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Os Sete Pecados Capitais

Volume 1 • Introdução ao pecado

Senhor, o que não sabemos, ensina-nos.


Senhor, o que não temos, dá-nos.
Senhor, o que não somos, faça-nos.

Ó Senhor, perdoa o que temos sido.


Santifica o que somos,
E ordena o que havemos de ser.

Ó Senhor, tu nos fizeste para ti,


E nossos corações devem encontrar descanso
Até que encontrem descanso em ti.

— Confissões, Agostinho de Hipona.

O SENHOR é misericordioso e compassivo; longânimo e assaz benigno. Não repreende


perpetuamente, nem conserva para sempre a sua ira. Não nos trata segundo os nossos
pecados, nem nos retribui consoante as nossas iniquidades. Pois quanto o céu se alteia acima
da terra, assim é grande a sua misericórdia para com os que o temem […] Como um pai se
compedece de seus filhos, assim o SENHOR se compadece dos que o temem. Pois ele conhece a
nossa estrutura e sabe que somos pó […] Bendizei ao SENHOR, vós, todas as suas obras, em
todos os lugares do seu domínio. Bendize, ó minha alma, ao SENHOR.

— Salmos 103.8-11; 13-14; 22

Sumá rio

Apresentação

Capítulo um – Significado do termo “pecado”

Capítulo dois – Conceito filosófico de “pecado”


Capítulo três – O significado de pecado nas principais religiões mundiais

Capítulo quatro – O que aconteceu com o pecado? — O pecado e a sociedade atual

Capítulo cinco – A origem do pecado

Capítulo seis – Os “sete pecados capitais”

Bibliografia

Apresentaçã o

Muito pouco se tem falado sobre ele, apesar do fato de que nunca, ao longo da história
humana, tenha ele ocupado um tão grande espaço no mundo. Está cada vez mais ausente dos
códigos morais que norteiam nossas próprias consciências, porém, cada vez mais presente em
nossas atitudes e ações em todas as áreas de nossas vidas – o pecado.

A teologia tem considerado o pecado um assunto que deve ser abordado e condenado com
extremo cuidado e sensibillidade, de maneira tal que não venha a ferir ou incomodar a
sociedade. Alguns possuem até certo apreço por ele, considerando-o muito mais um atributo
de sua própria personalidade do que como uma transgressão em si.

E assim o pecado tornou-se algo doméstico, comum e até mesmo necessário no dia a dia de
milhões ao redor do mundo. Seu conceito dissipou-se em nossas mentes. Os valores que antes
o consideravam como qualquer falta de conformidade com a lei de Deus, ou qualquer
trangressão desta lei (cf. Romanos 3.23), hoje o enxergam como uma qualidade inerente ao
homem do século 21. Atitudes e comportamentos que nossos avós consideravam como
pecado, hoje são vistos apenas como distúrbios psicológicos que a ciência classifica, quando
muito, como desajustes sócio-culturais.

Mas afinal, para nós, homens e mulheres de um mundo pós-moderno, o que vem a ser
pecado? Quais são os valores que definem atualmente o que é pecado e o que não é? E como
a igreja vê o pecado hoje? Será que o pecado, que sempre potencializou a mensagem
evangélica da salvação e caracterizou o papel sacrificial do Filho de Deus, ainda possui
importância?

É convicção comum ao autor desta série “Os Sete Pecados Capitais” que existe entre muitas
pessoas no tempo presente um desconhecimento grave da natureza e da forma de pecado.
Existem aqueles que, apesar de concordarem com a existência do pecado ou da falha moral,
não são capazes de apontá-los ou reconhecê-los em suas vidas pessoais ou sociais. É uma séria
realidade em qualquer sociedade, o fato concreto de que as pessoas ou são incapazes ou não
têm vontade para discernir o valor moral do comportamento humano. No entanto, tal estado
de coisas é ainda mais crítico para a igreja, porque no coração da religião cristã está a crença
na natureza pecaminosa do homem, e é sobre essa base que a estrutura da teologia cristã é
construída. Sem um reconhecimento do pecado, o cristianismo torna-se uma ideologia vaga,
sem sentido.

Seria de se esperar que, enquanto as pessoas de fora da igreja fossem indiferentes sobre o que
é pecado e o que não é, as pessoas dentro da igreja seriam muito mais conscientes da
natureza do pecado, tanto por meio da experiência pessoal quanto pelo conhecimento da
doutrina contida no Novo Testamento ou da própria igreja. No entanto, esse não parece ser o
caso, e os membros da igreja, além de todos aqueles que perderam qualquer ligação com ela,
sentem-se desconfortavelmente pressionados quando são solicitados a citar meia dúzia de
exemplos de pecado, como assassinato, roubo, adultério, egoísmo, ciúme e negação a Jesus
Cristo. Às vezes, as pessoas dirão que pecado é viver em desacordo com os Dez Mandamentos,
mas também é difícil para elas nomearem qualquer um desses mandamentos. Algumas
pessoas cristãs demonstrarão seu embaraço, afirmando que já não acreditam que o adultério
seja pecado, uma vez que existem pessoas que não conseguem controlar seus sentimentos e
emoções, e que até mesmo o assassinato pode ser desculpado por aqueles que são movidos a
ele por forte comoção pessoal. O pecado é geralmente reconhecido pela maioria das pessoas,
sejam da igreja sejam de fora dela, como algo abstrato. O problemático para muitos cristãos é
colocar o dedo em sua própria existência, reconhecendo-o de forma definitiva. A dificuldade
vem de fiéis devotos e regulares com perguntas como estas: “Quais são as ações específicas
que você ou eu enxergamos como situações que podem ser chamadas de pecados?” “Em que
ações ou pensamentos nós, como indivíduos ou como grupo, negamos nosso Senhor e
Mestre?” Alguma desculpa pode ser encontrado por aqueles que pertencem a igrejas onde o
pecado é considerado algo “fora de moda”, mas para a grande maioria das igrejas evangélicas,
pelo menos, não existe tal comportamento, e semana após semana declaram: “Nós temos
feito as coisas que não deveríamos fazer, e não há nada de bom em nós” ou “Estamos
sinceramente arrependidos por esses nossos malfeitos, a memória deles é grave para nós, e o
fardo deles é intolerável.” Tais palavras parecem ser completamente sem sentido, ou até
mesmo hipócritas, para aqueles que não podem dar uma resposta precisa para as questões
citadas acima. E, provavelmente, não está muito longe da verdade dizer que o pecado não
pesa fortemente sobre a maioria dos adoradores. A consciência permanece imperturbável.
Tais pessoas não conhecem o perdão, porque não sabem o que precisava ser perdoado. As
pessoas não têm nada a confessar, porque para elas o pecado perdeu a sua importância. No
entanto, curiosamente, elas reconhecem o seu fracasso exatamente neste ponto. Percebem
que existe uma lacuna grave, e não são poucos aqueles que são perturbados por pontos que
são incapazes de solucionar em suas próprias vidas. É claro que alguns membros da igreja
podem fornecer exemplos de pecados (homicídio, embriaguez etc), mas acredita-se que eles
não são os tipos de pecados nos quais a pessoa envolvida seja suscetível de sofrer um
comprometimento sério, ou alimente um sentimento de fracasso pessoal, ou impeça o
crescimento na vida espiritual. Certamente, não existe hoje um reconhecimento sério e
importante do pecado, como podemos verificar através do desenvolvimento dos movimentos
evangélicos e de uma pesquisa pública realizada pela BBC no Reino Unido. 1

A influência da opinião social patentemente desempenhou o seu papel no presente


enfraquecimento do sentido de pecado. Os achados dos psicólogos e a influência dos filósofos
morais, que tiraram de uma só vez uma boa parte da responsabilidade ligada às ações imorais,
foram propagados pela imprensa, pela televisão e pelo cinema, e aceitos pelo povo em geral. A
ausência de vergonha ou arrependimento é associada com os processos nos tribunais de
divórcio; assassinos são exibidos apresentando amplas desculpas para suas ações. Estes e
outros fatores sociais são fortes em sugerir às pessoas que muitas das ações anteriormente
consideradas como pecaminosas podem já não ser vistas como tal hoje em dia. A igreja não
tem sido capaz de manter-se fora da opinião popular. Mesmo entre os frequentadores da
Igreja que podem apontar para o pecado em suas próprias vidas, a influência dos princípios
humanistas é visível. Pecados são vistos como crimes contra outras pessoas, mas raramente
contra Deus ou a Igreja. Que Deus pode ser ofendido por aquilo que as pessoas fazem parecer
algo fora de questão para tais indivíduos. A pessoa ofendida pelo pecado é o homem, e não o
seu Criador. O contexto é, inegavelmente, este mundo, e não se estende para além dele.

Independentemente das atuais atitudes sociais, a consciência do pecado deve ocupar um lugar
central na vida do cristão, e toda a verdadeira espiritualidade tem que abrir espaço para a
existência do pecado. É necessária a consciência de que o pecado é também um elemento
integrante de certos movimentos religiosos que se tornarão completamente sem sentido se a
sua realidade for negada. Por exemplo, a conversão, no sentido evangélico, torna-se pouco
mais que uma paródia se um reconhecimento dos erros do passado não for admitido. Ou
ainda, em outra direção, o autoexame no momento que antecede a Ceia do Senhor,
inevitavelmente, assume um lugar insignificante nas igrejas que a praticam, a não ser que ande
de mãos dadas com um forte sentimento de culpa pelos erros cometidos.

Alguns dos denominados pecados graves, como o adultério, a blasfêmia, o roubo, não podem,
em seu contexto imediato, aplicar-se à vasta maioria dos cristãos. Seus pecados são
geralmente de um tipo menos espetacular. Esperar que essas pessoas usem os Dez
Mandamentos espiritualmente, em vez de literalmente, é muito mais frequente, a não ser que
se lhes dê cuidadosa orientação e instrução. Muitas das proibições constantes nas Epístolas do
Novo Testamento precisam de sutis interpretações ou aplicações para uso nos dias de hoje. Os
pecados comentados nos manuais devocionais atuais, às vezes empregam o pietismo do
século 19 ou empregam palavras que têm de ser encontradas em um dicionário. Não parece
existir nada disponível que fale para alguém em um dada situação presente, ou em uma
caminhada na vida pessoal, e por isso tantos andam cegos para a realidade do pecado. As
tentações da dona de casa vivendo em uma cidade de pequeno porte não são suscetíveis de
ser idênticas às do gerente de um grande banco na cidade. Os tipos de pecado que um pastor
comete pela natureza de seu trabalho são, à primeira vista, apenas remotamente relacionados
com os do trabalhador braçal, embora, obviamente, em cada caso haverá pecados que serão
comuns a ambos, e as circunstâncias especiais criam dificuldades especiais. No entanto, é
verdade que as pessoas não têm a oportunidade de serem orientadas a ver o pecado em suas
muitas formas em suas próprias vidas e no local específico em que se encontrem, em suas
casas, no trabalho ou na sociedade em geral. Esta faceta de suas atitudes religiosas é pouco
discutida ou considerada. A imaginação está adormecida, e as pregações sobre o assunto
raramente farão com que despertem rapidamente.

Nos volumes que compõem esta série “Os Sete Pecados Capitais”, tentaremos definir e
classificar os pecados capitais, que dão origem a todos os outros. Não é nossa intenção
apresentar um manual de teologia moral, mas apresentar e contextualizar tais pecados aos
dias de hoje, destacando sua importância atual. Para cada um deles —Soberba, Luxúria, Ira,
Inveja, Gula, Preguiça e Avareza — dedicaremos um volume específico. Ao final da série,
estamos certos de que o leitor estará mais consciente e melhor instruído acerca da natureza e
do significado deste câncer da alma, que tanta separação tem proporcionado entre o homem e
seu Criador.

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1.
Craig Brown, Out with the old deadly sins, in with the new, Scotsman, Edinburgo, 07/02/2000. A
pesquisa sugere que os pecados capitais originais (orgulho, lascívia, ira, inveja, gula, preguiça e avareza)
não influenciam tanto como outrora e devem ser “substituídos” por uma “nova lista de tabus
contemporâneos” que capturem a essência da moralidade moderna. A crueldade encabeçaria a nova
lista, seguida por adultério, fanatismo, desonestidade, hipocrisia, avareza (o único pecado capital
mantido) e egoísmo.

Capítulo um
Significado do termo “pecado”

Pecado não é apenas uma ofensa a Deus, uma doença ou ferida da natureza humana; é
também uma transgressão a uma lei eterna do direito.

— Aubrey Moore

Deixando de lado todas as tentativas de explicar, intrínseca ou extrínsecamente, o fenômeno


do pecado no mundo, como a sobrevivência dentro de nós de tendências animais pré-
adâmicas, e nos distanciando de todas as desculpas que estamos sempre prontos a apresentar
por nossos próprios pecados e pelos pecados dos outros, seja ele devido à nossa
hereditariedade ou ao meio ambiente, nos propusemos a considerar qual é a resposta bíblica
para a pura e simples questão: o que é o pecado?

“Pecado”, diz João, “é injustiça” (cf. 1João 5.17). Em seu caráter ético, é a rebelião da criatura
contra a Lei do Criador. Cada ato de pecado é isso. Deus deu ao homem uma lei que foi feita
para operar em todas as relações da vida, sejam elas direcionadas a Deus, aos homens ou a si
mesmo. O homem foi destinado a viver “uma vida piedosa, justa e sóbria” e, segundo o
julgamento das Escrituras, a vida, ou um ato que, em qualquer dessas relações desafia a lei, é
uma vida ou um ato de pecado, uma vida ou um ato de rebelião. “Pecado é injustiça”, uma
rebelião consciente e deliberada contra uma lei conhecida – a lei de Deus –, quer
explicitamente conhecida na forma de estatutos e mandamentos, quer revelada à própria
consciência do homem, como expressa nas palavras do profeta: Porei a minha lei no seu
interior e a escreverei no seu coração (Jeremias 31.33). É uma rebelião contra essa lei, e o fato
de que a vontade é livre para se rebelar ou não se rebelar, constitui-se em pecado. Este é, em
suma, o que o ensino cristão apresenta em relação ao pecado. Por hora, o que temos aqui é
suficiente para considerar o pecado de forma bastante geral, como João faz quando afirma
que o pecado é transgressão da lei. É, de fato, uma rebelião, constantemente renovada, da
criatura contra o Criador. Segundo o ensinamento de Paulo, no sétimo capítulo da carta aos
Romanos, o homem vê dentro de si duas “leis” ou “princípios” antagônicos, cada um deles
buscando tornar-se o guia e governante de seu “eu” interior. É o que ele chama de “a lei dos
membros”, a qual se lhe opõe “a lei do espírito”, que ele considera como agir em sintonia com
a lei de Deus (versículos 21 a 25). Entre esses dois, o homens deve escolher. Ele deve
identificar-se ou com o seu verdadeiro “eu” interior, com a “lei dos membros”, ou deve ele
submeter-se à “lei do espírito” e nela encontrar a vida e a paz. E porque a lei do espírito está
em harmonia com a lei de Deus, identificar-se com o princípio antagônico é um ato de traição
e rebelião contra a lei divina; isso é, de fato, pecado. Existem outros meios que podemos
considerar como pecado, como de fato existem outros termos que o expressam, ou melhor,
pelos quais a palavra é expressa no Antigo e no Novo Testamento. Vejamos cada uma delas,
pois certamente nos ajudarão a uma melhor compreensão do termo.

