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Henrique Altemani de Oliveira

Antônio Carlos Lessa


José Flávio Sombra Saraiva
Pio Penna Filho
Carlos Eduardo Vidigal
Cristiano Garcia Mendes

POLÍTICA INTERNACIONAL
CONTEMPORÂNEA:
MUNDO EM TRANSFORMAÇÃO
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ISBN 978-85-02-12496-7

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA FONTE


SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS,
RJ.

Política Internacional Contemporânea: mundo em transformação


Henrique Altemani de Oliveira... [et al.J; [organizadores,
Henrique
Altemani de Oliveira, Antônio Carlos Lessa]. - São Paulo :
Saraiva, 2006.

ISBN 978-85-02-12496-7

1. Política Internacional - 1945-. I. Oliveira, Henrique Altemani


de, 1945-. II. Lessa, Antônio Carlos, 1970-.

05-2975 CDD 327.09


CDU 327(09)
Editado também como livro impresso em 2007.
Copyright © Antônio Carlos Lessa, Carlos Eduardo Vidigal,
Cristiano Garcia Mendes, Henrique Altemani de Oliveira, José
Flávio Sombra Saraiva, Pio Penna Filho
2006 Editora Saraiva
Todos os direitos reservados.

Direção editorial Flávia Alves Bravin

Coordenação Ana Paula Mats


editorial
Gisele Folha Mós
Juliana Rodrigues de Queiroz
Rita de Cássia da Silva
Produção editorial Daniela Nogueira Secondo
Rosana Peroni Fazolari
Marketing editorial Nathalia Setrini

Arte e produção ERJ Composição Editorial

Capa Bum Design

Produção grafica Liliane Cristina Gomes

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1a Edição
1a tiragem: 2006
2a tiragem: 2007
3a tiragem: 2008
4a tiragem: 2011
Nenhuma parte desta publicação
poderá ser
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sem a prévia autorização da
Editora Saraiva.
A violação dos direitos autorais é
crime
estabelecido na lei no 9.610/98 e
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pelo artigo 184 do Código Penal.
SOBRE OS AUTORES

Henrique Altemani de Oliveira é professor do curso de


Relações Internacionais e coordenador do Programa de Pós-
Graduação em Relações Internacionais da PUC/SP, além de autor
do livro Política externa brasileira (São Paulo: Saraiva, 2005, 291
p.). Coordena também na mesma universidade o Grupo de Estudos
da Ásia-Pacífico (Geap-PUC/SP).

Antônio Carlos Lessa é professor de Relações Internacionais


da Universidade de Brasília, onde coordena o curso de graduação
em Relações Internacionais. Autor do livro A construção da Europa:
a última utopia das Relações Internacionais (Brasília: Ibri, 2003, 191
p.) e coordenador da Rede Brasileira de Relações Internacionais —
RelNet.
José Flávio Sombra Saraiva é professor de Relações
Internacionais da Universidade de Brasília (UnB) e diretor-geral do
Instituto Brasileiro de Relações Internacionais (Ibri). Autor de mais
de uma dezena de livros sobre história das Relações Internacionais,
e organizador da coletânea Relações Internacionais: dois séculos de
história (Brasília: IBRI, 2 volumes, 2001).
Pio Penna Filho é doutor em História das Relações
Internacionais pela Universidade de Brasília (UnB) e professor de
História Contemporânea da Universidade Federal de Mato Grosso
(UFMT). É autor de artigos publicados no Brasil e no exterior sobre
a África e sobre a América Latina.
Carlos Eduardo Vidigal é doutorando em Relações
Internacionais pela Universidade de Brasília (UnB) e professor de
Relações Internacionais da Universidade Católica de Brasília (UCB).
É autor de artigos publicados no Brasil e no exterior sobre História
das Relações Internacionais Contemporâneas.
Cristiano Garcia Mendes é doutorando em Relações
Internacionais pela Universidade de Brasília (UnB) e professor de
Relações Internacionais da PUC/MG.
INTRODUÇÃO
Henrique Altemani de Oliveira
Desde o final da Segunda Guerra Mundial, as relações entre os
Estados, assim como os relacionamentos econômicos, comercias
e financeiros estiveram fortemente condicionados à dinâmica
internacional decorrente do estabelecimento da bipolaridade. Isto
é, o mundo apresentava-se dividido em dois blocos antagônicos e
que tinham como objetivo prioritário a destruição do outro.
Desta forma, todo o período da bipolaridade, também
classificado como guerra fria, pode ser caracterizado pela prática
da contenção, entendida como a política aplicada por cada
superpotência visando impedir que a outra avançasse sobre o seu
espaço.
Assim, sem qualquer possibilidade de erro, pode-se afirmar
que, na guerra fria, as questões estratégicas foram sempre
prioritárias, estando as decisões de caráter econômico
subordinadas aos interesses estratégicos. Exemplos bem
representativos dessa perspectiva foram as decisões de
reconstrução econômica da Europa por meio do Plano Marshall ou
a do Japão em decorrência da Guerra da Coréia.
De outro lado, enquanto a Segunda Guerra caminhava para o
seu fim, os Estados Aliados discutiam e definiam uma série de
medidas com vistas à definição de um mundo mais estável e
pacífico que pudesse reduzir as possibilidades de guerra.
Definiram-se assim, no plano político, a criação da Organização
das Nações Unidas e, no plano econômicofinanceiro, o
estabelecimento do Banco Mundial, do Fundo Monetário
Internacional, da Organização Internacional do Comércio, além da
paridade fixa entre o ouro e o dólar norte-americano.
Como o Congresso norte-americano não ratificou o apoio dos
Estados Unidos à Organização Internacional do Comércio, ela não
foi implementada e em seu lugar começou a funcionar, em caráter
temporário, o Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (Gatt). Cabe
então a ressalva de que, na realidade, as instituições econômico-
financeiras foram definidas em função direta dos interesses dos
Estados Unidos, por ser o único país no pós-guerra com
capacidade econômica real.
Em decorrência da perspectiva de contenção e de relevância
das questões estratégicas é que se enquadra todo o processo de
reconstrução econômica da Alemanha e do Japão e sua
transformação em países desenvolvidos, superando inclusive os
Estados Unidos. Entretanto, mesmo que atores econômicos de
peso, esses dois Estados não apresentavam capacidade política
ou estratégica, estando subordinados à lógica da guerra da fria e
à liderança dos Estados Unidos no bloco ocidental.
Essa situação, no plano genérico, funcionou até o final da
guerra fria, representado pela queda do Muro de Berlim, em
outubro de 1989, e a desintegração da União Soviética em
dezembro de 1991.
Assim, com a vitória, de forma pacífica, dos Estados Unidos
sobre a União Soviética e com o fim da guerra fria, propagou-se a
esperança de que os valores do liberalismo, vinculando
democracia e mercado, tendiam a uma irreversível
universalização, com a possibilidade de estabelecimento de uma
paz mais duradoura e que os recursos econômicos, anteriormente
destinados à produção de armas, seriam direcionados aos
processos de desenvolvimento econômico e social. Enfim, a
tendência agora seria de cooperação entre os países e não de
conflitos.
Nesse momento, aprofundaram-se as teorias a respeito da
globalização e dos benefícios advindos do fato de o mundo todo
aparentar estar, ou dever estar, organizado de forma similar nos
planos econômico, político e estratégico.
Essa percepção foi ainda fortemente reforçada pelo fato de o
mundo ter condenado o Iraque pela invasão no Kuwait (1990) e
ter apoiado a intervenção, autorizada pelo Conselho de
Segurança das Nações Unidas, das forças aliadas no Iraque.
Simultaneamente a essas perspectivas de universalização,
observava-se crescentemente uma outra tendência que pode ser
denominada regionalização ou integração. Essa tendência é
representada, por exemplo, pela consolidação do processo de
integração européia por intermédio da institucionalização da União
Européia (UE), pela constituição do Fórum de Cooperação
Econômica da Ásia-Pacífico (Apec) e pelo Acordo de Livre-
Comércio da América do Norte (Nafta).
De outro lado, crises posteriores, como as da ex-Iugoslávia na
década de 1990 (Bósnia e Kosovo), demonstravam que a coalizão
legítima obtida na 1a. Guerra do Golfo não se reproduzia
normalmente em outros conflitos. A ampliação dos conflitos
comerciais e do protecionismo nos países desenvolvidos, a
ocorrência de crises financeiras, o ressurgimento do nacionalismo
e de novos tipos de ameaças, como o terrorismo, têm como
resultados mais imediatos o fato de abalar as perspectivas de
início de um século XXI voltado para a manutenção de um clima
pacífico e próspero em decorrência da existência de mercados
livres sem fronteiras, numa economia internacional globalmente
integrada.
Dessa forma, podemos considerar que o mundo atualmente
está numa fase de redefinições, compreendendo a construção de
um consenso sobre quais são os Estados que detêm poder
internacional e/ou regional e que podem cooperar na
reestruturação institucional do pós-guerra fria.
Para ficar bem clara essa observação, o caso das atuais
discussões sobre a necessidade ou não de mudanças no
Conselho de Segurança da ONU (CS/ONU) é bem ilustrativo.
Inicialmente, deve-se entender que o CS/ONU representava a
situação política internacional do fim da Segunda Guerra Mundial
e não a do fim da guerra fria. Por quais razões França e Rússia
são membros desse Conselho e o Japão e a Alemanha não?
Enfim, o problema que está sendo apontado é que as principais
instituições internacionais representam um acordo político
internacional da guerra fria, ou em especial o poder que os
Estados Unidos detinham naquele momento, e não um acerto
político atual.
A comunidade internacional, no início deste século XXI,
defronta-se com o desafio político de redefinição das relações de
poder (Sistema Internacional) e de reorganização das instituições
e das regras que regulamentam as relações internacionais
(Ordem Internacional).
Apresenta-se em primeiro lugar a necessidade de se raciocinar
sobre o papel que os principais poderes podem desempenhar no
momento e no futuro, assim como sobre as possibilidades de
atuação que se vislumbram para os países emergentes.
Em segundo lugar, apresenta-se igualmente a pressuposição
da existência de uma íntima relação entre as variáveis
econômicas e estratégicas como garantia de um continuado
desenvolvimento econômico mundial.
Isso nos leva a uma terceira perspectiva, a provável nova
distribuição global de poder, militar e econômico, no século XXI,
deverá ser altamente difusa. Em contraste com a bipolaridade, na
qual as duas superpotências mantinham preponderância de força
em relação a todos os outros países, o sistema multipolar do
futuro aparenta conter cerca de três grandes poderes iguais
(Estados Unidos, China/Japão e União Européia) e outros atores
regionais com capacidade relativa (Brasil, Índia, África do Sul).
Parte-se do princípio de que atualmente os Estados Unidos
representam a ultima ratio do sistema internacional, sendo sua
liderança fundamental para qualquer tipo de ação coletiva no
sistema internacional.
No entanto, em decorrência de limitações de recursos e
também da oposição da opinião pública norte-americana a
intervenções onde seus interesses não estejam diretamente
envolvidos, os Estados Unidos procuram forçar uma participação
maior dos diferentes atores, através de uma divisão de custos.
Nesse sentido, reforça-se a perspectiva de ampliação das práticas
de engajamento e de expansão, em vez da política da contenção
utilizada durante a guerra fria.
A política de engajamento e de expansão pode ser traduzida
sob duas perspectivas. Na primeira, a participação dos Estados
Unidos em qualquer questão que afete diretamente sua segurança
ou o equilíbrio político em regiões consideradas estratégicas, bem
como os fluxos comerciais. Noutra perspectiva, a necessidade de
maior participação dos diferentes atores que se beneficiam tanto
do clima de segurança quanto da globalização econômica.
A idéia de igualdade decorre da percepção de que mesmo que
se possa apontar que os Estados Unidos detêm capacidade
relativa superior ao dos demais, não pode prescindir do aval dos
outros Estados para gerenciar o sistema internacional. E
igualmente do fato de novas parcerias comerciais terem se
desenvolvido na Europa, América do Norte e Bacia do Pacífico,
podendo se articular tanto como blocos unitários ou
independentes, como competindo um com o outro.
O presente livro, voltado à discussão da Política Internacional
Contemporânea, teve como objetivo principal fornecer elementos
para uma melhor compreensão das atuais relações internacionais
e das transformações que o mundo está passando.
Escrito em uma linguagem simples e direta, discute as posições
e interesses dos principais atores e regiões internacionais
apontando pontos de convergência e de divergência. Não se
duvida que os Estados sejam movidos pela perspectiva de
construção de um mundo mais pacífico e que possibilite condições
de vida mais igualitárias. No entanto, a definição de regras
internacionais, num esquema em que os Estados são soberanos,
sem qualquer autoridade legítima sobre eles, tende a ser lento e
gera um processo de negociações (políticas) extremamente difícil
em decorrência do choque entre os diferentes interesses dos
diferentes Estados.
Dessa forma, os capítulos que compõem a presente obra são
contribuições significativas para o entendimento de como o mundo
está hoje e, igualmente, fornecendo elementos suficientes para se
raciocinar sobre as possibilidades e estratégias que se abrem
para o processo de inserção internacional do Brasil.
SUMÁRIO
Capítulo 1 — A Nova Ordem Mundial
Introdução
A Noção de Ordem em Relações Internacionais
Globalização, Fragmentação e Relações Internacionais
As Estruturas Hegemônicas Mundiais
Conclusão
Questões para Discussão
Glossário
Bibliografia Indicada

Capítulo 2 — A Organização das Nações Unidas — ONU


Introdução
A Criação da ONU
Estrutura e Funcionamento da ONU
A ONU e os Direitos Humanos
A ONU e as Missões de Paz
Os Objetivos do Milênio
Reforma da ONU
Conclusão
Questões para Discussão
Glossário
Bibliografia Indicada

Capítulo 3 — A Hegemonia dos Estados Unidos


Introdução
A Dimensão Histórica da Hegemonia Americana
A Renovação Doutrinária da Hegemonia no Pós-Guerra Fria
Desafios à Hegemonia Americana: A Outra Superpotência na
Guerra Fria, o Ângulo Europeu, a Gradual Elevação da Ásia, o
Integrismo Islâmico e a Construção de Alianças ao Sul
O Brasil, a América Latina e a Hegemonia dos Estados Unidos
Conclusão
Questões para Discussão
Glossário
Bibliografia Indicada

Capítulo 4 — A Europa, Seus Organismos e Sua


Integração Político-Econômica
Introdução
Uma Idéia de Europa — Os Primórdios da Integração
Os Tratados de Roma e a Criação da Comunidade Econômica
Européia
Redefinição Institucional e Alargamento
O Europessimismo
O Retorno das Grandes Ambições
Um Novo Tempo de Crise e de Novas Oportunidades: O Fim da
Guerra Fria
O Alargamento sob a Égide de Maastricht e a Constituição
Européia
Conclusão
Questões para Discussão
Glossário
Bibliografia Indicada

Capítulo 5 — A América Latina, Sua Integração e Sua


Inserção no Mundo Globalizado
Introdução
A Inserção Internacional durante a “Década Perdida”: A América
Latina nos Anos 1980
Sob a Égide do Neoliberalismo: A Redefinição da Inserção
Internacional Latino-Americana durante os Anos 1990
Os Processos de Integração na América do Sul: O Mercosul e a
Comunidade Andina de Nações
O Mercado Comum do Sul — Mercosul
A Comunidade Andina — CAN
Conclusão
Questões para Discussão
Glossário
Bibliografia Indicada

Capítulo 6 — A Ásia na Atual Conjuntura Mundial


Introdução
Sobre Qual Ásia Estamos Falando?
Os Processos de Cooperação e Integração Regionais no Leste
Asiático
A Segurança Regional no Leste Asiático
Conclusão
Questões para Discussão
Glossário
Bibliografia Indicada

Capítulo 7 — A África e o Oriente Médio no Contexto


Internacional
Introdução
A África no Contexto Internacional
Os Processos de Integração no Continente Africano
Integração Regional e Conflitos na África Contemporânea
O Oriente Médio e o Mundo
O Estado de Israel e a Questão Palestina
O Oriente Médio, o Mundo Árabe e o Contexto Regional
Conclusão
Questões para Discussão
Glossário
Bibliografia Indicada
Capítulo 1
A NOVA ORDEM MUNDIAL
Carlos Eduardo Vidigal1

INTRODUÇÃO
A queda do Muro de Berlim, em 1989, e a dissolução da União
Soviética, dois anos depois, marcaram um ponto de inflexão na
história mundial contemporânea. Pessoas dos mais variados pontos
do mundo se perguntavam como era possível a ordem bipolar da
guerra fria desaparecer de forma tão rápida e relativamente pacífica.
Alguns analistas se apressaram em identificar uma nova etapa da
história da humanidade, que seria caracterizada, no plano político,
pelo fortalecimento dos regimes democráticos e pelo primado do
direito internacional, e, no plano econômico, pela economia de
mercado. Parecia surgir no horizonte o que poderíamos denominar
“paz kantiana”, um mundo regido por regras construídas e aceitas
por todos.
No entanto, não foi necessário muito tempo para que as
previsões de um futuro mais harmônico nas relações
internacionais arrefecessem. A guerra da Bósnia-Herzegóvina
(1992-1995), os testes nucleares franceses no Atol de Mururoa
(1995-1996), o início da crise financeira asiática (Tailândia, 1997),
a crise do Kosovo (1997-1999), dentre outros acontecimentos,
demonstraram que nem tudo tinha mudado. Estaria o mundo se
tornando mais incerto, mais complexo e, talvez, mais perigoso?
Passados os primeiros impactos das profundas transformações
ocorridas entre 1989 e 1991, os analistas das relações
internacionais passaram a se pautar pela prudência, indicando o
início de uma fase de transição e não de uma nova ordem
mundial, clara e bem definida.
A pressa, porém, voltou a pautar boa parte da intelectualidade
mundial quando dos acontecimentos de 11 de setembro de 2001.
Novamente surgiram vozes que afirmavam o fim da “transição”
iniciada em 1989-1991 e início de uma nova etapa nas relações
internacionais, desta vez caracterizada pela unipolaridade e pela
retomada das preocupações em relação à guerra, ainda que uma
guerra contra um inimigo de difícil conceituação, o terrorismo. Pela
primeira vez na história, os Estados Unidos tinham sido atingidos
em seu próprio território, por um grupo terrorista islâmico, Al-
Qaeda, e por um método inusitado: o uso de aviões de carreira
como mísseis. A política exterior norte-americana para a área da
defesa estabeleceria a pauta internacional dos anos seguintes.
Não se trata de questionar a importância dos atentados de 11
de setembro de 2001 ou dos atentados ocorridos em Madri, em 11
de março de 2004, ou em Londres, a 7 de julho de 2005. Trata-se
de buscar o “lugar” de tais acontecimentos em uma perspectiva
mais ampla, de compreender as mudanças ocorridas no mundo
nos últimos 20 ou 30 anos, de identificar as permanências e as
mudanças no cenário internacional.
Uma rápida passagem por alguns dos principais
acontecimentos das últimas décadas do século XX e dos anos
iniciais deste novo século é suficiente para perceber a dificuldade
da tarefa de identificar o advento de uma nova ordem mundial,
suas características, seus fundamentos, suas perspectivas.
Quando nos situamos no nível dos acontecimentos diários, que,
de hora em hora, minuto em minuto, pululam nos sites de notícias
da Internet, tendemos a nos deixar impressionar por qualquer
grande acontecimento, mesmo que aparente, como se fosse, por
si só, capaz de gerar um novo ordenamento internacional. Aqui, a
prudência seria a melhor conselheira.
Uma visão mais segura do ordenamento do mundo atual exige,
pelo menos, dois procedimentos. Em primeiro lugar, buscar os
elementos constitutivos da ordem mundial em uma perspectiva
multidisciplinar, sem a qual todo conhecimento será parcial,
encerrado nos limites por definição estreitos de uma única
disciplina. Em segundo lugar, identificar o nível de compreensão
dos acontecimentos em relações internacionais: o do evento
diário, o da conjuntura e o da estrutura, conforme velha lição do
historiador francês Fernand Braudel, o historiador da longa (e da
curta) duração.
Uma perspectiva multidisciplinar, aplicada à área das Relações
Internacionais, requer a inclusão das contribuições de pelo menos
seis campos do conhecimento: a Ciência Política, o Direito, a
Economia, a Geografia, a História e a Sociologia. A identificação
do nível dos acontecimentos pressupõe um profundo
conhecimento das próprias relações internacionais e a percepção
do que é duradouro, do que é transitório e do que é fugaz neste
mundo de permanente transformação. Unir os dois procedimentos
é uma necessidade para a compreensão da nova ordem
internacional.
Para tanto, o presente texto, além da introdução e da
conclusão, está desdobrado em três partes: 1) A noção de ordem
em Relações Internacionais; 2) Globalização, fragmentação e
relações internacionais; 3) As estruturas hegemônicas mundiais.
Na primeira parte, desenvolve-se uma reflexão sobre o conceito
de “ordem mundial”, por meio de um diálogo entre os conceitos
criados nas origens das Relações Internacionais como campo do
conhecimento e os mais recentes avanços verificados nesta e nas
outras áreas afins. Na segunda, se analisa os impactos do
processo de globalização-fragmentação da sociedade mundial
contemporânea nas relações internacionais, com ênfase naquilo
que é novo, mutável, dinâmico. Na terceira, a preocupação maior
é com aquilo que permanece mas se transforma, com o que
conforma as relações de poder mundiais, as estruturas
hegemônicas.

A NOÇÃO DE ORDEM EM RELAÇÕES INTERNACIONAIS


As Relações Internacionais, como disciplina acadêmica,
surgiram no período situado entre o final da Primeira Guerra
Mundial, em 1918, e o início da Segunda, em 1939. Os chamados
“vinte anos de crise”, na expressão do historiador Edward Carr. O
tema que dominou as Relações Internacionais naquele contexto
foi o da guerra e da paz. O ponto de partida das análises eram os
Estados nacionais, causadores da Primeira Guerra Mundial e
principais atores das conferências de paz. Os métodos adotados,
o da Ciência Política e da História, com a primazia do primeiro. O
objetivo era evitar a eclosão de novos conflitos. Era natural
naquela conjuntura internacional o surgimento de conceitos como
os de “anarquia internacional” e de “hierarquia entre os Estados”.
Por “anarquia internacional” compreendia-se, e se compreende
ainda hoje, a ausência de um governo mundial capaz de ordenar
as relações entre os mais diversos Estados nacionais soberanos.
A existência de múltiplos Estados, detentores da soberania no
plano político interno, e buscando cada um a realização de seu
“interesse nacional”, aproximava a noção de “anarquia
internacional” da idéia de “desordem”. Porém, não era esse o
caso.
A análise dos Estados nacionais levou à identificação de
grandes, médias e pequenas potências; esta última categoria
como um eufemismo. A simples existência de países com
diferentes recursos de poder — militar, econômico, financeiro,
tecnológico — estabelecia uma hierarquia entre eles. A essa
hierarquia denominou-se ordem.
No conjunto, as relações entre as grandes, médias e pequenas
potências definem uma determinada ordem, em geral multipolar
ou bipolar. Exemplos de ordem multipolar seriam o concerto
europeu do século XIX, oriundo da Conferência de Viena, ou o
período do entreguerras, em que se tentou consolidar a paz
mundial, por meio da Liga das Nações. Exemplos de ordem
bipolar, a ocorrida na Europa antes da eclosão da Primeira Guerra
Mundial, dividida nas potências da Tríplice Aliança (Alemanha,
Império Austro-Húngaro e Itália) e da Tríplice Entente (França,
Grã-Bretanha e Rússia), ou a polarização desenhada no período
da guerra fria, entre Estados Unidos e União Soviética.
Em uma perspectiva histórica, seguindo os períodos citados no
parágrafo anterior, analistas sugeriram que a ordem mundial
contemporânea seria unipolar, dada a preeminência norte-
americana na esfera militar e na impossibilidade de qualquer outro
país do mundo poder desafiar e vencer os Estados Unidos em
uma guerra. Argumentos distintos logo surgiram, como aquele de
Samuel Huntington, que prefere chamar o período atual de uma
ordem unimultipolar, reconhecendo o predomínio dos Estados
Unidos na área militar, mas acrescentando que, no plano
econômico, o mundo atual é nitidamente multipolar, como o
exemplificam a força econômica da União Européia ou de países
do Extremo Oriente, como o Japão e a China.
Acrescenta-se a essas perspectivas, as contribuições do
“realismo ofensivo” norteamericano, expresso principalmente pelo
cientista político John Mearsheimer. Insatisfeito com a
simplicidade de interpretar uma ordem internacional em termos de
uni, bi ou multipolaridade, desenvolveu os conceitos de
“multipolaridade equilibrada” e “multipolaridade desequilibrada”.
No primeiro caso temos um conjunto relativamente pequeno de
grandes potências em uma situação de equilíbrio, sem que
nenhuma delas tenha uma grande superioridade em termos de
recursos de poder. No segundo, em que também se fazem
presentes algumas grandes potências, uma delas se destaca por
possuir recursos de poder superiores aos das demais. Nessa
visão, o mundo atual seria um mundo de uma multipolaridade
desequilibrada.
Seria a nova ordem mundial uma ordem unipolar, multipolar ou
de uma multipolaridade desequilibrada? Qualquer que seja a
resposta a essa pergunta, e a despeito da capacidade analítica de
quem se propuser respondê-la, nunca teremos uma resposta
satisfatória. Em primeiro lugar, pelo reducionismo embutido nos
termos utilizados. Em segundo, pelo fato de essa terminologia
estar ligada apenas a um campo do conhecimento humano, o da
Ciência Política.
Vivemos em um mundo extremamente complexo, habitado por
povos diferentes em termos étnicos e culturais, que interagem em
uma série de conexões igualmente complexas e variadas.
Utilizarmos apenas a perspectiva dos Estados nacionais como
atores únicos, dotados de recursos de poder que os ordena em
uma determinada hierarquia, é um equívoco. Como foi dito
anteriormente, além da visão própria da Ciência Política, temos
que contar com as contribuições das áreas do Direito, da
Economia, da Geografia, da História, da Sociologia.
O Direito Internacional talvez apresente um mundo composto
por Estados nacionais soberanos, que procuram solucionar suas
diferenças por meio de negociações diplomáticas, mas que
chegam a utilizar a guerra como um último recurso. Deve-se
defender sempre a solução negociada, pacífica. Mas, caso a
guerra seja inevitável, temos que distinguir entre guerras justas e
injustas. As primeiras, aquelas em que um país reage a uma
agressão externa ou age para reparar uma grande injustiça
cometida anteriormente, como os casos de genocídio. As
segundas, as guerras de anexação de territórios, de apropriação
de riquezas naturais etc. Em qualquer dos casos, deve-se
recordar que existe um Direito da Guerra, que procura disciplinar a
conduta dos Estados envolvidos, protegendo a população civil.
Quanto à ordem mundial, o Direito Internacional nos lembra
que, nas organizações internacionais, cada Estado possui um
mesmo valor, de acordo com o princípio “um Estado, um voto”, e
que as regras e leis internacionais coletivamente acordadas têm
legitimidade e devem ser respeitadas por todos. Os juristas e as
demais pessoas que atuam na área sabem que a violência é uma
constante da história mundial, que a todo o momento temos casos
de agressões e ingerências nas relações internacionais. Porém,
cidadãos e dirigentes dos mais variados países do mundo têm
tomado consciência de que o respeito ao direito internacional é o
único caminho na construção de uma ordem um pouco mais
harmônica. Daí a importância de se defender e preservar as leis,
as entidades e os regimes internacionais.
A visão dos economistas deriva de uma outra percepção. Os
interesses econômicos é que informam os atores internacionais, e
a ordem mundial é estruturada, fundamentalmente, pelo poder
econômico. As próprias relações internacionais foram construídas
historicamente acompanhando o desenvolvimento capitalista
mundial, a expansão do comércio, a acumulação do capital. A
primeira interação entre os países e os povos, em uma escala
planetária, data da época das grandes navegações, nos séculos
XV e XVI. A segunda etapa de mundialização da economia é a
ocorrida na segunda metade do século XIX, marcada pela partilha
da África e do mercado asiático, pelas mãos das grandes
potências econômicas da época. A terceira, a globalização.
A nova ordem mundial é comumente interpretada pelos
economistas como sendo condicionada pela globalização,
principalmente em sua dimensão financeira. Nesse caso, os
Estados Unidos, o Japão e a União Européia estabelecem as
regras do jogo. Atualmente, seríamos tentados a incluir a China,
mas como a China é um sócio recente do “clube dos países
industrializados” é melhor falarmos do G7 ou do G8. Que países
compõem essas entidades? O grupo surgiu em 1975 e era
formado pelos EUA, Japão, Alemanha, França e Grã-Bretanha.
Posteriormente, foram admitidos a Itália e o Canadá, formando o
G7. Com a entrada mais recente da Federação Russa, surgiu o
G8.
O G8 é a entidade que discute os principais problemas
econômicos mundiais e procura estabelecer as diretrizes para o
bom funcionamento da economia do planeta. Suas “orientações”
são ouvidas atentamente pelos diretores do Banco Mundial (Bird),
do Fundo Monetário Internacional (FMI), da Organização Mundial
do Comércio (OMC) e de muitas outras instituições. O conjunto
das decisões tomadas pelo G8 e pelas demais organizações
econômicas internacionais define uma certa “ordem” mundial,
presente na análise da maioria dos economistas que estudam as
relações internacionais.
Para os geógrafos, a nova ordem mundial deve ser
compreendida com base naquilo que define esta área do
conhecimento: o espaço. Um grande problema enfrentado pelos
geógrafos a partir do advento da globalização foram as críticas
que falavam do “fim dos territórios” ou do “fim da geografia”. Em
um mundo globalizado, a velocidade com que se estabelecem as
trocas de informações e com que se deslocam mercadorias e
pessoas tornaria possível relegar a dimensão geográfica a um
segundo plano. Mas os geógrafos reagiram à altura e, para
aqueles que falavam do “fim dos territórios” ou do “fim da
geografia”, responderam com os conceitos de
“multiterritorialidade” e de “território-rede”.
Por multiterritorialidade entende-se a possibilidade de pessoas
e empresas, ao longo de sua existência e muitas vezes
simultaneamente, conviverem em múltiplos territórios. Para os
indivíduos, o território da casa, do bairro, da faculdade, da
empresa onde trabalha. Para as empresas, o território-área onde
se localiza a indústria ou o estabelecimento comercial, o território-
rede da logística do comércio, os territórios dos consumidores dos
produtos por ela manufaturados ou comercializados. O geógrafo
Rogério Haesbaert recusa a idéia do fim do território porque a
globalização trouxe, ao contrário, a sua explosão em múltiplos
territórios.
Os geógrafos também perceberam, há algum tempo, que as
áreas de maior concentração econômica, sejam elas
subnacionais, transnacionais ou internacionais, muitas vezes
ultrapassam o velho limite do Estado nacional territorial,
transformando as redes de informações, de comércio e de
finanças em entidades mais importantes que o Estado. Em outras
palavras, em vez de acreditarmos que o mundo está efetivamente
dividido naqueles países representados com as mais variadas
cores no mapa-múndi, deveríamos prestar maior atenção nas
grandes companhias transnacionais que dominam o comércio
mundial; nos vínculos que unem as três regiões economicamente
mais dinâmicas do planeta — Estados Unidos, Japão (e China) e
Europa — e que os geógrafos denominam “a tríade”; nos fluxos de
mercadorias e de pessoas que desafiam a lógica dos
procedimentos mais tradicionais de intercâmbio; nas ligações
entre as pessoas situadas nos mais diversos pontos do globo por
meio da Internet. Daí a importância da noção de território-rede.
A nova ordem mundial, nessa perspectiva, seria uma ordem
construída por inúmeras redes, que interligam os pontos mais
dinâmicos do globo, como, por exemplo, as megacidades. As
regiões excluídas, as áreas mais empobrecidas e esquecidas do
planeta, seriam a contraparte necessária de um processo de
globalização que simultaneamente potencializa a riqueza e
aprofunda as desigualdades.
Já na visão dos historiadores, a nova ordem mundial teria que
responder a uma questão principal: o que mudou e o que
permaneceu daquele mundo virtualmente superado com a queda
do Muro de Berlim e com o fim da União Soviética?
Algumas das principais mudanças talvez sejam facilmente
identificáveis: 1) o fim de uma ordem política mundial polarizada
pelos Estados Unidos e pela União Soviética; 2) a sobrevivência
de uma única superpotência com pretensões hegemônicas
mundiais; 3) a emergência de novos pólos de poder mundial,
potencialmente capazes de contrabalançar o desequilíbrio mundial
definido pela presença de uma superpotência; 4) o
enfraquecimento das ideologias, decorrente do fracasso do
“socialismo real”, e o conseqüente desinteresse pela política; 5) o
surgimento de um mundo “sem-sentido”, do qual seria a dimensão
mais evidente a proliferação de seitas religiosas e da literatura de
auto-ajuda.
E as permanências? Estas exigem maior cuidado. Em um
exercício necessariamente superficial e parcial, é possível
identificar as seguintes permanências: 1) os Estados nacionais
como principais (não exclusivos) atores das relações
internacionais, como demonstram as assinaturas presentes nos
principais tratados e acordos internacionais, sempre de chefes-de-
Estado ou de seus delegados; 2) a existência de um número
relativamente pequeno de países altamente industrializados,
dentre os quais os Estados Unidos, o Japão, a Alemanha, a
França, a Grã-Bretanha e talvez a Itália, que já eram grandes
potências industriais no final do século XIX, portanto mais de cem
anos atrás; 3) a importante presença de instituições internacionais
criadas após a Segunda Guerra Mundial ou no período da guerra
fria, como o Bird, o FMI, o Gatt-OMC, o BID, a OEA etc; 4) o uso
das armas atômicas como poder dissuasivo e a insistência de
algumas grandes potências em dar continuidade ao
desenvolvimento das “armas de destruição em massa”; 5) as
ações internacionais dos Estados Unidos, que mantêm
basicamente o tipo de relacionamento que já tinham na época da
guerra fria, tanto com as grandes potências industriais quanto com
os países periféricos, chegando a recuperar práticas do século
XIX, como demonstra a ocupação militar do Iraque e a exploração
de seus campos de petróleo.
Para os historiadores, a compreensão da nova ordem
internacional passa, necessariamente, por um balanço de
mudanças e permanências, em um nível de análise estrutural. O
trânsito entre o antigo e o moderno, entre o novo e o velho, seria a
melhor estratégia para a compreensão das relações internacionais
atuais.
Por fim, mas não menos importante, os sociólogos lançam um
olhar igualmente original. O mundo globalizado teria
potencializado, como nunca antes na história, o conhecimento e a
interação das mais variadas sociedades humanas. Mas, ao
mesmo tempo em que se internacionalizam, as sociedades se
“localizam”, reforçando muitas vezes os laços identitários em meio
à construção de uma sociedade internacional.
Os conflitos étnicos e nacionais nos Bálcãs, os movimentos de
libertação nacional, como a luta dos chechenos pela
independência de sua região, os movimentos irredentistas, como
o dos bascos na Espanha, os conflitos étnicos e tribais na África
etc, colocam no centro das preocupações da Sociologia e de
outras áreas do conhecimento a preocupação com o tema da
identidade. Nessa perspectiva, duas forças profundas atuam nas
mais diversas sociedades: o identitário e o modernizador. De um
lado, as culturas tradicionais, os ritos ancestrais, a memória
intemporal. De outro, a economia de mercado, o fetichismo da
mercadoria, o imaginário cultural-global.
Nesse mundo pautado pela comunicação em tempo real, pelo
deslocamento de capitais em velocidade vertiginosa, pela
possibilidade que algumas pessoas têm (e somente algumas) de
acordar em Nova Iorque, almoçar em Paris e jantar em Tóquio, os
laços identitários se reforçam. E os sociólogos levantam a voz
para afirmar o direito à identidade e o direito a novas identidades,
o direito de continuar a ser como se era e o direito de se unir a
pessoas das mais diversas partes do mundo em prol de uma
causa, de um princípio, de um prazer.
O exercício realizado nos parágrafos anteriores, o de imaginar
como juristas, economistas, geógrafos, historiadores e sociólogos
poderiam se posicionar virtualmente diante do tema da nova
ordem mundial, embora de caráter ensaístico, tem a vantagem da
clareza ao demonstrar o grau de complexidade do mundo
globalizado e alguns dos múltiplos enfoques passíveis de serem
utilizados. Os profissionais das Relações Internacionais poderiam
lançar mão de tais aportes para elucidar a nova ordem
internacional? É certo que sim. É o que se pretende desenvolver,
ainda em caráter preliminar, nas partes seguintes do texto.
Antes, porém, uma observação: as universidades continuam
formando “especialistas por áreas”, as revistas científicas
continuam cultivando a originalidade do campo específico do
conhecimento e as editoras continuam mantendo em seus
catálogos livros classificados de acordo com a origem
“acadêmica” do autor. A tendência é que as coisas continuem
como estão, como nos ensina a lei da inércia. A aproximação dos
diversos enfoques aplicados às relações internacionais, embora
se identifiquem avanços significativos nos últimos anos, ainda é
uma tarefa por se realizar.

