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Jardel Dias Cavalcanti

Túmulo do Amor

Galileu Edições
Jardel Dias Cavalcanti

Túmulo do Amor

Ilustração:
Elias Layon

Galileu Edições
Londrina, 2016
Túmulo do Amor
“A única virtude que minha história
tem é que de fato ocorreu”.

(Cabrera Infante)

Eu a conheci aos 16 anos. Nós nos apaixonamos


imediatamente. Tínhamos uma turminha bem animada, que
se reunia para tomar vinho barato, tocar violão, ler Fernando
Pessoa e fumar uns baseados.

Vivíamos numa cidade do interior de Minas Gerais.


Muitas igrejas, muita fofoca, muita vigilância moral. A terra
das beatas é algo muito próximo ao inferno para um jovem.
Não bastasse a vigilância da família, os olhos de todos os
cidadãos sobre nós era de condenação. Jovens com cabelos
chegando ao ombro e com uma predisposição a nadar contra
a correnteza, éramos suspeitos. “Não te vi na missa da manhã
hoje, meu filho!”.

Aos 16 anos, depois de alguns troca-trocas, amar


algumas bananeiras e imaginar intimidades com as amigas da
minha irmã que tomavam sol de biquíni no quintal, descobri
o amor nos lábios doces daquela menina com cara de sapeca,
com um riso indescritível, que tocava violão e gostava de
poesia.

Primeiro andamos de mãos dadas, depois nos beijamos,


beijamos e beijamos... depois nos tocamos nas partes do
corpo que eram proibidas. Enquanto o calor subia, as fofocas
também esquentavam na pequena cidade cheia de igrejas. No
entanto, não nos apavoramos, éramos puros, amantes de
coração, portanto, livres para ir até o fim.

Nos divertíamos em grupo inicialmente. O violão mal


tocado passava de mão em mão, como o baseado e a garrafa
de vinho vagabundo. Alegres e plenos de poesia e música, nos
separávamos do bando ao ir embora. Eu a levava até o portão
de casa, lá os beijos não queriam mais parar. Porque dividir o
que nasceu para ficar junto? Chegando a hora de se recolher,
ia cada um para sua casa, triste e feliz. Amanhã tem mais. Tem
mais vida.

Os sinos das igrejas nos acordava bem cedo. Um poema


para meu amor, preciso escrever, escrever, escrever. À noite
trocávamos nossos poemas amassados, guardados o dia todo
no bolso, lidos, relidos, corrigidos.
Estudávamos à noite, todo o bando. Acabava a aula, cada
um trazia seu vinho, seu livro de poesia, violão e era só
encontrar um baseado. Cada um do grupo tirava sua pequena
contribuição do bolso e o resto era fácil. De mãos dadas com
meu amor, minha felicidade corria aquelas ruas de
paralelepípedo de uma cidade cheia de igrejas do interior de
Minas Gerais.

Para correr dos olhos vigilantes, nosso bando descobriu


a escadaria do cemitério como ponto de encontro para a
música, histórias de terror, namorar e ler poesia. A bruma,
como aquelas das pinturas de Elias Layon, envolvia a cidade
provocando o clima poético. O violão alimentava nossos
corações com canções de amor de Lô Borges, Beto Guedes e
Milton. Além dos meus beijos, não é minha amada?

- “Nos vemos amanhã pessoal, vamos ficar namorando


um pouco mais aqui, sob o cuidado das almas penadas”.

E foram tantos beijos (e mãos que invadiam a camisa e a


calça e a minissaia e o perfume que se misturava e nos
apertávamos mais e mais e não conseguíamos parar de nos
beijar de nos esfregar e nos declarávamos apaixonados e nos
amassávamos e nos desejávamos), que decidimos, por fim,
entrar no cemitério. Não era fácil o acesso a um motel. Era
impossível. Naquela cidade de igrejas por todo lado, olhos
vigilantes e censores, pais quadrados e falta de dinheiro para
tudo e nem carro tínhamos, como poderíamos ficar sozinhos?
Só o cemitério era de graça (para nós, não para os mortos).

Entramos, afinal não se pode fugir do desejo de fusão


amorosa. E o mais lindo túmulo era, para nosso deleite, o do
poeta Alphonsus de Guimarães. Ele não iria se importar,
comentamos. Ao contrário, ele teria assunto no céu ou no
inferno para mais um poema simbolista.

Limpei o túmulo, que reluzia em sua negritude sob a luz


de uma enevoada lua nova. Tirei minha camisa e forrei o
mármore negro que, em seguida, viu deitar sobre ele a nudez
total de uma menina de 17 anos. Não éramos mais virgens ao
passar da meia-noite. Atravessamos as ruas da cidade mais
felizes e brilhantes que um cometa, mais felizes do que um
poeta quando encontra a palavra justa. Havíamos encontrado
nossa morada do amor. E era ali que passávamos a maior
parte de nossas noites juntos.

E também foi ali, um ano depois, sentado sobre o


mesmo túmulo, que ouvi de sua boca a pior notícia de minha
vida: “Não quero mais, vamos acabar com isso”. Porque?
“Vamos nos despedir fazendo amor pela última vez”. Eu a
penetrei chorando, com o rio de minhas lágrimas lambuzando
o seu rosto e os seus seios. “Por favor, entenda, não quero
mais, não dá mais...”.

Desci aquelas ruas sozinho, o coração trespassado por


uma lâmina de aço, penetrante, dolorosa e amarga, enquanto
a observava indo para casa também sozinha, com seus
delicados passos que faziam sua minissaia balançar para lá e
para cá. Um poema de dor para meus olhos.

Em casa, entrei no quarto do meu pai, abri o armário e


do bolso de seu terno retirei a arma que eu sempre soube que
estava ali. O meu Werther estava aberto sobre a mesa, era o
alimento poético para meus dias de amor felizes e tristes,
como todo amor. Depositei sobre ele a arma. Peguei algumas
folhas de papel e escrevi a minha história de amor, que
dediquei a ela. Intitulei-a “O túmulo do amor”. Quando
acabei, lá pelas 5 da manhã, acordei todos em casa com o
barulho do tiro, que atravessou meu coração.

Toda a cidade ficou sabendo e se comoveu com a


história, narrada no texto que apareceu na manhã seguinte
impressa no jornalzinho local. Lido, lido, lido. O neto do
poeta, um homem sensível às histórias de amantes, sugeriu
que eu fosse sepultado no túmulo do amor. Toda a cidade
aplaudiu a iniciativa. E assim foi feito.

Ela, a amada, inconsolável, passou a andar como uma


louca pela cidade, corroída com a minha morte, à beira da
insanidade e também de uma decisão final. Todos
aguardavam atentos pelo desfecho, pois percebiam que o
abismo a espreitava. Por isso, o túmulo era limpo diariamente,
à espera do corpo da jovem que ali poderia encontrar a sua
paz de espírito e seu amado perdido.

Enquanto a cidade esperava do lado de lá, eu esperava


do lado de cá, no reino dos mortos, pelo reencontro.

FIM
As ruas desse lugar/ conhecem bem/ as noites longas,
as noites pálidas/ quando eu te procurava /.../ As casas
desse lugar/ se lembrarão/ do nosso abraço, da
sombra insólita... (Samuel Rosa e Chico Amaral)

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