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Crítica da Modernidade Política em A Critic about the politician modernity

Nietzsche in Nietzsche

Isabella Vivianny Santana Heinen


Professora substituta assistente
Universidade Federal do Pará

Resumo: No presente artigo, o tema da Abstract: In this article, the politics theme
política será pensado a partir das críticas às will be though from the critics to the moral
constituições morais valorativas delineadas constitutions evaluative made by Nietzsche.
por Nietzsche. Nesse sentido, pretende-se In this way, we intend to elucidate the
elucidar que o posicionamento deste autor, positioning of this author on the one hand,
por um lado, indica uma leitura crítica da it indicates a critical reading of the policy
política a partir da sua for mação from its democratic formation, for this
democrática, por esta considerar o homem consider the universally human and
de maneira universal e rebaixar seus valores demote its values on its uniqueness. On the
ligado a sua singularidade. E, por outro other hand, it enables a different
lado, possibilita uma distinta percepção da perception of political organization. This is
organização política. Isto devido ao fato de due to the fact of observing a new
se observar uma nova perspectiva para a perspective to the political question, whose
questão política, cujo interesse seria de interest is to affirm life, stimulate new
afirmar a vida, estimular novos valores, values, wants and desires that lead man to
vontades e desejos que levem o homem a existence of other formulations.
outras formulações de existência.

Palavras-chave: Nietzsche, modernidade, Key-words: Nietzsche, modernity, politics,


política, valores, afirmação da vida. values, life affirmation.
Crítica da Modernidade Política em Nietzsche

instaurado por Sócrates e continuado pelo


racionalismo filosófico e doutrina cristã.

Nesse âmbito, considerar as críticas que


Nietzsche empreende à democracia, ao
socialismo e ao anarquismo, com o
propósito exclusivo de debater questões
acerca da modernidade política, é
interpretar erroneamente a sua perspectiva.
Por isso, o tema da política não pode ser
I. A problemática da modernidade pensado se parado das críticas às
política constituições morais valorativas delineadas
pelo filósofo.
A crítica nietzschiana da modernidade
p o l í ti ca 1 s e a p r e s e n t a c o m o u m a Nietzsche desenvolve a crítica da
problemática de maior destaque na fase modernidade política, em função da
madura de seu pensamento, muito embora política ser um dos produtos da moralidade
Nietzsche, em Ecce Homo, esclareça que e da religião, e não por se considerar um
desenvolveu em sua obra Além do bem e do “filósofo-político”. Desse modo, a análise
mal: prelúdio a uma filosofia do futuro uma sobre a política deve ser construída de
importante crítica à modernidade. Mas, modo cuidadoso.
apesar de tê-la nomeado como inscrição de
sua crítica às ideias modernas, é notável No escrito de Além do bem e do mal,
que praticamente todo seu percurso Nietzsche aborda a questão da política e
filosófico, tenha sido uma tentativa de identifica a religião como um dos seus
denunciar os valores da modernidade. subterfúgios, dado que a atividade política
tem como fundamento de instrumentalização
Segundo essa interpretação, identifica-se a religião, implicada, por sua vez, na
que desde O nascimento da tragédia uma característica de estabelecer regras capazes
abundância de noções converge para uma de ordenar a vida em sociedade
aversão de seu tempo, na medida em que, evidenciada pelo processo político
nessa obra, apresenta o homem do século articulado aos interesses religiosos.
XIX como derivação do processo racional

1 A este respeito escreve Giacoia: “. É, em minha opinião, essa autêntica significação que se bagateliza,
quando só tomamos literalmente algumas provocações estridentes do filósofo, uma vez que, dessa
maneira, ficam elas mal-entendidas, caindo-se assim precisamente nas armadilhas e sutilezas que o
filósofo tinha sempre preparadas para ‘ouvidos grosseiros, alheios’ às suas verdades; ele que era mestre
em provocar o mal-entendido entre fanáticos partidários das "ideias modernas". E o principal mal-
entendido consiste justamente nesse erro de interpretação, que identifica o essencial da filosofia de
Nietzsche com sua crítica da modernidade política. É certo que essa crítica existe e que algumas de suas
figuras são, efetivamente, problemáticas, decididamente anti-humanitárias; mas não é menos certo que ela
é apenas uma faceta ou consequência da crítica da moral e da crítica da cultura empreendidas por
Nietzsche, uma espécie de sub-produto de sua tentativa de "refutação genealógica" do Cristianismo e de
transvaloração de todos os valores superiores da cultura ocidental.” (GIACOIA, 2012: 2)

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O filósofo, tal qual o compreendemos, nós,


