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Os bastidores do Livro dos Espíritos • Um outro Jesus

Exorcismo no Alcorão • O primeiro livro religioso


O que a cabala pode fazer por você • A vida de Osho
Evangelhos apócrifos • Confúcio. Tao e Buda na China
(Mesmo sabendo
que nenhuma lista
agrada gregos
MELHORES e troianos)
FILMES DE 0 gênero de filmes de guerra tem agora

GUERRA a lista que faltava. Aventuras na História traz um


roteiro completo das 100 melhores produções
DE TODOS OS TEMPOS de guerra das telas do cinema. Quem é fã vai
querer ficar entrincheirado no sofá.
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Eu!. Titití. Viva Mais! Núcleo Casa e Construção: Arquitetura e Construção. Casa Claudia Núcleo assuntos guardam mistérios que merecem atenção.
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dades. Disney. Recreio Núcleo Motor Esportes: Frota S'A. Placar. Quatro Rodas Núcleo Turismo:
Guias Quatro Rodas, National Géographie Viagem e Turismo Fundação Victor Civita: Nova Escola
Conforme você ler este especial, provavelmente vai
achar que conhece muito pouco sobre os livros sagrados
SUPERINTERESSANTE edição n" 254-A1EAN-13.789361405198-7). ano 22. n" 7. é uma publica-
ção mensal da Editora Abril S.A. 1987 G-1-] Empáfia S A Muy Interesante" ("Muito Interessante"), e os mistérios por trás de suas páginas. Apesar de serem
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segue nenhuma religião. Bons caminhos.
Os maiores mistérios dos
LIVROS SAGRADOS
« INTRODUÇÃO Bi

Um mapa dos livros sagrados


Veja onde foram escritos os livros das
religiões e onde se passam suas histórias ...6
Traduzindo a palavra de Deus
Entenda por que é tão complicado p
trabalho de traduzir textos religiosos ...8
A criação do mundo
Todas as religiões têm sua versão para a origem
do Universo. Por que isso é tão importante para elas? , .10
SH HINDUÍSMO m

Um livro aberto
Por que os Vedas são a chave da diversidade
e da unidade das várias correntes do hinduísmo .14
Divisão ancestral
Qual a origem do sistema de castas
que vigora na Índia há milhares de anos .18
1 W RELIGIÕES CHINESAS BI |

A fé que move a China


Saiba como uma mistura de confucionismo, taoísmo
e budismo dá forma à espiritualidade dos chineses 20

aa JUDAÍSMO m
O que a cabala pode fazer por você?
A corrente mística do judaísmo usa numerologia
para decifrar a Torá em busca de uma vida melhor 26
Milagres naturais
Infográfico mostra as explicações de um cientista para
os milagres relatados no êxodo de Moisés e seu povo..... .30
CRISTIANISMO-A história secreta do cristianismo
Depois de séculos escondidos, os evangelhos .
apócrifos ajudam a contar a história da religião 34

O outro Jesus
Conheça as lendas sobre o período da vida
de Jesus que não aparece no Novo Testamento 40

ISLAMISMO-Versos anti-satânicos
Os muçulmanos também têm seu Diabo.
E seus cantos de exorcismo nas palavras do Alcorão 42

RELIGIÕESAFRICANAS-O livro não escrito


Como a crença nos orixás se organizou e atravessou .
o Atlântico, mesmo sem ter um registro escrito 46

NOVOSTEMPOS-Os bastidores do Livro dos Espíritos


Em plena revolução industrial, um professor
de ciências investiga mensagens do além 52

Os profetas da América
Os detalhes da revelação do Livro de Mórmon,
único texto sagrado escrito no continente 56

O guru dos novos tempos


Quem foi o líder espiritual indiano que
produziu mais de 600 livros com seus ensinamentos 58

O poder da mente
Um autor de ficção científica escreve a Dianética,
um livro de auto-ajuda, e funda a cientologia 62

Sagrados extraterrestres
Eles estão entre nós, mas querem ajudar.
É o que dizem as seitas que cultuam os ETs 64

Cronologia dos livros


Uma linha do tempo dos livros sagrados 00
Salt Lake City ¥ PRESENÇA DE ESPÍRITO /
Referências Allan Kardec teve contato com
experiências mediúnicas pela
primeira vez em Paris, França,
BUDISMO onde decidiu estudar mais a fundo
as mensagens recebidas nas mesas
CRISTIANISMO girantes que faziam sucesso na
ESPIRITISMO
cidade. Lá, publicou a 1a edição ÁFRICA
de O Livro dos Espíritos.
HINDUÍSMO
Região Iorubá Ile Ifé
ISLAMISMO

JUDAÍSMO ^O LIVRO DO NOVO MUNDO


O profeta Joseph Smith recebeu
MÓRMONS as placas de ouro que originaram
o Livro de Mórmon nas colinas
RELIGIÕES de Cumorah, na cidade de Palmira,
AFRICANAS estado de Nova York. Perseguidos
por outros religiosos, os mórmons
TAOÍSMO buscaram refúgio no oeste, e
se assentaram em Salt Lake City.
AMÉRICA

Um mapa ! < DE BOCA EM BOCA


A principal origem das religiões
de tradição oral que os escravos

dos livros
africanos trouxeram para a
América é a região Iorubá,
na atual fronteira da Nigéria com
o Benin. Segundo a cultura desse
povo, o mundo foi criado na
cidade de Ile Ifé, na Nigéria.

sagrados -áá OS FIÉIS AO REDOR DO GLOBO Í&.


As religiões que predominam em cada lugar do mundo

A influência da literatura
religiosa está em todos
os cantos do mundo. Aqui,
você confere onde suas histórias
se passam ou foram escritas. CRISTIANISMO JUDAÍSMO • ISLAMISMO • HINDUÍSMO •
Texto Tiago Jokura • Ilustração Bruno Algarve
< £ PEDÁGIO FILOSÓFICO
V30 REGISTRO ANCESTRAL A princípio, o caminho e a
Os textos védicos, os mais antigos virtude do Tao estavam na cabeça
do hinduísmo, foram escritos de Lao-tsé, filósofo de Luoyang,
na região de Punjab, considerada sul da China. Quando o pensador
ÁSIA berço da religião hindu. Grandes deixou a região, um guarda em
ações dos textos épicos, como Chung-nan Shan pediu que ele
guerras do Mahabharata, também deixasse suas lições por escrito.
se passam no local, atual Assim nasceu o Livro do Tao.
fronteira entre Índia e Paquistão.

Luoyang
W UMA MENTE ILUMINADA
Punjab Wei 0 príncipe Sidarta Gautama nasceu
Lumbini • — em Lumbini e viveu até os 29 anos
Bodh Gaya no castelo. 0 rei não o deixava sair
temendo uma profecia: seu filho
seria um grande líder espiritual.
Mas Siddharta fugiu e atingiu o
nirvana em Bodh Gaya, na Índia,
tornando-se o primeiro Buda.

U O JOVEM MESSIAS TERRA DE ABRAÃO


Segundo o Novo Testamento, A narrativa da Torá está centrada
Jesus nasceu em Belém, a na antiga Mesopotâmia, atual
caminho do censo de Quirino. monte Ararat região de Irã e Iraque. Segundo
Mas o Messias cristão passou o Gênese, o Jardim do Éden
a infância na cidade de Nazaré, estava entre osriosTigre
região da Galiléia, onde viviam e Eufrates e, mais ao norte,
jardim do Éden
Maria e José. Só aos 30 anos Jesus j o monte Ararat, onde a arca
se estabeleceria em Jerusalém. I de Noé encalhou após o dilúvio.

Medina

TRÊS VEZES SAGRADA / (Meca G BERÇO ISLÂMICO


A cidade de Jerusalém é sagrada Na hora de rezar, os muçulmanos
para 3 religiões que surgiram voltam-se para Meca, onde
da aliança de Deus com Abraão. Maomé nasceu e recebeu
Ela foi endereço do primeiro as revelações do anjo Gabriel,
Templo de Salomão, dos judeus; que deram origem ao Alcorão.
local da Crucificação de Jesus, Perseguido em sua cidade natal,
para cristãos; e da ascensão o profeta seguiu para Medina. de
de Maomé, maior profeta do islã. onde organizaria a reconquista.

^Â MENOS POPULARES, SAGRADAS TAMBÉM .


Confira onde nasceram outras religiões menos famosas que também escreveram seus livros sagrados.

ÍNDIA: na região do Punjab, onde nasceu IRÃ: entre 1600 a.C e 1200 a.C, a antiga JAPÃO: o Xintoísmo é uma tradição oral
o hinduísmo, também floresceu o Pérsia viu nascer o Zoroastrismo, primeira religiosa, mas ganhou versões escritas,
jainismo, religião com cerca de 4,2 religião monoteísta de que se tem notícia. como o Kojiki (712 d.C), com mitos sobre
milhões de seguidores, cujo principal Apenas um quarto do Avesta, obra com a história japonesa e a origem do universo.
texto sagrado é o Tattvartha Sutra. seus ensinamentos, chegou aos nossos Jamaica: o movimento rasta tem um texto
No mesmo país, nasceu o Sikhismo, cujo tempos. Ali também foi escrito, em 1873, sagrado, o Kebra Negast. Traduzido para
livro sagrado, o Guru Granth Sahib, seria o Kitáb-i-Aqdas ("Livro mais sagrado"), o árabe perto de 1225 d.C, relata a vida do
organizado em uma conferência em 1873. da religião Bahá'í, uma dissidência do islã. primeiro rei Etíope, herdeiro do rei Salomão.
Traduzindo
a palavra de Deus
A tradução das escrituras sagradas é um desafio tão grande que merecia
uma ajuda divina. O que fazer quando não se pode contar com ela?
Texto Artur Fonseca • Ilustração Evandro Bertol

T
raduzir é uma arte improvável, cos- Vilson Scholz, professor de teologia e consul-
tumam dizer os tradutores. Afinal é tor de tradução da Sociedade Bíblica do Bra-
muito difícil haver uma correspon- sil. Além disso, o tradutor precisa estar aten-
dência absoluta entre o que o escri- to a descobertas arqueológicas que trazem à
tor quis dizer e o novo texto. Se já é difícil luz novos significados de palavras bíblicas.
assim nas línguas modernas, imagine com os "Há 50 ou 100 anos, a lista de palavras que
livros sagrados, como a Bíblia e o Alcorão, só existiam na Bíblia era grande. A arqueo-
escritos há dezenas de séculos em dialetos que logia fez essa lista diminuir muito."
não são mais usados hoje em dia. Depois, é preciso quebrar a cabeça para
Livro mais traduzido no mundo, com ver- entender o significado das palavras no con-
sões integrais em mais de 300 línguas, a texto. "O Novo Testamento tem cerca de
Bíblia foi escrita em 3 idiomas. O Antigo 5 400 palavras. E cada uma tem em média
Testamento, incluindo a Torá, tem originais 4 ou 5 significados", diz Scholz. Às vezes a
em hebraico e aramaico, provavelmente simples falta de uma vírgula - que não
a língua falada por Jesus. O Novo Tes- existia nas línguas dos originais - com-
tamento é quase todo escrito num plica tudo. Como não dá para tirar a
grego arcaico que precisa ser tradu- dúvida com o autor, o tradutor preci-
zido mesmo para os gregos de hoje. sa intuir o significado das palavras. O
Já o Alcorão é todo em árabe, só que que lhe dá margem para influenciar o
em 4 dialetos diferentes, exatamente como texto sagrado. A palavra malakoi, por exem-
foi revelado a Maomé. plo, já virou tanto "masturbador" quanto
Outro problema que os tradutores enfren- "homossexual" (veja ao lado).
tam é a escolha dos textos em que se basear. Afinal, é preciso escolher um tipo de por-
Os 66 livros que formam a Bíblia, por exem- tuguês para o texto final. "A tradução depen-
plo, não têm mais originais disponíveis, e os de também de quem vai ler", diz o lingüista
tradutores precisam se basear em cópias - às e tradutor Nestor Dockhorn, que prepara
vezes em cópias de cópias. Para evitar erros, traduções do Evangelho de Lucas em 3 varian-
o tradutor compara várias cópias antigas e tes populares - urbana, urbana da periferia
usa livros que discutem o significado das e rural. Perfeccionismo? Nem tanto. "Na
palavras bíblicas. "É preciso usar vasta lite- hora de traduzir a palavra sagrada, todo
ratura de interpretação das palavras", afirma cuidado é pouco", diz Dockhorn. ©
Segundo uma
tradução, o paraíso
do islã pode ter
uvas, e não virgens.

