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Lusofonia, lugar dos afetos

Filipa Araú jo

Por este lado as coisas andam animadas. Bem sabemos que o mundo parece estar a
desabar. O futuro é incerto. Na verdade, sempre o foi, mas agora temos real
percepçã o da sua dubiedade. Continuamos de má scaras e meio que fechados ao
mundo, muito protegidos dentro da nossa pró pria bolha. Fingimos. Fingimos que isto
nã o nos afeta. Apostamos em expressõ es que nos convençam da sorte que temos, do
privilégio. Nã o deixa de ser verdade. É . Temos. Mas também somos pá ssaros de asas
partidas. Temos saudades. Estamos preocupados. E cansados.

Nesse processo de continuar, essencial para todos nó s, criamos uma agenda bem
ocupada. Possivelmente nunca ninguém, nesta comunidade que nã o é grande, mas
parece enorme, saiu tanto. Já percorremos todos os museus, parques, espaços verdes a
que chamamos de parques, trilhos, cafés, restaurantes e hotéis. Reinventamo-nos
todos os fins-de-semana. É a magia do ser humano em prá tica. Reinventar-se. E há
para todos os gostos.

Festas privadas – que de privadas têm muito pouco porque o Joã o convidou a Sara
que por sua vez levou a Ana, prima do Tiago que também lá estava. No fim, estamos
todos em terraços acolhedores regados a boa mú sica, yoga, gastronomia, pintura.
Concertos de mú sica clá ssica, opera, jazz. E jantares. Tantos jantares.

O governo continua a querer atribuir alguma normalidade aos nossos dias e por isso
tem respeitado as agendas festivas, com maior ou menor alteraçã o ao calendá rio.
Embora antecipado, o festival das luzes esteve em força. E a nossa Lusofonia
encheu-nos as medidas.

A primeira ediçã o deste festival lusó fono aconteceu em 1998 e desde entã o tornou-se,
para a comunidade, o momento do mês. Embora nã o tenha sido possível nesta ediçã o,
é por esta altura que recebemos visitas de artistas lusó fonos, que trazem o cheirinho
a casa e o sabor a abraços familiares. Tal como o governo de Macau afirma, o festival
assume-se como “um importante acontecimento de partilha da cultura das
comunidades de língua portuguesa com a cultura chinesa, revelando o papel de
Macau como plataforma de intercâ mbio cultural entre a China e os Países de Língua
Portuguesa”.

No local reú nem-se expositores (vulgarmente conhecidos como barracas) culturais das
comunidades lusó fonas representadas no territó rio, seja Angola, Brasil, Goa, Damã o e Diu,
Portugal, Sã o Tomé e Príncipe, Timor Leste, a pró pria comunidade Macaense, Cabo Verde
e Guiné Bissau. Durante os três dias há um pouco de tudo, seja para pequenos ou graú dos.
Muitos concertos, muita mú sica, muita dança, arte, artesanato,
tradiçã o, jogos, actividades e gastronomia. É uma espécie de Carnaval, três dias
de folia.

No entanto, e com o devido respeito, mais do que isto tudo, importa falar-vos de
um elemento de destaque deste festival, que estes meus sete anos de Macau me
ensinaram: as caipirinhas da barraca do Brasil. É impossível falar da Lusofonia sem
falar das famosíssimas caipirinhas do Brasil.

Entre os meus amigos já lhes chamamos de “pomada má gica”. Elas de facto sã o


diferentes de todas as caipirinhas que já provei. Apó s a primeira surge uma vontade
de viver, de começar a abanar o pézinho em jeito discreto. Na segunda já damos por
nó s a dançar entre barracas, a conhecer novas pessoas e a abraçar antigas. E quem
sobrevive à quinta caipirinha, bem…sobrevive. Só isso.

O ponto de encontro para quem só visita a lusofonia à noite é certo, “barraca do brasil”. É
ali que revemos amigos que, pelas rotinas ocupadas, estivemos meses sem ver. É também
ali que combinamos mais jantares, menos tempo sem nos ver, mais encontros e partilhas.
Prometemos mundos e fundos. Ou as caipirinhas prometem. Seja como for,
é ali que estamos todos, a ser o que de melhor sabemos ser, uns para os outros.
Risadas e brincadeiras, bailaricos e danças, cultura e a troca dela.

O Festival da Lusofonia tornou-se nisso mesmo, um lugar de afetos. Um lugar onde, em algum
momento durante aqueles três dias, nos encontramos todos. É ali que revemos
caras e coraçõ es. Que colocamos as novidades dos que estã o mais distantes, em
vidas paralelas, em dia. É ali que vemos que o tempo passa, que os miú dos estã o
a ficar cada vez mais crescidos. É ali que vamos roubar um bocadinho do sabor
a casa. E que tanta falta nos faz este ano.

Mas é também ali que, todos os anos, nos sentimos parte de alguma parte do
mundo. Que somos resultado desta troca entre cá e lá . Entre o ser de lá cá. Que
seremos para sempre um bocadinho de cá no lugar para onde quer que sigamos.
É ser de Macau e Portugal, da Guiné e de Macau, de caipirinha na mã o, um rissol
de carne na outra depois de termos jantado um minchi. É saber-nos parte de
um todo. Um todo profundo, diversificado, colorido, cheio de tantas coisas.

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