1.1. Significado do termo “pecado” no hebraico

O conceito judaico de pecado foi ampliado e transformado através dos séculos. Para os antigos
hebreus, o pecado consistia na violação de um tabu, uma ofensa contra Deus, pela qual
deveria ser oferecido um sacrifício expiatório. Gradativamente, com o decorrer dos séculos,
este conceito foi dilatado. O pecado passou a significar a inabilidade em conformarem-se com
as plenas potencialidades, o insucesso em cumprirem os deveres e arcar com as
responsabilidades como judeus e como povo de Deus.

Encontramos no hebraico dez palavras, entre substantivos, adjetivos e verbos, que traduzem o
termo “pecado” com riqueza de detalhes. Não é de se admirar tal riqueza de palavras, uma vez
que o pecado estava presente na base de todo o ordenamento jurídico e moral que impedia e
contaminava qualquer relação entre Deus e o homem. Porém, apenas alguns termos bastam
para traduzir bem o significado de pecado que chegou até nós.

A primeira dessas palavras é āwōn, que significa “iniquidade, maldade.” O termo āwōn retrata
que o pecado é uma perversão de vida (uma torção da maneira certa), uma perversão da
verdade (uma torção no erro), ou uma perversão da intenção (um dobramento da retidão em
desobediência voluntariosa). Esta palavra aparece com frequência ao longo do Antigo
Testamento, em paralelismo com outras palavras relacionadas com pecado, como hattā’t
(“pecado”) e pesa’ (“transgressão”). Alguns exemplos são 1Samuel 20.1: Davi […] disse perante
Jônatas: Que fiz eu? Qual é o meu crime [āwōn]? E qual é o meu pecado [hattā’t] diante de teu
pai, que procura tirar-me a vida? (cf. Isaías 43.24; Jeremias 5.25). Note também Jó 14.17: A
minha transgressão [pesa’] está selada num saco, e amontoas as minhas iniquidades [āwōn]
(cf. Salmos 107.17; Isaías 50.1).

Outra palavra é a já citada hattā’t, que significa “pecado, culpado de pecado, purificação de
pecado, oferta pelo pecado.” Este substantivo aparece cerca de 293 vezes e em todos os
períodos da literatura bíblica. A acepção básica desta palavra é “pecado” imaginado no sentido
de errar o caminho ou o alvo (155 vezes). Na maioria dos casos, esta palavra descreve um
pecado contra Deus (Levítico 4.14). Os homens devem se voltar do “pecado”, o qual é um
caminho, um estilo de vida ou um ato que diverge do que Deus determinou (1Reis 8.35). Este
substantivo aparece primeiramente em Gênesis 4.7, onde Caim é avisado que o pecado jaz à
porta.

Finalmente, a palavra mais significativa é o verbo hātā’, “perder, pecar, ser culpado, ser
privado, perder o direito, purificar.” Aparece 238 vezes e em todas as partes do Antigo
Testamento. O significado básico deste verbo é ilustrado em Juízes 20.16: Havia 700 soldados
benjamitas canhotos que atiravam com a funda uma pedra a um cabelo e não erravam. O
significado é ampliado em Provérbios 19.2: E o que se apressa com seus pés peca. Deste
significado básico vem o uso principal da palavra para indicar fracasso moral para com Deus e
os homens, e certos resultados de tais ações más.
A Septuaginta traduz este grupo de palavras 540 vezes pelo verbo grego hamartanō e os
substantivos derivados. Eles ocorrem 265 vezes no Novo Testamento. O fato de que todos
“pecaram” continua sendo enfatizado no Novo Testamento (Romanos 3.10; 18.23; cf. 1Reis
8.46; Salmos 14.1-3; Eclesiastes 7.20). O desenvolvimento do Novo Testamento é que Cristo,
havendo oferecido um único sacrifício pelos pecados, está assentado para sempre à destra de
Deus […] Porque, com uma só oblação, aperfeiçoou para sempre os que são santificados
(Hebreus 10.12,14).

Essas “grandes expectativas” provenientes da criação do homem à imagem de Deus, são


acentuadas em todos os ensinamentos judaicos. Narra certa lenda do Talmud que, ao entregar
a Torá a Moisés, Deus chamou para testemunhar não apenas os judeus do tempo de Moisés,
mas também os judeus de todas as gerações futuras. Cada judeu, portanto, deve considerar-se
como tendo aceito pessoalmente a Lei e os elevados ideais entregues a seus pais como
depositários no Sinai. Deixar de pautar a vida por estes altos padrões constituía pecado.

A tradição judaica distinguia entre pecados contra o homem e pecados contra Deus. Os
primeiros – transgressões de um homem contra seu próximo – somente podiam ser reparados
com a obtenção do perdão daquele que foi agravado. Orações não podiam expiar tais pecados;
Deus não intervinha para redimir as dívidas do homem para com o seu semelhante.

Os pecados contra Deus eram cometidos por quem se desviava de sua fé. Estes podiam ser
expiados através de sacrifícios e pelo verdadeiro arrependimento, que em hebraico se exprime
pela palavra teshuvá, “retorno”, ou seja, um regresso a Deus e uma reconciliação com Ele.

1.2. Significado do termo “pecado” no grego

O grego do Novo Testamento apresenta três palavras principais para traduzir o significado de
“pecado.”

A palavra hamartía, que traduzimos por “pecado”, significa, literalmente, a “perda de uma
marca.” Esta é a palavra mais abrangente para se referir ao desvio do padrão moral. É usada
acerca de “pecado” como:

a) Um princípio ou fonte de ação, ou um elemento interior que produz atos (por exemplo,
Romanos 3.9; 5.12,13,20; 6.1,2; 7.7, o abstrato pelo concreto; Romanos 7.8, duas vezes;
Romanos 7.9,11).

b) Um princípio ou poder governante, por exemplo, Romanos 6.6: O corpo do pecado. Aqui o
pecado é dito como um poder organizado que age através dos membros do corpo, embora o
“pecado” se encontre na vontade (o corpo é o instrumento orgânico).

O pecado, então, considerado como hamartía, é a queda do grande objetivo que Deus colocou
diante do homem em sua criação. Todo pecado que o homem comete, além de qualquer outra
coisa que ele faça, é uma queda do propósito de Deus para ele. Ao pecar, o homem está, de
fato, ferindo o personagem que deveria ser por toda a eternidade. Pecado, como a “perda da
marca”, é visto em seu maior horror quando percebemos que, em última e mais alta instância,
a marca não é outra senão o próprio Deus. Foi para si mesmo que Deus fez o homem e o
pecado é a incapacidade deste homem manter diante de si esta meta mais elevada do seu ser.
Pecado, então, é fracasso.
A segunda palavra grega para “pecado” é parábasis, que traduzimos como “transgressão” ou
“ofensa” (Romanos 2.23; 5.14). Significa ultrapassar os limites, entrando em um território
proibido, e isso implica a existência de uma ordem positiva que determina o contrário. Nisto é
contrastada com a palavra hamartía, que não implica uma ordem explícita. Segundo o
ensinamento de Paulo, os homens estavam pecando antes do advento da Lei, mas isso não era
pecado, no sentido de “transgressão.” Isso só poderia ocorrer após a entrega da Lei. É o
pecado daqueles que, com maior luz e conhecimento, deliberadamente quebram os
mandamentos divinos por vagarem nas pastagens sedutoras do reino do Inimigo de Deus, e
por colherem as atraentes flores e tentadoras frutas que crescem ali. Aqui, também, a
odiosidade da transgressão é realçada pelo fato de que a linha que o transgressor ultrapassa é
a linha desenhada pelo próprio Deus.

Por fim, encontramos também o termo adikía (“injustiça”). Mais uma vez, o pecado é
“injustiça” (cf. Romanos 1.18), a manifestação do pecado na esfera do nosso dever para com
os outros; é o pecado no sentido do mal feito para o nosso próximo. Ela indica um curso de
negociação torto, afastando-se do trajeto em linha reta marcado pelo próprio Deus.

1.3. Significado do termo “pecado” no latim

Por fim, nos deparamos com o conceito de “pecado” no latim. Sabe-se que o verbo “pecar” no
português é derivado do latim peccare que, em seu uso primitivo, significava “dar um passo
em falso, perder o pé” e, portanto, cair, falando-se dos cavalos e de outras montarias; depois,
figuradamente, “dar um mau passo moral, errar, cometer falhas.” Tal palavra tem ligação com
a palavra latina pecus, que significa: “pé defeituoso, pé incapaz de percorrer o caminho.” Em
outras palavras, “pecar” é “coxear, manquejar, capengar.” Aliás, a partir desses dados,
poderíamos muito bem concluir que “pecar” é “dar mancadas com Deus.” Dito de outra
maneira, quando pecamos estamos dando um “passo em falso” em nossa relação com Deus.

Ou seja…

De forma bem geral, podemos resumir afirmando que a “raiz” do pecado encontra-se
basicamente em dois fatores: “errar o alvo” e “pisar em falso no caminho de Deus.” Quando
não atingimos o “alvo” proposto por Deus para a nossa vida (que é glorificá-lo por meio de
todo o nosso viver) e também quando não andamos “corretamente” nos seus caminhos, tais
atitudes se traduzem em pecado diante dele.

Capítulo dois
Conceito filosófico de “pecado”

Filosofia é, por definição, o estudo de problemas fundamentais relacionados à existência, ao


conhecimento, à verdade, aos valores morais e estéticos, à mente e à linguagem; “filosofia” é
uma palavra grega, que significa “amor à sabedoria.”
A filosofia foca questões da existência humana, mas diferentemente da religião, não é baseada
na revelação divina ou na fé, e sim na razão. Dessa forma, a filosofia pode ser definida como a
análise racional do significado da existência humana, individual e coletivamente, com base na
compreensão do ser. Apesar de algumas semelhanças com a ciência, muitas das perguntas da
filosofia não podem ser respondidas pelo empirismo experimental.

Com tal conceito de “filosofia” em mente, veremos a seguir como os mais conhecidos e
importantes filósofos da história, começando pelos gregos, definiram e conceituaram o
pecado.

Filosoficamente falando, o pecado é uma transgressão intencional de um mandamento divino.


Esse termo tem conotação sobretudo religiosa: pecado não é a transgressão de uma norma
moral ou jurídica, mas a transgressão de uma norma considerada imposta ou estabelecida pela
divindade. O reconhecimento do caráter divino de uma norma e a intenção de transgredi-la
são os dois elementos desse conceito, sem os quais se confunde com os conceitos de culpa,
delito, erro, crime etc, que designam a transgressão de uma norma moral ou jurídica.

O conceito de pecado entre os gregos antigos difere substancialmente do conceito cristão


como ofensa a Deus. A raiz grega correspondente a pecado – hamartía –, em sua origem
significava “errar o alvo, falhar o objetivo”, na acepção de uma falha contra a técnica, contra a
gramática, contra a estética, falha essa provinda da imperícia ou inabilidade, mas que em si
mesma não possuía nenhuma culpa moral.

Sócrates, no quinto século a.C., interessou-se sumamente pelo problema da virtude e das
falhas cometidas contra esta. Professava que a ignorância era a causa do pecado, da
derrogação à virtude, e por isso, o pecador era isento de culpa moral, pois não se peca
voluntariamente. O pecado em Sócrates toma índole estritamente intelectual, tornando,
assim, quase nulo o senso de responsabilidade moral.

Platão (c. 347 a.C.), apesar de discípulo de Sócrates, não aceitou o intelectualismo socrático
em todo o seu vigor, ensinando a culpabilidade e a responsabilidade moral no homem que se
desvia da virtude.

Aristóteles (c. 322 a.C.), apesar de aluno de Platão por muitos anos, não possuía a consciência
de pecado enquanto culpa moral. Para ele (cf. Ética a Nicômaco; Política), o pecado constitui
um ato de inabilidade, de falta de perícia, um infeliz golpe de vista que alguém executa de boa
fé, mas nunca uma ofensa moral a Deus ou uma injustiça. A razão desta deficiência tem sua
causa no conceito que Aristóteles tinha de Deus, que embora reconhecendo a existência de
um Primeiro Motor Imóvel, julgava que este movia os demais seres de maneira inconsciente
ou apenas como causa final, como objeto que, contemplado pelos entes inferiores, os atrai
pelo simples fato de existir, e existir como tipo de ser perfeito. Portanto, Deus não conhece os
homens, não lhes impõe as leis morais que auxiliam na caminhada em direção ao Fim Último,
mas é o próprio homem quem, com seu raciocínio e experiência, tem de formular as normas
da sua conduta neste mundo, tem de criar sua própria ética.

O conceito de pecado, tal como o conhecemos hoje, foi elaborado pela teologia cristã a partir
do início da Idade Média. Agostinho de Hipona (354 – 430, bispo, escritor, teólogo, filósofo e
Doutor da Igreja), definia o pecado como o que é dito, feito ou desejado contra a lei eterna,
entendendo por lei eterna a vontade divina, cujo fim é conservar a ordem no mundo e fazer o
homem desejar, cada vez mais, o bem maior e cada vez menos o bem menor (Contra Faustum,
XXII, 27). Tomás de Aquino (1225 – 1274, padre dominicano, filósofo, teólogo e Doutor da
Igreja) certamente aceitava essa definição ao dizer que para o homem a lei eterna é dúplice:
Uma é próxima e homogênea, é a própria razão humana; a outra é a regra primeira, a lei
eterna que é quase a razão de Deus (Summa Theologiae, II, 1, q. 71, a. 6). Tomás de Aquino
insiste, de um lado, na voluntariedade (intencionalidade) do pecado, em virtude da qual se
poderia definir o pecado unicamente mediante a vontade, não fosse o fato de os atos externos
também pertencerem ao pecado e por isso deverem ser mencionados em sua definição
(Summa Theologiae, ad. 2). Por outro lado, insiste em dizer que todo pecado é, como tal, um
pecado contra Deus, embora os pecados contra Deus constituam, de outro ponto de vista,
uma categoria especial (Summa Theologiae, II, 2, q. 72).

Pode-se dizer que esse conceito de pecado não se alterou através dos tempos. Immanuel Kant
(1724 – 1804, filósofo) repete-o ao definir o pecado como a transgressão da lei moral vista
como mandamento divino (Religion, I, seç. IV; II, seç. 1, c; págs. 31, 68). O mesmo faz Soren
Kierkegaard (1813 – 1855, filósofo e teólogo dinamarquês), ao afirmar que o pecado é perante
Deus, e que consiste em buscar desesperadamente a identidade ou em fugir
desesperadamente à identidade, o que significa que consiste no desespero de não ter fé (Die
Krankbeit zum Tode, II, cap. 10, pág. 300). O que Kierkegaard acrescenta é o caráter
excepcional do pecado, que corresponde ao caráter excepcional da fé. O pecado não é de
todos os dias:

Ser pecador, no sentido mais rigoroso, está bem longe de ser meritório. No entanto, como se
pode achar uma consciência essencial do pecado (o que aliás é indispensável para o Cristianismo)
numa vida tão mergulhada na trivialidade, tão reduzida à imitação vulgar dos outros, que é
quase impossível dar-lhe nome, pois é desprovida demais de espírito para poder ser chamada de
pecado? (Die Krankbeit zum Tode, II, B, Acréscimo A; p. 328).