espíritos livres, o homem da responsabilidade Nessa perspectiva, mesmo que se leve em
mais ampla, que tem a consciência do consideração a afirmação de Nietzsche no
desenvolvimento mais completo do homem, prefácio intitulado “Tentativa de Autocrítica”
este filósofo utilizar-se-á da religião como (O nascimento da tragédia § 5) de que a
um meio de elevação e educação, como é temática do cristianismo não havia sido
habitual servir-se das contingências políticas abordada na primeira edição do seu escrito
e econômicas de sua época. A influência inaugural, a referência à contraposição entre
eletiva, educativa, quer dizer, tanto criativa as perspectivas trágica e cristã presentes no
e plasmadora quanto destrutiva, que pode prefácio, reafirma a significação da crítica ao
ser exercida através das religiões é vária e cristianismo no âmbito da crítica da
múltipla de acordo com os homens que modernidade efetuada pelo filósofo
submerjam sob seu fascínio e que neste alemão.
procurem proteção. Para os fortes, para os
independentes, preparados e predestinados a À vista disso, a modernidade pensada a
dominar, nos quais se personificam o partir dos pressupostos da racionalidade
intelecto e a arte de uma raça dominante, a socrática, erige outra perspectiva contundente
religião é um meio a mais para suprimir os para a compreensão da indicação filosófica de
obstáculos, para poder reinar: é um vínculo Nietzsche, a saber, a crítica a moral cristã2,
que conjuga dominadores e súditos, que que o autor se empenha em expor a
revela e presentifica aos dominadores a vulnerabilidade dos princípios metafísicos,
consciência dos súditos, naquilo que esta possibilitando novas interpretações acerca
tem de mais abscôndito, mais íntimo, aquilo da modernidade, proveniente do sistema
precisamente desejaria escapar à obediência. teórico socrático.
(NIETZSCHE, 1992:. 61)
Este aspecto se confirma rapidamente
Nota-se que através do engendramento das ainda em escritos posteriores, não mais
religiões as discussões políticas se voltados à perspectiva trágica. Em sua obra
instauram e ganham contornos maiores, Além do bem e do mal – obra que possui
pois a religião promove deliberações para a significação central na argumentação aqui
conduta em sociedade, para a escolha das desenvolvida – Nietzsche versa suas
diretrizes capazes de reger a forma críticas de maneira mais instigante e
aceitável de agir de cada um, vinculada, de negativa ao cenário da modernidade. A
tal modo, às práticas políticas, morais e lente que observa o mundo torna-se ainda
familiares. mais radical. Este projeto crítico progrediu

2 Entende-se de todo modo que a moral é fundamentada em princípios racionais, que toma forma desde o
ideal platônico, concebendo que o conhecimento verdadeiro se dá, através das ideias, que são de caráter
absoluto. Assim, o vetor do conhecimento epistêmico, é a razão, ratificando que a origem do
conhecimento não está nos sentidos, e sim nas ideias. Com isso percebemos, que desde a concepção
platônica de conhecimento, a racionalidade vem sendo enfatizada como a única possível de alcançar a
verdade, baseando-se em princípios morais que ela mesma determina. De modo que a moral cristã serve
para balizar a postura humana.

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para uma nuança decisiva, objetivando alteração. Segundo Nietzsche, a função do


censurar uma variedade de pensamentos pensamento universalista é promover a
do século XIX. vida em sociedade, pois é a coletividade
que o faz acreditar-se seguro. Acerca disso
Nesse sentido, realiza-se em Além do bem e explana Araldi:
do mal uma contundente crítica à
modernidade, e aos seus pressupostos A moral do rebanho, portanto, é o
valorativos religiosos, a partir de uma processo vitorioso na modernidade, no qual
análise histórico-valorativa da tradição as paixões são degradadas em virtudes. Os
metafísica3 do ocidente desde Platão. A impulsos perdem seu vigor natural
tradição metafísica, dessa forma, é (primeiro) através dos valores e virtudes,
entendida por Nietzsche como dogmática, como a compaixão, a igualdade, a
ou seja, como produto de uma acepção democracia, a simpatia por tudo o que
moral transcendente da experiência tomada sofre... A degeneração global do homem é
de maneira restrita. Ela se pauta em aceitar tudo o que se pode esperar da
um princípio incondicionado, a partir do despotenciação dos impulsos, típica das
qual se promove a elaboração de conceitos virtudes do rebanho. (ARALDI, 2013:
provenientes da gramática, e o emprego de 78)
uma conduta padronizada e universal, que
exprime a estruturação de uma dada teoria.
Por isso, esse homem do “espírito de
Em vista disso, Nietzsche crítica com rebanho” é quem impera na Europa
veemência o “espírito de rebanho” que conhecida por Nietzsche, é o homem da
advém desta perspectiva, “a moral na modernidade, devoto da igualdade de
Europa é atualmente uma moral de direitos, da democracia, ou seja, reflexo de
rebanho. A nosso juízo é uma variedade de uma tentativa de nivelamento, de igualação
moral humana que deveria admitir a tanto moral, quanto conceitual.
realidade existencial e concreta de outras
morais, que ainda que sendo diferentes, são Dessa maneira, segundo Nietzsche “a
intrinsecamente superiores.” (NIETZSCHE, própria religião poderia ser usada como um
1992: 103). Compreende-se que devido a meio de presumir-se contra o fracasso e o
essa moral de rebanho, o homem comum aborrecimento ligado a um domínio mais
dedica-se a seguir formas de pensar e agir, grosseiro e de ficar preservado do
segundo princípios universais arbitrários, e inevitável lodo da política” (NIETZSCHE,
a se opor a qualquer possibilidade de 1992: 61). Constitui-se por meio da religião

3 Segundo Itaparica (2011), os pressupostos valorativos da metafísica para Nietzsche, consistem em


primeiro estabelecer um princípio válido, que estruture a configuração metafísica, tanto teológica, quanto
racionalmente. Em segundo, distender uma oposição à gramática, enquanto instrumento regulador
obrigatório na construção conceitual e no entendimento sobre a realidade através de uma constituição
prévia de valores. Em terceiro e último caso, Itaparica considera que Nietzsche opera uma crítica à
presunção de formar um modelo generalizador de avaliação, derivado de um caso particular. Salientando
ainda que, entre os antigos, o dogmatismo surgia do deslocamento da realidade sensível para a inteligível,
já entre os modernos essa configuração ocorre no cerne da própria razão, sendo expresso pela concepção
de subjetividade, atribuída desde Descartes como fundamento para todo conhecimento.

