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CONFLITOS À MESA

Vegetarianos, consumo e identidade*

Juliana Abonizio
Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), Cuiabá – MT, Brasil. E-mail: abonizio.juliana@gmail.com

DOI: http//dx.doi.org/10.17666/3190115-136/2016

Hors d’ouvres cipalmente os porquês da minha recusa em consumir


alimentos cárneos, percebi que meus interlocutores
Sou vegetariana desde 1999. Em 2010, durante não consideravam (e ainda não consideram) minha
meu estágio pós-doutoral realizado em Portugal, além opção algo corriqueiro ou mesmo natural, antes pen-
das mudanças na dieta próprias da situação de estran- savam tratar-se de algo que foi causado, provocado
geira, passei a observar que, em diversas situações, eu por algum elemento interno ou externo e assim bus-
era confrontada por meus comensais acerca da minha cavam justificativas e razões para meu comportamen-
opção. Ao declarar-me vegetariana – termo que, pos- to não imediatamente compreendido.
teriormente, notei estar longe de uma definição con- Desse modo, os meus desentendimentos so-
sensual –, frequentemente tinha de explicar as razões ciais passaram a ser questionados como problemas
da minha opção dietética. Diante das solicitações dos sociológicos: por que o fato de eu adotar determi-
porquês de eu consumir produtos vegetarianos e prin- nada dieta incomoda outras pessoas a ponto de
ser preciso explicar minha opção? O que significa
* Esta pesquisa foi parcialmente realizada durante mi- questionar opções individuais (como a minha die-
nha participação, entre setembro e dezembro de 2012,
como investigadora visitante no Instituto de Ciências ta) se boa parte da literatura geral preconiza o indi-
Sociais da Universidade de Lisboa, sob a supervisão vidualismo e autonomia como marcas culturais da
do doutor José Manuel Sobral, a quem agradeço pelas contemporaneidade? O que a pluralidade de dietas
valiosas contribuições.
contemporâneas e os conflitos que geram no hábito
Artigo recebido em 17/10/2014 cotidiano de comensalidade podem dizer sobre a
Aprovado em 15/05/2015 sociedade que os cria e possibilita?
RBCS Vol. 31 n° 90 fevereiro/2016
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Para responder questões como essas, além de a dimensão instável e processual da subjetividade
outras que o trilhar da pesquisa gerou, decidi fa- construída dialogicamente em processos interpes-
zer uma autoetnografia, realizando uma observação soais, opondo-se, portanto, à noção de sujeito está-
sistemática dos fatos da minha vida cotidiana que vel e unívoco.
envolveram minhas opções alimentares, em especial No sentido aqui abordado, trata-se de me in-
em sua dimensão conflituosa, durante seis meses, cluir no que analiso de modo duplo: estou incluída
o que resultou em um extenso depoimento. Para no universo da pesquisa por possuir características
possibilitar maior amplitude na análise do meu de- que me podem alocar na categoria da qual busco a
poimento e assim elucidar os resultados a que me compreensão; e estou incluída pelo método adota-
conduziam, confrontei-o com outras experiências do, a saber, o viés da sociologia da vida cotidiana
de vegetarianos coletadas por meio de entrevistas (Pais, 2003), que valoriza a trajetividade da pesqui-
abertas com roteiro. sa e a interação que nos torna a todos cocriadores
A etnografia sempre teve o intento de compreen‑ da realidade que se almeja desvendar.
der o outro, ainda que este outro estivesse distante, Usando referenciais teórico-metodológicos da
como povos dos quais se ignorava tudo ou quase sociologia do cotidiano, meu trilhar na pesquisa foi
tudo, ou próximo, como os estudos provenientes resultado de uma experiência de cunho etnográfico,
da etnografia urbana. “Na busca pelo Outro, a et- uma vez que eu queria compreender certo grupo,
nografia coloca-se como um instrumento primor- mas havia diferenças específicas que me fizeram uti-
dial. Nesse sentido, se foi dito anteriormente que a lizar o termo autoetngorafia: 1) faço parte do grupo
antropologia foca a experiência vivida, a etnografia que quero compreender, o que relativiza a noção de
também constitui-se como experiência” (Osorio e aproximação do outro; 2) além de considerar mi-
Prado, 2015, p. 98). Sendo experiência, não há ma- nha experiência em campo como material passível
nual que lhe seja possível, os passos só podem ser de análise, considero minha experiência biográfica
contados a posteriori. como material empírico.
Osorio e Prado falam da etnografia em três pa- A seleção de pessoas para entrevista deu-se a
noramas fundamentais: como instrumento metodo- partir de uma metodologia de conveniência, na
lógico, como modo de pensamento e como narrati- qual amigos e conhecidos indicaram vegetarianos,
va. No caso desta pesquisa, penso a etnografia como que assim se declarassem, com os quais realizei en-
instrumento metodológico, o que, segundo os auto- trevistas gravadas que foram transcritas em sequên-
res, é um recurso usado para se aproximar do ponto cia. Foram seis vegetarianos entrevistados, oriundos
de vista do outro e pressupõe trabalho de campo e das camadas médias urbanas, sendo três do gênero
técnicas, como observação, observação participante, masculino e três do gênero feminino em uma ca-
entrevistas etc. mada etária compreendida entre 21 e 45 anos.
A etnografia – e, em meu entender, também Logo nas primeiras entrevistas, senti que, em vez
a autoetnografia – remete à experimentação, e, se- de me contar suas experiências, meus interlocutores
gundo Hélio Silva (2009), o etnógrafo deve ser in- tentavam me converter ao vegetaranismo, utilizan-
cluído na cena etnográfica para que esta seja confiá‑ do os argumentos de boa saúde, sustentabilidade e
vel. Neste estudo, proponho-me a desvendar uma senciência dos animais. Com essa perspectiva, per-
categoria que não me é completamente estranha, cebi que o que poderia ser considerado frágil – o
na medida em que dela faço parte e me incluo na fato de eu pertencer ao grupo que queria compreen‑
análise simultaneamente como sujeito pesquisado e der – era, na verdade, uma vantagem metodológi-
pesquisador. Assim, há a aproximação, mas não há ca, pois, quando eu me assumia vegetariana, em vez
correspondência, destacada por Versiani (2005) dos de continuarem nas estratégias de convencimento,
conceitos de autoetnografia1 e autobiografia que os discursos abordaram conflitos, dúvidas, recaídas,
não ignoram a memória individual. incoerências. Nas entrevistas seguintes, de imedia-
Para Versiani (2002), a autoetnografia pode ser to comunicava partilhar do vegetarianismo, embo-
uma alternativa interessante àqueles que focalizam ra não falasse sobre minhas motivações. A empatia
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gerada proporcionou uma cumplicidade acerca das quanto e de quais formas. Temas relacionados à ali-
dificuldades, assim concluo da fala de uma das entre- mentação têm estado bastante presente na mídia
vistadas de 21 anos: “por mais que eu ache que eu tô brasileira atual (Romanelli, 2006, p. 333), embora
certa em ser vegetariana, às vezes isso é muito difícil, não sejam uma novidade. A emergência do assun-
é chato. Às vezes, eu que queria ser mais normal. Pra to e a abundância de informações, mais ou menos
você eu posso falar, no fim das contas, acho que nada confiáveis, intensificam a demanda por discutir a
vai mudar mesmo”. comida sob o ponto de vista cultural.
No decorrer da investigação, conheci pessoas que, Para Romanelli, mesmo que objetos em tor-
ao saber do tema de meu interesse, compartilharam no da cozinha não ocupem papéis centrais, eles são
histórias e opiniões não previstas no projeto, mas que importantes por relacionar atividades nucleares da
enriqueceram, com seus depoimentos, a abrangência disciplina antropológica: a dimensão simbólica de
da análise ao focar dois papéis sociais relacionados afazeres e saberes tão diversos entre as culturas e a
aos vegetarianos, mas não selecionados para coleta de relação entre natural e cultural, uma vez que o ali-
dados: a mãe de um vegetariano que me deu seu de- mentar-se está situado entre ambas as dimensões.
poimento antes mesmo que lhe fosse solicitado, pro- Para o autor, em torno da comensalidade, cada socie-
piciando uma visão do conflito que constituía meu dade elabora um complexo sistema de regras dietéti-
objeto de outra perspectiva, e três ex-vegetarianos, cas fundadas no senso comum, que cria interdições
categoria que eu também não havia previsto, mas que para excluir do cardápio alimentos simbolicamente
permitiu interpretar as adesões que, mesmo com in- classificados como nocivos e perigosos para a saúde.
tenção duradoura, se mostram passageiras por inúme- Trabalhos antropológicos têm mostrado a di-
ros conflitos, tanto sociais quanto internos. Ao todo, versidade das formas de produção, processamento e
entrevistei dez pessoas, às quais eu alienei os nomes, consumo de alimentos, que não são atos solitários,
além de mim mesma, e, no processo de análise das mas constituem atividades sociais, e o modo como
situações cotidianas, registrei em caderno de campo as sociedades constroem representações sobre si
relatos informais e situações de interação social. As en- próprias, definindo sua identidade em relação a ou-
trevistas foram realizadas em Cuiabá, capital do Mato tras sociedades, através de seus hábitos alimentares.
Grosso, com pessoas das camadas médias urbanas, A expressão hábitos alimentares, apesar do uso
como já mencionei. As conversas informais e situações corriqueiro, traz à tona a dicotomia que caracteriza
de interação que registrei foram localizadas em Lis- o ato de se alimentar, situado na fronteira entre a
boa2 e Cuiabá, primordialmente, mas também em sobrevivência biológica e os fatores culturais. Expli-
outras cidades de Minas Gerais, Goiás e São Paulo. co: se alimento, como diz DaMatta (1986), é algo
Não percebi nas interações a presença de fatores locais neutro, relativo à nutrição, a comida é a definidora
ou regionais que fossem suficientemente significativos de caráter e identidade, sendo comida os alimentos
para ter alguma relevância na análise. Com o material assim considerados por dada cultura; desse modo,
empírico, construí um documento que permite inter- utilizar a expressão hábitos alimentares expõe tal di-
pretar um traço da sociedade contemporânea a partir cotomia, uma vez que hábitos são práticas culturais
dos territórios em disputas alimentares vivenciados enquanto a ideia de alimento remete à nutrição.
por vegetarianos, sem, obviamente, esgotá-lo. Além de situar-se entre as fronteiras do natural
e do cultural, o comer é um ato social, mas não dei-
xa de ser, contudo, uma ação egoísta, como reflete
Alimentando as ideias Simmel ([1910] 2004, p. 160):
De tudo o que os seres humanos têm em co-
Os atos de comer e de escolher a dieta em mui- mum, o mais comum é que precisam comer e beber.
to transcendem a busca de nutrientes, assim, ape- E é singular que este seja o elemento mais egoísta,
sar de a alimentação ser necessária à manutenção que é por sinal o mais imprescindível e imediata-
do corpo vivo, ela é, fundamentalmente, um fato mente restrito ao indivíduo. Já o que se pensa, pode-
social que prescreve o que se deve comer, quando, -se dar a conhecer a outros; o que se vê, pode-se dei-
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xar que outros vejam; o que se fala, centenas podem Ementa vegetariana
escutar; mas o que se come não pode, de modo al-
gum, ser igualmente comido por outro. Em nenhu- Luís da Câmara Cascudo, ao procurar recons-
ma esfera elevada da vida humana pode-se encontrar truir a história da alimentação no Brasil, remonta a
uma tal situação: de que o que um deva possuir seja eras remotas e afirma:
absolutamente impossível para o outro.
Segundo Mintz (2001), a antropologia sempre Não acredito no homem pré-histórico unica-
atentou às práticas de comer, e a curiosidade é muito mente vegetariano. Sempre frutos e raízes se-
atraída por aquilo que o outro come, como e quanto riam auxiliares preciosos mas não essenciais à
o faz. Reagimos aos hábitos dos outros, não ficamos alimentação. Nem as frutas eram suficientes
indiferentes. Se isso vale para as sociedades, a curiosi- e menos o homem, mesmo o infra-homem,
dade, penso, também desperta em termos individuais. copiaria servilmente a dieta dos animais. O
Entre as várias possibilidades de pensar o consu- coeficiente de aproveitamento nutritivo não
mo alimentar ou de compreender aspectos da socie- coincide. O estado vegetariano, pelo menos
dade por meio da interpretação da alimentação e do com abundância de vestígios, aparece na Idade
complexo que a envolve, Amon e Menasche (2008) do Ferro ou pouco antes, quando era possível
salientam a capacidade comunicativa da comida; as- dispor da agricultura e plantio regular para o
sim pensam que ela pode contar histórias. Para as au- regime diário. Antes, no Paleolítico e parte do
toras: “Um bom molho ou uma boa sopa são feitos epipaleolítico, não me foi possível convencer-
a partir de um caldo básico. O caldo básico consiste -me do homem vivendo nas árvores e devoran-
em um processo lento de cozimento, redução do lí- do o que as árvores e arbustos dariam para sua
quido e concentração de sabores” (Amon e Menas- fome (Cascudo, 2004, p. 18).
che, 2008, p. 15). O caldo básico da relação entre
comida e memória, segundo elas, é a cultura. A co- Para ele, “a renúncia da alimentação de car-
mida então envolve o que é selecionado, preparado, ne verifica-se como cerimônia religiosa nos povos
consumido, descartado em um processo complexo que a tinham habitualmente na ementa” (Cascu-
de sistemas de codificação e classificação do mundo. do, 2004, p. 19). O autor observa que o homem
Como sustentam Douglas e Isherwood (2009), pré-histórico era onívoro mas o proto-histórico e o
os bens prestam serviço de marcação, intrusão, exclu- contemporâneo não pertencem a essa classe genera-
são, e o consumo classifica e organiza o mundo, fa- lizadora, uma vez que todos os povos têm restrições
zendo parte do sistema cultural. Segundo os autores, alimentares. A relação descrita pelo autor mostra a
inclusive os “bens que servem às necessidades físicas complexidade em que se formam ementas de cada
– comida ou bebida – não são menos portadores de cultura ao longo de centenas de anos formando
significado do que a dança ou a poesia” (Douglas e gostos, preferências e rejeições: “o sertanejo que
Isherwood, 2009, p. 120). De forma semelhante, Fea- ama o peixe d’água doce não admite os crustáceos e
therstone (1995, p. 122) afirma que o consumo “não menos ainda verduras. Meu primo Políbio Fernan-
deve ser compreendido apenas como consumo de va- des Pimenta recusava obstinadamente a salada de
lores de uso, de utilidades materiais, mas primordial- alface: Não sou lagarta para comer folha, explicava”
mente como o consumo de signos”. (Cascudo, 2004, p. 21).
É a partir dessa perspectiva que busco compreen- A abstinência do consumo de carne e de produtos
der a adoção da dieta vegetariana – na multiplicidade animais, total ou parcialmente, é elemento de algumas
de dietas abarcadas por essa definição – e as tensões práticas religiosas, como o budismo e o adventismo
vivenciadas no cotidiano entre vegetarianos e críticos do sétimo dia (Fraser, 2003 apud Fox e Ward, 2008);
dessa dieta. A tese sustentada é a de que a tensão vi- há rejeição à carne de porco por parte dos judeus e is-
vida não se refere apenas às divergências do consumo, lâmicos e à carne bovina na Índia (Beardsworth e Keil,
mas àquilo que o consumo representa: trata-se de or- 1992). Outros optam por um vegetarianismo secular,
ganização e sentido do mundo em conflito. livre de motivações religiosas (Whorton, 1994).
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Mesmo considerando a matriz cultural que in- ligada a uma dieta específica, mas a delimitação de
cline ao hábito de comer ou rejeitar carnes ou verdu- uma dieta atua em uma identidade que é construí-
ras, a sociedade contemporânea propiciou a criação, da, processualmente, na vida cotidiana.
difusão e ressignificação de dietas restritivas que sur- Há vários tipos de consumo que compõem o
gem de modo independente do pertencimento reli- vegetarianismo e as motivações que levaram à ado-
gioso em sentido estrito e que podem ou não estar ção e levam à manutenção da dieta (que podem ser
ligado a grupos cujo coeficiente de pertença é, por variáveis, sucedâneas ou concomitantes) implicam
vezes, tênue, como comunidades virtuais. diferentes atitudes em relação à carne. As duas mo-
Para Whorton, o vegetarianismo tem crescido tivações mais frequentes são a evitação do abate e
por tendências morais e sociais, baseadas em pre- as preocupações com a própria saúde (Fox e Ward,
ceitos apropriados da mística do Oriente, criando 2008), que conduzem à atribuição de sentido dife-