^ PECADOS DA LÍNGUA
As versões das escrituras sagradas estão repletas de imperfeições por causa das dificuldades
impostas pelos originais e os idiomas em que foram escritos. Confira alguns exemplos.

DECEPÇÃO NO PARAÍSO A tradução literal, no entanto, fornece o nome


O Alcorão, livro sagrado dos muçulmanos, "bode de Azazel, o demônio". Ela não quer
também tem seus problemas de tradução. dizer que o animal pertence ao coisa-ruim,
Segundo Christoph Luxenberg, pseudônimo mas que representa sua influência sobre
de um especialista alemão em estudos árabes, os homens, sua parte maligna. Fora do
autor do livro The Syro-Aramaic Reading contexto, a expressão poderia dar a entender
of the Koran (sem tradução para o português), que um bode do demônio livrou os homens dos
os textos originais do Alcorão não foram pecados dos hebreus - o que não é verdade.
escritos apenas em dialetos árabes mas Para evitar o mal-entendido, os tradutores
também num dialeto sírio-aramaico falado preferiram o termo bode expiatório.
em Meca no século 7. 0 estudo de Luxenberg
traz um detalhe aterrador para os terroristas A PALAVRA DO PRECONCEITO
suicidas. Se sua interpretação estiver correta, Um bom exemplo de como opções de
os muçulmanos que morrem em nome da fé tradução podem causar polêmica é a questão
não encontrariam mulheres virgens no paraíso, da homossexualidade. Em vários trechos
e sim uvas. Segundo o pesquisador, a palavra da Bíblia, palavras que podem significar
usada no original, huri, significa "uvas "pederasta", "masturbador" ou "estuprador"
brancas" no dialeto sírio-aramaico. viraram simplesmente "homossexual" -
deixando evidente o preconceito do tradutor.
LITERAL, MAS AMBÍGUO A palavra malakoi, por exemplo, já virou
Em Levítico, o 3 o livro da Torá, está a história tanto "mole" quanto "pervertido", "efebo"
do bode expiatório, que é sacrificado para ou "homossexual". Cada tradutor escolhe
que o povo de Moisés pague seus pecados. a que prefere ou acha mais correta.
A criação do mundo
Todos os livros sagrados têm uma resposta sobre
a natureza e a origem do Universo. Por que isso
é tão importante para as religiões?
Texto Tarso Araújo
Adão e Eva na horta
do Éden: não havia
maçã no pomar.

N
o começo, era o nada. Então al- grandes ou pequenas, novas ou antigas, todas
guém resolveu contar a origem as religiões terão respostas para isso", diz o
de tudo. E assim nasceu a tenta- teólogo da PUC-SP, Rafael Rodrigues, espe-
tiva do homem de explicar a ori- cialista no Antigo Testamento, que começa
gem do Universo. As civilizações mais com a narrativa do livro do Gênese.
antigas já tinham essa questão existen- Na falta de referências, os homens
cial. E as religiões, preocupadas em costumam usar como matéria-prima
dar respostas a seus fiéis, não pode- dos mitos o mundo real para responder
riam deixar de formular suas respostas. essas perguntas transcendentais. Por
"Como surgiu tudo? Como é a origem do isso, a cosmologia de cada grupo social
planeta, das coisas, do homem? Essas são as é um reflexo da cultura e do momento his-
primeiras perguntas que o homem faz a si tórico de quem a inventa. "Os mitos colocam
mesmo. Sejam indígenas, africanas, orientais, o que é mais importante na cultura local com
uma importância proporcional nos mitos de sores babilônios, para quem Marduk, o Sol,
criação", diz Rodrigues. Logo o sol e a água, era o deus supremo e criador de todas as
essenciais para a produção agrícola e a so- coisas, inclusive da luz.
brevivência, sempre ocuparam lugar de des- Ainda contando a tragédia dos povos de
taque na mitologia das civilizações antigas. Israel e Judá, os capítulos 2 e 3 do Gênese
Muitas histórias sobre a origem do mundo mostram o que acontece quando um cam-
começam contando como esses recursos fo- ponês perde aquilo que é mais primordial
ram criados ou controlados pelo homem. para sua sobrevivência: a horta. "O sentido
da palavra que traduzimos para jardim, em
O mito do Gênese hebraico, é horta", diz Rodrigues. Ao ser
expulso do Éden e perdê-la, Adão comerá
nasce como uma crítica "o pão com o suor do rosto" e Eva sentirá
aumentar "as dores do parto" porquê, em
ao sistema produtivo. É vez de ter filhos de 7 em 7 anos, como era
um texto antitributarista. o hábito, terá de engravidar mais vezes
para o casal ter mais filhos e mão-de-obra.
Segundo a mitologia iorubá, no início dos Trabalhando para os babilônios, eles preci-
tempos havia dois mundos: Orum, espaço savam produzir mais para pagar impostos.
sagrado dos orixás, e Aiyê, que seria dos "O mito nasce como uma crítica ao sistema
homens, feito apenas de caos e água. Por produtivo da época. É um texto antitributa-
ordem de Olorum, o deus supremo, o orixá rista", afirma Rodrigues.
Oduduá veio à Terra trazendo uma cabaça
com ingredientes especiais, entre eles a ter- A VERSÃO DE QUEM LÊ
ra escura que jogaria sobre o oceano para A cosmologia das religiões geralmente é
garantir morada e sustento aos homens. elaborada a partir de mitos mais antigos.
Para a tradição religiosa chinesa, o caos ini- Ao se apropriar deles, elas se alimentam do
cial era como um ovo no qual entraram em mito e ao mesmo tempo o fortalecem. Afi-
equilíbrio os princípios opostos, yin e yang. nal, elas transformam as lendas em algo
Desse equilíbrio nasceu Pangu, gigante de mais que a realidade: a verdade de Deus. E
cujo corpo se formou a água, a terra e o Sol. é nesse processo de assimilação que geral-
Às vezes os mitos de criação são verda- mente os mitos são organizados em livros
deiros tratados políticos de sua época. "Só sagrados, quando também entram em jogo
compreendemos o 1o capítulo do Gênese se as interpretações e tradições orais e escritas
entendemos a catástrofe dos povos que o que vão orientar sua leitura pelos fiéis.
escreveram", diz Rodrigues. A cosmologia Os mitos do Gênese, por exemplo, foram
judaico-cristã foi escrita por povos dos an- escritos entre os séculos 8 e 5 a.C, mas a
tigos territórios de Israel e Judá, levados à organização deles numa Torá só começaria
força para a Babilônia, onde pagavam tri- no século 2 a.C. Nessa época, é provável que
butos. "Quando dizem que 'antes a terra o texto tenha sofrido mudanças e adapta-
estava vazia e sem forma', eles não se refe- ções, segundo os ideais do judaísmo nascen-
rem ao planeta, mas ao território deles, que te. A própria escolha dos textos também
ficou devastado e abandonado após a inva- obedece os critérios da religião que o orga-
são dos povos assírios." A ordem de criação niza, como aconteceria com o Novo Testa-
das coisas no mito é uma provocação ao mento, no início do cristianismo.
poder local. A primeira frase dop Gênese diz Mesmo fora dos livros Sagrados, as tradi-
que Deus fez a luz. Só no 4 o dia Ele criaria ções e interpretações dos mitos de criação
o Sol, contrariando a cosmologia dos opres- fundamentam valores, regras morais e de
Estátua de Brahma,
o deus hindu que
criou o Universo.

comportamento para seus seguidores. "Há criação e destruição do Universo: Brahma


textos rabínicos que interpretam cada linha cria, Vishnu preserva e Shiva o destrói para
do Gênese para mostrar que a mulher não que o ciclo recomece. Para criar o mundo e
pode dar testemunho em público. Porque, os humanos, Brahma fez dois deuses de si:
quando ela tomou alguma decisão, levou o Gayatri e Purusha, o homem cósmico de
homem ao erro e ao pecado. A partir daí onde foram feitas todas as coisas. Mas, en-
aparece toda a questão da sujeição da mu- quanto alguns homens nasceram da boca de
lher", diz Rodrigues. As tradições cons- Purusha, e se tornaram sacerdotes, ou-
truídas a partir do texto às vezes se tros nasceram dos pés, e se tornaram
tornam mais fortes no imaginário do os escravos da sociedade indiana.
que os originais. Quando lembramos O exemplo da sociedade hindu é
de Adão e Eva no paraíso, é comum apenas mais um exemplo de como os
pensarmos na maçã, como retratado na mitos sobre a criação do Universo fazem
imagem da página anterior. Apesar de a pa- bem mais que resolver questões existenciais
lavra maçã não aparecer no texto do Gênese. ao estabelecer relações de poder e detalhar
A cosmologia do hinduísmo também ex- códigos de conduta. O que faz deles ferra-
plica, além da origem do mundo, sua orga- mentas importantes para a coesão social,
nização social. Segundo os Vedas, 3 divin- como parte indispensável da cultura e da
dades são responsáveis pelos ciclos de identidade de um povo. ©
Um livro aberto
Entenda por que os Vedas, escrituras sagradas mais antigas
da história, são ao mesmo tempo origem da unidade
e da diversidade das múltiplas correntes do hinduísmo.
Texto André Santoro e André Victor Sartorelli

