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A TEORIA DO CONHECIMENTO UMA INTRODUGAO TEMATICA Paul K. Moser Dwayne H. Mulder J. D. Trout “Tradugio MARCELO BRANDAO CIPOLLA £E:ta obra fol publicada oriinalmente em ingls. em 1997, com 0 tale THE THEORY OF KNOWLEDGE: A THEMATIC INTRODUCTION, ‘per Osferd University Press. NY CCopyrigh © 1997 by Paul K Moser, Dwayne H. Mulder and J.D. Trout, Ens tadui foi publeada por acordo com Oxford University Press In Copyright © 2004, Livaria Marans Foutes Edtora Lida ‘Se Paulo, para «presente oligo, 1H edigao unbra de 2008 ‘Tradugto [MARCELO BRANDAD CIPOLLA Acompanhament eaitoria par ida des Sams evs grafic Adriona Cristina Barra Mars de Barox inane Zoronell de Siva Proto grifica Gerad ates Paginagio Fotis Sai $Besemonimente Earl ‘Dados Internacional de Catalogo na Publica (CIP) (Chimara Brasiira do Live, SP, Brat) Moses, Pal A teort do cenhecinesio: wma introdugo testes / Paul K Mover. Dwayne H. Mule, J.D. Trot adugo Marcelo Brando ‘Cipolla. ~ $40 Paulo: Martins Fontes, 2008 (Coleg biblioteca niversal) “Thule aiginat The ory of knowledge: a thematic inaction ithogatia ISBN #5.336.20705 |. Contecimento~ Teoria |, Mules: Duapne Hl Trout. D. IL Talo 1V. Sei 04-6908 cop: Indices para calogo ssteriticu: |. Teorindo coshecimento:Epistemologa: Fisofia 121 Todos os direitos desta edigao para 0 Brasil reservados Livraria Martins Fontes Editora Lida. ‘Rua Consetheiro Ramatho, 330 01325-000 Sao Paulo SP Brasil Tel. (11) 3241-3677 Fas (11) 31050807 ‘e-mail: info@mertinsjontes.com.br hnp:!!www.martinsfontes.com br INDICE Pref carfruto_1| A epistemologia: um primeiro exame . . Por que estudar o conhecimento? Algumas diividas sobre o conhecimento . A definigio tradicional de conhecimento Conhecimento ¢ experiéncia As intuigdes ¢ ateotia... 0.6.2 eee ceee sees cartruo 2| Uma explicago do conhecimento ........... O campo da epistemologia . . © conceito de conhecimento . Epistemologia, naturalismo ¢ pragmatismo O valor na epistemologia ...... sesierimassetaa cartruto 3| A crenga As crencas € os estados de representacao . As crengas € atribuigao de crengas. Acaso as crengas so transparentes? . As crengas € 0s ideais teérice eliminativismo e suas previsé *s qriios|Averdade cavsociqanmmvsswensoungay OF O relativismo .... vo 69 Aveidade eacorrespondéncia ..c..cccccsecee 73 Averdadee acoeréncia ....... 7 ‘Averdade e 0 valor pragmético 3 80 Espécies e noges de verdade 20.22... 00 81 cartruLo 5| A justificacao e alm ; 85 A justificagio, a verdade ea anulabilidade 85 A justificagao rele inferéncia e o problema da re- BICSSIO se veetbevetvvtrevseeee 87 O problema da regressio 88 O infinitismo epistémico 89 O coerentismo epistémico . . 91 O fandacionalismo eo confiabilismo epistémicos 95 O contextualismo epistémico 103 Complement & justificacéo: © problema de Getter 105 carfruto 6| As fontes do conhecimento . . wi racionalismo, 0 empirismo ¢ 0 m1 O empirismo, o positivismo ea subdeterminagio . 116 Intuigées ¢ relatos em primeira pessoa ve 12d Amemétia:.cosrerrerwmeensaae . » 123 atismo . Aunificagao tedrica . . 125 O testemunho ea dependéncia social 128 cantruto >| Aracionalidade ©0022. 6.6... w 135 Distingdes preliminares ... anivareon 195 Ainferéhcta saciondl: normativae defers... 139 Accoeréncia ¢ as crengas extraviadas ..... 145 Aracionalidade eas decisdes tomadas em estado de lhctttera sorssueinsaswina vanes nswe nee . 148 A fildcia da axa-base oe. cccsesccsees vee WS O desvio por dispor 152 O desvio por confirmagao ....2s..ecceeceee 154 © juizo feico em estado de incerteca e as exigén- Ging ativas eee cece eee ee eee eecneeeeees 155 Consideragées integradoras tobre aracionalidade . 161 cartruvo 8] O ceticismo .. 0... eeeee eee eeeeceeneer ees 163 Algumas espésies de cetiismo: 163 Alguns argumentos do ceticismo . 166 Uma resposta do senso comum 171 © ccticinie, (0 makati € 8 eiplesdtoniitin amplo . caPtTuLo 9 | A epistemologia e a explicacao . 181 As origens da epistemologia contemporinea . 181 A tutoridade suprema em matésia de epistemologia 186 A explicacao e 0 conhecimento . 189 O conhecimento explicativo . 190 A inferéncia da melhor explicagao . 194 Os explicadores, a compreensfo ea autoridade QPHRMOIG BES cece vivir coeunarememenean 200 G1ossdvi0 oc ce eee tee ent eee « 206 Bibliografia . ew Lo. 2B Para saber mais... 219 Lndite vemibshiassis iisicis ae ibivsined id STOUR NA RENO OD 227 PREFACIO Este livro é uma introdugao tematica a teoria do conhecimento, ou. epistemologia. Muito embora refira-se com freqiiéncia aos grandes vul- tos da histéria da epistemologia, nao representa de modo algum uma in- trodugio histérica ao tema. Trata principalmente dos desenvolvimentos substanciais ocorridos durante o século XX ¢ apresenta os temas repre- sentativos que mais se destacam na moderna teoria do conhecimento. E muito natural que os fildsofos se deixem arrebatar pelas disputas detalhadas e pelos argumentos sutis de seus campos de atividade. Pelo menos sob este aspecto, os epistemdlogos sio semelhantes a eles. Por isso, muitos livros introdutérios escritos com a melhor das intengdes acabam por revelar-se incompreensiveis para os estudantes que come- am a aventurar-se nesse campo. Com uma abnegagao as vezes espar- tana, tentamos resistir 4 tentagao filosdfica de nos perdermos nos deta- thes ¢ sutilezas menos essenciai . Se esta abordagem introdutéria ndo agradar a alguns especialistas mais arrebatados, esperamos que tal de- sagrado scja compensado pela reacio de seus alunos. Este livro € 0 fruro uniforme de um trabalho conjunto, muito em- bora tenha sido escrito por trés fildsofos que esposam diferentes teorias epistemolégicas ¢ tém idéias diferentes sobre 0 ensino da epistemologia. Todas as paginas, sem excegio, foram revistas pelos trés autores. Na ver- dade, essa diversidade filosdfica representou para nés uma nitida vanea- A TEORIA DO CONHECIMENTO CAPITULO 1 A EPISTEMOLOGIA: UM PRIMEIRO EXAME Este livro é uma introdugao ao estudo filoséfico do conhecimen- to. Tiata, entre outros, dos seguintes t6picos: em que consiste o conhe- cimento, como adquirimos o conhecimento, como se distingue 0 co- nhecimento da “simples opinido”, como dependemos das outras pes soas para obter o conhecimento ¢ como o cetic mo pde em xeque os pressupostos mais comuns acerca do conhecimento. Mas por que ne- cessdrio que haja um estudo filosdfico do conhecimento? Talves fosse melhor levar a cabo investigagdes que fizessem aumentar 0 nosso co- nhecimento dos mundos subjetivo e objetivo, em vez de nos preocu- parmos com o que é 0 conhecimento em si mesmo. De qualquer modo, qual é a finalidade do estudo filoséfico do conhecimento? Que motivo teria alguém para se interessar pela definigao das condigées, das fontes ou dos limites do conhecimento? A vida € breve e ninguém quer desperdigar o seu precioso tempo em debates interminaveis sobre assuntos insignificantes. Como esta- mos dedicando nosso tempo € nossa energia a teoria do conhecimento, temos o dever de explicar o valor deste ramo tradicional da filosofia. E esse 0 objetivo deste capitulo ¢ do préximo. 4 | ATEORIA DO CONHECIMENTO POR QUE ESTUDAR O CONHECIMENTO? E comum que as pessoas sublinhem a importancia de ter conheci mento, ou pelo menos do poder que dele resulta, E assim que, no de- correr de toda a nossa vida, nés nos propomos o objetivo de adquirir conhecimento. As vezes buscamos o conhecimento pela simples razio de que gostamos de aprender, As vezes somos exteriormente pressiona- dos a adquirir conhecimento; ocorre até mesmo, de vez em quando, de nos sentirmos como simples receptéculos dentro dos quais os outros des- pejam continuamence montes de informacao, Temos o dever de conhe- cer 0 teorema de Pitdgoras, de saber o que € um modificador pendente, de conhecer virios fatos da histéria do mundo, a teoria cinética do calor, a teoria atémica da matéria e assim por diante, Muitos conhecimentos nos sio transmitidos na escola, no trabalho em casa. Hé muitas coisas em que acreditamos, ¢ que até conhece- mos, com base na auroridade de outros. Nao obstante, adquirimos al- guns conhecimentos por nds mesmos, independentemente do teste- munho alheio. A experiéncia pode ter nos ensinado, por exemplo, qual © melhor caminho para chegar do trabalho até em casa, e muita gente conhece por experiéncia pessoal qual é a sensagio de uma dor de cabe- 2. Quer 0 conhecimento seja transmitido por outra pessoa, quer seja adquirido diretamente, atribuimos um valor & sua passe: esse valor in- clui, por exemplo, o valor que tem para nos fazer passar nos exames, 0 valor que tem para nos ajudar a chegar em casa, o valor que decorre do interesse que tem para nds € até mesmo o seu valor intrinseco. Como ¢ conhecimento tem valor para nés, podemos ¢ muitas ve- zes temos até o dever de adotar uma postura critica perante a sua aqui- sigdo. Sem deixar de lado a sensatez, devemos assumir a maxima res- ponsabilidade pelas nossas crengas ¢, por conseguinte, avaliar cuidado- samente os testemunhos das outras pessoas sempre que possivel. Exce- to quando se trata de informaces incompreensiveis, temos 0 costume de romar as crencas que aceitamos inicialmente s6 por ouvir dizer € corrobori-las através de crengas accitas com base em nossa propria per- cepsio e raciocini Quando recebemos uma informagao de outra pessoa, freqiiente- mente perguntamos: “Acaso esta pessoa realmente tem condigées de A EPISTEMOLOGIA: UM PRIMEIRO EXAME | 5 saber 0 que esté falando2” E evidente que a maioria das pessoas jé foi capaz de detectar alguns erros em sua educagao. As veves, por exemplo, ainda ouvimos, mesmo de professores, a falsa alegacao de que, antes de Colombo, todos pensavam que a Terra era plana. Podemos afirmar com certa seguranca que nio hd erro em boa parte das informag6es que ou- vimos das fontes de autoridade. Os etros que ocasionalmente percebe- mos, porém, nos movem naturalmente « perguntar como saber se as informagées obtidas pelo tesemunho de outras pessoas so corretas. Esses erros nos levam também a querer saber por nés mesmos qual tes- temunho aceitar ¢ qual rejeitar. Esta tltima pergunta ndo tem uma res- posta simples. Esse questionamento das fontes de informagéo revela uma neces- sidade de elucidacio das condig6es que definem o conhecimento. Para nos perguntarmos se certas pessoas realmente sabem 0 que dizem, te- mos de saber 0 que ¢ necessirio em geral para saber alguma coisa, € nio para meramente crer que se sabe. Tipicamente, os filésofos inves- tigam a natureza do conhecimento em gerale se perguntam o que é ne- cessdrio para que uma pessoa realmente saiba que algo é verdadeiro ¢ nio falso. A teoria do conhecimento busca langar luz sobre essas ques- tes gerais acerca do conhecimento. valor do estudo filoséfico do conhecimento deriva, em parte, do valor que tem a propria posse do conhecimento. De diversas manci- ras, a posse de varias espécies de conhecimento € preciosa, e € ruim estar enganado acerca de assuntos importantes. Conseqiientemente, tenta- mos adquirir conhecimentos verdadeiros ¢ evitar crer em relatos falsos, pelo menos no que diz respeito a assuntos significativos, como a saiide ca felicidade. E assim que cada qual se vé diante da tarefa de separar a imensa quantidade de informagées com que se defronta todos os dias a fim de accitar o verdadeiro e rejeitar 0 falso. Sob este aspecto, a vida intelectual ¢ a vida pritica so excepcionalmente complexas. Dada a importincia da aquisigio de informasées corretas ¢ de evi- tar as crengas falsas, precisamos de algumas diretrizes que nos permi- tam distinguir a verdade do erro. Os filésofos estudiosos do conheci mento procuram identificar essas diretrizes ¢ formuld-las de maneira geral. Uma das diretrizes mais elementares poderia afirmar que nossa confianga numa dada fonte de informagéo deve variar imensamente GIA TEORIA DO CONHECIMENTO de acordo com o ntimero de vezes em que constatamos que ela estava errada. Quanto mais erros encontrarmos num determinado jornal, por exemplo, tanto menos devemos confiar nas novas reportagens pu- blicadas nesse jornal. Nosso objetivo primeiro ¢ encontrar a verdade (as verdades importantes) sem cair em erro. Para buscar judiciosamente a verdade, porém, precisamos de princfpios que nos indiquem quando devemos aceitar algo como verdadeiro. Os filésofos chamam a teoria do conhecimento de “epistemolo- gia” — dos antigos termos gregos “episteme” (conhecimento) ¢ “logos” (teoria ou explicagao). Em sua caracterizacao mais ampla, a epistemo- logia € 0 estudo filoséfico da natureza, das fontes ¢ dos limites do co- nhecimento. O adjetivo “epistemolégico” se aplica a tudo quanto en- volva tal estudo do conhecimento; significa “relative 4 tcoria do co- nhecimento”. O adjetivo ‘epistémico” é préximo dele e significa “rela- tivo a0 conhecimento”. E claro que o conhecimento nio é idéntico a uma teoria do conhecimento, assim como a mente nao é idéntica a uma teoria da mente, ou seja, a uma psicologia. Areflexao filoséfica sobre as condig6es ¢ as fontes do conhecimen- to remonta pelo menos aos antigos fil6sofos gregos Platio (c. 427-c. 347 a.C.) e Aristételes (384-322 a.C.). O Teeteto de Platao € os Segur- dos analiticos de Aristételes, mais do que quaisquer Outros escritos, pre- pararam o caminho para a epistemologia, na medida em que delimita- ram 0 conceito ¢ a estrutura do conhecimento humano. No Teeteto, por exemplo, vemos Sécrates, a figura central dos escritos de Platio, a discutir com alguns amigos sobre como certos mestres reputados co- nheciam as coisas nas quais se distinguiam como especialistas. Os ami- gos lhe perguntam qual é a caracteristica geral que distingue aqueles que realmente sabem, como os mestres, daqueles que ainda nio sabem mas estao em vias de adquirir o conhecimento. Essas obras antigas ain- da influenciam, direta ¢ indiretamente, boa parte das indagagées filo- séficas acerca do conhecimento humano. Acepistemologia nao existe somente na tradicao filoséfica ociden- tal. A filosofia indiana (hindu), por exemplo, trata extensivamente de questées de légica e epistemologia semelhantes a muitos dos tépicos tratados pela filosofia européia e americana cldssica e contemporinea. + fil6sofos indianos dedicaram uma atengdo consideravel ao proble- A EPISTEMOLOGIA: UM PRIMEIRO EXAME | 7 ma de como reunir ¢ avaliar dados indicativos aos problemas do co- nhecimento perceptivo e ao papel do raciocinio no conhecimento, en- tre muitas outras coisas. Perguntas fundamentais a respeito da natureza do conhecimento tendem a surgir em praticamente todas as culturas. ‘Afinal de contas, todas as pessoas tém algo a ganhar com distinguir a verdade do erto, a sabedoria da nescidade € © caminho do conheci- mento do caminho da ignorancia. ‘As diversas culturas podem lidar de maneira diversa com as quest6es filosdficas acerca do conhecimento. Algumas culturas, por exemplo, sa- lientam a natureza social do conhecimento e sublinham a importancia das autoridades cientificas ou religiosas, dos eruditos, dos comandantes politicos ¢ militares ou de outras pessoas como fontes de conhecimen- to, Outras culturas encaram 0 individuo como uma figura solitéria que passa por uma peneira todos os dados a que tem acesso (quer pelo tes- temunho de outros, quer pela experiéncia direta) ¢ decide quais deve aceitar e quais deve rejeitar. Alguns criticos das tradigGes filoséficas oci- dentais acusaram-nas de atribuir demasiada importincia ao individuo como um conhecedor solitério. Essa acusagao fez com que, em épocas recentes, se desse uma atengdo cada vez maior aos aspectos sociais do co- nhecimento, tema a ser discutido no Capitulo 6. Se houve nesse ponto um desequilibrio na histéria da epistemologia ocidental, ele provavel- mente seré corrigido em certa medida pela epistemologia contempora- nea, que retine contribuigdes-vindas de meios intelectuais e culturais di- versos. A epistemologia recente recebeu também importantes contri- buigoes de fildsofas ferinistas. Nas secoes seguintes, voltaremos a falar desses desenvolvimentos recentes da epistemologia. ALGUMAS DUVIDAS SOBRE O CONHECIMENTO ‘Alem de definir as condigées eas fontes de conhecimento, os epis- temélogos discutem a medida do conhecimento humano. Perguntam- se até onde esse conhecimento pode chegar. As duas posicoes extremas setiam as seguintes: 1. Os seres humanos podem conhecer, pelo menos em principio, todas as verdades sobre a realidade. B] A TEORIA DO CONHECIMENTO 2. Os seres humanos nao podem conhecer nada (ou pelo menos nao conhecem na pratica), Muitos filésofos chegam a uma posigao intermediatia entre esses dois extremos. Em especifico, muitos rejeitam a posigio I pelo fato de os seres humanos serem conhecedores finitos. Nosso conhecimento pa- rece ter limites. Assim como existem muitas coisas que um cao, por exemplo, nao pode conhecer nem compreender, assim também exis- tem provavelmente muitas coisas que estao além da apreensao cogniti- va dos seres humanos. A teoria da evolucdo ¢ algumas das grandes reli- gides concordam em apoiar a tese das limitagdes cognitivas do ser hu- mano, justificando-se pelo fato de estes serem criaturas finitas — muito embora discordem quanto a explicacdo dessa finitude. ‘A maioria dos filésofos, mas nao todos, rejeita a opiniao 2, que é a dos céticos. Muitos filésofos consideram dbvio que nds sabemos. pelo menos certas coisas, mesmo que esse conhecimento se refira tao- somente a experiéncias pessoais ou aos objetos fisicos com que temos um contato cotidiano, Outros, porém, afirmaram que na realidade nao conhecemos absolutamente nada. Esses fildsofos admitem que as pessoas em geral confiam em que tém algum conhecimento, mas eles mesmos insistem em que nossos casos aparentes dé conhecimento nio passam de ilus6es. A posigao cética mais estrita, de que os seres huma- nos ndo podem ter (e nao que simplesmente ndo tém) conhecimento, advém tipicamente de uma crenga de que as condigdes do conhecimen- to sao tdo rigorosas que nio podemos atendé-las. Certas pessoas sao naturalmente inclinadas a pensar que as condi- g6es de conhecimento sao muito rigorosas. Isso ocorre especialmente quando essas pessoas querem dar énfase a distingao entre 0 conheci- mento “propriamente dito” (um conhecimento cientifico sobre a reali- dade do mundo, digamos, 0 qual pode parecer muito raro) € a mera opiniao (a mera opinio, digamos, sobre a eficacia das novas dietas ali- mentares, opinido essa que parece existir comumente na mente das pessoas); ou quando refletem muito sobre a vulnerabilidade da maior parte das nossas mais confiantes alegagdes de conhecimento, De qual- quer modo, é perturbador perceber que as crengas mais firmes de uma pessoa podem de repente revelar-se completamente erréneas. AEDISTEMOLOGIA: UM PRIMEIRO EXAME | 9 Pense numa pessoa que viveu hd dois séculos ¢ que estivesse consi- derando a possibilidade de comunicar-se quase instantancamente com um amigo situado a dois mil quilémetros de distincia. Um cavalheiro do século XVIII provavelmente diria que sabe, com a mesma seguran- ga com que conhece as coisas que 0 rodeiam, que tal comunicagao a distancia é impossivel. E claro que nés sabemos que ele esté errado. Ele néo pode saber que tal comunicagio ¢ imposstvel, pois nés mesmos jé nos comunicamos desse modo virias vezes. Esse conhecimento, que para nds no tem nada de especial, era incompreensivel para nossos antepassados, Eles afirmavam com seguranga que sabiam certas coisas que nés, hoje, sabemos nao ser verdadeiras. Tinham o mais elevado grau de confianca, mas nao tinham 0 conhecimento verdadeiro. A par- tir de casos como esse, certas pessoas sentem-se tentadas a concluir que as condicées para que ocorra o verdadeiro conhecimento sio extrema- mente rigorosas e dificeis de ser atendidas. Certos fildsofos, depois de refletir sobre consideragdes como essas, concluem de fato que as condigdes do conhecimento so rigorosissi- mas. René Descartes (1596-1650), por exemplo, chegou & conclusao de que boa parte das coisas que havia aprendido através da educagéo formal, e que aceitara como conhecimentos certos, revelaram-se falsas depois de submetidas a um exame atento. Terminou por propor algo semelhante ao que chamamos de certeza como condicéo para o conhe- cimento filoséfico: em particular, a certeza entendida como indubita- bilidade, a auséncia de qualquer davida possivel acerca da veracidade de uma afirmagao. Existe um outro tipo de certeza que exige a infalibili- dade, a auséncia de qualquer possbilidade real de erro, Parece que so muito poucas as proposigSes ~ se é que existem — que podem apresen- tar 0 tipo de certeza exigido por alguns filésofos. Infelizmente, propo- sig6es aparentemente invulnerdveis, como “eu penso” ou “eu duvido’, so raras ¢ dificeis de encontrar. Se nosso cavalheiro setecentista considerasse cuidadosamente o as- sunto, teria de admitir que nao tem certeza de que a comunicagio ins- tantanea a distancia ¢ imposstvel. Néo teria uma nogio definida de como tal coisa seria possivel, mas provavelmente seria obrigado a ad- mitir abstratamente a possibilidade de uma tal comunicacéo. Talvez esse fato mostre que ele na verdade nao sabia que é impossivel falar 10 A TEORIA DO CONHECIMENTO instantancamente com scu amigo distante. Como ele no atendeu & condiggo da certeza, no tinha conhecimento — tudo isso se. certeza é de fato uma condicao para 0 conhecimento. A maioria dos epistemélogos contemporaneos rejeitou a exigén- cia de certeza como pré-condicio para o conhecimento. Nés podemos saber ou conhecer certas coisas sem ter certeza a respeito delas, ou seja, sem indubitabilidade nem infalibilidade. Nosso cavalheiro setecentista sabia, como nés sabemos, que nao ocorrem relampagos num céu per- feitamente claro ¢ aberto. Nés sabemos disso, mesmo admitindo que a proposigo no é nem indubitdvel nem infalivel. Sabemos disso mes- ‘mo sem ter certeza disso, Sob esse ponto de vista, a certeza nao parece set um pré-requisito para o conhecimento. Em capitulos posteriores examinaremos as condiges que definem © conhecimento. Por enquanto, basta-nos observar que a afitmagao de condigdes demasiado rigorosas para o conhecimento ~ como a exigén- cia de certeza, por exemplo — pode conduzir ao ponto de vista cético, segundo qual o conhecimento nio existe. O estabelecimento de pa- drdes excessivamente elevados para 0 conhecimento pode levar & opi- niio de que nés néo temos conhecimento algum. Isso representaria 0 que alguns chamaram de uma vitéria baixa do ceticismo mediante uma redefinicao elevada do que é 0 conhecimento. A posicao filoséfica se- gundo a qual o ser humano nao pode ter conhecimento, ou pelo me- nos néo 0 tem na pritica, é chamada ceticismo. Esse termo nos é co- nhecido de diversos contextos nao filos6ficos. Lemos numa recente manchete de jornal: “China afirma concor- dar com proibigio de testes nucleares; ceticismo dos BUA” (Chicago Tribune, 7 jun. 1996). Nesse caso, 0 termo “ceticismo” significa que os EUA tém diividas de que a China realmente venha a aderir ao trata- do de proibicao de testes nucleares. Jé na filosofia, 0 cético nao se limita a ter algumas diividas acerca da possibilidade de o ser humano adquirir conhecimento. O cético completo afirma que 0 homem nao tem co- nhecimento algum. £ claro que, se 0 cético afirmasse saber