uma relação entre o abandono do consumo de car- rente à carne, sendo considerada ou um alimento
ne e a busca por paz, com a preocupação relaciona- nocivo ou um corpo morto. Outras questões rela-
da às crises ambientais, e por saúde do corpo. cionadas à forma de produção industrial da carne
Segundo Beardsworth e Keil (1992), o vege- ainda podem ser relacionadas a debates ambientais
tarianismo sustenta-se na interrelação de crenças, e desigualdades sociais (Beardsworth e Keil, 1992).
atitudes e práticas nutricionais, e os vegetarianos3 Tal como Beardsworth e Keil realizaram na
são convertidos após submeterem ao escrutínio seleção de sua amostra para a análise que fizeram
crítico as formas alimentares que adotavam até en- sobre os vegetarianos e suas motivações, acatei a au-
tão. Desse modo, suas práticas são resultados de todefinição por parte dos sujeitos da pesquisa, reco-
processos de reflexão e oposição ao que receberam nhecendo as variações no conteúdo das dietas e nos
culturalmente. De modo similar aos apresentados modos de constituição de identidade.
por Beardsworth e Keil, a adoção de determina- Desvendando o autoconceito dos vegeta-
da dieta, no caso que abordo, a dieta vegetariana, rianos e dos onívoros, Allen et al. (2000) veem
vincula-se mais a experiências individuais e desejos a identidade do onívoro associada a uma forte
construídos reflexivamente a partir das informações orientação de domínio, inclusive sobre a nature-
disponíveis do que a aceitação, impositiva ou não, za, destacando a importância do poder, autocon-
de códigos grupais partilhados. trole, lógica e racionalidade, diferenciando-se da
Para Campbell (2006, pp. 50-51), o senso de identidade social dos vegetarianos, socialmente
identidade de um indivíduo na contemporaneidade mais fraca, segundo os autores, valorizando esta-
já não é claramente determinado por sua filiação à dos emocionais, justiça social e sentimentos como
determinada classe ou status de certos grupos, e, nes- amor, felicidade e paz. Já Ruby e Heine (2011)
se contexto, o consumo e a experiência de escolher e inserem nessa caracterização a dimensão de gêne-
consumir são essenciais para que o indivíduo crie ro, associando o onivorismo a masculidade e for-
e confirme sua identidade. Também para Feathersto- ça e o vegetariansimo a feminilidade e fraqueza.
ne (1995, p. 119), na sociedade de consumo: Dizer-se vegetariano tem um significado que,
sob risco de desvio de interpretação, não pode ser
O corpo, as roupas, o discurso, os entreteni- considerado aprioristicamente. Seu sentido é dado,
mentos de lazer, as preferências de comida e e renovado, nas experiências diárias. As práticas
bebida, a casa, o carro, a opção de férias, etc. constituem-se tanto pelo que se diz quanto pelo
de uma pessoa são vistos como indicadores da que efetivamente se pratica e, para Warde (2005, p.
individualidade do gosto e o senso de estilo do 138), as análises devem abarcar ambos os aspectos.
proprietário/consumidor. Desse modo, para compreender o que é ser vege-
tariano e o que é vegetarianismo para os que assim
Dificilmente encontraremos dois indivíduos se definem, e assim orientam suas práticas – fre-
com a mesma dieta, tampouco vegetarianos com quentemente contraditórias –, optei por não buscar
a mesma dieta. A identidade vegetariana não está uma definição conceitual para, a partir de então,
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selecionar uma amostra; antes, tomei o caminho de Todos esses tipos de dieta, com poucas variá‑
perguntar aos que se dizem vegetarianos o que isso veis, foram encontrados em minha pesquisa de
significa e em que consistem suas dietas, posto ha- campo, se não nas dietas adotadas pelos entrevis-
ver vários vegetarianismos.4 tados, apareceram em suas falas. Entre os sujeitos,
De modo geral, considera-se vegetarianismo o todos autointitulados vegetarianos, nenhum afirma
regime alimentar que abole carnes ou que consis- alimentar-se regularmente (ressalto, pois existem
te na alimentação exclusiva de vegetais. As práticas suspensões da dieta) de carne alguma. Porém, dis-
vegetarianas são bem mais plurais e não se fundam seram conhecer pessoas que se declaram vegetaria-
apenas negativamente na evitação do consumo de nas e comem peixe ou carne branca em geral. Al-
determinados produtos, mas também no incenti- guns aceitam comer pratos que foram preparados
vo em consumir outros. Porém, tanto na literatura com carne, mas não a própria carne, outros rejei-
quanto nas entrevistas realizadas, o que caracteriza tam qualquer aproximação com alimentos cárne-
o consumo vegetariano é basicamente a recusa do os, inclusive negando-se ao manuseio. Um falou
consumo de alimentos cárneos. Por diversas ve- do desconforto de usar talheres, mesmo lavados,
zes, ao perguntar sobre como a pessoa se tornou que foram utilizados em carnes. Tal amplitude de
vegetariana, tive como resposta variações da frase: tipos de postura em relação à carne diagnosticada
“Eu parei de comer carne em....”. No decorrer das em amostra reduzida permite vislumbrar as muitas
entrevistas, foi possível ver que a recusa da carne dietas abarcadas sob o mesmo nome, explicitando
ocorre em graus variados de rigor, de suspensão da o dissenso que envolve as concepções e as práticas
recusa e de sua intensificação ao longo do tempo. do vegetarianismo.
Independentemente da variedade de dietas pratica- Outro entrevistado, além de vegetariano, de-
das pelos entrevistados e outros interlocutores ou clara-se macrobiótico,5 e outro diz ser vegano, re-
citada por eles, e independentemente dos graus de cusando o consumo, não só alimentar, de produtos
afastamento do consumo de alimentos cárneos, foi de origem animal. Os demais recusam-se a comer
possível perceber em todas as falas que a afirmação carne, mas aceitam ovos, leite e derivados, e dentre
do vegetariano se dava, ao menos discursivamente, esses, alguns se manifestaram contra a indústria de
na negação do consumo de carne. pele e os testes em animais. Apesar de relatado cer-
Beardsworth e Keil (1992) classificaram seis ti- to desconforto no uso de couro e outros produtos
pos de vegetarianos de acordo com um conjunto de testados em animais, os consomem.
práticas alimentares que variam numa escala de me- As reações de repulsa ou indiferença em relação
nor a maior rigor. No polo menos rigoroso, situam- a carnes e/ou derivados de animais e a decisão to-
-se os que consomem carne em algumas ocasiões, mada, ao menos três vezes ao dia, todos os dias, do
e, em geral, carne branca. O segundo tipo com- que se põe ou não no prato e do que se leva ou não
porta os que aceitam peixes, o terceiro engloba os à boca são diferentes e marcadas pelas razões pelas
que aceitam o consumo de ovos, leites e derivados, quais cada um explica a adoção de sua dieta parti-
seguido por aqueles que consomem os derivados do cular, que pode – e frequentemente é – ser cons-
leite desde que sem produtos derivados do abate, truída socialmente, mas interpretada e vivida co‑
como o coalho, até, no polo mais rigoroso, onde mo escolha individual. Nenhum dos entrevistados
se situam os que não consomem nada de origem foi criado com uma dieta vegetariana, todos opta-
animal. De acordo com esses autores, é importante ram por sê-lo no início da vida adulta, e as moti-
identificar os tipos de vegetarianismo, mas ressal- vações para a adesão a essa dieta, e o estilo de vida
tam que a adesão a essa categoria não é fixa. Os in- correspondente, são variadas mas não excludentes,
divíduos deslocam-se ao longo da escala em ambas conjugando impulsos éticos em relação aos ani-
as direções, até ao abandono da categoria. Algumas mais e procura por melhor saúde.
escalas são mais tolerantes com as outras, enquanto Fox e Ward (2008), em seu estudo sobre as mo-
outras não aceitam nada além da sua própria, no tivações para a conversão ao vegetarianismo entre
caso, a vegana. jovens, principalmente do Reino Unido, Canadá e
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Estados Unidos, perceberam que a adoção da dieta do que a procura da própria saúde, se não para ade-
sem carne, o combate à crueldade com os animais e são, para a manutenção de sua dieta. Esse fato é ao
a preocupação com a saúde pessoal são os principais menos curioso, uma vez que a saúde é um capital
elementos citados como motivadores, mas também altamente valorizado na cultura contemporânea.
aparecem elementos relacionados à repugnância Para Lipovetsky (2007), vivemos uma nova
em comer carne, à associação com o patriarcado, às fase do consumo que configura a sociedade que ele
crenças de amigos e às influências familiares. denomina de hipermoderna, dentre outras coisas,
Em relação à saúde, esta parece preponderar como um tempo de medicalização da vida e do
entre os vegetarianos parciais, que não comem consumo. Segundo o autor:
carne vermelha ou só peixes ou os que selecionam
produtos orgânicos. Os vegetarianos foram classi- Em nome da religião da saúde, é preciso infor-
ficados em dois tipos principais em relação às suas mar-se sempre mais, consultar os profissionais,
motivações, os vegetarianos-saúde (health vegetarian) vigiar a qualidade dos produtos, sopesar e li-
e vegetarianos-éticos (ethical vegetarian); porém, os mitar os riscos, corrigir nossos hábitos de vida,
participantes de ambos os grupos adentram o vege- retardar os efeitos da idade, passar por exames,
tarismo em sua modalidade lacto-ovo-vegetariana e fazer revisões gerais. Foi-se a época feliz e des-
acabam, durante o processo, aderindo a uma dieta preocupada da mercadoria: o tempo que chega
semivegana. é o da hipermercadoria mercantilizada, reflexi-
As motivações substituem-se na ordem de im- va e preventiva, carregada de preocupações e de
portância entre os meus entrevistados e também na dúvidas, exigindo sempre mais a atividade res-
vida de cada um, revelando que, mesmo quem não ponsável dos atores (Lipovetsky, 2007, p. 54).
tinha um impulso ético inicial, ao longo de sua tra-
jetória enquanto vegetariano, passa a considerar esse Se, nos discursos que coletei, a ética em relação
aspecto essencial na justificativa de seu estilo de vida. aos animais aparece como justificativa de maior ape-
lo para os que se mantêm vegetarianos, dois sujeitos
Quando decidi parar de comer carne, foi por com os quais tive contato abandonaram suas dietas
uma procura de saúde. Li alguns livros de ali- vegetarianas por razões de saúde, sendo, atualmente,
mentação natural que diziam que a carne fi- onívoros e críticos do vegetarianismo que adotaram
cava apodrecendo em nosso estômago. Fiquei durante um período de suas vidas, confirmando,
com nojo e decidi parar de comer para ser mais parcialmente, o diagnóstico de Lipovetsky (2007, p.
saudável. Naquele tempo, parei com tudo, fa- 53), para quem “o homo consumericus está cada vez
rinha branca, arroz branco, açúcar branco, re- mais voltado para o homo sanitas”.
frigerantes. Aos poucos, fui voltando a comer Em situações do meu cotidiano que me dispus a
as coisas, voltando aos meus hábitos antigos, analisar, registrei duas conversas informais esclarece-
mas a carne não consegui voltar. Nem ten- doras sobre o aspecto que discuto. Duas estudantes
tei, né? Eu não tive vontade de comer carne, – uma de graduação e outra de pós-graduação –, ao
continuei com nojo. Depois de anos é que fui saberem de minha pesquisa, contaram que haviam
refletir sobre a questão ambiental e a questão deixado a dieta vegetariana por recomendação mé-
dos animais. Hoje, defendo o vegetarianismo dica. Em uma das situações, a moça, que aparentava
politicamente e quero virar vegana. Mas ficar 18 anos, contou, chorando, diante da sala de aula,
sem queijo é bem difícil ainda. que, em virtude de uma série de doenças resultantes
de sua baixa imunidade, foi aconselhada pela famí-
Para essa interlocutora, uma jovem adulta au- lia e por um médico a desistir da dieta vegetariana.
tônoma, e em outros depoimentos similares, quan- Ela era a única vegetariana daquela sala de aula e
do perguntei sobre qual fator é mais importante parecia sofrer muito por não dar continuidade ao
para a permanência na dieta atual, a proteção dos que havia estabelecido como meta. Constrangida
animais apareceu como argumento mais recorrente e em lágrimas, disse que o caso era muito recente
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e pediu desculpas por estar emocionada. Encerrei o Nesta pesquisa, apesar de considerar a dimensão apa-
assunto diante da perplexidade dos companheiros ziguadora da comida, realço sua dimensão de con-
de aula. No outro caso, a estudante de pós-gradu- flito, como aponta Romanelli (2006, p. 336), para
ação, já mais madura, contou que teve problemas quem o repasto familiar jamais se caracteriza unica-
de perda de massa muscular e foi aconselhada a mente pela positividade de relações harmoniosas.
voltar a ingerir carne regularmente, o que foi feito Segundo Simmel (1983), a discordância tem
sem grandes abalos psicológicos. A diferença entre sentido destrutivo entre indivíduos particulares e
os casos semelhantes recai na motivação: a primeira pensamos ingenuamente que isso se reproduzirá no
interlocutora sentia-se mal ao abandonar seu proje- grupo. Assim, ele propõe pensar o conflito como
to de ser vegetariana, tomado como projeto de vida, força integradora, afinal, se toda a interação entre
uma vez que isso implicava viver em desacordo com os homens é sociação, o conflito também o é, uma
seus princípios éticos. Ela é uma militante da causa vez que os fatores de dissociação, tais como o ódio,
animal que se sentia em contradição diante do fato a necessidade, o desejo etc., são causas do conflito.
de “salvar uns e comer outros”. A ruptura da dieta Com essa perspectiva, ao considerar a alimen-
vegetariana sem grandes conflitos vista no segundo tação em seu aspecto comunicativo, é possível vi-
caso é um resultado da forma de sua motivação para sualizar as tensões situadas no entrecruzamento de
abolir as carnes da alimentação. Ela parou de comer gostos, desejos e organização simbólica do mundo
carne na procura por uma vida saudável e como a a que se pertence e a que se constrói.
autoridade médica afirmou que ela ficaria mais sau-
dável ao reinserir as carnes no cardápio, isso foi feito
sem contradições com sua motivação inicial. O conflito está servido: um vegetariano
Algumas vezes, as motivações se complemen- na família
tam, e, em outras, há contradições entre a alimen-
tação ética e saudável. Por exemplo, um dos vegeta- Sendo a alimentação uma atividade social, reco-
rianos entrevistados por Beardsworth e Keil (1992) nhece-se que a inserção de novos membros em seus
considera mais saudável comer carne branca a ser rituais dá-se muito cedo. Ainda bebês, os sujeitos são
vegano, mas julga não ser essa prática ética, então iniciados nas prescrições e nos rituais de alimentação,
prefere abster-se do consumo desse tipo de carne, incluindo aí os hábitos da sociedade e os adaptados
ignorando sua própria crença nutricional. ao universo familiar, o uso de determinados instru-
Esclarecida a heterogeneidade de dietas con- mentos, como mamadeiras, colheres, garfos, baba-
templadas pelo rótulo de vegetariano e as moti- dores etc. Diversos ritos cumprem a função de passar
vações que conduzem a essa opção dietética, cabe da categoria de bebês a crianças, a jovens, a adultos e
agora observar as interações sociais dos vegetaria- a velhos, e, nesses ritos, podem-se vislumbrar as di-
nos e o modo como interpretam a realidade vivida. ferenças das comidas próprias a cada categoria. Ro-
“Os padrões de alimentação são parte tão funda- manelli (2006) destaca o papel social da mãe nesses
mentalmente importante da vida cotidiana, tanto ritos. Para o autor, o caráter social da alimentação
pelo simbolismo e expressividade envolvidos quan- está presente desde o nascimento, quando é ofere-
to pela questão nutricional, que mudá-los causaria cido ao recém-nascido o leite materno, envolvendo
um impacto significante em relações sociais” (Be- o contato com o corpo da mãe e, por isso, desde o
ardsworth e Keil, 1992, p. 276, tradução minha). início, a alimentação está relacionada a proteção e
Expressando identidades, a dieta vegetariana afeto, também ligados ao universo feminino.6
traz à mesa justamente o caráter multifacetado da Para Assunção (2008), ser mãe e tudo aquilo
contemporaneidade. Cascudo (2004, p. 33) discor- que se atribui ao bom desempenho desse papel é
re sobre a ideia da capacidade da comida resolver uma construção histórica e cultural, sendo o ins-
conflitos: “Ainda a refeição é elemento pacificante. tinto maternal um mito. Os cuidados, a educação,
‘Quem come, amansa.’ Não há Congresso ou Con- o modo de ser mãe ligam-se às relações sociais e à
ferência de Paz que não termine com um banquete”. organização da sociedade.
CONFLITOS À MESA  123