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a experiência política, cujas dimensões encontrar a moral até nas instituições


éticas ocorrem enquanto plano intelectual políticas e sociais; ” (NIETZSCHE, 1992:
de práticas reflexivas, fundamentando seu 102). Para Nietzsche, a moral é refletida
campo de atuação por meio de determinações nas práticas políticas como uma das
que visem o estado de conservação do medidas de manutenção da vida humana.
homem.
Deste modo, esta concepção de política
Assim, a religião proporciona condições a derivada de uma moralidade religiosa
alguns indivíduos para preparar-se a uma carrega consigo um jogo de interesses
futura dominação, àquelas classes fortes que velados, mas capazes de provocar um
avançam lentamente e nas quais graças à abissal adoecimento: “É preciso resignar-se
vida regrada, a força e o desejo da vontade, se o espírito de um povo que sofre e quer
a vontade da dominação de si mesmo, sofrer de febre nacional e de ambição
mantém-se num crescente contínuo: àqueles política é ofuscado algumas vezes por
a religião oferece ocasiões e tentações alguma nuvem ou qualquer outra
suficientes para a adesão a uma perturbação, se tem, em resumo, qualquer
intelectualidade mais elevada, de provar o acesso de imbecilidade; ” (NIETZSCHE,
seu grande auto-domínio, o silêncio e a 1992: 151). Esta constituição política capaz
solidão — o ascetismo e o puritanismo são de impossibilitar a manifestação do
meios de educação e de enobrecimento quase sentimento e enaltecer formas de regulação
indispensáveis, mesmo quando uma raça da vida coletiva em prol de ambições
deseja dominar sua própria origem plebeia e mesquinhas é denominada por Nietzsche
a t i n g i r u m a f u t u r a d o m i n a ç ã o. de pequena política. Acerca disto, destaca
(NIETZSCHE, 1992: 62) Nietzsche: “o tempo da pequena política
passou, o próximo século promete a luta
Nesse sentido, considera-se uma relação pelo domínio do mundo, a necessidade de
intrínseca entre a religião e a instauração da fazer a grande política”. (NIETZSCHE,
vida política e, por conseguinte, o 1992: 108)
desenvolvimento de uma concepção de
controle dos instintos, visto que para se Para Giacoia, a grande política mencionada
obter a dominação dos impulsos faz-se por Nietzsche, diz respeito a “política dos bons
necessário o uso da razão como forma de europeus e dos espíritos livres” (GIACOIA,
educação e comedimento dos sentimentos 2012: 2), a atribuição a essa faceta da política
considerados perigosos tanto à vida de predicados aparentemente louváveis
religiosa, quanto política. enseja um teor de contrariedade,
comunicando a querela existente em tal
II. A configuração da pequena e da consideração. A grande política, em
grande política em Nietzsche Nietzsche, se configura como uma
oposição à pequena política, como crítica e
Para se manter a ordem da vida em indicação da mediania e da falta de
sociedade, “por imperativo e ajuda de uma criatividade da política moderna. Sobre a
religião que se mostrou complacente com grande política destaca Nietzsche:
os desejos do rebanho, chegamos a

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Mas a França ostenta ainda um terceiro um povo. ” (GIACOIA, 2012: 2). Isto é,
titula de superioridade, na índole francesa constitui o conflito valorativo, no que
se encontra uma síntese suficientemente bem circunda a esfera democrática, pois
sucedida do norte e do sul, que permite aos apresenta uma divergência entre noções
franceses compreender e fazer muitas coisas como felicidade, estabilidade, bem-estar e
que um inglês não poderia o seu prazer. Pois, conforme esse entendimento,
temperamento que periodicamente se volta seria equiparada a ideia de sumo bem à ideia
para o sul e se distancia nesta direção, e no de comodidade e satisfação, transpondo
qual de quando em quando transborda o aqueles valores aristotélicos à modernidade
sangue provençal e lígure, preserva-o do política, o que provocaria o rebaixamento da
horrível cinzento do norte, do fantástico, da política, e consequentemente do homem
anemia dos países sem sol — da nossa proveniente dessa transposição.
moléstia germânica do gosto, contra cujo
excesso momentâneo prescreve-se o sangue e A reformulação da política, implica uma
o ferro em grandes quantidades, isto é, a reformulação cultural e moral, por isso se
"grande política" (terapia perigosa que me faz necessário dedicar-se ao agente e não
ensina a ter paciência, mas não me permite apenas ao resultado. Desta forma, na
esperar). (NIETZSCHE, 1992: 154) medida em que se almeja transformar as
instituições políticas e suas categorias
valorativas, os primeiros a serem
A noção da grande política, delineia-se, modificados precisam ser os homens, tento
portanto, na política que conduz a um tipo em vista que o limite da mudança é moral,
de homem diferente ao do que propaga as portanto, pensado a partir da possibilidade
ideias da modernidade, em que ensinamentos de novas criações valorativas e superação
como o da boa ação e o do bom de si mesmo na configuração atual.
comportamento não mais seriam
determinantes para a conservação da vida Segundo Nietzsche, a política precisa ser
política. interpretada através da projeção dos
objetivos4 relacionados a ela: promover a
A pequena política, por conseguinte, organização dos indivíduos da sociedade
“significa, tanto para o último, como para o em que se está inserido a fim de se manter
jovem Nietzsche, a confusão entre a ordem, porém com o sentido de
nacionalismo, imperialismo econômico ou converter a ideia de individualidade à ideia
militar, e identidade, grandeza cultural de de coletividade. Por isso mesmo atrelado a

4 De acordo com Berten (2004) tanto a tradição aristotélica, quanto a tradição moderna se propuseram a
elucidar quais os objetivos da política. A primeira acena que a constituição da “boa” política está
relacionada ao exercício prático do homem em sociedade livre da conduta moralizadora. Ainda segundo
esta tradição salienta-se que toda deliberação política, precisa antes de mais nada, fundamentar-se em
práticas de vida que prezem pelo bem-estar. Por sua vez, a tradição moderna, baseia-se em concepções
contratualistas “como Hobbes, Locke ou Rousseau, e em Kant”, os quais afirmam que para a formação de
uma sociedade de direitos e deveres é necessário o estabelecimentos de regras genuínas, bem como de
indivíduos que disponham de faculdades racionais, que, por conseguinte, implicarão em suas deliberações
para a constituição de regras que regulem a vida em comum, isto é, valendo-se da ideia de
universalização das normas e regras estabelecidas.

