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Brazilian Journal of Development 12475

ISSN: 2525-8761

Transformações no médio Rio Araguari, no Amapá: contribuições ao


debate sobre conflitos na pesca artesanal

Transformations in the middle Araguari River, in


Amapá:contributions to the debate of conflicts in artisanal fisheries

DOI:10.34117/bjdv7n2-050

Recebimento dos originais: 20/01/2021


Aceitação para publicação: 04/02/2021

Laís Melo Lima


Mestre em Geografia
Grupo Acadêmico Produção do Território e Meio Ambiente
Universidade Federal do Pará
Endereço:Rua Augusto Corrêa, 01 – Guamá-Belém - PA, CEP: 66075-110
E-mail: laism.l@hotmail.com

Christian Nunes da Silva


Pós-Doutor em Desenvolvimento Regional
Grupo Acadêmico Produção do Território e Meio Ambiente
Universidade Federal do Pará
Endereço:Rua Augusto Corrêa, 01 – Guamá-Belém - PA, CEP: 66075-110
E-mail: cnsgeo@yahoo.com.br

Cristiano Quaresma de Paula


Pós-Doutor em Geografia
Universidade Federal do Rio Grande
Endereço:Av. Itália, s/n - Km 8 – Carreiros-Rio Grande - RS, CEP: 96203-900
E-mail: cqpgeo@gmail.com

Vicka de Nazaré Magalhães Marinho


Mestre em Geografia
Grupo Acadêmico Produção do Território e Meio Ambiente
Universidade Federal do Pará
Endereço:Rua Augusto Corrêa, 01 – Guamá-Belém - PA, CEP: 66075-110
E-mail: vickamarinho@hotmail.com

Adria de Melo Rosa


Graduanda em Geografia
Grupo Acadêmico Produção do Território e Meio Ambiente
Universidade Federal do Pará
Endereço:Rua Augusto Corrêa, 01 – Guamá-Belém - PA, CEP: 66075-110
E-mail: adriamelorosa@gmail.com

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RESUMO
O presente artigo discorre sobre as transformações na pesca artesanal, ocorrida nos
últimos anos, no rio Araguari, no estado do Amapá, decorrentes dos empreendimentos
hidroelétricos, instalados em seu trecho médio. Como forma de verificar os impactos
suscitados, procedeu-se à aplicação de questionários semiestruturados e à utilização de
mapeamento participativo, junto aos pescadores do município de Porto Grande, sujeitos
de interesse desta pesquisa. A partir dos dados obtidos, constatou-se que a implantação
da hidroelétrica Cachoeira Caldeirão promoveu alterações, tanto no ambiente físico do
rio quanto na prática da pesca artesanal na região, sendo inúmeros, os relatos dos
pescadores artesanais, quanto aos prejuízos na atividade pesqueira, apontando para um
cenário de conflitos, de tensões e de limitações territoriais.

Palavras-chave: Pesca artesanal, Conflitos na pesca, Hidroelétricas, Amazônia.

ABSTRACT
This article discusses the transformations in artisanal fishing that occurred in recent years,
on the Araguari river, in the State of Amapá, resulting from the installation of
hydroelectric projects in its middle section. In order to verifying its impacts, we proceeded
to the application of semi-structured questionnaires and the use of participatory mapping,
with the fishermen of the municipality of Porto Grande, subjects of interest in this
research. From the data obtained, it was found that the implementation of the Cachoeira
Caldeirão hydroelectric plant has promoted changes, both in the physical environment of
the river and in the practice of artisanal fishing, in the region, with countless reports by
artisanal fishermen, in terms of losses in fishing activity, pointing to a scenario of
conflicts, tensions and territorial limitations.

Keywords: Artisanal fishing, Fishing conflicts, Hydroelectric plants, Amazon.