Apesar das transformações observadas na família inverso também é verdadeiro, ainda que os sujeitos
ocidental contemporânea, é a mãe, na maioria dos ca- desta pesquisa não sirvam de comprovação.
sos, a responsável pela primeira socialização das crianças, Mudar os padrões alimentares tem efeito
ainda que isso esteja em franca transformação com a nas relações sociais, principalmente nas relações
emergência de novas constituições familiares, com os familiares, mas também na família ampla e na
questionamentos acerca dos papéis de gênero e com as rede de amizades; converter-se ao vegetarianismo
transformações no estilo de vida urbano. pode encontrar simpatia e apoio ou mesmo críti-
ca, confusão e hostilidade, segundo Beardsworth
Além de todo mundo dar palpite no que eu e Keil (1992), que perceberam, entre seus en-
como ou deixo de comer, as pessoas também trevistados, o contraste entre aceitação e crítica,
opinam no modo de criar os filhos. Hoje mes- sendo esta mais acentuada nas reações dos pais
mo fui questionada sobre o fato de meus filhos diante da conversão dos filhos, sendo a mãe mais
serem vegetarianos; disseram que eu impunha simpática ou tolerante à conversão.
minha opção a eles. Isso não é verdade. Duran- Beardsworth e Keil (1992, pp. 277-278) afir-
te anos, eu cozinhei carne só para eles. Quando mam que, como o vegetarianismo pode envolver
minha caçula nasceu, eu não queria dar carne uma rejeição da comida oferecida pelos pais, tal
a ela, queria que ela optasse mais tarde, se qui- prática pode ser interpretada como rejeição aos
sesse, por comer ou não. Mas o pai e o resto próprios pais. Diversas situações de família são
da família pressionaram muito e ela foi criada transformadas em situações de tensão, sendo a
comendo tudo. Recentemente apenas, depois ocasião mais crítica, segundo os autores, o Natal,
que o irmão já era vegetariano, ela parou de dada a importância desta celebração para a manu-
comer carne. As pessoas dizem que eles passam tenção da identidade da família.7 A tensão é gera-
vontade, que eles são coitados e questionam o da tanto na situação de vegetarianos que visitam
modo como desempenho o papel de mãe (de- sua família, quanto nas ocasiões em que parentes
poimento da autora, mãe de dois adolescentes). visitam famílias vegetarianas. Ainda segundo os
autores, as situações de conflito são menores entre
Segundo Mintz (2001, p. 31), “nossas atitudes casais nos quais apenas um dos membros é vegeta-
em relação à comida são normalmente aprendidas riano; eles também observaram que os casais vege-
cedo e bem, e são, em geral, inculcadas por adul- tarianos tendiam a se apoiarem contra o restante
tos afetivamente poderosos, o que confere ao nosso da família.
comportamento um poder sentimental duradouro”. Dois dos entrevistados, oriundos das camadas
Do mesmo modo, Amon e Menasche destacam que: médias urbanas, mencionaram especificamente e
espontaneamente o Natal ao serem interrogados
O aprendizado do complexo constituído pelas por situações de conflitos: um deles, do gênero
práticas e saberes da alimentação de um dado feminino, disse se sentir um pouco excluída des-
grupo social – identificado por seus hábitos e sa festividade, na qual nunca partilhava do prato
crenças particulares – dá-se desde cedo e a cada principal, apesar de partilhar com afinco dos pre-
dia. Esse aprendizado deve ser tomado como parativos da festa, marcados pela abundância e
parte de um corpo substantivo de materiais cul- exageros de sua mãe; o outro, do gênero masculi-
turais historicamente derivados (2008, p. 16). no disse passar fome nessas ocasiões, pois a carne
estava em todos os pratos, até mesmo nas saladas,
Uma dissidência em relação a esse aprendiza- assim como sentia fome na Semana Santa, quando
do manifesto na recusa dos alimentos considerados o prato único era bacalhoada. Como ele não sabe
apropriados e na ingestão de outros considerados cozinhar, submete-se às escolhas de cardápio feitas
impróprios causa conflito na família e é precisa- por outros que desconsideram sua restrição. “Por
mente isso que vemos nas relações entre um vegeta- que ninguém faz salada, nhoque ao molho sugo,
riano e uma família não vegetariana. Certamente, o lasanha de vegetais, empadão de palmito etc.? Tem
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que ser bacalhau?”, ele questiona. A decisão de não Assim, considerando a capacidade das coisas
partilhar o alimento considerado apropriado pela ofertadas e recebidas ou recusadas significarem uma
família pode tornar-se uma não partilha de hábitos, linguagem, vemos casos de comunicações trunca-
ideias e visão de mundo. das que requereriam uma competência. Para Co-
Para essa reflexão, debruço-me sobre o de- elho:
poimento de uma mulher, onívora, 45 anos, cujo
filho único tornou-se vegetariano aos 20 anos, […] a adequação das ocasiões, dos parceiros e
influenciado pelos amigos, segundo ela, o que objetos está subordinada a uma gramática que
permite relativizar os discursos sobre escolha in- regula as escolhas individuais. É nesse sentido
dividual do que se quer comer e o pertencimento que as trocas materiais podem ser pensadas
grupal. De imediato, ela disse não entender “as como estratégias de comunicação, consistindo,
loucuras” que o filho escolheu e que, como mãe, portanto, em uma linguagem (2006, p. 37).
preocupava-se com sua saúde, temendo que o fi-
lho adoecesse pela falta do consumo de carne. Ao Para Assunção, o papel da mãe que cozinha é
longo do depoimento, ela contou-me inúmeras ainda bastante valorizado na cultura contemporâ-
situações de desentendimento, discussões e brigas, nea, apesar de modificações nas composições fa-
dizendo se sentir rejeitada pela recusa do filho ao miliares. Para a autora, nos pratos servidos, a mãe
alimento preparado com seu carinho maternal. Ao expressa a individualidade dos filhos, pois os gostos
recusar comer o prato preparado pela mãe, esta particulares fazem parte do conhecimento da mãe e
se sentia rejeitada afetivamente e o não consu- isso lhe confere certa autoridade.
mo torna-se o não afeto. O alimento, nesse caso,
como outros objetos trocados, servem “como veí- A preparação da comida e o conhecimento que
culos para expressão de emoções” (Coelho, 2006, constrói sobre as preferências alimentares dos
p. 30). membros da família constituem laços das re-
Mauss ([1923-1924] 1974), ao analisar as lações familiares que perduram ao longo dos
transações humanas através de trocas etnográficas anos. A comida tem o potencial de transformar
realizadas na Melanésia, Polinésia e Noroeste Ame- estas relações em memórias, evocadas através
ricano, percebe que a troca exige uma obrigação em do cheiro e do gosto. É nesta dinâmica que a
três tempos, que é a oferta, importante para a cons- maternidade enquanto valor social, representa-
trução do renome, o fato de receber e, por fim, a da na comida da mãe, é transmitida e “reali-
retribuição. Na discussão que estabelece, vemos que mentada” (Assunção, 2008, p. 250).
dar é uma ação social fundamental para o reconhe-
cimento e, com isso, o recebimento de prestígio; já Essa questão pode auxiliar a compreensão
receber seria uma ação representativa do aceite de dos dilemas enfrentados pela mãe do vegetariano
uma aliança, enquanto a recusa, seria uma afronta. que se recusa a comer o que ela prepara. Não se
Essa noção ajuda a compreender a ofensa trata de recusar qualquer comida, mas a comida
que a mãe sente ao ter o alimento oferecido re- de mãe, categoria recheada de afeto e valorizada
cusado pelo filho. Por outro lado, o filho, ao se culturalmente. Além disso, o prato oferecido em
declarar vegetariano e ser-lhe oferecido alimen- dissonância com o gosto do filho pode atuar ne-
tos cárneos, igualmente se sente ofendido, já que gativamente em relação à autoridade da mãe que
os presentes têm também a capacidade de insul- o desconsiderou.
tar. No caso analisado, vemos uma incompetên- No caso citado, falamos especificamente da re-
cia linguística. O filho, ao recusar o alimento, lação entre mãe e filho, mas tal desentendimento
não estaria recusando o afeto da mãe, e a mãe, pode ocorrer com outros componentes da família
ao ofertar como alimento aquilo que o filho não que ocupam papel de autoridade ou cuja relação
entende por alimento, não demonstra necessaria- se caracterize por certa assimetria, como nos revela
mente um desprezo por sua opção. essa estudante de 21 anos:
CONFLITOS À MESA  125