H
á cerca de 3 500 anos, as comu- deus com cabeça de elefante, que teria
nidades na região do vale do In- passado as palavras para o papel. Lendas
do, atual norte da Índia, começa- à parte, os historiadores estimam que os 4
ram a organizar um dos sistemas Vedas - RigVeda, Yajurveda, Samaveda e
religiosos mais antigos de que temos notícia: Atharvaveda - teriam sido compilados en-
o hinduísmo. Suas crenças foram transmiti- tre 1500 e 900 a.C. Mas, seja qual for sua
das oralmente de geração em geração por origem, é nos textos védicos que estão os
muitos séculos até serem transcritas nos Ve- principais conceitos e símbolos do hin-
das, compilação de hinos e preces considera- duísmo, os deuses, lendas e ensinamentos
da como o primeiro livro sagrado da história. que dão forma e unidade à religião.
O conteúdo dessa literatura sagrada, com- "A essência da tradição dos Vedas é o
posta de 4 volumes de texto em versos, ex- respeito aos ancestrais e a vinculação aos
plica ao mesmo tempo a unidade e a va- deuses", afirma Carlos Eduardo Barbosa.
riedade das múltiplas correntes do "Essas condições pautaram e pautam
hinduísmo. Graças a alguns de seus todas as correntes do hinduísmo. Por
ensinamentos mais importantes, esse isso, esses livros são aceitos como tex-
conjunto de livros é sagrado para mais tos sagrados por todos os seguidores
de 1 bilhão de pessoas que seguem seitas de todas as correntes", afirma o cientista
tão diferentes a ponto de serem monoteístas, da religião Joachim Andrade, autor de uma
politeístas ou panteístas - e ainda assim in- tese de doutorado sobre a cultura hindu.
tegrarem a mesma religião. Os Vedas foram cruciais no período inicial
Os historiadores acreditam que a primei- do hinduísmo, porque ajudaram a aglutinar
ra versão dos Vedas em papel seja do sécu- várias crenças pré-históricas em um mesmo
lo 2 a.C, quando o povo hindu desenvolveu sistema religioso. Mais tarde, no século 9,
um sistema de escrita. Segundo a lenda, a religião passou por um processo orga-
eles teriam sido organizados por Vyasa, nizado de unificação, e os textos védicos
um sábio que seria a encarnação de Vishnu, foram igualmente importantes para garan-
deus que em todos os ciclos de criação e tir a reunião de várias crenças diferentes
destruição do Universo elabora as escritu- em um mesmo sistema religioso. Na época,
ras em 4 livros, para garantir que os cân- por influência de um sacerdote hindu
ticos se propaguem e se eternizem. O chamado Adi Shankara, várias correntes do
mesmo Vyasa seria responsável por outros hinduísmo que não acreditavam nos antigos
textos sagrados do hinduísmo, como o textos sagrados reconduziram os 4 livros ao
Mahabharata, ditado por ele a Ganesh, o seu espaço privilegiado nos rituais. Até
Hinduístas rezam em
grupo: tolerância entre
as múltiplas correntes.
Entre hinduístas,
vacas são tratadas
como sacerdotes

DIVINAS TETAS
Na história do culto ao gado, bois podiam ser sacrificados. Vacas leiteiras, não.

No ocidente, o culto às vacas é tido como um eram sacrificados em rituais - mas as vacas
dos principais símbolos do hinduísmo. E, de fato, leiteiras eram poupadas. Esse salvo-conduto
o animal tem um status diferenciado na maioria das fêmeas é citado em algumas passagens
das correntes da religião hindu. A origem do próprio Rigveda, do Mahabharata e de um
dessa adoração remonta ao período em que os importante código de conduta dos hindus, o
Vedas foram compostos, a partir de 1.500 a.C. Manu-smirti (também conhecido como As Leis
"Uma das explicações é o fato de os habitantes de Manu), escrito a partir de 200 a.C. Com o
da antiga Índia serem pastores nômades, tempo, as vacas foram ganhando importância
que dependiam do gado para a sobrevivência e, cada vez mais, passaram a ser associadas
e, portanto, precisavam proteger seus às principais divindades do hinduísmo. Hoje,
rebanhos", diz o especialista Carlos Eduardo em algumas seitas, a agressão contra o animal
Barbosa. Ainda assim, no entanto, os animais equivale a um atentado contra um sacerdote.

porque seu conteúdo era aberto o suficiente incorporam um conceito filosófico que está
para cada grupo tirar dele sua própria in- na origem de todo o sistema de crenças hin-
terpretação e multiplicar ainda mais as duísta e permanece vivo na maioria das cor-
correntes hinduístas. rentes existentes hoje em dia: o monismo.
"Segundo essa filosofia, somos todos
A MULTIPLICAÇÃO DE CRENÇAS partes de uma coisa só, que é uma es-
"Os Vedas são textos ritualísticos, e não pécie de inteligência divina", diz o his-
uma enciclopédia de procedimentos toriador Edgard Ferreira Neto, da Uni-
religiosos", diz Carlos Eduardo Barbosa, versidade do Estado do Rio de Janeiro.
especialista em cultura hindu e professor do Esse princípio de tolerância a outros
Instituto de Cultura Hindu Naradeva Shala, credos presente nos Vedas distingue a re-
em São Paulo. Além disso, todos os textos ligião hindu de muitas outras, em que a fé
alheia não é vista com bons olhos, e per- infinito, sem passado nem futuro, e se
mite uma convivência pacífica entre as encaixam na categoria dos panteístas.
correntes que nascem de cada interpretação Apesar das diferenças fundamentais, essas
diferente que ele permite. Carlos Eduardo correntes têm pelo menos uma coisa em
Barbosa, que já foi à Índia várias vezes, dá comum: "Todas as correntes aceitam os
um exemplo da unidade que existe entre Vedas como escrituras sagradas", diz Car-
os hindus, apesar da diversidade de cren- los Eduardo Barbosa.
ças. "Nas ruas, em todos os cantos, você Para muitos, a descentralização da
encontra devotos do deus Ganesh, por ex- doutrina é a grande responsável pela sua
emplo, convivendo em harmonia com de- riqueza. Mas diante de tanta diversidade é
votos de Shiva. Pessoas que cultuam divin- natural que surjam correntes que se distan-
dades diferentes se respeitam mutuamente, ciam e, em alguns casos, acabam se trans-
pois todos se reconhecem como hindus formando em religiões independentes. É o
autênticos, apesar das diferenças." caso do budismo e do jainismo, que surgi-
E aqui vale dar uma idéia do que é a ram do seio do hinduísmo antigo e reúnem
variedade de crenças do hinduísmo. Em seguidores até hoje. O budismo surgiu por
relação aos cultos, existem 4 principais: volta do século 6 a.C, por causa do des-
vaishnavas, shaivas, shaktas e smartas. contentamento de alguns sábios e sacerdo-
Entre outras particularidades, cada uma tes com os rituais e sacrifícios difundidos
concentra seus rituais de devoção em nos Vedas, entre outras características dos
deuses específicos - no shaivismo, por textos hindus. O jainismo, que se organizou
exemplo, a divindade mais respeitada é a partir do século 7 a.C, tem como base
Shiva. Outro tipo de classificação leva em doutrinária o princípio da não-violência
conta a filosofia de vida e a interpretação contra todos os seres vivos como forma de
dos textos sagrados. Nesse campo há alcançar a elevação espiritual. Outra cor-
pelo menos 6 escolas principais: sankhya,
yoga, nyaya, vaisheshika, purva mimam¬ O princípio de
sa e Vedanta - todas têm, igualmente, suas
respectivas subdivisões. "Trata-se de uma tolerância dos Vedas
religião que incorpora a sabedoria de
vários mestres, e que, por isso, abre es-
distingue o hinduísmo
paço para inúmeras interpretações", afir- de outras religiões
ma Joachim Andrade.
A variedade é tão grande que segui- rente que ganhou contornos de religião
dores de crenças monoteístas, politeístas independente foi o sikhismo, que surgiu no
ou panteístas - que acreditam em um século 15 e defende a impossibilidade de
deus universal, em vários ou na presença encarnação e representação de Deus, entre
deles em todas as coisas - tomam banho outros princípios. De uma forma ou de
juntos no mesmo rio Ganges, todos de- outra, todas beberam da mesma fonte an-
baixo do grande guarda-chuva hinduísta. cestral, .antes de assumirem sua própria
Os shaivistas adoram Shiva, mas recon- identidade. Seguindo seus caminhos como
hecem a existência de outros deuses, logo, religiões independentes, elas também
são politeístas. Os vaishnavas gaudias são preservaram o ideal de tolerância cultivado
devotos exclusivos de Krishna, e são con- nas civilizações do vale do Indo. Numa
siderados monoteístas. Já os vedantas região em que tantas religiões nasceram,
acreditam que todo o Universo e a reali- isso provavelmente foi uma condição fun-
dade são expressões de Brahma, princípio damental para sua existência. ©
Divisão ancestral
A origem do sistema de castas da Índia, que continua em vigor apesar da
proibição do governo, remete aos antigos textos sagrados do hinduísmo.
Texto André Santoro e André Victor Sartorelli • Ilustração Evandro Bertol

V
árias sociedades contemporâneas ções budistas sobre o livre-arbítrio, que até
têm seus mecanismos de divisão hoje criticam explicitamente a divisão dos
da população, segundo diferentes hindus em castas. Os brahmins trataram de
critérios, de maneira mais ou me- instituir o sistema definitivamente no livro
nos informal, com ou sem aval do Estado. Manu Smriti, também conhecido como As
Um dos mais antigos e misteriosos de todos Leis de Manu. Escrito a partir de 200 a.C,
eles é o complexo sistema de castas da Índia, ele define objetivamente as castas e as atri-
que existe há pelo menos dois milênios. Sua buições dos integrantes de cada uma.
origem se perde na história, mas as primeiras Nos últimos 2 mil anos, o sistema tornou-
referências a ele estão nos Vedas, textos sa- se cada vez mais rígido e complexo. Nos
grados mais antigos do hinduísmo. Nos livros, últimos séculos, por exemplo, a atribuição
existem 4 castas originais, que passaram por de casta passou a ser hereditária - alguém
várias transformações e se desdobraram em que nasce em uma casta inferior tem que
múltiplas categorias ao longo do tempo. "Ho- conviver com a sina durante toda a vida,
je existem milhares de castas no país", em muitos casos. E, para se adaptar às
afirma Carlos Eduardo Barbosa, espe- mudanças sociais, o número de castas
cialista em hinduísmo do Instituto e subcastas se multiplicou aos milha-
Narayana, em São Paulo. res. Uma das novas subcastas é a dos
A referência mais antiga ao sistema dalits, considerada um segmento à par-
de castas está num hino do RigVeda sobre o te ou uma subcasta inferior entre os shu-
sacrifício do deus Purusha, de cujo corpo dras. Trabalhadores da indústria de couro,
teriam se originado as castas nas quais ainda sem-terra, varredores de rua, artistas de
se divide a sociedade indiana. De sua boca, rua e mendigos costumam pertencer a essa
nasceram os brahmins. De seus braços, vie- categoria. Em algumas regiões da Índia,
ram os kshatriyas. De suas pernas, surgiram eles são proibidos de ter qualquer contato
os vaishyas. E de seus pés, os shudras (veja com membros de outras castas.
ao lado). O Bhagavad Gita, fragmento mais Apesar da aparente crueldade, o sistema
famoso do épico Mahabharata, que prova- é considerado por muitos hindus como o
velmente começou a ser escrito por volta do único meio de inserção e participação social.
ano 500 a.C, também se refere explicitamen- "Para nós, ocidentais, parece algo injusto,
te às castas e traz lições sobre como se com- preconceituoso, mas não é essa a visão da
portar de acordo com sua categoria social. maioria dos indianos", afirma Barbosa. "Mui-
O Bhagavad Gita, aliás, é considerado por tos se esforçam para se manter em suas cas-
muitos estudiosos do hinduísmo como uma tas e realizar de forma digna a sua atividade,
reação dos sacerdotes (brahmins) às prega- por mais simples que ela seja." ©
CADA UM NA SUA
O hinduísmo tem 4 castas principais e uma categoria independente para os "sem-casta".
Atualmente o sistema é bem mais complexo e tem milhares de categorias diferentes.