1 INTRODUÇÃO
A pesca artesanal constitui uma das atividades predominantes, para a subsistência
das comunidades amazônicas, conforme já abordado por outros autores, entre os quais,
Furtado (1993) e Silva (2006). No que concerne aos pescadores do município de Porto
Grande, tal realidade não é diferente, pois são inúmeras as famílias que têm, na pesca, sua
principal fonte de renda. Todavia, com a instalação do empreendimento hidroelétrico
Cachoeira Caldeirão, os pescadores artesanais passaram a relatar inúmeros prejuízos à
atividade, os quais podem redundar em sua própria desestruturação, decorrente de uma
maior pressão sobre suas áreas de atuação.
Com a busca por novas áreas, acentuam-se os cenários de conflito entre
pescadores, assim como entre pescadores e outros agentes, que utilizam o rio, com fins
diversos, contribuindo para a materialização de conflitos e de tensões, além da

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desorganização das pequenas relações comerciais entre pescadores e atravessadores, que


abastecem a cidade de Porto Grande, por meio de um limitado comércio.
Nesse sentido, o presente artigo tem o objetivo de divulgar dados, colhidos durante
os anos de 2018 e de 2019, sobre os impactos da chegada das hidrelétricas na pesca
artesanal, relatados pelos pescadores de Porto Grande (AP). Para tanto, foram realizados
procedimentos in loco, por meio da aplicação de questionários semiestruturados aos
pescadores artesanais desse município, bem como foram efetuadas visitas às áreas
atingidas pelo empreendimento hidroelétrico Cachoeira Caldeirão.
Além disso, procedeu-se à aplicação da metodologia do mapeamento participativo
(SILVA; VERBICARO, 2016), junto aos pescadores impactados, ao longo do trecho
médio do rio Araguari, através da qual foi possível espacializar informações,
concernentes às áreas de tensões e de conflitos, vivenciadas por tais pescadores. Por fim,
é importante enfatizar que, na aplicação dessas metodologias, utilizaram-se apenas
referências geográficas do médio rio Araguari, de forma a não influenciar a análise feita
pelos pescadores.
Ademais, a presente leitura se propõe a contribuir com os estudos sobre a pesca
artesanal, relativos às áreas impactadas pela presença de empreendimentos hidrelétricos,
assim como sobre os seus efeitos, relativamente à percepção territorial e às
territorialidades dos pescadores, que passaram a ter visibilidade, pelas falas dos principais
atingidos por tais obras, na região do médio rio Araguari.

2 EMPREENDIMENTOS HIDRELÉTRICOS NO RIO ARAGUARI


A instalação de empreendimentos hidrelétricos no rio Araguari compreende dois
momentos distintos. O primeiro, na década de 1970, marcado pelo erguimento da
hidrelétrica Coaracy Nunes, configurou-se, a partir do incentivo das políticas do período
dos governos militares, somado à atividade de exploração mineral do manganês, que
impulsionou o processo de aceleração da expansão urbana de Macapá.
Assim, a exploração mineral passou a ser um vetor de atração populacional,
havendo a necessidade de investimentos no setor elétrico (VIANA, 2017). Apesar das
controvérsias, quanto à população deste período no, então, Território Federal, que, mais
tarde, viria a se tornar o estado do Amapá, a principal afirmação, para investimentos neste

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setor, foi a indústria eletrointensiva, inserindo a energia na região, primeiramente, por


termoelétricas, e, depois, por hidrelétricas.
O segundo período, o qual abordamos, corresponde aos últimos dez anos, com a
instalação das usinas hidrelétricas de Ferreira Gomes e de Cachoeira Caldeirão. As duas
usinas constituem pequenas centrais hidrelétricas, estando localizadas no trecho médio
do rio Araguari, próximas às cidades de Ferreira Gomes e de Porto Grande (Figura 1).

