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DOROTHY L. SAYERS
O GATO DE DIAMANTES
tradução de
mascarenhas barreto
LIV RO S D O B RA S I L
NOTA BIOGRÁFICA
PREMEDITAÇÃO
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Contudo, agora, Lord Peter obedecia à voz do sangue. Vol-
tara, na noite anterior, para Paris, num comboio horrível, e reti-
rara as bagagens para uma estadia demorada. A luz do outono,
filtrada através das cortinas, acariciava as tampas de prata dos
frascos de toilette que se encontravam sobre o toucador, deli-
neando o quebra-luz do candeeiro e a silhueta do telefone.
O ruído próximo de água corrente anunciava que Bunter prepa-
rava um banho morno e alinhava o sabonete, os sais e a esponja
— para os quais não teria havido ambiente na Córsega —, assim
como a deliciosa escova de cerdas duras e de cabo longo que
permite a agradável lavagem das costas.
— Contraste é vida! — filosofou, ensonado, Lord Peter.
— Ontem na Córsega, hoje em Paris, um dia destes, Londres.
Bom dia, Bunter.
— Bom dia, my lord. Bela manhã, my lord. O banho de Vossa
Senhoria está pronto.
— Obrigado — disse Lord Peter e, pestanejando, avançou
para a luz do Sol.
Foi um banho glorioso. Ao afundar-se nele, admirou-se
como pudera viver na Córsega. Esfregou-se com prazer e can-
tarolou algumas árias em voga. Num intervalo, ouviu o empre-
gado de quarto trazer-lhe o café e o pão. Café e pãezinhos! Saiu
do banho, encharcando tudo, enxugou-se prazenteiramente e
embrulhou o corpo mortificado num roupão de seda.
Com imensa surpresa, viu Bunter a arrumar as coisas na mala
de viagem. Mais se admirou ao notar que a bagagem desfeita na
véspera estava de novo pronta.
— Quer explicar-me o que se passa, Bunter? — perguntou
Sua Senhoria. — Vamos ficar aqui duas semanas, sabe?
— Desculpe-me, my lord — disse Bunter com deferência —,
mas tendo lido o The Times, enviado para aqui todas as manhãs
por avião e, considerando bem as coisas, com muita rapidez,
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não duvidei de que Vossa Senhoria desejasse partir imediata-
mente para Riddlesdale.
— Riddlesdale?! — exclamou Peter. — Que aconteceu?
Algum sarilho com o meu irmão?
Em resposta, Mr. Bunter estendeu-lhe o jornal, já aberto:
Inquérito de Riddlesdale.
Prisão do Duque de Denver
por assassínio
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— O Parker? Ainda bem. O magnífico Parker! Vai ser ma-
ravilhoso vê-lo esclarecer isso. Que tal parecem ir as coisas,
Bunter?
— Se mo permite, my lord, acho que a investigação apre-
senta provas muito interessantes. Estão em evidência vários
pormenores extremamente sugestivos, my lord.
— Sob o ponto de vista criminológico, considero o caso in-
teressante — replicou Sua Senhoria, sentando-se jovialmente
diante do seu café au lait —, mas que podem imputar ao meu
desastrado irmão, sempre o mesmo, e sem o mínimo jeito para
a criminologia?
— Ah!… Bem!… — disse Mr. Bunter. — Dizem, my lord,
que não há nada como ter-se interesse pessoal.
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«Coitado do Gerald!», pensou Lord Peter, e abriu o jornal
na página doze. «E também coitada da Mary! Custa-me a crer
que estivesse realmente apaixonada pelo rapaz. A mãe sempre
lhe contrariou essa ideia, mas a Mary nunca consentiu que in-
terferissem nos seus assuntos.»
A reportagem completa começava por descrever a aldeia-
zinha de Riddlesdale, onde o duque de Denver tinha alugado
recentemente um pequeno pavilhão de caça para a estação ve-
natória. Quando se deu a tragédia, o duque encontrava-se ali
com um grupo de convidados. Na ausência da duquesa, Lady
Mary Wimsey havia desempenhado o papel de anfitriã. Os con-
vidados eram o coronel Marchbanks e a esposa, o Honourable1
Frederick Arbuthnot, Mr. Pettigrew-Robinson e a esposa, e o
falecido, Denis Cathcart.
