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Do sim e do não – Comentários sobre a denegação

Do sim e do não1
Comentários sobre a denegação
Dimas Barreira Furtado

Resumo
A Negativa (Verneinung) mereceu de Freud um pequeno, porém extremamente denso texto, em
1925. Freud mostra como ela pode encobrir uma afirmação, e que isto constitui uma suspensão,
mas não uma aceitação do recalcado. Em outro texto, no qual analisa o Homem dos Lobos, ele
trata de uma negação bem mais radical, a Verwerfung. Freud, e mais tarde Lacan, tratou ainda de
uma afirmação (Bejahung), ligada à ideia de incorporação, e de uma expulsão, ambas fundamen-
tais na constituição do sujeito, a partir da distinção entre o dentro e o fora. O texto analisa esses
conceitos e tece consideração sobre suas inter-relações.

Palavras-chave
Negação, Afirmação, Forclusão e Expulsão.

“Que o teu sim seja sim, que o teu não seja não” (Evangelho de S.Mateus – Cap.5, vers.37).
“Em nossa interpretação, tomamos a liberdade de desprezar a negativa e de
escolher apenas o tema geral da associação.” (FREUD, A Negativa)

Este trabalho se propõe a discutir o que apresenta o conhecido diálogo em que o


poderia ser anunciado como a confiabili- paciente diz a respeito de um sonho ou
dade do sim. Ao contrário do que reco- uma fantasia: “... esta não é minha mãe”.
menda a norma evangélica, nem sempre Esse ‘não’, diz Freud, pode ser despreza-
o sim é sim, e às vezes chega mesmo a que- do, pois é exatamente da mãe que se trata
rer significar um não. Para comentar e ex- (FREUD, 1925, p.295).
plicar esse desencontro, Freud (1915- Portanto, o que pareceria à primeira
1916, p.258) cita o caso do casal de cam- vista tratar-se de uma negativa, trata-se na
poneses diante da possibilidade de três realidade de uma afirmação. Estamos di-
pedidos ao gênio. O desentendimento dos ante de dois conceitos, a afirmação e a de-
dois consome todas as oportunidades de negação, de grande importância na psica-
terem no mínimo uma saborosa refeição. nálise. Para sua análise, será útil passar tam-
Nem sempre, ou talvez raramente, o Ego bém por outros conceitos que se ligam ou
se concilia com o Isso ou com o Supereu. se opõem a eles. São eles: Ausstossung (ex-
Em seu texto de 1925, A Negativa, Freud pulsão), Vereinigung (incorporação ou in-

1. O prefixo ver- reforça uma ideia (no caso de Verwerfung e Verleugnung) ou é formador de verbo (em verneinen >
Verneinung e vereinen > Vereinigung); o prefixo be transforma em verbo (em Bejahung); o sufixo –ung, é substantivador.

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trojeção), e Verwerfung (forclusão ou fo- A Ausstossung, mais que a Vereini-