que ninguém tem conhecimento, correria o isco de autocontradizer-se. $6 um eé- tico extremamente descuidado afirmaria saber, por exemplo, que o conhecimento exige certeza, saber que 0 set humano nunca chega & certeza absoluta e saber, portanto, que nés nao podemos ter conheci ‘A EPISTEMOLOGIA: UM PRIMELRO EXAME | U1 mento, Em suma, 0s céticos precisam tomar muito cuidado com 0 mo- do pelo qual apresentam seu ceticismo, a fim de nao softer a ameaca des- sa autocontradigao. Tradicionalmente, o ceticismo tem sido uma imporcante fonte de motivagao para os epistemélogos. No decorrer de toda a histéria da epistemologia ocidental, muitos filésofos procuraram refutar o ponto de vista cético, demonstrando que nés realmente possuimos algum conhecimento, Para provar que possuimos um conhecimento propria- mente dito, procuraram elucidar as condigées que definem 0 conhe- cimento humano e as principais fontes desse conhecimento, e esforca- ram-se por demonstrar que nés podemos atender as condig6es do co- nhecimento, pelo menos com os recursos cognitivos a que temos acesso. O tema do ceticismo estaré presente em muitas discusses no decorrer do livro, especialmente no Capitulo 8. O ceticismo assume varias formas. O ceticismo total nega a existén- cia de qualquer conhecimento humano. O ceticismo parcial s6 nega a existéncia de algum tipo ou alguns tipos particulares de conhecimento. Cartos filésofos, por exemplo, negam a possibilidade de conhecer que Deus existe, mas no negam outros tipos de conhecimento, como © co- nhecimento de que existem os objetos fisicos que nos rodeiam. Outtos negam 0 conhecimento cientifico teérico, como 0 conhecimento da es- trutura do dtomo, ao mesmo tempo em que defendem a afirmacao de que podemos conhecer nossos pensamentos ¢ sentimentos. Os céticos parciais afirmam encontrar defeitos num tipo particular de conhecimen- to, € no no conhecimento em geral. Para entender essas afirmacées, te- mos de compreender algumas distingoes entre os diversos tipos de co- nhecimento, como o conhecimento cientifico e o conhecimento mate- mitico, Logo voltaremos a falar dessas distingSes, O ceticismo tem suas rafzes hist6ricas na filosofia grega. Um tipo de ceticismo remonta a Sécrates (469-399 a.C.); outro tipo vem de Pirro de Elis (c. 365-c. 270 a.C.). O ceticismo socrético é chamado de “ceticismo académico” por ter florescido na Academia de Platio de- pois da morte de Sécrates. O Oriculo de Delfos (uma espécie de adi- vinho local) disse a Sdcrates que ele era o mais sébio de todos 0s ho- ‘mens porque sabia que nio tinha conhecimento, ao passo que todos os demais homens acreditavam-se conhecedores de coisas que na realida- 12 | ATEORIA DO CONHECIMENTO de nao conheciam. Os céticos académicos desenvolvem essa proposi- fo € transformam-na numa doutrina filosdfica: a tinica coisa que um ser humano pode saber é que na verdade nao sabe nada além dessa dou- trina, Trata-se de uma rigorosa negagio da existéncia de qualquer co- nhecimento humano que va além do conhecimento de que na verdade no sabemos mais nada. O ceticismo pirroniano, por outro lado, nao faz nenhuma afirma- Gao t4o audaz (ou, como diriam alguns, t40 dogmatica) quanto a dos céticos académicos. E um tipo de ceticismo que da énfase & suspensio do juizo sobre a maior parte dos assuntos. Em vez de se enfronhar nas discussdes intelectuais aparentemente incermindveis dos filésofos, os pirronianos recomendam que encontremos argumentos pré ¢ contra toda e qualquer posigio, e assim nos recusemos a aceitar qualquer con- clusdo. Segundo os pirronianos, o reconhecimento da suspensto do juizo como a tinica atitude racional a se tomar nos conduz a um esta- do de calma ou quietude, libertando-nos dos debates acalorados sobre questdes controversas. Essa quietude, segundo os mesmos filésofos, da origem a uma melhor qualidade de vida, se no mesmo a uma sensa- 40 de iluminagio ou pleno esclarecimento. Observamos j4 que 4 maioria dos epistemélogos nio chega 20 extremo do ceticismo total. Muitos procuram nao situar 0 conheci- mento além do nosso alcance e esforgam-se por nao desesperar da bus- cade conhecimento; tentam, antes, tornar mais seguras muitas das nos- sas afirmagdes comuns de conhecimento mediante a explicagao de 0 que é 0 conhecimento. Procuram explicar em que consiste 0 conheci- mento ¢ como 0 adquirimos. Pode acontecer de um epistemélogo fi- cat muito impressionado, por exemplo, com o poder que a ciéncia tem deexpandir o nosso conhecimento sobre o mundo, e passar entao a bus- car uma explicagao de como a ciéncia aumenta o conhecimento. Embora muitos episteméloges se oponham ao ceticismo total, nio devemos simplesmente deixar de pensar nas abjegées céticas, mesmo que acreditemos possuir uma quantidade substancial de conhecimen- to. Certas objegdes c¢ticas ao conhecimento sio instrutivas, pois opdem dificuldades pelo menos is nossas explicagdes mais superficiais e ing@- ‘nuas de como o conhecimento surge. Um desses problemas diz respei- £0, por exemplo, ao nosso cavalheiro setecentista, que tinha grande A EPISTEMOLOGIA: UM PRIMEIRO EXAME | 13 confianga em sua crenga mas, como depois se demonstrou, nao pos- suia um conhecimento verdadeiro. Uma das opgdes, da qual j4 falamos, consiste em tornarmo-nos pessimistas quanto a possibilidade de se obter qualquer espécie de co- nhecimento. Mas existem também outras opgies, opgies que preservam © otimismo quanto A aquisi¢ao de conhecimento ao mesmo tempo em que reconhecem a falibilidade (a suscetibilidade ao erro) do nosso cava- Iheiro setecentista e, do mesmo modo, de nds mesmos. Os epistemé- logos avaliam e pesam detalhadamente essas opses. Sob esse aspecto, 05 céticos nos motivam a esclarecer 0 que se espera de uma explicagéo ais sofisticada do conhecimento humano. Sem as objegses céticas, tal- ver nos conforméssemos com uma compreensao superficial do nosso papel de agentes da aquisisao do conhecimento. Os eéticos propdem algumas questdes dificeis de responder e, assim, levaram os fildsofos a rever de modo significativo suas idéias acerca dos métodos aceitaveis de aquisicao de conhecimento. Veremos mais adiante, no Capitulo 8, como a preocupacao cética com a circularidade da justificagao levanta um problema serifssimo, senao fatal, para o otimismo quanto & possibi- lidade de conhecer. As questdes dos céticos acerca da verdade € da evidéncia nos dio também um outro beneficio. Promovem uma medida saudavel de hu- mildade epistémica, Tanto 05 filésofos quanto 0s nao-filésofos sofrem a tentagio de afirmar ter certeza de coisas que na realidade nao sio cer- tas. Em outras palavras, muitos deixam de reconhecer a magnitude da nossa falibilidade como conhecedores. Por isso, nao se dispoem a ad- mitir a dtivida € 0 possivel erro em matérias suscetiveis de duivida e erto. A recusa de admitir a possibilidade de se estar errado em questées nas quais de fato € possivel incorter-se em erro é chamada dogmatismo. A pessoa que se recusa a admitir a possibilidade de estar errada numa certa crenga —crenga que realmente tem a possibilidade de estar errada — tem uma atitude dogmicica em relacio a essa crenga ou uma aceita- a0 dogmitica dessa crenga. Muitos céticos rentam eliminar 0 dogma- tismo e, considerada a falibilidade humana, esse objetivo em geral é louvavel. Como jé dissemos, a maioria dos epistemdlogos se mantém a meio caminho entre a excessiva minimizagao da nossa capacidade de conhecer, por um lado, e, por outro, a excessiva minimizacao das nos- 14 | A TEORIA DO CONHECIMENTO sas falhas de conhecimento. Os céticos colaboram para nos mantermos afastados desse ultimo escolho, muito embora nos levem as vezes para perto demais do primeiro. Certas pessoas parecem alimentar preocupagées céticas com base em sua aceitago do relativismo no que diz respeito 4 verdade. A liga- ao entre 0 ceticismo ¢ 0 relativismo merece ser elucidada. O relativis- ta afirma que a verdade de uma afirmagao s6 pode ser considerada em relagao a um conhecedor determinado (ou seja, a alguém que ou acei- ta ou rejeita essa afirmagio), ou talvez a um grupo de conhecedores. Ele nega a existéncia de uma verdade adsoluta (ou seja, uma verdade que nao varie de pessoa para pessoa ou de grupo para grupo), pelo me- nos no que diz respeito a determinados assuntos. Os temas teol6gicos sdo os exemplos mais conhecidos, pois alguns afirmam que 0 enuncia- do “Deus existe” ¢ verdadciro para os crentes ¢ falso para os descrentes. Essa afirmago, quer seja verdadeira, quer falsa, é relativisca. Certas pessoas sio favordveis a essa posi¢ao por considerd-la um meio de evi- tar conflitos sensiveis entre os crentes ¢ os descrentes, mas néo precisa- mos explicar aqui por que certas pessoas se tornam relativistas. Talvez nao esteja ainda perfeitamente claro 0 conceito de relativi- dade da verdade. Um exemplo tirado de um contexto nio epistémico pode servir para elucidar as coisas. Eis um bom exemplo de uma obri- gasio relativa: a obrigacio (vigente em certos lugares) de dirigir do lado direito da rua. Em relagao as leis norte-americanas, pot exemplo, 0 cidadao tem a obrigacao de dirigir do lado direito. Fm relacao as leis inglesas, porém, tem a obrigacéo de dirigir do lado esquerdo. Nesse exemplo, a obrigacao de dirigir dum ou doutro lado sé existe em rela- ‘cdo a um determinado cédigo juridico, sendo que os cédigos juridicos podem variar de acordo com o lugar. A obrigacéo ¢ apenas relativa, pois, fora desses sistemas juridicos, nao existe nenhuma obrigacao ob- jetiva ou absoluta de dirigir deste ou daquele lado. Em contraposigao a isso, muita gente diria que a obrigacao de nao submeter bebés 2 tortura, por exempllo, nao é relativa. Pode até ser que essa obrigacdo exista em relzcdo a um determinado cédigo juridico que profba os maus-tratos a bebés, mas é de se pensar que ela tem tam- bém uma existéncia objetiva que vai além de todo e qualquer cédigo juridico. De qualquer modo, muitos consideram-na um dever objeti- A EPISTEMOLOGIA: UM PRIMEIRO EXAME | 15. vo, que obriga moralmente o ser humano independentemente das im- posigdes juridicas. Tal alegagao de objetividade ¢ feita pelos chamados “tealistas morais”. Algumas de nossas leis parecem codificar certas obri- gacdes preexistentes ¢ objetivas como essa, tais como as obrigacées de nao matar e nfo torturar. Outras leis, porém, sao evidentemente rela~ tivas e tém a intengao de criar uma determinada obrigagao. As obriga- des criadas pelas instituigées juridicas s6 existem em telagio a essas instituigées. As obrigagdes preexistentes que tentamos codificar atra- vés das leis so possivelmente nao relativas, ou objetivas. Embora no haja controvérsia alguma em tomo do faro de que cerras obrigacies so relativas aos cédigos juridicos, ainda é muito controversa a questao de saber se a verdade é sempre relativa as crencas de um individuo ou de uma cultura, O teelativista pode se sentir tentado a encarar com ceticismo a pos- sibilidade do conhecimento humano: diria que 0 conhecimento ¢ im- possivel porque a verdade ¢ relativa. Afirmaria, por exemplo, que nao se pode saber que matar bebés é errado, pois ¢ um ato que 86 é errado em relagdo & sua cultura ¢ pode ser aceitével em outras culturas. Uma alegagio mais plausivel seria a de que nao se pode saber com certeza que 0 aborto ¢ errado (nem certo) porque as pessoas tém, em relacao a ele, atitudes tao fundamentalmente diversas. Essa linha de argumenta- ‘sao a favor do relativismo é chamada de “argumento da discordincia”. O relativismo, porém, nao conduz naturalmente ao ceticismo. A ver- dade é que conduz na diregio oposta. Sea verdade ¢ relativa as suas prdprias crengas, por exemplo, sua possibilidade de adquirir conhecimento ¢ muito maior do que se a ver- dade fosse objetiva e, portanto, dificil de conhecer. O relativismo tor- naa verdade muito fécil de conhecer e, portanto, torna facil o préprio conhecimento. Uma das conseqiiéncias do relativismo é que aquilo que eu sei ser verdadeiro, voct pode saber ser falso, porque talvez seja ver- dadeiro para mim e falso para vocé. Dado o relativismo, 0 conheci- mento pode variar drasticamente de pessoa para pessoa (ou de cultura para cultura); mas mesmo assim ainda haveré conhecimento, prova- velmente em abundancia. E claro que o relativista poderia fixar num nivel muito elevado outros critérios de conhecimento (os que dizem respeito & justificagéo, por exemplo), mas isso seria atipico. 16 | ATFORIA DO CONHECIMENTO © ceticismo Mloresce quando a verdade ¢ encarada como algo to- talmente objetivo. Certos filésofos tragaram com tanta forsa a distin- do entre a aparéncia que as coisas assumem para nés (a aparéncia, por exemplo, de que o lépis parcialmente submerso na gua esta flexiona- do) e a realidade objetiva das coisas (0 lapis na verdade é reto) que de- sesperaram da nossa capacidade de conhecer como as coisas sio objeti- vamente. Outros desesperam tao-somente da nossa capacidade de sa- ber se sabemoscomo as coisas so objecivamente, mas admivem que po- demos adquitir algum conhecimento da verdade objetiva. Certos filésofos apéiam o ceticismo somente na medida em que entre a verdade postulam a existéncia de uma separacio significati (cu o mundo objetivo) ¢ nossa capacidade cognitiva. Para salientar essa separagio, pode-se postular a verdade como inatingivel por ser in- dependente da mente (ou objetiva) ou em fungio de uma limitagio severa da nossa capacidade cognitiva (ou, ainda, por ambos os moti- vos). O cético diria que, em nossa busca de objetividade, tudo em que podemos nos apoiar ¢ a nossa limitada experiéncia; ¢ que a verdade, a realidade objetiva, est sempre além dessa experiéncia. Além disso, cle pode sublinhar a incémoda circularidade de todas as provas da confia- bilidade de nossas fontes de conhecimento (a percepcao, a meméria¢ a introspecco, por exemplo), afirmando que nao podemos recorrer a ‘outra coisa sendo a essas mesmas fontes para provat a confiabilidade delas (ou seja, a qualidade que elas tém de conduzir & verdade) de ma- neira no circular. (Este problema sera elucidado no Capitulo 8.) No geral, os fildsofos distinguem dois tipos de ceticismo: o ceticis- mo quanto ao conhecimento € 0 ceticismo quanto a justificagdo. O ceti- cismo irrestrito quanto a0 conhecimento afirma que ninguém sabe nada. O ceticismo irrestrito quanto & justificagao assevera que ninguém pode justificar (ou seja, ter a garantia de) suas crengas. Segundo o ceti- cismo quanto ao conhecimento, nds as vezes temos justificativa para cret em algo, mas nossas crengas, mesmo as justificadas, nunca se equi- param a um conhecimento verdadeiro — talvez porque o conhecimen- to, ao contririo da justificagao, € imune 4 ameaga representada pela ‘obsengéo de novas informagdes por parte do conhecedor. Por exem- plo, ances da genética moderna, muitos se sentiriam justificados em crer, com base nos indicios que se Ihes apresentavam, que as girafas A EPISTEMOLOGIA: UM PRIMEIRO EXAME | 17 tém 0 pescogo comprido porque seus antepassados esticavam o pesco- oa fim de abocanhar as tinicas folhas entio disponiveis, as das arvo- res, Essa crenga justificada foi destruida pela obtengio de novas infor- mages acerca do mecanismo genético intemo da transmissibilidade das caracteristicas das girafas. O conhecimento, por outro lado, ¢ imu- nea essa destruigio ~ ou invelidagio — provocada por novas informa- ges. O ceticismo quanto 4 justificacéo afirma que nds nao temos, € mesmo que nao podemos ter, motivos legitimos para adotar esta ou aquela crenga. No Capitulo 8, trataremos mais detalhadamente do ce- ticismo, Por enquanto, o que precisamos elucidar é a distingio entre conhecimento ¢ crenga justificada. ‘A DEFINICAO TRADICIONAL DE CONHECIMENTO Na tradigio filoséfica ocidental, a epistemologia ofereceu até hé bem pouco tempo uma definicdo principal de conhecimento na qual este € analisado em trés componentes essenciais: justficacdo, verdade € renga. Segundo essa andlise, o conhecimento propesitivo é, por defi- nigdo, a crenga verdadeira ¢ justificada. Essa definigo é chamada and- lise tripartite do comhecimentoe andlise tradicional, Muitos fildsofos en- contram a inspiracio dessa andlise no Teetero de Platéo. Os epistemé- logos, em geral, tratam do conbecimento propositive. 0 conhecimento de que algo ¢ de tal jeito, em contraposic’o ao conhecimento de como fazer algo. Considere, por exemplo, a diferenga que existe entre saber que uma bicicleta se move de acordo com certas leis do movimento € saber andar de bicicleta. E evidente que esta segunda espécie de conhe- cimenro nao tema primeira como um de seus pré-requisitos. © contetido do conhecimento propositive pode ser expresso por uma proposicio, ou seja, pelo significado de uma oracio declarativa. (Nao obstante, as pessoas que falam linguas diferentes podem afirmar a mesma proposicao: “It is raining” e “Esté chovendo” significam a mesma coisa e, logo, expressam a mesma proposicao.) Por outro lado, © conhecimento de como fazer algo é uma habilidade ou competéncia nna execugio de uma certa tarefa, Nao examinaremos esse conhecimen- to competente, que mereceria todo um livro sé para si. A anilise tradi- 18 | ATEORIA DO CONHECIMENTO cional do conhecimento propositive implica que 0 conhecimento é uma espécie de crenga. Se vocé no cté que Madagascar fica no oceano Indico, entéo nao sabe que Madagascar fica no Oceano Indico. Assim, como 3s vezes dizem os fildsofos, crer é uma condigdo logicamente neces- sdria para o saber. Seria realmente muito estranho que vocé soubesse algo mas negasse crer no que supostamente sabe. Parece que a crenga € um requisito para o conhecimento propositivo. Accrenca nao é suficiente para se ter conhecimento. Evidentemen- te, muitas crengas h4 que nao representam conhecimento algum, pois sGo obviamente falsas. Certas pessoas, por exemplo, ainda créem que a terra é plana; nos Estados Unidos, existe até mesmo uma associagio (que recolhe contribuigdes periddicas) de pessoas que créem nisso. Po- rém, essas pessoas nao sabem que a Terra € plana, pois 0 fato é que cla nio é, Para se saber algo, para se ter um conhecimento verdadeiro, € preciso que a crenca seja correta. E impossivel saber algo falso. Assim, a segunda condigao do conhecimento, identificada na anilise tripartite, € verdade. O conhecimemo nao € somente uma crenga, mas uma crenga verdadeira. ‘Accrenca verdadeira no é em si mesma suficiente para 0 conheci- mento. E evidente que muitas crengas verdadeiras nao se enquadram nessa categoria, Se vocé constituir espontaneamente a crenga de que 0 seu tio Hud, que mora longe, esté agora em pé, e essa crenca se revelar verdadeira, nem por isso vocé passou a saber que o tio Hud esté em pé agora. © que falta a essa crenga s30 razéies que a corroborem; ela se cons- tiuiu num capricho e nao dispée de nenhum respaldo. A crenga se re- velou verdadeira por coincidéncia, em relacio 4s informagées de que vocé dispunha. Isso porque, para que uma crenca verdadeira seja um conhecimento, ela precisa do que os fildsofos chamam justificacio, ga- rantia ou prova. (Certos filésofos atribuem 0 mesmo significado a es- ses trés termos.) Pela analise tripartite, a justificagdo é a terceira condigdo essencial do conhecimento. A justificaggo de uma crenga tem de incluir algu- ‘mas boas razées pelas quais a crenga é considerada verdadeira. Os fil6- sofos se perguntam quais podem ser essas boas razdes, mas a afirmacio de que uma crenga precisa de algum tipo de corroboragao para ser considerada um conhecimento ¢ largamente accita entre os filésofos. A EFISTEMOLOGIA: UM PRIMELRO EXAME | 19 Assim, as trés condigées essenciais do conhecimento sao crenga, verda- de e justificagao, eas trés juntas séo consideradas suficientes para 0 co- nhecimento. Nas tiltimas décadas, 0s filésofos descobriram que, na rea- lidade, esas trés condig6es nao sio suficientes; 0 conhecimento tem ainda outra condigio. Voltaremos a essa questo no Capitulo 5. Segun- do a andlise tripartite tradicional, porém, 0 conhecimento é a crenga verdadeira e justificada. Se vocé tem bons motivos para corroborar a verdade da sua crenca, e essa mesma crenga é verdadeira fundamen- tase em razdes sélidas, entao, segundo a anilise tradicional, vocé tem conhecimento. A anilise tradicional do conhecimento também admite a existén- cia de uma crenga falsa, mas justificada. Com efeito, esse tipo de cren- 4 parece muito comum. No passado, era justificdvel que muitos cres- sem que a Terra é plana. A crenga deles era errada, como sabemos, mas, dadas as melhores informagées de que entao dispunham, tinham ra- 26es justificadas para sustentar essa crenga. Como a crenga era errénea, eles ndo sabiam que a Terra ¢ plana. Nesse caso, 0 fato de thes negar- mos a qualidade de conhecimento nio depée contra o cardter pessoal de cada um deles. Quando negamos que tinham conhecimento, nao estamos criticando-os nem culpando-os. Antes, estamos deixando cla- ro que a crenca deles cra errénca ¢ que as informagées de que dispu- nham no os conduziram & verdade, muito embora constituissem uma justificativa valida para suas crengas na época. As vezes, nés mesmos ‘nos encontramos em situagéo semelhante. Muito embora eles atendes- sem a condigao de crenga € & condicao de justificagao, nao arendiam & condicao de verdade para terem conhecimento. Veros agora que uma renga errdnea justificada nao constitui um conhecimento. (No Capi- tulo 9, voltaremos ao tema da justificacao ¢ do relativismo.) ‘As urés condigées essenciais do conhecimento motivaram ferre- nhas disputas filoséficas, algumas das quais serao examinadas nos capi- tulos seguintes. Poucos filésofos discordam de que a crenca é necessé- ria para o conhecimento, mas existem muitas divergéncias quanto 3 propria natureza da crenga. Além disso, diversos psicélogos do conhe- cimento entraram na refrega, apresentando suas pesquisas empiricas sobre os mecanismos cognitivos da crenga. No Capitulo 3, voltaremos a esse tema. Os filésofos em geral concordam em que a verdade € ne- 2D | A TEORIA DO CONHECIMENTO cessdria para o conhecimento, mas jé apresentaram diversas idéias con- traditérias acerca do que é necessério para que uma crenca seja verda- deira. No Capitulo 4 trataremos da verdade como condigio para 0 co- nhecimento. As tcorias da justificagéo epistémica constituem uma das 4reas mais importantes da epistemologia contemporinea, e sobre elas falaremos no Capitulo 5. CONHECIMENTO E EXPERIENCIA Um dos principais debates que se travam na epistemologia diz res- peito as fontes do conhecimento (ver o Capitulo 6) e trata da impor- tancia da experiéncia sensorial para a aquisigao de conhecimento. Mui- tos filésofos concordam em que boa parte do nosso conhecimeato é adquirida através da experiéncia sensorial. Amitide, para adquirir co- nhecimento sobre uma coisa, voct a vé, a ouve, a toca, a cheira ou sen- te seu gosto. E possivel, por exemplo, saber que existe um pé de lilas nas proximidades por sentir-lhe o perfume. Seré a experiéncia sensorial o tinico meio para a aquisicgdo de conhecimento? Ser4 possivel conhecer algo independentemente da experiéncia sensorial? Considere 0 seu conhecimento de que a soma.dos ngulos inter- nos de um triangulo euclidiano é 180 graus. Pode ser que esse conhe- cimento se relacione de algum modo com a experiéncia sensorial, tal- vez