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Precisamos atualizar a Bíblia?

Desde os primórdios do cristianismo, a Bíblia Sagrada é reconhecida como a regra de fé


e prática dos seguidores de Jesus Cristo. Todas as declarações conciliares, dos credos
católicos e protestantes à sistematização de crenças como dos adventistas do sétimo dia,
a Bíblia figura como legítima palavra de Deus. Ela não somente é a fonte de revelação
das verdades divinas, como o ponto de referência para decisões que envolvem a reflexão
ética e a conduta moral.
Contudo, ao longo da história, as afirmações bíblicas têm encontrado diferentes formas
de objeção. A mais recorrente delas é a dificuldade instintiva de se atrelar a regras,
normas e obrigações, conforme vemos especialmente nos dias de hoje. Some-se a isso o
fato de que a geração do consumo, herdeira da revolução industrial, adotou o
humanismo como guia de conduta, de modo que a busca por felicidade e realização se
concentra na vontade humana mais do que nas normas divinas.
Outra dificuldade deriva do fato da Bíblia, a despeito de sua origem divina, ser um livro
histórico matizado num tempo e cultura distantes do contexto em que vivemos. Muitos
dilemas da atualidade são completamente desconhecidos dos autores inspirados e
algumas regras são completamente inadmissíveis para a sociedade vigente, exemplo:
apedrejar alguém que transgrediu o sábado ou cometeu adultério.
Situações como estas despertam em muitos uma atitude cética quanto ao valor da Bíblia
para nossos dias. Outros, por sua vez, veem a necessidade de atualizá-la e há os que
afirmam sua literalidade mesmo com o risco de se tornarem fundamentalistas – termo
que se tornou bastante depreciado na compreensão moderna.
De fato, propor uma ética bíblica não é tarefa fácil. Minimizar as dificuldades
hermenêuticas de aplicação do texto em nossos dias também não parece ser o caminho
para quem pretende se pautar por um seguimento lúcido das normas reveladas por Deus
a seus profetas.
Considerando que não é objetivo desse artigo legitimar a palavra de Deus, mas sim
averiguar uma hermenêutica adequada de suas normas para os nossos dias, podemos
partir do pressuposto de que a Bíblia continua válida hoje como o foi no passado. “A
relva murcha e as flores caem, mas a Palavra de nosso Deus permanece
eternamente!” (Isaias 40:8).
Note neste verso que ele é uma repetição enfática do que foi dito anteriormente, o que
implica numa ratificação absoluta. A relva seca, a Palavra permanece, isto é, as
promessas de Deus – especialmente aquelas de livrar o povo do cativeiro babilônico –
são imutáveis. Consequentemente, as normas de fidelidade a Deus que estão atreladas às
promessas também serão permanentes.
Em meio a todas as revoluções humanas, marchas e contramarchas de impérios,
surgimento e ocaso de propostas filosóficas as mais diversas, Deus e sua Palavra não
têm sua essência alterada. Como disse Jesus, “até que o céu e a terra passem, nem um i
ou um til jamais passará da lei até que tudo se cumpra” (Mateus 5:18). Significaria isso
que as mensagens divinas não aceitem qualquer tipo de adequação ou atualização?
O dilema pode ser ainda explicitado da seguinte forma: considerando que “toda a
Escritura é inspirada por Deus e útil para o ensino, para a repreensão, para a
correção e para a instrução na justiça” (II Timóteo 3:16), por que ensinamos a
guarda do sábado conforme Êxodo 20:8) e não sancionamos a execução de
quem o transgredir conforme Números 15:32-36? Por que aceitamos as
orientações paulinas quanto à Ceia, o casamento e a ordem no culto e não
advogamos seu conselho para que um escravo volte a seu senhor e as
mulheres permaneçam caladas no ambiente da igreja?
Estas são questões sérias que merecem nossa reflexão e cuidado não somente pelo que
elas dizem, mas também pelo que faltou ser dito. Onde estaria o claro “assim diz o
Senhor” para definir questões como aborto, eutanásia, pena de morte e alistamento
militar? Estaríamos às cegas nestas questões?
Talvez a primeira coisa que deveríamos fazer seria entender o que é ética e moral à luz
da Bíblia Sagrada. Embora se tratem de conceitos sistematizados num tempo posterior à
produção das Escrituras, podemos seguramente dizer que sua essência é encontradiça
nas páginas do livro sagrado.
De modo geral, podemos dizer que a ética é o estudo e a reflexão sobre os princípios
da moral, das regras de conduta aplicadas a alguma organização ou sociedade, ao
passo que a moral se refere às regras de conduta que são aplicados à determinado
grupo, em determinada cultura. Ou seja, a ética é a reflexão sobre a melhor forma de
agir de acordo com as circunstâncias e o contexto, visando o bem comum. Já a moral,
está voltada para o cumprimento das regras que a sociedade adota como definindo o
que é certo ou errado, o proibido e o permitido, o que pode e o que não pode ser
feito. A moral seria o “cumpra-se”. Já a ética é o “pense”.
Exemplo: o princípio dizia para guardar o sábado, a moral buscava meios de cumprir
esse mandamento, a ética de Jesus fez os ouvintes pensarem se deveriam proibir uma
cura no dia do Senhor, considerando que um boi não seria deixado a morrer num
buraco porque caiu ali no dia de sábado. Assim, nada era proposto sem reflexão,
adequação e coerência.
Não somente neste caso, mas em muitos outros, a vida de Jesus é o maior e melhor
exemplo de aplicação moral e reflexão ética sobre um princípio dado por Deus.
Princípios, lembremos, são pressupostos imutáveis, eternos e universais que o Senhor
mesmo estabeleceu e nos revelou. Contudo, os princípios estão para a história assim