Figura 1 – Mapa de localização do munícipio de Porto Grande, no Amapá

Fonte: elaborado por Lima (2019)

A construção das usinas é resultado da relação entre o capital estatal e o capital


privado. Tal relação materializa os efeitos do chamado neoliberalismo, propondo um
modelo de gestão territorial e de ação política, no qual o Estado tem atuação flexibilizada
(ANTUNES, 2004). Tal modelo, proposto através do Programa de Aceleração do
Crescimento (PAC), tem, em seu escopo, uma série de medidas, que visam inserir, a partir
de obras de grande vulto, por meio de políticas de infraestruturas, a dinamização e o
fomento econômico de áreas, como a da Amazônia, distantes e de difícil acesso, de modo
que esta região passe a cumprir, de acordo com Antunes (2004), com a reestruturação
produtiva do capital.
A presença de hidrelétricas no rio Araguari ocorre em períodos distintos, trazendo
questões, quanto aos modelos de gestão de seus respectivos momentos (SANTIAGO;

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OLIVEIRA FILHO, 2019). Quando a primeira usina hidrelétrica da Amazônia, a Coaracy


Nunes, foi instalada, a política de gestão estava centralizada no Estado. No modelo mais
recente, observa-se a flexibilização da atuação estatal e o consequente afrouxamento dos
modelos econômico e político correntes, promovendo o estabelecimento de parcerias com
o capital privado.
De todo modo, o contexto histórico amazônico não sofre alterações, ou seja,
ocorre a continuidade do modelo de exploração de recursos naturais, com ênfase na
exploração de matérias-primas, como minérios, o fomento a indústrias de base, pelo
fornecimento de matéria-prima, e, agora, de energia, por usinas hidrelétricas. A questão
do contexto atual é a dos impactos negativos do novo modelo para as cidades amazônicas,
assim como para as comunidades, que dependem de recursos, como o da pesca, para a
sua sobrevivência.

3 CARACTERIZAÇÃO DOS PESCADORES DE PORTO GRANDE


Para a caracterização dos pescadores, utilizaremos o conceito de organização
social dos pescadores artesanais, aplicado ao contexto amazônico, em estudos sobre a
pesca artesanal, encontrados em Furtado (1993) e em Silva (2006), que o definem, pelas
estruturas substanciais de suas práticas, tais quais a captura, o beneficiamento, as
embarcações, o comércio e as relações de parceria, que são aspectos importantes, para
entendermos a percepção territorial promovida pelos pescadores artesanais.
Para tanto, entende-se o território, conforme Raffestin (1993), como constituído,
principalmente, por relações, ou seja, pela comunicação entre atores, em que se manifesta
o poder, o qual é atributo ou adquirido, constituído de conhecimento, de pratica e de
informação, isto é, de ações do vivido, cujo exercício promove o domínio sobre espaços
e sobre pessoas, no intuito de garantir os seus propósitos.
Dito isso, é interessante compreender de que forma se constitui o território da
pesca artesanal, ao qual vamos nos referir, durante esse artigo: o território da pesca
artesanal da região estudada é o meio aquático, é o rio Araguari, no qual os pescadores,
através das relações, que mantêm entre si e com a natureza, manifestam, mesmo que
inconscientemente, o exercício do poder, isto é, a utilização de conhecimentos, de saberes
tradicionais e de experiências vividas no uso e no manejo de seus recursos.
Desse modo, a atividade pesqueira artesanal detém uma parcela de trabalhadores
do meio aquático, que possuem suas próprias ferramentas e seus códigos de conduta e de

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administração material e, ainda que ocorra no meio aquático e de maneira informal, os


pescadores artesanais estabelecem seus meios e seus recursos, para formalizar suas
permissões, como a colocação de apetrechos, que podem ser fixos ou móveis (SILVA,
2012). De todo modo, vale lembrar da Lei nº 9.433/97, que institui a política de recursos
hídricos e seus fundamentos:

Art. 1º A Política Nacional de Recursos Hídricos baseia-se nos seguintes


fundamentos:
I - a água é um bem de domínio público;
II - a água é um recurso natural limitado, dotado de valor econômico;
III - em situações de escassez, o uso prioritário dos recursos hídricos é o
consumo humano e a dessedentação de animais;
IV - a gestão dos recursos hídricos deve sempre proporcionar o uso múltiplo
das águas;
V - a bacia hidrográfica é a unidade territorial para implementação da Política
Nacional de Recursos Hídricos e atuação do Sistema Nacional de
Gerenciamento de Recursos Hídricos;
VI - a gestão dos recursos hídricos deve ser descentralizada e contar com a
participação do Poder Público, dos usuários e das comunidades.