GLOBALIZAÇÃO, FRAGMENTAÇÃO E RELAÇÕES INTERNACIONAIS


A primeira dificuldade com que estudantes universitários e
mesmo os professores se defrontam ao tratarem do tema da
globalização é com o seu conceito. Cada área do conhecimento
procura defini-la com base em seus próprios critérios, como é o
caso da economia, que prioriza a aceleração dos fluxos
comerciais e financeiros. Um conceito capaz de se aproximar de
seu objeto real e ao mesmo tempo contemplar as diversas áreas
do conhecimento é praticamente impossível. Aqui, optou-se pela
utilização do conceito proposto por Haesbaert no livro
Globalização e regionalização no mundo contemporâneo.
A globalização deve ser compreendida, antes de mais nada,
como um produto da expansão cada vez mais ampliada do
capitalismo e da sociedade de consumo, numa sociedade
moldada pelo fetichismo da mercadoria. Contempla-se dessa
forma parte das preocupações presentes nas áreas da economia,
da geografia, da história e da sociologia. Relegam-se,
aparentemente, a um segundo plano, as áreas do direito e da
ciência política. No entanto, é necessário reconhecer que, se
existe um tema em torno do qual gravitam as várias ciências do
homem, esse centro é ocupado pelo capitalismo, enquanto
fenômeno econômico, geográfico, histórico, político e social, além
de sua dimensão institucional (jurídica). Como acontecimento de
longa duração, é aquele que forjou, ao longo dos séculos, as
principais estruturas do nosso mundo contemporâneo.
Estabelecida a essência do conceito de globalização — um
produto da expansão cada vez mais ampliada do capitalismo —, é
necessário reconhecer que sua face mais visível é a da tecnologia
e da economia. Sua face mais perversa, o desemprego estrutural
e a exclusão social e territorial. Qual seria no entanto o impacto do
atual estágio de evolução do capitalismo para as relações
internacionais? Como podemos desenhar a nova ordem
internacional, levando em consideração a realidade de um mundo
global? Seria a globalização uma fase fundamentalmente nova
das relações internacionais?
A leitura de alguns dos textos mais recentes acerca de tais
questões informa a existência de pelo menos três grandes
questões: 1) o Estado nacional deixou de ser o principal ator das
relações internacionais?; 2) a presença de grandes empresas
transnacionais atuando em escala global e muitas se superpondo
aos Estados nacionais significa uma “desnacionalização”
irreversível da produção econômica?; e 3) estamos caminhando
rumo à consolidação de uma sociedade internacional e, quem
sabe, à formação de um governo mundial?
A primeira questão tem preocupado sobremaneira os
internacionalistas. Pesquisadores franceses, fortemente
influenciados pelos últimos avanços da Geografia, sugerem o
enfraquecimento do Estado nacional e o início da formação de
estruturas políticas pósinternacionais. Nesta fase de transição
entre um mundo dominado por Estados nacionais e a formação de
uma nova realidade caracterizada pelo predomínio de redes e de
fluxos, e caminhando em direção a uma “Nova Idade Média”, ou
seja, uma nova fase de fragmentação do poder político em escala
mundial, o conceito de região seria o mais apropriado para a
compreensão da nova realidade internacional. A região é vista
como um espaço intermediário entre o nacional e o internacional,
e pode ser compreendida como “um espaço útil para a ação”, nas
palavras de Marie-Claude Smouts. O melhor exemplo é o da
União Européia.
Tal abordagem apresenta dois problemas principais: o
enfraquecimento do Estado nacional tomado como pressuposto e
a dificuldade de se definir o que é uma região. Quanto à idéia do
enfraquecimento dos Estados nacionais é possível contrapor dois
argumentos. A formação dos Estados nacionais é um processo
histórico de longa duração e nada indica que este processo está
em sua fase final, visto que o século XX, mais particularmente as
décadas que se seguiram à Segunda Guerra Mundial, foi o
período da história em que surgiu o maior número de novos
Estados. Nessa mesma fase, a ONU viu crescer o número de
Estados membros. De 51 países em sua fundação, em 1945, a
ONU passou a ter 76 membros em 1955, 117 em 1965, 144 em
1975, 189 no ano 2000. Com o ingresso, em 2002, da
Confederação Suíça e da República Democrática do Timor,
alcança 191 membros.
Outro argumento baseia-se na idéia de identificar a quem o
discurso está sendo dirigido. Ou seja, quando falamos de
enfraquecimento dos Estados nacionais estamos falando
exatamente de quais Estados? De alguns dos chamados Estados
falidos da África e de outras regiões do mundo? Do Afeganistão e
do Iraque sob ocupação norte-americana? Dos Estados que
integram poderosos blocos regionais, como o caso dos Estados
europeus? Embora existam razões para aceitar que os Estados,
nacionais encontram dificuldades para operar em seus moldes
mais tradicionais, é mais pertinente falar em uma redefinição do
papel dos Estados nacionais do que em seu enfraquecimento.
Alguém ousaria falar em enfraquecimento do Estado nacional
norte-americano?
Em um mundo cada vez mais interligado, os Estados nacionais
enfrentam inúmeros problemas como o crescimento das redes
criminosas internacionais, das pressões cada vez mais insidiosas
das companhias transnacionais, o aprofundamento dos laços de
interdependência em uma ordem internacional assimétrica. Mas
existem povos que ainda lutam pelo seu direito a um Estado,
povos que, muitas vezes imersos em prática de corrupção, ainda
não consolidaram seus respectivos Estados, e Estados
insatisfeitos com o processo de regionalização, que querem voltar
ao seu funcionamento tradicional. Os Estados nacionais deixaram
de exercer algumas de suas antigas funções, dependem cada vez
mais de outros Estados para dar andamento às suas políticas
“nacionais”, mas não estão em processo de desaparecimento.
Quanto à segunda questão, referente à atuação das
companhias transnacionais, o uso do adjetivo transnacional é
ilustrativo, pois sugere que uma determinada empresa, cujas
ações em sua maioria são de propriedade de nacionais, atua em
outros países. Pode parecer um erro fazer a distinção entre
empresas nacionais e empresas estrangeiras quando se priorizam
os investimentos produtivos capazes de gerar novos postos de
trabalho. O que está em questão é o fato de as empresas
transnacionais remeterem lucros para a respectiva matriz, sediada
necessariamente em um espaço “nacional”, transferindo recursos
das áreas periféricas para os países centrais.
A década de 1990 foi, na América Latina, a década da “onda
neoliberal”. Um dos países que mais abriu sua economia ao
capital estrangeiro e desenvolveu um programa profundo de
privatização das empresas estatais foi a Argentina. O resultado foi
a crise de 2001, que aumentou enormemente o número de
pessoas no e abaixo do nível de pobreza. Desde 2002, a
Argentina procura recompor seu parque industrial, movida pela
idéia de que somente um país com empresas nacionais fortes tem
condições de obter vantagens na economia globalizada.
Quanto à terceira questão, se estamos ou não caminhando
rumo à consolidação de uma sociedade internacional e mesmo de
um governo mundial, a resposta pode ser elaborada em dois
momentos. É necessário explicitar inicialmente o que se entende
por sociedade internacional. Os internacionalistas ingleses
consideram a existência, no século XIX, de uma “sociedade
internacional européia” e, no século XX, a de uma “sociedade
internacional”. A sociedade internacional seria estruturada pelas
regras do direito público e privado internacional, pelas práticas
comerciais tradicionais e pelo predomínio de valores cristãos e
ocidentais. A única diferença mais substancial do século XIX para
o século XX seria a ampliação do escopo, ou seja, o ingresso de
outros países no comando da sociedade internacional.
A formação de um governo mundial, entretanto, ainda é um
tema situado na esfera da utopia. A instituição que mais se
aproximou de um governo mundial foi a ONU. Ignorada quando os
Estados Unidos decidiram invadir o Iraque, em 2003, acusada de
corrupção em torno do programa Petróleo por Alimentos, sofrendo
fortes pressões por parte dos países que desejam a ampliação do
seu Conselho de Segurança, a ONU não atravessa um bom
momento.
A ONU é a organização que mais se aproxima de um governo
mundial, contando com suas instâncias e agências, além das
relações informais que mantém com outras instituições, como o
G8. Sua estrutura básica gira em torno da Assembléia Geral e do
Conselho de Segurança. Sobre essas duas instâncias, um dos
maiores cientistas políticos do século XX, afirmou que “onde está
a legitimidade não está o poder, onde está o poder não está a
legitimidade”. Seu problema maior reside no Conselho de
Segurança, cuja reforma é almejada por algumas grandes e
médias potências, mas que não tem encontrado eco em alguns de
seus membros permanentes. Sua reforma, se ocorrer, não
estenderá o direito de veto a outros países, o que significa a
manutenção do fundamental em sua estrutura atual. É natural que
assim ocorra: que país dos cinco membros permanentes do
Conselho de Segurança estaria interessado em diminuir, ainda
que de forma parcial, seu poder?
Se um governo mundial é, todavia, uma utopia, talvez não seja
o caso da “governança” mundial ou global, compreendida como as
atividades apoiadas em objetivos comuns, derivadas ou não de
responsabilidades legais e formalmente estabelecidas, que não
dependem do poder de polícia para que sejam aceitas. Já existe,
de certo modo, uma governança global em áreas como meio
ambiente, direitos humanos, direito humanitário e mesmo no
comércio internacional. Os críticos, como José Luís Fiori, alertam
para o fato de nenhuma governança mundial ter nascido do
consenso ou da escolha coletiva, nem ter se sustentado sem o
aval do hegemon, isto é, dos Estados Unidos. Ademais, a
“legislação internacional” foi quase sempre a imposição pura e
simples, ao resto do mundo, do modelo institucional e do direito
dos países ganhadores. Nesse sentido, a idéia de governança
mundial também encontraria seus limites.
Do que foi exposto nos parágrafos anteriores, podemos tirar as
primeiras conclusões:
a) A globalização, com toda a sua complexidade e fluidez, nos
impede de abordar a nova ordem internacional, sem levar em
consideração as contribuições de outras áreas do
conhecimento. Aproximar essas áreas é extremamente difícil,
a não ser que se tome o “capitalismo” como categoria em
torno da qual podem convergir os diferentes enfoques;
b) Por globalização entende-se o produto da expansão cada vez
mais ampliada do capitalismo e da sociedade de consumo,
caracterizada pelo fetichismo da mercadoria, e compreendida
em toda a sua extensão: envolve as dimensões econômica,
tecnológica, espacial, temporal, social e jurídica;
c) Na área das relações internacionais, que toma o Estado
nacional como categoria analítica básica, o impacto da
globalização provocou uma redefinição do papel do Estado,
que se encontra cada vez mais dependente (ou
interdependente) em relação a outros Estados, organizações
internacionais, empresas transnacionais etc. Não obstante, o
Estado continua a ser o principal ator das relações
internacionais, como demonstram, por exemplo, as discussões
em torno da reforma do Conselho de Segurança da ONU;
d) A ação das companhias transnacionais tem diminuído a
margem de manobra das pequenas e médias potências
quanto ao gerenciamento da “economia nacional”, mas estas
empresas continuam apresentando uma “base” nacional
original e revertem seus ganhos para o país-sede;
e) Estamos longe da construção de um governo mundial,
embora seja possível algum grau de governança mundial.
Além disso, as diversas instituições internacionais que atuam
nas esferas do comércio, das finanças, da política e do direito
internacional conformam no seu conjunto o que pode ser
denominado, na tradição britânica referida, “sociedade
internacional”.
À luz de tais considerações, que lugar teriam as categorias
mais caras à área das relações internacionais, como a
unipolaridade, a bipolaridade e a multipolaridade? Podese
observar que tais categorias mantêm sua função explicativa em
um nível mais abrangente. A nova ordem internacional surgida
dos acontecimentos ocorridos entre 1989 e 1991 é multipolar em
muitos sentidos, mas é reconhecidamente unipolar no campo da
segurança. É plausível falar, assim, de uma multipolaridade
desequilibrada por um hegemon principal, os Estados Unidos da
América. Porém, uma compreensão mais profunda da nova ordem
mundial passa pela análise de suas estruturas, tema que será
desenvolvido na próxima seção.

AS ESTRUTURAS HEGEMÔNICAS MUNDIAIS


O historiador britânico, Adam Watson, ao analisar a sociedade
internacional européia do século XIX propôs o conceito de
“hegemonia coletiva” para designar a ordem surgida do
Congresso de Viena, com cinco potências hegemônicas —
França, Grã-Bretanha, Áustria-Hungria, Prússia e Rússia — que
elegeram a diplomacia como instrumento para a superação de
suas eventuais desavenças. A hegemonia coletiva era, dessa
maneira, uma hegemonia difusa. Centro e trinta anos depois de
Viena, as conferências internacionais que estabeleceram as
regras que deveriam ser seguidas após a tragédia da Segunda
Guerra Mundial, criaram uma nova realidade, a das organizações
internacionais.
As organizações internacionais (ONU, Bird, FMI etc) são
estruturas jurídicas de amplo escopo que procuram tornar as
relações entre os mais diversos países do mundo algo mais
harmônicas. Comandadas pelas maiores potências da época, tais
organizações foram por elas hegemonizadas, a ponto de não
podermos sustentar a idéia de que se trata de instituições isentas
da influência dos interesses nacionais das grandes potências.
Portanto, essas organizações são utilizadas, em boa medida,
como instrumentos de poder. Não significa que se reduzam a isso,
mas que elas atuam em meio às disputas de interesse de seus
membros, disputas nas quais predominam os interesses das
grandes potências.
Um caso ilustrativo do que se procura esclarecer foi o da Opaq,
a Organização para a Proibição de Armas Químicas, uma
organização internacional independente, afiliada às Nações
Unidas, criada em 1997 com o objetivo de implementar a
“Convenção sobre a Proibição do Desenvolvimento,
Armazenagem, Produção e Uso de Armas Químicas e sobre sua
Destruição”. Estando à frente dessa organização desde sua
criação, o embaixador brasileiro José Maurício Bustani procurava
cumprir os objetivos da Opaq, contando para isso com o direito de
realizar amplas investigações nos “países suspeitos”. A partir dos
acontecimentos de 11 de setembro de 2001, sua atuação no
Iraque não agradou aos Estados Unidos, que pressionaram por
sua saída. Seu estilo negociador deveria ser substituído pelo estilo
arrogante de Washington. Contando com o apoio de países
“aliados”, membros da organização, os Estados Unidos retiraram
Bustani do cargo.
As organizações internacionais são, porém, apenas um tipo de
estrutura encontrada nas relações internacionais. Existem, no
entanto, estruturas mais profundas, de difícil percepção no
emaranhado de acontecimentos diários, que condicionam a nova
ordem mundial. A internacionalista britânica Susan Strange,
considerada por alguns uma analista pouco convencional,
desenvolveu, entre outros, o conceito de poder estrutural. Em sua
visão, o poder estrutural é a capacidade de formar estruturas
dentro das quais os Estados se relacionam uns com os outros,
com as pessoas ou com as empresas corporativas. Tal poder é
exercido em quatro dimensões principais: o poder de influenciar
as idéias dos outros (a estrutura do conhecimento), o acesso ao
crédito (a estrutura financeira), as políticas de segurança (a
estrutura de segurança) e as chances de uma vida melhor como
produtores e consumidores (a estrutura da produção).
A estrutura do conhecimento está presente, por exemplo, nos
próprios cursos de Relações Internacionais do mundo afora. No
caso brasileiro, bastaria analisarmos os planos de ensino das
diversas disciplinas da grade curricular dos cursos de Relações
Internacionais do país, para identificarmos o predomínio de uma
literatura norte-americana o que, por si só, não é algo positivo ou
negativo. Mas os internacionalistas formados com base no
pensamento de autores norte-americanos tenderão, no exercício
de suas profissões, a analisar o cenário internacional e mesmo a
inserção internacional do Brasil por uma visão que não é nossa.
Assim, provavelmente serão muito compreensivos diante dos
argumentos utilizados pelas grandes potências e poderão ser
influenciados em suas decisões. A estrutura do conhecimento
gera influência, não determinação.
A estrutura financeira mundial é facilmente compreendida pelos
nacionais dos países periféricos, uma vez que as grandes
negociações, como aquelas estabelecidas com o FMI, implicam
discussões sobre temas econômicos internos, que para alguns
pode ser o caso de uma violação do princípio da soberania
nacional. Ao longo de sua trajetória, o FMI pautou-se pela defesa
de políticas econômicas ortodoxas, que objetivavam dar um
melhor ordenamento às economias nacionais periféricas, mas que
em muitos casos inibiram o potencial de desenvolvimento. Embora
tenha sido utilizado um único exemplo, não há dúvida, neste caso,
que a estrutura financeira mundial condiciona as ações dos mais
diferentes países.
Quanto à estrutura de segurança, a influência não é menos
evidente. Os países detentores da tecnologia mais avançada na
área são os principais responsáveis pelo comércio mundial de
armamentos, desenvolvido muitas vezes de forma ilícita. Ao
vender um produto de sua indústria bélica o país produtor não
vende apenas aquele item, vende a assistência técnica, o
treinamento para o uso do armamento e, quiçá, uma determinada
visão da “segurança internacional”, dialogando com a estrutura do
conhecimento. A atual questão da compra de caças por parte do
governo brasileiro, que tem se arrastado por alguns anos, revela a
influência que um eventual fornecedor de caças pode ter sobre a
segurança de um país.
Por fim, a estrutura da produção, a fonte básica de criação de
riqueza na sociedade e as formas pelas quais as tecnologias de
produção estruturam a distribuição de poder entre e por todos os
Estados e mercados. Se tomarmos como exemplo a área da
informática, a força de tal estrutura se apresenta bastante clara no
caso da Microsoft. Uma empresa norte-americana que consegue
desenvolver produtos a serem utilizados na maior parte dos
computadores do mundo todo. Sem esquecer da existência do
sistema operacional Linux, quem, no nosso dia-a-dia, pode
prescindir inteiramente dos produtos desta empresa? As áreas da
informática e das comunicações tradicionalmente têm sido
influenciadas pelos Estados Unidos, país no qual as relações
entre o Departamento de Defesa e as corporações da área de
telecomunicações têm uma relação estreita. A própria Internet foi,
como sabemos, desenvolvida e regulamentada pelos Estados
Unidos. É um exemplo eloqüente.
Vistas em uma perspectiva histórica, as estruturas identificadas
por Strange ganham novos matizes. E aqui é novamente a
trajetória capitalista do Ocidente que explica a articulação entre as
diversas esferas. O mundo tal qual conheceram os homens do
século XX foi forjado nos séculos anteriores, principalmente no
século XIX. Naquele período, o desenvolvimento da sociedade
internacional européia ocorreu por meio da expansão do comércio
e de suas regras, da dominação política direta ou dissimulada das
áreas periféricas pelos países desenvolvidos, da disseminação
dos valores culturais europeus por quase todos os cantos do
mundo. Era o desdobramento do processo de “europeização” do
mundo, iniciado com as grandes navegações.
Nesse processo de expansão econômica européia, à qual
foram agregados os Estados Unidos e o Japão, predominaram
princípios do liberalismo político e econômico, embora muitas
vezes aplicados de forma limitada pela maioria dos países
industrializados, principalmente em matéria econômica. A
liberdade de navegação, de comércio, de investimentos orientava
os códigos aplicados no cotidiano das transações internacionais.
O tratado desigual assinado pelo Brasil com a Grã-Bretanha, em
1827, servia de modelo para outros tratados, como os que os
britânicos firmaram com os chineses após as guerras do ópio.
Regras que se expandiram e se aprofundaram, a ponto de
parecerem “naturais” já na passagem do século XIX para o século
XX. No novo século, essas regras tornaram-se mais complexas e
sofisticadas, mas não perderam a capacidade de influenciar todos
os participantes das relações internacionais.
Na nova ordem mundial, desenhada ao fim da bipolaridade da
guerra fria, tais regras não estão menos presentes. O capitalismo
não é um produto disposto em uma prateleira de supermercado,
que o consumidor pode pegar ou largar. Sua atual fase, a
globalização, tampouco. Daí não fazer muito sentido quando
alguém se posiciona a favor ou contra a globalização. É como ser
contra ou a favor da lei da gravidade. Em suma, a globalização é
uma realidade que tem um profundo impacto sobre as relações
internacionais contemporâneas e que molda a nova ordem
internacional. Apresenta elementos inovadores em relação a
algumas décadas atrás, mas conserva muito do mundo surgido da
Revolução Industrial e da Revolução Francesa, o mundo que pode
ser chamado de moderno ou contemporâneo. A nossa
modernidade.
Estaríamos em um mundo pós-moderno? As linhas anteriores
afirmam que não. O que seria, então, a pós-modernidade? Um
conjunto de manifestações culturais, sociais, políticas, econômicas
etc, próprias da etapa global do capitalismo, nova em muitos
aspectos, mas ainda capitalista. Nosso mundo é, neste sentido,
simultaneamente moderno e pós-moderno. Afinal de contas, não é
o capital que ordena as relações Socioeconômicas atuais, entre
pessoas, empresas e países?
Quanto à nova ordem internacional, a história vem em nosso
auxílio ao identificar a existência de centros privilegiados de
acumulação de capital, as áreas que conformaram as relações
econômicas mundiais, e que se transformaram nos centros
determinantes das “regras” internacionais. Em suas linhas gerais,
Giovanni Arrighi e Charles Tilly, dentre outros, mesmo trabalhando
em recortes temporais distintos, reconheceram que ao longo da
Idade Moderna e Contemporânea formaram-se distintos centros
econômicos dinâmicos: na Idade Moderna, Espanha, Portugal,
Holanda, França e Inglaterra; na Idade Contemporânea,
Inglaterra, Estados Unidos, Japão, Alemanha e, mais
recentemente, novamente o Japão, os “tigres asiáticos” e, agora,
a China. Talvez seja precipitado falarmos em um século asiático,
mas temos elementos suficientes para sustentar que a região do
Extremo Oriente, com Japão, China e outras grandes economias,
não mais deixará de ocupar, pelo menos por um bom tempo, o
centro dinâmico da economia e da política mundial.