Ainda vemos, na área filosófica, uma conceituação a respeito do primeiro pecado da


humanidade cometido por Adão, também conhecido como “pecado original.” As discussões
filosófico-teológicas a respeito do pecado original geralmente tiveram como objeto a maneira
como esse pecado se transmitiu de Adão aos outros homens. Tomás de Aquino enumerava
duas hipóteses principais, aduzidas para a solução desse problema: a hipótese do
traducianismo, segundo a qual “a alma racional transmite-se com a semente, de tal maneira
que de uma alma infecta derivam almas infectas”, e a hipótese da hereditariedade, segundo a
qual “a culpa da alma do primeiro genitor transmite-se à prole, embora a alma não se
transmita do mesmo modo como os defeitos do corpo se transmitem de pai para filho.” Ambas
as hipóteses pareciam insustentáveis a Tomás de Aquino, e ele anunciava a sua, afirmando
que:

Todos os homens nascidos de Adão podem considerar-se um único homem, porquanto têm a
mesma natureza, recebida do primeiro genitor, da mesma maneira como nas cidades todos os
homens que pertencem à mesma comunidade se julgam um só corpo, e a comunidade inteira é
como um único homem (Summa Theologiae, 1, q. 81, a. 1).

Alguns séculos depois, em sua Teodiceia (1710), Gottfried Leibniz (1646 – 1716, filósofo
alemão) enumeraria as mesmas hipóteses (Théod., I, § 86), entre as quais oscilou sempre o
pensamento teológico.

Aliás, é só em Kant e em Kierkegaard que se encontra uma interpretação filosófica (e não


teológica) do pecado original. Kant observou que não se deve confundir a questão da origem
temporal de uma coisa com a questão de sua origem racional: o problema da origem temporal
deve ser resolvido pela doutrina bíblica do pecado original, mas o da origem racional do mal
deve ser solucionado pela doutrina do “mal radical”, segundo a qual a disposição inata do
homem para o mal deriva da natureza de suas máximas. E diz: “A proposição ‘o homem é mau’
significa apenas que o homem está ciente da lei moral, mas acolheu o princípio de afastar-se
ocasionalmente dessa lei. Dizer que ele é mau por natureza significa que isso vale para toda a
espécie humana, não no sentido de que essa qualidade possa ser deduzida do conceito de
espécie humana (do conceito de homem em geral) – porque então seria necessária –, mas no
sentido de que o homem, do modo como é conhecido por experiência, não pode ser julgado
de outra maneira ou no sentido de que se pode pressupor como objetivamente necessária a
tendência ao mal em qualquer homem, até no melhor” (Religion, I, 3; p. 18). Substancialmente
idêntica a esta é a interpretação do pecado original dada por Kierkegaard, que discerniu a
condição e a realidade psicológica dele na angústia:

A proibição de Deus angustia Adão porque desperta nele a possibilidade da liberdade. O que na
inocência era o nada da angústia passou então a fazer parte da inocência, sendo aí também um
nada, ou seja, a possibilidade angustiante de poder. Do que pode não tem a menor ideia; caso
contrário, pressupor-se-ia, como acontece habitualmente, aquilo que segue, que é a diferença
entre o bem e o mal. Em Adão só há a possibilidade de poder, como forma superior de ignorância,
como expressão superior de angústia, porque em sentido mais elevado esta possibilidade é e não
é, e Adão ama-a e foge dela (Der Begriff Angst, I, § 5; p. 54).

Também aqui, como se vê, não se trata da origem temporal, mas da origem racional do pecado
original, e aqui também essa origem é vista numa possibilidade, indeterminada ou
“indefinida”, como a chama Kierkegaard, que é também a possibilidade de agir contra a
proibição divina. Para Kierkegaard, assim como para Kant, o pecado original consistiria,
portanto, na perspectiva de uma possibilidade, que, como tal, pode implicar a infração à
norma moral ou à proibição divina.

Além disso, podemos citar a visão do filósofo britânico contemporâneo Simon Blackburn
(nascido em 1944), que diz que o conceito de pecado serve como exemplo no exame de até
onde se pode ir na coerção moral. O sentimento de culpa ligado à noção de pecado pode
tornar-se obsessivo. Dependendo da maneira como foram educadas, muitas pessoas acabam
sendo tomadas por uma culpa neurótica (ou podemos chamá-la de “consciência do pecado”).
Quanto a isso, cabem três atitudes: simplesmente ignorar as restrições impostas; aceitá-las e
procurar justificar as ações, ou reconhecer totalmente a culpa. Tal emoção surge quando a
pessoa se sente impossibilitada de defesa ante a revolta dos outros. A vergonha, por sua vez, é
similar à culpa, caracterizando-se pela sensação de desgaste frente aos outros, ainda que não
haja culpa.

Três diferenças são apontadas por Blackburn entre a culpa e a vergonha: primeiro, a culpa diz
respeito à atuação do agente, algo que ele fez ou deixou de fazer, enquanto a vergonha não se
aplica, necessariamente, a isso; segundo, a vergonha leva ao encobrimento, ao passo que a
culpa motiva a reparação do dano causado; por fim, a culpa está ligada à hostilidade potencial
que possa recair sobre o agente e a vergonha antecipa internamente as possíveis sanções que
os outros venham a impor. O caráter cultural da internalização da culpa permite aceitar
variações quanto ao sentimento de responsabilidade em jogo. Desse modo, alguém pode
sentir-se culpado pela devastação ambiental causada por sua geração, enquanto outros não.
Para evitar tais sentimentos desagradáveis, poder-se-ia imaginar uma socialização que
introduzisse a conduta moral pela imitação das ações sem apelar para a culpa ou vergonha.
Todavia, descartar essas emoções diminuiria as motivações para bem agir. Apesar da culpa e
da vergonha poderem transformar-se em obsessões neuróticas, elas possuem uma função
motivadora que coordena as ações deliberadas pelos agentes. Tradicionalmente, estes
sentimentos estão associados à civilidade e à boa ordem. Rejeitar totalmente a ética com base
nestas críticas aos sentimentos morais não é uma opção que leve a boas consequências.
Capítulo trê s
O conceito de pecado nas principais religiões mundiais

3.1. Islamismo

O islamismo é, hoje, uma das três principais religiões monoteístas do mundo, ao lado do
cristianismo e do judaísmo. Tem como origem as supostas revelações de Deus recebidas por
Maomé no monte Hira, nas proximidades da cidade de Meca, na Arábia Saudita. A religião
islâmica é baseada no Alcorão, um texto considerado por seus seguidores como a palavra
literal de Deus, e pelos ensinamentos e exemplos normativos de Maomé, considerado pelos
fiéis como o último profeta de Deus. Consideram Jesus Cristo como um profeta, inferior ao
próprio Maomé. Atualmente é a segunda maior religião em número de adeptos, atrás apenas
do cristianismo. Os fundamentalistas muçulmanos defendem a submissão da mulher, a
perseguição a cristãos e a morte de dissidentes em países islâmicos. É a mais anticristã de
todas as religiões, em todos os aspectos. Em muitos países islâmicos, é crime um muçulmano
se converter à fé cristã.

Para entender o lugar do pecado no islamismo deve partir-se de uma das ideias centrais na
antropologia do Islã. O Alcorão ensina que Deus criou o homem em estado de fitrah, num
estado de natureza, e a natureza primitiva do ser humano é essencialmente nobre, saudável e
inocente. Um desenvolvimento humano normal levou-o a promulgar as suas qualidades inatas,
como o desejo de justiça, a generosidade, a compaixão, o amor, a verdade, a sinceridade, a
coragem, a humildade, a paciência e a cortesia para com os outros.

Um pecado é, então, qualquer ação que fazemos contra nós mesmos, uma traição da nossa
natureza original. Então, ao invés de “pecados”, os muçulmanos preferem falar de
“transgressões.” O homem que rouba por ganância sabe, dentro de si mesmo, que tal ganância
o destrói, que gera o mal não só ao próximo, mas a si mesmo. Orgulho, vaidade, luxúria, ira,
gula e os demais pecados deixam a descoberto as carências do homem, o quão desviados
estão de si mesmos, como que desorientados, sem um objetivo a lhes preencher. O homem
que vive orientado para Deus, livra-se do pecado naturalmente, não por repressão, mas
porque nesta orientação para o divino se realiza como ser humano. É colocando em ação as
suas nobres qualidades que o homem evita cometer atos vis.

Ainda assim, existe a consciência de que o ser humano é uma criatura limitada, longe de ser
perfeita. O Hadith, coleção de leis, lendas e histórias sobre a vida do profeta Maomé, declara:
“Toda criatura de Deus comete erros.” O pecado é visto como parte da vida cotidiana, como
algo que deve ser tratado normalmente, e como parte do decreto de Deus, não gera grandes
sentimentos de culpa e atitudes trágicas. Quando um homem confessa que cometeu adultério,
a resposta imediata é: “Você pediu perdão a Deus?” No caso deste homem confessar que sim,
declara-se: “Então, cubra este pecado com o véu de Deus.” Isto é, sendo o pecado uma traição
a nós mesmos, é na intimidade da consciência que se encontra a sua resolução de uma forma
natural. Daí a importância de solicitar o perdão a Deus e um retorno a Deus ou
arrependimento, atitudes centrais para as práticas religiosas dos muçulmanos.

Os muçulmanos declaram que Maomé pedia o perdão a Deus uma centena de vezes por dia.
No entanto, ele estava perfeitamente consciente de que pertencia exclusivamente a Deus e
que o homem vive sujeito a forças além dele. Portanto, o pecado é considerado normal.
Maomé afirmou que aquele que se arrepende de seus pecados é como aquele que não pecou.
E ainda, que quando Deus sabe que o seu servo se arrepende daquilo que fez, ainda que não o
tenha dito, perdoa-o antes mesmo que ele se arrependa. E mais: Mesmo aquele que pecar
tanto que os seus pecados empilhados cheguem ao céu, Deus aceitará o seu arrependimento.

Um dos atributos ou nomes de Deus no Alcorão é “Indulgente” (al-Gafur). Abu Ayyub al-Ansa-
ri, um dos companheiros de Maomé e patrono da história muçulmana primitiva, quando
estava em seu leito de morte, recordou a seguinte tradição profética: Se a humanidade não
tivesse pecado, Deus a teria levado e trocado por pecadores, para que pudesse perdoá-los.

As ações consideradas dzunub (pecados ou transgressões) no Islã são basicamente as mesmas


que em outras religiões. Porém, há uma diferença fundamental em relação ao cristianismo: o
Islã rejeita a teoria do “pecado original” e, portanto, toda a concepção metafísica e historicista
ligadas a ele. No Alcorão, Deus diz que todos foram criados em um estado de bem, e que
perdoou a Adão e Eva. Ele nos diz que todos são responsáveis pelos seus próprios pecados e
ações, e ninguém é culpado pelo pecado do próximo, e que a salvação vem de Deus somente.
A ideia de que os seres humanos possuem o pecado de Adão é estranha para os muçulmanos,
que a consideram como um mito. O Islã também é contrário à ideia de que, através do
sacrifício de Jesus, a humanidade possa ser redimida.

3.2. Espiritismo

“Espiritismo” é uma expressão cunhada pelo pedagogo francês Hippolyte Léon Denizard Rivail,
cujo pseudônimo era Allan Kardec, em 1857, para definir especificamente o corpo de ideias
por ele reunidas e codificadas no “Livro dos Espíritos.” Diz respeito a uma doutrina que trata
da “natureza, origem e destino dos espíritos, bem como de suas relações com o mundo, bem
como de suas relações com o mundo corporal e as consequências morais que dela dimanam”,
nas palavras do próprio Kardec, em seu livro “O que é o espiritismo.” O espiritismo tem, como
doutrina central e base para a sua estruturação, a reencarnação, ensino tão antigo quanto a
humanidade, originário das religiões derivadas do hinduísmo, como o budismo e o jainismo.
Atualmente, é apresentada pelo espiritismo com uma roupagem cristã. No entanto, tal crença
não é admitida no pensamento bíblico e não há como introduzi-la na teologia cristã.

Pecado é qualquer carência de conformidade com, ou transgressão de qualquer lei de Deus,


dada como regra para a criatura racional

— Resposta à pergunta 24 (“O que é o pecado?”), Catecismo Maior de Westminster.

A declaração acima pertence a um dos símbolos de fé do protestantismo calvinista, e define,


de forma bastante clara, o conceito de pecado para o cristianismo. No entanto, os espíritas
que seguem os princípios deixados por Allan Kardec, consideram insuficiente e generalista
demais tal declaração — e por extensão, todos os demais credos evangélicos — na definição
do termo “pecado”, considerando, para tal situação, outros valores e definições.
Segundo os espíritas, a visão de “qualquer carência de conformidade” ficou sujeita a diversas
interpretações e intenções subjetivas, acabando por banalizar o conceito de pecado.

Ainda segundo eles, em sua acepção original, a expressão hebraica hatta’t, passando para o
grego hamartía e depois, para o latim, peccatu, não indicava pecado como ofensa a Deus, mas
sim qualquer tipo de erro, como errar o caminho para um endereço ou o lançamento de uma
flecha errar o alvo.

Carlos Torres Pastorino, escritor kardecista, orienta:

Literalmente, “hamartía” é “erro” no sentido de “errar o alvo” ou “desviar-se do caminho certo”,


isto é, perder-se (no deserto, no mato), enganando-se de rumo [...]; άµαρτιών (“hamartión”),
relacionado a “hamartía”, significa erro em geral, não um pecado na acepção vigente da palavra
(Sabedoria do Evangelho, 1964, Volume 5).

O termo “pecador” (hamartolós) possui um sentido próprio em grego: “desorientado”,


“errado”, isto é, “o que está fora do caminho certo”. Pastorino, a respeito da tradução dessa
palavra, cita:

Não dizemos “pecado”, nem “pecador”, pois estas palavras assumiram o significado específico de
“ofensa a Deus”, como se a divindade fosse uma criatura mutável que pudesse ofender-se,
zangar-se com os homens, e depois, perdoasse, quando estes se arrependessem (Sabedoria do
Evangelho, 1964. Volume 5).

A citação “remissão de pecados”, muito utilizada em várias traduções vigentes da Bíblia, vem da
expressão grega άφεσις τών άµαρτιών (aphesis tôn hamartíôn), mais propriamente traduzida por
“afastamento dos erros”, e mais coerente com a lógica cristã de autodescobrimento e reforma
íntima. A ideia de remir pecados traz um referencial externo, em que Deus escolhe me perdoar ou
não, enquanto que me afastar do erro é um referencial interno, em que, parando de cometer um
erro, reparando meus erros anteriores e perdoando os erros do próximo, me harmonizo com a Lei
Divina (Sabedoria do Evangelho, 1964. Volume 5).

Pastorino ilustra a ideia acima na interpretação da parábola da dracma perdida, como vê-se
em Lucas 15.8-10:

Ou qual é a mulher que, tendo dez dracmas, se perder uma dracma não acende a candieiro, varre
a casa e a procura diligentemente até achá-la? E achando-a convoca as amigas e vizinhas,
dizendo: alegrai-vos comigo porque achei a dracma que perdera. Assim, digo-vos, há alegria na
presença dos mensageiros de Deus por um errado que muda sua mente.