SACERDOTES KSHATRIYA
A casta brahmin é a mais alta entre os hindus e reúne Os guerreiros e políticos formam a 2a casta entre os
líderes religiosos, professores e intelectuais. Foram hindus. Eles têm acesso aos ensinamentos religiosos,
os integrantes dessa casta que organizaram a maioria mas não podem passá-los adiante - tarefa que cabe
dos textos sagrados do hinduísmo. Sua origem são aos brahmins. Os kshatriyas também teriam
os vaishyas, artesãos que viviam nas comunidades origem nas comunidades de artesãos, a fim de
hindus ancestrais e teriam aprendido a realizar estabelecer um grupo para proteger os habitantes
rituais e cânticos em homenagem aos deuses. de invasões, bastante freqüentes na antiga Índia.

VAISHYA SHUDRA
A plebe, que não tinha acesso às decisões A casta mais baixa descrita nos textos sagrados é a
políticas, não participava das guerras e não dos antigos escravos, hoje ocupada pelos indianos que
tinha permissão para se intrometer em assuntos realizam trabalhos manuais pouco valorizados. Como
religiosos - embora pudesse participar de rituais e são os mais discriminados, também são os que mais
aprender as escrituras, em alguns casos - formava lutam para assegurara igualdade de direitos na Índia.
a 3 a casta entre os hindus. Atualmente, ela abriga Até a independência do país, em 1947, os shudras não
comerciantes, artesãos e camponeses. tinham acesso a vários serviços e empregos públicos.
A fé que
move a China
No pais mais populoso do mundo, 3 doutrinas se influenciam para
formar uma religião que só existe lá - e explica o jeito chinês de ser.
Texto José Francisco Botelho
a face das milenares metrópoles chinesas,
Confúcio, Tao e Buda ainda explicam mui-
to sobre os chineses e sua relação com o
mundo. Em vez de se excluírem, essas dou-
trinas se misturam como ingredientes de
uma poderosa salada espiritual - a chama-
da "religião tradicional chinesa", que inclui
de filosofia e regras de etiqueta a magias,
talismãs e reencarnação. Nas próximas
páginas, você vai entender como se formou
essa tríade sagrada, cujas origens se per-
dem na lenda e cujos ensinamentos regem
a vida de mais de 1 bilhão de pessoas.
Num país em que sabedoria conta mais
que santidade, nenhum sábio desfruta de
tanto prestígio quanto Kung-Fu-Tzu - o "Ve-
nerável Mestre Kung", também conhecido
por seu nome latinizado, Confúcio. Nascido
no século 5 a.C. - uma época de guerras,
fome e miséria -, Confúcio estava mais inte-
ressado em reformar o mundo dos homens
do que em desvendar os mistérios do Univer-
so. E buscou o antídoto para os problemas
sociais em clássicos da civilização chinesa:
ao longo da vida, ele compilou, editou e co-
mentou um conjunto de obras hoje conheci-
das como Clássicos Confucianos (leia mais na
página 24). Nos séculos seguintes, discípulos
e seguidores reuniram os ensinamentos do
mestre nos Analectos e transformaram o con¬
fucionismo na ideologia oficial do império.
A filosofia de Confúcio se baseia no con-
ceito de ren, termo que pode ser traduzido

T
odo chinês é taoísta em casa, con¬ por "benevolência" ou "humanismo". Para
fucionista na rua e budista na ho- ele, um sábio deve medir suas ações tendo
ra da morte". Para muitos estudio- em vista o bem da humanidade - tanto as
sos, esse ditado chinês resume a gerações presentes quanto as futuras. Esse
complexa espiritualidade da nação mais apelo ao altruísmo universal se resume na
antiga do mundo. Em seus 5 mil anos de máxima cunhada pelo mestre 400 anos antes
história, a China teve a alma moldada pelos de Jesus Cristo: "Não faças aos outros o que
livros dessas 3 doutrinas, surgidas há mais não desejes que te façam". Outro conceito
de 20 séculos. Por isso, apesar do vertigi- essencial do confucionismo é o li, que pode
noso crescimento econômico que moderni- ser traduzido como "ordenamento social".
za o país a toque de caixa, quem quiser Confúcio acreditava que só poderia haver
entender a China de hoje precisa voltar o harmonia entre os homens se cada indivíduo
olhar para o passado distante. Enquanto seguisse à risca as normas de sua sociedade
arranha-céus e canteiros de obras mudam - incluindo respeito à hierarquia e etiqueta.
"Socialmente - ou seja, 'na rua' - o chinês de tudo que existe. Segundo o taoísmo, o
moderno ainda é profundamente confucia¬ fluxo do Tao é regido pela transição entre yin
no", diz o sinólogo André Bueno, do Depar- e yang, os pares de opostos que formam o
tamento de História e Filosofia da Faculdade cosmos: macho e fêmea, luz e sombra, quen-
Estadual de União de Vitória, Paraná. O te e frio etc. Essas idéias são antigas como a
apreço pelas regras de etiqueta pode parecer China e remetem aos xamãs da Pré-História
estranho aos olhos de outros povos - um - mas o primeiro a elaborá-las em forma de
tipo de choque cultural que ocorre com fre- filosofia foi Lao-tsé. Embora não se saiba ao
qüência entre empresários ocidentais que certo se ele viveu uma geração antes ou 100
vão fazer negócios na China. Um exemplo anos depois de Confúcio, todas as referências
bem atual da obsessão confuciana por esses concordam que ele foi o autor do primeiro
protocolos: entre os chineses, cartões comer- cânone do taoísmo, o Tao Te Ching ou "Clás-
ciais devem ser apresentados com os braços sico do Caminho e da Virtude".
estendidos, uma suave reverência com a Se o ideal de Confúcio era reformar a
cabeça e a palma das mãos voltadas para o sociedade, o de Lao-tsé era harmonizar o ser
interlocutor. Quem entrega seu cartão com humano com o Cosmos. "O homem segue a
displicência se arrisca a arruinar transações Terra, a Terra segue o Céu, o Céu segue o
milionárias. Exagero? Não, confucionismo. Tao, e o Tao segue a si mesmo" - é um dos
Apesar de sua influência sobre a espiri- versos mais famosos de sua fascinante e
tualidade chinesa, o confucionismo está obscura obra. Mais individualista que Con-
mais para filosofia ética do que religião. fúcio, Lao-tsé pregava uma vida simples, em
Confúcio nada disse sobre vida após a mor- comunhão com as energias da natureza e
te, e há quem diga que era ateu. Para Kung- longe das turbulências da política. Essa bus-
Fu-Tzu, o sábio deveria fazer o bem pelo ca de equilíbrio entre o indivíduo e o Uni-
bem, sem esperar recompensas divinas. O verso é o que rege, ainda hoje, a disposição
que soou muito estranho para os missioná- das mobílias segundo o feng shui, os movi-
rios cristãos que chegaram à China a partir mentos do tai chi chuan e os exercícios de
do século 15 e passaram a descrever o con- disciplina das artes marciais chinesas.
fucionismo como "religião oficial" do país. "Até o século 4, o taoísmo era uma filoso-
É verdade que o cético e pragmático mestre fia de vida, principalmente. Depois, tomou
Kung pregava o respeito aos cultos tradicio- ares de religião", explica o sinólogo Bueno.
nais como forma de coesão social. Mas foi Em sua vertente mística, o taoísmo se apro-
nas outras duas faces da tríade, o taoísmo xima do animismo - a idéia de que todas as
e o budismo, que a alma chinesa saciou seu
apetite pela transcendência.
Lao-tse pregava
MANANCIAL DE SUPERSTIÇÕES uma vida simples,
Para alguns estudiosos, o taoísmo é a viga
mais forte do templo espiritual chinês, e sua
em comunhão com
influência sobre práticas típicas da cultura as energias da natureza.
chinesa, como o feng shui e o tai chi chuan,
são provas disso. A palavra Tao - "caminho" coisas, incluindo pedras e plantas, são dota-
ou "curso" em mandarim - indica a força das de "espírito" e "poder". Daí a multidão de
primordial que mantém o Universo em equi- feitiços, encantamentos e simpatias que o
líbrio. Não é uma divindade antropomorfa, taoísmo assimilou com o tempo. Na Idade
à maneira judaico-cristã, mas uma espécie Média, os sacerdotes taoístas não se limita-
de energia impessoal que se move por trás vam a meditar: praticavam a alquimia, bus-
A prática do tai chi chuan
busca o equilíbrio com a
natureza pregado pelo Tao.

cavam a imortalidade em elixires mágicos e Gautama (o Buda) viveu na época de Con-


diziam ter superpoderes, como o de voar fúcio e Lao-tsé - mas foi só por volta do sé-
pelos céus à noite. Ao lado da vertente filo- culo 1 a.C. que obras budistas chegaram à
sófica, muitas superstições do panteão taoís¬ China, com viajantes que cruzavam o Hima-
ta continuam vivas até hoje. Um exemplo: laia. Entre os conceitos budistas que "co-
quando um chinês tem problemas do- laram" na China está o "nirvana", es-
mésticos, costuma pôr a culpa na pre- tado de elevação espiritual em que
sença de gênios mal-humorados em sua todo sofrimento desaparece, e o "sa¬
casa. O jeito é contratar os serviços de msara", que pode ser entendido como
algum sacerdote taoísta especializado em reencarnação. Durante séculos, monges
exorcismos - cujos rituais se parecem com os chineses traduziram obras em línguas india-
da umbanda brasileira, com direito a banhos nas e compuseram seus próprios tratados em
de sal grosso e golpes de folha de arruda nos mandarim - o resultado disso tudo é a cole-
exorcizados. "Mesmo para quem vem de um ção conhecida como Grande Tesouro das Es-
país como o Brasil, a quantidade de crenças crituras, compilado no século 10.
e superstições populares que existem na Chi- O budismo original se dividia em duas
na é enorme", diz a antropóloga especialista escolas: o Theravada, mais cético e filosófico,
em China Rosana Pinheiro Machado, da Uni- e o Mahayana, uma espécie de caldeirão de
versidade Federal do Rio Grande do Sul. crenças que aceita a existência de deuses,
espíritos e criaturas fantásticas, como demô-
A SALVAÇÃO DA ALMA nios e serpentes falantes. Foi esta versão que
Mas com todos seus feitiços e meditações o fez sucesso no país de Confúcio, dando ori-
taoísmo nada diz sobre a vida após a morte. gem a duas formas de budismo típicas da
E é aí que entra o budismo, fundado também China. Uma é o chan, ou zen, que misturou
por volta do século 5 a.C, naÍndia.Siddharta- crenças budistas a práticas de meditação do
- GENEALOGIA DAS ESCRITURAS CHINESAS
As religiões chinesas têm vários cânones religiosos, os ching, em mandarim. Mas seu conteúdo
não é considerado a palavra de Deus, e sim o repositório de milênios de sabedoria humana.
Confira a história dos principais livros que deram forma e sentido à espiritualidade chinesa.