CONCLUSÃO
A identificação e a caracterização de uma nova ordem
internacional requerem a passagem de alguns (ou de muitos)
anos e amadurecimento da produção acadêmica a respeito dela.
Mas é possível desde já estabelecer alguns parâmetros e delinear
algumas tendências das relações internacionais neste século.
a) As relações internacionais e a política internacional não
mudaram de natureza com as transformações do final da
década de 1980 e início da de 1990, se consideradas a
anarquia internacional, a hierarquia entre as potências, a
permanência de relações de dominação e influência, as
estruturas capitalistas de produção, distribuição e consumo, os
conflitos de interesse envolvendo os diversos atores
internacionais;
b) A emergência dos Estados Unidos como única potência
global é um dado próprio da nova ordem internacional. Os
Estados Unidos têm um papel preeminente na manutenção
das estruturas hegemônicas mundiais, mas não conseguem
por si sós estruturar uma nova ordem, que ainda se lhes
escapa. A possibilidade real de contribuir para o fortalecimento
das organizações internacionais e para um maior respeito ao
Direito Internacional foi substituída, principalmente após o 11
de setembro de 2001, por iniciativas unilaterais, que tornam o
mundo mais instável;
c) A União Européia, potencialmente um ator capaz de
contrabalançar o poder norte-americano, demonstrou, na crise
do Iraque, que, antes de se contrapor aos desígnios de
Washington, está interessada em consolidar sua estratégia de
inserção dinâmica no capitalismo contemporâneo. Porém,
enfrenta dificuldades nessa seara, e o “não” dos franceses e
holandeses à aprovação da Constituição Européia no ano de
2005, juntamente com as desconfianças surgidas quanto ao
futuro do Euro, aponta não para a consolidação de uma
federação européia internamente coesa, e sim para a
emergência de novos conflitos locais;
d) O Japão, depois de décadas de “um país que diz sim” aos
interesses econômicos e de segurança do Ocidente, começa a
pensar em “dizer não” e inicia uma política para se armar
diante de um vizinho que se configura como um gigante da
política internacional do futuro, a China. Os Estados Unidos
continuam a apoiar este que é o principal defensor dos
interesses de Washington no Extremo Oriente, mas a
conjuntura política regional indica a possibilidade de
instabilidade na região, nos próximos anos;
e) A China, por outro lado, surge como a região mais dinâmica
economicamente do planeta, mas não dá sinais de querer
abandonar sua estrutura autoritária de poder. Cabe lembrar
que em outros momentos da história dos dois últimos séculos,
em que uma potência autoritária transformou-se em um centro
econômico dinâmico da economia mundial, os resultados
foram desastrosos, como revelam as duas guerras mundiais;
f) Os países emergentes ou “em desenvolvimento”, como Brasil
e Índia, mais o primeiro que o segundo, ainda vivem os
dilemas em torno do desenvolvimento econômico. Nesse caso,
é importante destacar que as estruturas hegemônicas
mundiais depõem contra o desenvolvimento “autônomo”
desses países. Encontrar alternativas viáveis para o
desenvolvimento é a principal tarefa que se lhes apresenta;
g) As áreas empobrecidas e esquecidas do planeta tendem a
reproduzir sua situação atual: são objeto de saques e
exploração econômica cujos padrões nos remetem ao século
XIX, são interessantes do ponto de vista comercial e político,
mas não ocupam o centro das preocupações das grandes
potências e dos principais organismos internacionais.
Em suma, a nova ordem mundial é complexa e dinâmica.
Apreender suas tendências mais gerais é sempre um desafio para
os pesquisadores e estudiosos em geral. Analisar a nova ordem
mundial com o uso apenas do instrumental fornecido pela área
das relações internacionais propriamente dita é, de antemão, um
exercício fadado ao fracasso. Deve-se reconhecer a pertinência
de interpretarmos a realidade internacional atual em termos de
uma ordem uni ou multipolar. Mas isso é pouco.
Somente uma visão mais abrangente, considerando os aportes
das mais variadas áreas das ciências do homem, poderá levar a
uma compreensão maior do mundo atual. Além disso, é
necessário descer aos níveis mais profundos do devir da
humanidade. Um exemplo concreto: como um internacionalista
deveria se comportar diante das questões levantadas em torno da
Venezuela de Hugo Chávez? Situando-se no nível dos
acontecimentos diários, tenderia a endossar a caracterização do
governante venezuelano como populista — um rótulo muito caro
aos dirigentes norte-americanos —, a enfatizar a fragilidade da
democracia daquele país (o que não estaria incorreto) e, no limite,
simpatizar com soluções “alternativas”, fora do marco institucional
do país, como o golpe fracassado de abril de 2002.
Uma leitura mais profunda dos acontecimentos daquele país
nos levaria a incluir uma história de poderes oligárquicos que
usufruíram da principal riqueza do país, o petróleo, sem atacar os
problemas sociais mais profundos, como a desigualdade de
renda. Um país estrategicamente importante para os Estados
Unidos, uma vez que é responsável pelo fornecimento de boa
parte do petróleo ali consumido (dados do ano 2000 sustentam
que 14,7% do petróleo importado pelos Estados Unidos era
proveniente da Venezuela). A presença de um dirigente
autoritário, sem dúvida, mas que consegue catalisar a insatisfação
dos setores excluídos da sociedade venezuelana. Cotejar os
dados da mídia diária com o conhecimento acumulado nas
diversas áreas das ciências do homem é um procedimento
aconselhável.
Não existem soluções fáceis para o caso da Venezuela, como
para a maioria dos grandes problemas do mundo atual.
Reconhecer a existência de poderes estruturais, que tendem a
seguir em sua trajetória inercial, com algumas mudanças
processadas em um tempo relativamente longo, ajuda a delinear
as tendências para o futuro. Comparada com a ordem
internacional da guerra fria, a ordem mundial atual tem muitos
elementos novos, mas talvez as estruturas mais antigas é que nos
expliquem a permanência dos conflitos, das guerras, das
desigualdades, da fome. Tornar a vida humana algo mais racional
e harmônica é tarefa de todos.

QUESTÕES PARA DISCUSSÃO


1. Explique por que a análise da nova ordem mundial requer
uma abordagem multidisciplinar.
2. Escolha um dos grandes temas do tema mundo atual, como o
conflito palestinoisraelense e procure identificar os fatores
conjunturais e estruturais do conflito.
3. Analise o tema: Nova Ordem Mundial — unipolaridade x
multipolaridade.

GLOSSÁRIO
Estados falidos: Estados que há algumas décadas atrás
passaram pelo processo de descolonização (independência), mas
que não conseguiram consolidar suas instituições políticas e que
hoje são áreas governadas de forma precária ou mesmo sem
governo.
Fetichismo: culto de objetos materiais, considerados a
encarnação de um espírito, ou em ligação com ele, e possuidores
de virtude mágica.
Hegemon: país hegemônico que, em uma determinada
conjuntura, consegue impor os seus interesses pelo uso da força ou
do convencimento aos países situados em sua área de influência.
Megacidades: grandes cidades que têm renda equivalente à de
países pequenos e que são simultaneamente pólos industriais e
tecnológicos, interconectados com outras cidades gigantes, onde se
estabelecem os grandes gestores da economia mundial, sejam eles
empresas, entidades ou pessoas.
Ordem internacional assimétrica: a ordem internacional vista
pelo reconhecimento da existência de uma profunda clivagem entre
os países desenvolvidos e os demais, que conformaria uma
estrutura polarizada entre um centro industrializado e uma periferia
não industrializada.
Países ganhadores: países industrializados, que conseguiram
consolidar seus avanços nas áreas social, política e econômica.
Pós-internacional: diz-se da ordem “internacional” que não seria
mais composta de Estados nacionais e sim de uma multiplicidade de
micropoderes espalhados pelo planeta.
Regimes internacionais: conjunto de normas, regras,
procedimentos de processo decisório em torno dos quais
convergem as expectativas dos agentes em uma área específica
das relações internacionais.

BIBLIOGRAFIA INDICADA
DUPAS, G. Economia global e exclusão social: pobreza, emprego,
Estado e o futuro do capitalismo. São Paulo: Paz e Terra, 1999.
HAESBAERT, R. (Org.). Globalização e fragmentação no mundo
contemporâneo. Niterói: EdUFF, 2001.
SARAIVA, J. F. S. (Org.). Relações Internacionais: dois séculos de
história. Brasília: Ibri, 2001, 2 v.
SMOUTS, M. C. As novas relações internacionais: práticas e
teorias. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2004.
STRANGE, S. States and markets. London: Pinter Publishers, 1994.
Capítulo 2
A ORGANIZAÇÃO DAS
NAÇÕES UNIDAS — ONU
Cristiano Garcia Mendes

INTRODUÇÃO
A Organização das Nações Unidas (ONU) pode ser vista como
um emaranhado institucional de sistemas e instâncias criados, em
princípio, com o objetivo de construção da Segurança Coletiva1.
Nascida das experiências malsucedidas na Liga das Nações, a
ONU tentou organizar as relações entre Estados no período do
pós-Segunda Guerra Mundial. Respeitando a hierarquia de poder
existente entre os Estados àquela época, as Nações Unidas
tentaram garantir a participação de atores-chave do cenário
internacional, cedendo assento permanente a eles no Conselho
de Segurança e direito de veto por parte destes países.
Com um perfil mais realista que a Liga das Nações, a ONU
conheceu períodos de inércia, como na época da guerra fria, e
períodos de expansão das suas atividades e reforço da sua
legitimidade como, por exemplo, a década de 1990.
O objetivo deste capítulo é fazer um levantamento geral sobre a
criação e estrutura de funcionamento da ONU para, em seguida,
analisar alguns aspectos de maior destaque nos últimos anos.
Assim, nos tópicos 1 e 2, vamos encontrar um breve relato sobre
a conjuntura histórica na qual a ONU foi criada e um levantamento
das suas principais instâncias e processos de tomada de
decisões. No item 3, trataremos da relação existente entre a ONU
e a questão dos Direitos Humanos, uma vez que este tema não
somente é recorrente na Organização, como também vem sendo
estendido para outras áreas, como, por exemplo, aquelas relativas
às questões de segurança. Já no item 4, serão abordadas as
Missões de Paz e os atuais desafios enfrentados por elas. O item
5 trata dos Objetivos do Milênio, um programa que se propõe a
indicar quais os setores sociais/econômicos dos Estados devem
receber investimentos para o desenvolvimento humano e a
mensurar até que ponto estes investimentos podem, ou não, ser
considerados satisfatórios. No item 6, serão abordadas as atuais
tentativas de mudança na estrutura da ONU e, em especial, no
Conselho de Segurança.
Por se tratar de um capítulo introdutório, não existe aqui a
pretensão de esgotar ou mesmo de analisar a fundo os itens
propostos. A função deste texto é simplesmente fazer um
apanhado geral da Organização das Nações Unidas e gerar
referências para que os estudantes possam, em um segundo
momento, aprofundar seus conhecimentos sobre tópicos
específicos das Nações Unidas, por meio de outras bibliografias.

A CRIAÇÃO DA ONU
Apesar de a ONU ter sido criada, oficialmente, no ano de 1945,
é preciso voltarmos ao período compreendido entre as duas
Grandes Guerras Mundiais (1919-1939) para entendermos o
contexto histórico do seu nascimento. Ao término da Primeira
Grande Guerra Mundial (1914-1918), o mundo inteiro fazia um
balanço do ocorrido e tentava responder a uma questão crucial
que se impunha no momento: “Qual o motivo dos Estados
fazerem guerras entre si?”. Com essa questão, um sentimento de
pacifismo começou a tomar conta da opinião pública mundial, e
mecanismos para impedir que outras guerras, de iguais
proporções, voltassem a ocorrer começaram a ser pensados.
Várias foram as respostas encontradas para explicar o porquê das
guerras e, dentre elas, uma sobressaiu no começo.
Provavelmente, o fato de os Estados fazerem tratados secretos
entre si acabava gerando uma situação em que, à medida que
estes tratados se concretizassem, o resultado final seria um
emaranhado de relações que acabavam levando às agressões
entre determinados países. Somente uma maior publicização
desses tratados poderia permitir maior controle sobre informações
a respeito do que estava sendo acordado entre os países e,
conseqüentemente, situações que levassem ao conflito poderiam
ser evitadas com maior facilidade.
Com essas respostas, surgia, também, um sentimento de que
era crucial naquele momento criar uma organização que servisse
de instância decisória internacional na qual os Estados pudessem
participar como membros discutindo problemas e solucionando
conflitos internacionais de maneira mais transparente e
democrática. Surgia, assim, a Liga das Nações, também chamada
de Sociedade das Nações. Uma organização de caráter
internacional que tinha como objetivo regular a relação entre
Estados a partir do fim da Primeira Grande Guerra Mundial.
Entretanto, apesar de a opinião pública naquele período
acreditar na possibilidade de se criar uma instância internacional
na qual os Estados pudessem tomar decisões de forma
democrática e acreditar, ainda, que o mundo havia aprendido o
suficiente com os custos gerados pela Primeira Grande Guerra,
esta visão, já naquele momento, começou a sofrer críticas. O
discurso de cunho pacifista e a crença de que os Estados jamais
fariam outra guerra semelhante começaram a ser taxados de
utópicos ou idealistas. Para se contrapor a esse arcabouço de
crenças, alguns autores, denominados realistas, argumentavam
que, apesar de o objetivo pacifista ser nobre, nem sempre
podemos evitar uma guerra.
Segundo os realistas2, quando estamos lidando no ambiente
internacional, que se caracteriza pela ausência de uma autoridade
comum, podemos nos defrontar com situações em que, mesmo
quando dois, ou mais Estados não desejam, a guerra entre eles é
inevitável. Na ausência de uma autoridade que regule de maneira
legítima a relação entre os atores internacionais, prevalece a
desconfiança entre eles e, em nome da própria segurança, alguns
Estados tendem a preferir o ataque a um potencial inimigo antes
que este suposto inimigo tenha a oportunidade de atacá-lo
primeiro.
Apesar das críticas, esse discurso chamado de idealista foi
levado adiante no período entre guerras e, apesar da descrença
de muitos, inclusive estadistas, a Liga das Nações entrou em vigor
em 28 de abril de 1919 como um símbolo do desejo vigente na
época de um mundo onde a guerra não tivesse mais lugar como
resolução dos conflitos internacionais.
A necessidade de criação dessa Organização Internacional já
havia sido citada no discurso feito pelo presidente dos Estados
Unidos Woodrow Wilson (1913-1921) em janeiro de 1918 no qual
ele aponta 14 pontos que deveriam ser seguidos pelos Estados ao
final da Primeira Grande Guerra Mundial. O Tratado de Versalhes
(1919), que tratava da situação mundial dos países no pós-guerra,
estabeleceu em um dos seus artigos a criação da Liga das
Nações.
No princípio, a Liga das Nações foi formada para colocar em
prática o que havia sido acordado em Versalhes: promover a
cooperação econômica e social entre os países e garantir a
segurança coletiva entre os Estados. Composta por um Conselho
com membros permanentes e outros rotativos, uma Assembléia
com a participação de todos os Estados e territórios membros, e
um Secretariado, a Liga foi inicialmente formada por 32
componentes. Mais tarde, outros Estados foram convidados a
participar, sendo que 63 Estados passaram por essa instância
internacional no decorrer da sua existência. A ausência ou saída
de alguns Estados-chave foi um dos motivos que levaria a Liga
das Nações ao fracasso. Os Estados Unidos, um dos principais
mentores da organização, não chegaram, sequer, a fazer parte
dessa organização. A União Soviética entrou em 1934, mas foi
expulsa em 1939, devido à invasão à Finlândia. A Alemanha,
perdedora da Primeira Grande Guerra Mundial, foi aceita em 1926
e se retirou em 1933. Por uma série de incompatibilidades entre
interesses do Brasil e decisões da Liga, o país pediu seu
afastamento no ano de 1926.
Outro motivo que explica a ineficácia da Liga das Nações é o
fato desta organização exigir unanimidade nas votações, tanto da
Assembléia Geral, quanto do Conselho. A multiplicidade de
interesses presentes dentre os países fez com que tal exigência
paralisasse a Liga das Nações nos seus processos de tomada de
decisões.
Por fim, pode-se citar, também, o fato de a Liga das Nações
não imprimir um caráter de obrigatoriedade na execução das suas
decisões perante os Estados membros. Assim, mesmo que se
conseguisse unanimidade nas decisões, a efetivação destas
ficaria dependendo da vontade dos Estados em suprir a Liga com
os meios materiais necessários para que determinada resolução
fosse colocada em prática. Assim, a Liga ficava à mercê, não só
da vontade unânime dos seus membros, como, também, em um
segundo momento, da boa vontade dos Estados em efetivar as
decisões que viessem a ser tomadas. Havia uma aparente
contradição nos propósitos da Liga (contradição esta que
reapareceria na ONU) entre a necessidade de gerar a Segurança
Coletiva versus o respeito à soberania de cada um dos Estados
membros. Até que ponto a Liga das Nações poderia intervir em
assuntos referentes a Estados em específico, até que ponto
determinada ação de um Estado poderia ser considerada, ou não,
legítima defesa, e até que ponto e por meio de quais
procedimentos os Estados membros poderiam agir por conta
própria, sem a anuência da Liga, eram questões que nunca foram
respondidas e que continuariam presentes na futura criação da
Organização das Nações Unidas.
Nos 27 anos de existência da Liga, pequenos sucessos e um
grande número de fracassos foram acumulados, fazendo com que
esta organização fosse desconstituída em 1946.
O início da Segunda Grande Guerra Mundial (1939-1945) fez
com que a já desacreditada Liga das Nações (que desde a crise
econômica de 1929 não funcionava muito bem) paralisasse quase
que por completo suas ações. Desde a assinatura da Carta do
Atlântico entre Estados Unidos e Reino Unido, em 1941, e a
Conferência de Washington de 1942, os pilares do que viria a ser
a Organização das Nações Unidas estavam sendo criados.

Semelhanças e Diferenças entre a Liga das Nações e a


ONU

Liga das Organização das Nações Unidas


Nações (ONU)
(LDN)
Ano de
1919 Oficialmente, em 1945
criação
Sede Inicialmente,
com sede em
Nova York, Estados Unidos. Com
Londres e
exceção do Tribunal Internacional de
transferida
Justiça, localizado em Haia, Holanda.
para
Tem também uma sede européia,
Genebra,
localizada em Genebra, Suíça.
Suíça, em
1920.
Estrutura 3 órgãos
organizaciona principais:
6 órgãos principais: Assembléia Geral,
l Assembléia
Conselho de Segurança, Ecosoc, ICJ,
Geral,
Secretariado, Conselho de Tutela.
Conselho e
Secretariado.
Processo de Votações Assembléia Geral: normalmente, por
tomada de exigiam maioria dos Estados-Membros. Em
decisões unanimidade casos específicos, há a exigência de
tanto na 2/3 de aprovação. As decisões são
Assembléia indicativas. Conselho de Segurança:
Geral quanto aprovação de, pelo menos, 9
no Conselho. membros e não pode haver oposição
As decisões de um membro permanente (direito de
eram apenas veto). A decisões são impositivas.
indicativas.
Forças Não previa Prevê a utilização de Forças Armadas
Armadas utilização de fornecidas pelos Estados membros.
Forças No caso das Missões de Paz, os
Armadas soldados a serviço da ONU são
específicas. conhecidos como Boinas Azuis.
Número de
63 191
membros
Obedecendo a uma estrutura organizacional semelhante à
encontrada na Liga das Nações, a ONU, por sua vez, tratou de
corrigir aquilo que foi encarado como erro naquela organização e
adotou modificações substanciais, principalmente nos processos
de tomada de decisões. Apesar de seguir a mesma estrutura da
Liga das Nações, com a presença de uma Assembléia Geral
(formada por todos os Estados membros), um Secretariado (com
um Secretário Geral eleito para o período de 5 anos, com
mandato renovável) e um Conselho de Segurança (formado por
15 Estados membros, sendo que destes, apenas cinco são
permanentes), a ONU deu direito de veto a todos os membros
permanentes do Conselho de Segurança. Assim, Estados Unidos,
Inglaterra, França, Rússia e China teriam a garantia de que
somente as decisões que não afetassem os interesses de algum
destes países, potências que saíram vitoriosas da Segunda
Guerra Mundial, seriam acatadas.
Construída em bases mais realistas, se comparada à Liga das
Nações, e respeitando as diferenças de poder encontradas no
pós-Segunda Guerra, a ONU tentou garantir sua efetividade pelo
cuidado (via estrutura do Conselho de Segurança) de não permitir
que os interesses das grandes potências àquela época fossem
colocados em xeque.

ESTRUTURA E FUNCIONAMENTO DA ONU


A estrutura organizacional da ONU não possui muitas
diferenças daquela encontrada na Liga das Nações. Basicamente,
a ONU está dividida em seis órgãos: a Assembléia Geral (na qual
cada Estado membro é representado de forma igualitária), o
Conselho de Segurança, instância executiva da ONU (formado por
15 Estados membros, sendo que 5 deles são permanentes e
possuem direito de veto e os demais são rotativos, eleitos para um
mandato de dois anos, sem direito a veto), o Ecosoc (Conselho
Econômico e Social), instância responsável pelos assuntos
econômicos, sociais e culturais da Organização, o ICJ (Corte
Internacional de Justiça), idealmente, a instância responsável por
julgamentos internacionais (formado por 15 juízes, eleitos para um
mandato de nove anos), o Secretariado, com um secretário-geral
eleito para o período de cinco anos, com mandato renovável, e o
Conselho de Tutela, que inicialmente possuía a função de
administrar territórios. Este último, não possui mais atividades
desde 1994, com a independência do Palau3.
Esses seis órgãos são ligados às diversas outras agências
especializadas e programas, cujo grau de dependência com a
administração central é variado. A relação dessas agências e
programas, entre si, também varia de acordo com a estrutura
administrativa, sendo que, várias vezes, diferentes instâncias,
relativamente autônomas, desempenham papéis semelhantes e
possuem objetivos comuns, apesar de trabalharem separadas.
Atualmente, a Assembléia Geral é formada pelos 191 Estados
membros da ONU. As decisões da Assembléia, em geral, têm que
ser aprovadas por maioria. Já os assuntos mais polêmicos como,
por exemplo, a admissão de novos membros, questões relativas à
segurança internacional e mudanças na Carta da ONU têm que
receber o apoio de, pelo menos, dois terços dos países membros.
Apesar das suas decisões não possuírem caráter impositivo, a
simples aprovação de diretrizes já representa um peso moral,
mesmo que as decisões não sejam efetivadas.
O Conselho de Segurança possui, em relação aos membros
não permanentes, um sistema de rotatividade regional. As
decisões do Conselho têm que ser aprovadas por, pelo menos,
nove dos seus membros, e não pode sofrer a oposição de
nenhum membro permanente (direito de veto). Ao contrário das
decisões da Assembléia Geral que não têm caráter de
obrigatoriedade, as decisões do Conselho são consideradas
imperativas, cabendo, portanto, sanções ao não-cumprimento
delas.
O Ecosoc é composto por 54 Estados membros eleitos pelo
período de três anos. Responsável por questões como Direitos
Humanos, Proteção à Mulher, Desenvolvimento Sustentável e
Desenvolvimento Social, o Ecosoc trabalha em conjunto com
instâncias regionais e agências especializadas como, por
exemplo, o Banco Mundial, a Unesco e o FMI4.
O Secretariado concentra as funções administrativas da ONU.
Os funcionários da Organização (cerca de 22.000) são admitidos
via seleção que respeita critérios técnicos e regionais. O
secretário-geral é eleito pela Assembléia Geral, pela indicação do
Conselho de Segurança. A função do Secretário vai além da
administração burocrática. Quem exerce esse cargo tem a função
de induzir a coexistência das várias instâncias da ONU e provocar
os órgãos competentes a tomar decisões sempre que algum tema
ganhe relevância internacional.
A Corte Internacional de Justiça só pode julgar demandas por
meio da autorização das partes envolvidas em determinado
conflito. Procura-se sempre eleger representantes de diversos
países de forma que garanta a isenção e imparcialidade das
decisões tomadas. O posto de Juiz do ICJ representa, para um
jurista, o grau máximo na carreira internacional.
Já o Conselho de Tutela foi criado como resposta à
necessidade de administrar regiões ainda sob domínio de certos
Estados, mas que se encontravam em processo irreversível de
independência. Ao contrário da Liga das Nações que aceitava a
presença de territórios e colônias como membros da Organização,
a ONU é, por definição, uma instância formada única e
exclusivamente por Estados-Nação.

Secretário-Geral da ONU — Cronologia

Secretário País de Origem Mandato


Trygve Lie Noruega 1946-1953
Dag Hammarskjold Suécia 1953-1961
Birmânia (atual
U Thant 1961-1971
Myanmar)
Kurt Waldheim Áustria 1972-1981
Javier Pérez De
Peru 1982-1991
Cuellar
Boutros Boutros-Ghali Egito 1992-1996
Kofi Annan Gana 1997-2006
Ban Ki-moon Coréia do Sul 2007-
atualidade

A ONU E OS DIREITOS HUMANOS


Em 10 de dezembro de 1948, a Assembléia Geral da ONU
aprovou a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Nenhum
dos Estados membros votou contra a aprovação do documento e
somente alguns países como Arábia Saudita, África do Sul e
países alinhados à Rússia abstiveram-se na votação. Entretanto,
quando analisamos mais a fundo a questão dos Direitos Humanos
nas Nações Unidas, percebemos que se trata, ainda nos dias de
hoje, de assunto controverso, cujas definições ainda são
imprecisas, e grande parte das preocupações sobre este assunto
não consegue encontrar soluções concretas5.
Em 1966, dois documentos foram produzidos pela Assembléia
Geral, dividindo os Direitos Humanos em dois grandes grupos: um
Tratado sobre Direitos Civis e Políticos e, outro, sobre Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais. O primeiro, claramente, refletia
os anseios dos países ocidentais, de tradição liberal. Já o
segundo grupo, representava a ideologia de países do bloco
comunista que enfatizavam mais a obrigação do Estado em prover
os indivíduos de bens econômicos e sociais do que de garantias
civis individuais. Somente a partir de 1976 é que esses dois
documentos são formalizados e, apesar de os países poderem
ratificar (mesmo com reservas) apenas um dos dois Tratados,
ainda assim um considerável número de Estados membros não os
aceita totalmente devido a razões diversas. Juntos, os dois
Tratados de 1966 ficaram conhecidos como International Bill of
Rights.
De maneira geral, os Direitos Humanos costumam ser divididos
em três categorias: primeiro, os chamados Direitos Negativos. São
aqueles direitos que protegem os indivíduos contra abusos da
própria sociedade. Dentro dessa categoria encontramos, por
exemplo, o direito à liberdade de expressão, direito à liberdade de
religião, direito de se reunir em assembléias, dentre outros. A
segunda categoria de direitos refere-se aos chamados Direitos
Positivos. Como exemplos, podemos citar o direito ao trabalho,
direito à educação, direito à saúde, dentre outros. A terceira
categoria é a mais recente. Somente no decorrer da última década
é que a idéia de direitos que transcendem os indivíduos como, por
exemplo, direito à paz e ao desenvolvimento sustentável vem
sendo defendida. São considerados direitos coletivos e nasceram
da constatação de novos problemas gerados com o processo de
industrialização e degradação do meio ambiente e da necessidade
de defender comunidades inteiras ameaçadas, principalmente, por
conflitos étnicos e intraestatais.
Na prática, quando tratamos dos Direitos Humanos no âmbito
da ONU, estamos lidando com questões das mais variadas
esferas. Desde a luta contra o racismo, os problemas gerados
pelo colonialismo, a questão dos trabalhos forçados, denúncias de
torturas, defesa das mulheres, refugiados, dentre outros, são
considerados temas pertinentes aos Direitos Humanos.
Tecnicamente, a Commission on Human Rights, criada em 1946 e
subsidiária do Ecosoc, é a instância oficialmente responsável
pelas questões dos Direitos Humanos na ONU. Entretanto, várias
outras Comissões, Comitês e subComitês tratam do assunto, às
vezes, até mesmo de forma não coordenada o que dificulta um
levantamento geral sobre o tema. A Assembléia Geral dedica
grande parte das suas votações às questões relativas aos Direitos
Humanos. Apesar do peso das suas decisões ser meramente
indicativo, ainda assim a publicização do que foi julgado e os
relatórios produzidos pelos Comitês e Agências especializadas
são responsáveis pelo aumento da pressão pública mundial para
garantir o cumprimento destes direitos.
Outra tendência que deve ser destacada, principalmente a partir
do fim da Guerra Fria, é a transferência da defesa dos Direitos
Humanos do âmbito da Assembléia Geral para o Conselho de
Segurança. Cada vez mais, nota-se um empenho da ONU em
tratar a defesa e proteção de indivíduos como assunto de
Segurança Coletiva. Como as decisões do Conselho de
Segurança são impositivas, as ações daí decorrentes possuem
um poder de ação direta sobre as situações. Seja por meio das
Missões de Paz, ou de intervenções militares clássicas, o
Conselho de Segurança demonstrou, várias vezes, sua disposição
em relativizar a soberania de determinados Estados que não
garantem condições mínimas de sobrevivência aos seus
cidadãos. Assim, ações, como as vistas na Somália, Camboja e
Bósnia, podem ser consideradas, em uma primeira instância,
operações que visam garantir a proteção de Direitos Humanos
para determinada coletividade.
Claro que nem sempre a ONU age de forma eficaz na defesa
dos Direitos Humanos. Assim como podem ser listados vários
exemplos de intervenções com objetivos humanitários, também é
possível citar algumas situações em que Direitos Humanos foram
violados sem nenhum tipo de ação, ou com ações de pouca
eficácia, por parte das Nações Unidas6. Como a ONU é uma
instância internacional formada por Estados, ainda cabe a estes
(principalmente os que possuem assento permanente no
Conselho de Segurança) produzir um consenso mínimo sobre a
necessidade de intervenção e de assumir os custos que estas
operações podem gerar. Principalmente quando estão lidando
com conflitos étnicos e questões relativas a refugiados, os
Estados são cautelosos nas decisões, não só porque podem
arriscar a vida de seus cidadãos em assuntos que, em princípio,
não têm relação com seu país, como, também, qualquer falha de
logística nas ações pode vir a piorar a situação. Além disto, a
ONU ainda enfrenta críticas, principalmente de países asiáticos,
que acusam de ser etnocêntrica7 a Declaração Universal dos
Direitos Humanos. Podem ser listados, ainda, como desafios
enfrentados pelas Nações Unidas na luta pela garantia dos
Direitos Humanos: a falta de critérios objetivos que permitam
quantificar até que ponto os Estados respeitam, ou não, estes
direitos; o excesso de Tratados sobre o tema, que acaba gerando
uma falta de clareza sobre quais são os reais objetivos destas
ações; a dependência de fundos orçamentários suficientes para a
concretização das decisões tomadas neste campo e, por fim, o
aparecimento recorrente de denúncias, principalmente referentes
às Missões de Paz que, mesmo atuando em nome da ONU, são
acusadas de não respeitarem os Direitos Humanos, em várias
ocasiões8.

A ONU E AS MISSÕES DE PAZ


Assim como vários outros conceitos comumente ligados à
Organização das Nações Unidas, as Missões de Paz
(peacekeeping) não possuem definição clara e consensual. De
uma maneira geral, podemos dizer que elas caracterizam-se pela
tentativa de manter o status quo em uma determinada região, ou
de fornecer condições para que determinada estrutura
organizacional/política seja construída após término de conflitos.
Idealmente, as Missões de Paz não possuem inimigos
específicos, e suas ações limitam-se a garantir a paz sem que o
uso da força seja necessário. Os Boinas Azuis (nome dado aos
soldados a serviço destas Missões de Paz) deveriam portar, no
máximo, armas leves e utilizar a força somente em casos de
legítima defesa, ou para garantir o cumprimento das leis na região
em questão.
A crise do Canal de Suez, em 1956, marca a inauguração deste
tipo de missão pela ONU. Até essa data, somente missões de
outra natureza como, por exemplo, de observadores, haviam sido
utilizadas. A Unef9 lançou as bases do que seriam, no futuro, as
demais gerações das peacekeeping. Em princípio, para que uma
Missão de Paz seja efetivada, é necessário o consentimento do
Estado no qual a missão é instalada. O Conselho de Segurança
dá o aval para a criação da missão que fica sob o comando do
secretário-geral da ONU que, por sua vez, conta com a ajuda de
representantes designados e assessoria de especialistas10. As
Forças de Paz seriam constituídas por soldados e equipamentos
fornecidos voluntariamente por Estados que não estivessem
envolvidos na situação em questão, ou que não possuíssem
interesses particulares naquela região.
Três gerações de Missões de Paz podem ser visualizadas,
desde sua criação: a primeira delas, caracterizada pelo
consentimento expresso do(s) Estado(s) no qual a missão iria
acontecer, tinha por objetivo primordial evitar que conflitos fossem
deflagrados, garantindo um ambiente neutro para o desfecho de
negociações entre determinadas partes. A partir das ações na
Namíbia (1989), tem-se uma segunda geração de Missões de
Paz, caracterizadas não somente por ações militares. Junto
dessas, representantes civis fazem, também, papéis de suma
importância para a região como, por exemplo, treinamento de
pessoal, fiscalização, coordenação de eleições e consultoria
técnica. Atualmente, uma terceira geração pode ser identificada.
Nesta última fase, as Missões de Paz relativizam a necessidade
de se obter o consentimento do Estado ou das partes envolvidas
no conflito.
O documento chamado Agenda para a Paz (1992), produzido
pelo então secretário-geral da ONU, Broutros Boutros-Ghali,
enfatiza a necessidade da Organização assumir um papel de
peacebuilding, no qual a paz deveria ser garantida pela indução
categórica dela. A ONU não poderia mais esperar de forma
passiva que a sua atuação fosse requisitada formalmente para
intervir em determinadas situações. Seria preciso se antecipar a
essas necessidades por meio de uma política mais contundente e
positiva na manutenção da paz. Tendo como base o capítulo VII
da Carta das Nações Unidas, que prevê a autorização, pelo
Conselho de Segurança, do uso da força para garantir a paz,
estas missões passam a atuar em duas direções: primeiro, no
sentido de peace enforcement, fazendo com que soldados
possam ser enviados para intervir, mesmo sem autorização do
Estado em questão, em determinadas situações em que a paz e
os Direitos Humanos estejam seriamente ameaçados, ou já
tenham sido desrespeitados. Segundo, após a relativa
estabilização da região, estas missões também podem assumir o
papel de statebuilding ajudando na reconstrução de sociedades
destruídas pelos conflitos.
A década de 1990 viu aumentar, ainda, o número, a estrutura e
gastos com as Missões de Paz. Apesar de possuir um orçamento
relativamente modesto, se comparado com todas as outras
despesas que os Estados fazem na área de segurança, ainda
assim, as Missões de Paz conseguiram mais do que duplicar suas
ações pelo mundo, convencendo diversos países a participar dos
custos que isto acarreta. Através de parcerias com Organizações
Regionais como, por exemplo, UE, Ecowas e OEA11, as Missões
de Paz têm convencido boa parte dos Estados membros que suas
ações representam, no final das contas, uma economia em
questões de segurança, pois, por mais que tenham falhado em
casos específicos, ainda assim, os sucessos são considerados
significativos no sentido de evitar a intensificação de conflitos e
gerar estabilidade social em certas regiões.
Até o momento, o Brasil participou de Missões de Paz no Canal
de Suez (1957-1967), na República Dominicana (1965), em
Moçambique (1994), em Angola (1995-1997), no Timor Leste
(1999 — em andamento) e no Haiti (2004 — em andamento).
Como observador militar, o Brasil atuou nos Bálcãs, Peru/Equador,
Chipre, República Dominicana, Índia/Paquistão, El Salvador,
Costa Rica, Honduras, Guatemala, Nicarágua, Moçambique,
Uganda/ Ruanda, Croácia e ex-Iugoslávia12.
Sua atuação no Haiti reflete a continuidade da tradição do país
em participar ativamente na ONU por meio desta instância.
Reafirma, também, a posição de destaque do nosso Estado em
relação aos demais países da América do Sul em termos de
representatividade na Organização das Nações Unidas.