em virtude de termos obtido representagées perceptivas do tridn- gulo. Mas parece que nao dependemos da experiéncia sensorial para saber que a soma dos angulos internos de sodos os triangulos eucli- dianos é 180 graus. Esse conhecimento nao é derivado da investigagao empirica de muitos triangulos. Muito pelo contririo, parece basear-se tGo-somente no nosso conceit de o que € um triangulo euclidiano. Ou seja, parece set um conhecimento derivado da razdo ¢ nao da experién- cia. Portanto, certos conhecimentos podem nio ser dependentes da ex- periéncia sensorial, pelo menos nao do mesmo modo que o conheci- mento da existéncia proxima de um pé de lilases. Os epistemélogos possuem termos especiais para designar os dois tipos de conhecimento que acabamos de distinguir. O conhecimento que depende da experiéncia é chamado de conhecimento a posteriori. A SPISTEMOLOGIA: UM PRIMEIRO EXANE | 21 Para se lembrar desse termo, talvez Ihe convenha pensar que se trata de um conhecimento “posterior” a experiéncia, que vem “depois” dela, muito embora o termo nao tenha realmente um sentido temporal. O conhecimento que nio depende da experiéncia € chamado conheci- mento a priori, Esse conhecimento é “anterior” experiéncia no senti- do ldgico, muito embora nao seja necessariamente anterior no tempo. A diferenca entre 0 conhecimento a priorie o conhecimento a pasterio- rié uma diferenca da fungao da experiéncia sensivel para a justificagio das proposigées conhecidas. Dependemos da experiéncia para saber que todos os sinais de tran- sito que nos mandam parar séo vermelhos, mas nao dependemos dela do mesmo modo para saber que todos os sinais de “Pare” nos mandam pa- rar, Nao ha nada na simples idéia de um sinal de “Pare” que exija para clea cor vermelha. Tais sinais poderiam ser roxos, ou mesmo de qualquer outra cor. Para saber por experiéncia direta que todos os sinais de “Pare” so vermelhos, vocé teria de examinar um nimero suficiente de sinais para convencer-se de que essa é de fato a cor deles. E claro que isso exi- gitia muito tempo. Porém, na prépria idéia de um sinal de “Pare” esté implicita a nogao de que ele indica aos motoristas que devem parar. Por definigao, a funcao dos sinais de “Pare” € mandar os motoristas parar; € essa fungdo que os torna sinais de “Pare”. Se yocé encontrar um sinal de wansito que no tenha (ou, melhor ainda, que no possa ter) essa fungio, pode deduzir tranqiilamente que no é um sinal de “Pare”. Nio precisa examinar um grande ntimeto de sinais de “Pare”, constatar que todos indicam que os motoristas devem parar € depois concluir, a partir desse padrao recorrente, que todos os sinais de “Pare” tém essa mesma fungio. De certo modo, mesmo “antes” de qualquer estudo empirico desses sinais, vocé jé sabe que eles funcionam desse modo. Por outro lado, sem um estudo empirico, vocé jamais poderia saber que todos os sinais de “Pare” sio vermelhos. ‘Aafirmativa de que todos 0s sinais de “Pare” nos mandam parar € diferente da de que todos os sinais de “Pare” sio vermelhos. A primei- 1a afirmativa analitica, sendo uma verdade de definigio. Da propria definigao de um sinal de “Pare” decorre que todos eles de algum modo indicam a necessidade de parar. Um sinal de “Pare” ¢ téo-somente um 22| A TEORIA DO CONHECIMENTO sinal que nos manda parar. As verdades analiticas sao verdadeiras sim- plesmente pelo sentido de seus termos ou pela andlise de seus concei 10s, Outro exemplo é a afirmativa de que nenhum solteiro é casado. Nao ser casado faz parte da definicao de “solteiro”. Em contrapartida, a afirmativa de que todos os sinais de “Pare” sao vermelhos é uma pro- posicdo sintética, Nao ha nada no simples conceito de um sinal de “Pare” que indique que ele deva ser vermelho. E claro que tivemes mo- tivos para fazé-los dessa cor. O vermelho é uma boa cor para chamar a atengao, por exemplo. Mesmo assim, os sinais de “Pare” poderiam ser de outta cor. A afirmativa de que todos os sinais de “Pare” séo verme- Ihos nao deriva da simples anilise do conceito desse sinal. Antes, é uma sintese do conceito do sinal de “Pare” com o conceito da cor vermelha. Correlacionamos esses conceitos um com o outro de um modo que nio depende diretamente de suas definigées. Os filésofos se perguntam se todos 0s nossos conhecimentos @ priori so conhecimentos de proposigées analiticas. Parece claro que podemos conhecer uma proposicdo sintética a posteriori, desde que a nossa experiéncia indique que a sincese de conceitos que estamos con- siderando é correta. Sabemos por experiéncia, 4 posteriori, que os sinais de “Pare” so vermelhos. Mas as verdades analiticas podem ser conhe- cidas @ priori, independentemente da experiéncia. Sabemos a priori que todos os sinais de “Pare” sao sinais. Como as proposigées analiti- cas podem ser conhecidas « priori, nfo precisamos dar-lhes uma justi- ficativa a posteriori. Para convencer alguém de que todos os sinais de “Pare” so sinais, vocé jamais (¢ o que esperamos) sairia andando pela cidade. Imagine: “Veja, af esté mais um sinal de ‘Pare’, e veja sé — cle € um sinal, como todos os outros!” Vocé nao precisa fazer isso, pois o si- nal de “Pare” é por definicio um tipo particular de sinal. Assim, nés nunca tentamos demonstrar as verdades analiticas a posteriori. Podemos justificar dessa maneira algumas verdades sintéticas, do mesmo modo que podemos demonstrar certas verdades analiticas a priori. Resta ainda saber se existe alguma verdade sintética que possa ser justificada @ priori. Os mais recentes desenvolvimentos da flosofia da linguagem embaralharam um pouco a relagao estabelecida entre a dis- tingdo entre andlise e sintese, de um lado, ¢ a distingéo entre conheci mento a priori conhecimento a posteriori, de outro. (O tema dos pa- A EPISTEMOLOGIA: UM PRIMEIRO EXAME | 23 rigrafos seguintes é um pouco complexo, mas é importante para quem quer entender os trabalhos recentes sobre o « priori.) Alguns filésofos pensam que certas verdades sintéticas podem ser conhecidas, ¢ logo justificadas, a priori. As proposigdes contingentemente verdadeiras po- dem ser falsas; ou seja, se 0 mundo fosse um pouco diferente, elas se- riam falsas/Muitos fildsofos partem do pressuposto de que uma pro- posigao s6 pode ser conhecida a priori se for necessariamente verdadei- ra (isto é, se nao tiver possil idade de ser falsa); isso porque, se uma proposicao pode ser falsa, ela precisa da evidéncia da experiéncia sen- sorial para justificar-se. Segundo essa opiniao tradicional, as verdades contingentes no podem ser abjeto de um conhecimento a priori. Saul Kripke (1980) afirmou hé pouco tempo que certas proposi- goes contingentemente verdadeiras sio cognosciveis @ priori. Oferece cle 0 exemplo do conhccimento de que a barra Stem um metro de comprimento num determinado momento, sendo a barra $0 metro- padrao conservado em Paris. Se usarmos a barra S para “estabelecer a referéncia” do termo “um metro”, entio, segundo Kripke, podemos saber a priori que a barra Stem um metro de comprimento. A verdade de quea barra § tem um metto de comprimento nao € necesséria, mas contingente, pois ela poderia nao ter um metro de comprimento. Se fosse submetida a uma alta temperatura, por exemplo, seu comprimen- to mudaria, Parece plausivel, portanto, que certas verdades contingen- tes podem ser conhecidas a priori, ao contrério do que supuseram mui- tos filésofos. Essa questio motivou importantes discussées entre os fi- Iésofos contemporineos; alguns ainda defendem a tese de que nenhu- ma proposicao contingentemente verdadeira é cognoscivel a priori. Com telacéo ao exemplo do metro oferecido por Kripke, certos fi- l6sofos observaram que “um metro” pode ser (a) quer 0 nome do com- primento de S, qualquer que seja esse comprimento, (b) quer 0 nome de um comprimento particular, determinado por aquele que fala. Dada a opcio a, segundo esses mesmos fildsofos, a afirmativa de que S tem um metro de comprimento seria necessaria e cognoscivel a priori; dada a opcao 4, a mesma afirmativa seria contingente ¢ seu conhecimento 86 seria possivel a posteriori. Se esses filésofos estiverem com a razio, teremos de procurar em outra parte uma verdade sintética cognoscivel 4 priori. 24 | ATEORIA DO CONHECIMENTO Segundo alguns filésofos contemporineos, o exemplo de Kripke representa uma verdade sintética cognoscivel a priori. Immanuel Kant (1724-1804) afirmava que certas verdades sintéticas — como as da geo- maetria, por exemplo ~ sio dotadas de uma espécie de necessidade que nao pode ser derivada da experiéncia, de tal modo que podem set co- nhecidas @ priori. Segundo Kant, essas verdades sintéticas podem ser conhecidas fazendo-se uso tio-somente da tazao e do entendimento puros, independentemente de qualquer evidéncia fornecida pela per- cepgio sensorial. A doutrina kantiana das verdades sintéticas cognosci- veis a priori ainda gera controvérsias entre os fildsofos, especificamen- te no que diz respeito a proposigdes aparentemente sintéticas como “Nada pode ser totalmente verde € totalmente vermelho ao mesmo tempo” e “Uma linha reta é a distancia mais curta entre dois pontos”. Certos filésofos, seguindo a tradicéo de Kant, ainda sustentam a opi niio minoritéria de que as verdades da epistemologia, ¢ da filosofia em geral, sio verdades sintéticas necessérias € cognosciveis a priori. (Ver Pap, 1958, que nos dé um quadro geral das principais teses acerca da verdade sintética a priori, As distingdes entre 0 conhecimento a priori ¢ 0 conhecimento a posteriori, bem como entie as proposisdes analiticas e sintéticas, serio titeis para a compreensio de muito do que se dird daqui em diante. Além da questio de saber se existe alguma fonte de conhecimento que seja independente da experiéncia sensorial, existem muitas questées sobre o modo de operagao dessa prépria experiéncia e sobre proces- so pelo qual uma experiéncia pode levar a0 conhecimento. As pesqui- sas empiricas da psicologia cognitiva, dos estudos do cérebro e de ou- tos campos nos dao muitas informagées sobre como a experiéncia sensorial funciona (ou, as veues, deixa de funcionar). Uma das prinei- pais perguntas que os filésofos fazem é: como a sensagio nos leva a per- cepcio do ambiente circundante? Muitos temas filoséficos incluem-se nna categoria dos problemas de percepede. Outra fonte importante de conhecimento € a meméria, tema que apresenta muitas complicagées péprias. O zestemunho de outras pessoas é também uma fonte impor- tante, mas é evidente que nao pode ser objeto de uma confianga acriti- ca. No Capitulo 6, voltaremes a cratar desses assuntos. A EMISTEMOLOGIA, UM PRIMEIRO EXAME | 25 AS INTUICOES E A TEORIA Ja estamos de posse de alguns dos termos e distingdes que nos permitirio estudar as condigées, as fontese a medida do conhecimento humano, Vale agora chamar a aten¢io para um iiltimo tema introdu- trio que diz respeito 4 metodologia. Muitas teorias epistemoldgicas chamam em seu socorro as nossas intuigdes comuns acerca da nature- za do conhecimento. Ja recorremos as nossas intuicées para chegar a um acordo, por exemplo, em torno da idéia de que o conhecimento ¢ uma espécie de crenga que também tem como pré-requisitos a verda- de alguma espécie de justificativa. Consideramos o exemplo de al- guém que afirma saber que Madagascar fica no Oceano Indico 20 mesmo tempo em que nega crer que Madagascar fica nesse oceano, Quando pensamos num caso como esse, julgamos que ele implica uma contradicao. Assim, chegamos a conclusio de que é preciso crer em algo para saber esse algo. Os epistemdlogos valem-se muitas vezes de intuigdes ou juizos como esse (grosso modo, intuigdes sobre 0 que € verdadeiro e 0 que é falso) a fim de dar sustentagao as suas teorias cpistemoldgicas. Devemos tomar cuidado com a confianga que depositamos em nossas intuigées. As intuigées sobre o conhecimento que decorrem do. senso comum precisam as vezes ser corrigidas por certas consideracées epistemolégicas mais gerais ¢ tedricas. Porém, as consideracdes relati- vas a plausibilidade geral de nossas intuigSes comuns temos de contra- por consideracdes relativas a plausibilidade geral das teorias epistemo- logicas, Temos de contrapor essas duas coisas porque as intuicdes tem algo a nos dizer acerca da validade das ceorias, ¢ as teorias ¢ém algo a nos dizer acerca da validade das intuigdes. Isso talvez 0 deixe perplexo agora, mas ficard claro no decorrer do livro. Por enquanto, o ponto principal é que nossas intuigdes acerca do conhecimento, fornecidas pelo senso comum, podem elas mesmas ser ajustadas, cortigidas ou mesmo rejeitadas & luz de nossa accitacao de afirmativas teéricas mais gerais sobre a natureza do conhecimento. As intuigdes do cardter estaciondrio da Terra, por exemplo, podem ser cor- rigidas pelas teorias astrondmicas estabelecidas. No Capitulo 9 voltare- mos a esse tema. 26 | A TEORIA DO CONHECIMENTO. Em suma, percebemos que a teoria do conhecimento merece ser estudada cuidadosamente, e por diversos motivos. As diversas espécies de argumentos céticos, por exemplo, comumente movem as pessoas a pensar de modo mais critico a respeito das condicdes, fontes ¢ limices essenciais do conhecimento humano. A definigio tradicional de conheci- mento identifica as condigées essenciais do conhecimento como a crenga, averdade e a justificacdo, Estudaremos de modo mais deralhado cada um desses elementos e constararemos, no Capitulo 5, a necessidade de im- por mais uma restrigéo a definicdo de conhecimento. Jé dispomos de alguns conceitos basicos, como os de conhecimento a priori conheci- mento @ posteriori, conceitos esses que nos petmitirao discutir com mais detalhes as condigées, fontes limites do conhecimento humano. No de- correr de nossas discussées, prestaremos especial atengao ao papel das intuigGes e das consideracdes teéricas na epistemologia. Passaremos ago- ra explicar o conhecimento propositivo humano. CAPITULO 2 UMA EXPLICACAO DO CONHECIMENTO Desnecessdrio dizer que certas pessoas pensam que sabem muito mais do que sabem na realidade. Talvez esse fato ocorra &s vezes com a maioria das pessoas, muito embora nao tenhamos motivo algum para dar nome aos bois em ptiblico. E certo que, infelizmente, o fato de crer- mos correta a resposta que demos & pergunta de um teste néo a torna automaticamente correta. Do mesmo modo, o fato de pensarmos sa- ber alguma coisa nao significa que a saibamos efetivamente. Uma teoria do conhecimento tem o dever de, no minimo, elucidar a diferenca entre o conhecimento verdadeiro e o conhecimento aparen- te, entre o artigo genuino e as imitacées plausiveis. Se nao langar luz so- bre essa diferenga, a teoria do conhecimento serd deficiente no que diz respeito a uma de suas principais fungGes: esclarecer em que consiste 0 verdadeiro conhecimento. Na mesma medida em que o conhecimento é algo a que atribuimos um grande valor (como 0 conhecimento da melhor mancira de realizarmos nossos objetivos, sejam eles quais fo- rem), a teoria do conhecimento deve nos habilitar a distinguir as imita- Ges da mercadoria legitima. Em muitos casos, as imitacdes nos decep- cionarao. Pense, por exemplo, nas conseqiiéncias terriveis da falta de um conhecimento certo a respeito da confiabilidade dos infames “anéis em ‘O"” do énibus espacial. Dada a preciosidade do conhecimento, de- vemos ter por objetivo adquiri-lo, bem como adquirir meios razodveis 28 | A TEORIA D0 CONHECIMENTO. de adquiti-lo, A teoria do conhecimento nos oferece a promessa de me- Ihorar os meios de que dispomos para adquirir o conhecimento. Este capitulo tratara de alguns dos principais objetivos de uma tal teoria. © CAMPO DA EPISTEMOLOGIA Idealmente, uma epistemologia lancaria luz sobre todos os domi- nios potenciais do conhecimento, que sio 0 conhecimento cientifico, oconhecimento matemético, o conhecimento comum pela percepgio, 0 conhecimento ético ¢ 0 conhecimento religioso. Sob esse aspecto, uma epistemologia ideal seria abrangente e maximamente explicativa. leal muito embora nao o realizemos. © ideal repre- senta ao menos uma meta digna de se tentaralcangar com coda a serie- dade, dado que o conhecimento em seus diversos dominios é valioso. Como dissemos no Capitulo 1, aquele que esposa o ceticisma quan- toa um certo dominio de conhecimento nega, geralmente baseado em argumentos ¢ correndo o risco de perturbar os outros, que os seres hu- manos tém de fato esse tipo de conhecimento. Falamos de dominios Postulamos esse (potenciais de conhecimento para evitar que os céticos nos acusem de incorrer numa petigio de principio por pressupormos a realidade de certas espécies de conhecimento. Uma epistemologia pode elucidar um conceito (ou, 0 que di no mesmo, uma no¢do ou uma idéia) de conhe- cimento cientifico, pot exemplo, sem que o epistemélogo se compro- meta com a existéncia real de um tal conhecimento. Analogamente, 0 fato de vocé clarear 0 conceito de unicérnio nao exige que vocé creia na existéncia real dos unicémios. Até mesmo a maioria dos fildsofos con- corda com isso —acontecimento raro entre os que se alimentam da dis- cordancia, Os conceitos nao devem seu significado ao fato de se realiza- rem na pritica; caso contritio, nao poderiamos pensar sobre objetos ficticios, 0 que inviabilizaria boa parte da literatura classica. Para o bem ou para o mal, as nogdes inteligiveis de unicérnios € rrolos florescem sem que para isso seja necessério que haja uma populacio real de tro- os € unicérnios, Ao mesmo tempo em que distinguimos os diversos dominios po- tenciais do conhecimento, alguns fildsofos nao conseguem chegar a um UMA EXPLICAGAO DO CONHECIMENTO | 29 acordo quanto a quais os dominios porenciais que poderiam de fato ser englobados na categoria de conhecimento, € nao de ficgao. O desa~ cordo, como se vé, € uma constante na tcoria do conhecimento (bem como na filosofia em geral), mas, como veremos, isso no ¢ motivo para que desesperemos de encontrar a verdade ou abracemos o relativis- mo. O desacordo persistente dificulta o consenso, mas néo afeta a verda- de que independe das opiniées. Apesar das tendéncias contrérias que surgem nos meios de comunicagio de massa, nao estabeleceremos aqui uma identidade entre verdade e consenso. Houve época em que as pes- soas discordavam quanto 20 fato de a'Terra girar em torno do Sol, mas nem por isso esse fato deixou de ser verdadeiro. © acordo dos seres hu- manos nesse campo no mudou a natureza dos movimentos celestiais. (Os dominios potenciais de conhecimento acima mencionados tém algo importante em comum: codos sio dominios potenciais de conbe- cimento, Ou seja, sio casos especificos da categoria geral “conhecimen- 0”. Isso pode parecer dbvio, mas no deixa de ser objeto de disputa para alguns fildsofos, para os quais, alids, a maioria das nogdes ¢ obje- to de disputa, Ao langar luz sobre a categoria geral “conhecimento”, uma epistemologia deve explicar 0 que une os varios dominios poten- ciais dessa categoria, Essa atividade é fundamental para a explicagio de qualquer um desses dominios potenciais, pois, se no compreendermos a categoria geral, nao compreendercmos nada do que se vier a dizer sobre 0 conhecimento cientifico, 0 conhecimento matemético, 0 co- mum conhecimento pela percep¢io, 0 conhecimento ético ou 0 co- nhecimento religioso. Tome esta analogia: se nio compreendermos a categoria “snark” (cuja criagio deve ser atribuida com todas as hon- ras a Lewis Carroll), ampouco compreenderemos 0 que é um snark cientifico, um snark matemético, um snark ético ¢ assim por diante. Uma epistemologia abrangente tratard pois de elucidar primeiro a ca- tegoria geral do conhecimento, considerando tal elucidagao um pré- requisito para 0 esclarecimento dos dominios potenciais de conhe mento especificos. v * Terme inventado por Lewis Carroll e que designa o colapso de um sistema, uma fi- tha generalizaga, (N. do T) 30| A TEORIA DO CONHECIMENTO ‘© campo ou envergadura de uma epistemologia ¢ determinado pela gama de dominios potenciais de conhecimento que ela explica. Uma epistemologia de pouca envergadura pode langar luz sobre a ca- tegoria do conhecimento perceptivo, por exemplo, mas no dar con- tribuigio alguma 4 compreensio de qualquer outro dominio porencial de conhecimento. Dadas as notéveis complexidades que caracterizam todos esses dominios (e 0 adjetivo “notaveis” nao é um exagero), mui- t0s epistemélogos contemporineos contentam-se com a elucidacio de um tinico dominio. Nao obstante, até mesmo uma epistemologia de pouca envergadura tem de definir a categoria geral de conhecimento que é para ela um pressuposto, uma vez que tudo o que se disser a res- peito de um dominio particular ser obscuro na mesma medida em que for obscura a nogio geral de conhecimento. Se essa nogio nao estiver clara, a nogio de conhecimento cientifico, por exemplo, serd igualmen- te nebulosa. Pelo menos é esse 0 conselho que nos dé a sabedoria pré- filoséfica. © CONCEITO DE CONHECIMENTO Alguns filésofos, influenciados quer pela opiniao filoséfica (basea- da na linguagem comum) de que todos os conceitos so “texturalmen- te abertos", quer pelas jd cléssicas Investigardes filasificas de Ludwig Wittgenstein (1958), negaram a existéncia de uma tinica nocao geral de conhecimento que esteja por tras de varios dominios epistémicos potenciais. Dizem eles que os varios usos que se dao a um mesmo ter- mo geral, como “conhecimento”, por exemplo, no precisam ter todos um sentido geral comum, mas podem relacionar-se entre si por seme- Ihangas diversas (chamadas “semelhangas de familia”) que nem todos (8 usos em questo tém em comum. Segundo esse ponto de vista, 0 uso padrio de “conhecimento” na expresso “conhecimento matemético”, por exemplo, pode ter um significado diferente do uso padrio de “co- nhecimento” em “conhecimento religioso”. Com efeito, alguns defen- sores do ponto de vista wittgensteiniano sustentam que cada um des- ses usos tem um significado. Recomendam-nos, assim, que deixemos completamente de lado a tradicional atividade filoséfica de tentar ca- UMA EXPLICAGAO DO CONHECIMENTO | 31 racterizar 0 conhecimento humano em geral, pois tal termo nio teria uma nogio dotada de significado. Como resolver as disputas acerca do sentido do termo “conheci- mento"? Uma das estratégias naturais seria perguntar as pessoas 0 que elas querem dizer com essa palavra em virios contextos, pressupondo que a maioria delas saiba o que querem dizer por “conhecimento”. Cer- tos fildsofos dizem que muita gente usa a palavra “conhecimento” de modo univoco, com um tinico significado, quando falam de conhe- cimento cientifico, conhecimento matemético, conhecimento da per- cepsao, conhecimento ético, conhecimento filosdfico e conhecimento religioso. Se esses fildsofos estiverem coma raz4o, muitas pessoas usam uma tinica nogdo geral de conhecimento como nticleo comum nos do- minios epistémicos potenciais acima mencionados. Disso nao decorre, porém, que fodas fagam 0 mesmo, Segundo a opiniao de Wittgenstein, outras pessoas podem usar o termo “conhecimento” de modo equivo- co, com significados diversos, quando falam sobre os varios dominios potenciais. Nesse caso, diferences grupos de pessoas usam 0 termo “co- nhecimento” com sentidos diferentes. Essa variedade de significados lin- giifsticos é uma possibi pelo menos nio pode ser excluida em principio. Certos filésofos