Como se trata de um conceito amplo, do qual decorrem diversas interpretações,


tentamos ser coerentes, em nossas afirmações, colocando que o território, o qual
abordamos, no presente texto, circunscreve-se ao campo da atividade e da ordem e das
hierarquias existentes, visto que o inciso I do Art. 1º, da Lei nº 9.433/97 deixa claro que
a “água é um bem de domínio público”, confirmando o que, mais adiante, dará a garantia
ao “uso múltiplo”, abrindo precedentes para o estabelecimento das mais diversas
atividades, entre as quais se encontra a pesca artesanal.
Para Furtado (1993), os pescadores possuem uma organização social na realização
de suas práticas, possuindo características, que os distinguem em dois grupos: de
autoconsumo e de produção pesqueira mercantil, sendo, o último, o objeto de nosso
interesse. Ainda nesse aspecto, a autora constata que existem dois perfis de pescadores,
que se enquadram nessa modalidade: o pescador polivalente e o pescador monovalente
ou citadino.
O pescador polivalente mescla a atividade pesqueira com outras atividades. No
contexto dos pescadores pesquisados, tratam-se de pescadores que dividem suas tarefas
de pesca com algumas atividades no meio urbano ou, mesmo, no meio rural, dedicando-
se ao comércio, à agricultura e, até, ao serviço público, em casos raros (FURTADO,
1993).

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Ao contrário, o pescador monovalente se dedica, exclusivamente, à pesca


artesanal, possuindo diversidade de apetrechos, passando um tempo maior no rio e
podendo montar estruturas físicas para a pesca, às margens do rio Araguari. Além disso,
são possuidores de embarcações e fazem altos investimentos, para se dedicar à jornada,
que pode durar quinze dias ou mais (FURTADO, 1993).
Ambos os perfis são encontrados no médio rio Araguari, e ajudam a entender o
grau de relevância da pesca artesanal para estes trabalhadores, sendo, a atividade,
importante fornecedora de pescado para a cidade de Porto Grande, organizando um
circuito, que começa nos arranjos dos apetrechos e se estende ao autoconsumo ou,
mesmo, à comercialização (Figura 2).

Figura 2 – Mapa do circuito da pesca artesanal, em Porto Grande

Fonte: elaborado por Lima (2019).

Este mapa espacializa o circuito da comercialização da pesca artesanal na cidade


de Porto Grande, localizando os pontos de chegada dos pescadores artesanais, pelos
trapiches, à margem do rio Araguari, os fluxos de comercialização do pescado, pela
cidade, e de volta aos trapiches. Não menos importante, o mapa também aponta as

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residências dos pescadores artesanais do município e a sede da colônia Z-16, em que esses
trabalhadores estão cadastrados.
A pesca artesanal não está entre as principais atividades produtivas de Porto
Grande, em termos quantitativos, segundo informações das entidades governamentais.
Sua importância se constitui na relação desenvolvida entre aqueles que a praticam, visto
que o pescado capturado já possui um destino, seja para a subsistência familiar, seja para
o comércio local, que pode ser realizado de duas formas: nas esquinas da cidade ou em
carrinhos de mão ou bicicletas.
Entre as principais espécies extraídas (Figura 3) estão a traíra ou traírão
(Hopliasaimara), o mandubé (Ageneiosus inermis) e o mafurá (Myloplusasteris), de suma
importância comercial na região.
Quanto à captura, os pescadores artesanais, além de mesclarem o uso de
apetrechos diversos, têm o conhecimento, adquirido pela observação e pela prática, que
garante a distinção e a localização de cada espécie, uma vez que o médio rio Araguari
possui trechos nos quais é possível perceber áreas de corredeiras, com declividades
acentuadas, assim como áreas de igapó. Tais aspectos são observáveis no momento da
captura, pelos pescadores.

Figura 3 – Espécies encontradas no comércio, em Porto Grande

Fonte: trabalho de campo (2019).