OS OBJETIVOS DO MILÊNIO
Apesar da criação da ONU ter como objetivo principal a
garantia da Segurança Coletiva, as instâncias de desenvolvimento
político, social, econômico e cultural nunca foram deixadas de
lado. Pelo contrário, principalmente a partir da década de 1990 é
que, cada vez mais, assuntos relativos a essas questões sociais
vêm sendo tratados, também, como questão de segurança. Os
Estados têm chegado ao consenso de que, se o objetivo maior
das Nações Unidas é a paz mundial, somente com o
desenvolvimento socioeconômico da humanidade é que este ideal
poderá ser cumprido.
No ano de 2000, foi aprovada na Assembléia Geral da ONU a
Agenda do Milênio. Uma tentativa de sintetizar todas as iniciativas
feitas pela Organização das Nações Unidas na década anterior
em relação ao desenvolvimento humano, social e econômico da
população mundial. A partir dessa Agenda, foram estabelecidos,
em 2001, oito objetivos, 18 metas e 48 indicadores, conhecidos
como Objetivos do Milênio ou também chamados de Metas do
Milênio. A intenção é que esse patamar possa ser concretizado
pelos Estados até o ano de 2015. Os objetivos são:
1. Erradicar a extrema pobreza e a fome
2. Atingir o ensino básico universal
3. Promover a igualdade entre os sexos e a autonomia das
mulheres
4. Reduzir a mortalidade infantil
5. Melhorar a saúde materna
6. Combater o HIV/Aids, a malária e outras doenças
7. Garantir a sustentabilidade ambiental
8. Estabelecer uma parceria mundial para o desenvolvimento
Para cada um desses objetivos, especificaram quais metas
deveriam ser atingidas e quais indicadores seriam usados para
mensurar seus desenvolvimentos. Fundos de financiamento
específicos para programas que atuam nesta área foram criados e
parcerias com instituições privadas, públicas e governos foram
feitas para garantir o avanço desses pontos e capacitar seu
acompanhamento.
Criados com base nos parâmetros dos Direitos Humanos,
definidos pelas Nações Unidas, os Objetivos do Milênio já estão
sendo adotados como parâmetros para projetos de
desenvolvimento de vários países. Inclusive as Missões de Paz já
pautam suas ações com base no que é apontado como crucial por
esses objetivos.
Como cada região do planeta possui problemas específicos,
alguns mais fáceis, outros nem tanto de serem solucionados,
também o sucesso desses objetivos da ONU estão variando, de
acordo com cada localidade. De maneira geral, segundo relatórios
já produzidos, podemos dizer que enquanto países da Ásia e
Norte da África estão caminhando relativamente bem rumo aos
objetivos, os países da América Latina, Caribe e Ásia Ocidental
não possuem o mesmo grau de desenvolvimento em relação a
todos os pontos, conseguindo avançar em alguns específicos,
mas ainda com pouco sucesso em questões relativas à redução
da pobreza. A pior região é a dos países da África Subsaariana,
que ainda apresentam um desempenho que os deixam distantes
das metas apresentadas13.
No caso do Brasil, especificamente, podemos notar que, no
geral, suas médias estão acima daquelas encontradas nos demais
países da América Latina. Enquanto as metas relacionadas à
educação e gênero estão no patamar previsto pela ONU, outras
como mortalidade infantil, acesso à água potável e diminuição da
pobreza, apesar de ainda não estarem nos níveis previstos, estão
bem próximas disto. O ponto mais preocupante, em relação ao
nosso país, é o do saneamento, considerado ainda longe dos
níveis ideais estabelecidos pela Agenda. Outra questão que deve
ser levada em consideração é o fato de que, apesar de grande
parte da população ter superado a linha da pobreza, aqueles que
ainda continuam abaixo dela têm sua situação ainda mais piorada.
Assim, apesar de ser possível alcançar as metas em relação a
este último ponto, ainda é preocupante a situação daqueles que
não conseguiram ser atingidos pelas políticas sociais brasileiras14.
De maneira geral, podem ser apontados como dificuldades em
se atingir o previsto para o ano de 2015: falta de conhecimento
técnico/burocrático dos Estados mais afetados pelos problemas, o
que dificulta o acesso ao financiamento de projetos; dificuldade de
acesso às regiões mais isoladas pelos programas necessários
para o desenvolvimento humano; impossibilidade de produção de
dados confiáveis sobre determinadas situações específicas,
dentre vários outros problemas.
REFORMA DA ONU
Como já foi dito, um dos principais motivos do sucesso da ONU,
se comparado com o fracasso da Liga das Nações, foi o fato
daquela organização reproduzir, via Conselho de Segurança, o
jogo de forças encontrado no período do pós-Segunda Guerra
Mundial. Assim, o fato dos Estados Unidos, Inglaterra, França,
Rússia e China possuírem assento permanente e direito de veto
fez com que estes mesmos Estados se sentissem mais à vontade
para entrar em uma Organização que, devido a este tipo de
processo decisório, jamais permitiria que uma decisão fosse
concretizada sem o aval consensual das cinco potências.
Esse mecanismo de veto, responsável pela paralisia da ONU
durante o período da guerra fria, acabou tornando-se ultrapassado
no sentido de não refletir mais o jogo de forças que encontramos
atualmente entre os Estados que compõem a Organização.
Assim, cada vez mais, a ONU recebe pressões de determinados
países para que a proporcionalidade da representação seja
atualizada, que o número dos Estados que participam do
Conselho de Segurança (tanto os permanentes, quanto os não-
permanentes) seja ampliado e, até mesmo, propostas que pedem
para que o direito a veto seja revisto ou ampliado a outros
membros.
Dentre vários Estados interessados nessas mudanças,
podemos citar: Japão, Alemanha, Índia e, até mesmo, Brasil15. No
caso dos dois primeiros países citados, segundo e terceiro
maiores contribuintes financeiros da ONU, respectivamente, o
interesse é reflexo de uma maior participação deles no jogo de
forças internacional. No caso do Brasil, apesar da luta por
ampliação no Conselho não significar garantias de vaga para os
demandantes, é notório o papel de liderança que o país vem
assumindo na América do Sul, o que aumentaria as chances do
nosso país ser o principal beneficiado de possíveis ampliações do
Conselho.
Devemos lembrar, entretanto, que qualquer mudança no
número de Estados membros deve ser aprovada por dois terços
dos votos da Assembléia Geral e ter a aprovação do Conselho de
Segurança. Isso faz com que qualquer mudança neste sentido
somente poderá ser efetivada se, em última instância, não tiver a
reprovação dos Estados com assento permanente e direito de
veto.
Outra questão a ser pensada refere-se à possibilidade de
aumento ou diminuição da legitimidade da Organização das
Nações Unidas a partir dessas reformas. Se, por um lado, uma
reforma no Conselho de Segurança refletiria de maneira mais
fidedigna a atual realidade internacional, o que poderia aumentar
a confiança na Organização, por outro lado, isto tornaria o
processo de decisão desta instância ainda mais intrincado. A
possibilidade de consenso iria, naturalmente, diminuir, o que
poderia, caso os Estados membros não tenham habilidade política
para negociar, levar a ONU a uma nova fase de paralisia.
De qualquer modo, a reforma da ONU é vista como inevitável,
pelo menos a longo prazo, caso a Organização queira ser
reconhecida como uma arena institucional legítima de debates e
decisões internacionais. Caso as mudanças não ocorram, corre-se
o risco de perda gradativa da autoridade desta Organização que,
com o passar dos anos, não sofreu muitas mudanças estruturais
para adaptar-se aos novos tempos.

CONCLUSÃO
Quando comparamos a Organização das Nações Unidas com a
Liga das Nações, fica patente que as duas instâncias devem ser
vistas não em separado, mas, sim, como a continuação de um
esforço para gerar Segurança Coletiva. Esforço este criado a
custo de muitos erros, mas também, de significativos sucessos.
O caráter menos idealista da ONU (se comparada com a Liga
das Nações) e o fim da guerra fria possibilitaram que, nos últimos
anos, esta Organização começasse a ter força e voltasse a ser
vista como instância promissora na administração das relações
entre os Estados. O incremento no número de programas
vinculados à Organização, a expansão das suas atividades em
todo o mundo, e o aumento da percepção da legitimidade da ONU
contrastam com a necessidade de se superar problemas como o
baixo orçamento dedicado às suas atividades, a necessidade de
se formar um corpo de funcionários e técnicos mais preparados e
encaminhamento de discussões sobre possíveis alterações nas
suas estruturas.
Principalmente a partir da década de 1990, nota-se, também,
uma preocupação maior com questões relativas à segurança.
Temas antes tratados apenas como questões de cunho social e/ou
econômico, passaram a ser vistos como de importância crucial
para que a paz seja alcançada. Áreas como a dos Direitos
Humanos e Desenvolvimento Social transitam com facilidade
pelos diversos órgãos e agências da Organização das Nações
Unidas sendo tratadas sob duas ou mais perspectivas,
simultaneamente. A coordenação dessas instâncias e o
encaminhamento dos procedimentos de forma eficiente, também,
são desafios a serem superados.
De maneira geral, devemos analisar as mudanças ocorridas
nas Nações Unidas por meio de um viés que enfatize o
aprendizado ocorrido no percurso e, não somente, dedique-se a
contabilizar sucessos e fracassos. A ONU é uma organização que
precisa estar em constante adaptação aos desafios que surgem.
Assim, apesar de não conseguir atingir grande parte de seus
objetivos, pelo menos faz o possível para que os bons resultados
sejam maximizados. Se a realidade internacional que conhecemos
hoje não é aquela que gostaríamos que existisse, pelo menos a
ONU teve papel crucial para que esta realidade também não
estivesse pior.
Entre as perspectivas mais pessimistas, que consideram a ONU
como simples reprodutora do jogo de forças internacionais, e
outras perspectivas otimistas, que depositam todas as suas
esperanças no futuro da Organização, talvez tenhamos que optar
pelo meio-termo.
Segundo Dag Hammarskjold, ex-Secretário-Geral da ONU,
“The United Nations was not created in order to bring us heaven,
but in order to save us from hell (1954).”16
QUESTÕES PARA DISCUSSÃO
1. Até que ponto as questões dos Direitos Humanos podem ser
pensadas como algo relativo à Segurança Coletiva?
2. Uma possível reforma do Conselho de Segurança, com a
entrada de novas potências como membros permanentes e
com direito a veto, iria facilitar ou dificultar as ações da ONU?
Justifique.
3. Seria realmente interessante para o Brasil obter um assento
permanente no Conselho de Segurança? Quais as vantagens
e obrigações que, provavelmente, adviriam disso?

GLOSSÁRIO
Segurança Coletiva: refere-se à união de atores com o intuito
de homogeneizar ações de segurança. Nesta concepção, um
ataque a qualquer membro daquela unidade significaria uma
agressão a todos os seus componentes.
Realismo: paradigma teórico, das Relações Internacionais, que se
contrapõe aos chamados idealistas. Dentre os pressupostos que
sustentam o realismo destacam-se: Estados como principais atores
internacionais; ambiente internacional anárquico, ou seja, ausência
de autoridade supra-estatal, e a questão da segurança como
prioridade destes Estados. Apesar do Realismo nas Relações
Internacionais ter-se originado no período entreguerras (1919-1939),
suas bases podem ser encontradas em autores como Tucídides,
Maquiavel, Hobbes e Clausewitz.
Etnocentrismo: pressuposto, segundo o qual, os valores de uma
determinada cultura são superiores às demais. Esta visão faz com
que os diferentes padrões culturais sejam analisados e classificados
em relação àquela cultura em específico.

BIBLIOGRAFIA INDICADA
BERTRAND, Maurice. A ONU. Petrópolis: Vozes, 1995.
HERZ, Mônica; HOFFMAN, Andréa R. Organizações Internacionais:
histórias e práticas. RJ: Elsevier, 2004.
RYAN, Stephen. The United Nations and international politics. New
York: St. Martins’s Press, 2000.
SEITENFUS, Ricardo. Manual das organizações internacionais.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003.
Site da ONU: www.un.org
Capítulo 3
A HEGEMONIA DOS ESTADOS UNIDOS
José Flávio Sombra Saraiva1

INTRODUÇÃO
O presente capítulo tem o objetivo, em primeiro lugar, de avaliar
o tema da hegemonia dos Estados Unidos da América desde suas
origens, nos estertores da Segunda Guerra Mundial, passando
pela sua consolidação ao longo da guerra fria, até seu esforço de
renovação nos últimos anos. Essa é uma matéria aberta aos
debates acadêmicos e práticos relativos às relações internacionais
do mundo contemporâneo. Tampouco é um assunto apenas
passível de ser avaliado com racionalidade científica. Posições
ideológicas e visões apaixonadas, em favor ou contra a
hegemonia norte-americana, estão sempre presentes quando
esse tema é avaliado.
O intento, nas páginas que se seguem, é o de organizar os
argumentos disponíveis, apresentá-los de forma crítica e prover os
elementos históricos e atuais essenciais à reflexão acerca das
condições em torno das quais a hegemonia foi gerada nas
relações internacionais do século XX e início do XXI. Deixar
espaço para a construção das opiniões e convicções é tarefa
importante na elaboração do trabalho acadêmico, nomeadamente
ante o difícil esforço de compreensão dos principais fenômenos
que abraçam a vida internacional do momento.
O segundo objetivo do capítulo é o de avaliar o impacto dessa
hegemonia ou da influência preponderante dos Estados na região
latino-americana. Ênfase será conferida ao caso brasileiro, tendo
em vista a relação histórica que aproxima e separa um país do
outro.
Nesse sentido, o texto encontra-se dividido em quatro tópicos
essenciais. No primeiro discute-se a dimensão histórica da
hegemonia norte-americana no planeta. Avalia-se a origem do
fenômeno e seus desdobramentos na chamada guerra fria. Na
segunda parte é analisada a atualização da hegemonia dos
Estados Unidos após a crise do socialismo real e da extinção da
União Soviética. A terceira parte lida as reações à hegemonia
americana durante a guerra fria e depois dela, com ênfase às
reações atuais ensejadas pelos países das regiões menos
avançadas economicamente ou de Estados continentais como a
China. Finalmente, na quarta parte, estudam-se as relações da
América Latina, especialmente do Brasil, com a potência
hegemônica nas Américas e no mundo.

A DIMENSÃO HISTÓRICA DA HEGEMONIA AMERICANA


O entendimento da hegemonia planetária dos Estados Unidos,
como hoje verificada, não pode ser alcançado sem um olhar sobre
o processo histórico que propiciou tal situação. Seu nascedouro
está umbilicalmente vinculado à grande crise do poder europeu
sobre o mundo ao longo da primeira metade do século XX.
O primeiro elemento dessa crise deriva da grande dificuldade
que os Estados europeus, inventores de uma primeira ordem
global por eles conduzida praticamente desde o século XIX,
tiveram para manter tal sistema depois da Primeira Guerra
Mundial (19141918). O declínio naval da Inglaterra e a regressão
econômica das potências européias, corroídas pelo esforço de
guerra, foram explorados pelos Estados Unidos. A perda gradativa
e profunda do poderio da Europa desde o colonialismo sobre a
África, Ásia e América Latina feneceu gradualmente no decorrer
dos anos seguintes ao término da Primeira Guerra.
Tais países, formuladores da ordem internacional liberal que
vinha sendo gradualmente criada, perderam espaço no controle
sobre suas colônias, protetorados ou regiões dependentes
econômica e politicamente dos centros europeus. Os britânicos,
que haviam exercido em nome da Europa certa hegemonia global
no século XIX, assistiam à perda de muitos navios mercantes e
tinham seu ritmo de construção naval limitado pelo esforço de
guerra. O endividamento inglês, especialmente ante a utilização
das reservas monetárias para o pagamento dos encargos da
guerra e da manutenção de um grande império planetário, levou o
país à quase falência.
Os Estados Unidos observavam a crise britânica com
apreensão. Era a nação que mais modernizara o capitalismo
justamente nos anos anteriores à guerra. Geraram fortunas nas
exportações de produtos que não eram possíveis serem
produzidos na Europa em conflito. Da mesma forma, a arrancada
norte-americana era, assim, sustentada na generosidade com a
democracia britânica, na defesa dos seus interesses comerciais e
na demonstração da sua força e da vontade de potência. Mesmo
com algum custo, os britânicos compreenderam o novo papel que
se desenhava para os Estados Unidos no plano internacional.
Churchill — o velho líder inglês que levara aliados à vitória —
percebera o declínio do velho império e a emergência da nova
potência atlântica.
Nascia assim, já nos anos 1940, um novo conceito: o de
superpotência. Os Estados Unidos criavam uma nova condição da
inserção internacional das nações no mundo contemporâneo. Sua
superioridade econômica, sua capacidade e sua vontade de
sobrepujar as potências européias tradicionais elevavam os
Estados Unidos para o coração das decisões internacionais. Essa
era uma forma diferente da idéia de hegemonia coletiva que
presidira até então o ordenamento internacional, sob o controle
dos europeus.
A partir de 1941, ante os movimentos japoneses de ruptura do
pacto com a União Soviética e da ocupação nipônica da
Indochina, os Estados Unidos voltaram-se para o Oceano Pacífico
também. Era o início de uma política de poder mundial.
Congelando os investimentos japoneses no país e interrompendo
as exportações de petróleo para o Japão, os norte-americanos
reforçaram a sua política de observação e monitoramento dos
espaços marítimos.
Simultaneamente, desenvolvia Roosevelt, o presidente norte-
americano de então, esforços para operacionalizar a aliança
atlântica com os britânicos. Churchill e ele encontraram-se para
conversações no navio Príncipe de Gales e no cruzador Augusta,
entre 9 e 12 de outubro de 1941, e assinaram a famosa Carta do
Atlântico, publicada em 14 de outubro.
Com seus oito pontos, a Carta do Atlântico era a exposição
pública do desejo hegemônico norte-americano, já durante a
Segunda Guerra Mundial. As definições da Carta falam por si
mesmo. Suas proposições eram:
• a impossibilidade de modificações territoriais contra os
interesses das populações envolvidas na guerra;
• o livre acesso aos mercados mundiais e aos mares;
• a autodeterminação dos povos (exceto para as situações
coloniais britânicas)
• o sistema de segurança permanente.
Os termos da Carta do Atlântico eram o prenúncio da entrada,
de forma definida e com vontade de poder, na caótica quadratura
das relações internacionais de então. O sexto ponto da Carta
engajava os Estados Unidos, de vez, na guerra européia. Depois
de exortar os povos à paz e à segurança, o texto fala da
“destruição final da tirania nazista”. Embora os norte-americanos
não fossem ainda juridicamente beligerantes, as conversações de
Churchill e Roosevelt representaram muito mais que o esforço da
aliança angloamericana.
Buscava Roosevelt, então, um pretexto mais claro para levar a
opinião pública do seu país para o seio da guerra. Os japoneses
ofereceram essa oportunidade. Depois do embargo petroleiro dos
Estados Unidos ao Japão e das tentativas diplomáticas lideradas
pelo príncipe japonês Konoye para resolver as diferenças por via
das negociações, os japoneses reacenderam a chama do
nacionalismo e das conquistas das regiões ricas em petróleo da
China e da Indochina.
Pearl Harbor, nas ilhas do Havaí, não era o pretexto procurado
por Roosevelt, que imaginava ataques japoneses nas Filipinas. O
ataque japonês à base norte-americana, em 7 de dezembro de
1941, comoveu a opinião pública norte-americana. 0s 86 navios
perdidos e mais de três mil homens mortos e feridos levariam os
Estados Unidos para o coração da Segunda Guerra Mundial. Em
dezembro de 1941, os Estados Unidos uniam as duas guerras
paralelas, a da Ásia e a da Europa, em uma só. Transformavam-
se, assim, no centro do mundo.
Assumiam os norte-americanos a responsabilidade
internacional de administrar a crise européia já referida, a
contenção da emergência do Japão na Ásia e o enfrentamento
direto do flanco oriental da guerra aos cuidados da União
Soviética. Nascia a política de superpotência. Os Estados Unidos,
enfim, ajustariam a condição de superpotência econômica que já
eram, de fato, à vontade política de intervir em forma planetária.
Emergia um novo ciclo hegemônico ao Ocidente, nos estertores
da Segunda Guerra Mundial.
Após a guerra, os Estados Unidos estavam prontos para o
exercício da sua hegemonia ocidental, como grandes vitoriosos e
patrocinadores da reconstrução da Europa destruída. Foi essa a
brecha para a busca da hegemonia global. O multilateralismo
econômico, uma necessidade que se impunha aos norte-
americanos diante da iminência de crise da produção industrial e
da recessão que elevara a população de desempregados de cerca
de 2,5 milhões para 8 milhões desde o final de 1945, só seria
possível com uma política de poder verdadeiramente mundial.
O novo conceito de superpotência correspondia, assim, à
conjugação da capacidade econômica de exercer forte
multilateralismo econômico com a vontade de construção de uma
grande área sob a influência dos valores do capitalismo. Para os
Estados Unidos, a política de poder mundial era um corolário dos
dois elementos anteriores. Os líderes democratas, mais que os
republicanos, tinham essa noção na segunda metade dos anos
40.
A hegemonia norte-americana no mundo não foi, portanto, uma
meta exclusivamente ideológica da nova diplomacia do presidente
Truman e seus auxiliares Marshall, Acheson e Kennan. As forças
mais profundas, que alimentaram a guerra fria, ao lado dos
Estados Unidos, foram constituídas no ambiente econômico. A
política industrial e financeira do girante associava-se à luta do
anticomunismo, ingrediente fundamental da prelação doméstica
da guerra fria.
A formulação de doutrinas hegemônicas, tanto no plano político
quanto no campo econômico, para contenção dos soviéticos na
esfera global foi, também, uma característica forte das décadas do
pós-guerra. Os planos econômicos de reconstrução das áreas
atingidas pela guerra mundial e consideradas vulneráveis à
influência soviética, assim como a constituição de uma grande
aliança militar ocidental, foram partes constitutivas de um único
objetivo dos Estados Unidos. Liderando um dos lados do
condomínio, a superpotência ocidental procurava assenhorear-se
de mais espaços econômicos, políticos e ideológicos no cenário
internacional do pós-guerra.
A Doutrina Truman foi a primeira clara formulação da
hegemonia política norteamericana, com caráter universalista, nos
tempos da guerra fria. Concebida às pressas, de maneira quase
atabalhoada, 1947, no contexto das dificuldades da Inglaterra em
manter a ajuda aos regimes anticomunistas instalados na Grécia e
na Turquia. A estagnação do velho império britânico, agravada
pelas contingências do racionamento e dos altos níveis de
desemprego e de desindustrialização, era visível. Sua capacidade
de intervir em questões internacionais foi reduzida enormemente.
O discurso do presidente Truman no Congresso foi uma peça
primorosa da dimensão messiânica que os Estados Unidos
conferiram ao seu novo lugar hegemônico. Insistiu o presidente
que todas as nações teriam que enfrentar uma escolha
fundamental entre duas formas de vida. A primeira, aquela que
primava pelas instituições livres e governos representativos. A
segunda, a sustentada na vontade da minoria sobre a maioria.
Para Truman, apesar de muitas escolhas não estarem sendo
conduzidas de forma livre, restava ainda a possibilidade de a
política exterior dos Estados Unidos apoiar os “povos livres que
estão resistindo ao jugo de minorias armadas ou pressões
externas”. A doutrina, fundamentada na concepção de lideranças
dos norte-americanos, expunha a crença de que se o país
fracassasse na missão haveria perigo à paz e à segurança da
nação.
A mensagem de Truman virou doutrina e associou-se à idéia de
uma declaração informal de desafio à União Soviética. Alguns dos
assessores de Truman trataram posteriormente de minimizar o
tom emocional da mensagem presidencial vinculando-a a uma
circunstância precisa. Na prática, no entanto, a força doutrinal das
idéias daquele discurso ecoou muitos anos depois na imaginação
política do gigante ocidental. Foi a Doutrina Truman a construção
discursiva mais importante da afirmação da hegemonia norte-
americana no século XX.
Mas ela ainda foi acompanhada por dois outros instrumentos. O
primeiro foi sua tradução econômica no Plano Marshall. O
segundo foi o desdobramento militar da liderança ocidental norte-
americana na guerra fria com a criação da Organização do
Tratado do Atlântico Norte (Otan).
O Plano Marshall, o apresentado em forma de aula inaugural na
Universidade de Harvard pelo secretário de Estado George
Marshall em 5 de de junho de 1947, foi o braço econômico da
Doutrina Truman. Marshall anunciou naquela ocasião uma série
de ações voltadas para a orientação da presença norte-americana
na reconstrução econômica da Europa Ocidental. O Congresso
reagiu cautelosamente ao projeto que prometia “ajuda às
instituições livres”, como definira o secretário.
Nada impediu, no entanto, que entre 1947 e 1951 fosse
implementado valor da ordem de US$ 17 bilhões, em valores da
época, para o revigoramento da Europa. O montante da ajuda
norte-americana no contexto do Plano Marshall, organizado em
torno de empréstimos vinculados à compra de produtos daquele
país e de outras modalidades de financiamento da produção
européia, permitira o soerguimento gradual da Europa Ocidental.
O desdobramento militar da hegemonia norte-americana na
guerra fria foi a criação da Otan, em 4 de abril de 1949. Expressão
estratégica da febre anticomunista das lideranças daquele país, a
Otan foi proposta por Truman para agrupar 12 nações ocidentais
em torno de um pacto de defesa contra as possíveis agressões
militares soviéticas.
Após intensos debates no Senado norte-americano, a criação
da instituição foi aceita pelo Congresso. O grande compromisso
dos Estados Unidos com a Otan foi o de promover a criação de
um certo escudo atômico sobre a Europa Ocidental. Eclipsavam
os norteamericanos e, de forma definitiva, as práticas
isolacionistas do passado.
Criada para reagir a qualquer ataque armado contra os
membros da aliança na Europa e na América do Norte, a Otan
estabelecia como princípio básico a defesa coletiva das liberdades
democráticas dos países capitalistas. O exagero da pregação
liderada pelos Estados Unidos justificaria o rearmamento da
Alemanha e o endurecimento das posições nacionalistas. O
alarme da iminente ameaça comunista, no entanto, nunca
correspondeu ao compasso dos fatos internacionais.
Quando Truman deixou a Presidência, no começo de 1953,
para cedê-la a Eisenhower, a guerra fria já havia assumido
proporções globais. A reforma da organização militar norte-
americana, que se havia estendido a um sistema mundial
unificado de defesa e a instituições de coordenação
internacionais, era acompanhada pela luta interna contra o
comunismo e pela criação de leis e instituições domésticas
adaptadas ao clima da guerra fria. A Lei de Segurança Nacional, o
Departamento de Defesa, a CIA e o Conselho de Segurança
Nacional expressavam o quanto a guerra fria alimentava o sistema
político norte-americano em suas ambições de polícia do mundo.
Foram essas as bases do exercício hegemônico dos Estados
Unidos desde o final da Segunda Guerra Mundial, passando por
todas as crises da guerra fria, até os fins do século XIX, em
contraste com a superpotência oriental, a União Soviética. A
queda do Muro de Berlim e o fim da União Soviética viriam,
apenas parcialmente, alterar o peso dos Estados Unidos nas
relações internacionais contemporâneas.
A RENOVAÇÃO DOUTRINÁRIA DA HEGEMONIA NO PÓS-GUERRA
FRIA
Dois fenômenos internacionais iriam alterar parte da balança de
poder internacional no final do século XX: a crise profunda da
experiência socialista na União Soviética e seus vizinhos na
Europa Oriental e a derrubada do Muro de Berlim, símbolo da
guerra fria. Que impacto esses fenômenos tiveram para a revisão
prática e doutrinária do esforço de afirmação da hegemonia norte-
americana no mundo?
Resta pouca dúvida que, durante a maior parte do pós-guerra,
os Estados Unidos detiveram claramente a hegemonia econômica
mundial e, em grande medida, também a hegemonia político-
estratégica sobre o Ocidente. A primeira era garantida pela
capacidade de exercer domínio sobre seus parceiros econômicos,
comerciais e tecnológicos. Instituições como o Fundo Monetário
Internacional, o Banco Mundial e o sistema do Gatt serviram a
esse desiderato. A segunda era garantida por um bem organizado
sistema de alianças regionais em várias partes do mundo.
Em todo caso, não se pode dizer que a hegemonia norte-
americana fosse tão universalista quanto a ideologia hegemônica
dos Estados Unidos propunha. A nova direção dada à busca de
universalismo na hegemonia americano padeceu do problema do
campo ideológico encerrado com a crise da União Soviética. O
final do século XX e início do século XXI assistiria ao fim do
experimento socialista como área articuladora de um sistema
socioeconômico concorrente ao domínio tradicional da área
capitalista e liberal liderada pelos Estados Unidos.
Assiste-se, de forma nítida, a partir dos anos 80, a uma grande
ruptura que levaria ao desmembramento do outro lado da
hegemonia norte-americana: a queda do peso geopolítico e
ideológico da União Soviética. A dissolução do sistema soviético,
cujas estruturas tinham sido consideradas relativamente rígidas
por parte do Ocidente, facilitou o fim da guerra fria e a transição
da bipolaridade rígida do sistema internacional para uma nova
situação de relativo equilíbrio entre velhas e novas potências. Mas
permitiu igualmente engendrar uma nova fase da hegemonia
norte-americana, desta vez ancorada na força da economia
política da globalização e da capacidade de agir dos Estados
Unidos, em forma planetária. E isso seria feito com base na sua
extraordinária plataforma científica e tecnológica, bem como no
redimensionamento de sua capacidade militar, estratégica e
econômica.
A queda do Muro de Berlim em outubro de 1989 e a chegada
de George Bush à Presidência dos Estados Unidos em 18 de
janeiro de 2001 se interligam. A primeira é o símbolo histórico do
fim da guerra fria. A segunda é o lançamento de um novo ciclo de
retomada da hegemonia norte-americana, sem um inimigo oriental
como fora a União Soviética, mas em favor do controle econômico
de fontes energéticas fundamentais ao capitalismo norte-
americano, ante a eventual elevação de novas formas de
contenção ao poder norte-americano no mundo, especialmente
vindo da Ásia.
Assiste-se, de janeiro de 2001 aos dias atuais, a uma nova
formulação gradualista, mas assertiva, de formulação de uma
nova doutrina hegemônica que foi posta em marcha, claramente,
a partir do ataque organizado por grupos islâmicos aos Estados
Unidos em 11 de setembro de 2001. A invasão do Afeganistão e a
tomada do Iraque pela força militar por parte dos Estados, com
ajuda de alguns poucos países, expressa a nova formulação
doutrinária da hegemonia norte-americana.
Sua base política está em certo “conservadorismo compassivo”,
conforme lançamento da campanha presidencial do Partido
Conservador ao poder presidencial nos Estados Unidos em
agosto de 2000. Sua base ideológica está nos chamados
neoconservadores que acompanharam a trajetória política do
presidente George Bush. Um deles, o vice-presidente Richard
Cheney, votou no Congresso norte-americano, antes de chegar ao
poder vice-presidencial, em favor da legalização das mortíferas
balas de uso criminal conhecidas como cop killer bullets, contra as
propostas de políticas de auxílio educativo às crianças, contra as
sanções ao apartheid sul-africano, além de ter dirigido ainda no
governo de George Bush (pai), na condição de seu secretário da
Defesa, a primeira guerra contra o Iraque.
As relações de Cheney com empresas como a Halliburton, uma
das maiores empresas norte-americanas de tecnologia para
exploração de petróleo, com vendas anuais da ordem de US$ 15
bilhões, em sua chegada à vice-Presidência, é elucidativa dos
novos contornos do exercício da hegemonia norte-americana no
contexto global. Encerrada a tensão ideológica anterior que
justificava a formação do colosso norte-americano para combater
o comunismo, a nova forma adquirida pela hegemonia —
seguindo a escola de pensamento de Cheney, Rumsfeld,
Wolfowitz, entre outros neoconservadores vinculados à
administração Bush — é a associação do controle das fontes
petrolíferas às novas formas de movimentações geopolíticas para
evitar desafios à sua hegemonia norte-americana.
Um dos meios para melhor afirmar a soberania e autonomia do
capitalismo norteamericano, braço essencial à preservação da
capacidade de agir de forma hegemônica no cenário internacional,
é a necessidade de manter e ampliar a rede de interesses
econômicos globais que alimenta a economia norte-americana.
Daí a associação de temas como o “combate ao terrorismo” às
táticas de contenção dos avanços dos interesses de acesso de
países de capitalismo mais atrasado, mas competitivos em vários
produtos de exportação, ao mercado estadunidense. A
experiência da Conferência de Comércio da Organização Mundial
do Comércio, em Cancun, no México, em 2003, foi emblemática
na associação, para a inteligência norte-americana no poder na
era Bush (filho), das dimensões econômica, política e estratégica
do novo conceito de hegemonia.