falam “do” conceito de conhecimento, mas deve- mos nos manter abertos, pelo menos em principio, para a variabilida- de de conceitos especificos empregados por pessoas diversas. Esta idéia de conceitos especificos de conhecimento parece pressupor um niicleo univoco dos varios conceitos, uma vez que todos s4o conceitos de co- nhecimento. Alguns fildsofos retrucam, porém, que a linguagem comum. — por exemplo, o termo lingiifstico “conhecimento” ~ é 0 tinico nticleo real. Nao podemos decidir aqui essa questéo, mas vale observar que a variagao dos conceitos usados por algumas pessoas em suas tarefas de descrigao ¢ explicagdo nao implica necessariamente uma variagio dos conceitos entendidos por essas pessoas. Voce pode entender um certo conceito especifico de conhecimento, como 0 conceito oferecido por um livro de filosofia ou psicologia, sem empregé-lo em suas tarefas descritivas e explicativas. De modo mais geral, vocé pode entender as definigdes dadas por um autor, mas abster-se de adora-las em seu pré- prio pensamento e em suas préprias explicagées. O ponto mais impor- lade real entre certos usudtios da linguagem; 32] A TEORIA DO CONHECIMENTO tante, porém, & que certas pessoas podem usar conceitos especificos de conhecimento que sejam divergentes, ¢ devemos estar atentos a essa possibilidade de variagao conceitual. Em decorréncia disso, uma ceoria do conhecimento poderia ter de explicar nao s6 um conceito geral de conhecimento subjacente aos varios conceitos especificos, mas tam- bém toda essa variedade de conceitos especificos. O objeto da episte- mologia, cm outras palavras, pode ser conceitualmente diverso, pelo menos no nivel dos conceitos especificos de conhecimento. Mas, nesse caso, uma teoria do conhecimento é uma teoria do qué Ou seja, que espécie de “coisa” é 0 conhecimento, o qual é 0 objeto da epistemologia? Serd ele (a) uma espécie natural (ou seja, uma espécie de coisa existente no mundo que apresenta propriedades estaveis e sus- cetiveis de explicacéo ¢ indugio); (b) um construto social (c) um cons- truto individual; ou (d) nenhuma das anteriores? Essas perguntas sio, por si mesmas, temas de debates significativos no campo da epistemo- logia, ¢ por isso mesmo resistem a respostas faccis. Além disso, qual éa estratégia ou 0 método que devemos usar para responder a essas per- guntas? Podemos acaso respondé-las sem langar mao de uma teoria do conhecimento ja formada? Se nao pudermos, teremos de fazer uso de uma teoria do conhecimento sem levar em conta o nosso ponto de vis- ta pessoal acerca do que o conhecimento realmente é. Se 0 conheci- mento for uma espécie natural, a epistemologia ter um objeto tao “objetivo” quanto, por exemplo, 0 objeto da biologia ou da psicologia cognitiva, Nesse caso, haverd uma maneira correta — 0 contririo de in- correta — de explicar 0 que é 0 conhecimento, € tudo isso devido as ca- racteristicas mesmas do conhecimento. Acabamos de mencionar a meta do epistemélogo. de “explicar 0 que € 0 conhecimento”, Mas em que consiste exatamente essa meta? Os filésofos nao dao a essa pergunta uma resposta sempre igual. Des- dea época do Ménon ¢ do Teereto de Plato, muitos epistemélogos, buscando explicar o conhecimento, procuraram formular os elemen- tos essenciais do conhecimento humano, A formulacéo desses elemen- t08 consiste no que os filésofos modernos chamam de uma “anélise” do (conceito de) conhecimento. Como disses no Capitulo 1, um dos pontos de vista tradicionais mais influentes, proposto por Platio (ver Ménon 97¢-98a) ¢ Kant, entre outros, €0 de que o conhecimento UMA EXPLICAGAO DO CONHECIMENTO | 33 ptopositivo humano (o conhecimento de que tal coisa é de tal jeito) tem és elementos individualmente necessdrios ¢ conjuntamente sufi- cientes: a justificagio, a verdade ea crenga. Segundo esse ponto de vis- ta, 0 conhecimento propositivo humano é, por natureza, uma crenca verdadeira ¢ justificada. Como observamos também no Capitulo 1, os epistemélogos dio © nome de “andlise tradicional” & explicagdo tripartite apresentada a seguir. A condigao de justificagao exige que uma pessoa que saiba P (sendo “P” qualquer proposigao) tenha uma justificagao, justificativa, garantia ou corroboragéo de evidéncia suficiente para afirmar P, A condigio de verdade exige que a proposigao conhecida nao seja falsa, mas verdadeira; no seja errénea, mas factual. A condigio de crenca exige quea pessoa que saiba P também creia em P, ou seja, tenha uma atitude psicolégica de confianga em P. A exata caracterizacio de cada uma dessas condigées supostamente necessétias para o conhecimento € objeto de constante disputa entre os epistemdlogos. Nos Capitulos 3 5, voltaremos a essas condigées ¢ & questo da sua suficiéncia para o conhecimento, EPISTEMOLOGIA, NATURALISMO — PRAGMATISMO ‘Acaso deve o ser humano dedicar seu tempo e sua energia para for- mular uma explicagao filoséfica do conhecimento humano? Em caso afirmativo, por que deve fazé-lo? Na auséncia de respostas decisivas ou tuniversalmente accitas na epistemologia, podemos propor uma sim- ples mudanga de tema. Talvez as explicagées filos6ficas do conhecimen- to sejam substituiveis pelas ciéncias, ou simplesmente dispenséveis. Hoje em dia, muitos parecem pensar assim, mesmo que seja somente porque as discordancias filoséficas sobre o conhecimento parecem pe- renes ¢ infinitas. ‘A epistemologia tradicional, representada por Plato, Arist6teles, Descartes, Locke (1632-1704), Kant ¢ Russell (1872-1970), entre ou- tros, recomenda um estudo filoséfico da natureza, das fontes ¢ dos li- mites do conhecimento. Conta entre seus pressupostos comuns, pri meiro, o de que o conhecimento é, grosso modo, uma crenga verda- 34 | A TEORIA DO CONHECIMENTO deira e justificada; e, segundo, que o estudo epistemolégico nao exige (embora possa langar mio de) padrées de avaliagio intamente cien- tificos. Alguns filsofos contemporineos, como W. V, Quine e Richard Rorty, rejeitam a epistemologia tradicional. A tejeicao da epistemologia tradicional por parte de Quine nasce do seu cientificismo substitutivo, a idéia de que as ciéncias detém 0 mo- nopélio de todas as explicagées teéricas legitimas. Quine (1969) pro- pée que tratemos a epistemologia como um capitulo da psicologia em- pitica ¢ afirma que esta ultima pode esgotar as atividades teéricas dos cpistemélogos. Essa proposta audaz pode ser chamada de naturalismo substitutivo. Ela implica que a epistemologia tradicional é dispensavel e pode ser substituida pela psicologia empirica. De inicio, podemos nos sentir tentados a dar adeus & epistemologia tradicional, em vista do seu histérico turbulento de recorrentes discordancias, mas vamos afastar essa tentagao por ora. Outra importante rejeigio da epistemologia tradicional nasce do que podemos chamar de pragmatismo substitutive, a duiplice idéia de que: (a) 0 vocabulirio, os problemas e as metas da epistemologia tradicio- nal nio sao lucrativos nem proveitosos (nao sio “titeis") ¢, por isso, pre- cisam ser substitufdos por seus sucedineos pragmatistas; e (b) a princi- pal tarefa da epistemologia ¢ estudar as vantagens e desvantagens relati- vas dos diversos vocabulérios das diferentes culturas. (Em defesa desta posicio, ver Rorty 1982.) © pragmatismo substitutivo afirma a inutili- dade ¢, logo, a dispensabilidade das preocupagses filosdficas acerca de como © mundo realmente é (e sobre a verdade objetiva) e recomenda que se dé a maxima importancia filoséfica a tudo quanto € proveitoso, vantajoso ou util, Como as crengas titeis podem ser falsas ~ afinal de contas, antes de Copérnico, houve muitos calendérios precisos baseados numa falsa astronomia —, e podem portanto simplesmente nao represen- tar o mundo como ele €, 0 desejo de ter crengas titeis no equivale auto- maticamente a um desejo de ter crengas que representem 0 mundo como ele é. Uma crenga obviamente falsa pode ser titil para uma pessoa que tem um determinado objetivo. E muito comum ver as pessoas mentin- do umas para.as outras e obtendo resultados. © pragmatismo substitutivo afirma que uma proposigao s6 nos é aceitével quando nos é til, ou seja, quando sua aceitagao é util para UMA EXPLICAGAO DO CONHECIMENTO | 33, nés, (Para nao complicar a argumentacao, vamos deixar que os prag- matistas definam “tril” da maneira que lhes parecer mais util.) Mas, se €a wtlidade que define a aceitabilidade, uma proposigio sera aceitavel se, ¢ somente se, for verdade (e, portanto, factualmente real) que a pro- posicao é Gril para nés. O apelo pragmatico a u eta consideragGes acerca da veracidade da utilidade. Trata-se de uma exigéncia de factualidade que incide sobre 0 pragmatismo. Fica assim manifesto que 0 pragmatismo nio foge ~ ¢ evidentemente nao pode fugir — is consideragées acerca da natureza real ou factual das coisas, acerca de como as coisas realmente sio. Dada a exigéncia de factualidade do pragmatismo, é facil propor questées epistemoldgicas tradicionais sobre 0 que € de fato “til”. Po demos perguntar, por exemplo, se é verdade que uma proposigio de- terminada ¢ titil para nds e se temos provas suficientes de que tal pro- posicio € itil. Podemos perguntar, além disso, se sabemos ou nao que a proposigao € util, e mesmo se temos certeza — digamos, em virtude de nao encontrar nenhum fundamento possivel para a diivida — de que a proposigao ¢ util, Naturalmente, precisamos nos valer de nogGes epistemologicas inteligiveis para fazer tais perguntas, mas esse obstéculo nio ¢insuperivel, nem mesmo pelos tfpicos critérios pragmatistas. Por isso, @ epistemologia tradicional, com todas as perguntas que a distin guem, pode florescer até mesmo num ambiente que espose 0 pragma- tismo. O pragmatismo nao representa um desafio fatal & epistemologia tradicional. Eo proprio pragmatismo substitutivo que se defronta com um sé- rio problema. Acaso pretende propor uma afirmativa verdadeina acerca da aceitabilidade das proposigoes? Pretende caracterizar a natureza real da accitabilidade, pretende defini-la tal ¢ qual realmente & Nesse caso, sua caracterizacao € ilicita pelos seus préprios critérios. Contradiz 0 proprio pressuposto de que deverfamos eliminar da filosofia toda ¢ qualquer consideracao acerca do ser real das coisas. Em decorréncia disso, 0 pragmatismo substitutivo depara-se com uma autocontradi- Gio perturbadora: faz 0 que diz. que ndo se deve fazer. Seguindo a mes- ma linha destas uiltimas observagoes, podernos ainda propor questoes epistemolégicas tradicionais acerca do proprio pragmatismo substitu- tivo. Por exemplo: serd que esse pragmatismo propée uma afirmativa lidade, portanto, acar- 36 | ATEORIA DO CONHECIMENTO verdadeira a respcito da accitabilidade? Além disso, serd que essa afir- mativa é cognoscivel ou mesmo justificavel? A epistemologia tradicio- nal pode proceder com seguranca a partir de perguntas como essas. Se o pragmatismo substitutivo nao oferece nem pretende oferecer uma caracterizagao da natureza teal da aceitabilidade, por que deve- mos levé-lo em conta se 0 nosso objetivo é exatamente o de caracteti zat a aceitabilidade das proposigdes? Dado esse objetivo, nao devemos levé-lo em conta, pois ele nada tem a ver com o objetivo, € instil para a realizagao do objetivo. A idéia de utilidade, de importincia suprema para o pragmatismo, pode assim ser usada para refutar 0 proprio prag- matismo substitutivo. Essa corrente defronta-se assim com um dilema: ou 0 pragmatismo substitutivo € autocontraditério ou nada tem a ofe- recer 20 tipico epistemélogo que busca uma explicagio da accitabilida- de, Esse dilema nao € facil de resolver ¢ indica que © pragmatismo substicutivo no poe em xeque a epistemologia tradicional. Muitos epistemélogos, dado 0 seu objetivo de obter expli considerar “itil” uma reoria autocontraditéria. Dados os préprios cri térios do pragmatismo substitutivo, pois, a aurocontradigao é percur- badora para esses estudiosos. Parece, enfim, que a epistemologia tradi- cional pode levar adiante a sua tarefa principal de explicar 0 conheci- mento humano. naturalismo substitutivo suscita um problema semelhante 20 ages, se recusam a que confronta 0 pragmatismo substitutivo. Tal naturalismo nao tem por objetivo simplesmente descrever os nossos comuns conceitos epis- temolégicos, mas antes chegar a uma espécie de “desdobramento” ou “explicagio” que, nas palavras de Rudolf Carnap, “consiste em trans- formar um dado conceito mais ou menos inexato num conceito exato, ou, antes, em substituir 0 primeiro pelo segundo” (1950, p. 3; grifo nos- so). Em busca desse desdobramento, os naturalistas substitutivos in- troduzem os substitutos conceituais de virios conceitos epistemoldgi- cos ¢ psicoldgicos comuns. Quine (1969) propde, por exemplo, que substituamos a nossa comum nogio de justificagao por uma nogio be- haviorista da relacéo entre sensagio ¢ teoria. Propde, de modo mais ge- ral, que os naturalistas substitutivos encarem a teoria do conhecimen- to como um sub-ramo da psicologia empirica, a0 mesmo tempo em que afirma que a psicologia empirica esgota (¢ pode portanto substi- tuit) a epistemologia. UMA EXPLICAGAO DO CONHIECIMENTO | 37 Uma das objecées que naturalmente se impéem € que o naturalis- mo que pretende substituir a epistemologia nao € por si sé uma tese cientifica, nem mesmo da psicologia empirica, Dada essa objegio, o naturalismo substitutivo evidentemente se afasta do prdprio compro- misso de Quine com um cientificismo substitutivo. O cientificismo substitutivo nega a existéncia de qualquer filosofia cognitivamente le- gftima antes das ciéncias ou independentemente delas (ou seja, de qual- quer dita “filosofia primeira”), querendo dizer com isso que os teéricos nao devem fazer afirmag6es filosoficas que excedam as ciéncias (ver Qui- ne 1954, p. 222; 1981, p. 21, onde ele identifica os dominios cientifi- co ¢ cognitive). préprio naturalismo substitutive de Quine, aplicado 4 episte- mologia —tipicamente chamado de sua “epistemologia naruralizada” ~ parece ser um caso de filosofia anterior &s ciéncias. Dada essa objecéo, Quine fica obrigado a demonstrar que sua epistemologia naturalizada € uma hipétese cientifica. Os naturalistas substitutivos terio dificul- dades para se livrar desse Fardo, pois as ciéncias nao parecem ter por objetivo formular afirmag&es universais acerca do starus da episte- mologia (mesmo que um ou outro cientista faga essas afirmagées as ve- zes). Talvez essa verdade sobre as ciéncias seja uma verdade empirica, mas é mesmo assim uma verdade justificada, e caracteriza as ciéncias em geral. E evidente, portanto, que o naturalismo substitutivo, aplica- do & epistemologia ¢ associado ao cientificismo substitutivo, ¢ auto- contraditério. O naturalista, qualquer que seja a corrente a que per- tenga, tem de tomar cuidado para ndo cair em autocontradicio, na mesma medida em que as ciéncias tomam este cuidado ¢ em que todo conflito tedrico é desvantajoso para a explicagao unificada, Pode-se tentar resgatar 0 naturalismo substitutivo propondo-se uma nogdo de ciéncia mais ampla do que a adotada pelas ciéncias tais como se entende normalmente. Essa proposta poderia mitigar a exi- géncia implicita de que o naturalismo substicutivo seja uma hipétese cientifica. Com isso, porém, os naturalistas substitutivos véem-se dian- tede um terrivel dilema: ou se estabelecem restrig6es aprioristicas para © que pode ser considerado ciéneia (uma vez que 0 uso normal que se far do termo “ciéncia’ nao determinaria a nocao mais ampla) ou essa nogdo mais ampla de ciéncia seria excessivamente vaga e seu uso nao 38 | A TEORIA DO CONHECIMENTO. seria regido por principio algum. No minimo, e na auséncia de qual- quer critétio independente das ciéncias, precisamos de uma explicagio de como devemos discernir quais as ciéncias que teriam papel regulador na formulagio das teorias da epistemologia. A astrologia, por exemplo, setia excluida, ¢ a astronomia seria incluida. Tal explicagao poderia per- feitamente nos levar para além das ciéncias, uma vez que seria uma ex- plicagdo das ciéncias, ¢, em particular, da funcdo destas em vista da normatizagio da epistemologia. Para atender aos propésitos do naturalismo substitutivo, qualquer nova nagio de ciéncia que se venha a propor terd de excluir a episte- mologia tradicional ¢ incluir 0 naturalismo epistemolégico, mas nio poderé fazer isso ad hoc. De qualquer modo, tal estratégia para fugir & autocontradicio exige uma nogao inaudita de ciéncia, ¢ isso nao é pe- dir pouco. Os naturalistas substitutivos nunca adotaram tal estratégia nem jamais chegaram a resolver a mencionada autocontradicao. Esse problema sé diz respeito ao naturalismo substitutivo, mas ndo atinge as verses mais modcradas de naturalismo epistemolégico que ora en- contram-se em circulagao. (Ver Goldman 1992, que apresenta algu- mas vers6es moderadas de natur No Capitulo 8 voltaremes a0 problema do naturalismo epistemo- légico e apresentaremos uma alternativa a essa corrente. Em particular, diremos que 2 epistemologia poderia ter se desenvolvido mesmo se as ciéncias empiricas, como as modernas fisica, qu(mica ¢ biologia, nao tivessem sequer surgido. Veremos que isso se deve ao fato de que 0 pa- pel da explicagéo na epistemologia ¢ intelectualmente geral, ¢ nio de- pende de caracteristicas especificas das ciéncias. Varias versbes mode- radas do naturalismo, em acordo com as ciéncias, atribuem do mesmo modo um papel intelectual especial & explicagdo, mas ndo pedem nem exigem a substituigao da epistemologia pela psicologia empirica (mui- to embora a epistemologia se aperfeicoe por levar em conta os dados das nossas melhores psicologias). O fulcro do debate contemporineo entre as abordagens epistemolégicas naturalista € ndo naturalista é a questio de saber se a epistemologia é empirica ou a priori. Ao propor a climinacéo das categorias epistemoldgicas tradicio- mo epistemoldgico.) nais, os adeptos do naturalismo substitutivo tipicamente fazem apelo capacidade das ciéncias de prever explicar certos aspectos significati- UMA EXPLICACAO DO CONHECIMENTO | 39 vos do universo, Partem do pressuposto de que nés, na qualidade de explicadores, no devemos nos valer do esquema conceitual tosco e po- pularesco de crenca, justificagéo e conhecimento, dado que podemos explicar tudo 0 que precisa ser explicado através das avangadas catego- rias técnicas das neurociéncias e da psicologia cientifica. Muitos filéso- fos puseram-se contra esta iiltima afirmacdo. Nés mesmos dissemos que o naturalismo substitutivo € autocontradit6rio, pois constitui por si mesmo um caso particular de filosofia anterior as ciéncias. De modo mais geral, os debates sobre 0 naturalismo tipicamente envolvem ques- es sobre 0 “reducionismo”. Muitos naturalistas reducionistas afir- mam que as tinicas coisas realmente existentes no mundo sio os com- ponentes de nivel inferior (elétrons ¢ prétons, por exemplo) que cons- tituem os fenémenos de nivel superior (individuos humanos e grupos sociais, por exemplo). De acordo com eles, termos como “crenga” e “jus- tificagio” constituem tio-somente meios praticos que o senso comum. inventou para estabelecermos uma relagio com uma realidade que pode ser mais bem caracterizada pelas ciéncias fisicas. Muitos fildsofos, porém, apresentam © argumento de que a maior parte da atividade cientifica é profundamente anti-reducionista, tanto na prética quanto em principio. Partindo desse ponto de vista ¢ do nosso préprio argu- mento de autocontradicao, nao vemos de que maneira se poderia infe- rir plausivelmente do mero sucesso das cincias a necessidade de elimi- nagdo da epistemologia. Philip Kitcher (1992) propés a seguinte estrutura bésica para uma epistemologia naturalista nao substicutiva: 1.0 problema central da epistemologia consiste em compreender a qualidade epistémica do desempenho cognitivo humano ¢ em especificar estratégias pelas quais os seres humanos possam aper- feicoar seus estados cognitivos. 2.A qualidade epistémica de um estado determinado depende dos processos que a geram e sustentam. 3.0 projeto epistemolégico essencial deve ser realizado mediante a descrigao de processos confidveis, na medida em que gerariam com freqiiéncia estados epistemicamente virtuosos nos seres hu- manos vivos em nosso mundo. 