Eu não quero magoar meu vô, que é pecuaris- explicou que era vegetariana, sem grandes delongas,
ta. Ele fala tanto do bifinho da vó que penso segundo seu relato informal. Mas, um estranho, ao
até em comer para não chatear ele. Ele ficava ouvir a conversa, começou a discursar com a voz al-
sentido, diz que a vó fez com tanto carinho. terada sobre o absurdo de se recusar a comer carne
Chega a ser engraçado tantas vezes que eles enquanto há tanta gente passando fome. As afir-
mentiram pra mim. Eu perguntava se não ti- mações da estudante não ficaram indiferentes para
nha carne, tipo, na sopa, eles diziam que não... aquele passageiro.
mas tava lá, dava pra ver que tinha. (risos) A situação de conflito entre estranhos tem tam-
bém resultado positivo, segundo Simmel (1983),
Em outro depoimento, colhido informalmente, ao impedir a indiferença, que seria insuportável.
uma estudante de pós-graduação lacto-ovo-vegeta- Para o autor, a esfera da indiferença é limitada pela
riana, contou que passou mal no fim de semana e a nossa atividade psicológica, que responde com sen-
causa de seu mal-estar foi o fato de ela ter comido o timento às impressões de outros.
frango assado feito pela sogra, especificamente para Por outro lado, as impressões dos outros – e
ela, que comeu e elogiou o prato, em uma atuação os consequentes sentimentos – também podem ser
cínica, nos termos de Goffman (1999), para evitar manipulados para determinados fins.
o dissenso e preservar a fachada adotada (Goffman, Em uma das conversas informais que compu-
2011) que viria a ruir se ela efetivamente se negasse seram o material empírico desta reflexão, um ho-
a comer o prato. Para além do seio da família, mes- mem, de aproximados 50 anos, arquiteto, disse já
mo sendo esta o local em que mais ocorrem tensões ter sido vegetariano durante o início de sua vida
(Beardsworth e Keil, 1992), outras situações de inte- adulta, e quando eu perguntei sobre situações con-
ração social são marcadas por conflitos em relação à flituosas que se recordava de ter passado em função
opção alimentar vegetariana. do vegetarianismo, ele me contou que aprendeu a
Além do conflito pensado no interior de um gru- ocultar sua dieta, inclusive servindo-se de carne,
po, como já citado, Simmel (1983) também reflete sem contudo comê-la. Sua destreza em manipula-
sobre a importância do conflito em se tratando de rela- ção da fachada (Goffman, 1999) traz a necessidade
ções puramente externas e de pouca importância práti- de reflexão inclusive sobre sua motivação em não
ca, nas quais cumpre sua função em sua forma latente: publicizar suas escolhas de consumo.
aversão e sentimentos de pura estranheza e repulsão. Quase a totalidade dos sujeitos com que con-
versei relatou alguma situação de gafe ou descon-
Sem tal aversão, não poderíamos imaginar que certo em situações de visita, viagem ou festa. Para
forma poderia ter a vida urbana moderna, evitar comer o que não se quer (como a moça que
que coloca cada pessoa em contato com inume- comeu o frango para agradar a sogra) ou ter de fin-
ráveis outras todos os dias. Toda a organização gir que se come atuando cinicamente como ocorreu
interna da interação urbana se baseia numa hie- no depoimento citado, a maioria utiliza o recurso de
rarquia extremamente complexa de simpatias, “cooperação tácita para manutenção da fachada”,
indiferenças e aversões, do tipo mais efêmero ao em termos goffmannianos, explicitando sua carac-
mais duradouro (Simmel, 1983, p. 128). terística como meio de se antecipar – e assim evitar
– gafes e constragimentos.