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uma percepção de política, que regula e invalidação de todo poder reconhecido e


ordena questões de caráter comum aos pela tentativa de igualação padronizadora,
indivíduos, concentrada em instâncias pois “em todas as épocas, a democracia
econômicas, militares e nacionalistas. constituiu a forma de decomposição da
Nietzsche, de modo distinto, procura não força organizadora” (NIETZSCHE, 2011:
se delimitar unicamente nestas variantes ou 39). Nietzsche observa com desconfiança
mesmo segundo os interesses movido por os valores de bem-estar, conforto e
elas, mas destacar que questões referentes a felicidade difundidos na época moderna,
política, pensadas em tal medida, pois no cenário da industrialização e
circunscreve o campo da pequena política. democratização, os valores da cultura e do
homem, correspondem a um estado de
Nessa perspectiva, Nietzsche estima que se igualação e uniformização.
pense em toda a amplitude da política,
tanto na vertente relacionada ao que é A visão nietzschiana, corrobora para a
individual, quanto na direção do que é interpretação do homem nessa sociedade
coletivo, quer dizer, pensar nos modos moderna como um apequenado, por
valorativos da política e em suas Nietzsche identificá-lo a partir de um
defor midades. Nietzsche destaca a mecanismo utilitarista, e uma forma de
configuração daqueles homens reflexos da manter estável essa formulação. Em vista
pequena política: disso, acena Giacoia:

Para falar sem meias palavras, são Nietzsche interpreta a racionalização


niveladores, desses que se chamam global da sociedade, emergente com a
erroneamente "livre-pensadores", escravos revolução industrial, como maquinalização
a serviço do gosto democrático, homens do homem, como solidarização reificadora
privos de solidão, de uma solidão que lhes das peças de um imenso mecanismo de
seja própria, são, enfim, ridiculamente ‘interesses e rendimentos’, que promove o
superficiais, sobretudo por sua tendência moderno sucateamento geral do tipo-homem,
fundamental de ver nas formas da na armação dessa monstruosa engrenagem
antiguidade a causa de toda miséria universal feita de "rodas sempre menores,
humana. Sua aspiração é a felicidade do sempre mais finamente ‘adaptadas. ’" Esse
rebanho, as verdes pastagens, a segurança e ajustamento global dos interesses e
o bem-estar. As duas cantilenas que rendimentos implica também, por outro
repetem até o cansaço são "a igualdade dos lado, na fragmentação do homem pela
direitos" e a "compaixão relativamente a divisão alienante do trabalho tornado
todo ser que sofre"; consideram que o abstrato, em sua transformação em
sofrimento é algo que deve ser exterminado. indivíduo adestrado, laborioso, utilizável em
(NIETZSCHE, 1992: 44) múltiplas ocupações, nivelado e indefinidamente
intercambiável. (GIACOIA, 2012: 5)
De acordo com isso, a pequena política
associada às “ideias modernas” conduz a Nietzsche, por isso, entende a sociedade
um processo de nivelamento, pois a crítica b u r g u e s a c o m o u m a ve r t e n t e d a
nietzschiana à democracia coaduna-se pela solidificação da modernidade e do seu

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aproveitamento do homem, enquanto indivíduo, o que, por conseguinte, afeta de


instrumento de aquisição de poder, cuja maneira geral a todos da sociedade.
atividade corresponde a uma troca
insidiosa de força. “A ociosidade é um peso A fixação pela razão, que move o ideário
sobre as espáduas das raças laboriosas. de progresso tecnológico e científico
Através de um golpe de mestre o instinto alavanca as estruturas industriais e liberais,
inglês fez do domingo um dia santo e através de políticas que estimulam a ideia
enfadonho, tão enfadonho que deseja de igualdade, de modo que, segundo a
inconscientemente os dias de trabalho interpretação nietzschiana:
como espécie de jejum inteligentemente
criado e posto” (NIETZSCHE, 1992:189), Nenhum desses animais de rebanho,
pois a estrutura dessa sociedade é mantida pesados e de consciência inquieta (que
por um gerenciamento que diz garantir pretendem dissimular os interesses do
comodidade e segurança em troca da força egoísmo sob os do bem-estar geral) quer
produtiva do homem. “Estamos no tempo entender ou pressentir, que o bem-estar geral
das massas e estas se atiram ao solo diante não é um ideal, uma meta, um conceito que
de qualquer coisa que seja maciça. E isso se possa formular claramente, mas
também em política.” (NIETZSCHE, sobretudo um meio de abrir uma passagem
1992, p. 141). que permita apenas um vau e nenhum
outro; que o pretender uma única moral
III. Os desdobramentos da moral no para todos tende precisamente a golpear os
âmbito da modernidade política homens superiores, que existe uma diferença
de grau entre os homens e consequentemente
A modernidade política, para Nietzsche, ao entre as morais. (NIETZSCHE, 1992:
contrário de proporcionar uma perspectiva 128)
positiva no que tange a economia e seus
efeitos, instaura um processo comparado a Essa tendência a uma moral de rebanho é
uma escravização do homem e de sua força proveniente de um emprego valorativo
produtiva: “O prognóstico nietzschiano autoritário e dominador, com a pretensão
pode ser assustador: haverá uma progressiva de eleger o valor de todos os valores, e
escravização das massas, um domínio cada assim, concentrar o homem em uma única
vez mais despótico sobre a população, até via de acepção, em um único modo moral
chegar ao extermínio de inúmeros grupos” aceitável de legitimação.
(BARRENECHEA, 2003: 61). Uma
tentativa de eliminar as singularidades de Para Nietzsche, os valores políticos
cada um, em prol de um aprimoramento instaurados na modernidade se baseiam no
do todo, cuja estruturação minimiza as estabelecimento de uma moral absoluta. A
forças criativas e provoca danos ao pretensão de consolidação de uma