40| A TEORIA DO CONHECIMENTO 4, Praticamente nada ha que seja cognoscivel a priori, ¢, em parti- cular, nenhum princ{pio epistemolégico é cognoscivel a priori. (Pp. 74-6) Exe livro nao pode decretar 0 sucesso definitivo da epistemologia naturalista acima caracterizada. Os beneficios e as fraquezas de uma tal epistemologia devem ser ponderados & luz de considerag6es técnicas metaepistémicas que vio muito além do que se propée este livro. Nao obstante, cabe fazer algumas observagoes de carater geral (O fato de adotarmos uma epistemologia naturalista afecaria 0 modo pelo qual avaliamos as teorias do conhecimento ¢ da justificagio. Por exemplo: dada uma epistemologia naturalista, segundo a qual os fun- damentos causais de uma crenga sio essenciais para a sua justificacio, estudo da justificagio envolveria a investigaco de complexas rela- ces a posteriori, idealmente com a ajuda da melhor psicologia empf- rica. Alguns naturalistas afirmam que as tradicionais teorias no natu- ralistas do conhecimento encontram-se agora, quando consideradas em sua relagio com as areas da psicologia que dizem respeito a0 co- nhecimento, numa posigio tio fraca quanto a da metafisica do sécu- lo XIX quando procurava tratar dos fundamentos quimicos da vida. Nés mesmos j afirmamos que o naturalismo mitigado no recomen- daa substituicdo da epistemologia pela fisica, pela biologia, nem mes- mo pela psicologia, ou seja, nao leva ao naturalismo substicutivo. O naturalismo mitigado preserva o objetivo epistemoldgico tradicional de formular a explicagio mais plausivel do conhecimento humano, tanto em sua estrutura quanto em suas fontes. Os critérios de explicagio que a isso se aplicam podem incluir, entre outras coisas, os critérios explica- tivos da investigaczo intelectual em geral, mais amplos do que os critérios estritamente cientificos (por exemplo, padrées de coeréncia légica, com- patibilidade com todos os dades disponiveis, unificacao de todos os temas tratados e compatibilidade com as melhores ciéncias). Nos Capitulos 3,6 €7, apresentaremos algumas consideragdes psicolégicas pertinentes ao naturalismo mitigado na epistemologia. UMA BXPLICAGAO DO CONHECIMENTO | 41 © VALOR NA EPISTEMOLOGIA A epistemologia, tal ¢ qual é praticada tradicionalmente, parece intrinsecamente avaliativa e, portanto, normativa; no é somente des- ctitiva. Oferece padrées pelos quais as crencas particulares podem ser avaliadas, sendo algumas aceitas como casos de conhecimento verda- deiro e outras, excluidas dessa categoria. Alguns debates recentes acer- ca do sentido da “justificacdo” giram em torno de saber se 0 conceito de justificagao epistémica (relativa ao conhecimento) € normativo e, em caso afitmativo, de que modo o é. Desde a década de 1950 que Roderick Chisholm defende a se- guinte nogéo avaliativa “deontolégica” (ou seja. relativa ao dever) da justificagao: A afirmacio de que a proposicao Pé epistemicamente jus- tificada para voc® significa que ¢ falso dizer que voce deve se abster de aceitar P. Em outtas palavras, dizer que P € epistemicamente justifica- da € 0 mesmo que dizer que aceitar P € epistemicamente admisivel— pelo menos na medida em que a aceitacao de P€ coerente com um de- terminado conjunco de regras ou requisitos epistémicos. Tipicamente, cessas regras especificam como a pessoa deve adquirir crengas verdadei- ras (informativas) e evitar as crencas falsas. Pademos concebé-las como anilogas as regras da ética que traram das ages adequadzs e inadequa- das (ver Chisholm 1989, pp. 59-60). A interpretagio deontoldgica da justificacio goza de certa popula- ridade na epistemologia contemporanea ¢ combina muito bem com o que os fildsofos chamam de “ética da crenga’.. Esta implicita nela a idéia de que um dos temas centrais da epistemologia é a avaliagio de quais as espécies de crengas admissiveis e obrigatérias para os seres humanos em determinadas circunstancias. A abordagem deontolégica constitui, na epistemologia, um andlogo da nossa preocupacao com as acées ad- missiveis e obrigatérias na familiar ética da conduta. Nao exige, po- rém, que as ctengas estejam sujeitas ao nosso controle dire, como ocor- re com muitas agées. Exige somente que a formagio de crengas seja controlada por nés de modo indireto, do mesmo modo que muitos habitos esto sujeitos a um controle indireto da nossa parte. “Temos de tomar cuidado ao formular uma nogio deontoldgica da justificago. Suponha que vocé renha sido criado numa cultura isolada 42|a TEoRA D0 ConHeciMENTO em que todas as fontes confidveis a que vocé tinha acesso asseveravam que uma certa danca faz chover. Isolado em sua cultura, vocé nao tem acesso A teoria meteoroldgica que poe em xeque os relatos das suas fon- tes. Certas pessoas sentem-se inclinadas a admitir que, encontrando-se vocé nessa situacio, ser-lhe-ia epistemicamente admissivel crer que existe uma danga que faz chover. Outras objetarao que, na auséncia de provas substantivas de que a danga causa a chuva, voce nao teria ne- nhuma justificativa epistémica para crer nisso. Ao que parece, a abor- dagem deontolégica da justificagio tem de cuidar para nao separar completamente a justificacio epistémica das provas corroborantes, Nes- se sentido, a mesma abordagem nao deve confundir uma crenca episte- micamente justificada com uma crenga descudpdvel, Uma crenga pode ser desculpavel, mesmo que lhe faltem as provas corroborantes. O tipo de justificagio necessaria ao conhecimento depende de uma corrobora- ‘40 suficiente fornecida pelos dados disponiveis; ea uma crenga descul- pavel, dentro de um determinado contexto, pode falrar essa corrobora- do suficiente. Podemos dizer que a crenga desculpavel € um fendmeno mais comum do que a crenga epistemicamente justificada, muito em- bora seja dificil especificar exatamente o que caracteriza a “suficiéncia” da corroboracao. Como veremos no Capitulo 5, os epistemdlogos con- temporaneos divergem quanto as condig6es exatas que configuram uma tal situagao. Nao € necessario que uma interpretagdo da justificagao seja deon- rolégica para que seja normativa, uma vez que o uso das nogées de obrigatoriedade ¢ admissibilidade nao é necessdrio para a caracteriza- 40 da justificagao, William Alston (1985), por exemplo, apresentou um conceito normativo e nao deontolégico da justificagio, valendo-se principalmente da nogio do que € epistemicamente bom, avaliado se- gundo o ponto de vista da maximizago das crengas verdadeiras e mi- nimizagao das crengas falsas. Esse “bem” nao € necessariamente enten- dido segundo as categorias de obrigatoriedade (ou dever) ¢ admissibi- lidade; pode ser um objeto de avaliacao independente de ambos os conceitos. Considere, por exemplo, a afirmativa de que um determi- nado atleta (Michael Jordan, digamos) esté em “boa” forma. Dessa afirmasao no decorre nenhuma inferéncia de obrigatoriedade ou ad- missibilidade; ela pode ser avaliativa sem ser deontoldgica. UMA EXPLICAGAO DO CONHECIMENTO | 43, Alston vincula a “bondade” epistémica ao fato de uma crenga ser baseada em fundamentos suficientes, na auséncia de razbes contrarias excessivamente fortes. Um exemplo simples € 0 caso da sua crenga arual de que existem palavras escritas na pagina & sua frente. Essa crenga se baseia na sua experiéncia perceptiva atual, e (presumimos) nao hé nada que a ponha em xeque. A nogio crucial de fundamentos suficientes ga- rante que a epistemologia resultante seja avaliativa e, logo, normativa, mesmo que nao seja deontoldgica. A epistemologia talvez nao seja uma simples “ética da mente”, mas, de qualquer forma, ela repousa tipica- mente sobre noges avaliativas que vao além da mera descricao, Vamos admitir que a epistemologia, em sua pratica padrao, ¢ in- trinsecamente avaliativa no meramente descritiva. Duas perguntas se impdem, Em primeiro lugar, serd que a maioria das pessoas realmen- te d4 algum valor ao projeto avaliativo que se chama de “epistemolo- gia’? Em segundo lugar, devemos dar algum valor a isso, especialmente quando consideramos 0 quanto nosso tempo & precioso? Parece que muitas pessoas dao valor a isso, na mesma medida em que dio valor & compreensio da diferenga entre um conhecimento verdadeiro ¢ um conhecimento meramente aparente. Querem compreender essa diferen- a porque querem aprender @ distingdo que existe entre reconhecer os meios eficazes para a tealizagao de seus objetivos (sejam estes quais fo- rem) e no reconhecer esses meios. A incapacidade de reconhecer os meios que conduzem a realizacio de nossos objetivos normalmente resulta numa frustracao desses obje- tivos; é por isso que nos preocupamos com o reconhecimento desses meios. Como nos preocupamos com isso, preocupamo-nos também com compreender a distingao que existe entre 0 verdadeiro reconheci- mento dos meios e a aparéncia de um tal reconhecimento. Nio ficarfa- mos satisfeitos, por exemplo, com 0 mero reconhecimento de meios que parecam poder nos garantir a obtengio de um diploma de faculda- de; 0 que queremos so os meios reais. Pelo menos nessa medida, a maioria das pessoas tende a atribuir valor ao projeto avaliativo que se chama “epistemologia”. Se “devemos” ou nao nos preocupar com a epistemologia, isso talvez dependa dos objetivos que temos na vida, Mesmo assim, se ti- vermos na vida um objetivo qualquer (mesmo que seja 0 objetivo de 44 | TEORIA DO CONHECIMENTO ordem superior de nao ter objetivos de primeira ordem), a epistemolo- gia serd valiosa para nés. Acabamos de observar que, por atribuir valor ao reconhecimento de meios eficazes para a realizagao dos objetivos, a maioria das pessoas se preocupa em aprender a distingdo entre 0 reco- nhecimento verdadeiro desses meios ¢ 0 reconhecimento meramente aparente. Em decorréncia disso, devemos attibuir valor & epistemolo- gia, pelo menos na medida em que ela lanca luz sobre a distingao entre © conhecimento verdadeiro (ou 0 reconhecimento) € 0 conhecimento aparente. Podemos concluir assim que a epistemologia tem valor, pelo menos para as pessoas que se preocupam em reconhecer meios eficazes para a gir seus objet 10s — € mesmo que a epistemologia nao fornesa uma receita para a realizagao de tados os nossos objetivos particulates. Uma vez que entre essas pessoas se incluem provavelmente todos os adultos normais, o valor da epistemologia € de fato muito alto. Poucas disciplinas, se € que existem outras, gozam de uma tal amplitude de valor demonstrivel. Evidentemente, o valor da epistemologia transcende os limites or- dindrios que separam as disciplinas entre si, Em qualquer disciplina para a qual 0 conhecimento tenha algum valor, a epistemologia pode contribuir na medida em que elucida as condigées, as fontes e os limi- tes do verdadeiro conhecimento. Além da filosofia propriamente dita (se € que € possivel ir além da filosofia), disciplinas como a fisica, a quimica, a biologia, a antropologia, a psicologia, a sociologia e a teolo- gia se beneficiam da epistemologia, pelo menos na medida em que dio valor a uma ou outta espécie de conhecimento verdadeiro. A episte- mologia ndo é a juiza suprema das disputas especificas intemas a essas disciplinas. Os epistemdlogos tradicionais nao podem ser, por exem- plo, os juizes indicados para julgar as disputas tedricas especificas rela- tivas as técnicas usadas pelo Projeto Genoma Humano. Nao obstante, a epistemologia pode oferecer uma contribuicio significativa a formu~ lagao desses juizos, pois langa luz sobre as noges de conhecimento ¢ justificagio e sobre os principios correspondents que podem ser usa- dos para identificar a justificagao e o conhecimento verdadeiros. A epis- temologia, portanto, nao é de modo algum s6 para os filésofos. E uma disciplina essencial para quantos desenvolvem projetos cognitivos — ou, alids, projeros de qualquer natureza. UMA EXPLICAGAO DO CONHECIMENTO | 45 Ja vimos que uma teoria do conhecimento suscita diversas per- guntas dificeis acerca da natureza do seu préprio objeto. As respostas dadas a essas perguntas variam conforme sejam dadas por esta ou aque- la teoria do conhecimento, mas disso nao decorre que todas as respos- tas sejam igualmente validas. As respostas divergentes dadas pela epis- temologia podem incluir proposicées insustentdveis ou mesmo falsas. Devemos, portanto, nos guardar contra a nogio de que os desacordos epistemolégicos acarretam uma atitude de “vale tudo” no que diz res- peito ao conhecimento ou as teorias do conhecimento. Vale observar, de qualquer modo, que os defensores da atitude do “vale tudo” nao cos- tumam adotar essa mesma atitude no que diz respeito a propria idéia do “vale tudo”. No Capitulo 4 voltaremos a falar do relativismo. Em suma, pois, identificamos alguns debates importantes a respei- to da natureza do conceito de conhecimento ¢ afirmamos, com argu- mentos, que a epistemologia é de fato indispensdvel. A epistemologia tradicional, segundo dissemos, nao € substituivel nem pelas ciéncias (ao contrario do que diz o naturalismo substitutivo) nem pelo estudo do que € titil para nés (a0 contrario do que afirma o pragmatismo subs- titutivo). Demonstramos também o valor que a epistemologia tem para qualquer pessoa que tenha objetivos definidos. A epistemologia ¢ uma disciplina avaliativa de capital importincia para qualquer ser hu- mano dotado de objetivos. Trataremos agora da crenga como elemen- to do conhecimento. CAPITULO 3 A CRENCA Para o bem ou para o mal, nossa mente é repleta de crengas. Além das crengas comuns que se referem a percep¢io, temos crencas cientifi- cas, morais, politicas ¢ teolégicas. Se a andlise epistémica tradicional estiver correta, a crenca é uma condicao necesséria para o conhecimento. Descrita desse modo, a crenga pode afigurar-se como um simples trago légico do conhecimento, e talvez isso explique por que diversos episte- mélogos tradicionais nao estudaram a crenga como um estado psicolé- gico complexo. Pelo contririo, trataram a crenca como um estado mo- nolitico que pode tomar por objeto um ntimero indefinido de propo- sigdes. Dada a andlise tradicional, se vocé nio compreender em certa medida o que a crenga é, néo compreenderd tampouco o que é 0 conhe- cimento, Desse modo, a crenga deve ser estudada cuidadosamente pelas teorias do conhecimento. Este capitulo pretende examinar diversas caracteristicas da crenga que desempenham papel central em suas fungdes epistémicas. Vere- Mos que a importancia atribuida a andlise filosdfica geral do conheci- mento gerou um conceito de crenga (e de justificagao) rarefeito ¢ abs- trato, e deixou assim de englobar nao sé diversas diferengas epistemo- logicamente significativas entre varios estados cognitivos, mas tam- bém muitas relagdes igualmente importantes entre a epistemologia e a Psicologia. 48 | A TeoRIA Do CoNHECIMENTO AS CRENGAS E OS ESTADOS DE REPRESENTAGAO, Uma crenga, pelo menos segundo 0 uso comum que damos 20 termo, é sempre uma creng2 em um determinado estado de coisas. Em virtude dessa propriedade, a crenca é intencional ou, de modo mais ge- neérico, tem significado, Assim como o significado de uma frase é dado pela proposigao que expressa, o significado de um estado mental como uma crenga é proporcionado pelo estado de coisas, ou 2 proposigao, que tem de existir para que a crenga seja verdadeira. Dada essa caracte- ristica intencional, as crengas sio sempre representativas ¢ funcionam como mapas pelos quais retratamos o mundo que nos cerca e nele “na- vegamos” (ver Armstrong 1973, Cap. 1). Um dos principais pontos de vista da filosofia da mente tem uma importancia epistemolégica evidente. Segundo esse ponto de vista, cada uma das “atitudes propositivas’ — 0 nome que os filésofos dio a esta- dos psicolégicos como a crenga, 0 desejo, 2 esperanca e 0 medo ~ € to- talmente especificada por dois fatores: a relacio psicoldgica ¢ con- retido propositivo. Considere um estado mental que tenha por objeto, por exemplo, a superioridade dos mastins sobre todos 05 outros a mais de estimagéo. Tal estado seria uma atitude de crenga em vit ude da natureza da relagio psicoldgica que existe entre vocé ¢ a proposigio de que os mastins sio os melhores animais de estimagao. E claro que vocé pode ter atitudes diferentes em relagio a mesma proposicio. Pode acreditar que os mastins sio os melhores, mas pode também desejar isso, ter medo disso ou ter esperanga disso. As diferencas entre essas atitudes propositivas se refletem no modo pelo qual vocé pensa e age em relacio aos mastins. Se voce simplesmente deiejasre (mas nao cres- se) que 0s mastins fossem animais superiores, ndo necessariamente pro curaria convencer os outros disso nem ceria necessariamente a vontade de comprar um mastim (no mais nao havendo diferengas). Além disso, qualquer relagao psicolégica (crena, desejo, medo, etc.) pode ter por objeto diversas proposigées. Voct pode crer que os mas- tins sio animais de estimacao superiores, que o cavalo de corrida Ernie R. corre bem em pista molhada, que 0 quadro Jardim das delicias ter- renas de Hieronymus Bosch é mais apocaliptico do que pagio ou que a Bosch fabrica velas de alto desempenho para motores a explosio. O ACRENGA| 49 que toma esses estados diferentes entre si nao ¢ a atitude propositiva, mas sim 0 contetido propositivo de cada um deles, as proposicdes as quais a atitude (no caso, a crenga) se refere. Na epistemologia tradicional, os fildsofos chegaram por vezes a considerar a crenga como um estado em que vale o tudo-ou-nad: vocé cré em Pou nao cré. Essa nogao parece, na melhor das hipéteses, uma idealizagio, uma simplificagdo exagerada que facilita a andlise. Quando examinamos os casos reais de obrigagao epistémica, constata- mos que variam tanto em grau quanto em relagdo. A variagio em grau por si s6 nao representa nenhum problema para a suposicao de que a nocdo de crenga é algo muito claro. Podemos ter graus diversos de confianca; em especifico, podemes estar mais ou menos confiantes na verdade de uma proposicao. O fato de vocé nao ter confianga em sua crenca de que os mastins sio suscetiveis a cumores nio significa que vocé tenha alguma outra relacio psicolégica com essa proposicio — por exemplo, o medo de que os mastins sejam suscetiveis a cumores ou a es peranca de que nao scjam. Sua confianga faz variar, porém, a probabi- lidade que vocé atribui (ou arribuiria) a uma proposi¢io na qual cré. Qu Boa parte da epistemologia contemporinea surgiu nas décadas de 1960 ¢ 1970, periodo que produziu andlises volumosas e sutis da jus- tificagio e do conhecimento. Mas boa parte desse esforgo teérico teve por objeto a produgao de intricados exemplos contririos as andlises da condigao de justificagio, ¢ 0 faro € que a nogéo de crenga mereceu muito menos esforgos por parte dos investigadores. As obras fundado- ras traavam a crenga como uma nogio mais ou menos indiferenciada ¢ s6 mencionavam aquelas diferengas entre os estados de crenga que pudessem ser apreendidos a partir de uma investigacio filosdfica su- perficial. Por isso, embora possa haver tantas crengas particulares quan- tos so os objetos possiveis de crenga, 0 sentido segundo o qual alguém pode crer nesses objetos era entendido de modo mais ou menos uni- forme pelas diversas andlises epistemolégicas. Hi pouco tempo, os filésofos e psicélogos passaram a estudar a renga em diversos de seus papéis cognitivos: na formagao de atitudes, na indugio, na sua contribuigio para os desvios cognitivos ¢ num sem- nuimero de outros procestos psicolégicos. Hoje em dia, chegou-se vir- tualmente ao consenso de que as crencas sao estados que contém in- 50 | ATEORIA DO CONHECINENTO. formacoes, escados de um tipo especial. O tipo de informacéo contida nas ciengas depende, pelo menos cm parte, do modo pelo qual essas crengas representam 0 mundo. Se uma crenga representa o mundo in- corretamente — se 0 representa mal -, a crenca é falsa. Se, por outro lado, ela representa 0 mundo corretamente, é verdadeira ou factual. Como jé dissemos, nem todos os estados mentais sio crengas. Temos também desejos, esperangas, medos ¢ outros estados propositives. To- dos esses sao estados de representagio, na medida em que fornecem uma espécie de mapa ou panorama de uma parte do mundo. O medo de que haja uma cobra escondida na relva, por exemplo, é um medo de que o mundo seja de uma determinada maneira — de que seja tal que haja uma cobra escondida na relva. A representacio é um elemento in- dispensdvel da nossa vida mental. Certos estados mentais nio sio representatives e, nesse sentido, po- dem ter um papel epistemolégico diferente do das crengas. Considere, por exemplo, os chamados estados qualitativos ndo propositivos, como as experiéncias auditivas que temos ao ouvir um recital de piano ou as sensag6es de cor que temos quando apertamos as mios contra os olhos fechados. Estes tiltimos estados néo implicam uma proposicéo sobre al- guma coisa. Os processos nervasos que subjazem a esses estados ou os realizam podem ter alguma relagdo causal com 0 mundo. Mesmo as- sim, é duvidoso que s6 por isso 0 contetido das sensacdes de cor acima mencionadas seja portador de uma representacio, como é por exem- plo acrenca. Nossas experiéncias qualitativas nao propositivas podem parecer diferentes das crengas upicas pelo fato de serem “incorrigiveis’, para usar © termo proposto por certos filésofos: evidentemente, néo pode- mos cometer engano algum a respeito de seus contetidos. A tese da in- corrigibilidade, porém, s6 ¢ correta na medida em que nao haja ne- nhum juizo envolvido com os objetos dessas experiéncias. Quando bate nas teclas do piano, vocé tem a sensacao de um barulho alto. Vocé pode estar certo ou errado quanto ao juizo de queo barulho é alto, mas na sensacio em si mesma nao pode haver erro (nem acerto), pois nao € um jufzo. As crengas sio intrinsecamente propositivas, pois exigem um obje- to propositivo. Nao sao, porém, nem agées psicolégicas nem episddios A CRENGA| 51 ocorrentes; sio estados de representacao psicolégicos que podem ou niio se manifestar no comportamento. Vocé pode crer em que 2 +2 = 4, por exemplo, e nao estar fazendo nada enquanto isso; pode crer nis- so mesmo enquanto esté dormindo a sono solto, sem pensar minima- mente em aritmética. A crenga parece semelhante a certos hibitos que temos, pois envolve a tendéncia da pessoa a se comportar de determi- nado modo em determinadas circunstancias. No caso das crengas, a tendéncia em questdo, sendo um caso de representagdo, parece ser a dis- posigo a concordar com certos contetidos propositivos sob as circuns- tincias adequadas. A concordancia ou assentimento em questo é em si mesma episédica, uma vez que é uma aco, e nao precisa se manifes- tar no comportamento evidente. Como vocé pode cret em algo sem expressar seu assentimento a essa crenca agora (lembre-se de que vocé pode estar dormindo enquanto cré que 2 + 2 = 4), a crenga nio se iden- tifica a0 ato do assentimento. Embora nosso uso ordinario da palavra “crenga” seja um tanto vago € ndo nos habilite a decidir da validade de muitos casos de crenga pos- sivel, ndo nos devemos deixar perturbar por esse fato agora, Estamos interessados no papel cognitivo da crenga, eo fato de a nossa nocio de renga nem sempre esclarecer se uma pessoa acredita numa proposicao determinada nao é uma objegao grave & afirmagao de que a crenga tem uma fungio cognitiva importante. Certos filésofos defenderam a opi- niio de que essa inexatidao é incompativel com um estado cientifica- mente aceitével. Esse argumento deriva sua forca do cardter aparente- mente holistico das atribuigoes de crenga. Num exemplo famoso, Stephen Stich (1983, pp. 54-6) pede que consideremos a pessoa da Sra, T, que no passado acreditava que McKin- ley foi assassinado, mas de I para c4 sofreu uma perda progressiva de meméria, Nao tem certeza do significado do termo “assassinato” ¢ se lembra do nome “McKinley”, mas nao se lembra de ter havido um presidente com esse nome nos Estados Unidos. Acaso acredita real- mente que McKinley foi assassinada? Talvez nao. Porém, se imaginar- mos uma meméria um pouquinho melhor e uma apreensao mais niti- da dos conceitos pertinentes, podemos ver de que modo as crengas po- dem existir em varios graus. E evidence que, felizmente, as pessoas podem ter uma crenga no muito clara sem chegar a0 nivel da patologia. Uma 52 | ATEORIA DO CONHECIMENTO crianga, por exemplo, pode acreditar que o irmao de seu pai é seu tio, mesmo que nio compreenda claramente a questio das relacées de pa- rentesco. Se a crenga exigisse a compreensio plena de todas as nogées que a constituem, terfamos na verdade pouquissimas crencas. AS CRENGAS E A ATRIBUICAO DE CRENGAS ‘Temos de fazer uma distingao entre a crenga ¢ a sua atribuigio, ou sefa, entre a crenga e a atribuigio de crengas. A atribuigao de crengas & um procedimento pragmitico, na medida em que tem relacéo com a linguagem, e particularmente com a linguagem das crengas. A tolerin- cia com que atribuimos a uma pessoa a crenga em P nao exige necessa- riamente que a pessoa tenha a passe de todos os conceitos necessérios para crer em P. Vocé pode atribuir a um bebé, por exemplo, a crenga em que 0 aquecedor ao lado est quente, muito embora admita que o bebé nao tem a menor idéi do que éum aquecedor. Assim, a ttil ten- déncia a atribuir crengas a certas pessoas no nos deve levar a concluir simplesmente que elas tém de fato essas crengas. A utilidade da atri- buicdo de crencas nao é uma prova aucomatica da existéncia das cren- gas. A crenga é uma coisa; a atribuigdo util ¢ outra. Do mesmo modo, a Guil tendéncia de atribuir crengas como se fosiem verdadeiras nio nos deve levar a concluir que essas crengas existem na pessoa nem mesmo que sio verdadeinas de fato. O fato de atribuirmos crengas aparentemen- te verdadeiras segundo 0 nosso olhar nao garante que as crencas assim atribufdas sejam de fato crencas da outra pessoa ou sejam realmente ver- dadeiras. Desnecessdrio dizer que 0 mundo nem sempre corrobora as crengas que parecem veridicas. O Principio de Caridade, como modalidade de atribuigao de cren- gas, postula que devemos atribuir aos nossos intetlocutores crencas que sio em sua maioria verdadeiras. Esse Principio tem imporcancia epistemol6gica porque alguns fildsofes utilizaram-no para argumentar contra o ceticismo. Donald Davidson, em particular, afirmou que o ce- ticismo tem de ser falso porque o Principio de Caridade € verdadeiro. ‘Como quer que