou um dos censores antes de queimar os livros de Freud. Marx, Eisntein, Proust,

Hemingway, Zola, entre outros, também tiveram suas obras condenada às chamas da

nova Inquisição – a ditadura.

Mas não foi somente na Alemanha de Hitler que a queima de livros foi praticada. No

Chile, O Clássico Dom Quixote foi alvo da ira de governantes. A junta milenar chilena,

liderada pelo ditador general Augusto Pinochet, na década de 80, baniu do país a obra.

Alegava-se que o livro continha um forte apelo pela liberdade individual e pregava o

ataque à liberdade.

Em nosso país, durante a ditadura, a censura atou firmemente durante décadas. Não é

necessário ir muito longe ter idéia dos estragos que ela causou. No ano de 1985, por

exemplo, o ex-presidente Jânio Quadros, mandou recolher das bibliotecas públicas uma

série de livros didáticos, o chamado “Relatos do Brasil”. Ele simplesmente discordava

da versão histórica que o livro mostrava aos leitores. É uma atitude imposta para que a

população absorvesse somente o que era de interesse dos governantes da época.


116

Muitos outros episódios que envolvem a censura de livros poderiam ser descritos aqui.

A Inquisição Medieval definitivamente foi abolida. Mas sua idéia principal, que era a

censura de novas idéias e as restrições de pensamentos, sendo eles novos ou não,

ainda permanece. Hoje, em pleno século XXI, temos outros inquisidores, mas que

atuam de forma indireta. Os que são responsáveis pelo que se vende em livrarias, os

que respondem pelos programas de televisão e rádio, entre outros. Cabe a cada

indivíduo decidir suas escolhas, mas esta é uma liberdade ainda censurada.
117

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Atual).

VATICANO: Inquisição matou menos que se pensava. São Paulo, jun. 2004. Disponível

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VOLTAIRE. Disponível em: <http://www.consciencia.org/moderna/voltaire.shtml>.

Acesso em: 07 jun. 2004.

WALSH, William Thomas. Personajes de la Inquisición. Madrid: Espasa-Calpe, 1948.


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ANEXO

Fonte: História Viva, n. 10 (ago. 2004)

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