I CHING (CERCA DE 3000 A.C.) ANALECTOS (500 A 200 A.C.)


Considerado o livro mais antigo da China, foi escrito Após a morte de Confúcio, seus seguidores
por Fu Hsi, imperador legendário que viu um dragão acrescentaram ao cânone os Analectos - coleção
emergir das águas com símbolos geométricos de diálogos e ditos do mestre, compilados por
gravados nas costas: os 64 hexagramas doIChing. seus discípulos em 22 capítulos.
Mais tarde, sábios escreveram interpretações para
os sinais, formando o livro I Ching. Nessa obra, O TRIPITAKA (100 A.C.)
surgiu o conceito de yin-yang, base de todo Siddharta Gautama, o Buda, elaborou sua doutrina
o pensamento chinês. Os hexagramas são usados entre os séculos 6 e 5 a.C. - mas não deixou
até hoje para adivinhações na China e na Coréia. nenhuma palavra por escrito. Seus ensinamentos
foram memorizados por um assistente e em
TAO TE CHING (CERCA DE 500 A.C.) seguida preservados pela tradição oral entre
Muitas lendas envolvem Lao-tsé - suposto autor monges budistas. No século 1 a.C, monges
do maior clássico do taoísmo. Segundo a mais do Sri Lanka os transcreveram, dando origem ao
famosa, o sábio teria abandonado a China para Tripitaka ("Os Três Cestos", em páli). A obra trata
viver como eremita em terras ocidentais. Lao teria de questões teológicas, sermões do Buda sobre
escrito o Tao Te Ching a pedido de um guarda da a moral e o destino e regras de disciplina para
fronteira, quando deixava sua província. A obra os monges. 0 texto é o cânone do Teravada,
fala da relação entre o ser humano e o Tao - força versão mais tradicional e filosófica do budismo.
primordial que move o Cosmos. Para historiadores,
o Tao Te Ching foi escrito por diversas pessoas SUTRAS MAHAYANAS (100 A.C. A 100)
entre os séculos 4 e 3 a.C. Outra vertente budista, o Mahayana, surgiu por
volta do século 1 a.C. Mais mística que o Teravada,
CLÁSSICOS C0NFUCIAN0S (500 A.C.) e fonte principal do budismo chinês, ela inclui
Confúcio passou boa parte da a crença em seres fantásticos como demônios,
vida comentando as obras mais fantasmas e serpentes gigantes. Seus textos
importantes da tradição chinesa. sagrados são os "Sutras Mahayanas", escritos
O I Ching é o primeiro dos no início da era cristã, no idioma sânscrito.
Clássicos Confucianos
como ficou conhecido GRANDE TESOURO DAS ESCRITURAS (983)
o conjunto da obra, No século 1 a.C. os textos budistas começaram
que serviu de base a ser levados à China por viajantes que cruzavam
à educação chinesa o Himalaia, cadeia de montanhas que separa
durante milênios, o país da Índia. Nos séculos seguintes, os eles
A obra tem no total foram traduzidos para o mandarim, dando origem
13 livros. Os 5 principais, a formas de budismo típicas da China, como o chan
incluem, além do I Ching, (ou zen) e a vertente conhecida como "terra pura".
o Chu Ching ("Clássico Em 983, as escrituras em chinês foram reunidas
da História"), o Chi Ching no Grande Tesouro das Escrituras, que integra
("Clássico da Poesia") e o Shi mais de 2 mil textos individuais e também
Ching ("Clássico da Música"). influenciou o budismo no Japão e no Tibete.
taoísmo. A outra é o "terra pura", ramo mais resultados muitas vezes irônicos. É o caso do
popular, que venera diversos espíritos ilumi- destino póstumo de Mao Tsé-tung. Alguns
nados em vez de um único Buda. anos após sua morte, o ditador ateu passou a
E assim deciframos a última parte do ser venerado como espírito do panteão taoís-
enigmático provérbio citado lá no início. ta. Hoje, quase todos os táxis de Pequim têm
Pois é na hora da morte que o pragmático um amuleto no retrovisor, onde se vê a foto-
chinês renuncia às preocupações desse mun- grafia de Mao cercada de franjas e sininhos
do e chama monges budistas para recitarem - uma simpatia contra acidente de trânsito.
os sutras - textos sagrados que garantem Assim como sua efígie, a ideologia de
sorte na próxima encarnação. "O racio- Mao também foi virada pelo avesso por
cínio é simples: se corremos o risco de seus sucessores. Quando abriu a eco-
reencarnar, então é melhor chamar nomia chinesa, por volta de 1988, o
um especialista", resume o sinólogo reformista Deng Xiaoping justificou
Bueno. Mais chinês, impossível. sua traição ao marxismo com uma
A tríade espiritual passaria por maus tirada tipicamente chinesa: "Não im-
bocados a partir de 1949, quando o país foi porta se o gato é preto ou branco. Importa
dominado pela ditadura comunista de Mao que cace ratos". Nos anos seguintes, o oní¬
Tsé-tung. Por sua ênfase na reflexão indivi- voro dragão chinês, que já tinha digerido a
dual, o confucionismo virou ideologia "bur- doutrina de Marx, fez o mesmo com o capi-
guesa". Enquanto isso, as práticas budistas e talismo - transformando essas duas ideolo-
taoístas eram descartadas como "superstições gias ocidentais em algo, digamos, bem chi-
abomináveis". Os livros foram proibidos e nês. O que não é de estranhar no país de
muitos queimados. Mas a repressão mal Confúcio, que também cunhou outra máxi-
afrouxou, na década de 1980, e a borbulhan¬ ma famosa: "Devemos copiar o que admi-
te religiosidade chinesa voltou à tona, com ramos, para depois superá-lo". ©

Na hora da morte, o chinês


e budista, e lê os sutras para
ter sorte na próxima vida
Rabinos fazem
contas para
decifrar a Torá.

O que "a cabala


pode fazer por você?
Tradição mística mantida em segredo por séculos, a cabala permite
interpretar significados ocultos nas histórias da Torá, livro sagrado dos
judeus. Como esses ensinamentos podem nos levar a uma vida melhor?
Texto Eduardo Szklarz

O
formato da Torá, livro sagrado saga. do povo de Israel pelo deserto em
do judaísmo, impressiona: dois busca da Terra Prometida. Mas a riqueza
grandes rolos de pergami¬ dos pergaminhos vai muito além. Segun-
nho escritos à mão com do a cabala, tradição mística judaica,
tinta especial, presos a carretéis de as 304 805 letras hebraicas da Torá
madeira e envoltos por um pano bor- também contêm significados ocultos
dado e ornamentos de prata. Seu sobre Deus e as leis do Universo. Ao
conteúdo, revelado por Deus a Moisés usarem chaves numéricas e meditações
no monte Sinai, inclui os 5 primeiros livros para desvendar esses mistérios, os cabalis-
da Bíblia e narra desde a Criação até a tas tiram lições das histórias narradas no
texto. E você não precisa ser rabino ou Além de usar essas associações entre as-
mesmo judeu para ter acesso a esses ensi- pectos de Deus e passagens da narrativa, os
namentos e usá-los para viver melhor. cabalistas interpretam a Torá utilizando a
O segredo da cabala é relacionar pala- guimátria, numerologia judaica. O princípio
vras e números da Torá de uma maneira é que cada uma das 22 letras do alfabeto
específica. E sua origem está no Sefer Ietsirá hebraico, do alef ao tav, possui um valor
numérico. "As primeiras 9 letras estão asso-
A letras da Torá ciadas às unidades (1, 2, 3,..., 9); as 9 letras
seguintes estão associadas às dezenas (10,
contêm significados 20, 30,..., 90); e as últimas 4 estão associa-
das às centenas (100, 200, 300, 400)", diz o
ocultos sobre Deus pesquisador David Zumerkorn no livro Os
e as leis do Universo. Segredos da Guimátria. Fazendo as contas
(veja abaixo), surgem os significados ocultos
ou Livro da Criação, obra minúscula que que expandem os ensinamentos do livro
ninguém sabe ao certo quando e por quem sagrado. "Aparentemente, as histórias da
foi escrita. O fato é que ela introduz a idéia Torá não têm relação com a vida diária. Mas
de que Deus criou o Universo usando as 22 a cabala mostra que, por trás delas, há ensi-
letras do alfabeto hebraico. "O Gênese já namentos profundos sobre como lidar com
dizia que o verbo divino foi o instrumento nosso semelhante e encarar as situações",
da Criação: Deus disse 'Haja luz', e houve diz Samuel Lemle, professor do Kabbalah
luz. A novidade do Sefer Ietsirá é especular Centre (Centro de Cabala) no Brasil.
em detalhes como Deus combinou essas
letras", diz o pesquisador Daniel C. Matt
no livro O Essencial da Cabala. O livro tam-
bém apresenta a idéia das sefirot, plural de
sefirá, que pode significar "reino", "esfera"
ou "contagem", conforme a tradução. Re-
presentadas pelos números de 1 a 10, elas
são consideradas outro instrumento da
criação do Universo. O livro só não expli-
cava como usar tudo isso para revelar os
significados ocultos da Torá.