A pessoa que tem um atributo negativo não


Salada de expectativa aparente muitas vezes considera conveniente
começar um encontro com uma admissão dis-
Estranheza e aversão foram os sentimentos des- creta de seu defeito, especialmente com pessoas
critos por uma estudante de graduação ao contar que não têm essa informação sobre ela. As ou-
que estava dentro de um ônibus suburbano com tras são, assim, avisadas por antecedência a não
um colega que a convidou para um churrasco. Ela fazerem comentários depreciativos sobre seu
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tipo de pessoa, e são salvas da contradição de mos a confusão entre a motivação do vegetariano e a
agir de forma amistosa com uma pessoa contra expectativa de como é ou deveria ser um vegetariano
a qual elas estão involuntariamente hostis. Essa pelo outro. Ao afirmar, de modo imperativo: “vegeta-
estratégia também impede as outras de auto- rianos devem comer vegetais”, vislumbra-se a tentativa
maticamente fazer suposições sobre ela que de estabelecer um consumo ao outro de acordo com
a coloquem numa posição falsa. E a salva de que se espera ou imagina. É, portanto, a imposição,
uma clemência dolorosa ou de admoestações ou esforço de sê-lo, de um consumo. Imagina-se o
constrangedoras (Goffman, 2011, p. 36). consumo apropriado a determinada categoria social
e reconhece-se como legítimo que aquela categoria
Essa estratégia auxilia a evitar que as pesso- consuma, como postulados de construção identitária
as façam um jantar especial à base de carnes para e também subjetiva, determinados produtos que são
um vegetariano por presumi-lo onívoro, mas não considerados legitimadores da categoria em questão.
o livra de outros constragimentos oriundos, por Assim, o moralismo existente ao se prescrever o
exemplo, de suposições referentes ao desempenho consumo das classes trabalhadoras (Barbosa e Cam-
competente do papel de vegetariano. pbell, 2006), pode ser extenso aos que adotam dietas
É importante dizer que há um imaginário refe- vegetarianas, havendo tentativas normativas de suas
rente ao vegetariano que não é compatível com as mo- práticas, buscando uma coerência do seu consumo,
tivações com o sujeito concreto que adota esse hábito o que, a julgar pelos depoimentos, é quase inexisten-
alimentar, ou de quem se exclui do consumo de carne. te. Uma vegetariana (21 anos de idade) relata:
O estereótipo do vegetariano é alguém ligado a
movimentos alternativos, busca de saúde, religiões Olha, se você quer mesmo saber, as pessoas sem-
orientais, preocupação com a natureza e os animais pre querem me dizer o que devo ou não comer.
sobretudo, segundo os sujeitos desta pesquisa. Essas Além das campanhas normais para que eu coma
atribuições são encontradas na pluralidade dos ve- carne, lembrei-me de uma viagem que fiz e comi
getarianos, mas não os unifica, e provocam diversos um daqueles bolinhos vendidos pelas baianas
desentendimentos. As incompatibilidades linguísti- que é à base de feijão. Eu perguntei várias vezes
cas se instalam nas relações face a face, presumindo se não tinha nada de animal e, ao escolher, op-
que o outro não é vegetariano, e, ao ter conheci- tei pelo bolinho frito. A gente podia escolher, ou
mento de sua opção alimentar, presume-se uma vez frito ou assado. Eu escolhi o frito, sem o recheio,
mais o que se imagina de um vegetariano. pois o recheio era de camarão. Ao meu lado,
Para Amon e Menasche (2008), a comida pode uma mulher começou a rir de mim, dizendo…
contar histórias e, no caso que analisei, vemos que a hahaha é vegetariana e come bolinho – eu não
história contada pode estar sujeita a equívocos inter- lembro o nome – frito, hahaha. Ela achou ab-
pretativos, uma vez que a expectativa do que venha surdo eu comer fritura sendo vegetariana. Mas
a ser um vegetariano e as motivações para adoção da o óleo onde se fritou era vegetal. Isso me deixa
dieta fornecidas pelos vegetarianos reais são diversas. louca. Antigamente, eu era fumante e viviam me
Uma das entrevistadas, ex-vegetariana, que fez dizendo: Ué, você diz – mesmo assim, diziam
essa experiência alimentar em busca de saúde e in- que eu me dizia vegetariana e não era vegetariana
fluenciada por amigos, relata acerca de uma parente – então, você diz que é vegetariana e fuma? Mas
que “se diz” vegetariana. eu não comia cigarro e ele era feito também de
Para ela, “vegetarianos devem comer vegetais”, e vegetais. As pessoas achavam que eu tinha de ser
sua cunhada, que afirma ser vegetariana, é “deste ta- verde e natureba. Eu só não queria comer carne.
manho” (diz fazendo gestos significando o sobrepeso
ou obesidade da pessoa da qual se fala) e só se alimen- Assim, a identidade reivindicada choca-se com
ta de “massa e queijo”. Ao perguntar sobre a motiva- uma espécie de construção mental de um ser este-
ção da cunhada, a entrevistada afirma que ela é uma reotipado de caráter normativo. Há a ideia prescri-
defensora dos animais. Nesse caso, é possível perceber- tiva de como deve ser e o que deve consumir um
CONFLITOS À MESA  127

vegetariano expresso nos argumentos citados: “ve- da natureza onívora da humanidade, os vegetaria-
getarianos devem comer vegetais” ou “ela diz que é nos são questionados acerca da prescrição religiosa.
vegetariana, mas só come queijo e massa”. Se o animal foi criado por Deus para o consu-
Apesar do aspecto fisiológico e necessário à so- mo humano…
brevivência, as várias regras que condicionam e con-
formam o ato alimentar são culturais envolvendo as Esse é um dos argumentos que mais me irrita.
amplas dimensões da história, economia, sociedade, As pessoas vêm e dizem que eu tenho que comer
geografia e tecnologias disponíveis entre outros as- carne porque Deus disse. Eu respondo, e daí?
pectos. Romanelli (2006) discute as distintas pres- Eu não vou matar um animal inocente porque
crições e interdições ao consumo de alimentos e as Deus ou o capeta disseram. Daí me acusam de
formas de fazê-lo existentes em todas as sociedades. ateu, como se isso fosse defeito. O curioso, es-
As proibições da ingestão de determinados ali- tou lembrando agora, é que uma dona que me
mentos podem justificar-se na proteção do corpo, disse isso com cara horrorizada era divorciada.
mas o objetivo subjacente é a manutenção do orga- Mas Deus aprova o divórcio? As pessoas seguem
nismo social de determinado grupo em oposição a Deus, a Bíblia ou a lei de acordo com o que lhes
outros grupos. Assim, as regras dietéticas não têm convém e se acham no direito de criticar quem
apenas um caráter prático fundado nas proprieda- resolve viver sob outros princípios (depoimento
des dos alimentos, mas, sobretudo, fazem parte de de vegetariano homem, 32 anos).
um sistema simbólico.
A convivência, às vezes conflituosa, vivenciada O que se reivindica, nesse caso, seria coerência.
por vegetarianos e não vegetarianos dá-se, em gran- A pessoa religiosa deveria, segundo esse depoimen-
de parte, na transformação de alimentos considera- to, seguir todos os preceitos bíblicos, inclusive aí o
dos comida e considerados essenciais em tabus, em respeito ao casamento e a ingestão de carnes além
proibições, abalando o sistema simbólico tal como das demais prescrições. Mas não se trata de discutir
estava organizado, sendo, por vezes, incompreensí- religião; antes, na situação relatada, a Bíblia é usada
vel como alguém daquela comunidade pode repug- apenas como autoridade que reforça ou legitima um
nar o consumo de alimentos considerados apetecí- argumento de poder, independentemente das várias
veis, saudáveis e normais. religiões que a utilizam e das tantas outras que a ig-
Na disputa simbólica entre as vantagens e des- noram. A coerência desejada não existe por inúmeras
vantagens das dietas, que, diga-se de passagem, são razões históricas que aqui não cabe desvendar, que
muitas, criam-se verdadeiros terrenos de combate condicionam o modo de se apropriar dos testamen-
e os argumentos usados pelos defensores do ve- tos. Por outro lado, os vegetarianos também são co-
getarianismo e por seus críticos são variados, mas brados em termos de sua coerência. Se são defenso-
destaco agora, a recorrência a três autoridades cul- res dos direitos dos animais, os opositores da dieta
turalmente reconhecidas no senso comum:8 a reli- vegetariana argumentam que deveriam se recusar a
giosidade, a natureza e a ciência. consumir produtos testados em animais, incluindo
vacinas, e levando ao ápice da convivência com ani-
A religiosidade mais considerados pragas para as lavouras, impossi-
bilitando, pela lógica tomada ao extremo, o uso de
A análise de Douglas (1976) mostra que por agrotóxicos, mas também o controle por meio
trás da aparente racionalidade das regras dietéticas de convivência estimulada entre predadores e presas.
judaicas, encontra-se um complexo sistema simbó- No entanto, todas as dietas, vegetarianas e oní-
lico e isso demonstra que os atos humanos são in- voras, esbarram em incoerências na prática e também
fluenciados por muitas coisas além da racionalidade nos discursos que visam sustentá-las. Apesar de reivin-
e de critérios médicos, fazendo perceber que a co- dicada, a lógica não é vivenciada nem por vegetaria-
mida não apenas alimenta, mas auxilia no estabele- nos nem pelos defensores do consumo de carne, pois
cimento de identidades. Além do argumento acerca estes também se privam do consumo de determina-
128  REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 31 N° 90