Na interpretação de Pastorino, lemos:

No meio do desconchavo da vida e de seus atropelos, perdemos de vista a moeda preciosa de


nossa ligação com o espírito. Quando percebemos – se percebemos – esse extravio, esforçamo-
nos em reavê-lo, dando os passos necessários, que foram bem delineados no texto:

1º – acendemos a candeia, gesto indispensável, para quebrar as trevas densas em que estamos
mergulhados, e poder vislumbrar o caminho a seguir,

2º – varremos a casa, isto é, procedemos à catarse de nossos veículos personalísticos, a fim de


possibilitarmos a procura interna da moeda extraviada sem que nenhum embaraçamento no-la
faça perder de vista, sem nenhum véu de poeira a possa isolar de nosso contato.
Os espíritos “Mensageiros de Deus” alegram-se quando um errado (que se extraviou do caminho
certo) muda seu modo de pensar (Sabedoria do Evangelho, 1964. Volume 5).

Allan Kardec pontua, na obra “O Céu e o Inferno” (1ª parte, capítulo VII, “Código penal da vida
futura”, item 16), os passos para um efetivo afastamento do erro:

— Arrependimento

— Expiação

— Reparação

Em suas palavras:

Arrependimento, expiação e reparação constituem, portanto, as três condições necessárias para


apagar os traços de uma falta e suas consequências. O arrependimento suaviza os travos da
expiação, abrindo pela esperança o caminho da reabilitação; só a reparação, contudo, pode
anular o efeito destruindo-lhe a causa. Do contrário, o perdão seria uma graça, não uma
anulação.

A respeito do pecado original, os cristãos afirmam que carrega-se, de geração para geração, o
pecado cometido por Adão e Eva. Segundo os espírirtas, “Adam” se refere aos seres humanos,
homens e mulheres (segundo o livro “A Gênese”, de Allan Kardec, capítulo XII, itens 16 a 26); e
“Hava”, em hebraico, significa “vida”, não um nome próprio feminino. Em “A Gênese”, Kardec
orienta:

A raça adâmica apresenta todos os caracteres de uma raça proscrita. Os Espíritos que a integram
foram exilados para a Terra, já povoada, mas de homens primitivos, imersos na ignorância, que
aqueles tiveram por missão fazer progredir, levando-lhes as luzes de uma inteligência
desenvolvida [...] A doutrina vulgar do pecado original implica, conseguintemente, a necessidade
de uma relação entre as almas do tempo do Cristo e as do tempo de Adão; implica, portanto, a
reencarnação. Dizei que todas essas almas faziam parte da colônia de Espíritos exilados na Terra
ao tempo de Adão e que se achavam manchadas dos vícios que lhes acarretaram ser excluídas de
um mundo melhor e tereis a única interpretação racional do pecado original, pecado peculiar a
cada indivíduo e não resultado da responsabilidade da falta de outrem a quem ele jamais
conheceu. Dizei que essas almas ou Espíritos renascem diversas vezes na Terra para a vida
corpórea, a fim de progredirem, depurando-se; que o Cristo veio esclarecer essas mesmas almas,
não só acerca de suas vidas passadas, como também com relação às suas vidas ulteriores e
então, mas só então, lhe dareis à missão um sentido real e sério, que a razão pode aceitar.

Em suma, os espíritas afirmam que incorremos em erro quando transgredimos nossa


consciência, local onde Deus nos equipou com Suas Leis, conforme orientado pelos Espíritos a
Allan Kardec à questão 621 de “O Livro dos Espíritos (questão 621). Em “O Evangelho Segundo
o Espiritismo” (Capítulo XII, item 10), um espírito protetor envia a seguinte mensagem:

Deus, em sua misericórdia infinita, vos pôs no fundo do coração uma sentinela vigilante, que se
chama consciência. Escutai-a, que somente bons conselhos ela vos dará. Às vezes, conseguis
entorpecê-la, opondo-lhe o espírito do mal. Ela, então, se cala. Mas, ficai certos de que a pobre
escorraçada se fará ouvir, logo que lhe deixardes aperceber-se da sombra do remorso. Ouvi-a,
interrogai-a e com frequência vos achareis consolados com o conselho que dela houverdes
recebido.
Ainda segundo os espíritas, Jesus foi enviado por Deus à Terra para, por seus exemplos e
ensinamentos, conforme as traduções mais adequadas do Evangelho, nos afastar do erro e,
assim, nos salvarmos, ou seja, evoluirmos.

3.3. Budismo e outras seitas orientais

As seitas orientais são facções das religiões universalistas do Extremo Oriente. As principais e
mais conhecidas seitas orientais, além do budismo, são o movimento Hare Krishna e a
Meditação Transcedental, de origem hindu, e a Igreja Seicho-No-Iê e a Igreja Messiânica
Mundial, de origem japonesa. Vejamos como o pecado é visto e conceituado por essas
religiões.

O respeito por todos os seres é a base central do budismo. Tal conceito é suficiente e, por isso,
não é necessária a existência de mandamentos. No que respeita à noção de karma, cada
homem colhe os frutos daquilo que semeou, e por essa razão é que nascem em determinado
local, inseridos em um dado âmbito cultural e se cruzam na vida com certas pessoas e são
confrontados com certas circunstâncias específicas, embora nem sempre consigam ver essa
relação de causalidade.

O budismo acredita que tudo no universo é interdependente. O caminho do homem pela vida
consiste em saber gerir as situações e pessoas que encontram de modo a melhor expressar a
sua individualidade e, ao mesmo tempo, viver em harmonia consigo mesmo, com todos os
seres e com a natureza.

A noção de pecado não existe no budismo. Existe uma noção de responsabilidade e de


interdependência. Todos os homens são responsáveis uns pelos outros e pelo planeta, mas
não culpados. Ou seja, em vez de permanecerem parados em uma atitude de resignação
passiva ou, pior ainda, de arrependimento e auto-flagelação, devem refletir sobre a sua quota
parte de responsabilidade sobre o mundo, e do qual são responsáveis, e reagir ativamente,
praticando a paz o melhor que conseguirem. Todos os seres merecem respeito, pois em todos
existe o potencial despertar para o “estado búdico.” Quando existe uma repleta noção da
responsabilidade do homem, ele obtém um imenso poder e consegue modificar praticamente
todas as circunstâncias à sua volta. É a velha questão de “para mudar o mundo, é necessário
que mudemos a nós mesmos.” Para os budistas, isso não é uma metáfora. É a verdade.

Como exemplo da ausência de pecado como ponto de culpa e arrependimento, os budistas


citam a sexualidade, questão particularmente interessante, pois lida com os desejos humanos
mais primários. O budismo o vê como simplesmente isso: mais um desejo.

O que o homem faz com esse desejo é o que faz toda a diferença. Ele pode incentivá-lo,
reprimi-lo ou ignorá-lo. A sexualidade, para o budismo, não é nem boa nem má, simplesmente
é um desejo. Na expressão dessa sexualidade, na sua condução, é que reside o ponto da
questão. Se o homem sente-se atraído sexualmente por alguém e manifesta esse desejo
conduzido por uma motivação egoísta de autossatisfação sem respeito ao outro, segundo a
“lei kármica”, o resultado só pode ser mau. Por outro lado, se a união sexual se baseia na
partilha e no afeto, no altruísmo, e se existe carinho sincero, o resultado dessa união só pode
ser bom. Se o corpo serve como forma de expressão, por que não usá-lo para expressar
emoções positivas? A escolha é sempre do ser em si. O homem pode seguir os instintos mais
primários e animalescos ou viver de modo sublime. Em todos os casos, o resultado é que isso
gera, sempre, uma situação para ele mesmo: positiva ou negativa. É isso o “karma.”
Deste conjunto de escolhas que é apresentado ao ser humano em todos os momentos de sua
vida, os budistas constroem um caminho. Às vezes, ele é enfeitado com flores perfumadas e
preenchido de lindas paisagens de luz, outras vezes o homem coloca espinhos e pedras em
curvas sombrias. A grande questão é ter sempre em mente que é ele que constrói a sua vida.

O grupo Hare Krishna também possui um conceito distorcido de salvação e pecado. Salvação,
para eles, significa “voltar para o Supremo” no fim do ciclo de reencarnações quando se
tornarão um com o Absoluto, personificado em Krishna. Acreditam na transmigração da alma
até para seres inferiores, e por isso não matam insetos, pois estariam correndo o risco de
matar um de seus antepassados. Consideram ofensa a doutrina cristã da salvação e remissão
dos pecados pela fé em Jesus. Não reconhecem a obra expiatória de Cristo em favor dos
pecadores, pois consideram que a única forma de obter o perdão por falhas e transgressões é
adotando as práticas determinadas pela seita, como o vegetarianismo, a recitação exaustiva
dos mantras e a abstinência sexual total, permitida apenas para reprodução. Assim, creem que
os “pecados” serão sublimados através da aplicação de seus próprios esforços e sacrifícios
pessoais.

Os adeptos da Meditação Transcedental também não creem no pecado tal qual o concebemos.
Segundo eles, as “falhas” que poderiam ser conceituados como pecado são evitáveis através
de uma união pela meditação com o Absoluto, empregando a recitação silenciosa de mantras
específicos. Creem na reencarnação e afirmam que os possíveis erros cometidos na vida
presente serão “resgatados” em vidas futuras.

Para os membros da Igreja Messsiânica Mundial, o conceito de Deus é algo extremamente


indefinido. Exaltam mais a pessoa de Meishu-Sama, fundador da seita, do que a Deus. Negam
a divindade, a morte e a ressurreição de Jesus. Afirmam não ser Jesus o Salvador e
consideram-no, apenas, alguém que alcançou a felicidade. Para eles, o salvador é Meishu-
Sama, e a salvação é obtida através do johrei, prática de imposição de mãos, que segundo eles,
transmite energia ou luz canalizada por meio de amuleto sagrado, um medalhão denominado
Ohikari, que deve ser usado e reverenciado pelos adeptos. Tais práticas são suficientes para
“redimir” todas as falhas ou “transgressões” que porventura tenham cometido.

A seita Seicho-No-Iê tem toda a sua doutrina baseda em três princípios: negar a existência da
matéria, do mal e do pecado. O conceito de Deus para seus adeptos também é muito confuso,
e na maioria das vezes, o consideram como uma energia vital e impessoal. Como negam a
existência da dor, logo Jesus também não teria sofrido, e negam a sua divindade e ressurreição
corporal. Ensinam que todos os homens são filhos de Deus, inclusive os incrédulos e
assassinos, e que o homem torna-se Deus quando se liberta da consciência do pecado. Para
eles, essa é a salvação.

Tanto o budismo quanto as demais seitas orientais negam a existência de Deus e a divindade
de Jesus. Creem em inúmeros deuses (panteísmo) e ensinam a deificação do homem. Além
disso, não há vínculo algum daquilo que poderia ser chamado de salvação com a salvação
bíblica. As religiões de origem hindu acreditam na doutrina da reencarnação, na transmigração
da alma, num longo círculo de renascimento e morte, até que o homem seja absorvido pela
divindade. Seus gurus afirmam que o problema do homem é a ignorância e que precisam
descobrir a divindade no seu próprio interior, para ser iluminado e feliz. Conclui-se que, se não
há Deus, não há pecado como transgressão a Ele, então o pecado não existe.

3.4. Mormonismo
Conhecidos pelo nome de Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, os mórmons
consideram-se como a única igreja verdadeira, a legítima representante dos apóstolos. Suas
crenças e práticas destoam de todos os ramos do cristianismo e das Escrituras Sagradas. James
E. Talmage, proeminente líder mórmon, afirma em seu livro “A Grande Apostasia”, o seguinte:
A Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias declara-se, pelo seu nome, distinta da
Igreja Primitiva estabelecida por Cristo e seus apóstolos (pág. 34). Na primeira página do “Livro
de Mórmon”, está a seguinte declaração: “Um Outro Testamento de Jesus Cristo.”

As próprias declarações oficiais declaram tratar-se de cristianismo estranho ao revelado no


Novo Testamento. A estrutura doutrinária do mormonismo está calcada em lendas e mitos
pagãos, e suas crenças e práticas identificam-no com o paganismo e o ocultismo.

A desconstrução da ideia cristã de pecado é clara nos escritos e declarações mórmons, através
de distorções doutrinárias que negam a divindade e o sacrifício vicário de Cristo.

O mormonismo ensina que Jesus não foi gerado pelo Espírito Santo. Brigham Young, sucessor
de Joseph Smith Jr., fundador da seita, pregou isso diversas vezes. Afirmava que Jesus foi
concebido por meio de relação sexual entre Deus e Maria. Afirmou Brigham Young:

Quando a virgem Maria concebeu o menino Jesus, o Pai o havia gerado em sua própria
semelhança. Não foi gerado pelo Espírito Santo. E quem é o pai?Ele é o primeiro da família
humana […] Jesus, nosso irmão mais velho, foi gerado na carne pelo mesmo indivíduo que estava
no Jardim do Éden, que é o nosso Pai no céu […] Lembrem, agora, desde este tempo em diante, e
para sempre, que Jesus Cristo não foi gerado pelo Espírito Santo (Discursos de Brigham Young,
vol. 1, págs. 50,51).

Os mórmons também pregam um Jesus casado e polígamo. O mormonismo ensina: Jesus era o
noivo no casamento em Caná da Galileia […] Antes da morte do Salvador, ele pode ver seus
próprios filhos naturais, como nós vemos os nossos (Discursos de Brigham Young, vol. 2, pág.
82).

Outro líder mórmon, Orson Pratt, afirmou:

Se todos os atos de Jesus fossem escritos, sem dúvida, saberíamos que estas amadas mulheres
(Maria, Marta e Maria Madalena) eram suas esposas […] Demonstramos claramente que o Filho
seguiu o Pai, e chegou a ser o grande noivo com quem as filhas dos reis e muitas mulheres
honradas tinham de ser casadas (The Seer, 159,172).

Também o termo “salvação” no mormonismo não tem o mesmo sentido que no cristianismo,
não possuindo o mesmo significado bíblico.

Quanto ao pecado em si, os mórmons não decidiram se aceitam a doutrina da pecaminosidade


do gênero humano. Há muita contradição na sua literatura e nos seus líderes. A Regra de Fé
Mórmon, capítulo um, item dois, afirma: Cremos que os homens serão punidos por seus
próprios pecados e não pela transgressão de Adão.

Lemos ainda o que escreveu o apóstolo mórmon John Widtsoe: No verdadeiro evangelho de
Jesus Cristo não há pecado original (Saraví, Fernando D. El mormonismo al descobierto, pág.
42).
Muitos mórmons não admitem que sejam pecadores, pensam que são deuses, como escreveu
o já citado John Widtsoe: Deus e o homem são da mesma raça, diferindo-se somente em seus
graus de progresso (Hunter, Milton R. The Gospel Through the Ages, pág. 107).

Os mórmons também buscam estabelecer diferença entre transgressão e pecado para


camuflar a verdade bíblica sobre o pecado:

É possível transgredir uma lei sem cometer pecado como no caso de Adão e Eva no Jardim do
Éden […] É correto e segundo o padrão bíblico falar da transgressão de Adão, mas não do pecado
de Adão (Mormon Doctrine, pág. 804).