A ERA DE OURO DA CABALA


Até que no século 13 o espanhol Moisés de
León publicou o Sefer Ha Zohar, Livro do
Esplendor, com as regras que consolidaram A NUMEROLOGIA A Matem[atica d[a novos sentidos a Torá
o que hoje se conhece como cabala. Ele Há várias formas de interpretar a Torá usando
conectou cada sefirá a um modo que Deus a numerologia judaica. Uma delas é relacionar
tem de atuar, bem como a um personagem duas palavras com o mesmo valor numérico ou
bíblico. "A sefirá de Chessed, por exemplo, dois versículos onde essas palavras aparecem.
está ligada ao amor e a Abraão. Quando os Por exemplo, o valor das letras da palavra
cabalistas lêem Abraão na Torá, lêem tam- amalek (referente ao antigo povo amalek)
bém esse aspecto misericordioso de Deus é o mesmo da palavra safek ("dúvida" ou
atuando no mundo", diz Leonardo Alanati, "incerteza"). Para os cabalistas, isso significa
da Congregação Israelita Mineira. que a ordem bíblica de matar amalek não
se refere ao povo em si, mas à dúvida
e à incerteza que existem dentro de nós.
$ H Amalek 1 ft?9 Safek
* Ayin 70
b Mem
^ Lamed^ ^
?Kuf Amalek
4
30
240
1000 = fo
$ Samech
KFei
uf Safek 6
80
100
240
Lemle menciona o mandamento bíblico
"Não matarás", lembrando que na Torá há
^ A ARVORE DA VIDA te.
A estrutura do Universo segundo a cabala.
uma passagem onde Deus ordena aos isra-
elitas matar o povo de amalek. Uma baita
contradição, certo? A não ser que se usem
Keter
as contas do Zohar para ver que as letras COROA
hebraicas da palavra amalek têm o mesmo
valor numérico que a palavra safek, que
Binah Hokhmah
significa "dúvida" ou "incerteza". "A cabala
ENTENDIMENTO SABEDORIA
usa a numerologia para entender que matar
Amalek não é matar um povo, mas a dúvi-
da e a incerteza dentro de nós", diz Lemle.
"A guerra não é contra o inimigo lá fora, Guevurá Chessed

mas contra um oponente interno, um lado JUSTIÇA AMOR

negativo da nossa natureza: pensamentos


do tipo 'não vou conseguir' e 'isso não vai
dar certo'. Eles sabotam a nossa vida." Tif`eret
Segundo o professor, cabalistas milena- BELEZA
res usavam essa sabedoria para se torna-
rem pessoas melhores e crescer espiritual-
Netsah
mente. Assim como cabalistas modernos, Hod
ESPLENDOR ETERNIDADE
eles queriam não apenas compreender mais
sobre Deus mas também obter lições de
vida e aconselhar as pessoas. E, ao contrá-
Yesod
rio do que muitos pensam, o misticismo
FUNDAÇÃO
judaico nunca foi um oráculo capaz de
descobrir coisas sobre o passado ou o fu-
turo. De vez em quando alguém até arrisca
esse caminho - por exemplo, tentando Shekhinah
prever a chegada do Messias, mas sempre PRESENÇA
dá errado. O rabino Alanati lembra que a
cabala também não tem nada a ver com
amuletos. "Na Idade Média, muita gente As 10 sefirot formam uma árvore invertida,
escrevia fórmulas com permutações das chamada Árvore da Vida. A raiz fica em cima,
letras dos nomes de Deus atrás da mezuzá próxima ao aspecto primordial de Deus,
(caixinha colocada no batente da porta nas e os galhos embaixo, nas sefirot inferiores.
casas judaicas)", diz ele. A sefirá Malchut é a mais próxima do ser
humano e a que lhe dá a primeira sensação de
Deus atuando no mundo. À medida que evolui
UMA TRADIÇÃO SECRETA espiritualmente, a pessoa sobe os degraus
Por essas e outras, durante muito tempo não em direção às sefirot superiores. Além disso,
foi fácil ter acesso à cabala. Os candidatos a árvore tem 3 colunas. "Buscamos a coluna
tinham que ser homens judeus de mais de central, que é o equilíbrio", diz 5amuel Lemle.
40 anos - e só os mais qualificados espiri- "Tenho muito amor pelo meu filho, mas não
tualmente eram aceitos. "Os rabinos temiam posso dar tudo a ele, pois o amor também
que as técnicas caíssem nas mãos de quem envolve dar limites." Por isso Chessed
não tinha a preparação necessária. Em qua- (amor) está ao lado de Guevurá (justiça).
se todas as religiões, as iluminações místicas
dos leigos sempre foram fontes de risco e situação. Você aprende a parar, pensar e
heresias", diz o historiador Gershom Scho¬ buscar a melhor forma de agir em cada
lem no livro As Grandes Correntes da Mística momento", diz Lemle. Segundo ele, isso
Judaica. Até hoje, judeus ortodoxos restrin- pode ser aplicado em situações tão corri-
gem o ensino da cabala. Mas algumas cor- queiras como uma conversa entre irmãos
rentes mais progressistas discordam. "Não ou uma briga entre marido e mulher. "Os
é que os cabalistas antigos quisessem ocultar
a cabala. É que não tínhamos a linguagem O estudo da cabala
acessível para compartilhar esses conheci-
mentos. Mas os avanços da nossa era já nos levou séculos para sair
permitem entendê-los", diz Lemle.
da obscuridade, mesmo
A POPULARIZAÇÃO DO ESTUDO entre os judeus.
Assim o estudo da cabala levou séculos
para sair da obscuridade total, mesmo en- cabalistas milenares também eram proati-
tre os judeus, até a relativa popularidade vos. Abraão ensinava às pessoas que existia
atingida nos anos 90, quando o Kabbalah um único Criador e que havia uma lei de
Centre, nos EUA, abriu as portas da cabala causa e efeito. Ou seja, ensinava uma forma
para leigos de qualquer religião. Madonna, de encarar a vida", afirma.
uma de suas freqüentadoras, garante que Na busca por essa nova atitude, os alu-
tem atraído boas vibrações desde que co- nos aprendem a usar ferramentas cabalís-
meçou a fazer o curso. Os ortodoxos criti- ticas. As mais simples são feitas de combi-
cam a iniciativa (que inclusive foi rotulada nações de letras que não têm nenhum
de cabala "pop" ou "light"), mas o Kabbalah significado em hebraico; são simplesmente
Centre garante que o conhecimento é o chaves, como ABD, que funcionam como
mesmo e até os livros de seus alunos uma espécie de mantra para medita-
são exatamente os mesmos que ser- ção. "O Zohar explica que os olhos
vem de fonte para os judeus. são as janelas da alma. Passar os
Segundo Lemle, a primeira coisa olhos todo dia por essas seqüências
que o estudo da cabala proporciona é de letras nos ajuda nessa mudança
uma nova atitude diante da vida. "Do mes- espiritual. O processo de visualização ali-
mo jeito que existem leis físicas, como a lei menta nossa alma para que possamos ser
da gravidade, a cabala diz que existem leis proativos", diz o professor.
espirituais que regem este mundo. E nos Claro que ninguém vai freqüentar algu-
ensina a conviver com elas em harmonia", mas aulas e mudar sua vida de repente.
afirma. Por exemplo: a cabala diz que não "Uma pessoa precisa estudar física quântica
existe o acaso, e sim a lei de causa e efeito. por muitos anos para entendê-la profunda-
Tudo o que acontece na nossa vida fomos mente, mas começa aprendendo a contar de
nós que criamos de alguma forma. Assim, 1 a 10. No curso, é a mesma coisa. O aluno
o ensinamento mais importante para quem começa contando até 10", diz ele, acrescen-
começa a estudar no Kabbalah Centre é tando que mesmo o conhecimento limitado
deixar de ter um comportamento reativo e das primeiras aulas do curso já possibilita
passar a ser proativo. Ou seja, deixar de ser aos alunos tirar algum proveito na prática,
o efeito de determinadas situações e se como controlar melhor as emoções no dia-
tornar a causa delas. a-dia. "Mas nada vai funcionar se não tiver-
"Sendo proativo, você deixa o papel de mos a verdadeira intenção de aprender e
vítima, que nunca tem controle sobre a nos tornarmos pessoas melhores." ©
Milagres naturais
Os milagres do Êxodo sempre atraíram o interesse da ciência.
E ela tem hipóteses para explicar cada um deles.
Texto Tiago Jokura • Ilustração Sattu

ele e seu povo empreendem a jornada de 40

A
origem do povo de Israel está
descrita no Êxodo, 2o livro da To- anos, marcada por diversos milagres. Milha-
rá, o texto sagrado dos judeus. res de anos depois, o físico Colin Humphreys,
Segundo a história, os descen- da Universidade de Cambridge, analisou esses
dentes de Abraão viviam como escravos do fenômenos e propôs explicações naturais
faraó egípcio, trabalhando na construção de para eles no livro Os Milagres do Êxodo. Em
obras no delta do Nilo. Até que Moisés matou vez de desacreditar os milagres, elas os refor-
um egípcio e decidiu fugir. Em sua fuga, re- çaram, ao mostrarem como cada coisa acon-
cebeu uma mensagem de Deus para que li- teceu na hora e lugar certos para os judeus.
bertasse seu povo e o conduzisse à Terra Aqui, você verá as hipóteses de Humphreys
Prometida. Apesar da resistência do faraó, para alguns eventos dessa história. ©

^ O chamado (Êxodo 3:2 e 3)


Ali o Anjo do Senhor lhe apareceu numa chama de fogo que saía do meio de uma sarça. Moisés
viu que, embora a sarça estivesse em chamas, não era consumida pelo fogo. "Que impressionante!",
pensou. "Por que a sarça não se queima? Vou ver isso de perto."

HIPÓTESE: |
Há duas hipóteses naturais
para o fogo que não consumia
a sarça, arbusto comum no Egito.
A primeira diz que fendas no solo
liberavam gás natural, abundante
na região, para a superfície. 0 calor
intenso permitiria a combustão
do gás ao redor do arbusto, que Moisés
apenas parecia queimar. A outra
hipótese é semelhante: a diferença
é que a fonte do fogo seria uma
chaminé vulcânica, ocorrência
comum em lugares onde já houve
vulcões em atividade. Isso também
explicaria a fertilidade do solo
naquela área, o que teria
atraído o rebanho de Moisés.

fenda de gás
^ As 10 Pragas do Egito (Êxodo7-2e4) ^
Você falará tudo o que eu lhe ordenar, e o seu irmão Arão dirá ao faraó que deixe os israelitas sair
do país., ele não os ouvirá. Então porei a minha mão sobre o Egito e com poderosos
atos de juízo tirarei do Egito os meus exércitos, o meu povo, os israelitas.

HIPÓTESES:

j MORTE DOS PRIMOGÊNITOS ESCURIDÃO


! Tradicionalmente, primogênitos têm Os 3 dias de escuridão em março seriam
! o privilégio de se alimentar quando não conseqüência de uma densa tempestade
i há alimento para todos. Mas o benefício de areia, que trancaria os egípcios em casa.
! se inverte ao comerem os cereais 0 fenômeno, conhecido como khamsin,
i contaminados pelas fezes de gafanhotos. é comum até hoje nessa época do ano.

I NILO EM SANGUE E SAPOS MORTOS


j 0 rio Nilo teria ficado vermelho graças à
: proliferação de algas vermelhas, produtoras
; de toxinas que matam os peixes e afugentam
I sapos e rãs. Ao fugir para as partes mais secas,
| eles invadem a cidade e morrem desidratados.

) iCHUVA DE PEDRAS E GAFANHOTOS j


' :A chuva de pedras seria, na verdade,
de granizo, que fere homens e animais e destrói
ias plantações. 0 solo úmido atrai gafanhotos--
do-deserto, que depositam seus ovos e, até
março, devoram o que sobrou de alimento.