DESAFIOS À HEGEMONIA AMERICANA: A OUTRA SUPERPOTÊNCIA


NA GUERRA FRIA, O ÂNGULO EUROPEU, A GRADUAL ELEVAÇÃO
DA ÁSIA, O INTEGRISMO ISLÂMICO E A CONSTRUÇÃO DE ALIANÇAS
AO SUL
Mas nem tudo que é proposto de forma hegemônica é aceito
hegemonicamente por todos. Daí historicamente poder-se
observar desafios à hegemonia norte-americana no cenário
global. Tanto há uma fase na guerra fria na qual esse fenômeno
ocorreu, dentro e fora da disputa interimperial entre as
superpotências, quanto nas relações internacionais de hoje.
No primeiro caso, na fase da guerra fria, é visível que a
flexibilização da ordem bipolar foi também uma das características
marcantes daquele período. Apesar das grandes crises
internacionais presenciadas nos anos 50, 60 e 70 do século
passado, as duas superpotências já não operavam com os
princípios da guerra fria típica dos anos 40 e da primeira metade
dos anos 50. A coabitação pacífica, alimentada pela percepção da
capacidade destrutiva que carregavam com seus armamentos
atômicos, e as forças profundas que vieram alimentar os novos
movimentos nas relações internacionais evidenciaram a
imperfeição do modelo bipolar.
A coexistância pacífica, definida temporalmente entre 1955 e o
final dos anos 60, foi o segundo momento da ordem internacional
do pós-guerra. Outro, nos anos 70, seria já de relativa distensão
(détente) entre os Estados Unidos e a União Soviética. Por outro
lado, é evidente que a coexistência pacífica e a détente foram
momentos de um curso mais profundo em que sobressaía a perda
de importância relativa das superpotências nas definições do jogo
internacional.
É esta, certamente, a raiz da idéia de que pode haver certo
desafio à hegemonia norte-americana mesmo naqueles tempos
de guerra fria, da coexistência pacífica e de détente. Cinco
grandes movimentos realizaram-se na cena internacional
daquelas fases, com grande impacto na diminuição da capacidade
hegemônica dos Estados Unidos. São, a saber:
Em primeiro lugar, ocorreu a elevação do tom da fala da Europa
nas relações internacionais. O quadro dramático dos anos
imediatos veio sendo superado gradualmente na Europa. O êxito
dos investimentos e doações norte-americanas por meio do Plano
Marshall, associado à capacidade e à vontade de reconstrução,
lenta e declaradamente, levou a Europa para o coração das
relações internacionais nos anos 50 e início dos anos 60, até os
dias de hoje, com a conformação da União Européia.
Em alguma medida, a criação contínua européia permitiu, ao
longo de algumas décadas, o soerguimento do continente e a
reinserção ativa dos Estados europeus no coração das relações
internacionais contemporâneas, muitas vezes sem o
consentimento das vontades hegemônicas dos Estados Unidos.
Exemplos são muitos, historicamente. Embora sem contestar os
parâmetros da guerra fria, essa emergência da Europa colocava
novos desafios à ordem internacional, porquanto deslocava a
competição do terreno do liberalismo universal e ilimitado proposto
pelos Estados Unidos para o dos mercados organizados e, até
certo ponto, protegidos.
O segundo movimento de desafio à hegemonia norte-
americana emana da própria flexibilização intra-hegemônica
ocorrida ao longo dos tempos da guerra fria e mesmo depois. O
fim da cruzada redentora liderada pelos “fanáticos” da guerra fria
no imediato pós-guerra, descritos na primeira parte deste capítulo,
mudou gradualmente o perfil da política exterior dos Estados
Unidos. O experimento da Guerra da Coréia, bem como da Guerra
do Vietnã, mostrara que grande volume de bombas e maciços
investimentos na indústria do policiamento mundial não eram
suficientes para construir a legitimidade internacional da
hegemonia norte-americana. Essa mudança de percepção
apareceu, por exemplo, na administração Eisenhower, nos anos
1950, e, em certa medida, na administração Clinton, nos anos
1990.
O terceiro movimento de flexibilização e desafio à hegemonia
norte-americana vincula-se, em toda a grande fase de construção
do poder dos Estados Unidos na cena global do pós-guerra, aos
processos de descolonização dos povos e nações afro-asiáticas.
Surgiram novas constelações de países que não queriam ser, de
nenhuma maneira, encapsulados pelos tentáculos hegemônicos
da superpotência ocidental.
Foi esse um elemento crucial no novo cenário mundial. A
multiplicação repentina de um número de Estados com soberania
formal, ainda que muito atrasados sob o ponto de vista do
desenvolvimento industrial e nas condições sociais e distribuição
da renda interna, viria modificar gradualmente o quadro de poder
formal dos organismos internacionais como as Nações Unidas. A
politização ampliada dos organismos multilaterais foi uma
conseqüência natural das vontades de participação daqueles
países, em pé de igualdade jurídica, com as chamadas nações
fortes, as ex-metrópoles e também a força hegemônica dos
Estados Unidos. Inúmeros exemplos podem ser dados nessa
direção, desde os movimentos dos países autodefinidos como
“não-alinhados” aos Estados Unidos ou à União Sovética, bem
como às coalizões internacionais advindas do chamado “grupo
dos 77” ou mesmo mais recentemente nos novos esquemas de
coalizões ao Sul como o “grupo dos 20” ou o “G3”, entre outros.
Um quarto movimento, e que será desenvolvido na última parte
deste capítulo, mas que já merece menção na explicação, é o da
articulação própria de alguns países da América Latina —
chamada muitas vezes de “quintal” do exercício hegemônico pelos
Estados na história —, no sentido da busca de um modelo de
inserção autônomo em suas políticas exteriores.
A chamada “Política Externa Independente” (1961-1964) no
Brasil ou a política externa autonomista do presidente argentino
Arturo Frondizi (fins dos anos 1950 e início dos 1960) procuraram
mostrar que a América Latina começava a construir seus próprios
interesses na inserção internacional do período. Mesmo na área
nuclear, com o Tratado de Tlatelolco, que propunha a pesquisa em
área atômica apenas para fins pacíficos na região latino-
americana, houve certo desafio ao clube atômico dirigido pelos
Estados Unidos e União Soviética. A evolução da idéia de “quintal”
da superpotência hemisférica para uma noção moderna de
alinhamento negociado, pragmático, calculado foi uma conquista
conceitual dos movimentos de esforço de relativa independência
das políticas exteriores de países como a Argentina, o Brasil e
mesmo o México nos anos 1970.
Um quinto e último movimento, já importante nos anos 1960 e
1970, portanto antes do fim formal da guerra fria, e que arrefeceu
o ânimo hegemônico dos Estados Unidos, advém da formulação
diplomática e gradual do conjunto de regras internacionais
voltadas para a diminuição gradual do monopólio nuclear. O
bizarro equilíbrio nuclear, perpetrado na guerra fria, foi criticado
pela comunidade internacional. O medo generalizado, cristalizado
na opinião pública mundial, da iminência de uma terceira guerra
mundial, foi o substrato societário que levou líderes europeus e
das superpotências a chegar a certos acordos mínimos como o
Tratado de Não-Proliferação de Armas Nucleares (o TNP) ou os
planos Salt I e II.
Esses cinco movimentos, entre outros, juntos, interligados,
tenderam a atenuar o exercício hegemônico dos Estados Unidos
na guerra fria. Em alguma medida, tais aspectos amenizaram,
mesmo, a dicotomia entre os Estados Unidos e a União Soviética.
Permitiram abrir brechas para experiências de reacomodação de
forças e da balança de poder que seria gradualmente vertida para
mais flexibilidade e menos bipolaridade.
De certa forma, o mundo pós-derrubada do Muro de Berlim é
também caudatário dessas histórias anteriores, que seguem
trazendo conseqüências para o reordenamento global pós-guerra
fria. Novos movimentos, no entanto, vêm ganhando força nos
últimos anos em relação ao desafio da capacidade de agir dos
Estados Unidos no meio internacional.
Há, em primeiro lugar, um grande debate aberto em torno do
integrismo islâmico, ou seja, da forma em torno da qual as
múltiplas e diversas sociedades, no Ocidente, no Oriente Médio e
em partes da Ásia e da África, com grande força demográfica,
vêm reivindicando a defesa dos seus valores e da liberdade de
organizar o espaço do poder, da economia e da sociedade
diferente dos valores e das formas defendidas pela superpotência
hegemônica. Para vários autores, de correntes liberais e pró-
norte-americanos, essa é a nova guerra fria, esse é o novo muro
que separa as relações internacionais contemporâneas, o novo
foco de tensão internacional.
Sem valorizar em excesso essa tensão, há certamente um
desafio à hegemonia americana que vem dessas áreas e dessas
concepções. Países importantes do mundo islâmico se sentem
atingidos em seus objetivos e projetos de desenvolvimento ante a
volúpia hegemônica do governo Bush e eventualmente das
empresas e setores da sociedade norteamericana. Esse é um
debate carregado com forte tintura ideológica, mas que merecerá
melhor acompanhamento no pensamento crítico nos próximos
anos.
Em segundo lugar, há também uma força que emerge do
chamado Sul nas relações internacionais e que se relaciona à
forma inédita na qual grandes Estados ao sul do Equador, países
em desenvolvimento como a China, a Índia e o Brasil, mas
também países como a África do Sul, a Argentina, a Indonésia,
entre outros, vêm ensaiando e pondo em prática, coalizões e
alianças políticas com efeitos econômicos e políticos para a
hegemonia norte-americana.
Tema que também levará algum tempo para ser depurado, mas
com bastante relevância para a discussão epistemológica das
relações internacionais de hoje e que devem levar o pensamento
crítico à discussão de se a ordem internacional contemporânea,
tendente à polarização hegemônica em torno dos Estados Unidos,
não estaria assistindo a uma rápida mudança na direção
multipolar. Qual o peso de uma nova conformação geopolítica na
qual especialmente a China já estaria alcançando papel de grande
potência aglutinadora de satélites na Ásia?
Da mesma forma, qual o peso da Europa ampliada, apesar das
dificuldades que enfrenta para avançar seu projeto de integração?
Qual o peso do segundo conglomerado científico-tecnológico e
estratégico do mundo ante a hegemonia norte-americana? São
perguntas que deverão ser melhor estudadas, ao longo dos
próximos anos, para o melhor entendimento dos próprios limites e
do movimento, ascendente ou descendente, da hegemonia
exercida pelos Estados Unidos nas relações internacionais
contemporâneas.
O BRASIL, A AMÉRICA LATINA E A HEGEMONIA DOS ESTADOS
UNIDOS
Há uma vontade de restabelecer novos padrões de exercício da
hegemonia norte-americana na América Latina no início do século
XXI? Qual o peso do Brasil neste novo quadro? Essas são as
duas perguntas que a parte final deste capítulo procura tratar. O
quadro empírico para a observação são os dados, fatos e
discursos pronunciados por autoridades norte-americanas e latino-
americanas em visita recente ao ambiente regional.
A visita da secretária de Estado dos Estados Unidos ao Brasil,
em fins de abril de 2005, se insere no contexto de retomada do
interesse da política externa daquela superpotência em relação à
América Latina. A visita, um mês depois da estada de outra alta
autoridade daquele país — o Secretário da Defesa Donald
Rumsfeld, de forma bastante discreta, em Brasília — confirma
essa nova ênfase do segundo governo Bush em suas relações
com a região meridional das Américas.
Essa nova ênfase do governo norte-americana para o Brasil
não pode ser entendida sem localizá-la na retomada da própria
política latino-americana da segunda administração Bush. Na
primeira administração, por razões múltiplas, a América Latina
havia ficado menor no quadro de interesses da política externa
daquele país à luz dos esforços concentrados mais nas questões
atinentes aos desdobramentos do 11 de setembro e da guerra do
Iraque.
A ampliação do interesse gradual em relação à América Latina
nesse novo tempo tem dois objetivos:
• primeiro, reforçar os laços da presença dos Estados Unidos na
formação de uma opinião pública latino-americana mais
favorável à reinserção internacional daquele país na ordem
global, após os desgastes internacionais advindos da política
unilateral praticada no primeiro governo Bush e a crescente
onda de antiamericanismo que vem se observando
especialmente na região sul-americana;
• segundo, modificar o curso tático em relação aos novos
governos de cunho ideológico mais à esquerda, administrando
as diferenças para bem agir na região e estabelecendo certa
observância vigilante dos passos empreendidos por esses
estados, como a Venezuela, a Argentina, o Uruguai e o Brasil.

Por que o Brasil foi o epicentro da visita da secretária de


Estado norte-americana? Apesar de ter visitado outros dois países
da região, sempre por poucas horas, o Brasil, como ela mesma
insistiu em lembrar às elites brasileiras, é o lugar da ênfase da
revisão dos termos da política norte-americana para a região. As
razões são as seguintes:

• primeiro: o Brasil — apesar de não ser um país “plenamente


confiável” para os Estados Unidos por ter sempre agido,
historicamente, pela via do ensaio de brechas na hegemonia
norte-americana para poder ampliar seu espaço de manobra
internacional e aliviar suas vulnerabilidades e a dependência
econômica e política em relação à superpotência — apresenta-
se agora aos Estados Unidos como um país confiável. O Brasil
de Lula quer ser visto no mundo, mantendo uma relação cordial
e cooperativa com os Estados Unidos, como um país “baleia”
que passou a aceitar, de forma mais pública e natural, seu
esforço de apresentar-se à comunidade das nações como líder
da região sul-americana (a movimentação diplomática pela
formação do G4 e a obsessão pela entrada do Brasil como
membro permanente do Conselho de Segurança das Nações
Unidas exemplifica, sem dúvida, esse esforço de se fazer mais
presente na cena global);
• segundo: o Brasil — apesar do seu governo ter uma forte
bagagem ideológica no campo da esquerda — vem cumprindo
os contratos internacionais de refinanciamento da dívida
externa e vem ampliando os espaços de investimento confiável
da banca internacional controlada estrategicamente pelos
interesses norte-americanos, sem esquecer que a elevadíssima
taxa de juros do Brasil (a maior do mundo hoje, superior a da
Turquia e da Rússia) vem sendo um fator de atração de
investimentos dos chamados “capitais voláteis” e “investimentos
diretos” norte-americanos no país (o maior investidor isolado na
economia brasileira ainda são os Estados Unidos, conforme os
dados mais recentes do Banco Central);
• terceiro: o Brasil — na percepção dos tomadores de decisão
nos Estados Unidos na era Bush filho — vem exercendo um
fundamental papel de “estabilizador de potenciais conflitos” ou
“observador privilegiado confiável” nos conflitos já existentes na
região sul-americana, especialmente no caso da Venezuela,
mas também nos casos do Equador, Bolívia e, segundo plano,
no caso da Colômbia, no qual os Estados Unidos estão
particularmente envolvidos;
• quarto: o Brasil — apesar de sua auto-suficiência energética,
particularmente com o gigantismo econômico da Petrobras e
seus históricos esforços no campo hidroelétrico — vem
ampliando seus interesses no campo da ampliação da
capacidade estratégica na área energética, especialmente com
seus interesses no petróleo da Venezuela e no gás da Bolívia (a
maior empresa estrangeira nesse país é a Petrobras, o Brasil
produz cerca de 20% do PIB boliviano);
• quinto: o Brasil — apesar de não tratar mais o tema da Alca
como uma espada de Dâmocles e na forma do plebiscito do
“sim” versus o “não” — vem mantendo uma posição “bastante
reticente”, particularmente o setor do Itamaraty e menos o setor
do Ministério do Desenvolvimento e do Comércio Exterior
(MDIC), em relação à necessidade de acelerar negociações
nesse campo;
• último, embora nem menos importante: a preocupação norte-
americana em monitorar iniciativas brasileiras como a Cúpula
da América do Sul com os Países Árabes — temerosos de que
o evento se tornasse um libelo contra Israel e a ocupação norte-
americana do Iraque.

No que se refere ao tema da confiabilidade no Brasil e o


caminho que está sendo trilhado pela política externa do Brasil, os
Estados Unidos parecem relativamente satisfeitos com os
movimentos do Itamaraty. Mantém o Brasil a tradição não conflitiva
com os grandes interesses dos Estados Unidos na cena global,
procurando não irritar a diplomacia de Washington, mas enveredar
pelos próprios caminhos da defesa dos interesses do país.
A respeito do tema da estabilidade na região sul-americana,
parecem manifestar muita satisfação os norte-americanos pela
capacidade gerencial da diplomacia brasileira de administrar
crises acumuladas e em gestação na região. A movimentação do
Brasil, nesse sentido, além de reforçar a liderança brasileira na
região, não é incompatível com os interesses norte-americanos de
não se desgastarem mais em outras regiões do globo, após o
fiasco da invasão do Iraque. Em outros termos, o Brasil é quem se
desgasta, se for o caso, mas mantém a disciplina e a tranqüilidade
na região.
Na área econômica, parece ter demonstrado a secretária de
Estado grande contentamento com o encaminhamento da
estabilidade macroeconômica do Brasil, que viu seu PIB elevado à
condição de décima segunda economia do mundo em 2004,
elevando em três o ranking nas posições das grandes economias
globais, depois dos EUA, Japão, Alemanha, das economias
nacionais de grande porte, como as da França, Grã-Bretanha,
Itália e China, ao lado quase das economias do Canadá, da
Rússia, Índia, Coréia do Sul, Espanha.
No que tange ao tema petrolífero à formação do eixo
estratégico Brasil-Venezuela há preocupação por parte do
governo norte-americano. Ao mesmo tempo no qual reconhecese
o papel do Brasil de “estabilizador das crises domésticas” naquele
país e da capacidade mediadora já demonstrada, além de
“disciplinadora” dos excessos do presidente Chávez, a diplomacia
de Lula estaria indo além, protegendo Chávez, permitindo a
ampliação do raio de ação do presidente venezuelano, aceitando
mansamente a compra de armas e aviões (portanto a militarização
do regime anfictiônico bolivariano) por parte da Rússia e da
Espanha, bem como afiançando, pelo silêncio, as auspiciosas
relações bilaterais Cuba-Venezuela. Parece, nessa matéria, haver
diferenças entre o enfoque de Washington e de Brasília.
Com relação ao tema boliviano e equatoriano, a secretária de
Estado parece haver compreendido bem e até registrado, com
regozijo, o esforço brasileiro de não deixar as crises se
alastrarem, agindo rápido, reforçando os eixos de integração na
América do Sul não apenas no econômico, mas também na área
das conversações políticas de alto nível. O asilo político concedido
pelo Brasil ao ex-presidente Gutiérrez, do Equador, foi bem
recebido pela alta funcionária da administração Bush.

CONCLUSÃO
O capítulo procurou passar em revista, por meio de uma visão
evolutiva, os principais momentos da formação da hegemonia dos
Estados Unidos nas relações internacionais contemporâneas. A
ênfase à busca de objetiva histórica levou a que o autor não
deixasse de avaliar os movimentos anti-hegemônicos
empreendidos em diferentes temporalidades e regiões do mundo.
Destacou-se, em especial, o argumento de que a hegemonia
variou de tempo em tempo e teve suas proporções modificadas
em torno dos diferentes cursos históricos.
Apesar da guerra fria ter sido o momento crucial para o
exercício da forma mais conhecida da hegemonia exercida pelos
Estados Unidos no século XX, em contraposição à hegemonia
soviética, uma nova forma de hegemonia tomou conta da ação
externa daquele país no período pós-guerra fria. O capítulo
observou, em especial, a dimensão econômica e geopolítica
dessa nova forma hegemônica. Mas também a vinculou às
dimensões da política interna dos Estados Unidos, especialmente
ao grupo político que chega ao poder com o presidente George
Bush filho em 2001.
Ao final, a relação da hegemonia norte-americana com o
contexto latino-americano mereceu tratamento especial. Vários
aspectos recentes relativos ao novo interesse hegemônico da
superpotência hemisférica na região, em especial ante a gradual
ampliação de liderança brasileira no espaço sul-americano, são
avaliados.
QUESTÕES PARA DISCUSSÃO
1. Explique o surgimento da hegemonia dos Estados Unidos nas
relações internacionais contemporâneas, considerando a sua
evolução desde a guerra fria e até os nossos dias.
2. Explique a natureza das coalizões de países e dos
movimentos que procuram desafiar a hegemonia norte-
americana nas relações internacionais contemporâneas.

GLOSSÁRIO
Apartheid: regime político, econômico, social e jurídico que existiu
na África do Sul no século XX e que supunha que o
desenvolvimento deveria ser organizado em termos de segregação
racial.
Coexistência pacífica: momento da evolução das relações
entre os Estados Unidos e a União Soviética, nos anos 50 e parte
dos anos 60 do século XX, baseado na idéia da qual não se deveria
caminhar para confronto aberto entre as duas superpotências
nucleares sob a pena de destruição global.
Cop killer bullets: balas mortíferas e perversas que, utilizadas pela
polícia dos Estados Unidos, mas também por bandidos, causaram
mais vítimas entre os próprios policiais.
Détente: momento da evolução das relações entre os Estados
Unidos e a União Soviética, mas também envolvendo a Europa
Ocidental, de distensão política e direto controle dos arsenais
nucleares dos outros, além da promoção de uma política de
diminuição dos próprios arsenais.
Integrismo: filosofia que integra o Estado e a sociedade a Deus,
articulando a identidade do indivíduo entre esses três vetores.

BIBLIOGRAFIA INDICADA
FUENTES, Carlos. Contra Bush. Buenos Aires: Aguilar, 2004.
GADDIS, John Lewis. We now know. Rethinking cold war history.
Oxford: Clarendon Press, 1997.
MONIZ BANDEIRA, Luiz Alberto. As relações perigosas: Brasil-
Estados Unidos (de Collor a Lula, 1990-2004). Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2004.
KAGAN, Robert. Paradise & Power: America & Europe in the New
World Order. London: Atlantic Books, 2003.
SARAIVA, José Flávio S. (Org.), Relações Internacionais: dois
séculos de história — entre a ordem bipolar e o policentrismo (de
1947 a nossos dias). Brasília: Ibri, 2001.
Capítulo 4
A EUROPA, SEUS ORGANISMOS E SUA
INTEGRAÇÃO POLÍTICO-ECONÔMICA
Antônio Carlos Lessa*