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unilateralidade5 moral, que segundo a Em vista disso, o processo de igualação do


perspectiva nietzschiana, consiste na moral homem desenvolvido pela moral de
de rebanho, aquela que impõe apenas uma rebanho, sob a figura do liberalismo
possibilidade de ocorrência no meio social burguês, retoma a ideia socrático-platônica
e que se mantém devido a difusão de um de racionalização e universalização, pois a
modo de pensar e se comportar ditado pela constituição de uma determinação moral,
expectativa de alcançar o bem e a que se julga válida para qualquer finalidade,
segurança de todos. Com isso, para também elabora um mecanismo de vida
Nietzsche, o que se instaura é um processo gregária, fundado na moral cristã, com a
de dissimulação de interesses e metas, já intenção de regular as paixões e dirigir o
que é a moral de rebanho que orienta os homem ao reto caminho, e, por conseguinte,
homens a privilegiarem o bem-estar. proveniente ainda dessa concepção,
Tendência que, segundo Nietzsche, promover a democratização que mantém a
impossibilita o homem de pensar por si moral de rebanho ativa.
mesmo, e tornar-se autônomo.
Nietzsche detecta, por conseguinte, uma
Considerando isto, pode-se destacar que ameaçadora derivação da configuração das
Nietzsche, a respeito da crítica mobilizada ideias modernas enquanto expressão da
à modernidade, reconhece o mundo moralidade investida: a ameaça niilista.
europeu como uma representação da Conforme salienta em A genealogia da moral:
unanimidade de uma moral, estabelecida
pela diligência de designar o que seja certo E precisamente nisso está o destino fatal da
e o que seja errado. Dessa forma, a crítica Europa - junto com o temor do homem,
nietzschiana à modernidade desdobra-se perdemos também o amor a ele, a reverência
em uma crítica à modernidade política em por ele, a esperança em torno dele, e mesmo
função de, segundo Giacoia: a vontade de que exista ele. A visão do
homem agora cansa - o que é hoje o
Para ele, o liberalismo burguês, com suas niilismo, se não isto? Estamos cansados do
aspirações universais à liberdade e homem... (NIETZSCHE, 2009: 44)
igualdade conduz fatalmente, no plano
político, às instituições democráticas e O niilismo é compreendido por Nietzsche
daqui tanto à absoluta igualização da como um desinteresse e desanimo do
humanidade na camisa de força social do homem com ele próprio; aborrecimento e
“rebanho autônomo”, quanto à anárquica aversão de si mesmo. Nesse ínterim, o
vontade de destruição de todo regime niilismo corresponde a uma percepção
existente. (GIACOIA, 2012: 6) 
 histórica de perda de sentido e supressão
da validade dos valores morais da cultura, a

5 De acordo com Viesenteiner (2006) a concepção de unilateralidade “político-moral”, refere-se a um


processo de decadência estabelecido pela moral judaico-cristã e, por conseguinte, implicado nas
manifestações político-sociais da modernidade, permitindo que uma compreensão moral se torne
absoluta, de tal modo, afastando-se do campo dos conflitos com a intenção de uma moral valida
universalmente, que, para Nietzsche, impossibilita o desenvolvimento da grande política.

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partir de uma experiência comum da apatia O homem, nesse sentido, era orientado a
niilista, suscitando em uma irreflexão do abdicar dos seus impulsos e propensões
homem da modernidade e em um fisiológicas, e guiar-se por um princípio em
afastamento de suas características que o suprassensível deveria ser estimado e
individuais. Como indica Araldi: honrado. Segundo esta perspectiva, este
entendimento consolidou-se na modernidade,
Os diversos estudos realizados por interposto pela capacidade prescritiva, pela
Nietzsche nos anos 80 remetem a questão moralidade e pelo temor, alcançando a
do niilismo ao horizonte de inquietações da condição de canal entre os homens e Deus,
modernidade. Com o termo niilismo (der apenas conseguindo conduzir-se a esse
Nihilismus), ele procurava abarcar as último por intermédio da crença religiosa.
diversas manifestações da doença ou crise Porém, o aparecimento do niilismo
inscritas na história do homem ocidental, ameaçou a confiabilidade de tais valores,
de modo a atingir a raiz comum dessa advertindo o homem para o embaraçoso
doença, qual seja, a instauração da estágio em que se encontra. Segundo o
interpretação moral da existência dá qual ressalta Nietzsche:
origem ao niilismo ocidental. O niilismo é
para Nietzsche uma questão fundamental, O niilismo aparece agora, não porque o
através da qual a experiência de desprazer pela existência fosse maior do que
instauração e dissolução dos valores morais anteriormente, mas porque em geral o
é trazida à problematização filosófica, homem tornou-se desconfiado em relação a
para explicitar a sua lógica de um “sentido” no mal, e mesmo na
desenvolvimento. A modernidade é o existência. Uma interpretação sucumbiu;
momento decisivo do processo, pois nela o mas porque ela valia como a interpretação,
niilismo se radicaliza e apresenta suas parece como se não houvesse nenhum sentido
formas mais acabadas. Através do na existência, como se tudo fosse em vão.
niilismo Nietzsche buscava captar o (NIETZSCHE, 2013b: 251)
espírito de incerteza, dúvida e hesitação
que acrescia no exercício filosófico e na
ação do homem moderno. (ARALDI, Desse modo, para efeito de compreensão
1998: 76) indica-se duas inflexões do niilismo, a
primeira corresponde ao niilismo ativo
Enquanto uma das consequências da (NIETZSCHE, 2013a), definido como
modernidade, o niilismo para Nietzsche, aflição e tendência a aniquilação, e o
indicava a possibilidade de superar os segundo reflete o niilismo passivo,
valores constituídos por meio da concebido enquanto renúncia e submissão,
autoridade do cristianismo6. sendo estes aspectos preponderantes na
configuração da moral de rebanho, e
condizem a um estado de enfermidade da

6 Para Viesenteiner (2006) a configuração cristã é compreendida por Nietzsche como uma implicação de
caráter judeu, que, por sua vez, traduz um movimento niilista. De acordo com ele, para Nietzsche, o
cristianismo representaria a negação dos instintos e do próprio mundo, por isso, coloca o cristianismo
“como religião de décadence”.