I ENXAMES DE MOSQUITOS E MOSCAS; j MORTE DO GADO E CHAGAS NAS PESSOAS


" Com a morte de sapos e rãs, predadores \ As moscas-de-estábulo carregam vírus fatais
naturais dos insetos, mosquitos como j para vacas e cavalos, que começam a morrer por
o Culicoides canithorax e moscas-de-estábulo j causa dos enxames. E a infestação de Culicoides
como a Stomoxys calcitrans multiplicam-se \ causam as doenças de pele nos egípcios.
descontroladamente entre outubro e novembro. • 0 cenário é grave entre novembro e janeiro.
^ Vento a favor (Êxodo 14-21 e 22) .
Então Moisés estendeu a mão sobre o mar, e o Senhor afastou o mar e o tornou em terra seca.
com um forte vento oriental que soprou toda aquela noite As águas se dividiram, e os israelitas
atravessaram pelo meio do mar em terra seca, tendo uma parede de água à direita e outra à esquerda.

HIPÓTESE:

O SOPRO DIVINO , 0
J
A região do golfo de Acaba registra
a ocorrência de tufões. Então Humphreys
supõe que um vento nordeste de 130 km/h vento NE de 130 km/h
poderia ter soprado à noite, empurrando a
água do mar até as partes mais rasas do leito
aparecerem como uma faixa de terra seca.

— Rota tradicional
O Travessia tradicional
— Rota proposta
O Travessia proposta

OUTRO MAR
Pela tradição, os judeus atravessaram
o mar Vermelho pelo golfo de Suez.
Mas o "vento oriental" faria diferença
numa travessia pelo golfo de Ácaba.
Neste caso, a rota do êxodo seria outra.
E o destino, o monte Bedr, na Arábia Saudita,
cr

^ Alimento que cai do céu [Êxodo 16=14,15 e 30)


Depois que o orvalho secou, flocos finos semelhantes a geada estavam sobre a superfície do deserta
(...) Disse-lhes Moisés: "Este é o pão que o Senhor lhes deu para comer. (...) O povo de Israel chamou de
maná àquele pão Os israelitas comeram maná durante 40 anos, até chegarem às fronteiras de Canaã.

HIPÓTESE: |
árvore de tamarisco
Arvores do gênero dos
tamariscos, que ainda hoje
ocorrem na região da Arábia
Saudita, produzem uma seiva
doce que serve de alimento
para alguns tipos de insetos.
0 pão que os judeus chamam
de maná seriam gotículas de
secreção produzidas por insetos
insetos se
que se alimentam da seiva, alimentam da seiva
que caem como pequenos
flocos cristalizados, semelhantes
aos descritos no Êxodo.
Rica em carboidratos, a seiva
dos tamariscos fazia do maná
uma fonte de energia essencial
para uma multidão que
caminhava dia e noite no deserto.
i LEITO FAVORÁVEL
i Com esse vento, as "paredes de água"
I teriam entre 1,2 e 2,4 metros de altura.
i Mas elas só se formariam dos dois lados
I da travessia se houvesse alguma elevação
i acentuada no solo do mar, como um banco
i de areia, que ajudaria a separar as águas.

j A PASSAGEM DO REBANHO EGÍPCIOS AFOGADOS


i Humphreys sugere que eles fossem 20 mil, 0 milagre da travessia termina com o fim
e não 2 milhões, como esta na Torá, pois essa do caminho seco e os soldados egípcios I
multidão não conseguiria atravessar cerca que perseguiam os judeus afogados.
de 5 quilômetros numa noite. A confusão A causa disso seria uma brusca
viria da tradução: a palavra eleph, do original interrupção do vento, que faria as águas
em hebraico, significa "milhar" ou "grupos". voltar rapidamente, como grandes ondas.

O outro endereço do Sinai (Êxodo 13-21)


Durante o dia o Senhor ia adiante deles, numa coluna de nuvem,
paraguiá-losno caminha e de noite, numa coluna de fogo
para iluminá-los. e assim podiam caminhar de dia e de noite.

HIPÓTESE: |
Para Humphreys, o relato sobre
as colunas de nuvem e fogo
que orientam a caminhada
do povo judeu e a descrição do
monte em que Moisés sobe para
encontrar Deus e receber os Dez
Mandamentos é o registro mais
antigo de um vulcão em erupção.
Embora a tradição reconheça
o monte Jebel Musa, na região
do Sinai, como aquele citado
no Êxodo, as características de
vulcão - inexistente em qualquer
monte da região do Sinai
sugerem que o monte citado
na Bíblia seja o Bedr, situado
numa região da Arábia Saudita
que já teve atividades vulcânicas.
A história secreta
do cristianismo
Apócrifo é a palavra grega para "aquilo que deve ficar
escondido". Centenas de escrituras do cristianismo tiveram
esse destino. Descobertas, revelam a história dessa religião
Texto Michelle Veronese

Caverna do monte Quran,


onde foram encontrados os.
Manuscritos do Mar Morto.
E
m 1945, um pastor encontrou um compõem a Bíblia - mas vários textos, cada
jarro de cerâmica numa gruta qual escrito pelas diferentes seitas existentes,
próxima a sua aldeia no Egito. Ao que registravam seus próprios valores e cren-
abri-lo, achou vários livros escri- ças sobre a origem do mundo e da vida, sobre
tos em idiomas que ele não compreendia. Deus e o messias. E havia muitas divergên-
Algumas folhas amareladas serviram ali- cias. Os docetas, por exemplo, negavam a
mentaram o forno a lenha de sua casa. As realidade material de Cristo. Consideravam
restantes caíram nas mãos de um religioso que Jesus possuía um corpo etéreo e que,
local, circularam no mercado de antigüi- por isso, não nasceu nem foi morto na cruz
dades e foram resgatadas por um funcio- e muito menos ressuscitou. Os ebionitas, por
nário do governo egípcio. Mais tarde, sua vez, defendiam que Jesus tinha nascido
descobriu-se que a "lenha" era um te- de forma natural e só depois de batizado
souro de valor incalculável: a coleção é que Deus decidiu adotá-lo. Já os ofitas
de Nag Hammadi, 13 livros com 1 600 acreditavam que Caim era o represen-
anos e histórias que a Igreja tentou tante espiritual mais elevado. Para eles,
abafar durante todo esse tempo. Mas a morte de Jesus foi um crime do Uni-
não conseguiu. Depois de sobreviver ao verso, mas um evento necessário para a
tempo e à censura religiosa, o achado tor- salvação da humanidade.
nou-se o maior e mais importante acervo Um dos grupos mais influentes do cristia-
de evangelhos apócrifos, literatura que tem nismo primitivo foi o dos gnósticos, que ado-
ajudado a elucidar vários mistérios sobre tavam uma vida ascética, negavam a matéria
as origens do cristianismo. e acreditavam que o conhecimento era o
caminho para a salvação. Algumas facções
TESOURO DOS PRIMEIROS CRISTÃOS também defendiam que Deus possuía um
A maioria dos escritos de Nag Hammadi foi princípio masculino e outro feminino. De
produzida entre os séculos 1 e 3 e seus auto- fato, as mulheres desses grupos atuavam
res faziam parte das primeiras comunidades como mestras, líderes e profetisas - uma idéia
cristãs. Nesse acervo, é possível conhecer ainda hoje revolucionária para a Igreja.
livros que ficaram de fora do Novo Testamen- E havia também o chamado cristianismo
to, como evangelhos de Tomé e Tiago. O in- apostólico, baseado nas narrativas dos
teressante desses relatos é que destoam bas-
tante do que aparece na Bíblia. Neles, Jesus
tem um lado humano, Madalena é uma gran-
de líder, Deus é um princípio masculino e
feminino... Diferenças polêmicas que deixam
claro por que os apócrifos sempre foram uma
pedra no sapato da Igreja. "Eles representa-
vam outro cristianismo, não oficial, margi-
nalizado", explica o padre e teólogo Luigi
Schiavo, professor do Departamento de Ci-
ências da Religião da Universidade Católica
de Goiás. "Eles têm grande valor histórico e
religioso porque mostram novas interpreta-
ções sobre a figura de Jesus na origem do
cristianismo", enfatiza o especialista.
Trechos dos evangelhos de
Naquela época não havia um cânone - Nag Hammadi, que revelaram
nome dado ao conjunto oficial de livros que mistérios da origem do cristianismo.
primeiros discípulos de Jesus. Eles contavamséculo 2, quando alguns bispos decidiram
que o messias havia morrido na cruz para organizar as Escrituras. "Eles precisavam
salvar a humanidade e aos seguidores cabia adotar um cânon definitivo para que a reli-
a missão de espalhar sua mensagem pelo gião pudesse se expandir", explica o frei
mundo. Essa tradição começou a ser Jacir. Mas para isso não adiantava tra-
registrada por volta dos anos 30 e 40 duzir os textos para várias línguas e
do século 1, em livros como os evan- divulgá-los entre vários povos. Era pre-
gelhos de Marcos, Mateus, Lucas e ciso aparar as diferenças e chegar a
João. Esses textos eram lidos por muitos uma espécie de "versão oficial". Na hora
grupos, que os consideravam os relatos mais de selecionar os livros, o espírito democrá-
antigos e precisos da vida de Cristo. tico que permitiu a existência das diferentes
A babel de cristianismos resistiu até o versões deu lugar às disputas de poder.

Os traços femininos
do apóstolo sem barba
seriam de Maria Madalena?

MAGDALA, A FAVORITA DE JESUS .


Apócrifos revelam que Maria despertava o ciúme dos apóstolos e que Jesus a beijava na boca.

Maria Madalena - ou Míriam de Magdala, como no evangelho apócrifo que leva seu nome,
está no hebraico - aparece nos apócrifos como também do século 2. Numa passagem, Pedro
uma mulher sábia e respeitada por Jesus. Ela questiona: "Devemos mudar nossos hábitos e
acompanha o mestre em suas pregações e o ajuda escutarmos todos essa mulher?" 0 texto revela
a liderar os primeiros cristãos. 0 Evangelho de que, apesar dos preconceitos, ela consegue se
Filipe, do século 2, conta que ela era a seguidora impor. É uma imagem distante da mulher impura
preferida de Cristo, o que despertou o ciúme e pecadora que a tradição da Igreja enfatizou
dos outros apóstolos. "Por que a amas mais que durante séculos. Em 1969, o Vaticano reconheceu
a todos nós?", perguntavam eles ao Senhor. Uma que houve uma confusão na interpretação
passagem que ainda, enfurece muitos cristãos diz das Escrituras (ela teria sido confundida com a
que "o Senhor amava Maria mais do que a todos pecadora que unge os pés de Jesus no Evangelho
os discípulos e a beijava freqüentemente na boca". de Lucas) e retirou a denominação de prostituta
A liderança de Madalena também é mencionada que durante séculos pesou sobre Maria Madalena.
POR UMA VERSÃO OFICIAL
As igrejas maiores e mais influentes tenta-
ram impor seus textos, o que as menores
não aceitavam. Havia debates e acusações
mútuas de heresia entre elas. A peleja con-
tinuou até o século 4, quando tudo indica-
va que o cristianismo apostólico iria preva-
lecer sobre os outros cristianismos. Seus 4
evangelhos já eram populares naquela épo-
ca e, desde o século 2, eram elogiados pelos
pensadores da Igreja. Mas faltava tornar
esses livros oficiais.