das espécies ou em determinadas situações de modo espécie. Além do que, mesmo que tenha feito
completamente irracional. Como afirma Romanelli, sentido em tempos remotos, hoje não faz mais,
os hábitos transcendem a racionalidade: hoje não estamos em árvores e cavernas e esse
tipo de alimento não faz a menor falta, pelo
Não basta ter acesso ao saber científico para mo- contrário, prejudica o planeta todo (depoi-
dificar costumes alimentares, pois eles não estão mento de homem vegetariano, 32 anos).
fundados tão somente na racionalidade humana.
Esta certamente existe, mas convive tensamente O que não se visualiza neste debate, mas o subjaz,
com valores simbólicos e com os prazeres propi- é que a relação entre homem e natureza é histórica e
ciados pela comida, sejam eles gustativos, psicoló- sujeita a transformações, como demonstra Keith Tho-
gicos ou sociais, isto é, provenientes das relações mas ([1983] 2010) em seu estudo sobre as relações
criadas em torno das refeições (2006, p. 336). entre homens, animais e plantas entre os anos de 1500
e 1800, período marcado por alterações substanciais.
Segundo o autor, o homem vivia em um ambiente
A natureza hostil e seria anacrônico pensar sobre crueldade em re-
lação aos animais em uma situação que impunha a ne-
Além dos abalos familiares e do fato de ques- cessidade de lutar para subjugar e controlar o mundo.
tionar o que se deve ou não comer, o vegetariano Hoje, podemos ver mudanças na forma de
ainda questiona a suposta natureza onívora da hu- pensar a natureza, e vários grupos que se propõem
manidade, simultaneamente aproximando-se do a se relacionar com ela de outro modo, prezando
que se considera no imaginário uma alimentação pela diversidade, deparam-se com conflitos entre as
natural, para os que adotam esse estilo de vida, uma visões sobre o mundo natural, algumas delas, mais
vez que as motivações que levam à restrição alimen- ou menos romantizadas, que se refletem na alimen-
tar não são passíveis de generalização, como disse tação, cujo vegetarianismo, no sentido adotado nos
anteriormente, afinal, há vegetarianismos tanto nos depoimentos, pode ser um exemplar.
aspectos práticos que delimitam as seleções de ali- Como exemplo de visões antagônicas de natu-
mentos quanto nas motivações que os embasam. reza, trago o depoimento de uma vegetariana.
Foi amplamente lembrado nas entrevistas o ar-
gumento ouvido pelos vegetarianos de que é da na- Então, sabe aquele restaurante que tem na-
tureza humana ser onívoro. Nesse sentido, o vege- tural até no nome? É o [nome do estabele-
tariano, presumidamente um adorador da natureza cimento omitido pela autora], ali atrás do
por não vegetarianos, age contra a própria natureza. banco. Acho que é natural só no nome (ri-
Ao propor respeito aos animais, os vegetarianos são sos). Você vai lá e dizem que fazem comida
acusados de não respeitar a própria espécie e des- natural e a dona é nutricionista e num tem
considerar toda a história da evolução humana. glúten e sei lá mais o quê. Mas eu, como ve-
getariana, tem dia que não tem pratos quen-
Certamente mais de vinte vezes, as pessoas tes, pois eles põem carne em tudo, nem car-
enfiaram o dedo na boca apontando seu den- ne orgânica é. Mas eu não comeria nem que
te canino para me convencer de que é muito fosse. Mas o que quero questionar é: como
natural comer carne (depoimento de mulher tem coragem de dizer que são naturais? A
vegetariana, 21 anos). morte daqueles animais certamente não é.
Agora existe assassinato natural? Já cansei
Me diziam assim: se o homem não tivesse co- disso… pode ver, qualquer lugar que tenha
mido carne, a humanidade não existiria, teria o tal sanduíche natural, você pede para saber
sido extinta, por isso comer carne é algo como do que é e te dizem que é atum, peru defu-
defender a própria espécie. O que eu acho dis- mado etc. Fala sério: o que atum enlatado
so? Cada vez menos gosto da minha própria com maiosese tem de natural?
CONFLITOS À MESA  129

No site do restaurante citado, consta a preocu- impressão que esses argumentos servem apenas
pação com alimentação equilibrada, funcional, que para chatear (depoimento da autora).
controle obesidade, hipertensão, diabetes etc., atra-
vés de uma alimentação denominada saudável e na- Ainda outro:
tural. Nesta, estão incluídos alimentos como carne
bovina, frango e peixe, o que, para a informante cita- E daí que saiu no Estadão que carne magra faz
da, seria um contrassenso, uma vez que “os animais bem? Daí eu tenho que ouvir todos os argu-
de corte não vivem nem morrem de modo natural”. mentos sobre reposição de proteínas, que ser
vegetariano não é saudável, que a soja faz mal
A ciência e que é importante consumir leite e ovos, que
preciso de vitamina D etc. No final, alguém
A procura por coerência encontra na ciência ainda diz que se eu me preocupo com a vida,
ou em seu jargão um argumento para defender suas eu não deveria comer a alface, pois ela também
opções. Aos argumentos ditos científicos (em mui- estava viva e eu tenho que ficar explicando que
to menor escala à própria ciência) recorrem tanto a alface não tem sistema nervoso, não sente
vegetarianos quanto os que lhe são contrários. A dor. Além disso, a maioria das doenças vem do
discussão recai, principalmente e recorrentemen- excesso de proteínas e não de sua falta (depoi-
te, segundo os depoimentos, sobre a predisposição mento de homem vegetariano, 32 anos).
genética às dietas vegetarianas ou onívoras e sobre
os riscos da falta ou do excesso de proteínas. Nessa Se o hábito alimentar não está construído apenas
discussão, recorre-se à saúde, um capital altamente na racionalidade, mas nem por isso trata-se de algo ir-
valorizado na contemporaneidade. racional, os argumentos científicos, ou aparentados de
ciência, apesar da popularidade que gozam na mídia,
Eu detesto que venham me dizer como eu re- não se mostram suficientes para fazer alguém mudar
ponho proteínas. Eu não como proteínas, vita- de dieta, apesar de determinadas prescrições dietéti-
minas, carboidratos ou outros termos científi- cas fornecidas por médicos surtirem algum efeito em
cos. Eu como é comida. Daí me dizem que isso cardíacos, diabéticos e obesos, entre outros. Onívoros
não é saudável, mas eu não estou preocupado e vegetarianos discutem sobre formatos de mandíbu-
com minha saúde, mas me preocupo com a la, presença ou ausência de proteínas, comprimento
saúde dos animais (depoimento de homem ve- do intestino em meio a outros temas, usando termos
getariano, 26 anos). científicos como recurso de convencimento. Não me
proponho a discutir a validade dos argumentos usados
Outro relato: respaldados na (ou revestidos de) ciência, antes, cabe-
-me destacar que ambos usam a autoridade científica
Estava em um restaurante com várias pessoas. para embasar suas crenças. Assim, apesar de ser de co-
Eu era a única vegetariana e minha opção virou nhecimento generalizado que a seleção do que comer
o assunto da noite. Isso acontece muitas vezes. é cultural, busca-se na natureza, na ciência e em Deus,
Além de ter de ouvir os benefícios da ingestão provas de que tal dieta é mais justificável à razão do
da carne, tive de ouvir que o excesso de agro- que outras.
tóxicos transforma as verduras em venenos.
Pedi ao sujeito que parasse de falar enquanto
eu comia, pois eu não estava falando sobre os Comida e classificação do mundo
matadouros enquanto ele comia carne e consi-
derei uma falta de respeito seus comentários. Pelos depoimentos dados, é possível visualizar
O curioso é que todos também comeram vege- a confusão, que considero essencial, entre o que é
tais, mesmo os carnívoros. No caldo verde de- considerado comida e alimento e o que não cabe
les não tinha agrotóxico? Só no meu? Tenho a nessa categoria. As classificações divergem.
130  REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 31 N° 90

Recorrentemente – inclusive eu mesma viven- humanos que estão em situação de miséria, com-
ciei inúmeras vezes –, os vegetarianos são questio- binando questões morais, análises sobre desigual-
nados sobre como conseguem se privar do consu- dade e preocupações ecológicas.
mo da carne, ou seja, presume-se a existência do Segundo Mary Douglas (1976), a limpeza e a
desejo e seu controle. A questão é que, para os ve- sujeira são relativas e fazem parte de um complexo
getarianos com quem conversei, incluindo eu mes- cheio de variáveis. Os vegetarianos tendem a sa-
ma, a carne não é vista como comida, assim, não lientar o aspecto asqueroso dos matadouros, mos-
se trata de lutar contra o desejo de comer, pois isso trando o quão nojento pode ser a produção do ali-
inexiste. Nos relatos coletados, apenas uma pessoa, mento cárneo; mesmo aqueles que não têm como
hoje onívora, relata que sentia vontade de comer motivação principal a ética em relação aos animais,
carne durante o tempo em que foi vegetariana. destacam a produção de carne como potencialmen-
Assunção (2008), recorrendo a DaMatta (1986), te contagiosa. De forma similar, os opositores do
que considera alimento o que é neutro e comida vegetarianismo recorrem ao nojo visando ridicula-
o que é familiar, fala de uma possível distinção entre rizar os vegetarianos ao dizer coisas como: “minha
comida e alimento, considerando o último o que é comida caga na sua”.9
potencialmente comível e considera comida o que é É importante pensar nisso, pois vegetarianos e
considerado culturalmente comível. Outra definição opositores tendem a usar o nojo ou insalubridade
possível é a de Klaas Woortman (1978), para quem da comida do outro para legitimar seu próprio há-
comida é alimento processado, pronto para ingestão. bito alimentar e sua identidade e de seu grupo, o
Já a definição de Alba Zaluar (1985) identifica co- que não se justifica do ponto de vista racional ou
mida como arroz, feijão e carne, comida que todos médico. Nem vegetariano nem onívoro parecem
devem ter à mesa. A carne, para o grupo estudado estar doentes, poluídos ou em risco de morte. As
pela autora, é indicador de prestígio e considerada explicações buscadas na medicina e na higiene re-
comida forte. Esse grupo considera que apenas a car- velam-se simbólicas, caráter já apontado por Mary
ne satisfaz e, quem não a come, passa por privação,, Douglas no clássico Pureza e perigo (de 1976), obra
ignorando que muitos dos produtos provenientes da na qual a autora propõe abstrair patogenia e higie-
soja ou vegetarianos em geral tendem a ser mais ca- ne da noção de sujeira, considerando esta como um
ros. Uma das entrevistadas, com 27 anos, afirmou: tópico inoportuno.
“Um pedreiro que trabalhou em casa, ao saber que
sou vegetariana, disse ao seu colega: essa aí é fácil de Estava num restaurante com uma pessoa que
tratar. Disse que sou mulher ‘barata’”. De qualquer comia carne e pedimos um espeto de queijo,
modo, cabe ressaltar que o custo da alimentação não para mim, e um espeto de carne para a pessoa
foi abordado, como motivação, por nenhum dos que estava comigo. Como acompanhamento
entrevistados. do espeto de carne, era servido arroz e man-
Na análise de Beardsworth e Keil (1992), as dioca. Eu pedi ao garçom que trouxesse o arroz
motivações foram classificadas em quatro tipos em tigela separada para que o molho da carne
principais, sendo que o custo também não aparece não sujasse o arroz, pois a gente ia dividir. Ele
como importante para a sua amostra. Como moti- disse que a carne não vinha com molho.
vação principal, aparece a questão moral, seguida Eu disse que sabia disso, mas gostaria separado,
pela saúde; em terceiro lugar, a questão relativa ao para que a carne não soltasse caldo. Ele disse
paladar, e, em último lugar, a ambiental. Os au- que não vinha caldo com a carne. Foi difícil
tores ressaltaram que algumas pessoas colocaram convencê-lo que é normal que a carne, sem
uma ou mais motivações como equivalentes. A re- molho, solte um líquido e esse líquido sujaria o
lação entre valor e consumo aparece nos discursos, arroz e eu não comeria assim. Ele disse que não
quando os autores percebem que seus entrevista- fazia sentido comer queijo com arroz (depoi-
dos vivenciam o vegetarianismo como obrigação mento de mulher vegetariana, 32 anos).
moral com animais e também com outros seres
CONFLITOS À MESA  131