A primeira testemunha fora o duque de Denver, que decla-
rou ter descoberto o corpo. Afirmou que, pelas três horas da
manhã de quinta-feira, dia 14 de outubro, se dirigia para o pa-
vilhão, pela porta da estufa, quando tocou com o pé em qual-
quer coisa. Acendeu a sua lanterna de bolso e viu o corpo de
Denis Cathcart a seus pés. Virou-o imediatamente e verificou
que Cathcart fora abatido com um tiro no tórax. Estava morto.
Quando estava inclinado sobre o corpo, ouviu um grito vindo
da estufa e, olhando para cima, viu Lady Mary Wimsey mani-
festando o seu horror. Saiu da estufa e exclamou: «Meu Deus,
Gerald, mataste-o!» (Sensação na assistência.)
Coroner2 — Ficou surpreendido com essa observação?
Duque de Denver — Bem, eu ficara tão chocado com uma
coisa como com a outra. Julgo ter-lhe dito: «Não olhes.» E ela
1
Título usado antes do nome de pessoas de elevado estatuto social. (N. da R.)
2
Magistrado encarregado da investigação em casos de morte suspeita.
(N. da R.)
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exclamou: «Oh! É o Denis! Como pôde acontecer uma coisa
destas? Teria sido um acidente?» Fiquei ao pé do corpo e man-
dei-a avisar as pessoas do pavilhão.
C — Esperava encontrar Lady Mary na estufa?
D — Na verdade, como já disse, fiquei tão espantado com
tudo que nem pensei nisso.
C — Lembra-se de como ela estava vestida?
D — Não me pareceu trazer um dos seus pijamas (risos).
Julgo que tinha o casaco por cima…
C — Segundo me informaram, Lady Mary Wimsey estava
noiva do falecido.
D — Sim.
C — Conhecia-o bem?
D — Era filho de um velho amigo do meu pai; os pais dele
morreram. Viveu quase sempre no estrangeiro. Encontrei-o
durante a guerra e em 1919 foi passar uma temporada a Den-
ver. No começo deste ano, ficou noivo da minha irmã.
C — Com o seu consentimento e o da família?
D — Sim, certamente!
C — Que espécie de homem era o capitão Cathcart?
D — Bem… Era um sahib1 e todas essas coisas… Não sei o
que fez até à data em que o encontrei, em 1914. Creio que viveu
de rendimentos. O pai dele vivia desafogadamente. O Denis era
um magnífico atirador, bom em todos os jogos, etc. Eu nunca
tinha ouvido nada contra ele… até àquela noite.
C — E o que foi que ouviu?
D — Bem, de facto… isso é um assunto dos diabos. Ele…
quer dizer, se não tivesse sido o Tommy Freeborn a contar-mo,
eu nunca teria acreditado… (Sensação na assistência.)
1
Termo usado pelos indianos para indicarem um gentleman europeu.
(N. do T.)
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C — Receio ter de perguntar a Vossa Senhoria qual era ver-
dadeiramente a acusação contra o morto.
D — Bem, eu não acusei… Eu não o acuso, exatamente.
Trata-se de uma sugestão feita por um velho amigo meu. Como
era natural, admiti ser tudo um erro e procurei o Cathcart; ora,
com grande espanto meu, admitiu praticamente o facto. Então,
zangámo-nos, e ele mandou-me para o diabo, e saiu de casa.
(Sensação renovada na assistência.)
C — Quando é que essa discussão teve lugar?
D — Na quarta-feira à noite. Foi a última vez que o vi.
(Grande sensação.)
C — Silêncio, por favor. Não podemos prosseguir com
todo este barulho. Agora seria Vossa Graça capaz de me repro-
duzir, o melhor possível, a vossa discussão?
D — Bem. Foi assim. Estivemos toda a tarde na charneca,
nas terras reservadas à caça, e jantámos cedo. Cerca das nove e
meia começámos a sentir vontade de irmos para os nossos quar-
tos. A minha irmã e Mrs. Pettigrew-Robinson foram para cima,
enquanto nós nos demorámos ainda na sala de bilhar. Foi então
que o Fleming, o meu criado, entrou com a correspondência.
Chega sempre tarde porque estamos a quatro quilómetros da
aldeia. Não, não. Nesse momento, não estava na sala de bilhar.
Estava a dar uma vista de olhos ao armeiro. A carta era de um
velho amigo que não via há anos, o Tom Freeborn, com quem
andara na Faculdade…
C — Que Faculdade?
D — Qual havia de ser?! Oxford! Escrevia-me a dizer que
tinha lido a notícia do noivado da minha irmã no Egito.
C — No Egito?
D — Queria dizer que ele escrevia do Egito, o Tom Free-
born, e que era por isso que não o fizera mais cedo. Ele é enge-
nheiro. Partiu para lá quando a guerra acabou. Compreende?