No que tange ao transporte, os pescadores possuem pequenas embarcações,


denominadas batelões, constituindo um tipo de canoa motorizada, com espaço para
transportar, até, seis pessoas, os materiais de pesca, as caixas térmicas, o gelo e as lonas,
além de itens pessoais dos pescadores. Geralmente, a saída dos barcos de pesca ocorre a

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partir do principal atracadouro da cidade, e as embarcações possuem um motor de popa,


facilitando o deslocamento para os trechos mais distantes do Araguari.

4 PRINCIPAIS IMPACTOS NA PESCA ARTESANAL, NO RIO ARAGUARI


A pesca artesanal, em Porto Grande, vem passando por transformações,
decorrentes da implantação de hidroelétricas, estabelecidas na última década, trazendo
inúmeros impactos socioambientais à região. Conforme De Paula (2018), a chegada das
hidroelétricas alterou, e continua a alterar, as relações no território e, como consequência,
os pescadores relatam uma sucessão de modificações, ocasionadas por desestruturações
ambientais e sociais, resultando no desparecimento de espécies e em disputas e conflitos
por território (DE PAULA, 2018).
São recorrentes, os danos, originados por esses empreendimentos, conforme já
relatado por Fearnside (2014), os quais, em alguns casos, são identificados, inclusive, nos
estudos e nos relatórios dos próprios empreendimentos.
Assim, o uso de usinas hidroelétricas na geração de energia acarreta uma série de
alterações, definidas por Fearnside (2015) como impactos de barragens, tendo, como
principais indícios, efeitos negativos sobre os habitantes das áreas dos empreendimentos,
como povos indígenas e ribeirinhos. Dentre esses impactos, destacam-se os
reassentamentos, isto é, o deslocamento de populações, ocorrendo a desterritorialização
de comunidades, cujos modos de vida eram ligados a atividades, como as da pesca e da
agricultura.
Na perspectiva ambiental, Fearnside (2014) ressalta os efeitos a jusante, como a
perda de oxigênio, decorrente, principalmente, da diminuição dos volumes dos cursos de
água, ocasionada pela construção dos reservatórios, e a montante, como a mortandade de
espécies de peixe e a emissão de gases do efeito estufa. Na mesma perspectiva, Becker
(2012) apresenta o paradigma da gestão do recurso hídrico e a questão da escala.
Em escala global, a autora pontua o poder antropogênico, criado pelo crescente
processo de urbanização e pelo crescimento populacional, aumentando a demanda, pela
geração de energia elétrica. Portanto, seria este o recurso em escassez e de constante
necessidade de governabilidade dos usos.
Em uma escala regional, Becker (2012), ao se referir à Amazônia, destaca o
paradoxo entre a abundancia e a inacessibilidade, posto que, desde 1997, o Ministério do
Transporte previa a construção de 27 eclusas, em seis dos grandes rios (BECKER, 2012),

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com a finalidade de gerar energia para outros estados e, principalmente, para a irrigação
das áreas do agronegócio. Nesse aspecto, com o prevalecimento da atividade, seja na
perspectiva da geração de energia, seja no tocante ao transporte, a população ribeirinha,
além de perder acesso ao rio, foi e continua a ser invisibilizada.
Em se tratando de grandes projetos na Amazônia brasileira, Acselrad (2008)
aponta tais formas de usos como resultado de cartografias governamentais, que
privilegiam os recursos naturais, sem considerar os usos já existentes. E, na perspectiva
de contribuir, para uma possível quebra do paradigma do avanços dos grandes projetos
de investimentos, sugere-se o uso do mapeamento participativo, como meio de comunicar
os usos dos territórios, por parte das comunidades e das populações existentes, os quais
se mostram relevantes, para o reconhecimento territorial, firmado pelo uso produtivo
(ACSELRAD, 2008), sendo fundamentais, também, no dialogo acadêmico e na
construção de políticas públicas, proporcionando a aproximação entre os diversos atores.
Seguindo a proposta da aproximação ao debate acadêmico, na perspectiva de
compreender os efeitos dos grandes projetos nos territórios tradicionais dos pescadores
artesanais do médio rio Araguari, propõe-se a leitura dos conflitos territoriais,
principalmente, dos ocasionados pela diversidade de usos, conforme Becker (2012).
Assim, uma das leituras, feitas no mapeamento do médio rio Araguari, diz respeito
aos múltiplos usos desse trecho do rio, dos quais se destacam as relações entre sujeitos e
agentes e entre agentes distintos, que utilizam o rio, com fins diversos, as quais
concentram pescadores artesanais e representantes das unidades de conservação, da
atividade mineral e das usinas hidrelétricas (Figura 4).