Da mesma forma, já ensinaram sobre a existência de pecados que o sangue de Jesus não
poderia purificar, em que o pecador deveria ser degolado e seu sangue derramado sobre a sua
própria cabeça (Discursos de Brigham Young, vol. 3, pág. 247). Mudanças, contradições e erros
são marcas distintivas do mormonismo. A Bíblia ensina que o pecado é a transgressão da lei
(cf. 1João 3.4, ARA).

Vemos, assim, que a Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias não vê a obra redentora
de Cristo de forma cristã, bíblica e histórica. O mormonismo ensina que a redenção ocorreu
primordialmente no Jardim do Getsêmani, quando Jesus derramou seu sangue, em vez de ter
ocorrido na cruz. Considere as citações a seguir:

• O professor Robert J. Matthews da Brigham Young University, escreveu na página 282 de seu
livro, A Bible! A Bible! (Uma Bíblia! Uma Bíblia!): Foi no Getsêmani, nas encostas do Monte das
Oliveiras, que Jesus realizou sua perfeita obra redentora ao derramar seu sangue – mais ainda
do que na cruz.

• O apóstolo mórmon Bruce McConkie declarou:

Onde e sob quais circunstâncias se deu o sacrifício redentor do Filho de Deus? Foi na Cruz do
Calvário ou no Jardim do Getsêmani? É para a cruz de Cristo que a maioria dos cristãos olham
quando focam sua atenção na infinita e eterna redenção. E, certamente, o sacrifício do nosso
Senhor foi completado quando pelos homens Ele foi erguido; além disso, esta parte da vida e do
sofrimento de Jesus é mais dramática e, talvez, mais tocante à alma. Mas, na realidade, a dor e o
sofrimento, o triunfo e a glória da redenção ocorreram primordialmente no Getsêmani (Doctrinal
New Testament Commentary, vol. 1, pág. 774).

Não há evidência bíblica de que Jesus nos redimiu de nossos pecados no Jardim do Getsêmani.
No Jardim Ele sofreu intensamente em oração, porque não queria passar pelo sofrimento dos
açoites e da crucificação que estava por vir. A agonia no Jardim foi tão intensa que
aparentemente o fez suar sangue (Lucas 22.44). Contudo, as únicas passagens bíblicas que
falam sobre Cristo e sua redenção referem-se à cruz, não ao Jardim do Getsêmani.

Existem tantos erros com a teologia mórmon (pluralidade de deuses, mãe-deusa, homens que
se tornam deuses, cumprir os mandamentos para ser merecedor de perdão etc) que não há
surpresa em saber que o mormonismo também mantém uma distorção cerrada sobre o
pecado e o perdão.

3.5. Testemunhas de Jeová


A Sociedade Torre de Vigia é a organização das Testemunhas de Jeová e cujo movimento é
hostil a todos os ramos do cristianismo, incluindo os cristãos nominais. Suas crenças e práticas
são contrárias ao cristianismo bíblico, que atravessou os séculos, desde a era apóstolica. Para
simplificar suas crenças, basta colocar um “não” diante de tudo aquilo que os cristãos creem.

Torna-se necessário que vejamos alguns pontos da teologia das Testemunhas de Jeová que
afrontam a sã doutrina bíblica, para que possamos compreender o caminho distorcido para um
conceito do pecado por eles adotado.

Para a Sociedade Torre de Vigia, Jeová não é onipresente e nem onisciente, por isso não pode
prever o futuro. O Deus das Testemunhas de Jeová não sabe todas as coisas. Ensinam que
Jeová não sabia o resultado da prova de Abraão, em Gênesis 22.12 e 18.20,21. Os teólogos da
Torre de Vigia explicam:

Uma pessoa que tem um rádio pode ouvir as notícias mundiais. Mas o fato de que pode ouvir
certa estação não significa que realmente faça isto. Ela precisa primeiro ligar o rádio e daí
selecionar a estação. Da mesma forma, Jeová tem a capacidade de predizer eventos, mas a Bíblia
mostra que ele faz uso seletivo e com discrição dessa capacidade (Raciocínios à Base das
Escrituras, pág. 116).

Acrescentam que o verdadeiro Deus não é onipresente: O verdadeiro Deus não é onipresente,
porque se fala dele como tendo localização (Estudo Perspicaz das Escrituras, vol. 1, pág. 690).

A Torre de Vigia nega a doutrina bíblica da Trindade, afirma ora que somos triteístas, ora que
somos unicistas: A Trindade que consiste de três Pessoas, ou deuses, em um só (Conhecimento
Que Conduz à Vida Eterna, pág. 31, § 2). Segundo sua teologia, a Trindade é doutrina pagã,
desenvolvida por Constantino, imperador romano, no quarto século.

A organização apresenta-se como monoteísta, mas contradiz-se quando afirma ser Jesus
apenas um “deus” poderoso, e não o Deus Jeová, Todo-poderoso. Assim, ela admite seguir a
dois deuses, Jesus e Jeová. Seus teólogos comparam Jesus a Satanás, ensinam que Ele é o
mesmo Abadom, “Destruidor”, de Apocalipse 9.11, e, ainda, que só depois de seu batismo no
Jordão tornou-se Cristo:

Visto que na Bíblia chama humanos, anjos e até mesmo Satanás de “deuses” ou “poderosos”, o
superior Jesus no céu pode corretamente ser chamado de “deus” (Deve-se Crer na Trindade? Pág.
29).

“Mas não é Jesus chamado de deus na Bíblia?” poderá perguntar alguém. Isto é verdade.
Contudo, Satanás também é chamado de deus (2Coríntios 4.4) (Poderá Viver Para Sempre no
Paraíso na Terra? Pág. 40, § 16).

Comparar Jesus a Satanás é uma afronta ao cristianismo, e tal doutrina está próxima da crença
mórmon, quando afirma que Jesus é irmão de Satanás.

A Sociedade Torre de Vigia também nega a divindade e a personalidade do Espírito Santo.


Ensina ser o Espírito Santo a força ativa de Jeová, por isso, em sua literatura, grafa o nome em
minúsculas: “espírito santo.” A organização declara o seguinte: Quanto ao “Espírito Santo”, a
suposta terceira pessoa da Trindade, já vimos que não se trata de uma pessoa, mas da força
ativa de Deus (Poderá Viver Para Sempre no Paraíso na Terra? Pág. 40, § 17).
Também com respeito à salvação, as Testemunhas de Jeová cometem erros que
comprometem profundamente um conceito adequado de pecado. A Torre de Vigia não
considera seus adeptos filhos de Deus e nem Jesus como seu mediador. A salvação é um alvo
para ser cumprido (cf. Certificai-vos de Todas as Coisas e Apegai-vos ao que é Excelente, pág.
311).

Por isso, Jeová Deus, antes de adotá-los como seus filhos livres, mediante Jesus Cristo,
sujeitará todas estas criaturas aperfeiçoadas a uma prova cabal, para todo sempre (Vida
Eterna – Na Liberdade dos Filhos de Deus, pág. 398, § 36).

Os “cristãos ungidos”, na linguagem das Testemunhas de Jeová, são os 144 mil que, segundo a
organização, são os únicos com direito ao céu. A Torre de Vigia ensina, ainda, que as
Testemunhas de Jeová não pertencem a Cristo e que o único caminho para a salvação é a sua
organização religiosa. Os que pertencem a Cristo são os 144 mil discípulos fiéis escolhidos para
dominarem com ele no Reino (cf. Poderá Viver para Sempre no Paraíso na Terra? Pág. 172, §
20).

Não conclua que existem várias estradas, ou caminhos, que poderá utilizar para ganhar a vida no
novo sistema de Deus. Existe apenas uma. Foi apenas aquela única arca que sobreviveu ao
Dilúvio e não um sem número de embarcações. E haverá apenas uma única organização –
organização visível de Jeová Deus – que sobreviverá à “grande tribulação” que rapidamente se
aproxima […] Você precisa pertencer à organização de Jeová e fazer a vontade de Deus, a fim de
receber Sua bênção de vida eterna (Poderá Viver para Sempre no Paraíso na Terra? Pág. 255, §
14).

Já é possível perceber que todo o plano de salvação das Testemunhas de Jeová conduz o fiel a
uma série de preceitos e obrigações junto à organização, que se não cumpridas impedirão que
tal fiel “herde a terra.” Como Jesus não é Deus e o sacrifício na cruz não foi suficiente para a
remissão dos pecados – Jesus não é considerado mediador entre o homem e Deus – inútil
considerar que “pecado é transgressão” a Deus. Os “pecados” para a Sociedade Torre de Vigia
são aquelas ações e atitudes contra a organização, e somente após confissão junto aos
“anciãos” é que poderão ou não ser perdoados.

Capítulo quatro
O que aconteceu com o pecado? — O pecado e a sociedade atual

Em 1973, o psiquiatra Karl Menninger escreveu o livro Whatever Became of Sin? (O que
Aconteceu com o Pecado?), avaliando o processo de transformação e esvaziamento do
conceito de pecado na sociedade contemporânea. Ele escreveu: A psicologia substituiu o
pecado pelo sintoma; a sociologia passou a tratá-lo como irresponsabilidade coletiva; e o
direito, como crime.

Remando contra uma forte tendência da psicologia moderna, o Dr. Menninger não
considerava a culpa como um mal a ser combatido, mas como um alerta a ser considerado. Ele
“descobriu” que não podemos resolver o problema da culpa fingindo que não somos culpados.
Se não existe mais pecado, então não existe culpa diante de Deus e ninguém está certo ou
errado. É possível perceber hoje três tendências bem comuns diante do pecado. A primeira é a
de negá-lo, fugindo de suas consequências. A segunda é a de justificá-lo, mudando o agente
responsável da culpa de si mesmo para outros. Como disse John MacArthur, no livro
“Sociedade sem Pecado”:

Não importa qual seja o seu problema – se você é um assassino em série ou apenas alguém
lutando contra um desequilíbrio emocional – sempre existe a possibilidade de facilmente
encontrar alguém que lhe explique porque sua falha não é culpa sua, e o ensine a silenciar uma
consciência conturbada.

E a terceira tendência, e a pior delas, é a de transformar o pecado em virtude, fazendo dele


algo inofensivo, desejável e até mesmo necessário. Daí, o que antes era apenas tolerado, hoje
tem sido estimulado; o que antes era vergonhoso, hoje tem sido motivo de glamour. Isso tudo
é muito preocupante porque revela a decadência moral da sociedade em que vivemos, a
inversão de valores e a ausência de Deus. Não podemos esquecer que pecado é o que nos
separa e aliena de Deus. Quando pecamos, nos afastamos de Deus. A melhor maneira de lidar
com o pecado não é negá-lo, justificá-lo ou maquiá-lo, mas humildemente reconhecê-lo,
confessá-lo diante de Deus e receber o perdão.

Até o final do século 19, o curso mais importante na carreira de um estudante de ensino
superior era o curso de filosofia moral ou o que hoje chamamos de “ética.” O curso era
considerado a unidade principal do último ano e era geralmente ensinado pelo próprio reitor
da universidade.

Hoje em dia, a explosão notável do interesse pela ética sugere a certas pessoas que estamos
voltando àquela era moralmente robusta. Uma pesquisa realizada recentemente afirma que,
hoje, apenas na América do Norte são oferecidos mais de onze mil cursos em ética aplicada.
Esses cursos lidam com todos os tipos de problemas éticos. Problemas esses referentes ao
comércio, à política, à medicina, à ciência, à engenharia e ao trabalho social, os quais são
financiados por doações – algumas, surpreendentemente, generosas –, dezenas de revistas,
centenas de compêndios e milhares de especialistas. Nos anos 1990, tanto a MTV quanto o
The New York Times dedicaram-se ao tema do pecado, especialmente dos sete pecados
capitais.

No entanto, esse renascimento do interesse pela ética dificilmente é motivo para celebração.
Pois, por um lado, a moralidade é como a saúde – a preocupação com essa é, geralmente, sinal
de doença, não de vitalidade. Por outro lado, olhando este renascimento mais de perto, ele
não nos tranquiliza muito.

Primeiro, a moralidade é como a saúde – a preocupação com ela é, geralmente, sinal de


doença, não de vitalidade. Em primeiro lugar, parte desse interesse renovado é simplesmente
moda e, portanto, transitório. Conforme declara um comentarista de um jornal norte-
americano: Em nossa cultura dietética e de consciência débil, o “pecado leve” tem encontrado
lugar nas prateleiras ao lado de outros prazeres de baixa culpabilidade (Kristof D., Nicholas,
The New York Times, 27 de fevereiro de 2012). Ou, nas palavras da MTV, na programação de
1990: Um pouco de libertinagem, de orgulho, de preguiça e de glutonaria – com moderação –
são diversão, e é esse pouco que faz seu coração continuar batendo.
Em segundo lugar, o interesse renovado pela “ética preventiva” é consideravelmente maior
que o interesse pela ética de princípios. Ela preocupa-se mais em “não ser apanhado” (em
flagrante) ou processado ou exposto na imprensa do que fazer o que é certo. A afirmação
cínica do escritor irlandês Oscar Wilde, feita no final do século 19, é desconfortavelmente
apropriada para o ambiente das guerras culturais dos dias de hoje: Moralidade é simplesmente
a atitude adotada para com as pessoas que antipatizamos pessoalmente.

Em terceiro lugar, até mesmo onde se ensina uma boa ética, de maneira proveitosa, ela é,
usualmente, mais social que pessoal – o que importa para o politicamente correto é ter as
perspectivas corretas, não praticá-las. Os assuntos dizem respeito às corporações, às escolas,
aos tribunais, aos governos e ao tratamento do meio-ambiente, não à virtude e à
responsabilidade dos indivíduos que dão suporte a essas questões secundárias.

Em quarto lugar, e ainda pior, a ética corrente é, muitas vezes, ensinada com uma perspectiva
superficial da natureza humana e uma perspectiva ainda mais superficial do mal encontrado na
sociedade humana. Por exemplo, raramente tópicos como a hipocrisia, a autoilusão, o
egoísmo e a crueldade vêm à tona. E o lugar da inveja na política, da avareza na economia, da
lascívia na indústria da moda e da violência no comércio do entretenimento raramente são
investigados.

Em quinto lugar (e o pior de todos), a preocupação atual com a ética nos centros intelectuais
da elite possui um elemento de contradição lógica. O fruto dos últimos duzentos anos do
pensamento da elite tem sido a destruição da possibilidade de qualquer conhecimento moral
que permita a aspiração de uma formação moral. Por não haver mais conclusões morais,
conversas sagazes sobre ética é tudo o que nos resta. Tentar navegar na confusão moral é
como dirigir através da cidade do Rio de Janeiro com todos os sinais de trânsito desligados.

Essas deficiências na discussão corrente da ética são reforçadas por dois pontos cegos. Um
desses pontos é a ausência de uma análise séria do motivo de termos uma crise ética em
primeiro lugar. Direciona-se muita atenção aos sintomas, não às causas. Por exemplo, nosso
país possui uma perspectiva realista sobre o mal que se encontra incrustado em seus controles
e balanços governamentais, no entanto, há pouca percepção de que essa perspectiva é
proveniente da convicção da própria república. Contudo, o livro O Que Aconteceu Com o
Pecado?, do já citado Karl Menninger, não foi somente um título assustador. Ele argumenta
que a noção do mal havia deixado de ser “pecado”, definido teologicamente, para ser “crime”,
definido juridicamente, e se tornar “doença”, definido somente em categorias psicológicas. O
que era “depravado” cinquenta anos atrás é, hoje em dia, apenas “sentir-se importante e agir
como tal.”