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faculdade humana de fazer deliberações e instintos, as pulsões e vontades próprias da


igualmente pela dificuldade de empenhar- natureza do homem.
se a uma direção oposta a moral cristã.
Acerca das Causas do niilismo, destaca Precisamente nisso enxerguei o grande
Nietzsche em seus Fragmentos Póstumos perigo para a humanidade, sua mais
de 1885-1887: sublime sedução e tentação – a quê? ao
nada? –; precisamente nisso enxerguei o
1) falta a espécie superior, isto é, a espécie, começo do fim, o ponto morto, o cansaço
cuja fecundidade e o poder inesgotáveis que olha para trás, a vontade que se volta
mantém a crença no homem. [...] contra a vida, a última doença
2) a espécie inferior, o “rebanho”, a anunciando-se terna e melancólica: eu
“massa”, a “sociedade”, desaprende a compreendi a moral da compaixão, cada
modéstia e insufla suas necessidades até elas vez mais se alastrando, capturando e
se tornarem valores cósmicos e metafísicos. tornando doentes até mesmo os filósofos,
Por meio daí, toda a existência é como o mais inquietante sintoma dessa
vulgarizada: na medida justamente em que nossa inquietante cultura europeia; como o
a massa impera, ela tiraniza as exceções, de seu caminho sinuoso em direção a um novo
tal modo que estas perdem a crença em si e budismo? a um budismo europeu? a um
se tornam niilistas. (NIETZSCHE, -– niilismo?…(NIETZSCHE, 2009:
2013a: 44) 26)

Por isso, o homem da modernidade agrega


as mais variadas experiências e descobertas. Essa disposição para negar a vida e
O convalescer da vontade nesse ambiente também suas imbricações vitais, são
de transformações, produz dois tipos de observadas por Nietzsche como reflexo da
homem, um tipo perturbado, cansado, e moralidade cristã alicerçada na razão
com um desejo ardente de encontrar a humana, que relacionada a uma percepção
felicidade, o outro, também se apresenta metafísica, confere ao niilismo passivo
fadigado e padecido, mas ao contrário do características de temeridade e fragilidade,
primeiro, usa o que lhe acomete a seu levando a um esgotamento do espírito. De
favor, guerreia com os sentimentos acordo com Nietzsche, os valores vigentes
opostos, pois esse é seu grande incentivo a partir desses princípios não apresentam
para a vida. nenhuma correspondência com a realidade,
e são precisamente essas noções valorativas
Na A genealogia da moral, através da iniciativa que regem o niilismo, por intermédio de
genealógica, Nietzsche problematiza a um código valorativo, que associado ao
questão do niilismo como tendo sua homem, regula a modernidade. De maneira
procedência desde a instauração dos que se inventa metafisicamente o suprassensível,
valores socrático-platônicos e também por pela inaptidão do homem de afirmar a vida e
meio do cristianismo, derivado de uma viver mediante as adversidades que ela
coibição das manifestações fisiológicas do apresenta.
homem, com a intenção de negar os

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Crítica da Modernidade Política em Nietzsche

Sendo, portanto, em tal medida que a maioria das vezes insuficiente e voltado a
moral de rebanho identificada no niilismo atender demandas emergenciais e efêmeras:
passivo está relacionada a constituição da “Vive-se o momento, vive-se muito
modernidade política, pois a denúncia depressa, vive-se sem responsabilidade
nietzschiana a determinadas práticas alguma, e isso precisamente é o que se
políticas diz respeito ao empreendimento chama liberdade. ” (NIETZSCHE, 2011:
de medidas que visam a título de cuidado 89). O cenário político, por sua vez,
do homem7, unicamente a promoção da também configurado por interesses
ordem, da segurança, da igualdade e da mercadológicos, pauta-se nas necessidades
democracia. Na medida em que se valoriza daqueles que consomem, que são
a ideia de que os homens unidos se dependentes de determinados produtos e
protegem, mesmo que em sociedade isso serviços. Por isso, analisar esse homem do
ocorra de modo organizado, raciocinado e consumo, através da perspectiva política,
proposto pela política. Isto para Nietzsche, potencializa a crítica nietzschiana, pois o
é somente a indicação da moral de rebanho homem é movido pela oscilação entre
se manifestando. saciedade e carência:

A pequena política, nesta medida, Esse homem que, por falta de inimigos e
impulsionada pela pretensão de garantir resistências exteriores, cerrado numa
assistência, segurança e cuidado, incentiva opressiva estreiteza e regularidade de
o homem a técnicas que o animalizam, que costumes, impacientemente lacerou,
o enquadram a um modelo geral de perseguiu, corroeu, espicaçou, maltratou a
existência. A uniformidade do rebanho si mesmo, esse animal que querem
instituído na modernidade, para Nietzsche "amansar", que se fere nas barras da
apresenta-se como uma atitude de própria jaula, este ser carente, consumido
mediocrização8, de apequenamento e pela nostalgia do ermo [...].
decadência do tipo homem. (NIETZSCHE, 2009: 32)