utilizemos o Princfpio de Caridade em nossas praticas ACRENGA| 53 interpretativas, € mesmo quando interpretamos pessoas de outras cultu- ras, 0 Principio induz a um erro filosdfico que precisamos identificar. A atribuigio de crengas e preferéncias a outras pessoas, inclusive a pessoas vindas de uma cultura radicalmente diferente, nos poe diante do problema de traduzir a fala dos outros para uma linguagem que se- jamos capazes de compreender. Sob este aspecto, o Principio de Carida- de nos oferece um método rapido de racionalizagao da explicagio. Os historiadores ¢ os psicélogos clinicos se defrontam com 0 mesmo pro- blema que os antropologos — descrever ¢ tornar inteligivel 0 comporta- mento de outros agentes, as vezes radicalmente diferentes. Os fildsofos simpaticos ao Principio afirmam que a pressio de compreender favo- rece um método de interpretagio que “coloque o intérprete numa po- sigéo de concordancia geral com o falante” (Davidson 1980, p. 169). Segundo Davidson, a interpretagio caritativa no depende de uma excolha nossa, Antes, diz cle, “a caridade nos ¢ imposta; quer gostemos disso, quer néo, se quisermos compreender os outros, temos de partir do principio de que eles esto certos com respeito a maioria das ques- tes” (1980, p. 197). Com medo do desacordo, porém, o intérprete toma o lugar do falante. Segundo Davidson, é 0 intérprete que diz quem esté com a razio. E claro que isso torna mais leve 0 fardo da ca- ridade para nés, intérpretes. Dado o Principio de Caridade, se formos intérpretes diligentes, nao precisaremos dar justificativa nenhuma para © nosso provincianismo interpretativo. Segundo Davidson, mesmo um intérprete onisciente “atribui crengas as outras pessoas e interpreta a fala delas com base em suas proprias crencas, como fazemos todos nds” (1980, p. 201). © Principio de Cari 80 de sabedoria filosdfica aceita por todos. Muitos filésofos © rejeitam ce afirmam que a interpretagao sensivel exige as vezes que partamos do pressuposto de que a outra pessoa esté enganada quanto 4 maioria dos assuntos, ¢ que néo existe nenhum niimero especifico de crengas falsas que nos impecam de interpretar com inteligéncia 0 comportamento alheio. A tarefa de interpretar 0 comportamento € explicativa; sea me- Ihor explicagdo de um comportamento exige que se atribua uma maio- ria de crengas falsas i pessoa objeto de interpretagio, que assim seja. Pelo menos nao podemos excluir essa possibilidade a priori. De qual- jade nao ¢ de forma alguma uma manifesta- 54 | a TeOKIA DO ConteciMENTO quer modo, o Principio de Caridade por si s6 nao elimina a ameaga do ceticismo, pois pode ser verdade que tenhames de atribuir crengas como se as crengas da pessoa fossem majoritariamente verdadeiras, mesmo que as crengas em ques Prine{pio de Caridade possa langar luz quer sobre a natureza das crengas, quer sobre o problema do ceticismo. no 0 scjam, Por tudo isso, é duvidoso que o ACASO AS CRENGAS SAO TRANSPARENTES? A epistemologia nao diz respeito somente a0 conhecimento que temos dos outros, mas também ao conhecimento que temos de nés mesmos, ¢ trata portanto do carter do autoconhecimento. Muitos fi- Idsofos teceram comentarios sobre as dificuldades de conhecermos o contetido de nossos préprios pensamentos, e alguns, como Kant, con- cluiram por fim que chegamos a conhecer 0 contetido da nossa mente do mesmo modo pelo qual chegamos a conhecer qualquer outro fato empirico. Por causa disso, podemos nos enganar em nossa crenga acer- cado que nos motivou num acontecimento particular. Em suma, por tanto, quando as crengas que atribuimos a nés mesmos tém o cardter de conhecimento, é porque sio (aproximadamente) verdadeiras e jus- tificadas. Também neste caso a verdade e a justificacao sao essenciais para 0 conhecimento. Certos fil6sofos propuseram a idéia de que nossos estados mentais sao imediatamente acessiveis & introspecgao ~ opinio que se chama is veves de tese da transparéncia, Segundo esse ponto de vista, podemos conhecer nossas crengas pela simples interiorizacio da aten¢io, por as- sim dizer, ¢ pela observagio imediata do contetido da nossa mente. Se- gundo Descartes ([1640]): “Nada pode haver em mim, ou seja, em minha mente, de que eu nao tenha consciéncia.” (Alguns comentado- res afirmam que Descartes restringiu sua tese da transparéncia aos ¢s- tados mentais atuais, mas nao vamos tratar aqui das vicissitudes da exe- gese do cartesianismo; estamos discutindo posigées filoséficas, e nao as pessoas dos filésofos.) Além disso, George Berkeley pensava que a de- monstragio de que um estado mental nao esta presente parte do faro de que 0 pensador nao tem conscigncia do estado: “Cada qual € cle ACRENCA | 55 mesmo 0 melhor juiz do que percebe € do que nao percebe. Em vio me dito todos os matemiticos do mundo que cu percebo certas linhas e angulos que introduzem em minha mente as diversas idéiasde distin cia se eu mesmo nao tiver consciéncia dessas coisas” ([1709], § 12). Virias consideragbes se apresentam contra qualquer versio inflex{- vel da tese da transparéncia, Em primeito lugar, as vezes a melhor ex- plicagio do nosso comportamento exige que nos seja atribuida uma atitude que nao é imediatamente perceptivel pela introspecsio, A idéia de que podemos ter estados mentais que nao s4o imediatamente aces- siveis & introspecsao nao precisa de provas fornecidas pela psicandlise nem parte do pressuposto de que qualquer outra pessoa tem mais con- digdes de conhecer nossos estados mentais do que nés mesmos. Antes, essa idéia afirma simplesmente que certos estados intencionais neces- sdrios para a explicacio de importantes comportamentos psicoldgicos nao so imediatamente acessiveis a0 sujeito desses estados. Em segun- do lugar, certos estados intencionais importantes para 0 processamen- to psicolégico nao podem ser “acessados” 4 vontade, ¢ nao temos cons- féncia deles enquanto esto em operaco, Esses estados so chamados as veres de subdoxdsticos, ¢ logo voltaremos a falar deles. Em terceiro lugar, se as crencas no sio agSes, mas estados de disposicao, nao serd surpresa se tivermos crencas que nao sejam imediatamente acessiveis & introspecgao. Afinal de contas, um estado de disposigao, como um hé- bito, pode existir sem se manifestar. ‘Vamos refletir sobre a primeira consideragio contra a tese da ex- trema transparéncia. Segundo uma grande tradigao da psicologia, po- demos ter estados mentais inconscientes. O pensamento de Freud ad- quiriu fama, mas muitos tedricos anteriores a ele também disseram que boa parte do nosso comportamento sé pode ser satisfatoriamen- te explicada por desejos ¢ crengas inconscientes. Pode ser que vocé nao planeje conscientemente chegar atrasado em seus encontros com um colega de quem nao gosta, mas mesmo assim sempre se atrasa. Se esse atraso nao € tipico da sua pessoa, pode ser que 0 desejo inconsciente de evitar o colega faca parte da melhor explicagao do seu comportamen- to. Tal explicago nao implica neahuma teoria psicanalltica especifica. Assim, podemos aceitar a afirmagao de que temos estados mentais in- Conscientes e a0 mesmo tempo rejeitar quase tudo © que Freud, Adler 56 | ATEORIA DO CONHECIMENTO ou Jung tinham a dizer a respeito desses estados. De qualquer modo, € importante deixar claro que ndo temos motivos para pensar que todos 05 nossos estados mentais inconscientes sio imediatamente acessiveis & nossa inttospecgao. Quanto a segunda considerasao contra a transparéncia, pense nos estados mentais subdoxdsticos, Tais estados refletem convicgdes cogniti- vas de um tipo especial. Stich (1978) afirma que a distingao entre os estados psicoldgicos comuns ¢ os estados “subpessoais” ou “subdoxis- ticos” estudados com sucesso pela psicologia cognitiva se define por duas caracteristicas. Os estados subdoxasticos, representados, por exem- plo, pelo estudo do diametro pupilar de E. H. Hess (1975), se distin guem dos comuns estados de crenga pelo seu isolamento inferencial ¢ pela sua inacessibilidade a conscitncia. No experimento de Hess, apre- sentaram-se a varios homens duas fotos quase idénticas da mesma mu- Iher, Uma das fotos, porém, tinha sido retocada, tornando as pupilas da mulher um pouquinho maiores do que na outra foro. Os homens estudados, em sua maioria, consideraram mais atraente a mulher da foto retocada, muito embora nao soubessem dizer por qué nem iden- tificar a diferenga entre as duas fotos. Nao hé diivida, portanto, de que existe algum mecanismo que processa as informagées sobre o diametro das pupilas e reage as diferengas nesse didmetro (mecanismo, aliis, curiosamente inexprimivel pela pessoa que nele nao presta atencao); isso nos dé a justificativa da afirmacdo de que certos estados subjacen- tes 4 producdo de uma crenga sao inacessiveis & consciéncia. Embora os estados subdoxdsticos possam servir de premissas para se inferir uma crenga, nao sao (para usara expresso de Stich) tio “in- ferencialmente promiscuos” quanto as crengas comuns. As crengas aces- siveis & consciéncia tém uma potencial relagio de inferéncia com uma enorme gama de outras crengas; ou seja, podem ter relagio de inferén- cia com crengas a respeito de praticamente qualquer tema. Por outro lado, os meandros inferenciais que correlacionam os estados subdoxis- ticos as crengas sio sempre especializados ¢ limitados. S6 uma estreita variedade de crencas (crengas visuais de uma certa espécie, por exem- plo) podem decorrer de um estado subdoxéstico determinado. Quan- do Stich afirma que os processos que operam nos estados subdoxésti- cos sio “especializados ¢ limitados”, ele antccipa a influente explicagao ACRENGA| 57 que Jerry Fodor deu dos médulos psicoldgicos, chamando-os de “me- canismos computacionais altamente especializados” (ver Fodor, 1983). Eevidente, portanto, que as explicagées dadas pelos diferentes cam- pos da psicologia experimental fazem uso de nogées de “estado psico- Iégico” que diferem da nogo “popular” desse mesmo termo. Faltaria precis2o a uma explicacao que remetesse o fato de os homens acharem “mais atraente” a mulher da foto retocada a uma crenga de que as mu- Jheres com pupilas maiores so mais atraentes. Uma vez deixada de lado a iddia de que os contetidos de nossas preferéncias epistémicas tém de ser imediaramente transparentes ou acessiveis & nossa introspecgao, po- demos reconhecer a importincia psicoldgica daqueles estados que ocu- pam de fato um papel central nas melhores teorias contemporineas da percepsao e da cognigio, AS CRENGAS E OS IDEAIS TEORICOS Todo discurso epistemolégico, como seria de esperar, é cheio de idealizages. Classificamos as crencas nas categorias simples de “justifi- cadas” ¢ “injustificadas”, muito embora nao reste a menor dtivida de que existem virios graus de justificacio. Outra idealizagio importante feica pela epistemologia contemporanea é a referéncia incondicional & renga “verdadeira”, Na verdade, muitas crencas inclufdas na categoria do conhecimento nao sao estritamente verdadeiras; so apenas aproxi- ‘madamente vesdadeiras. Com freqléncia, alegamos conhecer algo (mes- mo que essa alegacio seja feita somente de modo implicito) acerca do nosso peso ow altura, por exemplo, e quase nunca conhecemos esses va- lotes com exatidio, (Isso é verdade mesmo que arredondemos o valor.) Do mesmo modo, se vocé quer instalar janelas novas em sua casa, nio tem de medir as aberturas em microns, mesmo que isso seja possivel; uma precisio de meio centimetro é suficiente, mesmo para ser consi- derada um exemplo de conhecimento factual. Entretanto, os céticos ha- bituaram-se a usar dessa imprecisio para apregoar o pessimismo epis- temoldgico global. Para aqueles que consideram 0 cético uma pessoa insincera, incoe- rente ou mal informada (deixando de lado qualquer diivida sobre a sua 58| A TEORIA DO CONHECIMENTO. sanidade mental), existe um raciocinio pelo qual podem justificar 0 fato de inclufrem certos casos de incxatidio de medida na categoria do conhecimento factual: dadas as metas intelectuais propostas, as afir- mages se justificam suficientemente; além disso, sao adequadamente verdadeiras, embora imprecisas. Com efeito, dados os objetivos tipicos de qualquer atividade de medida, hi dois motivos pelos quais seria epistemologicamente irresponsavel a idéia de que uma afirmacio apro- ximadamente verdadeira nio é realmente verdadeira. Em primeiro li- gas além de nao ser recomendado usar-se de uma preciso desnecessé ria nas medidas em geral, ¢ etrénco dizer que a precisio de um mfcron é de fato mais “precisa”, do ponto de vista do conhecimento, do que a pre lidade entee as duas estimativas, dada a imprecisio dos instrumentos € (8 objetivos da medida, que ja permitem que a precisdo seja menor. Em segundo lugar, a preciso geralmente se obtém a custa de mais temn- po, dinheiro e esforco. Seria irresponsabilidade exigit uma tal precisio quando ela em nada pode nos ajudar. A caracteristica pragmatica do conhecimento, sua variabilidade de acordo com o contexto, manifesta uma liggo acerca da dependéncia da justificago em relagao As teorias: s40 os nossos objetivos tedricos que ;0 de um centimetro, uma ver que nao hé diferenga de confiabi- determinam qual é 0 grau de apoio ou confiabilidade necessérios para que uma crenga seja considerada justificada. (Para um raciocinio de apoio a esta concepcao, ver Helm 1994.) Se quisermos simplesmente estimar a velocidade de uma molécula num volume fechado de gés, ndo precisamos nos preocupar com 0 fato de a distancia do recipiente em relacZo ao sol variar com as estagdes do ano, Embora as influéncias gravitacionais sobre a molécula sejam reais, elas nao tém relagdo com 08 objetivos tedricos de se medir a velocidade da molécula (dada a pres- sao do gis). Na epistemologia como na fisica, esse juizo pela similari- dade depende da teoria. Quando julgamos que a posicio da lua nio influencia em nada a justificagao da minha crenga de que hi uma at- vore diante de mim, estamos fazendo uso de uma teoria. Um dos principais temas deste livro so as influéncias filosdficas que determinam um ponto de vista epistemolégico. Os que submetem as nossas nogdes comuns de crenga ao climinativismo, como W. V. Qui- ne (1954) e Paul Churchland (1989), nao tém muita paciéncia com ACRENCA| 59 um ponto de vista epistemolégico que tem por centro exatamente essa nogéo comum. O mesmo vale para a psicologia behaviorista radical. A corrente do behaviorismo légico, comum nas décadas de 1950 € 1960, foi completamente refutada de ld para c4, (Em fungio de um notdvel desenvolvimento da filosofia da mente, que em si mesmo vai além do tema deste livro; os detalhes do assunto sao apresentados em Gardner, 1987, e Fodor, 1981, d4 um panorama dos pontos de vista envolvidos.) Mas 0 behaviorismo légico pode ser citado aqui por dois motivos. Em primeiro lugar, ¢ um exemplo de como nossos pontos de vista filoséficos em um campo dependem dos nossos pontos de vista filosdficos em outros campos. Muitos fildsofos fizeram observar que a exigéncia Idgico-behaviorista de que as palavras que designam estados mentais (como “crenca” e “desejo”) sejam definidas em fungao do com- portamento observavel é um resquicio de um ponto de vista empirista (ou seja, bascado na experiéncia) mais amplo. A moral da histéria: sai- ba desde j4 que os behavioristas légicos vao defender uma teoria empi- rica da justificagao; €, de modo mais geral, saiba também que os diver- sos pontos de vista de um fildsofo sempre guardario entre si um vin- culo tematico definido. Sob este aspecto, a filosofia é irremediavel- mente holistica. O segundo motivo pelo qual mencionamos 0 behaviorismo légico diz respeito a opinido genérica, aqui apresentada, acerca da natureza da renga. Até aqui, partimos confiantemente do principio de que a cren- ga é uma representacdo mental. Entretanto, a postulagao de um estado interno nao observavel, como uma representagao mental, por exemplo, tende a melindrar os behavioristas légicos € pode inclusive ter 0 mesmo efeito sobre outros fildsofos, como os materialistas eliminativistas. Os que defendem o eliminativismo com relaio aos estados inten- cionais nao precisam negar que a afirmagao da existéncia de estados intencionais € titi Mas cles negam que essa afitmagio seja verdadeina. E dificil, porém, conciliar o eliminativismo (relativo especificamente as crengas) com os impressionantes resultados obtidos pela psicologia perceptiva, cognitiva e social. Se tivermos 0 cuidado de distinguir as crengas propriamente ditas dos motivos que temos para attibuir uma crenga.a uma pessoa, podemos postular um modo de provar que alguém tem uma crenca: se uma pessoa acredita em P, essa pessoa ha de con- 60 | ATEORIA DO CONHECIMENTO cordar com a proposigio Pem determinadas condigées (entre as quais se inclui, por exemplo, a auséncia da intencao de dissimular a propria renga). O uso desse critério ¢ falivel e ele nao basta para fornecer uma definigao total do termo “crenga’. Uma pessoa, por um motivo que Ihe parega suficientemente forte, sempre pode se recusar a concordar com uma proposigao, Pode, por exemplo, buscar iludir os outros com respeiro as suas crengas verdadeiras. Mesmo assim, se a pessoa acredi- ca.em P, cla ha de concordar com a proposicao P nas circunstincias adequadas. Sea crenga inclui essa tendéncia ou disposigéo de concordar com uma proposicio determinada, podemos naturalmente nos perguntar quantas outras crengas temos em virtude de ter uma crenga particular. Sera que, se vocé cré nas leis da matemdtica, também cré em todas as. conseqiiéncias ldgicas dessas leis, ou seja, nas conseqiiéncias que delas decortem pelas leis da légica? Cremos que 63 dividido por 9 ¢ igual a7. Acreditamos nisso em virtude de certas relacées que, segundo cremos, existem entre a divisdo, a multiplicagio ¢ o sistema dos ntimeros. Serd que por isso também acreditamos que 15.346 X 241 = 3.698.386? Em caso afirmativo, acreditamos em proposicdes com as quais no necessa- riamente nos sentirfamos inclinados a concordar imediatamente. Em caso negativo, precisamos de uma explicacéo de quando realmente acte~ ditamos nas conseqiiéncias légicas de nossas crengas. Embora nosso exemplo seja matemitico, 0 fenémeno da crenga tacita ou implicita é bastante generalizado. Nao precisamos aqui de nenhuma interpretagio psicanalitica. Podemos afirmar que certas cren- gas encontram-se abaixo do limiar da observagio consciente sem afir- mar que essas crencas permanecerio para sempre reprimidas na ausén- cia da firme orientacao de um psicanalista. Muito pelo contrario, exis tem virios outros motivos pelos quais as crengas podem desempenhar um papel causal na producao do comportamento (ou na interagao com outros estados mentais, como o medo ¢ 0 desejo), muito embora nao tenhamos consciéncia direta da sua presenga. Mesmo assim, a su- posigao de que cremos em todas as conseqiiéncias dedutivas de nossas crengas tem algumas implicagées que vao contra a intuicao. Certos fi- lésofos que defendem essa posicao simplesmente engolem o sapoe afir- mam que nés temos um miimero infinito de crengas. Outros buscam ACRENGA | 61 um mio daro de distinguir a mera disposigio a crer em Pda crenga propriamente dita em P. Nio precisamos resolver aqui a complexa questio de definir com exatidio as condigées da crenga. A plausibilidade de uma resposta a uma questio tio complexa néo se julga com base na simples intuigio. Muito pelo contrério, essa plausibilidade ¢ avaliada segundo o critério de opinides tedricas de natureza geral. Para todos os efeitos, dois pon- tos nos importam agora: as crencas sio representativas ¢ implicam dis- posig6es; € parecemos ter estados cognitivos cujo contetido representa- tivo nao ¢ transparente, ndo ¢ imediatamente acessfvel & intuiggo. Uma das causas desse limite imposto i introspecsio deriva do fato de que és 56 somos capazes de processar uma quantidade limitada de infor- mages num tempo determinado, ao passo que so muitos os aconte- cimentos interiores ¢ exteriores que competem pela nossa atencao. Se afitméssemos que s6 sao crencas propriamente ditas as crengas “ocor- rentes” (ou episédicas), nos verfamos na incomoda obrigagio de afir- mar que muitos estados de crenga aparentemente importantes para a nossa vida cognitiva nao séo crengas de modo algum. 