raclusão), além de Verneinung (negação ou gung, tem especial importância porque
denegação) e Bejahung (afirmação). Para marca o início do processo da consti-
sua composição, tradução e breve concei- tuição do sujeito, o rompimento da sua
to, ver quadro no final do trabalho. simbiose com a mãe. Segundo Ana
O estudo da psicose nos leva necessa- Maria Rudge (1998), (...) “A expulsão
riamente à questão da Verwerfung, o meca- fundamental é o momento inaugural da
nismo da rejeição do significante primordi- constituição do sujeito da psicanálise, su-
al, o Nome-do-Pai, bem como sua ligação jeito pulsional que se localiza no campo
com outros conceitos, entre eles, em pri- do real” (RUDGE, 1998, p.52). Jean
meiro lugar, a Ausstossung. Como diz Thom Hyppolite (1998), no seu famoso co-
(2005), “Essa distinção [Ausstossung e mentário sobre A Negativa, solicitado
Verwerfung] pode parecer sem importância e por Lacan no seminário de 1953-54, diz
o debate terminológico um pouco árido, um que a distinção entre o estranho e o
pouco escritural; contudo, as definições da neu- sujeito, que exatamente está em pro-
rose e da psicose dependem dele.” (THOM, cesso de constituição, constitui uma
2005, p.146). É que a Ausstossung, ao con- operação de expulsão (HYPPOLITE,
trário da Verwerfung, se refere a um proces- 1998, p. 899). E ainda: “Isso, portanto,
so comum aos futuros neuróticos. torna-se inteiramente mítico: dois instin-
Procuraremos analisar, portanto, as tos que estão, por assim dizer, entremea-
semelhanças e distinções possíveis entre dos no mito que sustenta o sujeito: um, o
esses dois conceitos, o que exige a consi- da unificação, outro, o da destruição”
deração dos citados conceitos correlatos. (HYPPOLITE, 1998, p. 900).
Um primeiro par de oposições a con- O conceito de Ausstossung merece
siderar é constituído pelas operações de atenção especial também por sua proxi-
introjeção (Vereinigung – ver quadro no midade com o conceito típico da psico-
final) daquilo que é bom, que é prazeroso. se, a Verwerfung. Trataremos disso adian-
E, do outro lado, a expulsão (Ausstossung) te. Já a incorporação, muitas vezes con-
daquilo que é mau, desprazível. Em O Ins- siderada na psicanálise como sendo de
tinto e suas Vicissitudes, de 1915, Freud se caráter canibalesco, interessa para nos-
detém na consideração do Ego-prazer. sos objetivos imediatos, especialmente
Nesse texto ele já esclarecia a atividade enquanto oposição à expulsão. O termo
de introjeção e expulsão de dentro do Ego alemão para a incorporação ou introje-
[no alemão, que não teme ser redundan- ção, Vereinigung (não confundir com Ver-
te: Ausstossung aus dem ich]: neinung) é derivado de Einig, que signifi-
ca unido ou único.
“Na medida em que os objetos que lhe são A respeito do par Vereinigung-Auss-
apresentados constituem fontes de prazer, tossung, igualmente importante é a liga-
ele os toma para si próprio, os ‘introjeta’ ção que cada um deles tem. Diz Freud,
(para empregar o termo de Ferenczi); e, no citado texto de 1925: “A afirmação –
por outro lado, expele o que quer que den- como substituto da união, pertence a Eros;
tro de si mesmo se torne uma causa de a negativa – o sucessor da expulsão – per-
desprazer”2 (FREUD, 1974, p.157). tence ao instinto [à pulsão] de destruição.”
(FREUD, 1925, p. 300). Jean Hyppolite
(1998) chama a atenção para a distinção
entre substituto (empregado para a du-
2. Aus, preposição, usada aqui como prefixo, significa pla afirmação-união) e sucessor (empre-
para fora. gado para a expulsão-denegação), que em
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traduções francesas foram traduzidos com pequeno dispêndio de energia” (FREUD,