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Figura 4 ‒ Mapa dos múltiplos usos no médio rio Araguari (AP)

Fonte: Elaborado por Lima (2019)

O mapa ilustra os pontos de localização dos empreendimentos hidrelétricos no


médio rio Araguari, as UHEs de Coaracy Nunes e de Ferreira Gomes, a jusante, e a UHE
de Cachoeira Caldeirão, a montante, bem como traz os pontos de coleta de dados
altimétricos, durante o trabalho de campo, através do emprego do aparelho GPS de
localização Garmin Etrex 20, e as sedes municipais adjacentes. Outro aspecto, abordado
no mapa, se refere à localização de futuras usinas hidroelétricas, a serem implantadas no
rio Araguari.
A dimensão expressa no mapa demonstra aspectos de um presente, bem como de
um futuro, incerto, assim como parece incerta a percepção do pescador, frente à ideia de
cercamento de sua atividade por outras.
Esse cercamento redunda em uma maior pressão sobre as áreas de pesca, próximas
às residenciais dos pescadores, que vivem às margens do rio Araguari, resultando na
ocorrência de conflitos. Como as usinas se encontram no trecho médio do Araguari, é
possível observar o fluxo, em direção ao alto Araguari. Esse fluxo é composto por
pescadores de outros trechos, que passam a ser empurrados para o alto Araguari,

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esbarrando, dessa forma, nas condições de uso das áreas especiais, como o Parque do
Tumucumaque e as Unidades de Conservação.
Apesar da existência de outras atividades no médio Araguari, os pescadores
entrevistados apontam que a presença de usinas hidroelétricas supera a todas, em termos
de reconfiguração territorial, ocasionada pelas alterações ambientais, e de poder de
mobilizar os profissionais, forçadamente, para outras áreas.
Dessa forma, percebemos que a mudança do fluxo e a dificuldade de acesso a
algumas áreas acarretou a necessidade de tal deslocamento, além de diminuir o número
de áreas de pesca. Tal limitação é responsável pela ocorrência de tensões e de conflitos,
incluindo roubos de apetrechos e de pescado, capturado por apetrechos fixos.
Este cenário se encontra circunscrito aos panoramas global, nacional e regional
(BECKER, 2012), contribuindo, sobretudo, para a emergência de conflitos, em uma
perspectiva local. Os critérios de usos e as conformações acordadas são estabelecidos, em
uma perspectiva territorial (ACSELRAD, 2008), e o registro, através do mapeamento,
demarca, além das territorialidades, as tramas e os conflitos, decorrentes dessa
diversidade de usos.
As alterações relatadas na pesca, pelos pescadores, entre elas, as mortandades de
peixes, a fuga de espécies e a própria extinção de algumas delas, são consequências dos
empreendimentos, que têm provocado o deslocamento de pescadores artesanais para
outras áreas, em busca de pescado, entretanto esse deslocamento nem sempre é aceito por
todos, principalmente, por aqueles, que se encontram nas áreas invadidas por pescadores,
vindos das áreas impactadas, suscitando tensões e, não raramente, conflitos por
territórios.
Diante das alterações verificadas na atividade, no médio rio Araguari, o pescador
passa a olhar para a pesca com certo receio, em função, principalmente, da insegurança
da pesca, próxima a áreas de vertedouros, pela presença das turbinas, ou, mesmo, de
extensas áreas de galhos e de troncos apodrecidos, nas quais há relatos de acidentes e,
inclusive, de mortes de pescadores (Figura 5).