0 ELIMINATIVISMO E SUAS PREVISOES Tangenciamos aqui um ponto de vista que assumiu diversas formas na filosofia recente: a posigao eliminativista com respeito as crengas, ou climinativismo. Os filésofos eliminativistas afirmam que nossas crengas io meros estados cerebrais e que um dia descobriremos que a crenga tal ¢ qual atualmente a concebemos ¢ algo que simplesmente nao existe. Prevéem esses fildsofos que o apelo as crengas nos discursos psicolégicos € epistemolégicos ser4 eliminado em favor do apelo a estados neurolé- gicos especificamente importantes do ponto de vista tedrico. Segundo esse modo de ver, a epistemologia seré redefinida como um ramo das neurociéncias, ou serd simplesmente substituida por clas. Duas razées se impdem contra o eliminativismo em sua forma atual, Em primeiro lugar, a previsio feita pelo eliminativismo nao é perfeitamente clara, Ou seja, nao esté claro o que seria necessério para que um dia descobrissemos que “as crengas nao existe”. Em especifi- 62| A TEORIA DO CONHECINENTO £0, 08 filésofos climinativistas néo ofereccram uma explicagéo adequada da redugao radical — uma explicagio que nos diga exatamente quan- do uma teoria pode tomar por completo o lugar da outra ¢ quando uma teoria pode ratificar de fato a existéncia dos objetos postulados pela outra. Em segundo lugar, a principal previsio do eliminativismo ainda nao foi confirmada, Os fascinantes desenvolvimentos da neuro- ciéncia cognitiva nao tolheram nem tornaram desnecessdrios os avan- 0s ocorridos em campos da psicologia que evidentemente fazem uso da nossa comum nogio de crenga, como a psicologia cognitiva e a psi- cologia social. (Quanto a alguns desses desenvolvimentos, ver Goldman, 1986, 1992.) Como a questio de saber se 0 eliminativismo é verdadeiro, a ques- tao de qual o lugar ocupzdo pela nogao comum ou popular de crenga numa psicologia cientifica pode ser decidida por uma investigacao em- pirica. Mesmo assim, certos filésofos, sem fazer apelo aos dados empi- ricos, procuraram provar que o eliminativismo ¢ incoerente ¢ falso. Se- gundo 0 argumento por eles apresentado, 0s eliminativistas cometem um “suicidio cognitivo”, dado que as afirmagoes eliminativistas sobre a crenga so autocontraditérias pelos préprios critérios do climinativis- mo. Se o eliminativismo for verdadeiro, nio existem crencas de ne- ; logo, os eliminativistas no podem afirmar que acredi- tam no eliminativismo. Voltando-se assim para a estrutura légica das alegagoes eliminativistas, certos filésofos criticam o eliminativismo in- dependentemente dos dados empiricos que poderiam confirmé-lo ou refuté-lo, Os argumentos de autocontradigao dependem, para sua eficécia, de uma correta reconstrugdo da posigdo atacada. Quando falta essa re- construgio, 0s atacados escapam do problema. Neste caso, os climina- tivistas alegam que o eliminativismo prevé que a verdade eliminativista vai superar a capacidade de expresso das nogées populares. Segundo 0s eliminativistas, a crenga nao é uma categoria tedrica de um vocabu- lirio cientifico amadurecido. Mesmo que agora nos falte um substitu- to adequado do vocabulirio da crenga, disso no decorre que 0 voca- bulério da crenca reflita nossas posigées tedricas mais dignas de con- fianca, Tudo 0 que se pode dizer € que, as vezes, 0 tinico vocabulério de que dispomos (neste caso, 0 vocabulirio da crenga) ¢ erréneo. Pode nhuma espé ACRENGA | 63 ser que, um dia, uma nova teoria cientifica fornega um vocabulério que expresse novas nogGes cognitivas e neuroldgicas que, juntas, subs- tituam a nogdo popular de crenga. Segundo os eliminativistas, se essas nocSes neurocientificas surgirem, sé entio deveremos decidir, a partic dos novos dados empiricos obtidos, se o eliminativismo tem razéo de ser e se a psicologia popular ¢ falsa ou verdadeira. Os criticos do eliminativismo devem reconhecer seu cariter previ- sivo e avalidé-lo segundo esse fato. Dois problemas surgem desde logo. Em primeiro lugar, atualmente nao temos motives suficientes para pensar que 2 nota promisséria assinada pelo eliminativismo ser de fato paga pela ciéncia do futuro. E perigoso profetizar acerca do futu- ro da ciéncia, ¢ € perfeitamente razodvel que nos recusemos a aceitar as previsbes eliminativistas. Em segundo lugar, podemos avaliar nossas teorias cognitivas de acordo com os dados atuais, dados esses que nao exigem, de maneira alguma, a eliminagio da nogéo de crenga. £ claro que esses dados podem se modificar com o tempo, mas seria apressado de nossa parte formular teorias baseadas numa previsio grandiosa acer- cade como tudo vai mudar A descricio dos estados subdoxasticos deixou claro que a psicologia cientifica tem importante papel a desempenhar para a formulacdo de ‘uma teoria epistemolégica. Os fildsofos se ocuparam de delinear no- Ges epistemolégicas gerais, como as de crenga e justificaco, a0 passo que 0s psicélogos se dedicaram a especificar, pelo menos em certa me- ida, os mecanismos que de fato séo responséveis pela formagao ¢ justi- ficagao das crengas. Nos Capitulos 8 ¢ 9, trataremos de qual pode ser 0 papel epistemoldgico da filosofia quando as nogGes epistemoldgicas co- megarem a ser influenciadas por investigagGes empiricas sistematicas. A partir dos melhores dados empiricos de que dispomos, temos de reconhecer que a capacidade de crer nao é um privilégio dos seres hu- ‘manos. Qualquer animal capaz de representar ~ acertada ou erronea- mente — o mundo é um crente em potencial. Porém, nem sempre é f&- cil identificar 0 conbecedor potencial, por maior que seja a inocéncia com que venhamos a empregar 0 vocabulétio da intencionalidade para descrever 0 comportamento animal. Certas abelhas fazem uma “dan- a para comunicar a outras a direcio de uma fonte de néctar. Para evi- tar um possivel ataque, a cobra heterodonte se finge de morta e, num 64 | ATEORIA DO CONHECINENTO gesto ainda mais dramatico, é capaz de pér sangue por uma glindula especial. Muitos passaros que aninham no chao, para proceger a ni- nhada dos predadores, fingem-se feridos e desviam a atengio dos pre- dadores dos passarinhos que esto no ninho. Seré que esses animais tém crengas? Serd que a comeédia da asa quebrada da tarambola nasce de uma crenga de que, se o predador cré-la ferida, perseguird a cla e nao a seus filhotes? No Capitulo 6 apresentaremos a idéia de que certos conhecimen- tos sio inatos. Para atribuir um legitimo comportamento inteligente & tarambola, precisamos saber se ela executa a sua rotina dramdtica in- dependentemente de qualquer ameaga real & ninhada, Em suma, 0 t(- pico comportamento inteligente é comportamentalmente flexivel. Se um comportamento automatico nao ¢ interessante do ponto de vista epis- témico, € importante determinar se a tarambola éincapaz de agir de ou- tra maneira e se © mesmo comportamento pode ser mecanicamente suscitado por uma larga variedade de condiges. A chave para saber se alguns animais tém crengas parece estar na flexibilidade do comporta- mento. Quando 0 comportamento é flexivel, pode ser que o animal seja capaz de representar para si mesmo diversos estados possiveis do mundo. Um programa de pesquisas empiricas procura determinar em que con- siste exatamente essa flexibilidade. Hi uma outra questao: se todas as crengas animais podem ser ava- liadas quanto & sua justificagao. Segundo a andlise epistémica tradicio- nal, o fato de os animais poderem ter um conhecimento propositivo depende do fato de suas crengas poderem ser justificadas, De acordo com essa andlise, o conhecimento propositive se define como crenga verda- deira ¢ justificada. © pressuposto que serve de base para todo este ca- pitulo é que 0 conhecimento propositivo, tal como é entendido tradi- cionalmente, tem como pré-requisito 0 tipo de estado de representacéo que chamamos de “crenca”. A crenga, porém, é um fendmeno psicolo- gicamente complexo, ¢ cabe & psicologia cognitiva decifrar com exati- dao 0 seu funcionamento. Pelo menos sob este aspecto a epistemologia tem algo a lucrar com as liges da psicologia. Em suma, pois, verificamos que as crengas sio intrinsecamente re- presentativas ¢ que nio devem ser confundidas com uma mera atribui- ao de crengas. Nossas crencas como estados de disposigio no nos si0 ACRENGA 65 sempre imediatamente acessiveis, mas essa falta de transparéncia nao pe em xeque a realidade das crencas. Nao encontramos motivo algum para adorar o climinativismo no que diz respeito as crencas; muito pelo contrario, manifestamos nossas diividas acerca da previsdo eliminati- vista de que o progresso da ciéncia viré um dia a tornar dispensdvel a prépria idéia de ctenga. Depois de assim delinear a natureza da crenga, podemos nos voltar para a préxima condicao essencial do conhecimen- to: a verdade, CAPITULO 4 A VERDADE No capitulo anterior, investigamos a natureza da crenga, uma vez que esta € um pré-requisito para o conhecimento. Para saber P (qual- quer proposigao dada), temos de crer em P. A préxima condigio es- sencial para 0 conhecimento é a verdade. $6 sabemos Pse P for verda- deira. Depois de ouvir pela primeira vez essa restrigao a0 conhecimen- to, certas pessoas apresentam objegdes. Pensam nos seres humanos do passado que criam, por exemplo, numa Terta estacionéria no centro do universo. Percebem que muitos dos nossos antepassados nao tinham indicio algum de que a Terra se move pelo espaco numa velocidade con- sideravel. Acham que, como nossos antepassados nao tinham sinal al- gum do movimento terrestre e, logo, adotavam sua crenga com racio- nalidade e responsabilidade, devemos honrar e respeitar essa racionali- dade atribuindo a sua crenga o titulo honorifico de “conhecimento”. Sustentam que, como nossos antepassados eram racionais ¢ como nés terfamos acreditado na mesma coisa se estivéssemos no lugar deles, nao devemos refutar sua alegacao de que tinham conhecimento. Como dissemos no Capitulo 1, a negagio da alegagio de nossos antepassados, que diziam saber que a Terra € estacionéria, no é uma critica a eles nem uma negasao da racionalidade deles. E muito possi vel que eles tenham prestado cuidadosa atengio a todos os dados dis- pontveis ¢ constituido suas crengas de forma epistemicamente respon- 68 | ATEORIA DO CONHECIMENTO sével, Acontece, porém, que estavam errados, ¢ isso nio € incomum para os crentes humanos. Justificavam sua crenga a partir das melho- res informagées de que dispunham — podemos reconhecer esse fato, muito embora a crenga fosse falsa. No Capitulo 5, levaremos em con- ta algumas explicagées de como tais crengas poderiam se justificar, mas por enquanto devemos observar que o fato de uma crenga ser fal- sa nao significa que nao seja justificada, Nossos ancestrais tinham, como nés provavelmente temos, muitas crengas falsas; e, em virtude dessa falsidade, essas crengas nao podem ser englobadas na categoria “conhecimento”. Este capitulo trata da questio de o que é a verdade, Para muitos, essa parece ser uma pergunta filosdfica excessivamente profunda, que exige, para ser respondida, reflexdes laboriosas mas jamais conclusivas. Em face da grave questo “O que é a verdade?”, muitos tedricos se sen- tem assoberbados ¢ incapazes de encontrar uma resposta significativa. Segundo esses tedricos, a Verdade (com “V" maitisculo) deve ser temi- dae venerada, mas nao analisada. Para muitos outros, porém, a pergun- ta no tem uma tal aura de profundidade; surge como uma pergunta mais tangivel, sem deixar de ser dificil. Esté intimamente ligada as ques- t6es de como as frases ¢ afirmagées verbais podem ser verdadeiras e como. as atitudes propositivas chamadas “crengas” podem ser verdadeiras. A questao a ser respondida neste capitulo ¢ aparentada com a questao geral de como a linguagem se torna significativa de modo que possa referit-se As coisas presentes no mundo; tem relagao, ainda, com a questio de como podemos representar em nossa mente afirmagées acerca do mun- do e, logo, 0 préprio mundo. Quando nos perguntamos a respeito da verdade, nosso interesse especifico ¢ de descobrir a quais condigies uma frase, afirmagao ou crenga tem de atender para que seja verdadeira. A semelhanga da maioria dos epistemélogos contemporaneos, so- mos favordveis & segunda abordagem acima delineada. Essa aborda- gem ¢ preferivel porque pelo menos nos dé alguma idéia de como pro- ceder rumo a obtengio de uma resposta satisfatdria & questao de o que €a verdade. A primeira abordagem nos deixa indecisos até mesmo quan- to ao modo de comegar a encarar a pergunta. Ficamos, assim, perple- xos € boquiabertos diante de um mistério aparentemente insondével. AVERDADE | 69 Dado que os fildsofos so explicadores, cles devem tentar, sempre que possivel, eliminar tal mistério. © RELATIVISMO. ‘No Capitulo 1, mencionamos de passagem o tema do relativismo. Deixamos claro que o relativismo, longe de dar sustentagao ao ceticis- mo, na realidade torna 0 conhecimento algo muito ficil de adquirir. Desnecessirio dizer que a idéia de que a verdade é relativa é popular em muitos meios. Certas pessoas gostam de dizer, por exemplo, que, para muitas sociedades do passado, era verdade que a terra é 0 centro estacionario do universo. Também mencionamos 0 exemplo daqueles que afirmam que a proposigao “Deus existe” € verdadeira para 0 cren- te e falsa parao incrédulo, Mas a que se resumem, na realidade, essas afirmagdes do relativism? De que serve dizer que algo é verdadeiro ‘para uma pessoa, ¢ nao simplesmente verdadeira? A investigacao destas ‘questdes langara luz sobre o relativismo. E facil confundir a tese do relativista com a afirmagao de que as pessoas podem, de algum modo, fabricar a propria verdade. Esta ulki- ma afirmagao é vaga ¢ ambigua, mas existe pelo menos uma imterpre- tagio que a torna evidentemente correta. Todos nés temos o poder ~ um poder limitado, é certo — de tornar verdade certas coisas. Se a jane- la estd aberta ¢ estou com frio, por exemplo, tenho 0 poder de “criar” a verdade de a janela estar fechada; levanto-me ¢ fecho a janela. A fia- se “A janela esté fechada’ era falsa, mas, fechando a janela, tornei-a verdadeira. (Muitos filésofos acrescentariam aqui uma palavra de aler- ta quanto a0 modo pelo qual se deve lidar com os valores mutaveis da verdade, mas nao precisamos nos preocupar com isto agora.) De algum modo, pois, podemos “construir nossa prépria verdade” ou “construir nossa propria realidade”, mas essa € apenas uma maneira pomposa ~ € que tende a conduzir ao erro ~ de diver que temnos algum poder de in- fluéncia sobre o nosso ambiente circundante. Nao devemos confundir essa afirmacao vulgar com as alegagdes mais controversas dos relativistas. Temos de admi i que certas coisas estao além do nosso poder. 70 | A TEORIA DO CONHECIMENTO A afirmagao mais forte do relativista seria, por exemplo, a de que pode ser verdade para mim que a janela estd aberta e, 20 mesmo tem- 0 isso ser falso para vocé, Muitas pessoas confundem essa afirmagao com a alegagio mais modesta de que a janela pode me parecer aberta € the parecer fechada. Nesta iiltima afirmagio nao hé controvérsia, pois € muito claro que a mesma coisa pode assumir aparéncias diversas para pessoas diferentes, dependendo, por exemplo, do lugar onde esto co- locadas, da capacidade de percepgao de cada uma, etc. Essa afirmagao mais modesta ndo éa tese relativista. Ha uma outra afirmagao parecida, mas que também nao resume em sia tese relativista. A maioria dos filésofos concorda em que a cren- a racional pode ser relativa, na medida em que uma pessoa numa de- terminada situago pode crer racionalmente em algo que seria irracio- nal para outra pessoa em outra situagdo. Uma pessoa pode ter dados que corroborem uma crenga, a0 mesmo tempo que outra nio dispoe desses dados. Assim, a primeira pessoa pode crer justificadamente em algo que a segunda nao pode. A crenga ¢ justificada para a pesoa Ae nito é justificada para a pessoa B, mas isso nao é 0 mesmo que dizer que a crenga é verdadeina para Ae falsa para B. Aquele que adota a posicao relativista com respeito a verdade pode estar afirmando, enfim, que de algum modo sao os critérios usados para se determinar ou identificar o que ¢ verdadeiro que constituem, na realidade, a verdade propriamente dita, Esté envolvida af uma impor- tante distingao. Por um lado, podemos discutir o que torna algo verda- deiro, Ou seja, podemos discutir quais so as condigdes que definem quando uma crenga ou uma afitmagio é verdadeira. Por outro lado, podemos discutir quais métodos a pessoa deve empregar para discernir ou identificar as crencas € afirmagées verdadeiras. Sio esses os métodos ou regras que se usariam para procurar ou escolher as crengas ¢ afirma- Ges que atendem as condigdes que definem a verdade. Por analogia, considere a distingao que tracamos entre as condi- {G6es que definem que algo é uma nota de um dolar € os critérios que usamos para identificaras notas de um dolar. Identificamos as notas de um délar sobretudo com base em sua aparéncia. Procuramos a efigie de George Washington, 0 mimero 1, as palavras “Federal Reserve Note”, AVERDADE | 71 9 sclo da Secretaria do Tesouro, etc. Para que algo seja uma nota de um délar, porém, é preciso mais do que essas meras caracteristicas superfi- ciais. Um pedaco de papel pode ter a aparéncia de uma nota de um d6- lar, mas ser na verdade falsificado, Pode ser até mesmo uma imitacao. barata que nao enganaria senio um pequeno ntimero de pessoas. Para ser uma nota de um délar, o pedaco de papel tem de (a) ter uma origem adequada (ser emitido pelo governo federal), (b) funcionar de uma maneira determinada na economia (ser usado para comprar e vender) ¢ (©) ser identificavel pela maioria das pessoas que operam na econo- mia. Assim, existe uma diferenga clara entre os critérios pelos quais normalmente tentamos identificar as noras de um délar e as caracteris- ticas que de faro definem essas notas. Existe, do mesmo modo, uma importante distingao entre os critérios pelos quais tentamos identificar as afirmacées verdadeiras ¢ a definigao da verdade de uma afirmasio. Como dissemos, pode ser que os relativistas eliminem « distingo entre as condigGes de identificagio ¢ as condigoes de definigao. Duas pessoas em situagdes diferentes, que usam os mesmos critérios ou mé- todos para discernir a verdade, podem obter resultados diferentes em relago A mesma afirmagio. Uma delas pode identificar a afirmagio como verdadeira enquanto a outra a identifica como falsa. Essa diferen- ca pode ser explicada pela diferenga das situacdes (que inclui, entre ou- tras coisas, diferengas nas informagGes disponiveis). Se os critérios usa- dos pelas duas pessoas para identificar a verdade também sao as condi- Ges que definem o que éa verdade, chegamos 3 conclusio relativista. Nesse caso, a afirmagio considerada nao s6 ¢ identificada como verda- deira pela primeira pessoa como também ¢ verdadeina de fato para essa pessoa, pois os critérios de definigao e identificagao da verdade sio os mesmos. Ao que parece, temos de admitir a possibilidade de que as pessoas cheguem a conclusdes diferentes em sua determinacao do que é verdadeiro € 0 que é falso, muito embora usem elas os mesmos crité- rios de identificagao. Se existe, pois, uma certa relatividade na identifi- cago do que é verdadeiro, e se as regras para a identificagao da verda- de sao também os préprios critérios de verdade ¢ falsidade, decorre dai que a verdade é relativa. Nio temos motivo algum para eliminar a distingio entre os crité- rios de discernimento da verdade das afirmagées e os critérios que de- 72| ATEORIA DO CONHECINENTO finem quando uma afirmagao é verdadeira. A distingao é claramente inteligivel e, potencialmente, é extremamente itil. Assemelha-se a dis- tingdo entre a aparéncia que as coisas assumem para uma pessoa (os critérios de identificacao da verdade) e a realidade dessas mesmas coi- sas (os critérios que definem a verdade). Temos de fazer de tudo para discernir a verdade da falsidade com base nas aparéncias (nossos crité- rios de identificacio), mas as aparéncias podem enganar; nesse caso, ha- verd uma diferenga entre a aparéncia que as coisas assumem para nés ¢ ‘© modo como elas so na realidade. Em outras palavras, nossa crenga pode ser errdnea. A distinggo de que estamos falando é necesséria para garantie a possibilidade de podermos estar errados em alguns de nossos juizos. Sem essa distingao, desde que aplicassemos um conjunto aceitavel de ctitérios para discernir a verdade, 0 erro e o engano seriam absoluta- mente impossiveis. As regras seguidas para encontrar a verdade seriam a propria verdade, E evidence que néo podemos negar a possibilidade do erro; assim, temos de preservar a distingio da qual falamos. E, se preservarmos essa distingio entre os critérios de discer dade e os critérios que definem a verdade de uma afirmacio, elimina- mos um argumento a favor do relativismo. Os relativistas se veer diante de um grave dilema que nasce desta simples pergunta: a suposta verdade do relativismo ¢ também relativa? Ou seja, é relativa a crenga de um individuo ou grupo de individuos? Se, por um lado, for relativa desse modo, a suposta verdade do relativis- mo niio serd nem um pouco diferente da mera opinido de um individuo ou grupo de individuos. Se, por outro lado, a verdade do relativismo nio for relativa, teremos uma suposta verdade (a saber, a verdade do re- lativismo) incompativel com a afirmacao relativista de que toda verda- deé relativa a um individuo ou grupo de individuos. Qualquer que seja a alternativa escolhida, o relativismo se vé em maus lenc6is. Os relativistas podem fazer uso de argumentos diferentes desses que consideramos. Podem, por exemplo, preservar a distingdo entre os critérios de discemnimento da verdade c a definigéo de verdade, mas a0 mesmo tempo alegar que as condigdes que definem a verdade de uma afirmago dependem em certa medida dos fatos que dizem respeito a um conhecedor em particular. Para explorar mais a fundo essa possibi- ento da ver- AVERDADE | 73 lidade, teremos de examinar algumas outras teorias filoséficas acerca do que éaverdade. No restante deste capitulo, trataremos de encontrar os critérios que definem a verdade, Nao trataremos dos critérios de dis- cernimento da verdade, pois esse tema surgiré no Capitulo 5. A VERDADE E A CORRESPONDENCIA. Segundo uma antiga tradigao do que ¢ necessitio para que uma afir- magio seja verdadeira, € preciso haver uma correspondéncia adequada entre as afirmacées verdadeiras e as caracteristicas reais do mundo. Por exemplo, a afirmagao verdadeira de que voce esta lendo este livro cor- responde, de algum modo, as caracteristicas reais do mundo que o ro- deia, Varias versGes dessa idéia constam dos escritos de muitos fildso- fos de diversos periodos da filosofia ocidental. ‘As afirmagGes verdadeiras correspondem de algum modo 4 reali dade, eas afirmacées falsas nao correspondem ao estado real das coisas no mundo, Essa idéia ¢ intuitivamente evidente, pelo menos quando submetida a uma primeira considerasao. Por exemplo: a afirmacao de que Chicago ¢ uma grande cidade norte-americana é verdade, a0 que parece, porque corresponde ao fato de que Chicago é uma grande ci- dade norte-americana, A afirmagio de que Seattle fica ao sul de Los Angeles € falsa, ao que parece, porque nio corresponde aos fatos. Em especifico, contradiz o faro de que Seattle fica ao norte de Los Angeles. Se empregarmos essa definigo da verdade como uma correspondén- cia, no seremos relativistas. Segundo essa concepeao, a verdade nao € verdade em relacdo a esta ou aquela pessoa. Antes, provém de como as coisas 0 realmente no mundo, independentemente, talvez, das cren- gas dos seres humanos. Como dissemos no Capitulo 3, uma afirmagao pode ser “aproximadamente” verdadeira, ¢ a definicdo da verdade como correspondéncia tem de dispor de recursos para salvaguardar esse fato. No caso de uma crenga aproximadamente verdadeira, a relagio entre nossa representagio mental do mundo eo mundo em si mesmo pode ser mais ou menos precisa A definicéo da verdade como uma correspondéncia tem sua raiz na proposigao de Aristoteles, feita no Livro IV da Metafisica, de que 74 | ATEORIA DO CONHECIMENTO uma afirmagao s6 é verdadeira se afirma que o que é, é, ou queo que nao é, nao é, Nessa mesma linha, uma afirmacio 86 é falsa se afirma queo que € nao é ou que o que nao é, é. O sentido do fraseado pode ser muito dificil de apreender primeira vista, mas a idéia fundamental fica clara como agua depois de um pouco de reflexdo. A afirmacao de que Chicago ¢ uma grande cidade norte-americana é verdadcita por- que afirma que que ¢ (Chicago como uma grande cidade norte-ame- ricana) é de faro (Chicago é uma grande cidade norte-americana). A afirmacao de que Seattle fica ao sul de Los Angeles ¢ falsa porque afirma gue o que nao é (Seattle ao sul de Los Angeles), é (afirma que Seattle fica ao sul de Los Angeles). Apesar do seu forte apelo intuitivo, a definicao da verdade como uma correspondéncia enfrenta algumas dificuldades. O primeito pro- blema € que ¢ dificil definir exatamente em que consiste a relagao de correspondéncia entre uma afirmagdo (ow crenga) ¢ © mundo. Segundo uma hipétese, a correspondéncia se do. Sob esse aspecto, as afirmagées verdadeiras retratam com ex: ‘0 estado das coisas. Essa interpretacao € plausivel, pelo menos no que diz respeito as afirmacées que descrevem diretamente um estado de coisas, como a localizacio de um objeto. “A escrivaninha est junto & janela” parece retratar, através do uso de nomes e de relagGes gramati- cais, a situagao fisica de uma escrivaninha situada espacialmente préxi- ma a janela. A idéia da corespondéncia como um retrato se mostra insuficien- uma espécie de retrato do mun- lao teem muitos casos. Pense nas afitmagSes sobre 0 que aconteceria numa determinada situagio que nio corresponde aos fatos. “Se voce fosse presidente dos Estados Unidos, seria famoso” — essa € uma afirmacio verdadeira, mas € dificil ver 0 que ela reimata, Na verdade, ¢ dificil aré mesmo identificar uma realidade 4 qual ela corresponda. Existem tam- bém afirmagies verdadeiras acerca do que deve ou tem de acontecer, que podem ser contrapostas as afirmagées sobre 0 que acontece de fato: so as chamadas afirmacées normativas. Por exemplo: “Voce deve aju- dar alguém cuja vida esteja em perigo, desde que scja capaz disso ¢ nao coloque a sua