como a substância está para os acidentes em metafísica.
Confuso? Nem tanto. Em metafísica, dizemos que a cor, por exemplo, é um acidente e
acidentes são o que tornam visível a substância numa matéria. O azul, por exemplo, só
se torna visível para nós se houver algo para colorir daquele tom, pode ser a luz azul, a
tinta azul, o lápis de cor azul etc. Da mesma forma, o princípio dado por Deus. Ele é
uma substância invisível que se torna perceptível quando se assenta na matéria e são
os “acidentes”, isto é, as circunstâncias que permitem essa visualização ou esse
“colorido” captável aos nossos olhos.
Veja esses dois casos: num o governo demanda que todos permaneçam em casa, num
toque de recolher, para evitar contágio numa pandemia. Noutro, ordena a todos que
abandonem suas casas por causa de um tornado que passará por aquele lugar. Neste
exemplo não importa a posição política do governo, esse não é o assunto em pauta, e
sim e ilustração de como um mesmo princípio pode demandar regras até opostas
dependendo do contexto em que deva ser aplicado. Em ambos os casos, o que está em
pauta é a proteção dos cidadãos, no primeiro caso segurando-os em casa, no segundo
demandando a saída imediata.
Situações distintas demandam aplicações distintas da lei. O mesmo Deus que mandou
apedrejar o transgressor do sábado num contexto, propiciou o livramento de uma
mulher adultera noutro. Não se trata de contradição, mas de lógica contextual.
Tal compreensão não deve, contudo, ser confundida com a ética situacionista. Para
esta última, a verdade tem um valor subjetivo, não havendo imposição moral
absoluta. A ética Bíblica é dedutiva, isto é, parte do universal adequando-se ao
particular, enquanto que a ética situacionista é indutiva, começa com a própria
pessoa e elabora seus próprios interesses acima da lei.
Vamos a mais um exemplo. Imaginemos o princípio do respeito ao nosso semelhante.
Esse é dever universal. Como aplicá-lo contextualmente? Bem, se estiver entrando
numa igreja cristã, retire seu chapéu por questão de respeito; se estiver entrando
numa sinagoga, coloque seu chapéu por questão de respeito. Percebeu? O princípio
permaneceu o mesmo, sua aplicação mudou de ambiente para ambiente.
O problema está quando as pessoas confundem o princípio com a aplicação histórica
do mesmo e criam regras confusas como as que obrigam todos a usarem chapéu
diante de Deus ou a tirarem o chapéu diante dele, causando, neste caso uma quebra
do princípio de respeitar o semelhante.
Mas alguém dirá: e como saberemos se a aplicação está correta ou se o ambiente
merece mesmo nosso respeito? Afinal de contas, partindo do exemplo da igreja e da
sinagoga, podemos entender que é moralmente correto ir nu a uma praia de nudismo
pois ali seria um escândalo comparecer de roupas. É neste momento que surge a ética
ou o convite para a reflexão sobre os princípios e normas que falamos acima. Ela não é
uma ciência exata, mas é o melhor meio de encontrarmos uma alternativa justa para
situações difíceis. No caso dos cristãos, esse exercício de “pensar” deve ser combinado
com oração sincera, estudo da Palavra e interação com outros de mentalidade
espiritual que talvez não eliminem, mas minimizem a possibilidade de achismos e
interpretações particulares que só interessam aos caprichos do indivíduo.
É por isso que um antigo credo cristão desenvolvido a partir de pequenas confissões
batismais empregadas nas igrejas dos primeiros séculos, dizia que cremos em Deus Pai,
em Jesus Cristo, no Espírito Sando e o fazemos dentro da igreja. Ou seja, fé
comunitária. Deus não nos chamou para ser cristãos avulsos, principalmente em
questões de reflexão ética. Afinal, nossa tendência é favorecer nossos próprios gostos
e sentimentos como sendo a vontade de Deus e não a nossa.
Assim, a Bíblia é constituída tanto de princípios, quanto de moral e ética. Um princípio
seria pautar a vida pela chegada do Messias, a aplicação moral disso no Antigo
Testamento seria participar do sacrifício de cordeiros no santuário e no Novo participar
da Ceia do Senhor, uma vez que a vinda de Cristo muda o enfoque didático e litúrgico
que passa de um Messias vindouro, a um Salvador que veio, morreu imolado na cruz e
voltará para buscar a sua igreja.
Em resumo podemos dizer que os princípios imutáveis estão bem expressos nos dez
mandamentos (Êxodo 20), na regra de ouro (amar a Deus sobre todas as coisas e ao
próximo como a nós mesmos, Mateus 22:37-40) e nas bem aventuranças proclamadas
no sermão do monte (Mateus 5). Os desdobramentos bíblicos são aplicações históricas
desses princípios e a vida de Jesus e modelo máximo de “faça conforme o Mestre”.
Uma nota final seria interessante no que diz respeito à essência histórica e profética que
a Bíblia apresenta. O exercício de atualizar em sua etimologia original latina (actus+
agere) refere-se ao impulso (agere) de movimentar um ato (actus) que estava por
alguma razão inativo. Seria quase um sinônimo de “volta às origens”.
Contudo, a semântica da palavra demonstrou, segundo o dicionário Michaelis que
agregou-se ao seu significado o ato de fazer modificações, introduzir alterações e
inovações de conceitos, acréscimos etc. Sendo assim, é possível ver na proposta de
alguns a exacerbação teológica da atualização bíblica levando-a para um contexto bem
distinto do que foi até aqui apresentado neste artigo. Ainda que inconscientemente,
pretende-se passar a ideia de que a Bíblia precisaria quase ser reescrita e
complementada para ter relevância em nossos dias. Nada, porém, estaria mais distante
do posicionamento de Cristo e seus apóstolos.