o mesmo termo.3 Diz ele: 1925, p.299). Estamos no estágio anterior
ao surgimento do sujeito. No princípio,
“[...] é preciso reconhecer uma dissime- podemos dizer, era o princípio do prazer.
tria expressa por duas palavras diferen- O pequeno ser humano, ainda não cons-
tes no texto de Freud, embora elas te- tituído como sujeito, experimenta a satis-
nham sido traduzidas pela mesma pala- fação de ter sua fome e outras necessida-
vra em francês, entre a passagem para a des atendidas por seu cuidador, o Neben-
afirmação, a partir da tendência unifi- mensch. Logo vai acontecer que se repe-
cadora do amor, e a gênese, a partir da tem os atendimentos, mas, “para seu gran-
tendência destrutiva, dessa denegação de benefício”, nem sempre eles chegam ou
que tem a verdadeira função de gerar a chegam imediatamente.
inteligência e o próprio posicionamen- As ausências do Nebenmensch ense-
to do pensamento.” (HYPPOLITE, jam o surgimento da etapa seguinte. Co-
1998, p.896 – grifo nosso). meça a existir o dentro e o fora. A criança
começa a desacreditar de suas alucinações.
O termo alemão Verneinung4 tem sido Até então, com a ausência do seio, ela o
traduzido por negação, bem como por ne- alucinava. Trata-se agora da criação do
gativa. No entanto, a palavra denegação mundo exterior.
tem sido mais usada na psicanálise. A res- Podemos abrir um parêntesis para di-
peito, citemos um trecho de Thom (2005, zer algo da qualidade desse objeto busca-
p.128), que também apresenta o aspecto do, processo típico do juízo de atribuição.
talvez mais importante deste conceito: “A Veremos que o bom é que foi introjetado.
questão é que a negação descrita no ensaio Thom (2005) destaca que, no entanto, por
‘Die Verneinung’ diz respeito à relação que meio do recalque primitivo, ele poderá ser
associa o recalque ao retorno do recalcado: o encontrado como representação (THOM,
emprego da palavra ‘denegação’ ajuda a se- 2005, p. 135). Note-se ainda que o sim e
parar esse uso da operação mais comum...”. o não estão ambos no juízo de atribuição
Em A Negativa (1925), Freud indica (se eu gosto: eu engulo; se eu não gosto:
que “a percepção não é um processo pura- eu cuspo), e ambos no juízo de realidade
mente passivo”. Ela seria então o resultado (se é perceptível: é real; se não é perceptí-
de “pequenas quantidades de catexias [de vel: não é real).
investimentos]” enviadas pelo Ego para o Com o interno e o externo, com o
sistema perceptual. Freud liga esse proces- dentro e o fora, temos o juízo de atribui-
so à ação de julgar. Ele deve ser conside- ção e em seguida o juízo de existência,
rado como sendo, de início, uma “experi- conceitos herdados da filosofia por Freud.
mentação”, “uma apalpação motora, com Em 1925, ele falava do Ego-prazer origi-
nal e o opunha ao Ego-real. Sob a égide
do juízo de atribuição, ligado ao princípio
do prazer, Freud (1925) afirma em A Ne-
3. Trabalho de conclusão de cartel, ocorrido ao longo gativa que “(...) o Ego-prazer original deseja
de 2010, no CPMG, dedicado ao estudo da Psicose, introjetar para dentro de si tudo quanto é bom,
especialmente nos textos do primeiro ensino de La-
can. As discussões do cartel ajudaram na construção
ejetar de si tudo quanto é mau.” E acrescenta
deste texto, especialmente as observações do “mais “que aquilo que é mau, que é estranho ao Ego,
um”, o psicanalista Breno Ferreira Pena, a quem o e aquilo que é externo são, para começar, idên-
autor agradece.
4. Lembremos que em seguida à incorporação vem o
ticos.” (FREUD, 1976, p.297).
processo de identificação, como Freud entende, des- Já em 1895, Freud ligava o desejo a
de muito cedo. uma alucinação. Com relação a esse está-
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gio, dirá ele no texto de 1925: “Agora não 1976, p.296). A negação marca a opera-
se trata mais de uma questão de saber se aqui- ção do recalque e seu correlato, o retorno
lo que foi percebido (uma coisa) será ou não do recalcado.
integrado ao Ego, mas uma questão de saber Na página seguinte, Freud tira uma
se algo que está no Ego como representação das conclusões desta afirmação. Diz ele
pode ser redescoberto também na percepção que “o juízo negativo é o substituto intelectu-
(realidade).” (FREUD, 1976, p.297-8). Ou al da repressão [recalque]” e, logo adiante,
no trecho logo adiante: “Assim, original- trata do pensamento. Esta é outra impor-
mente a mera existência de uma representa- tante consequência: a criação do pensa-
ção constituía uma garantia da realidade da- mento. Desse trecho, Jean Hyppolite des-
quilo que era representado. A antítese entre taca a palavra suspensão (HYPPOLITE,
subjetivo e objetivo não existe desde o início” 1998, p. 895), e diz tratar-se de um termo
(FREUD, 1976, p.298). tipicamente hegeliano, o Aufhebung, pa-
Com o juízo de existência, trata-se de lavra de sentidos antitéticos, pois ao mes-
confrontar a representação com a percep- mo tempo quer dizer negar, suprimir e con-
ção, o que implicará na queda da repre- servar (o que, por sua vez, mostra a preci-
sentação alucinada. A respeito disso, ex- são do termo escolhido por Freud).
plica Rudge (1998) que a perda do objeto Hyppolite se dispõe a explicar-nos essa
é condição para o surgimento do sujeito, questão. Freud separa aqui o intelectual
uma vez que a delimitação de fronteiras do afetivo. No entanto, Hyppolite é ex-
entre o campo subjetivo e o exterior é con- plícito ao dizer que não existe o afetivo
dição indispensável para haver distinção puro de um lado, inteiramente engajado
entre a mera representação e a realidade no real, e o intelectual puro de outro
do representado (RUDGE, 1998, p. 45). (HYPPOLITE, 1998, p. 897). Daí por que