prépria vida em perigo” —essa afirmagio parece ser ver- dadeira. Também nesse caso, porém, € dificil ver qual realidade ela re- trata, a qual realidade corresponde. Muitas das nossas afirmagées ver- AVERDADE| 75 dadeiras mais complexas parecem no corresponder (pelo menos nao diretamente) a nenhum aspecto do mundo. Talvez possamos evitar os problemas ligados & nogao de corres- pondeéncia se formularmos uma definiggo de verdade que nao parta de um conceito tao especifico. Podemos definir a afirmagao verdadeira simplesmente como uma afirmagio tal que o que ela afirma ser de fato é. A afirmagao ja feita, e que nao corresponde aos fatos, ¢ evidente~ mente verdadeira, pois 0 que ela afirma ser de fato é especificamente, que, se vocé fosse o presidente dos Estados Unidos, seria famoso. Do mesmo modo, nossas afirmaces normativas podem ser verdadeiras quando o que afirmam ser de fato é. Esta versio mais simples da defi- nigéo da verdade como uma correspondéncia, e que nao emprega ne- nhuma nogio especifica de correspondéncia, assemelha-se a afirmacio de Aristoreles segundo a qual é verdadeiro dizer, do que é, que é Segundo alguns fildsofos, a recente ¢ influente “abordagem seman- tica” da verdade, proposta por Alfred Tarski, define a verdade como uma espécie de correspondéncia. Tarski introduziu princfpio seguin- te, nfo como uma definigio de verdade, mas como uma condigao su- ficiente que tem de ser atendida por qualquer definigio que se preten- da aceitavel: X é verdade se P, e somente se P (sendo “P” uma oragio declarativa, ¢ “X” 0 nome dessa oragio). Dada a condigio de Tarski, a frase “Todos os cirurgiées sao ricos” seré verdadeira se e somente se todos 08 cirurgides forem ricos. Na condicio de suficiéncia de Tars- ki, 0 que se segue a “se e somente se” é uma situago real com a qual a sentenga verdadeira em questio tem uma relacio adequada; por isso, varios filésofos encaram a condigao de Tarski como a especifica- ao de uma exigéncia de correspondéncia para a verdade. Entretan- to, os fildsofos em geral ainda nfo chegaram a um consenso quanto a0 fato de Tarski propor, ou nao, um conceito da verdade como uma correspondéncia. Um aparente problema epistemoldgico confronta qualquer defini- Go que caracterize a verdade como uma relagao entre uma afirmagao (ou crenga), de um lado, ¢ 0 mundo, de outro. O problema é que nao parecemos estar em condigdes de julgar, de maneira nao circular, se a afirmasao se relaciona ao mundo de mancira adequada. A confirma- 0 nfo circular de um jufzo qualquer acerca da adequaso da relacéo 76 | ATEORIA DO CONHECINENTO aparentemente exige que tenhamos algum acesso (cognitive) ae mun- do que nao seja mediado pela nossa aceitagao de uma declaragao acer- cado mundo ou por outros processos sujeitos ao impedimento cético. Talvez nao possamos ter um acesso (cognitivo) ao mundo que nao seja mediado por esses processos. Trata-se de questo controversa entre os filésofos. Seesse acesso nos fosse impedido, nao terfamos condigées de fazer, sem incorrer em circularidade, a necessdria comparagio entre uma afir- magdo € 0 aspecto do mundo sobre o qual versa, No Capitulo 8 volta- remos a uma versio deste problema epistemolégico. Caso se trate de um problema de fato, ele nao passa de uma contestagio do modo pelo qual identificamos quais afirmacées sio verdadeiras. Nao poe em ques- 10 a definigio da verdade como uma correspondéncia, pois uma afir- mago pode guardar uma relagio adequada (verdadeira) com o mundo muito embora nao tenhamos condigées de descobrir essa relagao. O que est posto em xeque aqui é a nossa capacidade de encontrar os cri- térios corretos para discernir a verdade; mas nenhum problema se apre- sentou para a definigao da verdade como uma espécie de relagio de correspondéncia entre uma afirmagao e o mundo. Podemos dar um exemplo para deixar claro que a verdade como correspondéncia nao depende do nosso conhecimento da verdade nem da nossa capacidade de discernir a verdade. Pense, por exemplo, na idéia de que a relagao de verdade em questio seja causal de uma ma- neira especial. Segundo essa idéia, a relagao fundamental entre uma afirmagao verdadeira e o mundo € causal, ¢ talvez possa ser compreen- dida mediante uma comparagio com a relagZo entre um substantivo prdprio ¢ 0 objeto a que ele se refere. O uso do nome “Elvis Presley”, segundo alguns fildsofos, & reference-fixing, ou seja, fixa uma referén- cia. As ocorréncias desse nome selecionam o objeto Elvis e assim cor- relacionam-no causalmente com 0 mundo, Essa relacdo de selecao é complexa e provavelmente inclui acontecimentos fundadores como 0 ato de dar nome a crianga, bem como processos sociais posteriores pe- los quais esses usos do nome “Elvis Presley” variaram lado a lado com as mudangas das caracteristicas da pessoa em questo, como as costeletas € a gordura. Como essa variagio colateral parece nao ser acidental, mui- tos fildsofos pensam que ela reflete alguma espécie de relagio causal. avenpant | 77 A verdade da afitmacao “Elvis Presley gostava de comer lanches gordurosos de madrugada’ é determinada em parte pelo fato de o nome “Elvis Presley” se referir & pessoa & qual se refere. Se o substituirmos por um nome diferente, como, por exemplo, “Shirley Temple”, o valor de verdade da afirmacao resultante pode mudar de verdadeiro para falso. Assim, parece quea relacéo de verdade depende de algum modo da re- lagao de referencia. Sea relagio de referéncia é causal, a rclagao de ver- dade depende de uma relagio causal, muito embora nao seja uma rela- io causal. Como a relacZo causal em questéo pode se estabelecer sem que disso tenhamos conhecimento, também a verdade seré indepen- dente do nosso conhecimento. Nio é motivo de surpresa que algumas verdades sejam indepen- dentes do nosso conhecimento. Afinal de contas, se existe um mundo independente da mente, se 0 nosso conhecimento € limitado, entio a verdade é naturalmente capaz de superar 0 que conhecemos. Parece haver, por exemplo, muitas verdades relativas a Plurio, Jupiter e Mar- te que esto akém do nosso conhecimento ¢ possivelmente aguardam © dia em que serao descobertas. A VERDADE E A COERENCIA As dificuldades gerais que rodeiam a tarefa de se especificar exata- mente o tipo de relagio que deve haver entre uma afirmagao € 0 mun- do levaram alguns filésofos a desenvolver uma definicio de verdade bas- tante diferente. Definiram eles a verdade como uma relagio entte afir- maces. Segundo a definicéo da verdade como coeréncia, uma afirmacio 86 é verdadeira se guarda uma relacao adequada com algum sistema de outras afirmacbes. Essa relacdo adequada é chamada coeréncia. Essa de- finigao de verdade foi apresentada por Espinosa (1632-1677) e Hegel (1770-1831), em tempos mais recentes foi associada a figura de Brand Blanshard. A concepgio da verdade como coeréncia tem de tratar da questio da natureza da cocréncia, Qual o sentido de dizer que uma afirma- a0 “coere” com algum sistema de outras afirmagées? Uma das possi- bilidades faz apelo & nocéo de implicacdo légica: uma afirmacio coere 78 | A TEORIA DO CONHECIMENTO: com um sistema de outras afirmagbes se ¢ somente se decorre logica- mente desse sistema ou implica logicamente algum subconjunto do sistema. Os coerentistas propéem as vezes o sistema das verdades ma- teméticas como paradigma de um sistema coerente, capaz de produzir a verdade. Nao ¢ tao evidente, porém, que espécie de sistema real pode servir como base de coeréncia para todas as verdades. Um problema de circularidade surge quando definimos a “verda- de” em fungao do conceiso de coeréncia e definimos a “coeréncia” de tal modo que a nogio de verdade fica implicita nessa definigéo. Os coerentistas podem definir a coeréncia através de um rol de inferéncias formais, ou seja, formas de inferéncia determinadas pela gramética (como, por exemplo, “Se P, entio Q’;e “P, portanto Q’) que nao pres- supdem a nogio de verdade em questo. Mas, nesse caso, precisamos saber por que devemos aceitar como definitivas essas inferéncias for- mais e nao outras — inferéncias conflicantes com aquelas, por exemplo. Pode-se dizer que o coerentista é incapaz de justificar um rol de formas inferenciais sem langar mao de uma nogio de implicagio que pressu- poe a propria nogio de verdade a ser definida. Qualquer que seja a so- lugéo dada a este problema, a marca registrada do coerentismo é 0 fato de nao definir a “verdade” como uma determinada relagio entre as afir- mac6es e 0 mundo nio propositivo, mas sim como uma interligacdo sistematica de varias afirmagées. E dificil especificar a relagdo de coeréncia de modo que produza uma definigao plausivel de verdade. Com freqiiéncia, a explicacio per- manece num nivel intuitivo. O problema principal, porém, ¢ 0 seguin- te: com qual sistema de afirmag6es uma afirmagao tem de ser coerente para ser verdadeira? Pode ser o sistema inteiro das crengas de uma pes- 02, ou um sistema de crengas comuns a uma determinada cultura, ou um sistema de crengas que no tem nenhuma relagao direta com as crengas da pessoa. Veremos que essa questao resiste a uma solucao facil, solugo essa que favoreceria a definicéo da verdade como coeréncia. A consideragao de qual 0 sistema com que uma afirmagéo tem de ser coerente a fim de ser verdadeira deixa claro que a defini¢do coeren- tista da verdade pode ser relativista, na medida em que as afirmacoes 86 so verdadeiras em relagdo a um determinado sistema de afirma- {G6es. Se 0 sistema em questo provém do conjunto de crengas de um AaveRoADE | 79 individuo, a verdade serd relativa ao individuo. Pessoas diferentes, do- tadas de diferentes sistemas de crengas bésicas, sé poderio aceitar afir- maces que tenham coeréncia com seus sistemas pessoais; conseqiien- temente, aceitario como verdadeiras afirmagées diferentes, talvez até conflitantes. Uma afirmagao pode ser coerente com o sistema de cren- gas de uma pessoa, ¢ assim ser verdadeira em relacao a esse sistema, € a0 mesmo tempo nao ser coerente com o sistema de outta pessoa e ser, portanto, falsa com relacao a esse outro sistema. Aqueles que conside- ram inaceicvel essa relativizaséo radical da yerdade sentir-sc~ao incli- nados a rejeitar essa versio do coerentismo. Com efeito, a relativizacio da verdade aos individuos pode ser tomada como uma reductio ad ab- surdum dessa corrente do pensamento coerentista. Somos obrigados a considerar a possibilidade de uma pessoa com delirios e alucinagées, cujo sistema de crencas seja em grande parte fal- so. Evidentemente, seria errado pretender que uma afirmacao seja verda- deira pelo simples fato de ser coerente com o sistema de crengas de um individuo delirante, Nosso senso comum nos diz que essa coeréncia tal- vex esteja mais préxima de uma definigao de o que éa falsidade. E cla- Fo que 0 mesmo senso comum pode nio ser confidvel neste caso, ten- do sido moldado em demasia por alguma versio da teoria da verdade como uma correspondéncia. Mesmo assim, a possibilidade de o siste- ma de crengas de um individuo ser quase totalmente falso nos da, ao que parece, uma boa razo para negar que a coeréncia com as crengas do individuo seja uma definigao suficiente de verdade. Objecdes semelhantes se aplicam ao apelo dos coerentistas a um sistema de crencas comuns a uma determinada cultura. Seguindo o ra- cioctnio da objecio anterior, devemos observar que € possivel que 0 sistema de crengas de uma dada cultura seja em grande parte falso. Cer- tas pessoas chegam até a dirigir uma tal critica 4 sua prépria cultura, quando tém indicios de que sua cultura est quase totalmente errada. A aceitacao da possibilidade de um erro a tal ponto disseminado pode resultar de uma aceitacao anterior de alguma versio da definigao da verdade como correspondéncia, Mesmo assim, todo aquele que rejei- tara relativizagio da verdade as culturas particulares se sentird igual- mente inclinado a rejeitar a versdo cultural da definicao da verdade se- guado a coeréncia. 80 | A TEORIA DO CONHECIMENTO Um sistema de afirmagdes supostamente produror da verdade pode ser independente de qualquer individuo ou cultura. Entretanto, ndo deixa de ser dificil especificar qual deve ser esse sistema. Os coerentistas, por pressuposto, nao podem dizer que se trata de um conjunto adequa- do de afirmagies verdadeiras, pois o que estio tentando é exatamente dar uma definicao da verdade. Um sistema de afitmagées meramen- te coerente; nao basta, pois é possivel chegar a dois sistemas diferentes ¢ incompativeis um com 0 outro, posto que internamente coerentes con- sig mesmos. Dada a abordagem coerentista, nada haveri que nos faca consicerar um desses sistemas como mais adequado para produzir a ver- dade, sendo 0 outro considerado falso por nao cocrir com 0 anterior. Qual- quer versio da definigo coerentista da verdade tem de especificar as condigées que definem o sistema de afirmagGes coerentes que hé de pro- duzir a verdade. Sem uma tal especificacao, temos todo o direito de nos negara aceitar a definigdo da verdade como uma forma de coeréncia. A importincia atribuida a coeréncia — como quer que seja esta de- finida— parece ter mais relago com a questao da justificacao epistémi- cado que com a questio da verdade. No Capitulo 5, falaremos sobre a coeréncia no contexto das teorias sobre a justificagio. Por enquanto, devemos tomar cuidado para nao confundir a coeréncia como defini- 40 da verdade com a coeréncia como diretriz para o discernimento ou identificagio da verdade. A VERDADE E O VALOR PRAGMATICO Os pragmatistas norte-americanos William James (1842-1910) ¢ John Dewey (1859-1952) defenderam a adogao do pragmatismo para definir a verdade. A definiggo pragmdtice da verdade afirma que uma afirmagio sé & verdadeira se for sitil de um modo determinado. O modo especifico de utilidade aqui considerado é, segundo a interpreta- Gao a mais caridosa possivel, a utilidade cognitiva em vista da unifica- Gao da experiéncia que temos do mundo; nio a utilidade entendida no sentido geral e comum. Os pragmatistas insistem em que a verdade € uma espécie de validacio ou “corroboragio” que as idéias recebem quando sao postas em uso em nossas interagSes com 0 mundo. AVERDADE | 81 A definigéo pragmatica da verdade € relativista porque o tipo de utilidade que pode definir a verdade pode variar de pessoa para pessoa € de cultura para cultura. Se uma determinada crenca se revela ttl para uma pessoa mas inti] para outra, é verdadeira em relado & pri- meira mas falsa em relagdo a segunda. Hé quem ache itil — mesmo cognitivamente util, em relagio a suas crengas bisicas ~ acreditar que suas atitudes psicolégicas determinam sua condigao fisica; outras pes- soas acham essa crenga inutil. Dado 0 pragmatismo, a verdade varia de acordo com tudo isso. Qualquer pessoa que se oponha ao estabeleci- mento de um vinculo de definigio entre a verdade ¢ algo tio relativo ¢ mutdvel quanto a utilidade cognitiva tender a rejeitar a teoria prag- mitica da verdade. (Os pragmatistas nio determinaram suficientemente a natureza exa- ta da utilidade que, segundo sua alegacao, define a verdade. De acordo com certas explicagdes pragmiticas, a nogao de verdade parece ser so- mente a nocdo de garantia epistémica ou justificacdo. Pode-se admitir a importancia das consideracdes relativas a utilidade cognitiva para a _justificagao de uma crenga, € 20 mesmo tempo negar que tal utilidade sirva como uma definigao da verdade. A climinacio da distingao entre as condigées que definem a verdade e as condigées da justificagio di- mina ~o que ¢ implausivel — a possibilidade de haver crencas falsas mas justificadas. Parece que, para todas as nogGes especificas de utilidade apresentadas pelos pragmatistas, possivel que uma crenca seja consi- derada titil mas mesmo assim seja falsa. E evidente que certas crencas falsas podem provar-se cognitivamente titeis. Os pragmatistas, porém, parecem ter a forte intuicdo de que uma afirmagdo nao pode ser a0 mes- mo tempo cognitivamente util e falsa, No Capitulo 9 explicaremos de que modo podemos julgar os conilitos que se estabelecem entre intui- gies diversas dos conceitos filoséficos bisicos. ESPECIES E NOCOES DE VERDADE No Capitulo 1, apresentamos algumas disting6es importantes en- tre as diversas espécies de verdade. Aristoteles estabeleceu uma distin- ‘lo entre a verdade necessdria ¢ a verdade contingente, Uma afirmagao 82| A TEORIA DO CONHECIMENTO: 36 serd necessariamente verdadeira se no houver nenhuma possibili- dade de que seja falsa. As afirmagées matemiticas, como “2 + 2 = 4”, parecem necessariamente verdadeiras (dado que sejam verdadeiras de fato). “2 + 2 = 4” nao é somente uma afirmac’o verdadeira; nao pode ser falsa. As verdades contingentes séo verdades que poderiam nao sé- lo, A afirmagao “Washington é a capital dos Estados Unidos” é verda- deira, mas poderia ser falsa ¢ j4 houve época em que o foi. Nao é ne- cessariamente verdadeira, Formulamos também, no Capftulo 1, uma distingao entre as pro- posigdes sintéticas e analiticas. A proposigo analitica verdadcira € aque- la cuja verdade se depreende simplesmente das definigdes dos termos que a compéem. “Nenhum solteiro é casado”: temos af o exemplo ti- pico de uma verdade analitica, pois 0 solteito nao é casado por defini- do. Antes, demos como exemplo “Todos os sinais de ‘Pare’ indicam que se deve parar”, pois o sinal de “Pare” é, por definico, um sinal que indica que se deve parar. Por outro lado, “Alguns homens solteiros tém o nome de Bubba” é uma verdade contingente, pois nao hé nada na definigdo de “solteiro™ que exija que alguns solteiros sejam chamados Bubba. Antes, mencionamos “Todos os sinais de ‘Pare’ sio vermelhos” como exemplo de uma verdade contingente, pois ndo ha nada na defi- nigio de um sinal de “Pare” que exija que ele seja vermelho. A distingao entre proposigbes analiticas ¢ sintéticas tem sido obje- to de discussio para os filésofos contemporaneos desde 1951, quando W. V. Quine publicou, no texto “Os dois dogmas do empirismo” (1951), sua famosa objecio a dita distingio. A objecao de Quine se ba- seia em argumentos que demonstrariam que nenhuma das grandes de- finigoes de “proposigio analitica’ (dadas até 1951) seria satisfardria, em virtude de algo que Quine qualifica como uma obscuridade ou uma circularidade inaceitivel. De 1951 para c& houve diversas tentati- vas de rebater essa objecdo. Algumas dessas tentativas buscam apresen- tar critérios nao circulares para determinar a “analiticidade” de uma proposicao, ao passo que outras poem em xeque a prépria necessidade de existéncia de tzis critérios. E possivel que um filésofo tenha uma visio pluralista da natureza da verdade ¢ oferega andlises e critérios diversos para as variadas espé- cies de verdade. Ele pode, por exemplo, adotar a teoria da correspon- AVEROADE | 83 déncia no que diz respeito as verdades sintéticas que dependem da ob- servagio, € adotar a teoria da coeréncia (ou talvez 0 pragmatismo) no que diz respeito as verdades sintéticas ¢ analiticas teéricas. Uma abor- dagem pluralista como essa pediria por uma explicagao precisa das di- versas teorias utilizadas; seu apelo filosdfico dependeria da sua capaci- dade de responder as perguntas que formulamos neste capitulo. Este exame geral das diversas teorias a respeito da verdade nos leva a tirar uma conclusio genérica: mesmo que os filésofos concordem com uma definigao geral mais ou menos vaga da verdade, alguns evi- dentemente langam mao de outros conceitos de verdade — 0s conccitos de correspondéncia, coeréncia e utilidade, por exemplo, Essa conclu- sao emp! indica que as nogdes especificas de verdade que estao na praca divergem entre si; essas divergéncias, por sua vez, prejudicam a aceitagio potencialmente acritica da existéncia de uma “inica” nogéo de verdade, pelo menos quando se esté tratando de uma nogdo espect- fica. Porém, isso nao acarreta necessariamente um relativismo substan- tivo, que implicaria a veracidade automitica das crengas de qualquer pessoa ou grupo; nao fica excluida a possibilidade de existéncia de no- Ges nao relativistas da verdade. A variabilidade dos conceitos de ver dade no torna a simples crenga (comum a varias pessoas) uma condi- Gao suficiente da veracidade de uma proposigio. Em especifico, a di- vergéncia das nogées nao acarreta uma atitude de “vale tudo” em rela~ ao a verdade. Javimos o quanto ¢ importante distinguir os critérios de definigao da verdade e os critérios de justificagio epistémica. E igualmente im- portante conservar a distingo entre as nocdes de verdade e justifica- ‘S40, para resguardar a possibilidade de existéncia de uma crenga falsa justificada (ou de uma crenga nao justificada). As vezes, nds temos mo- tivos suficientes para crer em proposigdes que nem por isso deixam de ser falsas. Nao temos garantia de que essa intuigio esteja correta, mas, dentre as intuigdes que o senso comum fornece & epistemologia, ela € uma das mais firmes; por isso, temos de nos perguntar se ela nao se ba- seia de fato em razées sélidas. Em suma, pois, encontramos bons motivos para manter a distin- ao entre os critérios de definigao e os critérios de identificagao da ver- dade; estes ultimos tém relacao sobrecudo com a justificagao epistémi- 84| ATEORIA DO CONHECIMENTO ca. Em decorréncia disso, expressamos diividas a respeiro do relativis- mo. E claro que as crengas podem variar de acordo com os individuos eas culturas, mas disso nao decorre que a verdade seja igualmente rela- tiva. Sea busca da verdade é efetivamente uma busca de objetividade, como afirmaram muitos fildsofos, a nogio da verdade como uma cor- respondéncia é mais afim da objetividade desejada do que 0 coerentis- mo ¢ 0 pragmatismo. Pode ser, portanto, que Aristételes, mesmo ha tanto tempo, jé estivesse no caminho certo. Acabamos de tratar da verdade ¢ da crenga. Voltamo-nos agora para a terceira condiggo essencial da andlise tripartite do conhe icagao epistémica. jento: a CAPITULO 5 A JUSTIFICAGAO E ALEM A JUSTIFICACAO, A VERDADE E A ANULABILIDADE © fato de sabermos que vai nevar em Chicago no inverno nao € fruto de simples adivinhacao. A adivinhacio e a sorte nao geram o ver- dadeiro conhecimento, muito embora possam garantir um bom lucro nas cortidas de cavalos. Mesmo que vocé acredite com toda a confian- a no seu palpite arbitrério no jéquei clube, e por mais que ele se reve- leverdadeiro, ele nao ¢ um conhecimento. Vocé nio sabe que esté apos- tando num cavalo vencedor. O conhecimento verdadeiro nao tem como tinicas condigdes a verdade e a crenga; é preciso que se estabeleca uma relagao apropriada entre a satisfagao da condigio de crenga e a satisfacao da condigio de verdade. Segundo a abordagem tradicional, isso significa que, para que um conhecedor tenha um conhecimento genuino, ele precisa ter “in- dicios suficientes” de que a proposigéo é verdadeira, Em outras pala- vras, para que haja conhecimento, necessério que as crengas verda- deiras sejam justificadas: de acordo com a concepsao tradicional, a jus- tificagdo € uma condigo do conhecimento. Segundo Platéo, Kant ¢ muitos outros fildsofos, os necessdrios “indicios suficientes” da verda- de sio provas de que uma proposi¢ao é verdadeira. Esses fildsofos afir- mam, portanto, que 0 conhecimento tem de ser baseado em provas,

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