Na visão de Nietzsche, a decadência do


homem, implica a decadência da própria Esse homem, tal qual a política, que para
política, já que seu desempenho é na se manter, precisa desenvolver tanto a ideia
de carência, quanto de saciedade, dado que

7 De acordo com Foucault na sua obra Microfísica do poder (1995) o Estado moderno é o da eficiência,
em que o soberano percebe que precisa cuidar dos seus súditos. Nesse viés, abandona-se a característica
do Estado antigo para o Estado moderno, pois antes não se tinha um cuidado do corpo, estimulava-se
apenas o processo produtivo de cunho quantitativo porém, com o advento do Estado moderno, passa-se
ao cuidado dos corpos para seu melhor funcionamento e desempenho, intencionando conservar uma mão-
de-obra saudável capaz de produzir ainda mais, sem adoecer, já que a debilitação de um indivíduo seria
razão de gastos desnecessários. O soberano se dispõe a cuidar do corpo da sua classe operária, não por se
preocupar com a qualidade de vida destes, mas com a qualidade de sua produção, mantendo assim, o bom
andamento de seu governo e da sua manutenção do poder.
8 Para Giacoia (2012) a ideia de “mediocrização” associada ao interesse mercadológico que incentiva as

pequenas felicidades, os fortuitos prazeres niveladores do homem, retratam o caráter da sociedade


burguesa moderna. Segundo ele, para Nietzsche, tudo isso reflete nas máximas de “ideologia da
liberdade, igualdade e fraternidade universais”.

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a cada carência suprida, rapidamente se na vida política, atribui a esta toda


engendra uma nova técnica, a fim de se responsabilização por sua condição
instaurar na mentalidade humana a sua deplorável e medíocre, dado que sua
necessidade, quando na verdade, o que constituição reativa impossibilita sua auto
ocorre é um financiamento da estrutura responsabilização. Nietzsche, ao apontar os
política. prejuízos de uma política convertida a
clamores para o alcance de alguma
A valorização desses desejos de consumo garantia, assinala que em vez de favorecer
são um dos propulsores da política, posto o homem, permite que “o utilitarismo das
que, em função da implantação da ideia de avaliações morais permaneça subordinado
necessidade, precisa-se ao mesmo tempo, unicamente à utilidade do rebanho” (NIETZSCHE,
criar a ideia de que todos na sociedade 1992: 184), acaba implicando uma moral de
necessitam das mesmas aquisições, e, para rebanho.
tanto a política estabelece a ideia de
igualdade, oportunizando a todos a Mas, ainda que Nietzsche por vezes pense
adquirirem aquilo que desejam. Segundo a na política usando como instrumento a
análise da política, pela ótica dos interesses crítica, ele também a reflete na perspectiva
de mercado, pode-se verificar que a da grande política, conforme demonstrado
igualdade pensada através da concordância anteriormente neste tópico. Desse modo,
com a democracia, agencia um nivelamento segundo a assimilação nietzschiana:
do homem.
Nós que temos uma fé diferente, nós, para
Para Nietzsche (1992), o fomento de quem o movimento democrático representa
interesses aparentemente corretos na não apenas uma forma de decadência da
política moderna, representados pelo organização política, mas também uma
desejo de vida confortável e assistida, forma de decadência, isto é, uma
conferem um caráter de exigência do diminuição do homem, uma mediocrização,
homem para com a política, no sentido que é um abaixamento do seu valor, para qual
delegado totalmente a ela a responsabilidade ponto deveríamos dirigir nossa esperança?
de segurança e bem-estar. O homem, a seu — Para novos filósofos, não há outra
modo entende que sua responsabilidade é escolha, para espíritos fortes e suficientemente
seguir as determinações políticas valorativas, independentes, tanto para poder dar um
para que o bom funcionamento da vida em impulso a juízos de valor opostos,
sociedade se mantenha. reformar, inverter os valores eternos —
verdadeiros precursores do homem do
Nesse sentido, em Crepúsculo dos Ídolos futuro, os quais presentemente devem
Nietzsche expõe: “Nossas instituições não formar o núcleo que constrangerá a
valem nada: nisto todos concordam. Porém a vontade dos milênios a abrir novos
culpa não é delas, mas nossa” (NIETZSCHE, sendeiros, ensinar ao homem que o seu
2011: 67). O tipo homem produto desse futuro é a... vontade, que da vontade de
processo moderno político, eximindo-se de um homem depende a preparação de
sua participação enquanto agente criador e grandes ousadias e tentativas complexas
promotor de novas constituições valorativas para a elevação e melhoria para colocar um

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Crítica da Modernidade Política em Nietzsche

termo à horrível dominação do contra- usualmente, e muito superficialmente, até


senso e do caso que até agora se chamou de agora; e ainda  não veio  o tempo de se
"história) — o contra-senso do "número colocar propriamente em discussão um novo
máximo" é apenas a última forma — e projeto político – isto é, de conseguir
para alcançar tudo isto um dia se determinar plenamente o conteúdo daquilo
manifestará a necessidade de uma nova que Nietzsche passa a designar sob o nome
espécie de filósofos e de governantes, frente de “grande política”. Ver-se-á que é
aos quais tudo aqui que foi até agora, no precisamente ela que permite compreender
mundo, espíritos misteriosos, terríveis e por que a filosofia nietzschiana pode ser
humanitários, será apenas uma pálida e caracterizada como uma filosofia
triste imagem. (NIETZSCHE, 1992: “antipolítica” em vez de “apolítica”.
209) (DENAT, 2013: 45)