A crise moral no Ocidente (problemas similares existem em diversas nações modernas) pode
ser mais bem sondada com a ajuda de três termos – “permissivo”, “transgressivo” e
“remissivo.” O primeiro termo foi capturado pelo escritor russo Dostoiévski, há mais de cem
anos, em seu famoso refrão de “Os irmãos Karamazov”: Se Deus estivesse morto e não
houvesse vida futura, nada mais seria imoral, e tudo seria permitido. O segundo termo,
“transgressivo”, achou sua expressão clássica no lema pintado na parede da universidade de
Sorbonne, em Paris, em 1968: É proibido proibir – mais tarde popularizado pelo jogador de
basquete profissional norte-americano Dennis Rodman, como: “Tão ruim quanto eu queira
ser”, e no Brasil com a música de Caetano Veloso também intitulada de “É proibido proibir.”
O terceiro termo, “remissivo”, surge, repetidamente, quando pessoas tentam descrever a crise
moral, ao buscar termos que capturem sua natureza esmagadora do tipo avalanche. A
sociedade, dizem eles, está sendo “corroída”, “desgastada”, “destruída” e assim por diante.

O outro ponto cego na discussão da ética corrente é a ignorância da tradição das “virtudes e
dos vícios” – a mais profunda e influente tradição ética do Ocidente. Como o historiador
irlandês William. E. H. Lecky escreveu: Os ensinamentos de Jesus são uma agência que todos
os homens devem, agora, admitir, por bem ou por mal, como a alavanca moral mais poderosa
que jamais se aplicou às questões humanas. Essa tradição possui uma visão elevada da
natureza humana e uma perspectiva profundamente realista da presença e do poder do mal.
Antes de perguntar: “Que tipo de atitude devo ter?”, pergunte: “Que tipo de pessoa preciso
ser?”. Dessa perspectiva, ser moral não é meramente aprender o que é certo. Até mesmo os
psicopatas sabem o que é certo e o que é errado, mas, por causa da falta básica de
solidariedade para com a humanidade, eles realmente não se importam em praticar o bem.
Nessa tradição, ser moral significa traduzir o conhecimento do certo e errado em caráter e
ação consistente. E, novamente, uma questão de se tornar uma boa pessoa, não somente
conhecer o que é bom.

Ironicamente, a perspectiva realista do mal humano, dessa tradição, é uma declaração de


esperança, não de desespero. O pecado não é somente a verdade bíblica mais verificável, mas
o precursor urgente para a necessidade e milagre da redenção. Aqueles que possuem uma
visão superficial do pecado, do mal e do vício, correm um sério perigo de sofrer de arrogância
intelectual.

Se não precisamos considerar seriamente a inclinação do homem para o mal, porque todo
esse ato de consertar a nós mesmos e à nossas sociedades, ao longo dos séculos, foi de tão
pouco proveito? Por que o século de maior conhecimento, mais esclarecido e mais avançado
de todos – o século 20 – é também o mais sombrio e o mais brutal? Será que não estamos, na
verdade, regredindo? Como um presidente que anunciou que sua administração seria “a mais
ética da história do Brasil”, pôde acabar por ser o mais corrupto e o mais corrompido? Para
pessoas mergulhadas na tradição de “virtudes e vícios”, tais questões não são fúteis nem
surpreendentes.

Cada geração tem sua própria classificação dos pecados, seja ela consciente seja inconsciente
– os ingleses da época vitoriana, por exemplo, viam a preguiça e a lascívia de forma
exacerbada, enquanto a inveja e a avareza eram subestimadas. Mas, uma das características
que define nossa geração é a minimização de qualquer noção de pecado.

Hoje em dia, o conceito de “virtude”, ou é mesquinhamente limitado (quase um sinônimo de


castidade) ou piedosamente oco, e o conceito de “vício” possui um ar obsoleto ou levemente
ridículo – se não fosse por um número crescente de pessoas sem capacidade de controlar seus
impulsos físicos e psicológicos. Como afirmou certo psicólogo: O florescer de grupos de
autoajuda não é somente uma evidência do afastamento da atual tendência da psicologia,
mas um testemunho não intencional à preeminência dos “vícios”, visto que qualquer vício
concebível tem suas respectivas reuniões secretas para frequentar.

Em contraste à tradição de virtudes e vícios, a cultura moderna nos entrega uma licença para
comer qualquer coisa que desejarmos, dormir com quem desejarmos, rebelar-se contra
qualquer coisa que nos frustre, atacar qualquer pessoa que nos tenha prejudicado e cruzar
qualquer limite legal ou ético que não seja passível de ser descoberto. No entanto, a resultante
perda de domínio próprio é a parte crítica da crise cultural do Ocidente. E, também, uma
lembrança urgente da importância de se ter um bom entendimento sobre as virtudes e os
vícios.

Além disso, a espiritualidade cristã pós-moderna vem se tornando cada dia mais light. Fala-se
muito pouco sobre o arrependimento e o pecado; prega-se quase nada sobre a cruz e a
ressurreição; as Escrituras vêm perdendo sua autoridade. Jesus vem sendo reduzido a um
grande líder, alguém que nos deixou um bom exemplo para seguir – alguma coisa no mesmo
nível de Buda, Ghandi, Dalai Lama ou outro grande líder da humanidade, mas nada além disso.
Fala-se muito de um Deus que é Pai e nos aceita, ama, acolhe e perdoa, o que é certo e bíblico;
mas corre-se o risco de, por trás dessa linguagem suave e atraente, embutir uma
espiritualidade que pensa ser possível conhecer a Deus-Pai sem a mediação de seu Filho Jesus
Cristo.

A primeira geração de cristãos pós-modernos já está entre nós. São cristãos que pouco ou
nada sabem da Palavra de Deus e demonstram pouco ou nenhum interesse em conhecê-la.
Cultivam uma espiritualidade verticalista, com nenhuma consciência missionária, social ou
política. Consideram tudo muito “normal” e não veem nenhuma relevância na cruz de Cristo.
Acham que a radicalidade da fé bíblica é uma forma de fanatismo religioso e não demonstram
nenhuma preocupação em lutar pelo que creem, se é que creem em alguma coisa pela qual
valha a pena lutar.

O pecado é a coisa mais amada e a mais odiada em todo mundo. O amor pelo pecado tem
arruinado multidões de homens e mulheres de espírito. Os deleites com a injustiça levam
muitos a rejeitarem a salvação e a experimentarem a condenação. Deus abomina o pecado
com uma santa indignação.

Uma opinião popular é que o crime e o pecado são termos sinônimos. Muitos pensam que o
pecador deve ser somente aquele que é fora da lei, procurado pela polícia. É bem verdade que
todos os tais são pecadores, porém, é igualmente verdade que todos os que estão fora das
prisões e penitenciárias são igualmente pecadores. Seu grau de devoção ao pecado pode
diferir, mas cada membro da raça humana é um servo do pecado.

E hoje, dentro da atual sociedade, podemos facilmente verificar através de uma cosmovisão,
que a maior, crise em questão na atualidade não é econômica, social ou política, mas é a crise
da moral. Não está fora das pessoas, está dentro delas. Não está baseada na falta de recursos,
mas na inconsistência de caráter. Não está entrincheirada pela inexistência de soluções, mas
pela falta de objetividade em relação ao propósito de Deus para a vida.

O homem não é meramente carnal. Apesar de habitar em um corpo físico, o homem é


essencialmente espiritual e por isto está tão relacionado com o mundo espiritual quanto com o
mundo físico. Não é suficiente conhecermos apenas as leis físicas que governam a natureza, se
não entendermos os princípios morais que estão sendo quebrados, em detrimento de práticas
pecaminosas facilmente identificadas e vivenciadas por uma sociedade altamente mergulhada
na permissividade, que é permitir, concordar e ter que aceitar determinadas práticas e ações
que sabemos que estão erradas, em contraste com as normas, com a legislação de Deus e
também dos bons costumes.

Percebemos que existe uma desordem muito grande fundamentada na permissividade. Já não
existe mais o conceito do pecado, as pessoas hoje não tem mais pecado, elas alegam ter uma
fraqueza em determinada área de sua vida, é comum ouvirmos esta expressão em reuniões de
aconselhamento.
Este tipo de crise causada pela pulverização da permissividade está na raiz dos principais males
confrontados pela sociedade. Infelizmente pouco se tem feito para cortar esta raiz maligna, na
verdade muitos tem nutrido sem saber que esta é a causa e não o efeito supérfluo dos mais
graves problemas que estão na pauta dos sociólogos, psicólogos e psicanalistas.

O respeito interpessoal, a cidadania, os governos e principalmente a família têm estado


radicalmente comprometidos pela crise moral que a fermentação do pecado está acarretando.

O psicanalista francês contemporâneo Charles Melman foi íntimo colaborador de Jacques


Lacan (1901-1981), o principal herdeiro de Sigmund Freud na França. Atento observador da
realidade contemporânea, Melman usa os conceitos da psicanálise para interpretar as
mudanças em curso na sociedade atual, como a dissolução do núcleo familiar:

Assistimos hoje a um acontecimento que talvez não tenha precedente na história, que é a
dissolução do grupo familiar. Pela primeira vez a instituição familiar está desaparecendo, e as
consequências são imprevisíveis. Impressiona-me que os sociólogos e antropólogos não se
interessem muito por este fenômeno.

Fico surpreso quando constato que, se há uma clientela interessada e engajada na psicanálise
hoje em dia, é a dos jovens dos 18 aos 30 anos. Eles não procuram a psicanálise pelo fato de
reprimirem seus desejos, mas porque não sabem o que desejam. Antes, a pessoa recorria a
psicanálise porque não ousava realizar seus desejos. Hoje, principalmente no caso dos jovens, é
por não saber o que desejar. Isso acontece porque nossos jovens estão sendo criados em
condições que promovem a busca rápida do prazer máximo, sem obrigações e sem culpa. O
problema é que essa forma de lidar com o desejo produz situações de dificuldade para os jovens.
Chamo este fenômeno de “nova economia psíquica.” Ele é fundado sobre o princípio da busca
imediata do prazer, sem freios nem restrições. Esses momentos de prazer, que proporcionam
uma satisfação profunda, são vividos, mas não organizam a existência nem o futuro. Ou seja, a
existência é feita de uma sucessão de momentos sem nenhuma projeção no futuro, de momentos
que podem desaparecer porque não terão continuidade (A Prática Psicanalítica Hoje, 2008).

O mundo virtual proporcionado pela Internet faz sucesso por se tratar de um mundo lúdico. É
um mundo coerente com a maneira de viver da maioria das pessoas, não exige engajamento
nem compromisso.

Ali qualquer um pode viver uma série de vidas sucessivas sem nenhum compromisso
definitivo. As pessoas querem se distanciar da realidade, não porque ela seja assustadora ou
sem graça, mas porque ela implica sempre um limite.

Além disso, a realidade requer uma identidade, um compromisso mais ou menos claro na vida,
ao passo que esses exercícios virtuais não pressupõem nenhuma identidade, nenhuma
perspectiva e ainda derrubam todos os limites, incluindo os da moral e do pudor.

Desta corrupção universal nenhum ser humano está isento, pois não há homem que não
peque (cf. 2Crônicas 6.36). Todos aqueles a quem o Espírito de Deus traz ao conhecimento de
si mesmo, confessam: Porque todos tropeçamos em muitas coisas (Tiago 3.2), e, em razão
disso, oram: Perdoa-nos os nossos pecados (Lucas 11.4). Se outros não confessam seus
pecados e nem imploram pelo perdão divino, isto se deve à cegueira e à dureza de seus
corações.
Todo o que olha para o estado da sociedade ao seu redor, principalmente nos dias atuais, irá
encontrar provas da iniquidade humana. Crimes multiplicam-se por toda a parte e a terra anda
cheia de violência, tal como sucedia na antiguidade. As leis restringem os crimes e a violência
dos homens, mas a própria necessidade de leis mostra a maldade que caracteriza a raça
humana. Guerras e opressões compõem, em grande medida, a história da nossa raça;
inúmeras obras de impiedade, como jamais encontraram lugar nas páginas da história, estão
registradas no livro de memórias do Senhor, e serão trazidas a lume no dia em que os homens
haverão de ser julgados segundo as obras praticadas por intermédio dos seus corpos!

Capítulo cinco
A origem do pecado

O problema do mal que existe no mundo sempre foi considerado um dos mais profundos
problemas da filosofia e da teologia. É um problema que se impõe naturalmente à atenção do
homem, visto que o poder do mal é forte e universal, é uma doença sempre presente na vida,
em todas as manifestações desta, e é matéria da experiência diária na vida de todos os
homens. Os filósofos foram constrangidos a encarar o problema e a procurar uma resposta
quanto à origem do mal, e particularmente do mal moral, que há no mundo. A alguns, pareceu
uma parte de tal modo integrante da vida, que buscaram a solução na constituição natural das
coisas. Outros, porém, estão convictos de que o mal teve uma origem voluntária, isto é, que se
originou na livre escolha do homem, quer na existência atual, quer numa existência anterior.
Estes acham-se bem mais perto da verdade revelada na Palavra de Deus.

Conceitos históricos a respeito da origem do pecado

Os mais antigos “pais da igreja” não falam muito definidamente da origem do pecado,
conquanto a ideia de que se originou na voluntária transgressão e queda de Adão no paraíso já
se achasse nos escritos de Irineu. Esta se tornou logo a ideia dominante na igreja,
especialmente em oposição ao gnosticismo, que considerava o mal inerente à matéria e, como
tal, produto do “demiurgo” (em seitas cristãs de inspiração platônica e no gnosticismo,
“demiurgo” é o ser intermediário de Deus na criação do mundo, responsável pelo mal que não
poderia ser atribuído ao Criador supremo). O contato da alma humana com a matéria
imediatamente a tornou pecaminosa. Essa teoria naturalmente priva o pecado do seu caráter
voluntário e ético. Orígenes procurou manter isso com a sua teoria do preexistencialismo.
Segundo ele, as almas dos homens pecaram voluntariamente numa existência anterior e,
portanto, entraram no mundo numa condição pecaminosa. Esta ideia platônica estava tão
sobrecarregada de dificuldades que não pôde encontrar aceitação geral. Contudo, durante os
séculos dezoito e dezenove foi defendida por muitos. Em geral, os chamados “pais” da igreja
grega, do terceiro e do quarto séculos, mostravam certa inclinação para reduzir a ligação entre
o pecado de Adão e o dos seus descendentes, ao passo que os “pais” da igreja latina
ensinavam, cada vez com maior clareza, que a atual condição pecaminosa do homem encontra
a sua explicação na primeira transgressão de Adão no paraíso. Os ensinos da igreja oriental
culminaram finalmente no pelagianismo, que negava a existência de alguma relação vital entre
ambos, enquanto os da igreja ocidental chegaram ao seu ponto culminante no agostinianismo,
que acentuava o fato de que somos culpados e corruptos em Adão. O semipelagianismo
admitia a conexão adâmica, mas sustentava que isso explica apenas a corrupção do pecado,
não a culpa. Durante a Idade Média, geralmente reconhecia-se essa conexão. Às vezes era
interpretada à maneira agostiniana, mas com mais frequência, à maneira semipelagiana. Os
reformadores compartilhavam os conceitos de Agostinho, e os socinianos (a doutrina sociniana
é antitrinitária e considera que em Deus há uma única pessoa e que Jesus é um homem, além
de rejeitarem o pecado original) os de Pelágio, enquanto que os arminianos moviam-se em
direção ao semipelagianismo. Sob a influência do racionalismo e da filosofia evolucionista, a
doutrina da queda do homem e de seus efeitos fatais sobre a raça humana aos poucos foi
descartada. A ideia do pecado foi substituída pela do mal, e este mal era explicado de várias
maneiras. Kant o considerava como uma coisa pertencente à esfera superracional, que ele
confessava não ter condições de explicar. Para Leibnitz, devia-se às necessárias limitações do
universo. Outros filósofos viam sua origem na natureza sentimental do homem, e na
ignorância humana, ao passo que o evolucionista o atribui à oposição das propensões
inferiores à consciência moral em seu desenvolvimento gradativo.