A denegação permite ao juízo de exis- o ilustre aluno de Lacan destaca o sim do
tência tomar o lugar do juízo de atribui- não, analisa-os como etapas do diálogo do
ção. O princípio da realidade substituin- psicanalista com seu paciente, em que este
do, ou melhor, acrescentando-se ao do primeiro nega, para depois negar a nega-
prazer. Freud (1925) é muito didático ção, e conclui que essa gênese do pensa-
quanto a isso. Em um trecho de A Negati- mento, que sabemos ser da ordem da his-
va, ele explica: tória, é também do mito.
Detenhamo-nos um pouco para tra-
“O desempenho da função de julgamen- tar especificamente da negatividade.
to, contudo, não se tornou possível até Ainda nos apoiando nesse autor, de-
que a criação do símbolo da negativa vemos distinguir a denegação da negati-
dotou o pensar de uma primeira medida vidade, característica de alguns psicóticos.
de liberdade das consequências da repres- Quanto à negatividade, esse filósofo lem-
são [do recalque], e, com isso, da com- bra o mito hegeliano dos dois combaten-
pulsão do princípio do prazer” (FREUD, tes, o Senhor e o Escravo, no qual, em um
1976, p.300). primeiro momento (“a verdadeira negati-
vidade” substitui o “apetite de destrui-
No início desse impressionante texto, ção”), ele vê uma negação ideal, já que
ele tinha escrito: “A negativa constitui um “não haverá ninguém para constatar a vitó-
modo de tomar conhecimento do que está re- ria ou a derrota de um ou do outro...”
primido [recalcado]; com efeito, já é uma (HYPPOLITE, 1998, p.896). Thom
suspensão da repressão [do recalque], em- (2005) explica que “O negativismo da psi-
bora não, naturalmente, uma aceitação do cose deriva de uma falha no recalque primiti-
que está reprimido [recalcado]” (FREUD, vo e representa uma negatividade não-cap-
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turada pela negação e não-assimilável à opo- Lacan logo adiante, e “que não é outra coisa
sição entre o intelecto e o afeto” (THOM, senão a ameaça da castração” (Idem).
2005, p.131). Vimos que ela se liga, que ela é um
Freud diz que “O desejo geral de negar, substituto da união, da incorporação (Ve-
o negativismo que é apresentado por alguns reinigung) primitiva do pequeno ser huma-
psicóticos, deve provavelmente ser encarado no. Por sua vez, no entanto, porque justa-
como sinal de uma desfusão de instintos [de mente se trata do início da simbolização,
pulsões]...” (FREUD, 1925, p.300). a Bejahung se dá em um momento crono-
Hyppolite (1998), que procura des- logicamente posterior. Não parece haver
trinchar o texto de Freud, também procu- nisso contradição com o fato de Lacan
ra entender esse negativismo, que Freud quase sempre referir-se a ela como primi-
inclui logo em seguida na distinção entre tiva. Primitiva, mas não primeira. No en-
sucessor e substituto, com relação aos dois tanto, devemos entender que a Bejahung
pares5 . Diz ele que se pode deduzir que (bem como a Verneinung) se repetirá fre-
“possa haver um prazer de negar, um negati- quentemente, em futuras ocasiões.
vismo que resulta simplesmente da supressão Já vimos como a afirmação liga-se di-
dos componentes libidinais” (HYPPOLITE, retamente à denegação, que se liga por sua
1998, p. 900). vez ao recalque, como fica claro logo no
Ao confrontarmos a Bejahung com a início do texto A Negativa, no caso do ‘esta
Verneinung, logo constatamos que a primei- não é minha mãe’. A esse respeito, diz
ra com certeza não é do mesmo nível da Thom que é na afirmação precedente que
segunda. A partícula da afirmação, o sim, a denegação trabalha. Enquanto que a
aparece menos no discurso afirmativo do Verwerfung não é um registro, nem uma
que sua correspondente aparece no dis- inscrição, mas um repúdio radical de uma
curso negativo. O senso comum parece percepção (THOM, 2005, p.135).
expressar isso com o dito “quem cala, con- Hyppolite se pergunta: que significa a
sente”. Para afirmar basta calar. Para ne- dissimetria entre a afirmação e a negação;
gar, porém, é preciso dizer não. É preciso e responde:
ser mais explícito. Hyppolite assim se ex- “Significa que todo o recalcado pode ser
pressa a respeito disso: “A afirmação pri- novamente retomado e reutilizado numa es-
mordial não é outra coisa senão afirmar; mas pécie de suspensão, e que, de certo modo, em
negar é mais do que querer destruir” vez de ficar sob a dominação dos instintos de
(HYPPOLITE, 1998, p.898). atração e de expulsão, pode produzir-se uma
A Bejahung é uma precondição para o margem do pensamento, um aparecimento do
ingresso em uma ordem simbólica (THOM, ser sob a forma do não ser, (...)” (HYPPO-
2005, p. 135). No Seminário As Psicoses, LITE, 1998, p.901).
em que trata do assunto em mais de uma Essa dicotomia corresponde aos dois
lição, Lacan a define como uma admissão elementos da brincadeira do fort-da, em
no sentido do simbólico, e acrescenta que que o fort (o mesmo que ‘sumiu’ da brin-
pode ela própria faltar (LACAN, 1985, p. cadeira similar das nossas crianças peque-
21). Faltar no sentido de o sujeito recusar nas) corresponde à negação, enquanto o
o acesso, ao seu mundo simbólico, de algu- da (o mesmo que ‘achou’) corresponde à
ma coisa que ele experimentou, explica afirmação.
A Verwerfung opõe-se à Bejahung e à
Verneinung (e ainda à Verleugnung, que in-
dica o processo típico da perversão). Es-
5. Dessa confusão escapamos nós, pois a tradução da
Standard Edition já faz a distinção, como vemos na tamos diante de uma afirmação e de três
citação acima. diferentes formas de negação, e, a cada
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uma delas, a Verwerfung se opõe de uma Tratando do assunto em ‘Resposta ao