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Figura 5 – Áreas inundadas e de risco para os pescadores

Fonte: trabalho de campo (2019)

O alagamento dessas áreas atingiu territorialidades e trechos conhecidos pela


piscosidade e pela incidência de peixes. Considerando as habilidades desenvolvidas pelos
pescadores na prática da pesca, estes relatam que a água ficou parada, sem movimento e,
quando tal ocorre, geralmente, o peixe tem a sua qualidade alterada. Sendo assim, o uso
de apetrecho fixos, em determinadas áreas, deixou de ser executado.
A descontinuidade dos territórios de pesca desencadeou áreas de tensão, ao longo
do rio Araguari, contribuindo para a incidência de conflitos, pela permanência do direito
à continuidade, pela trafegabilidade, pelo acesso a áreas condicionadas e de proteção
ambiental, pelo acesso ao recurso, entre outros, que passaram a reconfigurar as relações
entre os pescadores, resultando na inserção de outros instrumentos de captura, incomuns,
como armas de mergulho, o que é visto como uma forma de captura predatória, por parte
dos pescadores locais.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A instalação de empreendimentos hidroelétricos no médio Araguari apresenta a
face perversa do modelo de desenvolvimento da Amazônia amapaense, conferindo graves
prejuízos para os pescadores artesanais do município de Porto Grande, pois promove
complexas transformações no desenvolvimento da atividade e, por conseguinte, nas
relações territoriais, entendidas, aqui, como o exercício da atividade pesqueira e como o
direito de usufruto do rio.

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Todavia, com a chegada dos empreendimentos hidroelétricos, tais relações


passam a ter outro significado, advindo da limitação na ação dos pescadores, pela
consequente alteração ambiental, promovendo o cenário de disputas e a ocorrência de
conflitos, além de impulsionar o pescador para novas áreas ou para o abandono da
atividade.
É urgente a introdução de ferramentas, que levem em consideração o uso dos
recursos naturais, embora iniciativas neste sentido ainda sejam limitadas, pelo processo
de inserção nas comunidades, pelo distanciamento destas dos núcleos de pesquisas e,
mesmo, pela ausência de representações nesses espaços.
Assim, os mapeamentos se tornam elucidativos, pelas marcações dos universos
relacionais, passando a comunicar os mecanismos de funcionamento, de ordem e de
poder, os quais, em muitas situações, não são explicitados, em comunicações oficiais.
Desse modo, revelam-se, também, expressões dos sentimentos dos sujeitos, perante a
formalização desses empreendimentos, os quais são elementos fundamentais, trazidos
pela cartografia social, para representar os sujeitos e as suas invisibilidades.
Portanto, os três perfis cartográficos presentes neste texto resultaram de
mapeamentos participativos, realizados com pescadores artesanais da cidade de Porto
Grande, no estado do Amapá, e trazem informações sobre o funcionamento produtivo, o
qual escolhemos chamar de circuito, com o objetivo de exemplificar o processo de
circulação do pescado; sobre a atuação de instituições, ao longo da bacia do rio Araguari;
e sobre a localização de conflitos, que passam a se repetir, ao longo de toda a extensão do
rio.
A partir destas cartografias, pode-se perceber a existência de territorialidades,
firmadas pelas atividades diárias, proporcionadas pela pesca, exprimindo as relações de
poder nos espaços, desde as áreas de atracação dos barcos, até as áreas de estabelecimento
dos apetrechos. A percepção da mudança relacional na pesca artesanal é um dos efeitos
da chegada das hidrelétricas, uma vez que o pescador se reconhece, como atingido, a
partir da sua compreensão sobre as mudanças, em seu ambiente de pesca.
O reconhecimento e o estranhamento, em relação aos novos agentes, dão vida ao
conflito, e a identificação de outras atividades passa a justificar as mudanças e as lutas,
ao passo que a inserção dos empreendimentos hidrelétricos coloca em questão a presença
de outros agentes, ao longo da bacia, como a mineração e as Unidades de Conservação,

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considerando o uso do rio, como alternativa de lazer. Consequentemente, estes sujeitos


passam a se engajar e a se reconhecer, como sujeitos de fato e como atingidos, pelos
empreendimentos hidroelétricos.

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