Ideias de poluição fazem sentido só em referên- ses argumentos e ofertas com a finalidade restrita
cia a uma estrutura total de pensamento, segundo de ofender o outro mantendo e revigorando a cren-
Douglas (1976). Para o garçom citado no depoi- ça na superioridade das opções sobre as quais se fir-
mento, a carne não sujaria o arroz, posto ela ser mam sua identidade.
limpa, enquanto, para a vegetariana, a carne, pelo No caso que analiso, as proibições fazem parte
contato com o arroz, este sim considerado alimen- de um sistema muito particular de classificação. Se
to, era agente de poluição. Intuitivamente, o garçom há a regra dominante entre vegetarianos, como não
percebe o carácter simbólico da comida ao reivindi- comer carne ou proteger animais, as concessões de
car o sentido de misturar arroz e queijo. Esse sentido cada um a essa regra serão determinadas por outras
só pode ser entendido em um sistema cultural, pois regras. Sendo muitas as lógicas em questão, são co-
não se funda na razão, o que se torna mais complexo bradas coerências na dieta e no discurso do outro, o
em uma sociedade multifacetada, como a contem- que, efetivamente, não se consegue.
porânea. Nessa perspectiva, Douglas (1976, p. 57) Sempre se busca uma ordem, a seleção do que
questiona: “Por que o camelo, a lebre e o hírace se- se come e do que se considera apto a ser ingerido,
riam impuros? Por que alguns gafanhotos, mas não e, mesmo que não se possa efetivamente explicar as
todos, seriam impuros? Por que seria a rã pura e o razões dessa classificação, ela existe e é seguida e rea-
camundongo e o hipopótamo impuros?”. firmada cotidianamente. Porém, às vezes, o cotidia-
As tentativas de explicar não são suficientes e no abre-se a rupturas. As proibições resultantes das
podem se estender ao infinito e as explicações não classificações são rompidas em situações extraordiná-
servem como interpretação porque não são nem rias, em que são feitas concessões, tanto de restrição
coerentes nem abrangentes. Douglas demonstra quanto de ingestão extraordinária de alimentos.
que as proibições do Levítico são de ambíguos, ou Além dos momentos de suspensão das regras,
seja, as proibições recaem naquilo que desafia a ló- há que considerar que as regras vividas cotidia-
gica construída socialmente. Tudo aquilo que não namente são construídas durante as biografias. A
se conforma ao sistema de classificação de mundo identidade não é assumida ou vivida repentina-
da cultura em questão é considerado ambíguo ou mente, trata-se de um processo constantemente
anômalo e, como tal, impuro. reconstruído para si mesmo e para outros, recursi-
vamente alimentado, assim é importante salientar
Passei por uma situação muito desagradável. que se sentir vegetariano, lacto-ovo-vegetariano,
Eu e minha filha somos vegetarianas. Minha macrobiótico, vegano, entre outras modalidades,
filha, criança, foi na casa de uma amiga e esta- ocorre de modo processual. Os relatos contam o
vam fazendo churrasco e minha filha explicou tempo ocorrido entre estancar um consumo e cons-
que não come carne. O pai de sua amiga disse truir uma noção de ser positivamente algo, de ter
que ela poderia se servir da grama do jardim. como referência uma identidade.
Ela ficou muito triste e eu também achei o Todos os informantes, inclusive eu, não fomos
comentário do pai muito ofensivo. Jurei que criados em famílias vegetarianas, mas as opções
quando a filha dele fosse em casa, eu ofereceria alimentares foram se formando do mesmo modo
meu cachorrinho para ela comer, já que ela não que o caráter vai sendo constituído. Trata-se sem-
consegue viver sem carne (depoimento de mu- pre de um processo, de ser e vir-a-ser. A identida-
lher vegetariana, 27 anos). de, nessa perspectiva, é construída quase de modo
experimental: são nas múltiplas restrições, adoções,
O que se busca é ofender o diferente. Ao ofer- aprendizagem de pratos novos, restaurantes novos,
tar a grama do jardim, o sujeito, sem dizer, anima- produtos, pontos de venda, receitas, recaídas e no-
liza o outro, o que é revidado quando se afirma, vas restrições que o sujeito passa a se conceber e
hipoteticamente, ofertar o cachorro para comer. O perceber até onde ele vai e o que lhe satisfaz, em
vegetariano não come grama e o onívoro não come termos de desejo, não de necessidade.
cães domésticos. Todos sabem disso, mas usam es-
132  REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 31 N° 90

Para mim, tornar-me vegetariana foi um pro- Essa multiplicidade de idas e vindas e expe-
cesso longo. Sou vegetariana há cerca de dez riências dietéticas, gustativas e sociais marcam as
anos. Faz esse tempo todo que me defino como biografias individuais, constituindo sujeitos calei-
vegetariana, mas, na verdade, eu acho que ago- doscópicos. Tudo isso em torno do consumo ou
ra sou mais vegetariana que antes, se é possível restrição ao consumo, lembrando que o vegetaria-
dizer assim. Bem. Eu sou lacto-ovo-vegetariana nismo não está só no não consumo, mas se insere
e já me questionaram o fato de dizer que sou positivamente na escolha de outros alimentos e al-
vegetariana. Eu respondo que é só, tipo, uma ternativas alimentares.
abreviatura para o meu hábito alimentar: lacto- O sujeito, nas constelações múltiplas do seu
-ovo-vegetarianismo. Como eu dizia, antes, eu consumo, constrói uma noção de si, forjando uma
comia, tipo, uma feijoada. Eu tirava as carnes identidade para si e para outros, como dizem Bar-
todas e comia o feijão. Uma carne com batata, bosa e Campbell:
eu tirava a carne e comia a batata. Hoje não,
se foi cozido junto, eu nem penso em comer. Assim, ao “customizarmos” uma roupa, ao ado-
Eu olho e é como se eu olhasse um sapato, tarmos determinado tipo de dieta alimentar, ao
uma cadeira, é um objeto, não é alimento. Para ouvirmos determinado tipo de música, podemos
mim, alimento é outra coisa (depoimento de estar tanto “consumindo” no sentido de uma
mulher vegetariana, 32 anos). experiência, quanto “construindo”, por meio de
produtos, uma determinada identidade, ou ainda
Por outro lado, há os que experimentaram die- nos “autodescobrindo” ou “resistindo” ao avanço
tas variadas, macrobióticas e vegetarianas, e voltaram do consumismo em nossas vidas, como sugerem
a uma dieta onívora, mesmo que não seja a dieta exa- os teóricos dos estudos culturais (2006, p. 23).
ta em que foram criados, o que mostra a construção
dos sujeitos onívoros é igualmente processual e re- Porém, apesar de se tratar de opções de consu-
flexiva, ainda que pareça naturalizada nos discursos. mo e recusa de consumo, para determinados tipos
Aliás, como aborda Campbell (2006), é nas experiên‑ de vegetarianos, e mais marcadamente os veganos,
cias de consumo, especialmente nas nossas reações a esfera da produção não pode ser negligenciada, na
aos consumos que vamos construindo quem somos. medida em que a forma de produção interferirá no
Dois sujeitos com quem tive contato informalmente consumo ou na recusa. Por exemplo, evitam-se ou
durante o trabalho de campo apontam diferentes va- proíbem-se produtos testados em animais, são prio-
riáveis para assumirem uma dieta onívora após terem rizados alimentos orgânicos e mesmo ovos podem
vivenciado uma experiência vegetariana. Um deles, ser consumidos, desde que não sejam produzidos
que até hoje come “pouca carne”, segundo ele mes- em granjas, consideradas antiéticas, por algumas
mo, afirmou ter sofrido muitos preconceitos por sua variantes de vegetarianos e veganos. Nem todos
opção. Em sua trajetória, repleta de restrições, tanto os sujeitos se preocupam com a produção, mas há
por razões medicinais quanto ideológicas, decidiu aqueles que mediam a escolha do produto de con-
comer carne ao perceber que estava enfraquecendo sumo pelo modo em que foi produzido.
e ao fazer um curso de gastronomia que exigia o ma- Pode-se sempre argumentar sobre os benefícios
nuseio de carnes. A primeira experiência, depois de e malefícios de tal ou qual dieta, com ou sem carne,
anos de abstinência foi inesquecível: “Eu só sentia mas o gosto alimentar, entre outras modalidades de
gosto de sangue”. gosto, não se sujeita a argumentos racionais. Os gos-
Já outro sujeito afirmou que, apesar de ter ado- tos têm componentes culturais e afetivos sendo cons-
tado o vegetarianismo por razões quase místicas en- truídos nas histórias individuais, sendo ainda mais
volvendo amor à natureza, sempre teve vontade de individualizados em uma sociedade poligustativa.
comer carne e voltou a comê-la por razões médicas, Campbell (2006) recorda do ditado popular
uma vez que sua dieta vegetariana era bem pouco “gosto não se discute”, que, originariamente, refe-
balanceada e estava sofrendo de obesidade. ria-se à perda de tempo que significa tentar con-
CONFLITOS À MESA  133