O teólogo Karl Barth fala da origem do pecado como o mistério da predestinação. O pecado
originou-se na Queda, e Adão foi, de fato, o primeiro pecador, mas a sua desobediência não
pode ser considerada a causa do pecado do mundo. De algum modo, o pecado do homem está
ligado à sua condição de criatura. A narrativa do paraíso apenas transmite ao homem a
prazerosa informação de que ele não tem por que ser necessariamente um pecador.

Dados bíblicos a respeito da origem do pecado

Nas Escrituras, o mal moral existente no mundo transparece claramente como pecado, isto é,
como transgressão da lei de Deus. Nela o homem sempre aparece como transgressor por
natureza, e surge naturalmente a questão: “Como adquiriu ele essa natureza? O que revela a
Bíblia sobre esse ponto?”

1. Não se pode considerar Deus como o seu autor. O decreto eterno de Deus evidentemente
deu a certeza da entrada do pecado no mundo, mas não se pode interpretar isso de modo que
faça de Deus a causa do pecado, no sentido de ser Ele o seu autor responsável. Esta ideia é
claramente excluída pelas Escrituras. Longe de Deus a impiedade, e do Todo-Poderoso a
perversidade (Jó 34.10). Ele é o santo Deus (cf. Isaías 6.3) e absolutamente não há falta de
retidão nele (cf. Deuteronômio 32.4; Salmo 92.16). Deus não pode ser tentado pelo mal e a
ninguém tenta (Tiago 1.13). Quando Deus criou o homem, criou-o bom e à Sua imagem. Ele
odeia o pecado (cf. Dt 25.16; SI 5.4; 11.5; Zc 8.17; Lc 16.15), e em Cristo fez provisão para
libertar do pecado o homem. À luz disso tudo, seria blasfêmia falar de Deus como o autor do
pecado. E por essa razão, todos os conceitos deterministas que representam o pecado como
uma necessidade inerente à própria natureza das coisas devem ser rejeitados. Por implicação,
eles fazem de Deus o autor do pecado e são contrários, não somente às Escrituras, mas
também à voz da consciência, que atesta a responsabilidade do homem.

2. O pecado originou-se no mundo angélico. A Bíblia nos ensina que, na tentativa de investigar
a origem do pecado, devemos retornar à queda do homem, na descrição encontrada em
Gênesis 3 e fixar a atenção em algo ocorrido no mundo angélico. Deus criou um grande
número de anjos, e estes eram todos bons quando saíram das mãos do seu Criador (Gênesis
1.31). Mas ocorreu uma queda entre os anjos, queda na qual legiões de anjos se apartaram de
Deus. A ocasião exata dessa queda não é indicada, mas em João 8.44, Jesus fala do diabo como
assassino desde o princípio (kaf arches), e João afirma, em 1João 3.8, que o diabo peca desde o
princípio. A opinião predominante é a de que a expressão grega kaf arches significa desde o
começo da história do homem. Muito pouco se diz sobre o pecado que ocasionou a queda dos
anjos. Da exortação de Paulo a Timóteo, a que nenhum neófito fosse designado bispo, para
que, ensoberbecendo-se, não caia na condenação do diabo (1Timóteo 3.6), podemos concluir
que, com toda a probabilidade, foi o pecado do orgulho, de desejar ser como Deus em poder e
autoridade. E esta ideia parece achar corroboração em Judas 6, onde é dito que os que caíram
não guardaram o seu principado, mas deixaram a sua própria habitação. Não estavam
contentes com a sua parte, com o governo e poder que lhes fora confiado. Se o desejo de
serem semelhantes a Deus foi a tentação peculiar que sofreram, isso explica porque tentaram
o homem nesse ponto em particular.

3. A origem do pecado na raça humana. Com respeito à origem do pecado na história da


humanidade, a Bíblia ensina que ele teve início com a transgressão de Adão no paraíso e,
portanto, com um ato perfeitamente voluntário da parte do homem. O tentador veio do
mundo espiritual com a sugestão de que o homem, colocando-se em oposição a Deus, poderia
tornar-se semelhante a Ele. Adão rendeu-se à tentação e cometeu o primeiro pecado,
comendo do fruto proibido. Mas não foi apenas isso, pois com esse primeiro pecado, Adão
passou a ser escravo do pecado. Esse pecado trouxe consigo corrupção permanente,
corrupção que, dada a solidariedade da raça humana, teria efeito, não somente sobre Adão,
mas também sobre todos os seus descendentes. Como resultado da Queda, o pai da raça só
pôde transmitir uma natureza decaída aos descendentes. Dessa fonte não santa, o pecado flui
numa corrente impura, passando para todas as gerações de homens, corrompendo tudo e
todos com que entra em contato. É exatamente esse estado de coisas que torna tão pertinente
a pergunta de Jó: Quem do imundo tirará o puro? Ninguém! (Jó 14.4). Mas ainda isso não é
tudo. Adão pecou, não somente como o pai da raça humana, mas também como chefe
representativo de todos os seus descendentes; e, portanto, a culpa do seu pecado é posta na
conta deles, pelo que todos são passíveis de punição e morte. É primariamente nesse sentido
que o pecado de Adão é o pecado de todos. É o que Paulo ensina em Romanos 5.12: Pelo que,
como por um homem entrou o pecado no mundo, e pelo pecado, a morte, assim também a
morte passou a todos os homens, por isso que todos pecaram. As últimas palavras só podem
significar que pecaram em Adão, e isso de modo que se tornaram sujeitos ao castigo e à
morte. Não se trata do pecado considerado meramente como corrupção, mas como culpa que
leva consigo o castigo. Deus vincula a todos os homens a condição de pecadores culpados em
Adão, exatamente como vincula a todos os cristãos a condição de justos em Jesus Cristo. É o
que Paulo quer dizer, quando afirma: Pois assim como por uma só ofensa veio o juízo sobre
todos os homens para condenação, assim também por um só ato de justiça veio a graça sobre
todos os homens para justificação de vida. Porque, como, pela desobediência de um só
homem, muitos foram feitos pecadores, assim, pela obediência de um, muitos serão feitos
justos (Romanos 5.18,19).

A natureza do primeiro pecado ou da queda do homem.

1. Seu caráter formal. Pode-se dizer que, numa perspectiva puramente formal, o primeiro
pecado do homem consistiu em comer ele da árvore do conhecimento do bem e do mal. Não
sabemos que espécie de árvore era. Poderia ser uma tamareira ou uma figueira ou qualquer
outra árvore frutífera. Nada havia de ofensivo no fruto da árvore como tal. Comê-lo não era
pecaminoso por si mesmo, pois não era uma transgressão da lei moral. Quer dizer que não
seria pecaminoso, se Deus não tivesse dito: “Não comereis dele.” Não há opinião unânime
quanto ao motivo pelo qual a árvore foi denominada “do conhecimento do bem e do mal.”
Uma opinião das mais comuns é que a árvore foi chamada assim porque a ingestão do seu
fruto infundiria conhecimento prático do bem e do mal; mas é difícil sustentar isso face à
exposição bíblica segundo a qual, comendo-o, o homem passaria a ser como Deus, no
conhecimento do bem e do mal, pois Deus não comete pecado e, portanto, não tem
conhecimento prático dele. É muito mais provável que a árvore foi denominada desse modo
porque fora destinada a revelar: a) se o estado futuro do homem seria bom ou mau; e b) se o
homem deixaria que Deus lhe determinasse o que era bom ou mau, ou se encarregaria de
determiná-lo por si e para si. Mas, seja qual for a explicação que se dê ao nome, a ordem dada
por Deus para não comer do fruto da árvore serviu simplesmente ao propósito de pôr à prova
a obediência do homem. Foi um teste de pura obediência, desde que Deus, de modo nenhum,
procurou justificar ou explicar a proibição. Adão tinha que mostrar sua disposição para
submeter a sua vontade à vontade do seu Deus com obediência implícita.

2. Seu caráter essencial e material. O primeiro pecado do homem foi um pecado típico, isto é,
um pecado no qual a sua essência real se revela claramente. A essência deste pecado está no
fato de que Adão se colocou em oposição a Deus, recusou-se a sujeitar a sua vontade à
vontade de Deus, de modo que Deus determinasse o curso da sua vida; e tentou ativamente
retirar o controle das mãos de Deus e determinar, ele próprio, o futuro. O homem, que não
tinha absolutamente nenhum direito a alegar para Deus, e que só poderia estabelecer algum
direito pelo cumprimento da condição da aliança das obras, desligou-se de Deus e agiu como
se possuísse certos direitos contra Deus. A ideia de que o mandado de Deus era, de fato, uma
infração dos direitos do homem, parece que já estava na mente de Eva quando, em resposta à
pergunta de Satanás, acrescentou as palavras: Nem nele tocareis (Gênesis 3.3).
Evidentemente, ela quis salientar o fato de que a ordem não fora razoável. Partindo da
pressuposição de que tinha certos direitos contra Deus, o homem promulgou o novo centro de
operações, que viu nele próprio, de agir contra o seu Criador. Isto explica o seu desejo de ser
como Deus e a sua dúvida quanto às boas intenções de Deus ao dar-lhe a ordem.
Naturalmente, é possível distinguir diferentes elementos do seu primeiro pecado. No intelecto
revelou-se como incredulidade e orgulho; na vontade, como o desejo de ser como Deus; e nos
sentimentos, como uma ímpia satisfação ao comer do fruto proibido.

O primeiro pecado ou a queda como ocasionada pela tentação

1. Os procedimentos do tentador. A queda do homem foi ocasionada pela tentação da


serpente, que semeou na mente do homem as sementes da desconfiança e da descrença.
Embora, indubitavelmente, a intenção do tentador fosse levar Adão, o chefe da aliança, a cair,
não obstante dirigiu-se a Eva, provavelmente porque: a) não exercia a chefia na aliança e,
portanto, não teria o mesmo senso de responsabilidade; b) não recebeu diretamente a ordem
de Deus, mas apenas indiretamente e, por conseguinte, seria mais suscetível de ceder à
argumentação e duvidar; e c) seria, sem dúvida, o instrumento mais eficiente para alcançar o
coração de Adão. O curso seguido pelo tentador é bem claro. Em primeiro lugar, ele semeia as
sementes da dúvida pondo em questão as boas intenções de Deus e insinuando que Sua
ordem era realmente uma violação da liberdade e dos direitos do homem. Quando nota, pela
reação de Eva, que a semente tinha criado raiz, acrescenta as sementes da descrença e do
orgulho, negando que a transgressão resultaria na morte e dando a entender claramente que
a ordem divina fora motivada pelo objetivo egoísta de manter o homem em sujeição. Ele
afirma que, ao comer da árvore, o homem passaria a ser como Deus. As elevadas expectativas
assim geradas induziram Eva a observar com atenção a árvore, e quanto mais a olhava, melhor
lhe parecia o fruto. Finalmente, o desejo lhe moveu a mão, e ela comeu do fruto e também o
deu ao marido, e ele comeu.
2. Interpretação da tentação. Frequentes tentativas têm sido feitas, e continuam sendo feitas,
para explicar a Queda, negando-lhe o caráter histórico. Alguns acham que toda a narrativa de
Gênesis 3 é uma alegoria que representa figuradamente a autodecadência do homem e sua
mudança gradativa. A narrativa encontrada em Gênesis ensina-nos meramente que, embora o
homem seja atualmente incapaz de realizar algum bem e esteja sujeito à lei da morte, não há
porque ser necessariamente assim. É possível ao homem livrar-se do pecado e da morte por
uma vida de comunhão com Deus. Tal é a vida retratada para nós na narrativa sobre o paraíso,
e ela prefigura a vida que nos é assegurada naquele de quem Adão foi apenas um tipo, a saber,
Cristo. Mas não é a classe de vida que o homem vive agora, ou que sempre viveu, desde o
início da história. O paraíso atual não é uma certa localidade que podemos assinalar, mas
existe onde Deus é Senhor e o homem e as demais criaturas lhe são sujeitos voluntariamente.
O paraíso do passado está além dos limites da história humana, diz Karl Barth:

Quando a história do homem começou; quando o tempo do homem teve seu começo; quando o
tempo e a história começaram onde o homem tem a primeira e a última palavra, o paraíso
desapareceu (Esboço de Uma Dogmática, 2006).

Outros, que não negam o caráter histórico da narrativa de Gênesis, afirmam que pelo menos a
serpente não deve ser considerada como um animal literal, mas apenas como um nome ou um
símbolo da cobiça, do desejo sexual, do raciocínio pecaminoso, ou de Satanás. Outros, ainda,
asseveram que, para dizer o mínimo, o falar da serpente deve ser entendido figuradamente.
Mas todas estas interpretações são insustentáveis à luz da Escritura. As passagens que
precedem e que se seguem a Gênesis 3.1-7, manifestam evidente propósito de constituir uma
pura e simples narrativa histórica. Pode-se provar que assim foram entendidas pelos escritores
bíblicos, mediante muitas referências, como por exemplo Jó 31.33; Eclesiastes 7.29; Isaías
43.27; Oseias 6.7; Romanos 5.12,18,19; 1Coríntios 5.21; 2Coríntios 11.3; 1Timóteo 2.14, e,
portanto, não temos o direito de afirmar que os referidos versículos, que constituem parte
integrante da narrativa, devem ser interpretados figuradamente. Além disso, certamente a
serpente é considerada como um animal em Gênesis 3.1, e não daria bom sentido substituir
“serpente” por “Satanás.” O castigo de que fala Gênesis 3.14,15, pressupõe uma serpente
literal, e Paulo não a entende de outro modo, em 2Coríntios 11.3. E, apesar de poder-se
entender num sentido figurado a serpente falar por meio de gestos astutos, não parece
possível imaginá-la mantendo, dessa maneira, a conversação registrada em Gênesis 3. O
cenário todo, a fala da serpente inclusive, sem dúvida acha sua explicação na operação de
algum poder sobrenatural, não mencionado em Gênesis 3. A Bíblia dá a entender claramente
que a serpente foi apenas um instrumento de Satanás, e que Satanás foi o real tentador, que
agiu na serpente e por meio dela, como posteriormente agiu em homens e em porcos (João
8.44; Romanos 16.20; 2Coríntios 11.3; Apocalipse 12.9). A serpente foi um instrumento
adequado para Satanás, pois ele é a personificação do pecado, e a serpente simboliza o
pecado em sua natureza astuta e enganosa, e em sua picada venenosa, com a qual mata o
homem.