INTRODUÇÃO
A União Européia é atualmente uma entidade formada por 25
países, que comporta cerca de 500 milhões de pessoas, e se
estende por quase 4 milhões de quilômetros quadrados, nos quais
são faladas mais de 20 idiomas. É um dos maiores mercados
consumidores do mundo, tendo o terceiro maior padrão de vida,
atrás apenas dos Estados Unidos e do Japão. É uma economia
tão grande, rica e complexa quanto a norte-americana, sendo os
seus produtos internos brutos equivalentes. As suas importações
e exportações correspondem a um quinto do total das correntes
do comércio internacional.
Em poucas palavras, a União Européia é uma verdadeira
superpotência dos dias atuais, com condições de influenciar de
modo decisivo os rumos políticos e econômicos das relações
internacionais contemporâneas. Por isso, o estudo da dinâmica de
integração que se processa no continente europeu desde os anos
50 do século XX é verdadeiramente estratégico. Como se
construiu essa extraordinária história de sucesso? Como o
continente que saiu destruído da maior guerra da história
contemporânea pôde se transformar nesta potência? Quais os
desafios que o futuro guarda para os europeus? Quais lições
podem ser aprendidas com a experiência européia?
Neste capítulo, propõe-se uma apresentação geral da evolução
do processo de integração na Europa, o que se fará à medida em
que se comenta o nascimento das instituições que hoje compõem
a estrutura organizacional da União Européia, e os processos de
negociação dos seus tratados constitutivos.
UMA IDÉIA DE EUROPA — OS PRIMÓRDIOS DA INTEGRAÇÃO
A idéia da união da Europa se confundiu durante muito tempo
com a da própria organização do mundo, em uma assimilação que
então se justificava pelo fato de que no Velho Continente se
resumiam o mundo conhecido e o mundo útil. As primeiras
iniciativas de organização de uma ação comum voltada para a
segurança e a concertação política na Europa surgiram apenas no
século XIX, forma que é melhor representada pelo arranjo da
Santa Aliança produzido no Congresso de Viena (1815). Esse
mecanismo de equilíbrio de poderes, entretanto, foi posto a prova
quando as grandes potências européias se enfrentaram, como
aconteceu em 1870, na guerra entre a França e a Prússia e
sobretudo, em 1914, quando eclodiu a Primeira Guerra Mundial.
Nos anos seguintes ao primeiro conflito mundial, o problema da
organização da integração européia como solução para a
repetição das guerras que impediam a prosperidade começou a
ser mais claramente percebido, mas foi necessária ainda uma
outra guerra, muitas vezes mais destrutiva do que a primeira, para
que os lideres europeus se convencessem definitivamente de que
o futuro da Europa passava pela cooperação política e econômica.
Três importantes visões sobre o processo de cooperação entre
os Estados podem ser identificadas. Havia o grupo que estava
convencido de que só tomando a iniciativa política de criar um
sistema federal inspirado nos Estados Unidos da América, por
exemplo, com um controle único sobre os assuntos externos e a
defesa, se poderia criar uma forma de governo que pudesse
proporcionar segurança suficiente para a prosperidade dos países
do continente. Um outro grupo defendeu uma abordagem
funcional, mais pragmática, considerando que os problemas
econômicos comuns exigiam respostas comuns e, portanto, uma
aproximação que se faria gradualmente, por setores, e que criaria
finalmente as condições necessárias para o estabelecimento de
uma Europa unida. O terceiro grupo relutava em aceitar a
centralização de autoridade ou soberania, pelo menos na esfera
econômica, e visava uma maior unidade no continente por meio
da cooperação mais estreita entre os governos, preferindo
arranjos intergovernamentais aos supranacionais. Essas três
abordagens coabitaram e raramente uma delas esteve ausente
nas decisões mais importantes tomadas acerca da integração
política e econômica da Europa Ocidental.
Um impulso fundamental para a cooperação entre os Estados
da Europa Ocidental foi dado pelo governo norte-americano,
preocupado com a instabilidade política produzida pela destruição
produzida pela Segunda Guerra Mundial. Em 1947, o governo dos
Estados Unidos propôs aos governos dos países europeus o
aumento da ajuda financeira para reconstrução, com o
lançamento do Plano Marshall. Entretanto, os norte-americanos
impunham uma condição: os Estados beneficiários deveriam
participar de uma instituição encarregada da gestão coletiva da
ajuda e da elaboração de um programa de reconstrução europeu,
que foi criada em abril de 1948 com o nome de Organização
Européia de Cooperação Econômica (Oece), da qual tomaram
parte Áustria, Bélgica, Dinamarca, França, Grécia, Irlanda,
Islândia, Itália, Luxemburgo, Noruega, Países Baixos, Reino
Unido, Suécia, Suíça e Turquia. Dois outros Estados seriam
posteriormente admitidos na organização: a República Federal da
Alemanha (RFA) em 1955 e a Espanha, em 1959.
Ao mesmo tempo em que ganhavam corpo os primeiros
arranjos de cooperação para a reconstrução, se fazia sentir o
clima de crescente tensão entre os Estados Unidos e a União
Soviética. Desse modo, a cooperação para a reconstrução
européia não poderia dizer respeito exclusivamente à ordem
econômica, mas também aos assuntos militares e, por isso, novas
alianças foram concluídas, ligando os EUA e a maior parte dos
países da Europa Ocidental, destinadas a assegurar a segurança
coletiva no continente. Desse modo, novas organizações foram
criadas tendo por objetivo principal a cooperação nos assuntos de
defesa e de segurança, como a “União Ocidental”, criada em
fevereiro de 1948, reunindo a França, o Reino Unido, a Bélgica, os
Países Baixos e o Luxemburgo, e como a Organização do Tratado
do Atlântico Norte (Otan), criada em abril de 1949, liderada pelos
Estados Unidos, na qual tomavam parte a França, a Grã-
Bretanha, a Bélgica, os Países Baixos, o Luxemburgo (os cinco
parceiros da União Ocidental), e ainda pelo Canadá, Dinamarca,
Islândia, Itália, Noruega e por Portugal.
Surgia gradualmente a idéia de que os graves problemas
econômicos enfrentados pelos países da Europa Ocidental, que
eram em grande medida comuns, poderiam ser melhor resolvidos
pela unificação progressiva de ações. O mais importante desses
problemas econômicos eram as indústrias do carvão e do aço
francesa e alemã, evidentemente fundamentais para a
reconstrução econômica, que eram geograficamente contíguas
mas nacionalmente separadas. Tendo isso em mente, o ministro
dos Negócios Estrangeiros da França, Robert Schuman,
apresentou em 9 de maio de 1950 um plano para a exploração
conjunta dos recursos do carvão e do aço da Europa Ocidental
sob uma autoridade única e a criação de um mercado único.
O Plano Schuman, como ficou conhecido, procurava conciliar
soluções técnicas tanto sobre a exploração do carvão e do minério
de ferro (que diziam mais respeito à Alemanha, por conta do Ruhr
e do Sarre, e à França, devido à Lorena — todos grandes pólos
produtores de minério e também centros siderúrgicos importantes)
quanto às indústrias pesadas da Bélgica e do Luxemburgo. No
Plano adotava-se a abordagem gradualista, que defendia
realizações concretas, mesmo que no início fossem limitadas, mas
que permitissem a criação de uma solidariedade de fato entre os
países que tomassem parte da iniciativa. Tal realização consistiria,
no caso, da implementação de uma indústria pesada comunitária,
que deveria ser o elemento propulsor de uma comunidade maior e
mais profunda.
A RFA, a Itália, a França e os países membros do Benelux
(Bélgica, Países Baixos e Luxemburgo), acolheram o Plano
Schuman com entusiasmo, e o Tratado instituindo a Comunidade
Européia do Carvão e do Aço (Ceca) foi firmado aos 18 de abril de
1951 em Paris, instaurando um mercado comum progressivo do
carvão e do aço, implicando, em conseqüência, a supressão de
direitos alfandegários, de restrições quantitativas à livre circulação
desses bens, de medidas discriminatórias e de subsídios ou
ajudas de qualquer natureza eventualmente acordadas pelos
Estados membros aos produtores nacionais. O Tratado de Paris
que estabelecia a Ceca entrou em vigor em 25 de julho de 1952.
A importância da Ceca foi fundamental, tendo em vista que o
elemento supranacional preponderava, parecendo romper as
resistências em torno de medidas que levassem a algum tipo de
transferência de soberania: o poder executivo estava nas mãos de
uma Alta Autoridade, que representava os interesses da
Comunidade no seu todo e que não podia ser dissolvido pelos
representantes dos governos que tomavam parte na iniciativa,
reunidos no Conselho de Ministros. A conclusão bem-sucedida
das negociações da Ceca deu enorme impulso à causa
federalista, ao passo que o anterior sucesso da Alta Autoridade
deu um peso considerável à abordagem funcionalista da
integração.
Os êxitos da negociação da Ceca, combinados com a crescente
ameaça da URSS, e em particular pela eclosão da Guerra da
Coréia (1950), levaram, pela primeira vez, a uma tentativa de
estabelecer organizações supranacionais mais ambiciosas,
especialmente na área da defesa e da política externa. Entretanto,
o projeto que resultou dessa iniciativa, denominada Comunidade
Européia de Defesa (CED), de natureza federalista, foi rejeitado
pelas opiniões públicas dos Estados membros em 1951.
Com o fracasso da CED, percebeu-se que existia ainda uma
forte resistência às propostas de cooperação que diminuíssem a
soberania nacional, com a constituição de mecanismos
supranacionais, o que acabou postergando o processo de
cooperação nas áreas vitais da defesa e da política externa, e
empurrando os parceiros envolvidos para o aprofundamento da
sua participação em arranjos mais familiares e que oferecessem
margens menores de risco, seja pela sua natureza
intergovernamental, seja pela qualidade dos atores envolvidos e
pela autoridade que neles exerciam, como a Otan, por exemplo.
Por outro lado, esses contratempos acabaram por conduzir a uma
nova ênfase na abordagem funcionalista da integração, que era
naturalmente mais pragmática — porque criava a solidariedade
em torno de questões importantes, mas não vitais, enquanto ia
produzindo gradualmente compromissos nos parlamentos, nos
organismos dos Estados e nas opiniões públicas nacionais tanto
com a causa da integração quanto com a necessidade de
aprofundá-la para enfrentar os problemas comuns.

OS TRATADOS DE ROMA E A CRIAÇÃO DA COMUNIDADE


ECONÔMICA EUROPÉIA
Quando os chefes de governo dos seis países que formavam a
Ceca (França, RFA, Itália, e mais os três membros do Benelux) se
reuniram em Messina, na Sicília, em junho de 1955, o ânimo da
integração da Europa estava diminuído pela derrota do projeto da
CED. Naquela oportunidade, os governos dos países do Benelux
propuseram um projeto que poderia propiciar o relançamento da
integração regional, na forma da criação de um mercado comum
amplo, caracterizado pela livre circulação de bens, capitais e de
mão-deobra. Propunha-se um programa amplo de integração, que
poderia incluir a organização comunitária da utilização pacífica da
energia nuclear, o desenvolvimento do comércio de energia
convencional e atômica, a organização de uma rede européia de
vias de transporte e, eventualmente, a preparação progressiva de
um mercado comum sem direitos alfandegários, quotas e licenças
de comércio. Nos meses seguintes, de intensa negociação,
definiu-se a criação de duas comunidades regionais — a
Comunidade Econômica Européia (CEE) e a Comunidade
Européia de Energia Atômica (Euratom), cujos tratados foram
assinados em Roma em 25 de março de 1957, ratificados pelos
parlamentos de todos os Estados membros entre setembro e
dezembro daquele ano, e entraram em vigor em 1o de janeiro de
1958.
O tratado que instituiu a Comunidade Econômica Européia
(CEE), um dos marcos fundamentais do processo de integração
da Europa, tinha por objetivo principal criar um mercado comum
entre os paises que dele tomavam parte, promovendo um
desenvolvimento harmonioso das atividades econômicas, a sua
expansão contínua e equilibrada, a melhora acelerada do nível de
vida das suas populações e, evidentemente, “relações mais
estreitas entre os Estados europeus”. O mercado comum
estabelecia uma união aduaneira, que acabava com os direitos
alfandegários e com outras restrições ao comércio entre os
membros, erigindo uma tarifa externa comum — medidas que
entrariam em vigor progressivamente, ao longo de um período de
transição de 12 anos. A criação do Mercado Comum Europeu
(MCE) levaria também à abolição de outros obstáculos, como
aqueles que existiam na circulação de trabalhadores, dos bens e
serviços e dos capitais entre os Estados membros, além do
estabelecimento de condições favoráveis à livre concorrência,
ficando proibidas formas danosas de proteção, discriminação e de
associação entre as empresas nacionais. Por fim, a grande
inovação do Tratado era o estabelecimento de políticas
comunitárias, e com ele já se instituía uma política agrícola.
O segundo Tratado de Roma criava a Comunidade Européia de
Energia Atômica (Euratom), que tinha o objetivo de facilitar a
formação e o crescimento de uma indústria nuclear européia,
buscando desenvolver uma política de pesquisa e difusão de
conhecimentos, regulando o fornecimento de matérias-primas
nucleares e incentivando investimentos públicos e privados no
desenvolvimento da capacidade de produção da indústria comum
que vinha a ser criada.
Os dois tratados inovaram no desenho institucional e
demonstravam a preocupação de evitar que diferenças
fundamentais entre os Seis parceiros viessem a surgir no
gerenciamento das novas comunidades ficando, por isso, o
elemento supranacional mais limitado do que sob a Ceca.
Estabeleciam-se estruturas administrativas que se assemelhavam
a uma espécie de Poder Executivo comunitário, que eram
denominadas Comis sões, independentes dos governos
nacionais. Nas novas comunidades, o Conselho de Ministros,
organismo intergovernamental, tinha um controle maior sobre a
tomada de decisões e sobre as Comissões.
Havia a crença de que o mercado comum conduziria de
maneira mais eficaz à integração gradual das economias dos
Estados-membros, e para sublinhar esse aspecto, os Tratados de
Roma foram além dos aspectos “negativos” da integração, que
são o simples desmantelamento de barreiras comerciais,
sugerindo por outro lado um modo de integração “positiva”, que
ganharia a forma de políticas comunitárias em vários campos,
sendo o mais importante o da agricultura.

REDEFINIÇÃO INSTITUCIONAL E ALARGAMENTO


Com o aprofundamento da cooperação econômica no contexto
da CEE, começaram a surgir com maior frequência diferenças de
percepções entre os governos da França, da RFA, da Itália, e dos
paises do Benelux quanto à intensidade da integração, uma vez
que a natureza e o papel das instituições comunitárias começaram
a ser duramente criticados, justamente porque avançavam sobre
assuntos que sempre foram prerrogativas dos governos nacionais,
tais como as regulamentações de mercados. É certo que, com o
avanço do processo integracionista, a unificação das instituições
supranacionais e intergovernamentais seria natural, mesmo
porque elas foram concebidas e mantidas separadas muito mais
em função do contexto político em que foram criadas do que
devido à falta de crença de que poderiam efetivamente funcionar.
Era necessário unificá-las e emprestarlhes mais capacidade de
ação — e foi essa a decisão tomada pelo tratado de 8 de abril de
1965, assinado em Bruxelas.
Por outro lado, a simples decisão de buscar a fusão das
instituições comunitárias não desfez os obstáculos que surgiram
— por exemplo, se estavam sendo unificadas estruturas com
poderes e liberdades de ação tão diferentes, como aqueles que
detinham a Alta Autoridade da Ceca e as Comissões da CEE e da
Euratom, qual seriam os graus de independência que
prevaleceriam? Além disso, como lidar com a divisão das sedes
das novas estruturas — ou seja, a quem atribuir o status de capital
da Europa? Como seriam nomeados os membros da Comissão e
como se daria a alternância entre os súditos dos diferentes
Estados membros? Em virtude do desacordo em torno dessas
questões, o Tratado de Bruxelas de 1965, e a conseqüente fusão
dos executivos comunitários, entrou em vigor apenas em julho de
1967, com considerável atraso com relação à data prevista.
Apesar da discussão sobre a organização institucional e do
processo decisório nas comunidades, os governos dos Seis
países que delas tomavam parte concordavam que ainda existiam
motivos suficientes para que os Estados membros
implementassem, finalmente, a união aduaneira e a Política
Agrícola Comum. Assim, em abril de 1966 foi tomada decisão
consensual acerca dessas duas etapas fundamentais da
construção da Europa, que acertava os passos para a sua
implementação, devendo ambas entrar em vigor em julho de
1968.
O debate sobre os limites dos arranjos intergovernamentais e
sobre a supranacionalidade fez com que as discussões sobre o
aprofundamento ficasse paralisado, até que em 1969 se decidiu
retomá-las, justamente no momento em que tinha fim o período de
transição previsto para a plena entrada em vigor de todas as
instituições comunitárias, inclusive dos regimes de financiamento
e de algumas das políticas comuns. Assim, se propôs a
continuação da integração, com a definição de novas políticas
comuns, em novos campos, como o da política financeira e
monetária, ciência e tecnologia, direito das sociedades e
concorrência, o que se deu em uma nova conferência, que
reuniria os chefes de governo dos Seis parceiros, na cidade de
Haia (Holanda).
A Conferência de Cúpula de Haia, realizada entre 1o e 2 de
dezembro de 1969, marcou o relançamento da Europa em grande
estilo. Lá se discutiram as necessidades de concluir os processos
em aberto, como a definição das disposições para o financiamento
da PAC, aprofundar a integração, tendo em vista a criação de uma
união econômica e monetária e, finalmente, alargar a
Comunidade, admitindo a abertura de negociações com outros
países que quisessem aderir à integração. A “conclusão” da
Comunidade, particularmente, tomou a forma do acordo dos
Estados membros relativo ao financiamento de novas políticas e
da própria estrutura comunitária, e reinseria a questão do controle
parlamentar. Para além da conclusão, no entanto, e além das
disposições pormenorizadas do Tratado de Roma, os chefes de
governo negociaram em Haia duas metas principais: a união
econômica e monetária e posteriores passos no sentido da união
política.
Os governos dos Seis encontraram grandes dificuldades para
dar prosseguimento à integração pela via da união econômica e
monetária, o que se devia principalmente à conjuntura econômica
internacional, caracterizada especialmente pelas transformações
do sistema financeiro internacional a partir de 1971, nada propícia
para iniciativas dessa natureza. Por outro lado, rápidos e
importantes progressos foram feitos em uma dimensão vital para
uma aproximação da idéia de união política, com o
estabelecimento de um mecanismo de concertação política para
coordenar as ações externas dos parceiros, que se estruturava
em torno de reuniões semestrais nas quais se procederia à
revisão da cena internacional, e se ensaiaria a conjugação de
atitudes e, eventualmente, o empreendimento de ações comuns.
O terceiro elemento do compromisso de Haia foi o alargamento
da Comunidade, que deveria dar-se com a demonstração de
disposição para incluir novos membros no processo europeu de
integração, como previa o artigo 237 do Tratado do Mercado
Comum, o artigo 98 do Tratado da Ceca e o artigo 205 do Tratado
da Euratom, que permitiam aos parceiros estabelecer
negociações para novas adesões. Desse modo, negociações com
a Grã-Bretanha, a Dinamarca, a Irlanda e a Noruega foram
iniciadas em junho de 1970 e, um ano depois de iniciados os
entendimentos, chegou-se a acordo em relação à maior parte das
questões mais importantes, sendo o Tratado de Adesão assinado
aos 22 de janeiro de 1972 em Bruxelas. A 1o de janeiro de 1973, o
Reino Unido, a Dinamarca e a Irlanda tornavam-se os novos
membros da CEE, que passava, então, a ter nove membros
(Comunidade dos Nove — os seis membros “fundadores”, que
eram a França, a RFA, a Itália, a Bélgica, os Países Baixos e o
Luxemburgo, agora acrescidos da Grã-Bretanha, da Dinamarca e
da Irlanda), tendo o povo norueguês rejeitado a entrada em
referendum realizado em 26 de setembro daquele ano. A Europa
integrada, que aumentada com as adesões dos novos membros,
era no início dos anos 70 uma impressionante estrutura
econômica, com pouco mais de 250 milhões de habitantes, e
surgindo já como o mais importante pólo dinâmico do comércio
internacional.

O EUROPESSIMISMO
Com a conclusão das negociações de alargamento, a CEE
parecia preparada para um novo período de “desenvolvimento
positivo”, ou seja, de aprofundamento. Era necessário firmar um
plano de ação para a Comunidade dos Nove que, evidentemente,
tinha problemas e velocidades essencialmente distintas daquelas
da Comunidade que se construiu nos 20 anos precedentes. Para
definir esse plano, o presidente da França, Georges Pompidou,
convocou uma Cúpula de Chefes de Estado, que aconteceu em
Paris em 19 de outubro de 1972.
Foi a primeira vez que os representantes dos Estados membros
da nova Comunidade se encontraram, mas as propostas
apresentadas foram ainda mais ambiciosas do que as que saíram
da Conferência de Haia realizada em 1969. Estabeleceu-se em
Paris um denso programa de ação, que evidenciava novas
preocupações e prioridades: declarava-se a irreversibilidade da
união econômica, e definiu-se uma política especial de
desenvolvimento regional de ajuda às regiões menos
desenvolvidas ou em declínio dos Estados membros, que se
somaria a outras novas políticas setoriais nas áreas industrial, de
desenvolvimento científico e tecnológico, de energia e de meio
ambiente. Todas as novas políticas deveriam culminar, por volta
de 1980, na arrojada meta de construir uma verdadeira “União
Européia”.
É certo que as expectativas em torno do futuro da construção
da Europa eram grandiloqüentes ao final da Conferência de
Cúpula de 1972 — afinal, o clima de otimismo generalizado fazia
crer que aquele era o início do nascimento da “superpotência”
Europa. Entretanto, o grande salto proposto na Conferência de
Paris foi quase imediatamente paralisado por nova crise
econômica internacional que teve impactos tão importantes para
as economias nacionais em todos os níveis e que abriu
imediatamente um período de pessimismo generalizado.
O início dos anos 70 é lembrado pelo choque de outubro de
1973, provocado pelo súbita elevação dos preços internacionais
do petróleo pelos países produtores (em torno de 70%), marcando
o início da grande crise econômica que se arrastou até os anos
80. Os problemas criados pela recessão e as mudanças no
sistema econômico internacional foram persistentes e tiveram um
impacto direto no desenvolvimento político e econômico da
Comunidade, porque os três principais problemas engendrados
pela crise do início dos anos 70, o da reestruturação, o do
desemprego e o da inflação crescente, foram atacados em grande
parte em bases individuais e não comunitárias.
Apesar do sentimento de crise econômica e do pessimismo
generalizado, tanto o governo alemão, como o francês, estavam
convencidos de que as dificuldades poderiam ser vencidas, mais
uma vez, por um novo esforço de relançamento. Para tanto,
convocouse uma nova Cúpula de Chefes de Estado e de
Governo, que se realizaria, como aquela de dois anos antes, em
Paris, para os dias 10 e 11 de dezembro de 1974, com o objetivo
de transformar o conjunto das relações entre os Estados
membros. Um dos resultados dessa conferência foi a avaliação de
que a transformação qualitativa pela qual deveria passar a
Comunidade para a construção de uma verdadeira união entre os
parceiros passaria pelo reforço da eficácia, legitimidade, coerência
e, particularmente, da autoridade das instituições comunitárias.
Estava evidente que os poderes e competências das diferentes
instâncias poderiam ser melhor desenvolvidos — portanto, na
mesma medida em que propunha o reforço da autoridade política
do presidente da Comissão, indicava a necessidade de atribuir
aos chefes de Estado e de governo um papel mais atuante, o que
se deve à sua qualidade intrínseca de detentores da legitimidade
européia. Propunha-se, portanto, uma transformação qualitativa
da Comunidade que não poderia evoluir para um desenho
institucional superior se não fossem criadas condições para o
estabelecimento de políticas comuns nas áreas típicas e
representativas da própria soberania estatal, ou seja, segurança e
política externa. Nesse sentido, a unificação dos órgãos de ação,
que refletiam originalmente um sistema de decisão que equilibrava
instâncias de natureza supranacional com outras de composição
intergovernamental, foi um avanço considerável.
A fusão das Comissões da Alta Autoridade da Ceca, da
Comissão do Mercado Comum e da Euratom permitiu a
confirmação da independência dos órgãos executivos inscrita nos
tratados fundadores, e reafirmada no Tratado de Paris. Por
transformações fundamentais também passou o Parlamento
Europeu. Desde a sua criação como instituição comunitária em
1951, como Assembléia da Ceca, o Parlamento era composto por
representantes dos legislativos dos Estados membros, por eles
escolhidos de acordo com procedimentos nacionais. Tal fórmula
se justificava enquanto as opiniões públicas nacionais não
estivessem preparadas para eleger os seus representantes na
instituição, mas a percepção de que os sistemas políticos dos
diferentes países estavam prontos para o sufrágio direto foi
consagrada na Cúpula de Paris de 1974, quando abriu-se a
perspectiva de eleições diretas a partir de 1978.
A entrada em vigor do Sistema Monetário Europeu (SME) no
dia 13 de março de 1979, também mostrou ser um marco
significativo na construção da Europa, mesmo considerando que o
sistema monetário internacional continuasse dominado pelo dólar
norte-americano e influenciado pela crise econômica dos anos
1970. A decisão de criar o SME partia da percepção de que a
sucessão de crises, além do efeito negativo na estabilidade das
taxas de crescimento econômico, acabara também com a crença
na estabilidade das taxas de câmbio, marcada pelo
enfraquecimento gradual do dólar, caracterizado por suas
repetidas desvalorizações a partir de 1971. No centro do sistema
que foi criado pelo SME estava uma moeda escritural,
estabelecida como meio de liquidação entre os bancos centrais
nacionais, denominada ECU (sigla de European Currency Unit ou
Unidade Monetária Européia) que funcionaria como o
denominador do mecanismo da taxa de câmbio e dos
mecanismos de crédito.
Ao longo da década de 1970, a cooperação política européia
efetivamente não caminhou para a formação de uma política
externa comum, mas tornou-se um fator muito importante nas
políticas externas de todos os Estados membros. Desde a guerra
do Yom Kippur, que opôs Israel e países árabes em 1973,
produzindo efeitos colaterais para toda a comunidade
internacional, cuidou-se de proceder a uma concertação política
mais íntima. Em alguns casos, a cooperação iniciada sobre temas
de política externa, tradicionalmente uma das áreas de mais difícil
convergência na história da construção da Europa, evoluiu de
modo extremamente satisfatório, sendo possível vislumbrar, ao
final dos anos 1970, “embriões” de uma ação internacional
comunitária, ainda que bem delimitados a certos temas, como as
questões do Oriente Médio e as relações dos países europeus
com os EUA. Para tanto não há dúvida que contribuíram o
desenvolvimento de rotinas mais precisas, que ganhavam a forma
de um sistema flexível de consultas consolidadas nas reuniões
dos ministros de Negócios Estrangeiros (a primeira com esse
objetivo realizouse em Munique aos 19 de novembro de 1970).
Além disso, a repetição das Cúpulas de Chefes de Estado dava
densidade política ao processo de consolidação das instituições
comunitárias e permitia, a cada novo encontro, o lançamento de
novas iniciativas para o aprofundamento da integração. A
institucionalização dessas cúpulas em 1972 permitiu a criação de
uma câmara de ressonância em que se construíam respostas
consensuais sobre pontos importantes da agenda internacional,
emprestando também visibilidade para as questões que eram
objeto de discussão e deliberação por parte dos chefes de
governo reunidos.
Alguns processos ligados ao aprofundamento da Europa
estavam certamente em aberto, como o da constituição de uma
união de Estados, mas os nove parceiros não estavam fechados
às negociações para a ampliação da Comunidade. Por isso, a
paralisia aparente da construção européia teve fim com as
negociações para a admissão da Grécia como membro pleno das
Comunidades. As negociações tiveram início em julho de 1976, e
a Grécia foi admitida como membro pleno da Comunidade
Européia em 1981.
A Comunidade dos Dez (composta pela França, Itália, RFA,
Bélgica, Países Baixos, Luxemburgo, Grã-Bretanha, Dinamarca,
Irlanda e, a partir de então, Grécia) passava a carregar consigo a
disparidade de níveis de desenvolvimento econômico e social
cada vez mais profunda, que pela primeira vez criava um fosso
que separava os Estados membros. É verdade que os níveis de
desenvolvimento desiguais não foram um obstáculo até aquele
momento para a admissão de novos parceiros, uma vez que a
Comunidade já havia estabelecido desde muito políticas voltadas
à equalização das condições econômicas de algumas regiões dos
países que dela tomavam parte, mas o ineditismo da situação
trazida pela Grécia situava-se no fato de que, pela primeira vez,
era admitido um membro com uma configuração econômica e
social com padrões muito inferiores ao conjunto dos países que
tomavam parte na Comunidade. O “desafio grego” à construção
da Europa ganhou, portanto, em um primeiro momento, a forma
de novas pressões sobre as políticas redistributivas da
Comunidade (aquelas voltadas para propiciar o desenvolvimento
de regiões atrasadas), e dificuldades para manejar, no plano da
concertação política européia, a hostilidade da Grécia com a
Turquia.
O problema redistributivo esteve ainda em evidência quando
foram abertas negociações para um novo alargamento, com as
candidaturas de Portugal e Espanha. As mesmas questões que
separaram a Grécia do esforço de construção da Europa
estiveram presentes no relacionamento dos países ibéricos com o
restante da Europa Ocidental: os dois países estavam submetidos
a regimes autoritários consolidados e as suas economias
predominantemente agrárias apresentavam sérios problemas de
subdesenvolvimento. Realizadas a partir de 1977, as
conversações foram difíceis e realçadas por questões que
surgiam do subdesenvolvimento das economias portuguesa e
espanhola, como, por exemplo, as implicações que uma maior
mobilidade da mão-de-obra ibérica barata e desqualificada
portaria para o espaço econômico europeu. A adesão dos dois
países foi efetivada na reunião do Conselho de 29 de março de
1985 e os tratados que implementavam a sua admissão entraram
em vigor em 1o de janeiro de 1986.

O RETORNO DAS GRANDES AMBIÇÕES


Duas propostas marcaram nos anos 80 o retorno da grande
ambição de formação de uma união política entre os membros da
Comunidade Européia. Uma delas foi formulada pela primeira
legislatura eleita por voto direto do Parlamento Europeu, e a outra
foi produzida pelo Conselho Europeu.
A primeira proposta foi formulada por uma comissão
institucional criada em 9 de julho de 1981 pelo Parlamento
Europeu, e ganhou a forma de um projeto de tratado sobre a
União Européia. Levados a votação em 14 de janeiro de 1984 e
aprovados por larga maioria, os 87 artigos do projeto
incorporavam os tratados em vigor e os diplomas legais existentes
sobre cooperação política e econômica, propondo uma moldura
única para a diversidade de instrumentos jurídicos editados para
regular o processo de integração da Europa. Paralelamente, os
chefes de governo elaborariam o seu próprio projeto, no seio do
Conselho Europeu. Na reunião de Stuttgart de junho de 1983
adotaram uma declaração solene acerca da União Européia, na
qual reafirmaram a adesão dos Estados membros aos objetivos
estatuídos nas Cúpulas de Haia (1969) e de Paris (1972). Na
reunião do Conselho do ano seguinte, realizada em
Fontainebleau, os líderes europeus definiram um conjunto de
medidas de importante impacto psicológico, como a adoção de um
passaporte europeu e a supressão de controles de passagem nas
fronteiras nacionais, mas também concordaram com a
necessidade de reformar as instituições comunitárias,
preservando-as e adaptando-as às necessidades da Europa
alargada e a cada ano mais complexa. Nesse sentido,
recomendava que o Parlamento assumisse maiores
responsabilidades no processo decisório comunitário, ganhando
poderes de co-decisão legislativa com o Conselho e exercendo
maior controle sobre todas as políticas comuns e sobre as
decisões da Comissão, sobre as relações exteriores comuns
(pronunciando-se sobre acordos de associação ou de adesão, por
exemplo) e, evidentemente, sobre o orçamento comunitário. A
Comissão, por seu turno, deveria ter os seus poderes e autonomia
reforçados, com maiores capacidades de iniciativa, execução e
gestão. O presidente da Comissão deveria ser designado pelo
Conselho Europeu e, junto com os demais comissários, deveria
ser investido de voto de confiança dado pelo Parlamento,
reproduzindo também a fórmula de um regime parlamentarista. O
Conselho Europeu, composto pelos chefes de governo e de
Estado, deveria desempenhar o papel estratégico de dar à
Comunidade direções e impulsos políticos. O Conselho de
ministros também deveria ser adequado à complexidade
crescente da Comunidade, com uma mudança importante no
processo de decisão, que deveria se dar pela regra da maioria,
simples ou qualificada, suprimindo a unanimidade (reservada para
casos realmente excepcionais). O Tribunal Europeu de Justiça,
enfim, também deveria ser adequado, com o aumento da sua
jurisdição para novas matérias de conflitos.
As duas propostas convergiam: as instituições comunitárias
mostravam-se ineficientes e ineficazes e as ações comuns, por
isso, eram insuficientes para o aprofundamento da integração —
na perspectiva de que essa passava a ser entendida como um
verdadeiro comprometimento político, especialmente em áreas
sensíveis, como a defesa e a política externa. Convergiam na
percepção de que a integração européia estava paralisada desde
meados dos anos 1970. O único meio para a sua retomada seria a
realização da única medida que nunca foi realmente empreendida
e que era uma das razões da integração: o estabelecimento de
um verdadeiro mercado único.
Tendo essa idéia por base, a Comissão Européia propôs a
adoção de medidas que permitissem a realização do “espaço
econômico sem fronteiras”, franqueando a livre circulação de
bens, capitais e trabalho, que foi submetido ao Conselho Europeu
reunido em Milão em maio de 1985. Ao enumerar três centenas
de medidas necessárias para a real efetivação do mercado
comum, a Comissão indicava, como medida fundamental, o início
de negociações para um novo tratado, que codificaria em um
único diploma os avanços empreendidos nas últimas décadas nos
textos dos tratados de fundação, as suas emendas, os
procedimentos de cooperação política e as práticas
procedimentais aprendidas com a experiência. O Ato Único
Europeu foi assinado em Luxemburgo em 28 de fevereiro de
1986, entrando em vigor em 1o de janeiro do ano seguinte.
A realização do mercado único teve conseqüências diretas para
a vida econômica e, claro, dos cidadãos, entre as quais devem ser
ressaltadas a liberdade total de movimentação de capitais, o fim
das preferências nacionais nos sistemas de compras
governamentais e o estabelecimento da equivalência de diplomas
universitários, o que reforça o livre acesso dos cidadãos às
diferentes atividades profissionais em qualquer dos paises que
fazem parte da Comunidade.