forma diferente. Assim, a Verwerfung opõe- comentário de Jean Hyppolite’ (1998)6 ,
se à Bejahung, pois esta é uma afirmação. Lacan procura explicar a distinção entre
Opõe à Verneinung e à Verleugnung, pois, os dois conceitos. Para falar da denega-
apesar de ambas serem negações, portan- ção, diz ele, citando Freud, que da castra-
to da mesma ordem da Verwerfung, são de ção esse sujeito nada queria saber no sentido
teores diferentes. do recalque. Quanto à Verwerfung, conti-
A Bejahung forma um par dicotômico nua Lacan, “Seu efeito é uma abolição sim-
com a Verwerfung, como afirma Lacan, no bólica” (LACAN, 1998, p.388). Na dene-
Seminário As Psicoses (1985): gação, destaca Thom, não há “... oblitera-
ção nem anulação do significante. Na proje-
“Ao nível dessa Bejahung pura, primiti- ção paranoica [Verwerfung], entretanto, há
va, que pode realizar-se ou não, estabe- uma não-afirmação...” (THOM, 1998,
lece-se uma primeira dicotomia – o que p.140).
teria sido submetido à Bejahung, à sim- No Seminário As Psicoses, Lacan
bolização primitiva, terá diversos desti- (1985) é muito claro:
nos, o que cai sob o golpe da Verwer-
fung primitiva terá outro” (LACAN, “O que cai sob o golpe do recalque retor-
1985, p.98). na, pois o recalque e o retorno do recalca-
do são apenas o direito e o avesso de uma
“Há, portanto, na origem, Bejahung, isto mesma coisa. (...) o que cai sob o golpe da
é, afirmação do que é, ou Verwerfung.”, afir- Verwerfung tem uma sorte completamen-
ma ele logo adiante. A afirmação do que é te diferente” (LACAN, 1985, p.21).
deve ser entendida como julgamento de
existência. Daí sua oposição à Verwerfung, E acrescenta sua conhecida opinião:
na qual não se dá juízo de existência (lem- “tudo o que é recusado na ordem simbó-
bremos que, em havendo tal juízo e não lica, no sentido da Verwerfung, reapa-
havendo afirmação, o que teríamos seria rece no real” (LACAN, 1985, p. 21).
denegação, Verneinung, que, ao contrário
da Verwerfung, é da ordem do discurso). Já vimos o que representa a negação
Já com relação à Verneinung, sabemos da Verneinung. É típica da neurose, por-
que não há na Verwerfung a negação da que falha ao tentar negar a castração. Não
afirmação; mas uma falha no discurso, com exclui também o significante Nome-do-
um elemento que não foi simbolizado. Na Pai, tal como ocorre na Verwerfung. Exis-
Verwerfung, explica Freud que se trata de tem na Verneinung o recalque e o retorno
uma falha do julgamento de existência. Diz do recalcado, enquanto na psicose o sig-
ele, ainda em 1894: nificante primordial é rechaçado sem dei-
xar nenhuma simbolização.
“Há, entretanto, uma espécie de defesa Quanto à Verleugnung, típica da per-
muito mais poderosa e bem-sucedida [do versão, a diferença em relação à Verwer-
que na denegação]. Nela, o eu rejeita a fung é que não se trata de um rechaço,
representação incompatível juntamente mas de uma não aceitação daquilo que foi
com seu afeto e se comporta como se a constatado, ou seja, a castração.
representação jamais lhe tivesse ocorrido.
Mas a partir do momento em que isso é
conseguido, o sujeito fica numa psicose que
só pode ser qualificada como ‘confusão 6. Substantivo derivado do verbo verneinen, negar (ver
quadro anexo).
alucinatória’” (FREUD, 1986, p.63-64).
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Outra distinção, ainda em relação à meiros escritos, podemos dizer que no