3. A queda pela tentação e a salvação do homem. Tem-se sugerido que o fato de que a queda
do homem foi ocasionada pela tentação proveniente de fora, pode ser uma das razões pelas
quais o homem é passível de ser salvo, diferentemente dos anjos, que não estiveram sujeitos a
uma tentação externa, mas caíram pelas incitações da sua própria natureza interior. Nada de
certo se pode dizer sobre este ponto, porém. Mas, seja qual for o significado da tentação a
este respeito, certamente não será suficiente para explicar como um ser santo como Adão
pode cair em pecado. É impossível dizer como a tentação pode encontrar um ponto de contato
numa pessoa santa. E mais difícil de explicar ainda é a origem do pecado no mundo angélico.
Os resultados do primeiro pecado

A primeira transgressão do homem teve os seguintes resultados:

1. O concomitante imediato do primeiro pecado e, portanto, dificilmente um resultado dele no


sentido estrito da palavra, foi a total degradação moral da natureza humana. O contágio do
seu pecado espalhou-se imediatamente pelo homem todo, não ficando sem ser tocada
nenhuma parte da sua natureza, mas contaminando todos os poderes e faculdades do corpo e
da alma. Esta completa corrupção do homem é ensinada claramente nas Escrituras (cf. Gênesis
6.5; Salmos 14.3; Romanos 7.18). A degradação de que se trata aqui não significa que a
natureza humana ficou logo tão completamente depravada como teria a possibilidade de vir a
ser. Na capacidade volitiva, essa degradação manifestou-se como incapacidade espiritual.

2. Imediatamente relacionada com a matéria do item anterior, deu-se a perda da comunhão


com Deus mediante o Espírito Santo. Esta é simplesmente o reverso da completa corrupção
mencionada no parágrafo anterior. Ambos podem ser combinados numa única declaração, de
que o homem perdeu a imagem de Deus no sentido de retidão original. Ele rompeu com a
verdadeira fonte de vida e bem-aventurança, e o resultado foi uma condição de morte
espiritual (cf. Efésios 2.1,5,12; 4.18).

3. Esta mudança da condição real do homem refletiu-se também em sua consciência. Houve,
primeiramente, uma consciência da corrupção, revelando-se no sentido de vergonha, e no
esforço que os nossos primeiros pais fizeram para cobrir a sua nudez. E depois houve uma
consciência de culpa, que achou expressão em uma consciência acusadora e no temor de Deus
que isso inspirou.

4. Não somente a morte espiritual, mas também a morte física, resultou do primeiro pecado
do homem. De um estado de imortalidade ele desceu a um estado de mortalidade. Havendo
pecado, ele foi condenado a retornar ao pó do qual fora tomado (cf. Gênesis 3.19). Diz-nos
Paulo que por um homem a morte entrou no mundo e passou a todos os homens (cf. Romanos
5.12), e que o salário do pecado é a morte (cf. Romanos 6.23).

5. Esta mudança redundou também em uma necessária mudança de residência. O homem foi
expulso do paraíso, porque este representava o lugar da comunhão com Deus, e era um
símbolo da vida mais completa e de uma bem-aventurança maior reservadas para ele, se
continuasse firme. Foi-lhe vedada a árvore da vida, porque esta era o símbolo da vida
prometida na aliança das obras.

E assim, podemos verificar a veracidade e a realidade da frase encontrada na literatura


judaica, que afirma: Um pecado tem sempre como consequência outro pecado (Rabi Simon Ben
Azai, Pirkei Avot).

Capítulo seis
Os “sete pecados capitais”
Restaurantes apresentam seu prato do dia. Programas de entrevistas têm seu tópico do dia. E
os jornais sempre destacam uma notícia degradante que passa a ser o seu “pecado mortal do
dia.” Tais notícias vivem mudando de foco... de babás que roubam os patrões à legalização da
maconha, seguidos pela corrupção de autoridades. E, em cada caso, o que era considerado
formalmente um pecado leve, repentinamente chega a ser uma ofensa capital, que volta,
rapidamente, a ser algo que nem mesmo causa espanto.

Essa perspectiva superficial e atenção momentânea estão há anos-luz da tradição clássica das
virtudes e dos vícios. A simples ideia de que as virtudes são “fundamentais” e os vícios
“mortais”, “capitais” ou “cardinais” expressa a convicção de que essas virtudes e esses vícios
específicos são a “cabeça” (caput em latim), a “fonte” ou a “raiz” de todas as formas de
bondade e maldade humanas.

A origem da tradição da virtude e do vício vem de duas fontes principais: os filósofos gregos e
romanos e o Antigo e o Novo Testamentos. Após a convergência dessas duas correntes de
entendimento moral, a concordância geral era de que as virtudes e os vícios seriam os traços
característicos mais importantes, ou as tendências humanas universais, dos quais resultam
toda bondade e maldade. Assim, a tradição “virtude e vício” contribuiu, maciçamente, tanto na
teoria como na prática, para a definição ocidental do que significa ser humano.

A representação literária dos pecados alcançou seu auge em “A Divina Comédia” de Dante. A
obra de Dante, longe de ser legalista ou moralista, é uma obra de grande poesia e drama,
retratando os vícios com imagens vívidas e perturbadoras. Na jornada atroz pelo inferno,
pecadores aparecem e desaparecem mergulhados em rios de excremento e de sangue, são
metamorfoseados em árvores e flutuam em um lago de gelo, com o rosto inchado voltado
para cima. Nus e atormentados, alguns são esmagados por cobras, outros hipnotizados e
estripados. Todo o cenário acompanha as observações famosas de Agostinho, de que “o
pecado é o castigo do pecado”, e, portanto, o julgamento é a consequência da escolha
estabelecida, Dante retrata a todos os que se encontram no inferno recebendo um castigo
específico, de acordo com seu pecado específico.

Contrário ao esperado por certas pessoas, os gregos e os romanos enfatizavam mais as


virtudes, e os judeus e cristãos, mais os vícios. Na verdade, os judeus viam os “vícios” e os
“pecados” como uma coisa única. As duas palavras, permutáveis, são radicais. Assim, os vícios
nunca serão pecadinhos ou faltas afetuosamente desculpáveis. São, verdadeiramente, mortais.

Nenhuma formulação moderna, para capturar tanto a magnificência da existência humana


quanto sua natureza fatalmente defeituosa com respeito à humanidade, pode ser comparada
à tradição, à virtude e ao vício. Perspectivas modernas, no entanto, tendem a ser irreverentes
para com o vício, reduzindo sua gravidade a um bocejo ou a um riso escarnecedor.

Para os gregos, a virtude era aquela excelência que fazia uma pessoa executar bem seu
propósito. Por conseguinte, a virtude do olho é ver as coisas com clareza; a virtude da faca, ser
afiada e cortar bem; a virtude do cavalo, cavalgar energicamente, e assim por diante. O vício
era, basicamente, uma questão de excesso ou deficiência, faltando-lhe o equilíbrio desejável
ou a “moderação”, que é a virtude. Aristóteles, por exemplo, elaborou detalhadamente os
excessos, os meios (virtudes) e as deficiências encontradas nas atividades mais comuns e mais
importantes da vida. Essas categorias, típicas do entendimento greco-romano, estão
resumidas na tabela abaixo.
ATIVIDADE VÍCIO (EXCESSIVO) VIRTUDE VÍCIO (DEFICITÁRIO)
(INTERMEDIÁRIO)
ENCARAR A MORTE TEMOR DEMASIADO TEMOR NA MEDIDA MUITO POUCO
(COVARDIA) CERTA (CORAGEM) MEDO
(IMPRUDÊNCIA)
AÇÕES CORPORAIS DEVASSIDÃO TEMPERANÇA SEM PALAVRA PARA
ESSE TIPO DE
(COMER, BEBER, ESTADO: PODERIA
SEXO) SER CHAMADO DE
“INSENSIBILIDADE”
DAR DINHEIRO ESBANJAMENTO LIBERALIDADE MESQUINHEZ
DAR EM LARGA VULGARIDADE MAGNIFICÊNCIA AVAREZA
ESCALA
EXIGIR RESPEITO VAIDADE ORGULHO HUMILDADE
RELACIONAMENTO ADULAÇÃO CORDIALIDADE ABORRECIMENTO
SOCIAL
HONRA INJUSTIÇA JUSTIÇA INJUSTIÇA
CORRESPONDENTE
RETRIBUIÇÃO PELA INJUSTIÇA JUSTIÇA INJUSTIÇA
INJUSTIÇA

A classificação cristã dos sete pecados capitais é mais profunda e mais dinâmica. A lista, por ter
seu início no movimento monástico cristão no deserto do Egito, era, originalmente, uma lista
de vícios que, constantemente, afligiam as comunidades monásticas. Mas, mesmo ali, era-lhe
dada uma vitalidade dinâmica por estarem convencidos de que o diabo é a fonte última da
tentação.

No quarto século, o monge Evagrius Pônticus registrou oito pecados capitais: a gula, a lascívia,
a avareza, a melancolia, a ira, a letargia espiritual, a vanglória e o orgulho. João Cássio de
Marseilles, discípulo de Evagrius, levou a relação ao Ocidente, onde esta recebeu sua
formulação clássica pelo papa Gregório Magno, no sexto século. Gregório mudou, não
somente a lista (que se tornou a forma clássica que seguiremos nesta série), mas também
tornou o orgulho uma categoria em si mesma e redefiniu a posição dos vícios. Os pecados
foram, então, classificados por gravidade crescente e julgados como os maiores danos à alma e
a raiz de todos os outros pecados.

Dali por diante, os sete pecados capitais não foram restritos à vida monástica. Passaram a ser
compreendidos como perigos morais da alma em meio à vida diária — estes só poderão ser
descobertos sondando o mais profundo do coração humano. Agostinho viu os pecados como
tentativas arrogantes cuja finalidade era imitar os atributos de Deus — a avareza gracejando
da possessão divina de todas as coisas, a raiva parodiando a ira do Senhor, e assim por diante.
Além disso, como um dos personagens da história de Geoffrey Chaucer, The Canterbury Tales
[Os contos de Canterbury], escrita em 1387, afirma, os sete pecados capitais estão
“entrelaçados.” São “o tronco da árvore de onde os outros se ramificam.” A lista dos sete
pecados capitais não abrange todos os pecados que podemos enumerar, mas ela apresenta os
pecados capitais fundamentais, integrados, os quais se encontram no centro de nossa
natureza humana e dos quais se originam todos os outros pecados.

Há ainda outros pontos importantes. Em primeiro lugar, a perspectiva cristã considera o


impulso do amor como estando exatamente no centro de todas as virtudes e vícios. Enquanto
as virtudes se derivam da disposição apropriada do amor, os vícios se derivam de um amor
doentio. A raiva, por exemplo, é o amor deturpado, isto é, o amor dirigido a um objeto
respeitável (ele mesmo), mas de maneira ilusória (por meio da raiva para com outra pessoa).
Similarmente, a preguiça é o pecado proveniente de um amor falho, assim como a avareza e a
glutonaria são pecados de um amor excessivo.

Em segundo lugar, há um acordo comum sobre as categorias gerais dos sete pecados. Os cinco
primeiros pecados (orgulho, inveja, raiva, preguiça e avareza) são diferentes dos dois últimos
(glutonaria e lascívia). Os primeiros não são pecados da carne, mas do espírito, e são descritos,
muitas vezes, como pecados “frios”, mas “respeitáveis.” Já os últimos são, obviamente,
pecados da carne e, portanto, “quentes”, mas “desonrosos.”

Em terceiro lugar, não há um paralelo preciso — além de sua quantidade — entre os sete
pecados mortais e as sete virtudes cardinais (prudência, constância, temperança, justiça, fé,
esperança e amor). As virtudes, na maioria dos casos, não são o oposto dos pecados.

Assim, esta coleção seguirá um caminho de interpretação menos utilizado. Focalizaremos, em


profundidade, os sete pecados capitais e, ao fazer isso, não os contrastaremos com as virtudes
tradicionais, e sim com as bem-aventuranças de Jesus, apresentadas no Sermão do Monte.
Todavia, esse caminho, embora seja menos conhecido, tem sido bem trilhado. Comentaristas
clássicos, como Agostinho, e comentaristas modernos, como Peter Kreeft (autor de Sócrates e
Jesus, o Debate, São Paulo: Editora Vida, 2006), argumentam que as bem-aventuranças são “as
virtudes do Reino” e, grandiosamente, opostas aos vícios. Em alguns casos, o contraste é óbvio
(orgulho versus pobreza de espírito ou humildade). Em outros casos, esse contraste não é tão
óbvio assim, mas, ao fazer um exame mais profundo, ele se torna igualmente esclarecedor.
Peter Kreeft, professor de filosofia do Boston College, nos Estados Unidos da América, expõe
os contrastes na tabela a seguir:

VÍCIOS: SETE PECADOS CAPITAIS VIRTUDES: BEM-AVENTURANÇAS


ORGULHO (SOBERBA) POBREZA DE ESPIRITO

AUTOCONCENTRAÇÃO, AUTODISTINÇÃO HUMILDADE, ABNEGAÇÃO


INVEJA LAMENTO

RESSENTIMENTOS PARA COM A FELICIDADE DOS SOLIDARIEDADE COM A TRISTEZA DOS OUTROS
OUTROS
IRA MANSIDÃO

O DESEJO DE DANO E DESTRUIÇÃO PARA OS A RECUSA DE PREJUDICAR A OUTROS E O


OUTROS DESEJO DE PACIFICAÇÃO
PREGUIÇA FOME E SEDE DE JUSTIÇA
LETARGIA PARA COM DEUS, O BEM E O IDEAL PAIXÃO E PROCURA POR DEUS, PELO BEM E
PELO IDEAL
AVAREZA MISERICÓRDIA

PODER CENTRIFUGO PARA AGARRAR E SE A EXTENSÃO CENTRlPETA PARA COMPARTILHAR


APEGAR AOS BENS DO MUNDO COM OUTROS, ATÉ MESMO OS QUE NÃO
MERECEM
GLUTONARIA OS PERSEGUIDOS

O IMPULSO DE CONSUMIR QUANTIDADE A DEDICAÇÃO CAPAZ DE SUPERAR PRIVAÇÕES


EXAGERADA DE COISAS MATERIAIS ATÉ MESMO DE NECESSIDADES BÁSICAS
LASCÍVIA PUREZA DE CORAÇÃO

O DESEJO DESORDENADO E DEVASSO POR O DESEJO VERDADEIRO POR DEUS QUE


QUALQUER CORPO ATRAENTE CENTRALIZA E UNIFICA A ALMA

Finalmente, deve ser dito que qualquer pessoa que luta com os sete pecados capitais pode
encontrar-se encarando um momento de verdade. Uma conversa sobre os pecados é,
geralmente, iniciada brincando com pecados específicos, especialmente a glutonaria e a
lascívia, confrontando, finalmente, a ideia do próprio pecado — um empreendimento muito
mais arriscado. Focaliza-se o mal quando o vemos nos outros, mas este entra em um foco
penetrante e terrível quando o percebemos em nós mesmos.

A leitura dos próximos volumes desta coleção “Os Sete Pecados Capitais” conduzirá o leitor a
concluir que, se realmente estamos desejosos de entender o mal, o melhor lugar para
começar, porém o mais difícil, é em nosso próprio coração.

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