Este posicionamento de Nietzsche, por um


lado, indica uma leitura crítica da política a Em vista disso, a política pensada por
partir da sua formação democrática, por Nietzsche precisa ser compreendida não
esta considerar o homem de maneira como uma prescrição de leis e etapas
universal e rebaixar seus valores ligado a universais a serem cumpridas, tão pouco
sua singularidade, e por outro lado, ainda classificar o filósofo como apolítico,
possibilita uma distinta percepção da de maneira oposta, é importante analisar a
organização política. Isto devido ao fato de política através da interpretação da grande
observar uma nova perspectiva para a política, uma vez que ela permite, além de
questão política, cujo o interesse seja de uma visão crítica, uma visão nova de
afirmar a vida, valorizar as particularidades política. A política relacionada a diferentes
de cada um, aberta ao pensamento criativo, construções valorativas e em consonância
apreciadora de novos valores, estimuladora com a afirmação da vida, do corpo e de
de vontades e desejos que levem o homem seus instintos.
a outras formulações de existência.
Por este motivo, Nietzsche aponta a
Corroborando a essa interpretação Denat condição problemática do cenário político,
esclarece que, cujas resoluções expressam em sua maioria
ideias envelhecidas, e quando apresentam
para o filósofo extemporâneo, o tempo não é renovações, não passam de reproduções,
mais  da política tal como pensada repetições9 do mesmo, pois a intenção de

9 Para Deleuze (2006) o conceito, segundo a tradição filosófica, é uma tentativa de atribuir unidade àquilo
que tem múltiplas percepções, sendo portanto, uma representação e não diferença. Segundo essa
interpretação, o conceito é produção, criação, cuja filosofia da diferença se constitui a partir dos próprios
limites da representação, no qual, para o filósofo, a repetição do igual precisa ser evitada, para que
aconteça a repetição da diferença, a mudança pela diferença. Em tal medida, mesmo a filosofia da
diferença é uma filosofia da produção de conceitos, na qual não se tem mais um objeto fixo, e sim, a
repetição da diferença. O filósofo, por conseguinte, deve tentar falar do mundo, que é por sua vez
dinâmico, da mesma forma que os atributos do conceito. A filosofia preconizada por Deleuze é a da
efetividade, e não a da estaticidade, é uma filosofia da repetição da diferença, constatando-se que o real é
composto pela relação contínua da diferença.

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renovar do Estado, constitui-se em uma interesses próprios, que só visam a


tentativa de corrigi-lo, corroborando a ideia preservação dessa estrutura.
socrático-platônica de promover ajustes
nas estruturas sociais através da razão e da Face a ineficácia e ameaça da pequena
valorização da universalidade, priorizando política, que lança impedimentos dos mais
assim, a noção de bem-estar em detrimento da diversos ao processo criativo do homem,
individualidade de cada um (NIETZSCHE, Nietzsche estimula a grande política,
1992). enunciando uma nova significação, ou seja,
uma política que não seja autoreferencial,
Nietzsche não se abstém de discutir as que permita a reflexão, que promova novas
questões políticas 10 , filosóficas ou problematizações, e não um programa de
sociológicas, por diagnosticar nelas regras a serem cumpridas, e empregadas
prenoções não observadas, decorrentes dos como medida universal. Mas antes disso,
instintos e particularidades fisiológicas do segundo a interpretação nietzschiana, o
homem. Nessa perspectiva, apesar das homem fruto da pequena política, precisa
teorias políticas reivindicarem uma rigidez ser superado, seus pressupostos carecem de
e determinação, são somente acontecimentos outros referenciais, de outras constituições
superficiais, resultados incapazes de valorativas, e principalmente de homens
atingirem seus reais interesses. De modo que possam interpretar a grande política
que, as proposições políticas, enquanto como espíritos livres.
manifestação da pequena política,
exprimem em sua maioria uma condição IV. Considerações finais
de enfraquecimento fisiológico, por
priorizarem medidas intelectualizadas de A proposta de Nietzsche acerca de uma
teorias que se repetem. grande política, acarreta, antes de mais
nada, uma inevitável ação de tornar férteis
Com isso, o abatimento crescente do os homens, conduzi-los ao âmbito da
homem através de sua padronização criação e reconfiguração de aspectos
apresenta como efeito a fragilidade do relacionados a cultura e a valores. A grande
todo, visto que a prescritiva estrutura política expressa-se enquanto política
política referente a ideia de bem comum cultural, que se entusiasma em outro tipo
comporta uma incoerência em seu interior. de homem, em outra representação que
Na visão de Nietzsche, o principal não a tipologia das tendências modernas,
problema de entender a exigência do bem da preconização da igualdade e do
comum, proclamado pela política é movimento democrático como pré-
eliminar da política a manutenção de requisito para se alcançar a felicidade.

10 A este respeito salienta Barrenechea: “Considero que a maior contribuição de Nietzsche para o
pensamento político consiste em apresentar um prognóstico de transformação da sociedade, ultrapassando
as meras mudanças econômicas e políticas. Ele não se detém na proposta de uma alteração burocrática,
mas almeja uma modificação qualitativa da humanidade. O homem deve retornar ao seu eixo, após o
extravio milenar idealista que o afastou de sua procedência trágica”. (BARRENECHEA, 2003: 51)

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Crítica da Modernidade Política em Nietzsche

Em vista disso, a exigência de inalteração e propícia a estimular o consumo e o lucro,


estabilidade comumente advém de uma representando a deterioração da cultura,
assimilação negativa da vida, visto que o dado que as capacidades de criação e de
homem adepto desta compreensão crítica do homem são reprimidas, a fim de
formula uma aversão ao mundo material, se fortalecer um genuíno instrumento de
identificando-o como um cenário de manobra, que cultiva em vez da criação e
sofrimento e enfermidades. De maneira superação, posturas superficiais e
que, para uma existência menos adoecida é padronizadas.
preciso ocorrer transformações e novas
criações valorativas, possibilitando ao que é
considerado percalço oportunidade do Referências Bibliográficas
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configura esse estado é a decadência BERTEN, A. Filosofia política. Trad. Márcio
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promover o incentivo desse homem
criador, fomenta uma uniformização

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