UM NOVO TEMPO DE CRISE E DE NOVAS OPORTUNIDADES: O


FIM DA GUERRA FRIA
O fim da guerra fria provocou grandes e intensas modificações
na estrutura das relações internacionais contemporâneas. Para a
Europa que aprofundava a sua integração, dois desafios muito
importantes sobressaíam dos escombros da ordem bipolar: o
primeiro deles, era a reunificação da Alemanha, formalizada em
outubro de 1990, e o segundo, o início da transição dos países ex-
socialistas para a economia de mercado. Quais seriam os
impactos da recriação da Alemanha para a Comunidade? Como
evoluiriam as economias e os regimes políticos dos antigos
satélites soviéticos e quais impactos esses processos teriam
sobre o processo europeu de integração?
Ao mesmo tempo, uma parcela expressiva dos meios políticos
e sociais europeus ficou francamente desapontada com as
providências encaminhadas pelo Ato Único de 1986 no sentido da
implementação do mercado único e acreditava que novas
medidas seriam em breve necessárias para garantir um novo
esforço de aprofundamento da integração. Acresce que as
medidas do Ato Único Europeu, na medida em que empurravam
os parceiros para a desregulamentação de seus mercados
nacionais, criavam necessariamente novas regulamentações, em
nível comunitário, para garantir que as novas liberdades
necessárias ao mercado unificado fossem implementadas.
Importantes fatores internos reforçavam essa percepção. Em
primeiro lugar, muitos dos Estados membros perceberam que os
benefícios do mercado único somente poderiam ser realizados se
ações importantes fossem empreendidas no sentido da criação de
uma união econômica e monetária. Nesse aspectos, uma moeda
comum passou a ser vista como necessária para eliminar as
distorções de comércio provocadas pelas alterações nas taxas de
câmbio, provendo também maiores facilidades e condições para o
planejamento empresarial e eliminando os custos de conversão de
divisas. Em segundo lugar, havia uma percepção crescente da
necessidade de políticas sociais que compensassem os impactos
da liberalização e desregulamentação dos mercados nacionais
causadas pela criação do mercado único. Em terceiro lugar, o
desmantelamento dos controles de fronteira criaram demandas
por novos mecanismos de controle comunitário para lidar com o
fluxo transnacional que decorre da livre circulação de pessoas,
como o crime organizado, o tráfico de entorpecentes, o terrorismo
e, especialmente, com as novas correntes de migração de massas
da Europa Centro-Oriental e do norte da África. Finalmente, o
aumento dramático das prerrogativas comunitárias provocado pela
instituição das novas regulamentações necessárias para a criação
do mercado único reapresentava o problema do déficit
democrático; em outras palavras, a partir de então a burocracia
comunitária passou a exercer poderes cada vez maiores sobre um
número crescente de competências, mas sem o controle e a
transparência desejáveis.
A combinação da dimensão internacional em transformação
com a percepção interna das distorções provocadas pela criação
do mercado único produziram a crença de que uma nova rodada
de aprofundamento da Comunidade era necessária. Nesse
contexto, a atuação do presidente francês François Mitterrand e
do primeiro-ministro alemão Helmut Kohl foi decisiva. A
convergência nas visões dos dois líderes europeus impulsionou o
debate e as negociações para a reforma completa das
instituições, que deveriam levar a novo ímpeto na construção da
Europa. Esse foi o espírito do Conselho Europeu reunido na
cidade holandesa de Maastricht entre 9 e 11 de dezembro de
1991.
A Cúpula de Maastricht tinha inicialmente os objetivos de
chegar a um acordo sobre a união econômica, monetária e
política. As posições dos diferentes parceiros ao longo das
negociações intergovernamentais evidenciaram a persistência de
visões bastante distintas acerca da velocidade e da profundidade
da união política e monetária desejada pelas partes. O Tratado da
União Européia, que seria conhecido como Tratado de Maastricht,
seria firmado pelos ministros dos Negócios Estrangeiros e das
Finanças de todos os Estados membros na mesma cidade
holandesa em 9 de fevereiro de 1992.
Com o tratado surgia uma nova organização, a União Européia,
que se estabelecia sobre três pilares: as Comunidades Européias,
a Política Externa e de Segurança Comum (Pesc), e a cooperação
nos campos da justiça e das questões internas, em que se
costuravam princípios gerais, ressaltando-se o da subsidiariedade,
do respeito à democracia e aos direitos humanos, e guiados por
uma estrutura institucional de natureza supranacional encabeçada
pelo Conselho Europeu. Uma inovação de importante impacto
simbólico e psicológico foi a criação da “cidadania européia”, pela
qual todo súdito de um Estado membro tornava-se cidadão da
União, tendo o direito de viver e trabalhar no território de qualquer
um dos parceiros, de votar e se candidatar nas eleições locais e
do Parlamento Europeu.
O estabelecimento da Política Externa e de Segurança Comum
(Pesc), por seu turno, se deu também pela definição de objetivos
gerais, tais como a “proteção dos valores comuns, dos interesses
fundamentais e da independência da União” e “desenvolver e
consolidar a democracia e o estado de direito, e o respeito pelos
direitos humanos e as liberdades fundamentais”, sendo
implementados pela cooperação sistemática entre os Estados
membros sobre qualquer assunto relativo à ação externa e à
política de segurança que fosse de interesse comum. A
cooperação nas áreas da justiça e dos assuntos internos, por seu
turno, se daria pela convergência sobre problemas de interesse
comum, como asilo político, regras de controle de fronteira para
estrangeiros, política de imigração, combate ao tráfico de drogas,
cooperação judiciária em assuntos de direito civil e criminal,
cooperação policial para o combate ao terrorismo, entre outros
ilícitos definidos por um Escritório Europeu de Inteligência.
O núcleo de Maastricht, entretanto, era o estabelecimento da
União Econômica e Monetária, pela qual no mais tardar a 1o de
janeiro de 1999 as moedas nacionais dos Estados membros
seriam substituídas por uma moeda única, que foi batizada com o
sugestivo nome de “euro”. Estariam aptos os países que
provassem estar gozando de boas condições econômicas e
financeiras.
A transformação radical do processo de integração causada
pela gradual entrada em vigor das medidas estabelecidas pelo
Tratado de Maastricht induziu não propriamente ao retorno dos
temores característicos dos primórdios do processo de integração,
mas ao debate acerca da velocidade do processo. O Tratado da
União Européia atropelava uma competência tipicamente
decorrente da soberania estatal, a emissão de moeda, e levava a
comparações com iniciativas anteriores que faziam o mesmo,
como a Comunidade Européia de Defesa, “abortadas no
nascimento”.
Ainda que não se pusesse em questão as virtudes da
integração “positiva”, que substitui perdas de soberania por
ganhos proporcionados por políticas comuns, era evidente que o
estágio máximo da integração estabelecido em Maastricht
engendrava novas reticências acerca dos poderes acrescidos da
tecnocracia européia, que poderiam agir em detrimento da
expressão democrática calcada em controles sociais funcionais —
afinal, o que se propôs no Tratado da União Européia era algo de
um ineditismo tão marcante que apenas a experiência poderá
computar os ganhos e perdas desse importantíssimo processo
histórico.

O ALARGAMENTO SOB A ÉGIDE DE MAASTRICHT E A


CONSTITUIÇÃO EUROPÉIA
As negociações para que a Áustria, a Finlândia e a Suécia
aderissem à Comunidade foram abertas em 1992 e, um ano
depois, passaram a incluir a Noruega. Concluídas com sucesso
em março de 1994, apenas o tratado de adesão da Noruega foi
rejeitado em referendum popular, tornando-se os demais membros
plenos da União Européia em 1o de janeiro de 1995.
O Tratado de Maastricht, peça fundadora da União Européia,
inovou o direito comunitário em muitos sentidos, sendo um dos
principais o entendimento subjacente de que o processo de
construção da Europa não poderia ali se dar por concluído. Por
isso, a disposição do artigo “n” do Tratado da União Européia
(TUE) especificava que uma outra rodada de negociações
intergovernamentais deveria ser instalada quatro anos depois da
sua entrada em vigor para que o seu funcionamento fosse
examinado. Dessa dinâmica deveriam sair ajustes que
permitissem o aumento da capacidade de ação externa da União,
prepará-la para um melhor funcionamento e para novos
alargamentos e, finalmente, torná-la mais relevante para o
cidadão comum. Entretanto, a radical reversão dos humores
diante da integração percebida pela maior parte dos líderes
europeus nos seus países, em virtude da absorção dos impactos
iniciais das medidas de convergência e de austeridade
necessárias para a consecução da UEM, fez com que se adotasse
uma atitude cautelosa no sentido de novos aprofundamentos.
Desse modo, um novo projeto de tratado foi levado ao
Conselho Europeu, que se reuniu em Amsterdã entre os dias 16 e
17 de junho de 1997, e foi aprovado com diversas disposições que
tinham por objetivo facilitar uma passagem sem incidentes para a
terceira fase da União Econômica e Monetária, além de adotar
uma resolução sobre o crescimento e o emprego. O Tratado
propriamente dito foi firmado pelos ministros dos Negócios
Estrangeiros dos Estados membros em 2 de outubro do mesmo
ano e entrou em vigor somente em 1o de maio de 1999.
Ainda que não tenha a mesma importância assumida pelo Ato
Único de 1986 e pelo Tratado de Maastricht, é fato que o Tratado
de Amsterdã tem valor considerável para a governança
comunitária, indicando a necessidade de reforma das instituições
como requisito para a definição de novas políticas comuns e,
especialmente, para o mais aguardado alargamento da história da
construção da Europa — a admissão dos ex-países socialistas do
continente.
Os melhores resultados do Tratado de Amsterdã situam-se nos
ajustes necessários para a efetivação da UEM, mas poucas
reformas foram empreendidas para a criação de condições de
alargamento. Assim, um novo esforço negociador foi convocado
para estudar as medidas necessárias para novas reformas que
permitissem concluir mais facilmente as novas adesões.
Submetida ao Conselho Europeu reunido em Nice entre 7 e 9 de
dezembro de 2000, a minuta de um novo tratado com essas
intenções foi aprovada, junto com uma Carta dos Direitos
Fundamentais da União Européia. O Tratado foi assinado também
em Nice a 26 de fevereiro de 2001, tendo por objetivo principal o
estabelecimento de condições para a adaptação das instituições
européias para permitir as novas adesões.
O ano de 2002 foi um dos mais profícuos da integração da
Europa inaugurando-se com o funcionamento pleno da UEM, que
se deu com o primeiro dia de circulação das moedas e notas de
euro na Áustria, na Bélgica, na Finlândia, na França, na
Alemanha, na Grécia, na Irlanda, na Itália, em Luxemburgo, nos
Países Baixos, em Portugal e na Espanha, em 1o de janeiro,
processo concluído dois meses depois quando a moeda única
passou a ter circulação exclusiva, ficando definitivamente extintas
as moedas nacionais.
Em 9 de outubro daquele ano, na seqüência das
transformações históricas, a Comissão indicou aos 15 Estados
membros da União Européia que o processo negociador para a
entrada de dez novos membros no bloco seria concluída em
dezembro, abrindo caminho para a tão esperada expansão para o
Leste, pouco mais de uma década após a queda do Muro de
Berlim. Apesar de ser considerada crucial politicamente, a adesão
efetivada em 1o de maio de 2004 da Polônia, da Hungria, da
República Tcheca, da Eslováquia, da Eslovênia, da Lituânia, da
Letônia, da Estônia, de Malta e Chipre (a Romênia e a Bulgária
poderão aderir à União em 2007), também porta desafios
econômicos importantes para a estabilidade do processo europeu
de integração, uma vez que a admissão desse bloco de países
composto majoritariamente por economias agrícolas e com
grandes desníveis de desenvolvimento social (particularmente se
comparados com os níveis atingidos pelas sociedades dos demais
membros da União) pressiona ainda mais as políticas
redistributivas da União, sendo provável que boa parte desses
países recebam subsídios para a reestruturação das suas
economias muito maiores do que as suas contribuições para o
orçamento comunitário. Com a conclusão desse processo de
alargamento, a União Européia praticamente dobrou, passando a
ter 25 membros, o seu território aumenta em 25%, e a sua
população total alcança 455 milhões de pessoas.
A nova Europa, com 25 membros, tem, além dos problemas
decorrentes da heterogeneidade do novo espaço econômico, o
desafio da superação do déficit democrático, que decorre do
aumento da institucionalização da integração. Para enfrentar esse
desafio, o Conselho Europeu realizado em Laeken, instituiu em
dezembro de 2001 a Convenção Especial sobre o Futuro da
Europa, que funcionou entre fevereiro e junho de 2003, com a
responsabilidade de elaborar um anteprojeto de Constituição para
a União Européia, que cuidaria de atender aos seus objetivos
democráticos e tornar mais transparente o processo decisório da
União — que é ainda inspirado no modelo original elaborado pelos
Seis em 1957, de decisão consensual, e que certamente não se
ajusta a uma entidade com 25 membros.
O objetivo principal de uma Constituição seria o de equacionar
determinados aspectos das regulamentações comunitárias que
ficariam muito difíceis de serem manejados na Europa ampliada,
como a composição e o funcionamento da Comissão Européia, o
peso relativo de cada um dos Estados membros, a divisão das
competências entre a União e os seus membros etc. A
Constituição reforça também os meios de ação da União na esfera
externa, instituindo o cargo de ministro dos Negócios
Estrangeiros, e na esfera interna, absorvendo a Carta dos Direitos
Fundamentais e conferindo-lhe plena eficácia jurídica.
A Constituição européia deve ser ratificada pelos 25 países
membros da União Européia, o que pode se dar por referendo
popular ou diretamente pelos parlamentos nacionais. O projeto,
entretanto, sofreu um duro revés, com a rejeição do texto no
referendo realizado na França e na Holanda, em maio de 2005.
Os processos de aprovação devem ser concluídos até outubro de
2006, quando o texto da Constituição entraria em vigor.

CONCLUSÃO
A Europa, cuja construção se iniciou como um projeto utópico
no final da Segunda Guerra Mundial, chegou ao novo milênio
como uma realidade de resultados impressionantes, e isso
certamente não se deve apenas à imponência dos números
envolvidos no comércio intra-regional e no porte da economia
unificada. Apresentando-se à comunidade internacional como um
ágil gigante feito de quase 500 milhões de cidadãos
consumidores, a construção da Europa foi o processo responsável
por conduzir a região durante meio século de estabilidade, de paz
e de prosperidade, contribuindo para a melhoria da qualidade de
vida das suas populações, para a diminuição das desigualdades,
para uma melhor equalização do poder dos Estados que dela
tomaram parte, para a criação de um imenso mercado interno e,
evidentemente, para amplificar a voz dos seus 25 Estados
membros no mundo.
O processo de integração europeu é a causa de muitas e
importantes transformações na estrutura política e econômica da
Europa Ocidental contemporânea. Além dos extraordinários
índices econômicos e de bem-estar social que traduzem o estado
atual da União Européia, que foram aumentados em grande
medida graças à cooperação econômica que se estabeleceu entre
os parceiros, pode-se afirmar que é graças à integração que a
Europa conheceu uma longa fase de prosperidade econômica,
com a modernização das estruturas produtivas e a melhora
substancial dos padrões de vida das populações européias. Nesse
sentido, não há dúvidas de que foi cumprida, plenamente, a
intenção original dos tratados de criação das comunidades
européias.

QUESTÕES PARA DISCUSSÃO


1. Como o processo de integração na Europa contribuiu para pôr
fim aos conflitos armados no continente?
2. Tendo em mente a história da União Européia, procure situar
o estágio da integração no Mercosul, considerando as noções
de “intergovernamentalidade” e de “supranacionalidade”.

GLOSSÁRIO
Intergovernabilidade: é uma forma de estabelecimento de
medidas de cooperação que se dá pelo relacionamento entre os
governos dos países membros envolvidos. Nela não há nenhuma
transferência de competências soberanas ou atribuições, dos
governos nacionais para uma instância comunitária — portanto, não
são formuladas políticas que obriguem todos os membros, que são
livres para decidir se desejam acatar ou não as medidas que
decorrem das negociações intergovernamentais. O Estado-membro
permanece.
Supranacionalidade: é umas das idéias mais importantes do
processo europeu de integração, pois oferece condições para a
formulação e a implementação de políticas comuns, que não são
definidas pelos governos dos países membros, mas sim pelas
organizações comunitárias, que têm poderes para criar decisões
obrigatórias aos Estados membros, e são independentes e
autônomas dos governos que as criaram. A criação dos organismos
supranacionais decorre da própria vontade soberana dos Estados
membros, que delegam a esses organismos determinadas
competências.

BIBLIOGRAFIA INDICADA
D’ARCY, François. União Européia: instituições, políticas e desafios.
Rio de Janeiro: Fundação Konrad Adenauer, 2002.
LESSA, Antônio Carlos. A Construção da Europa: a última utopia
das Relações Internacionais. Brasília: IBRI, 2003.
PFETSCH, Frank R. A União Européia: história, instituições,
processos. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 2002.
Capítulo 5
A AMÉRICA LATINA,
SUA INTEGRAÇÃO E SUA INSERÇÃO
NO MUNDO GLOBALIZADO
Pio Penna Filho1

INTRODUÇÃO
A América Latina tem experimentado uma inserção
internacional marcada pela adversidade, haja vista que a região é
constituída por Estados que apresentam diferenciados níveis de
desenvolvimento econômico e social, além de fatores históricos
específicos que deram um perfil peculiar aos países que
compõem esse conjunto, muito embora possamos identificar
elementos que dão certa unidade às suas várias sub-regiões,
como as zonas andina e platina no contexto sul-americano e os
países que formalizaram o Mercado Comum Centro-Americano,
na região da América Central, e ainda alguns, também de origem
latina, localizados no Caribe.
Desde o início do século XIX, quando do processo de
independência e formação dos Estados nacionais, os países
latino-americanos buscaram formas de inserção internacional
positiva, ou seja, buscaram se vincular aos espaços econômicos
mais importantes que se localizavam, basicamente, na Europa e
nos Estados Unidos da América. Na Europa, o capitalismo
avançava e as revoluções burguesas, associadas à Revolução
Industrial, marcavam o surgimento de uma nova era, de um novo
mundo, que servia de referência para quase todos os novos
Estados surgidos no início do século XIX e que viriam a formar o
que somente mais tarde seria chamado de América Latina.
Nos Estados Unidos, desde a independência em 1776 e os
seus desdobramentos, que acabaram fazendo das antigas 13
colônias britânicas na América do Norte o núcleo do mais
próspero e importante mercado do mundo no século XX, sua
evolução política e econômica logo o colocaram também como
importante ponto de referência para os demais países
americanos, seja por seu peso econômico ou pelas diversas
influências e interferências políticas que aquele Estado acabou
exercendo sobre os latino-americanos, ao longo de praticamente
toda a sua história. Assim, a presença dos Estados Unidos, desde
a Declaração Monroe (“A América para os americanos”), vem
sendo uma constante na história da América Latina, presença esta
marcada muitas vezes por intervenções políticas e militares ou por
influências econômicas.
À parte as influências externas na América Latina, seja
européia ou norte-americana, internamente a evolução política e
econômica dos Estados latino-americanos teve, durante o século
XX, alguns elementos em comum. Numa perspectiva política, foi
somente a partir dos anos 1930 que os governos latino-
americanos começaram a desencadear programas mais
consistentes para o desenvolvimento da região. Foi um período de
nacionalismo exacerbado, com regimes fortes, como a era Vargas
no Brasil, iniciada durante a década de 1930, e o governo de Juan
Domingo Perón, na Argentina, durante os anos 1940, para
ficarmos nos exemplos mais marcantes. Outro exemplo foi o
governo de Lázaro Cárdenas, no México, que durante os anos
1930 também promoveu uma política modernizadora, com
envolvimento deliberado das massas no jogo político e projetos de
industrialização do país.
Foi durante a década de 1930 que houve uma maior
aproximação entre os Estados latino-americanos. Naquele
contexto, havia em comum a consciência da necessidade da
industrialização e o envolvimento das massas na política.
Contudo, a conjuntura internacional, inicialmente favorável tendo
em vista a competição estabelecida entre os regimes fortes da
Alemanha, Itália e Japão diante dos tradicionais parceiros liberais
dos Estados latino-americanos, ou seja, Inglaterra, Estados
Unidos e França, em alguma medida acabou favorecendo a
região, tanto em termos de comércio internacional quanto em
investimentos diretos que ajudaram no processo de
industrialização. Todavia, as rivalidades políticas e sobretudo
ideológicas entre esses dois grupos acabou levando à Segunda
Guerra Mundial, o que forçou os Estados da América Latina a se
posicionarem ante o conflito. Assim, muito embora os Estados
Unidos tenham pressionado a América Latina a tomar uma
posição conjunta, não houve consenso a esse respeito. Enfim,
parte das preocupações relacionadas ao tema do
desenvolvimento cedeu lugar à preocupação com a segurança
internacional e regional, ainda mais quando submarinos alemães
e italianos começaram a operar no Atlântico Sul, principalmente
na costa brasileira.
No pós-Guerra ocorreu novo realinhamento da América Latina,
haja vista que a conjuntura internacional havia mudado
drasticamente, principalmente pelo novo reordenamento mundial
marcado pela guerra fria. Em certo sentido, esse novo contexto
implicou algumas restrições para a região, uma vez que na nova
ordem bipolar as regiões consideradas mais estratégicas estavam
distantes do cenário latino-americano. Efetivamente, as duas
novas superpotências, Estados Unidos da América e a ex-União
Soviética, disputavam zonas de influência na Europa e na Ásia e,
em terceiro lugar, na África. Para os americanos e para os
soviéticos, pelo menos até a Revolução Cubana, ocorrida em
1959, a América Latina constituía-se uma inquestionável zona de
influência norte-americana.
Mas durante a década de 1950, mesmo com dificuldades,
houve avanços no processo de modernização da América Latina e
de aproximação entre os seus Estados membros. Registre-se, por
exemplo, que ocorreu um ciclo de desenvolvimento econômico
com distribuição de renda e houve possibilidades de concertação
política entre os latino-americanos. A iniciativa diplomática coube
ao Brasil, que sob a presidência de Juscelino Kubitschek lançou a
Operação Pan-Americana, uma iniciativa que teve a pretensão de
unir os países do continente em torno da temática do
desenvolvimento, chamando a atenção dos Estados Unidos da
América para a região.
O que mais incomodava os governantes latino-americanos de
então era o descaso dos Estados Unidos para com a região.
Enquanto bilhões de dólares eram gastos para a reconstrução da
Europa e do Japão, Washington deixava a América Latina a ver
navios. Para o governo norte-americano, o mais importante era
manter a região no seu esquema de segurança internacional, não
se importando com o desenvolvimento econômico e com as
pressões sociais que começavam a se avolumar e que chegaram
à ruptura revolucionária em Cuba e à contestação de vários outros
governos. De qualquer forma, ressalte-se que houve, durante os
anos 1950, investimentos internacionais na região e um surto de
desenvolvimento organizado por parte dos Estados nacionais
latino-americanos, além de conversações políticas que fizeram
pressão sobre os Estados Unidos para que este país investisse
mais no desenvolvimento da região e deixasse de colocar toda a
ênfase no aspecto da segurança e do combate ao comunismo.
O início da década seguinte foi conturbado para a América
Latina. Em termos de política internacional, os Estados Unidos,
sobretudo após o governo de John Kennedy, retomaram uma
política de pressão enfatizando o combate ao comunismo. Para
tanto, a Doutrina de Segurança Nacional foi intensamente utilizada
como instrumento de propaganda para a contenção da ideologia
comunista. Gradativamente, a maior parte dos Estados latino-
americanos caiu sob o poder de ditaduras militares que iniciaram
um novo ciclo político na vida dessas nações. Houve
diferenciações importantes entre os regimes militares, tanto em
termos de projetos nacionais quanto em termos de inserção
internacional.
Muito embora todos assumissem uma perspectiva nacionalista,
os meios escolhidos para se atingir os objetivos identificados
como sendo o interesse nacional variou sensivelmente de país
para país. Alguns adotaram uma perspectiva mais radical e
utilizaram de extrema violência no plano interno, como foi o caso
da Argentina e do Chile. Outros, como o Brasil, muito embora
tenham também se utilizado da violência como instrumento de
poder, foram mais moderados e elaboraram regimes mais
sofisticados, que afinal obtiveram melhores resultados no que diz
respeito ao seu desenvolvimento econômico e à sua inserção
internacional.
Mas para a integração regional os regimes nacionalistas
significaram uma barreira quase intransponível. No contexto dos
regimes nacionalistas falar em integração econômica e política era
praticamente um pecado. O que houve, de fato, foi uma
integração do tipo perversa, na qual os regimes militares,
principalmente do Cone Sul (Brasil, Bolívia, Paraguai, Argentina,
Chile e Uruguai), uniram forças para reprimir os movimentos de
contestação às ditaduras e perseguir os exilados políticos. Esse
movimento de integração da repressão deu origem à famosa
Operação Condor, um esquema montado pelo Chile e que contou
com a participação das outras ditaduras, inclusive com a
conivência do Estados Unidos.
De meados da década de 1960 em diante e durante a década
de 1970, portanto, os Estados latino-americanos, no geral, viviam
uma situação política pautada pelos regimes de força, e sua
inserção internacional, em termos políticos, tinha como
fundamentação ideológica o alinhamento aos Estados Unidos no
combate ao chamado “comunismo internacional”, um inimigo
muito mais imaginário do que concreto. De fato, a idéia de
combate ao comunismo era funcional aos regimes de exceção,
haja vista que servia para dar cobertura e legitimidade, tanto
interna quanto externamente, a eles mesmos.
É importante destacar, todavia, que nem toda a inserção
internacional da América Latina esteve pautada exclusivamente
pelos pressupostos da guerra fria e da bipolaridade. O Brasil
talvez tenha sido o exemplo mais contundente de um país que,
mesmo alinhado aos Estados Unidos e tendo os seus sucessivos
governos militares comungado das principais teses norte-
americanas de luta contra o comunismo, foi capaz de imprimir
uma política externa independente e com objetivos próprios,
principalmente durante a década de 1970. Em vários momentos,
inclusive, as divergências com os Estados Unidos foram
evidentes, por exemplo, quando o presidente Ernesto Geisel
denunciou o Acordo Militar com aquele país, que vinha desde a
década de 1950, e celebrou o Acordo Nuclear com a então
República Federal da Alemanha, contrariando os interesses norte-
americanos.

A INSERÇÃO INTERNACIONAL DURANTE A “DÉCADA PERDIDA”: A


AMÉRICA LATINA NOS ANOS 1980
A América Latina começou a década de 1980 em crise. Após os
dois choques do petróleo durante a década anterior e a elevação
das taxas de juros no mercado internacional, os países latino-
americanos foram diretamente afetados pelas bruscas mudanças
no quadro internacional, alguns de maneira mais profunda, como
foi o caso do Brasil, e outros menos, como o Chile, dadas as suas
características liberais e seu perfil econômico, bem mais modesto
que o brasileiro.
Da mesma forma que a questão petróleo e do choque dos juros
no mercado financeiro internacional, a política norte-americana da
era Reagan também ajudou a complicar ainda mais a melindrosa
situação dos Estados da região. Ronald Reagan assumiu o poder
estabelecendo como doutrina a idéia de contenção ao comunismo
no plano internacional e prometendo mudanças de cunho liberal
no plano interno. Para sua doutrina de ação internacional, a
América Latina, especialmente a América Central, passou a ser
considerada estratégica e, portanto, componente essencial da
ação global norte-americana. Para a América do Sul, a temática
mais importante foi o combate ao narcotráfico, o que colocou em
evidência países como Bolívia, Peru e, principalmente, a
Colômbia.
Mas além da política externa norte-americana e das influências
da economia internacional sobre os países da região, aspectos
relacionados à própria evolução política dos Estados nacionais
tiveram grande importância para a inserção internacional da
região na década de 1980 e para desdobramentos políticos
regionais de profundo alcance. Foi o caso, por exemplo, da
aventura militar argentina em sua tentativa de reconquista das
Ilhas Malvinas.
Com efeito, a crise interna do regime militar argentino,
resultante da falta de legitimidade política e do agravamento das
tensões sociais em decorrência de suas deficiências econômicas,
levou o regime militar a se aventurar numa guerra duvidosa contra
uma grande potência internacional, a Inglaterra. Assim, os
militares argentinos, em busca de coesão política interna e na
tentativa desesperada de revigorar o regime, arriscaram-se numa
duvidosa aventura militar que terminou em tragédia para milhares
de jovens argentinos e no fim do próprio regime militar em vigor no
país desde 1976.
A Guerra das Malvinas, ocorrida em 1982, foi, portanto, decisiva
em muitos aspectos para o futuro da Argentina e da região do
Cone Sul. Além de ter promovido a redemocratização do país, foi
fundamental para a aproximação entre Buenos Aires e Brasília.
Mas não só isso. A guerra demonstrou de maneira inequívoca o
que significava, para os Estados Unidos, a América Latina. Os
norte-americanos, naquele episódio, não vacilaram e ficaram ao
lado da Inglaterra no conflito (um aliado global no contexto da
guerra fria), mesmo existindo o compromisso internacional de
solidariedade aos países latino-americanos consubstanciado na
assinatura do Tratado Interamericano de Assistência Recíproca
(Tiar), que previa a cooperação inter-hemisférica em caso de
guerra com atores de outros continentes.
No Brasil, a ditadura militar também vivia seus últimos
momentos, abalado que estava o país por um quadro de recessão
econômica, desemprego crescente e dificuldades para honrar os
compromissos internacionais. Esse quadro levou ao desgaste do
regime e forçou a saída dos militares. A redemocratização veio em
1985 e foi, como no caso argentino, decisiva para a aproximação
do Brasil com seus vizinhos, especialmente a Argentina. Pode-se
dizer que a posição assumida pelo Brasil de efetiva solidariedade
aos argentinos durante a Guerra das Malvinas possibilitou a
aproximação sincera entre os dois países que ocorreu logo em
seguida, com a ascensão de governos civis ao poder.
O Uruguai e a Bolívia foram outros dois países que iniciaram a
década de 1980 com mudanças políticas. Os regimes militares ali
instalados padeciam de males semelhantes aos vividos pelos
regimes do Brasil e da Argentina. Para a Bolívia, a situação foi
mais dramática do que para o Uruguai. Nesse caso, além da crise
de legitimidade, parte do setor militar boliviano acabou sendo
contaminado pela ação do crime organizado, especialmente pela
ação dos narcotraficantes. Já no Uruguai, país que havia
apresentado historicamente uma evolução política mais estável e
democrática, a transição se deu de forma um pouco menos
conturbada. Ainda na região do Cone Sul, destaque-se que os
regimes militares do Chile e do Paraguai também estavam
comprometidos com as mudanças internacionais e eles não mais
correspondiam aos imperativos da ordem bipolar, ou seja, os seus
regimes não resistiram ao fim da guerra fria.
Na zona andina deve-se frisar que no final dos anos 1970 e
início da década de 1980, dois países vivenciaram momentos
críticos que os projetaram internacionalmente. Foi o caso da
Colômbia, com a ação continuada da guerrilha (Forças Armadas
Revolucionárias da Colômbia — FARC — e Exército de Libertação
Nacional — ELN, os dois principais movimentos de guerrilha;
deve-se também considerar a ação violenta levada a efeito por
forças para militares, ligadas à direita e que contam com
conivência governamental), e do Peru, com a escalada de
violência perpetrada pela grupo guerrilheiro maoísta Sendero
Luminoso.
Essas forças tornaram-se potencialmente mais perigosas por
conta de seu envolvimento crescente com o narcotráfico, que lhes
garantia boa parte dos recursos necessários para a continuidade
da luta política. Em troca, os exércitos ou grupos guerrilheiros
davam suporte e segurança para algumas zonas produtoras de
coca ou laboratórios para elaboração da cocaína. Nesse sentido,
sua ação acabou se tornando objeto de preocupação por parte
dos Estados Unidos (de longe o maior consumidor mundial de
cocaína) e dos países da União Européia, outro importante
mercado consumidor da droga do altiplano.
É bom salientar que a política norte-americana com relação à
questão da droga acabou sendo mais a do combate às áreas
produtoras e menos a repressão ao consumo interno, medida
logicamente explicada por melindres de política interna.
Naturalmente, os formuladores da política de combate às drogas
nos Estados Unidos entenderam ser menos oneroso, pelo menos
em termos políticos, combater nem tanto os consumidores,
potenciais eleitores, mas sim os produtores, mais distantes dos
centros de consumo e dos desgastes políticos gerados por
medidas repressivas no plano interno.
Já no que diz respeito à América Central o quadro foi outro. A
região se tornou particularmente conturbada ainda no final da
década de 1970, com a vitória da Revolução Sandinista na
Nicarágua e a escalada crescente da guerra civil em El Salvador.
A região tornou-se num centro de grande atividade ideológica e de
conflitos sangrentos, com envolvimento crescente dos Estados
Unidos que, sob a liderança de Reagan, como afirmado
anteriormente, não admitia em hipótese alguma a possibilidade