Note que 1400 anos separam Moisés de Jesus e Paulo. É muito tempo. Contudo,
nenhum deles sentiu necessidade de atualizar a Lei, relativizando seus
princípios. Pelo contrário, se houve atualização, foi para torná-la ainda mais
radical, Jesus considerou que até o insulto seria assassinato e a lascívia
adultério. “Aquele que chamar seu irmão de idiota corre o risco de ir para o
fogo do inferno (Mat 5:22). Imagine o que ele diria aos lacradores internéticos
de plantão?

Jesus, de fato,  impediu o apedrejamento da mulher adúltera, mas não atualizou


a lei afirmando que ela poderia continuar como estava, “Agora vá e abandone
sua vida de pecado" (João 8:11).

Paulo disse que a letra mata e o espírito vivifica (2 Coríntios 3:6 ), seria isso uma
atualização da lei? Basta ler o contexto. O próprio Paulo disse que os
mandamentos são santos, justos e bons (Romanos 7:12). Também lembrou que
a ira de Deus se revela contra os que sustentavam práticas sexuais proibidas no
Levítico. As regras de Deus não são ruins. A Lei de Deus é perfeita e Jesus
mesmo disse que não seria anulada (Mateus 5:17-18).
Mas a perfeição da Lei ressalta nossas faltas e estabelece nossa condenação: a
morte. É por isso que a letra mata. Pelo que está escrito na letra da lei, todos
estamos condenados. Precisamos da graça para sermos salvos e não de uma
atualização que se adeque a conveniências estatísticas. Sim, “conveniências
estatísticas”, pois a grande pressão de líderes religiosos de hoje é ceder aos
ditames mais populares, ao consenso mais ou menos geral das pessoas que não
querem lutar contra o pecado, mas “resolvê-lo” com vícios e atitudes que
adormecem a consciência. Talvez o grande desafio homilético e hermenêutico
da atualidade seja apresentar um discurso que acalme os aflitos e sacuda os
acomodados.

 As regras de Deus são boas e são nosso guia moral para a vida. Séculos de
história não fizeram Jesus duvidar da relevância das Escrituras. Ele citava Moisés
para embasar sua ética, expulsava demônios e cria na historicidade do Gênesis.
Mas a modernidade trouxe consigo teólogos mais expertos em Bíblia, que
consideram o Gênesis um mito plagiado na Babilônia e as possessões
demoníacas um caso para psicólogos. Seria cômico, se não fosse trágico.

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