vencer alguém gostar ou desgostar de alimentos e o ato de escolher determinada dieta torna-se ofen-
bebidas com argumentos racionais. Nas palavras sivo, a ponto de haver reações agressivas em relação
do autor: “Isso quer dizer que nossos gostos são aos vegetarianos?
inquestionáveis, ‘nossos’ no sentido de que não po- Possivelmente, ao adotar dietas restritivas (sem
dem ser legitimamente contestados por outra pes- a finalidade explícita da saúde, esfera que se tor-
soa” (Campbell, 2006, p. 54). nou um campo de batalha entre vegetarianos e não
Nem vegetarianos nem não vegetarianos con- vegetarianos que buscam a legitimidade da ciên-
seguem convencer um ao outro com argumentos e cia por seus hábitos alimentares), os vegetarianos
todos têm restrições. Mesmo o onívoro ocidental, transformam o alimento do outro em tabu, assim
defensor consciente da ingestão de proteína animal, ofendem a representação social e a coesão do grupo
vira os olhos diante de alguns insetos consumidos caracterizada na partilha dos alimentos. Deixo cla-
em países orientais de alto valor proteico. Disso ro que as batalhas no universo dietético em muito
concluo que os valores dietéticos só valem quanto ultrapassam a esfera do consumo de carne (se me
argumento, só tem valor retórico, pois a opção pelo atenho a isso é apenas por recorte do objeto), ou-
que se ingere e o que se abomina enquanto alimen- tros alimentos são transformados em tabu, em geral
to não se baseia em nutrientes, antes em um entre- apoiados em retórica científica, e são geradores de
cruzamento de construções mentais, representações conflito, como o açúcar branco, a fritura, o refrige-
sociais e idiossincrasias pessoais. rante, bebidas alcóolicas e os vegetais não orgâni-
Avaliar do ponto de vista nutricional as dietas cos, entre outros.
escolhidas ultrapassa as intenções desta pesquisa; Com a crise das instituições que fundamenta-
alimentar-se é necessário para manutenção da vida, vam a construção de identidade e forneciam esteio
mas a forma de comer, o que comer, quando comer psicoafetivo para o desenvolvimento de indivíduos,
e o que não ingerir são representações sociais que mais ou menos coerentes e seguros de si, o consu-
pouco têm a ver com quantidade de nutrientes. mo poderia ocupar um dos papéis de fornecimento
Os territórios do cotidiano transformam-se de identidade, já que o que você consome pode ter
em linhas de demarcação de fronteiras e batalhas apelo significativo daquilo que você é. Assim, além
entre vegetarianos e não vegetarianos, mas as fron- de considerar vegetariano, pelo polo negativo, um
teiras separam e também aproximam. Excluir-se de sujeito que não consome alimentos cárneos, pode-se
determinado consumo não significa excluir-se do pensar, num pólo positivo, na constituição de um
convívio com os consumidores. Os conflitos são ser vegetariano. Atrela-se pois a ação de consumir ou
negociados e concessões são feitas em inúmeras não à noção de um sentimento relativo ao ser e à
circunstâncias da vida cotidiana, como o convite constituição de si. Para Campbell (2006), pode-se
para um almoço ou jantar, a festa com o pessoal concluir que as ações dos consumidores são respostas
do trabalho, a escolha do restaurante, a escolha de à crise de identidade e intensificam essa crise:
parceiros amorosos, a pertença familiar, a criação
de filhos, entre outras situações recolhidas nas traje- Hoje em dia, concordo plenamente com o fato
tórias de vida dos vegetarianos entrevistados. de que o senso de identidade de um indivíduo
De modo geral, e considerando a restrição do não é mais claramente determinado, como já
próprio escopo desta pesquisa que ouviu basica- foi, por sua filiação a determinada classe ou
mente vegetarianos sobre os conflitos que viven- status de certos grupos, apesar de aceitar que
ciam, o que impede a extensão em número e em o consumismo é fundamental para o proces-
abrangência de tema, atentei para a reação, de cer- so pelo qual os indivíduos confirmam ou até
to modo agressiva, dos não vegetarianos em rela- criam sua identidade. Mas o que contesto aqui
ção aos que optam pelo não consumo de animais, é a ideia de que os indivíduos na sociedade
o que traz à questão: Por que, em uma sociedade, contemporânea não têm um conceito fixo ou
como a contemporânea, em que se valoriza auto- único de self, embora sustente a tese de que o
nomia e escolha individual, ao menos no discurso, consumo, longe de exacerbar a “crise de identi-
134  REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 31 N° 90

dade”, é, na verdade, a principal atividade pela Os resultados desta pesquisa apontam que a
qual os indivíduos resolvem esse dilema (Cam- opção pelo vegetarianismo encontra resistência e
pbell, 2006, pp. 50-51). se sujeita a constrangimentos da vida cotidiana;
não obstante, apesar do papel desagregador desem-
A questão que recai em conflito de vegetaria- penhado pelo vegetariano em alguns dos rituais
nos e não vegetarianos pode ser pensada em relação em torno da alimentação, a socialidade prevalece.
à constituição de identidade. Se o vegetariano, por Através dos dados construídos, percebemos que as
seu consumo ou negação de consumo, constrói uma negociações, recusa e aceitação de dietas variadas
identidade e um sentimento de pertença a um gru- auxiliam na compreensão da complexidade da so-
po, movimento ou categoria, o onívoro constrói uma ciedade atual, descentrada, que favorece o dilema
imagem mental de um tipo de vegetariano que não das escolhas individuais elaboradas reflexivamente
corresponde à multiplicidade daqueles que se recu- por meio das informações disponíveis e os cons-
sam a alimentar-se de carne. Apesar de não conside- trangimentos da vida social, cujo padrão se fragi-
rar apropriado classificar a sociedade contemporânea liza. No entrecruzamento destes vetores, as opções
reduzindo-a a um de seus aspectos, não tenho dúvi- pelo consumo e a recusa do consumo fornecem pa-
das de que é possível dizer que uma de suas caracte- péis sociais, comunicam lugares sociais e possibili-
rísticas é a de ser pluridietética. Explico-me. Todas as tam a reflexão sobre a sociedade contemporânea e a
sociedades têm várias dietas, mas tais dietas tendem a multiplicidade que a caracteriza.
seguir as vinculações das categorias que compõem
a sociedade em questão, assim, há diferenças na ali-
mentação de acordo com a idade, o gênero, a classe Notas
social, entre outras categorias. A diferença que perce-
bo na sociedade contemporânea é a de que além des- 1 O termo autoetnografia está longe de consenso. Ou-
sas diferenças de dietas entre as categorias fundadas tro sentido foi discutido por Pratt (1999), para quem
em uma “consciência coletiva”, há uma explosão de a autoetnografia surgiu como uma resposta às etno-
grafias produzidas pelos colonizadores, que escreviam
dietas de pequenos grupos e dietas rigorosamente
sobre os outros em uma posição necessariamente liga-
idiossincráticas formadas pela experimentação indi-
da à condição de colonizador.
vidual que foram se transformando em hábitos de
2 Após o fim do pós-doutorado, realizado em 2010,
consumo, alguns mais, outros menos cristalizados,
voltei à Lisboa para uma estada de três meses em
sujeitos a reversão e a nova transformação. 2012, onde realizei parte da construção dos dados
Porém, apesar dessa pluralidade de dietas, aqui relatada.
por vezes antagônicas, fundadas em (e fundantes
3 Neste caso, trata-se de pessoas que se converteram ao
de) identidades, não penso que se trate necessa- vegetarianismo e não daquelas socializadas no vegeta-
riamente de um período anômico. Assim, propo- rianismo desde a infância.
nho relativizar o que Fischler (1990) definiu como 4 A designação ampla de vegetarianismo abarca dietas
“gastro-anomia”. Para Fischler, a ausência de re- específicas como o naturalismo, veganismo, frugivo-
gras no comer fez com que as influências alimen- rismo, crudivorismo, cerealismo, lacto-ovo-vegetaria-
tares fossem cada vez menos exercidas pelo grupo, nismo, piscovegetariansimo, entre outras.
para o declínio da comensalidade, transformando 5 A dieta macrobiótica, segundo o entrevistado, reco-
o ato de comer em um ato nômade e atomizado. menda a abstenção de carnes, mas não é proibitiva
Apesar de vislumbrar o que o autor chama de ca- nesse sentido. No entanto, ele não consome carnes
cofonia alimentar, reitero que as regras e tradições e procura orientar seu consumo segundo os parâme-
não foram totalmente colapsadas, mas revivem, tros da macrobiótica, equilibrando os alimentos yin e
e, por vezes, o que parece ser absoluta desordem yang, pois não basta comer vegetais desordenadamen-
pode significar o estabelecimento de outras es- te para manter-se saudável.
truturas, outras configurações mais convergentes 6 Sobre o gênero feminino e alimentação, ver o trabalho
com a complexidade da cultura contemporânea. pioneiro de Counihan e Steven (1998).
CONFLITOS À MESA  135

7 No original: “However, it appears to be at Christmas existo: as bases metafísicas do consumo mo-


that these tensions are at their most acute, given that derno”, in L. Barbosa e C. Campbell (orgs.),
this festival is of particular importance to the mainte- Cultura, consumo e identidade, Rio de Janeiro,
nance of family identity, and is linked to comparative- Editora da FGV.
ly stable and well established conventions governing
CASCUDO, L. C. (2004), História da alimentação
the food to be consumed” (Beardsworth e Keil, 1992,
p. 278).
no Brasil. São Paulo, Global.
COELHO, M. C. (2006), O valor das intenções:
8 Segundo Berger e Luckmann (1999, pp. 29 e 30),
“A sociologia do conhecimento deve ocupar-se com
dádiva, emoção e identidade. Rio de Janeiro,
tudo aquilo que é considerado ‘conhecimento’ na so- Editora da FGV.
ciedade”, atendo-se àquilo que os homens conhecem COUNIHAN, C. M. & STEVEN, L. C. (orgs.)
como realidade em sua vida cotidiana. Nesse sentido, (1998), Food and gender. Identity and power.
é o conhecimento do senso comum que constitui o Amsterdam, Harwood Academic Publishers,
foco da disciplina, pois é ele que constitui “o tecido de 1998.
significados sem o qual nenhuma sociedade poderia DAMATTA, R. (1986), O que faz o brasil, Brasil.
existir”. Com essa orientação, interesso-me mais em Rio de Janeiro, Rocco.
perceber como, na vida cotidiana, as pessoas comuns DOUGLAS, M. (1976), Pureza e perigo. São Pau-
utilizam diversos argumentos para defender práticas e
lo, Perspectiva.
modos de pensar.
DOUGLAS, M. & ISHERWOOD, B. (2009), O
9 Frase ouvida por vegetarianos e verso do refrão de
mundo dos bens: para uma antropologia do con-
“Carnívoro song”, música-manifesto contra veganos
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RESUMOS / ABSTRACTS / RESUMÉS 

CONFLITOS À MESA: CONFLICTS AT THE TABLE: CONFLITS À LA TABLE:


VEGETARIANOS, CONSUMO E VEGETARIANS, CONSUMPTION VÉGÉTARIENS, CONSOMMATION
IDENTIDADE AND IDENTITY ET IDENTITÉ

Juliana Abonizio Juliana Abonizio Juliana Abonizio

Palavras-chave: Alimentação; Vegetaria- Keywords: Food; Vegetarianism; Con- Mots-Clés: Alimentation; Végétarisme;
nismo; Consumo; Cotidiano. sumption; Daily life. Consommation; Quotidien.

Em situações do cotidiano, a experiência In everyday situations, the experience Dans des situations de la vie quotidienne,
de ser vegetariano dá-se em meio a con- of being a vegetarian occurs within a l’expérience d’être végétarien se passe au
flitos e inúmeras práticas de negociação process of conflict and practices of ne- sein de conflits et d’innombrables pra-
que envolvem decisão, recusa, atos de gotiation involving decisions, refusals, tiques de négociation qui incluent des
consumo, aproximação e distanciamento consumption acts, and proximity and décisions, des refus, des actes de consom-
entre pessoas com as quais se relaciona. distance between people in their relation- mation, de proximité et d’éloignement
Para entender os percursos de quem opta ships. In order to understand the trajec- entre les personnes avec lesquelles l’on
pelo vegetarianismo, suas motivações e tory of those who opt for vegetarianism, maintien des rapports sociaux. Pour
seus conflitos diários em situação de inte- their motivations and everyday conflicts comprendre les parcours de ceux qui
ração social, utilizou-se a autoetnografia in situations of social interaction, the optent pour le végétarisme, leurs motiva-
(observação sistemática da situação de article uses self-ethnography (systematic tions et leurs conflits quotidiens au sein
conflito vivida pela pesquisadora) e en- observation of the conflict situation ex- des rapports sociaux, nous avons utilisé
trevistas com vegetarianos de diversas res- perienced by the researcher) and inter- l’auto-ethnographie (l’observation systé-
trições alimentares selecionados por uma views with selected vegetarians with dif- matique de la situation de conflit vécue
metodologia de conveniência. ferent alimentary restrictions. par la chercheuse) ainsi que des entre-
tiens avec des végétariens qui suivent dif-
férents régimes alimentaires sélectionnés
par un procédé de commodité.

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