SOB A ÉGIDE DO NEOLIBERALISMO: A REDEFINIÇÃO DA INSERÇÃO


INTERNACIONAL LATINO-AMERICANA DURANTE OS ANOS 1990
Entre o final da década de 1980 e início dos anos 1990 o
cenário de definições políticas começou a se alterar na América
Latina. À exceção de Cuba, os demais Estados latino-americanos
promoveram reformas políticas de cunho liberalizante que
objetivavam, de acordo com o que se convencionou chamar de
Consenso de Washington, adequar as economias antes fechadas
aos novos tempos, liberalizando os fluxos comerciais e
desregulamentando a economia, ou seja, permitindo a livre
circulação de mercadorias e capitais. Além disso, os projetos de
cunho liberal visavam também o remodelamento do Estado,
redimensionando-o no sentido de torná-lo mais enxuto, daí a sua
preocupação em reduzir o máximo possível a sua participação na
economia, para o que o instrumento da privatização foi largamente
utilizado.
No geral, como salientado anteriormente, a América Latina
passou por esse processo. O que variou foi a sua intensidade.
Assim, alguns Estados promoveram reformas mais radicais, outros
atingiram um estágio intermediário e outros, ainda, o fizeram de
maneira mais superficial. A Argentina foi, por exemplo, o Estado
que mais aprofundou suas reformas, privatizando boa parte de
suas empresas estatais e liberalizando com voracidade sua
economia. Como exemplo de um país que ficou no nível
intermediário, podemos citar o Brasil, que embora tendo
promovido uma ampla privatização não chegou a atingir, em
extensão, o programa liberal argentino. No nível intermediário
ficaram aqueles nos quais a participação do Estado na economia
nunca chegou a ser das dimensões do Brasil ou da Argentina,
como a Colômbia ou o Peru.
O que assistimos portanto, no alvorecer dos anos 1990, foi o
esgotamento de um modelo de desenvolvimento econômico e
social trilhado pelos países da América Latina e que teve a sua
origem ainda nos anos 1930, sendo conhecido como modelo
nacionaldesenvolvimentista. Nesse modelo, a presença do Estado
no desenvolvimento era tida como essencial, haja vista a
incapacidade, gerada por uma série de fatores, das elites
nacionais em promover um processo de industrialização
consistente e sustentada apenas pelos capitais privados. Aliás, é
sempre bom lembrar que, à exceção da Inglaterra, esse foi o
padrão para os diversos processos de desenvolvimento industrial
verificados entre os países que hoje são considerados plenamente
industrializados e que compõem o seleto grupo dos mais ricos, os
quais são comumente conhecidos como o G 7 (Estados Unidos,
Alemanha, Inglaterra, França, Itália, Canadá e Japão). Pode-se
inferir daí, portanto, que historicamente é um mito a afirmação de
que os Estados nacionais não foram um componente essencial
para a consolidação dos processos de industrialização. A única
exceção reside no caso da Inglaterra, pioneiro e que por essa
razão pôde prescindir de uma ação estatal mais coordenada.
Voltando ao contexto latino-americano, a tentativa de
industrialização via modelo de substituição de importações não
obteve o sucesso desejado. Alguns poucos países, como foi o
caso do Brasil e do México, seguidos pela Argentina, conseguiram
diversificar seus parques industriais e avançar no
desenvolvimento econômico e industrial. Mas, mesmo esses
países obtiveram resultados parciais. Alegava-se que o modelo de
desenvolvimento voltava-se excessivamente para o mercado
interno, geralmente de dimensões restritas. Além disso, segundo
os críticos do modelo nacional-desenvolvimentista, o Estado não é
um agente econômico eficiente e, portanto, sua presença na
economia acabou gerando mais distorções do que a promoção de
um ciclo de desenvolvimento sustentado. Era preciso modificar
essa situação e a saída vislumbrada estava afinada com as
tendências mundiais, profundamente marcadas pelo processo de
globalização. Como forma de readequar o modelo de
desenvolvimento e sintonizá-lo com a tendência predominante
houve uma inflexão do Estado latino-americano no caminho do
liberalismo econômico e político.
A aposta no modelo liberal acabou gerando várias novas
distorções, principalmente no campo social. Destaque-se, por
exemplo, que, após mais de uma década de implantação do
modelo, os resultados sociais são desanimadores. Alguns
indicadores macroeconômicos até tiveram resultados positivos,
como o controle da inflação. Contudo, a abertura econômica por si
só não foi capaz de promover a inserção das economias latino-
americanas no Primeiro Mundo, e nem tampouco as reformas
econômicas criaram condições para um ciclo virtuoso de
desenvolvimento, que pudesse contar com atração de
investimentos diretos nas economias nacionais e resolver
problemas estruturais que vinham de muitas décadas atrás.
O resultado, do ponto de vista social, foi catastrófico. Houve o
aumento do desemprego, da economia informal e em vários casos
ocorre um processo de diminuição da atividade industrial, haja
vista que parte das empresas nacionais não conseguiram se
adequar para competir com empresas estrangeiras. O quadro
social acabou aumentando o descontentamento, e vários países
passaram por sérios problemas políticos no final da década de
1990. Isso levou a mudanças políticas generalizadas, sendo que
vários partidos de esquerda foram conduzidos ao poder no final
daquela década sem, contudo, reunirem condições de promover
transformações políticas e econômicas estruturais nos países
latino-americanos.
É importante destacar que um dos resultados da
implementação de políticas neoliberais na América Latina foi a
eleição dessas lideranças situadas à margem do pensamento
predominante, o que significa uma reação ao status quo. Houve
mudanças na Venezuela, na Bolívia, no Peru, no Equador, no
Uruguai, na Argentina e no Brasil, para ficarmos somente na
América do Sul. Nesse sentido, a eleição de Hugo Chávez, na
Venezuela, foi sintomática e a que sinaliza para uma tentativa de
mudança mais radical. Esse importante país sul-americano, um
dos dois eixos mais estratégicos da política externa brasileira na
América do Sul, é o quinto maior produtor de petróleo do mundo e
tem, por isso mesmo, capacidade para incomodar países mais
desenvolvidos como os Estados Unidos.
A questão internacional mais importante que se coloca para a
América Latina no alvorecer do século XXI continua sendo a de
buscar mecanismos para superar a diferença que separa a região
das áreas mais desenvolvidas do planeta. A implementação do
modelo neoliberal já demonstrou que certamente esse não é o
caminho para o desenvolvimento. Assim, a participação do Estado
como coordenador de políticas desenvolvimentistas continua
sendo valoroso para a região, haja vista que, mesmo sem se
tornar um Estado autoritário e interventor, ele pode coordenar e
maximizar os esforços para o desenvolvimento nacional e
regional.

OS PROCESSOS DE INTEGRAÇÃO NA AMÉRICA DO SUL: O


MERCOSUL E A COMUNIDADE ANDINA DE NAÇÕES
A integração regional é uma realidade mundial. Desde pelo
menos a intensificação do processo de globalização, verificado
durante a segunda metade dos anos 1980, os processos de
regionalização foram renovados ou relançados à luz da nova
realidade internacional. Tratava-se, naquele contexto, de tentar
conter os prejuízos advindos de uma liberalização comercial cada
vez mais agressiva e de outras medidas reestruturantes advindas
de modificações no sistema capitalista, como a
desregulamentação financeira e a reforma do Estado sob a égide
do chamado neoliberalismo.
Os avanços no processo de construção da União Européia
também acabaram influenciando outros países e regiões e
mostrando que pelo menos um dos caminhos para o
desenvolvimento, talvez o principal, passava pela união de forças,
cristalizadas na integração regional. Assim, ante um cenário
internacional econômico e político marcado por indefinições e
muitas incertezas, diversos Estados nacionais buscaram criar
blocos regionais para responder às novas diretrizes que
emanavam do centro mais dinâmico do sistema capitalista. Vale
lembrar que tudo isso estava acontecendo no momento de crise
do então bloco socialista, capitaneado pela profunda
transformação que atingiu a ex-União Soviética e levou, na
seqüência da “Glasnost” (reforma política) e da “Perestroika”
(reestruturação econômica), à queda do Muro de Berlim e ao fim
da própria União Soviética, pondo fim ao período histórico
conhecido como guerra fria.
Portanto, foi no contexto da globalização e do enfraquecimento
ou remodelação da idéia de Estado-nação que o mundo viu o
relançamento de alguns blocos regionais e o surgimento de outros
tantos. No caso do Cone Sul da América, assistimos, assim, ao
lançamento do Mercado Comum do Sul, ou Mercosul, um bloco
regional formado por Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai (mais
tarde entrariam, como membros associados, a Bolívia, o Chile e o
Peru), inspirado sobretudo no modelo de integração européia, que
previa, praticamente desde o seu lançamento, um processo de
integração mais profundo, que visava não somente a criação de
um zona de livre comércio, mas sim a idéia de um Mercado
Comum e de uma União Política e Econômica sólida, que indicava
a tendência de criação de uma nova identidade.
O Mercosul nasceu, pois, com objetivos ousados, tanto do
ponto de vista econômico como político. Naturalmente, o aspecto
econômico e comercial sempre foi de primordial importância para
os países envolvidos na formação desse bloco regional, mas os
seus fundadores não perderam de vista a idéia de que uma
integração regional mais sólida necessita contemplar outros
campos além desses, como os campos cultural e social. Assim,
existe a consciência de que os países membros possuem uma
história em comum e são muitos os pontos de convergência que
envolvem aspectos culturais diversos e que poderiam ser mais
intensamente explorados para, de fato, consolidar um processo de
integração duradouro e permanente.
O Pacto Andino, que mais tarde passou a ser denominado de
Comunidade Andina de Nações, também surgiu como resultado
de um projeto político voltado para a integração regional na área
andina da América do Sul. Seu objetivo principal era coordenar o
desenvolvimento da região com base no pressuposto de que a
união das economias dos seus membros teria o efeito de
promover o aumento do comércio e favorecer investimentos
externos na região.
Assim como no caso do Mercosul, os fundadores da
Comunidade Andina de Nações decidiram construir o bloco
econômico partindo da experiência prévia da Alalc, que havia
fracassado com o seu intento de promover a integração
econômica em escala continental. Nesse sentido, a avaliação era
de que a integração de economias de escala aproximada e o fato
de existirem laços históricos mais profundos entre os países da
região, inclusive contando já com algum grau de integração física,
poderiam favorecer um maior entrosamento econômico e resultar
no sucesso da integração.
Muito embora os países da Comunidade Andina possuam
problemas econômicos e políticos sensivelmente mais densos do
que os países do Mercosul, haja vista o clima de instabilidade
política gerado pela existência das Forças Armadas
Revolucionárias da Colômbia (Farc).

O MERCADO COMUM DO SUL — MERCOSUL


No dia 26 de março de 1991, em Assunção, os presidentes do
Paraguai, Argentina, Uruguai e Brasil, assinaram o Tratado de
Assunção que deu nascimento ao Mercado Comum do Sul, ou
Mercosul. Quatro países de uma mesma região aceitavam criar
um mercado comum estabelecendo o dia 31 de dezembro de
1994 como prazo para a concretização do bloco econômico.
Nessa data, nos termos do acordo, a maioria dos bens produzidos
em qualquer dos países deveria circular livremente dentro da
região integrada sem taxações ou impedimentos extras, desde
que comumente acordado em mesas de negociação. Integrava-se
uma área com 11 milhões de quilômetros quadrados, mais da
metade da América do Sul, cuja população passava dos 200
milhões de habitantes.
Em termos percentuais, o Brasil detém em torno de 75% do PIB
do Mercosul, a Argentina um pouco menos de 23% e o restante é
distribuído entre o Uruguai (1,5%) e Paraguai (0,7%), o que
demonstra o grau de disparidade no nível de desenvolvimento e
perfil industrial dos países membros. Associado a isso temos que
a produção de manufaturas na área é de 78% brasileira, 20%
argentina, 1,3% uruguaia e 0,4% do Paraguai. O Brasil é dois
terços do Mercosul em território, população e PIB. Para os
padrões latinoamericanos é uma área integrada de certo valor,
principalmente porque estão juntas as duas maiores economias
da América do Sul.
A proporção de produtos industrializados no total das
exportações brasileiras para a Argentina vinha crescendo. Na
década de 1970 essa exportação ficou em torno de 55%. Na
década seguinte a exportação de manufaturados subiu para 65%
do comércio total e 35% para os bens primários. As exportações
argentinas para o Brasil eram diferentes. Na mesma década de
1970, a Argentina exportou para o Brasil aproximadamente 65%
de produtos primários e 35% de bens industrializados. Na outra
década, passaram a ser exportados 75% de bens primários e 25%
de manufaturados. Os argentinos temiam, e ainda temem, que
ocorresse uma divisão de trabalho na região em que aquele país
se especializaria em produzir e exportar matérias-primas e
alimentos e o Brasil, bens industriais.
É importante observar o significado econômico de um país para
com o outro e estabelecer alguns parâmetros de comparação no
período anterior e posterior à criação do Mercosul. Até 1985,
antes portanto da assinatura dos atos de integração, com
variações normais em anos diferentes, o Brasil estava entre
segundo e quarto comprador dos produtos argentinos e na mesma
proporção como supridor de suas necessidades A Argentina, por
seu lado, estava entre sexto e oitavo supridor das necessidades
brasileiras e entre décimo primeiro e décimo segundo como
mercado para a venda de produtos nacionais. Depois do Mercosul
isso alterou, a Argentina passava a ser o segundo mercado
comprador, perdendo apenas para os EUA. Para a Argentina, o
Brasil passou a ser também o mais importante mercado, além do
país ter-se tornado um investidor de peso na economia argentina,
a ponto de alguns setores ponderarem que está em curso uma
invasão de capitais brasileiros em direção à Argentina,
desnacionalizando setores considerados importantes para os
vizinhos. No fundo, trata-se de uma tentativa de reação do
governo argentino diante da crise de sua economia, resultado
direto da política econômica equivocada adotada pelo governo de
Carlos Menem e que promoveu um grande impacto no perfil
industrial do país, sobretudo por ter mantido, por um tempo
excessivamente longo, a paridade entre o peso e o dólar, o que
afetou diretamente o parque industrial argentino, uma vez que
facilitou a importação de produtos industrializados.
Por vários fatores, mas também porque o comércio Brasil-
Argentina havia se deteriorado entre 1980 e 1985, em parte pela
crise vivida pelos dois países, Raul Alfonsin e José Sarney
buscaram uma maior aproximação entre os dois países. Começou
em agosto de 1985 e culminou em 30 de novembro daquele ano
com a Declaração de Iguaçu. Por meio de comunicados e
declarações oficiais, os dois presidentes, como raras vezes
ocorreu na história dos dois países, expressaram pontos de vista
conjuntos sobre vários assuntos e que, a partir dali, ambos
passariam a atuar unidos em suas decisões no campo
internacional.
Em 30 de julho de 1986, em Buenos Aires, Alfonsin e Sarney
assinaram a Ata para a Integração Argentino-Brasileira e
Protocolos relacionados. Ambos convidaram ainda o presidente
do Uruguai, Júlio Sanguinetti, para participar do encontro, analisar
as propostas e, no futuro, associar-se ao projeto. A participação
do Uruguai, uma economia relativamente menor, poderia ser um
treinamento para que não se repetisse, como no passado, as
mesmas fricções entre economias maiores e menores.
Com Fernando Collor de Mello e Carlos S. Menem nas
presidências, os seus governos apressaram os passos para a
integração e caminhou-se rapidamente para o Tratado de
Assunção, assinado em 1991. A data para implementação do
bloco foi definida para dezembro de 1994, e Uruguai e Paraguai
foram formalmente convidados para se tornarem sócios efetivos
do Mercosul, gozando das prerrogativas de membros plenos.
A idéia inicial de ter o Uruguai na integração com Brasil e a
Argentina era para se analisar com cuidado a participação de uma
economia menor junto às duas maiores. A partir daí, aos poucos,
poder-se-ia estender a integração para outros países. No que diz
respeito ao Paraguai, o exemplo da Alalc vem logo à mente. E o
caso paraguaio era, em princípio, complicado. Sua economia, no
setor agropecuário, é competitiva com a brasileira, o parceiro
maior da integração. O Paraguai produz café, algodão, soja, mate,
menta, carne, madeira, bens que o Brasil é auto-suficiente e até
exportador. No campo industrial, em que poderia haver
complementação e alguma atuação conjunta, a produção
paraguaia é negligenciável.
No Paraguai pode-se, desde 1974, importar produtos
industrializados de qualquer parte do mundo pagando-se pouca
taxa de importação. Foi uma medida tomada no governo de
Alfredo Stroessner quando da aproximação com o Brasil. No
início, a medida deveria beneficiar somente os países vizinhos.
Vendo que a economia paraguaia poderia ser sufocada pela
brasileira, principalmente na compra de produtos industrializados,
e forçado pelos comerciantes locais, a administração Stroessner
estendeu aquele beneficio de importar para qualquer país do
mundo. Já que o Brasil estava ganhando com exportações para o
Paraguai, este país encontrou um meio para ganhar também.
O Tratado de Assunção é dividido em capítulos, artigos e vários
anexos. O acordo prevê livre circulação de bens, serviços e
fatores de produção. É um pouco ousado, mas está dentro dos
princípios corretos para se criar um Mercado Comum. Mas não é
fácil aceitar que a circulação livre de mão-de-obra não
especializada ocorra tão cedo entre os países membros. No Nafta,
que na verdade é uma zona de livre comércio, em que a
circulação do capital é incentivada, o fator mão-de-obra foi tratado
de forma diferente, adaptaram-se a uma realidade concreta do
momento. A circulação livre dos fatores de produção, portanto,
consta no Tratado do Mercosul. Também, é óbvio, prevê a
eliminação de barreiras alfandegárias e a livre movimentação de
mercadorias entre os membros integrados.
Estabelece ainda que se pretende adotar uma política comercial
comum ante os outros países. Se ocorrer, seria usada uma só
linguagem, de forma coordenada, nas relações comerciais com
países e blocos econômicos de outras regiões. Esse é um dos
objetivos de uma integração. Integrar, para que, na hora da
barganha econômica internacional, os membros integrados usem
argumentos diferentes seria um erro. Erro que a América Latina
vem cometendo desde muito tempo. São economias pequenas e
de força diminuta no plano mundial, ao propor falar em conjunto
adquire-se uma força maior, o poder de pressão na barganha
comercial aumenta e, quem sabe, pode-se garantir ganhos
adicionais no comércio internacional para os países do Mercosul.
O Tratado prevê ainda coordenação de políticas
macroeconômicas e também a existência de uma Tarifa Externa
Comum para ser aplicada a países não membros. Impostos e
taxações, continua o Tratado, devem ser os mesmos para todos
os produtos provenientes de qualquer dos países integrados. Não
se poderia, portanto, taxar um produto argentino no Brasil de
forma descabida, com um imposto desproporcional àquele que se
aplica ao produto nacional. Não se poderia também realizar
acordos paralelos, de um só membro, com outros países, mesmo
da América Latina, que possa prejudicar os termos do Tratado.
Se, por exemplo, houver vantagens em um entendimento entre a
Argentina e a Venezuela, isso deverá ser estendido também aos
outros membros.
O Mercado Comum em formação teria uma estrutura de
comando que seria dividido em dois segmentos: Conselho do
Mercado Comum e Grupo Mercado Comum. O Conselho era o
órgão de mando da integração, tomaria as decisões com o
objetivo de assegurar o cumprimento das metas e prazos
estabelecidos no tratado. O Conselho seria composto pelos
ministros das Relações Exteriores e da Economia dos respectivos
países. Deve se reunir quando necessário e também com a
participação dos presidentes dos países pelo menos uma vez por
ano. A presidência do Conselho seria ocupada de forma rotativa,
cada seis meses, em ordem alfabética.
O órgão executivo do Mercado Comum em andamento era o
Grupo Mercado Comum e coordenado pelos ministros das
Relações Exteriores dos países envolvidos. O Grupo, depois das
decisões do Conselho, trabalha nos detalhes, e pelo cumprimento
dos acordos estabelecidos, seria a parte executiva do tratado. O
Grupo teria quatro membros titulares e quatro suplentes que
deveriam vir dos Ministérios do Exterior, da Economia e do Banco
Central. Há ainda uma secretaria executiva, e a sede, como fora
antes com a Alalc e a Aladi, está localizada em Montevidéu. As
decisões finais devem ser tomadas por consenso e com a
presença de todos os participantes. Os idiomas usados são o
espanhol e o português.
Para o Tratado, um produto que for só maquiado, embalado ou
montado dentro de um país, tendo procedência de fora da área,
não seria considerado de origem local. Será considerado da área
integrada, mesmo que a matéria-prima não pertença ao país,
quando o processo de transformação lhe dê uma individualidade
própria. Essa questão da origem do produto é um dos aspectos
mais controversos e mereceu longos debates. O Uruguai, como
exemplo, queria um pouco mais de flexibilidade, Argentina e Brasil
não. O Uruguai, por sua situação geográfica e tipo de mão-de-
obra, poderia ser um paraíso para fábricas maquiadoras
produzirem e venderem nos dois países maiores. Os artigos sobre
esse aspecto do tratado descem aos detalhes para identificar a
origem do bem, propõe análise minuciosa para se entender a
característica essencial do produto.
Em 17 de dezembro de 1994 foi assinado um “Protocolo
Adicional ao Tratado de Assunção sobre a Estrutura Institucional
do Mercosul”, que ficou conhecido como Protocolo de Ouro Preto.
Ficou definido com clareza os órgãos que compõem o Mercosul,
uns vem desde o seu início e outros foram acrescentados para dar
maior agilidade e funcionalidade ao acordo de integração regional.
A estrutura do Mercosul ficou maior. Tem-se hoje, como antes, o
Conselho do Mercado Comum, órgão máximo da integração, que
o conduz politicamente e é formado pelos ministros das Relações
Exteriores e da Economia dos países membros. O Grupo Mercado
Comum continua como o órgão executivo e é composto pelos
ministros das Relações Exteriores de cada país. Acrescentou-se a
Comissão de Comércio do Mercosul que ficou encarregada de dar
assistência ao Grupo Mercado Comum na questão da política
comercial dos países membros. Criou-se ainda uma Comissão
Parlamentar Conjunta, em que os parlamentos dos países
integrados teriam assento. Os setores econômicos e sociais
ficaram contemplados com o Foro Consultivo Econômico e Social.
E, por fim, faz parte dessa estrutura uma Secretaria
Administrativa, responsável a prestar serviços para todos os
outros órgãos do Mercosul. A sede continuaria em Montevidéu. O
Protocolo de Ouro Preto, que cria aqueles órgãos, também os
define, dá a função de cada um e de como deveriam atuar. São
longas e detalhadas essas colocações naquele protocolo.
O Mercosul, na sua criação inicial e mesmo depois de sua
formalização em Ouro Preto, aproveita o aprendizado da época da
Alalc. Fala muito em Aladi mas, na verdade, a base do acordo tem
sua origem nos erros e acertos ocorridos entre 1960 e 1980 com a
Alalc. Aliás, esse parece ser o melhor caminho para os países da
região, não é possível que vizinhos vivam no século XXI como se
estivessem ainda no século XIX. Comercializar com o mundo é
importante, mas não se pode deixar de dar alguma preferência a
uma economia de dentro da área integrada.
Em 1990 o comércio entre os países hoje integrados estava em
torno de quatro bilhões de dólares, um ano depois passou dos
cinco bilhões. Em 1992 chegava a sete bilhões, no ano seguinte já
ultrapassava os dez bilhões. Continuou subindo para chegar em
1997 e 1998 a mais de 20 bilhões de dólares em trocas na área
integrada. Crises locais e importadas fizeram com que o comércio
caísse nos anos posteriores, chegando a 15.1 bilhões de dólares
em 1999 e subindo outra vez, no ano 2000, para algo como 17.6
bilhões de dólares. Oscilou mais ainda na enorme crise
econômica que passou a Argentina depois da desvalorização do
peso ante o dólar. Para perceber a extensão desse problema, veja
o exemplo das exportações do Brasil dentro do Mercosul nos anos
de 2000 e 2001.
Com a Argentina, ela caiu mais de 19%, com o Paraguai mais
de 13% e com o Uruguai acima de 4%. O Brasil também comprou
menos naquele período. Com a Argentina, a queda foi mais de
9%, com o Paraguai cerca de 14% e do Uruguai importou-se 16%
menos. As exportações do Brasil dentro do Mercosul já chegou a
ser 14% do total dos bens exportados pelo Brasil para o mundo.
Com as crises e as seguidas quedas no comércio regional, em
2001, as exportações para o Mercosul correspondia a 12,37% do
nosso total para o mundo. A coisa piorou mais ainda, em 2002
apenas 5,9% de nossa exportação global foi para o Mercosul. As
importações nacionais do Mercosul, em 2001, foi de 13,13%, no
ano seguinte caiu para 12,82%. Mostra esse dado que o Brasil,
apesar das crises envolvendo os parceiros do Mercosul,
principalmente a Argentina, ainda manteve dentro da área
integrada um patamar alto de importação, se comparado com os
parceiros. Um dado interessante na relação comercial do Brasil
com a Argentina é que, em 1994 e 1995, tivemos superávit
comercial com ela. Daí para a frente, mesmo nos momentos
maiores da crise econômica naquele país, sempre tivemos déficit
comercial. Recentemente o Brasil voltou a ter superávit com o
país vizinho. Com o Paraguai, o Brasil teve superávit de 1994 a
setembro de 2002. Com o Uruguai varia um pouco. Teve superávit
em 1994 e 1995, déficit comercial de 1996 a 1998, volta a ter
superávit em 1999, 2000 e 2001. E, em 2002, até setembro, tinha
déficit outra vez.
Um dado importante sobre o Mercosul é que, apesar de ter
aumentado as trocas internas, o comércio com outros países
também aumentou, não houve, como recomenda a OMC, desvio
de comércio. Em 1990, a participação do Mercosul no comércio
mundial era de 2% do total. Em 1991 e 1992 subiu para 2,1% e aí
foi subindo seguidamente até chegar ao patamar maior, em 1997,
com 2,9% do comércio internacional, um acréscimo de quase 50%
sobre ano de 1990. Passou, no total das importações mundiais,
em números redondos, de 29 bilhões de dólares em 1991 para 98
bilhões de dólares em 1998. Outra vez as crises que abalaram as
economias da região, principalmente as duas maiores, acabam
fazendo que essa participação internacional diminuísse.
O que mais tem chamado a atenção na integração dos países
do Mercosul é que, até agora, os problemas surgidos têm sido
resolvidos de forma negociada. Era comum aceitar que na
primeira desavença o processo seria interrompido. Mesmo com
muita choradeira de um ou outro membro nenhum rompimento
ocorreu. Se, como exemplo, a tarifa externa comum não tinha
ainda condições para ser aplicada, os lados transferiram as datas
antes estabelecidas. Reclamações sobre os sistemas automotivos
do Brasil e da Argentina levaram esses países a um entendimento
para tentar harmonizá-los. O chamado “acordo sobre a política
automotiva do Mercosul” é um exemplo. Deveria entrar em vigor a
partir de 1 de fevereiro de 2001 e era um substituto aumentado de
um outro acordo de 30 de junho de 2000. Os detalhes previstos no
acordo automotivo impressionam. Cada item, cada componente,
cada fator na construção do automóvel ou sua venda posterior
está ali previsto. O que se pontua aqui é que os países integrados,
basicamente Argentina e Brasil, apesar dos vários casos criados
por um ou outro país, sempre buscaram alternativas para que a
integração não morresse. O dos automóveis é um exemplo.
Os lácteos, autopeças, tecidos, quem vai ter assento no
Conselho de Segurança da ONU ou a desvalorização cambial no
Brasil de 1999, que quase comprometeu de uma vez por todas as
relações regionais; a paridade cambial e depois a desvalorização
na Argentina que também ajudou a por mais lenha na fogueira dos
assuntos regionais; a possibilidade, real ou imaginada, de algum
país da área integrada ser membro do Nafta, num abandono do
Mercosul; não foram poucos os desentendimentos entre os
membros integrados, é só buscar nos jornais da época para se ver
a quantidade de assuntos quentes entre os lados, principalmente
nas relações do Brasil com a Argentina.
Para o Brasil, o Mercosul tem sido importante economicamente,
os números do comércio mostram isso. Mas essa integração tem
um objetivo maior, é também um projeto de alcance político. A
intenção é manter a integração para buscar novas adesões na
América do Sul, principalmente da Comunidade Andina e aí, em
conjunto, ter uma conversação mais apropriada com os
propositores da Área de Livre Comércio das Américas (Alca).
Seria mais inteligente que se fosse em conjunto para aquela
integração, se não toda a América do Sul pelo menos os países
do Mercosul. Até isso foi colocado em dúvida em diversas
ocasiões quando membros da integração ameaçavam debandar
para outros lados ou apelarem para conversações bilaterais. Mas,
nas discussões finais da Alca, em Miami em 2003 e Puebla em
2004, viu-se um Mercosul unido, com uma linguagem única nas
discussões e decisões a serem tomadas. O trabalho dos membros
integrados, principalmente do Brasil, teve resultados concretos na
unificação dos objetivos naquela discussão de integração
continental. Um dado que muitos não acreditavam que ocorresse
tal a monta de problemas e assuntos que surgiram entre os países
do Mercosul, com o Brasil e a Argentina à frente. O poder de
barganha dos integrados aumentou, portanto. Quando as
conversações maiores na Alca se complicam, como mais um
exemplo, fala-se no “quatro mais um” ou o Mercosul tentar se
entender diretamente com os EUA.
Em conjunto também, a área mantém entendimentos com o
Japão, o México, a Comunidade Andina e a União Européia. Com
esta última as conversações, apesar dos conhecidos problemas,
foram avançando. Praticamente os mesmos assuntos que
emperraram o andamento da Alca aparecem na negociação entre
o Mercosul e a UE. Por algum motivo especial esse entendimento
fluiu um pouco melhor do que as conversações do bloco sul-
americano na Alca. Traços culturais e históricos mais próximos
talvez ajudem nisso ou, quem sabe, a força maior dos EUA
assusta um pouco. Ou ainda porque