Verwerfung, é quanto à Ausstossung. princípio era o princípio do prazer; com
Lacan parece não diferenciar a Verwer- Lacan parece ser diferente. Trata-se efeti-
fung da Ausstossung originária, o que tem vamente do mesmo tema, ou de duas si-
gerado algumas controvérsias. O enten- tuações diferentes? Como se dá a questão
dimento de muitos é no sentido de a Auss- da distinção entre o dentro e o fora, para
tossung não se relacionar com o significan- o paranoico? A questão do negativismo do
te primordial, ao contrário da Verwerfung, psicótico parece exigir maior aprofunda-
exatamente porque a Ausstossung seria mento. Tem razão Lacan em não distin-
mais primitiva, ocorrendo no campo ape- guir Ausstossung de Verwerfung?ϕ
nas pulsional, antes da entrada no domí-
nio do simbólico (e que justamente abre
as portas ao fort-da). FROM THE YES TO
Rudge é explícita ao dizer que “A pa- THE NO – COMMENTS
lavra Verwerfung, que designa o operador ABOUT DENIAL
característico da psicose, não deveria ser uti-
lizada para a expulsão – chamada por Freud Abstract
de Ausstossung – que é correlativa à Be- Freud wrote a small, although dense, text in
jahung na constituição do primeiro dentro e 1925, named the denial (Verneinung). He
fora.” (RUDGE, 1998, p. 53). Essa autora shows how denial may act as a disguise for
argumenta que as duas acepções de expul- an statement. It makes a suspension, but not
são devem ser pensadas diferentemente, an repression acceptance. In another text in
baseando-se no fato de que apenas o psi- which Freud analyses the wolf’s man, he talks
cótico tem uma maneira peculiar de lin- about a more radical denial, the Verwerfung.
guagem. E em que “todo o simbólico é real”. Freud, and Lacan many years later, worked
Donde conclui que “há uma expulsão cons- on the meaning of an affirmative statement
tituinte do real [a Ausstossung] e outra ex- (Bejahung) which is linked to the idea of as-
pulsão (ou uma característica especial nessa similation and expelling, both fundamental in
expulsão) que é anômala e que dá origem à the construction of subjectivite. So the sub-
psicose” (RUDGE, 1998, p.47). ject is builded from the distinction between
O leitor possivelmente percebeu que inner and outer influences. This text analy-
estivemos tratando de conceitos difíceis, ses these concepts and makes considerations
e cuja análise nem sempre é unânime. Jus- about their interconnections.
tamente por isso nos animamos a empre-
ender essa tarefa, pois podemos esperar Keywords
que se torne mais clara sua compreensão. Denial, Affirmation, Forclosure, Expelling.
O esforço, por outro lado, pode gerar al-
gumas perguntas pertinentes. Levantemos
algumas:
A Ausstossung é um processo exclusi-
vo da neurose? Os paranoicos não passa-
riam também por ela? Alguns autores fa-
zem referência à Ausstossung primitiva e à
Bejahung primitiva: quererão eles dizer efe-
tivamente que há uma e outra que não
sejam primitivas, ou apenas destacam o
caráter primitivo que de fato ambas apre-
sentam? Com Freud, conforme seus pri-
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Dimas Barreira Furtado