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E como se instalou perto das nascentes do Nilo, não recebe
os jornais regularmente. Mais ou menos, dizia assim: «Des-
culpa se me meto num assunto tão delicado, mas conheces tu
porventura bem o Cathcart? Encontrei-o em Paris, depois da
guerra e, nessa altura, vivia aí de expedientes e fazendo batota
ao jogo.» O Freeborn acrescentava que podia jurá-lo e dar até
pormenores de alguns escândalos que o Cathcart provocara
em casas suspeitas de Paris e noutros lados. Dizia ainda: «Eu
sei que me vais detestar por meter o nariz onde não sou cha-
mado, mas vi a fotografia desse indivíduo no jornal e julguei
ser meu dever prevenir-te.»
C — Essa carta surpreendeu-o?
D — Não queria acreditar no que lia! Se não tivesse sido es-
crita pelo Freeborn, tê-la-ia queimado e, mesmo nestas circuns-
tâncias, não sabia ainda o que pensar! As coisas, afinal de con-
tas, não tinham acontecido em Inglaterra. Os franceses fazem
sempre muito barulho por dá cá aquela palha! Contudo havia
aquela carta do Freeborn, que não era um homem capaz de ca-
luniar imprudentemente.
C — O que decidiu fazer?
D — Bem… eu… quanto mais pensava naquilo, mais a coisa
me aborrecia. Não podia ficar de braços cruzados; assim, achei
preferível ir pedir contas ao Cathcart. Enquanto meditava, toda
a gente subira para os seus quartos e, portanto, fui bater à porta
do capitão. «Quem é? Quem diabo está aí?», perguntou, e eu
entrei. «Vamos lá a ver…», disse eu. «Pode conceder-me uns
momentos de atenção?» «Está bem, mas não demore.» Fiquei
surpreendido. Ele não costumava ser indelicado. «Pois bem!»,
comecei. «Acabo de receber uma carta cujo teor não me agrada.
Decidi que a melhor solução era comunicar-lho e esclarecer
consigo o assunto. É de um amigo meu, por sinal um homem
muito distinto e que foi meu colega em Oxford, que pretende
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tê-lo conhecido a si, em Paris.» «Em Paris? Mas com que raio
de cantiga me vem você agora?» «Cos diabos», exclamei eu.
«Não me fale nesse tom ou pensarei que…» «Onde é que quer
chegar?», interveio o Cathcart. «Diga de uma vez e, pelo amor
de Deus, deixe-me dormir!» «Bom, muito bem!», declarei.
«A coisa é assim. Há um homem chamado Freeborn que diz
tê-lo conhecido em Paris e que declara que você ganhava aí di-
nheiro a fazer batota às cartas.» Estava à espera que ele negasse
a acusação, mas contentou-se em dizer: «E depois?» «E de-
pois?», repeti eu. «Está visto que não é uma coisa em que eu
vá acreditar, assim do pé para a mão, sem mais provas.» Então
ele disse uma coisa bizarra: «Aquilo que se julga de uma pessoa
não interessa, mas sim aquilo que dela se sabe.» «Quer dizer
com isso que não nega a acusação?» «Para que serve negar? A si
só lhe resta ajuizar sobre ela. Ninguém pode contestá-la!» Dito
isto, voltou-se, quase derrubando a mesa e declarou: «Pouco
me interessa o que pensa ou o que tenciona fazer, mas, pelo
amor de Deus, ponha-se a andar e deixe-me só!» «Ó homem»,
disse eu, «não leve as coisas para esse lado! Não estou a dizer
que acredito nessa história. Repito-lhe que estou persuadido de
que há aí um erro qualquer, mas como está noivo da Mary»,
acrescentei, «há de concordar que não posso considerar essa
coisa sem lhe ligar importância.» «Ah!», exclamou o Cathcart.
«Se é isso que o aborrece… acabou-se!» «Acabou-se o quê?»
«O noivado.» «Já não…?» «Falava disso exatamente, ontem,
à Mary, mas não lhe cheguei a dizer tudo.» «Pois bem», de-
clarei. «Penso que tem uma lata danada. Quem diabo é que se
julga para vir aqui e rejeitar a minha irmã?» Disse-lhe assim
umas das últimas e depois acabei nestes termos: «Pode-se pôr
a andar. Não tenho necessidade de lidar com porcos da sua es-
pécie.» «Muito bem», respondeu e saiu descendo a escada a
quatro e quatro e batendo raivosamente com a porta da entrada.
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