ANEXO
QUADRO DE RESUMO

CONCEITO Tradução Raiz1 Características principais


mais aceita
Vereinigung Incorpora- Einig – único Função básica do Ego-prazer
ção ou (vereinen - originário; incorpora o bom, o belo.
Introjeção juntar) Opõe-se à Ausstossung
(que é a expulsão do mau).
Ausstossung Expulsão stoßen - expelir Função básica do Ego-prazer
(Ausstossen2 , originário; não tem relação
expelir) com significante; exclusivamente
pulsional; expulsa o mal, o feio.
Ego-prazer (juízo de atribuição).
Lacan: função forclusiva que constitui
o real como exterior ao sujeito.
Bejahung Afirmação Ja – sim Liga-se à negação; pode dar-se por
(bejahen, dizer meio de uma negação (“não é minha
sim) mãe”). Substitui a incorporação.
O sistema consciente pode ser
considerado o lugar do que é afirmado.
É precondição para a entrada na
ordem simbólica
Verneinung Negação, Nein – não Típico da Neurose. Estabelece
denegação (verneinen – o juízo de existência. É o sucessor
negar) da expulsão; liga-se à e parte
da afirmação; distingue-se desta
apenas no léxico; é condição
para o retorno do recalcado.
Estabelece o Ego -real
e o desejo humano (“não é minha
mãe”). Incide sobre o conteúdo
do pensamento, o qual é estruturado
como um fenômeno de linguagem.
Verwerfung Forclusão werfen - ejetar Típico da Psicose (Lacan: “rejeição
de um significante primordial nas
trevas exteriores”). Ausência de
Bejahung. A não-afirmação. Liga-se
a um significante que absolutamente
não é afirmado; não-afirmação
do significante; rompimento
com a realidade; “repúdio absoluto
de uma percepção.”.
Verleugnung Desmentido leugnen – negar, Processo típico da perversão.
- recusa renegar. É outra forma de oposição
à afirmação.

7. Vereinigung-Bejahung e Ausstossung-Verneinung.
8. LACAN, Resposta ao comentário de Jean Hyppolite sobre a “Verneinung” de Freud, in Escritos, 1998.

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Do sim e do não – Comentários sobre a denegação

BIBLIOGRAFIA
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RECEBIDO EM: 01/03/2011


APROVADO EM: 11/04/2011

SOBRE O AUTOR

Dimas Barreira Furtado


Sociólogo. Mestre em Educação. Participante do
Fórum de Psicanálise do Círculo Psicanalítico de
Minas Gerais - CPMG.

Endereço para correspondência:


Rua Jornalista Jair Silva, 460/201 – Anchieta
30310-290 – BELO HORIZONTE/MG
Tel.: (31)3227-4242
E-mail: dimasfurtado@gmail.com

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