As igrejas maiores
tentavam impor
seus textos, o que as
Segundo os apócrifos
menores não aceitavam. Judas representa
o ideal do discípulo.
Foi quando o imperador de Roma, Cons-
tantino, entrou em cena e interveio no im- ^ A REDENÇÃO DE JUDAS
passe. Na época, com o império em crise, Judas teria entregue Jesus a seu pedido
ele precisava de uma bandeira para justifi-
car a expansão e convencer outros povos a A história do discípulo que traiu seu mestre
aceitarem seu domínio. E a solução estava por 30 moedas de prata é uma das mais
numa aliança com os cristãos, que por sua conhecidas do cristianismo. Segundo o
vez desejavam espalhar a mensagem de Evangelho de Judas - um manuscrito copta
Jesus mundo afora. "Constantino percebeu (língua falada pelos antigos egípcios) escrito
que era uma grande oportunidade e decidiu entre os séculos 3 e 4 - o apóstolo pode ter
fazer do cristianismo a religião oficial do sido condenado injustamente pela história.
império", explica o frei Jacir. No texto, descoberto nos anos 70, no Egito,
Os cristãos deixaram de ser perseguidos o personagem mais odiado do cristianismo
em 313 e apenas 12 anos depois seus bispos aparece como o discípulo mais próximo
foram convocados para o Concilio de Nicéia, e querido de Jesus. Ele denuncia o mestre
primeiro passo dado para a criação do Novo às autoridades romanas a pedido do próprio
Testamento. Na reunião, os evangelhos de Messias, num plano que seria essencial em
Marcos, Lucas, Mateus e João foram escolhi- sua missão de salvar a humanidade. "Nesse
contexto, a figura de Judas representa o ideal
dos para narrar a biografia de Jesus por uma
do discípulo que, recebida a iluminação,
razão simples: expressavam a visão domi-
cumpre a vontade de Deus, mesmo que ela
nante na Igreja. E todos os demais foram
tenha a ver com a entrega de Jesus à morte",
considerados apócrifos, falsos e perigosos
diz o teólogo Luigi Schiavo. Na versão do Novo
para o estabelecimento do novo livro.
Testamento, Judas enforca-se, arrependido.
Começou, então, a perseguição a todos No texto apócrifo é diferente. Ao compreender
que ousavam discordar da recém-formulada a importância de sua missão, Judas teria
Escritura Sagrada. Os gnósticos, docetas, se retirado para meditar no deserto.
ebionitas e ofitas foram acusados de heresia.
Os que insistiam em desrespeitar o cânon
eram punidos com a excomunhão ou a mor-
te. Dezenas de livros - ou centenas, já que
ninguém sabe ao certo quantos eram - fo-
ram destruídos ou queimados. Foi nessa
época que alguém decidiu esconder 13 vo-
lumes numa gruta, na aldeia de Nag Ham¬
madi, no alto Egito - talvez um cristão per-
seguido ou um monge do Mosteiro de São
Pacômio, que ficava ali perto. Eram evan-
gelhos, cartas e atos dos apóstolos escritos

Os apócrifos são
documentos essenciais
Jovem milagreiro:
Jesus criava seres de
barro e lhes dava vida.
para compreender a
história do cristianismo
^ A I N F Â N C I A DE CRISTO em copta, língua falada pelos cristãos do
Evangelhos mostram lado humano e divina Egito. O tesouro só foi descoberto 16 séculos
depois, por aquele pastor que apresentamos
A literatura apócrifa conta várias histórias lá no começo, e hoje está no Museu Copta
sobre a gravidez de Maria e os primeiros do Cairo, à disposição do público.
anos de vida de Jesus. É uma tentativa de
preencher a lacuna da Bíblia, que faz uma O LEGADO
única referência à infância do Messias, Além desses, muitos outros apócrifos foram
quando ele visita o Templo de Jerusalém, excluídos da Bíblia. É o caso dos Manuscri-
aos 12 anos. 0 Evangelho do Pseudo-Mateus, tos do Mar Morto, descobertos em 1947, que
do século 3, conta que o menino fazia milagres apresentam cópias de livros do Antigo Tes-
ainda na barriga da mãe e que, desde criança,
tamento, deixadas pela seita judaica dos
usava seus poderes para curar doentes e
essênios. E do Evangelho Segundo Judas,
ressuscitar os mortos. Mas, quando irritado,
descoberto na década de 1970, que conta
ele se comportava como uma criança mimada
uma história diferente sobre o discípulo que
e vingativa. Certo dia, um menino o derrubou
traiu Jesus. No total, são mais de 100 livros
no chão. Jesus então ordenou: "Caia morto!",
de valor inquestionável para os estudiosos
e o amigo morreu. Depois, arrependido,
o fez ressuscitar. Um de seus passatempos
das Escrituras. "São documentos essenciais
preferidos seria criar seres de barro e lhes para compreender a história do cristianismo
dar vida com um sopro. Essa faceta de Jesus no 1o e 2 o séculos", afirma o teólogo Paulo
pode assustar quem lê os apócrifos. Mas, Nogueira, professor da Universidade Meto-
para teólogo Jacir de Freitas, ela deve ser dista de São Paulo.
compreendida no contexto em que o livro foi Os apócrifos revelam que o Novo Testa-
escrito. "A intenção é mostrar que Jesus tem mento não nasceu pronto e acabado e que
um lado humano e outro divino, o que é um os textos que servem de base para a atual
reflexo de uma época em que a Igreja discutia doutrina cristã passaram por um complica-
qual era a natureza do filho de Deus." do processo de "edição". Também deixam
claro que, ao contrário do que se imaginava,
Pintura de Caravaggio
mostra Tome, o apóstolo
que precisa ver para crer.

^ O QUINTO EVANGELHO
Historiadores acreditam que Evangelho de Tomé seja inspiração de 3 dos canônicos.

0 Evangelho Segundo Tomé, do apóstolo que dos anos 60 e 70 do século 1, mesma época
prensava "ver para crer", é o mais polêmico dos evangelhos que entraram para o cânone
do acervo de Nag Hammadi. 0 manuscrito contém sob a justificativa de serem os relatos mais
114 parábolas e frases atribuídas a Jesus. antigos do messias. Os pesquisadores chamam
As citações são semelhantes às da Bíblia, mas esse apócrifo de Quinto Evangelho e suspeitam
refletem o pensamento gnóstico. Nele, Jesus que ele seja o famoso Fonte Q, escrito nunca
aparece como um mestre mais místico, que achado que teria sido a base de 3 dos 4
orienta os discípulos a reconhecer sua identidade evangelhos canônicos. Se isso for verdade,
divina e a buscar Deus em qualquer lugar. Ele os textos bíblicos são adaptações desse apócrifo,
foi excluído, apesar de ter sido escrito por volta dono dos verdadeiros ensinamentos de Cristo.

o cristianismo praticado hoje não era o úni- É verdade que esse textos, muitas vezes
co nos primeiros séculos. Existiam vários coloridos e aberrantes, costumam chocar o
cristianismos, cada um com sua própria leitor de primeira viagem. "Mas alguns tam-
interpretação da vida de Jesus e seus en- bém podem complementar a nossa fé",
sinamentos. Quem lê os escritos deixa- adianta Jacir. Uma prova de que eles
dos por esses grupos pode conhecer não são apenas uma "ameaça" aos câ-
outros pontos de vista sobre uma his- nones da Igreja Católica estão na reli-
tória contada há mais de 2 mil anos. giosidade popular e na arte sacra, que
No entanto, é necessário afrouxar o buscaram inspiração nas histórias apócri-
julgamento antes de mergulhar na leitura. fas. A famosa história dos 3 reis magos que
"Devemos compreender esses livros de mo- levaram presentes ao menino Jesus e tudo
do ecumênico e tentando dialogar com os que inspira os presépios natalinos, por
cristianismos de origem", sugere o frei Jacir. exemplo, vêm dos evangelhos apócrifos. ©
O outro Jesus
A Bíblia não diz por onde andou o filho de Maria dos 13 aos
29 anos de idade. Lendas e histórias cultivadas na oralidade
e transcritas para livros antigos têm a resposta.
Texto Michelle Veronese • Ilustração Sattu

U
m homem sábio anda pelo mun- critos para anunciar uma mensagem religio-
do curando doentes e fazendo sa", justifica o teólogo Pedro Lima Vasconce-
milagres enquanto prega uma los, da PUC de São Paulo. Essa lacuna, no
mensagem de paz e amor ao entanto, deu margem a várias especulações,
próximo. Parece familiar? Bom, você não é como a de que Jesus passou 17 anos peregri-
o único que se lembrou de Jesus. Mas essa nando pelo mundo. No roteiro, teria visitado
também é a história de Yus Asaf, curandei¬ a Índia, o Tibete, a China, a Pérsia (atual Irã)
ro misterioso que visitou a Caxemira no e países vizinhos. Alguns defendem que ele
século 1. E também a lenda de Issa, andari- chegou até mesmo ao Japão e à Inglaterra.
lho que estudou anos com sábios na Índia e Em cada lugar, o Messias teria convivido com
no Tibete em busca da iluminação. Ou de reis, sábios e homens santos de antigas tra-
Apolônio e de um certo budista. Todos são dições, sempre em busca dos fundamentos e
personagens que viveram no Oriente Médio lições de outras religiões e povos.
na época de Cristo e têm biografias repletas O pesquisador russo Nicholas Notovich,
de feitos espetaculares e mensagens de sa- autor do livro A Vida Desconhecida de Jesus,
bedoria. São tantas semelhanças que foi um dos principais defensores dessa
há quem acredite tratar-se todos da teoria. No século 19, ele apresentou
mesma pessoa. O que responderia um manuscritos antigos que narravam a
dos grandes mistérios do cristianis- vida de Issa, homem santo que, "ao
mo, a chamada vida secreta de Jesus. completar 14 anos, deixou a casa dos
Sim, há algo oculto na biografia do pais, em Jerusalém, e partiu com um
Messias. Ninguém sabe onde ele esteve e o grupo de mercadores". Notovich dizia ter
que fez dos 13 aos 29 anos. O Novo Testa- encontrado os documentos num mosteiro
mento só menciona seu nascimento e uma tibetano e defendia que aquele homem era
aparição aos 12 anos, quando ele discute Jesus. Na opinião dos estudiosos da Bíblia
teologia com sábios do Templo de Jerusalém. ,esse tipo de associação não faz sentido e
"Depois disso, há um salto no tempo, e Cris- deve ser encarada com muita cautela. "As
to reaparece já com 30 anos sendo batizado religiões da Índia diferem muito das que
por João, antes de começar sua pregação", surgiram no Oriente Médio. Logo, não tem
conta o teólogo Joel Antônio Ferreira, pro- fundamento relacionar Jesus a essas len-
fessor da Universidade Católica de Goiás. das", diz Vasconcelos. De fato, não existem
A ausência de dados não surpreende os provas concretas da vida de Jesus, muito
estudiosos da Bíblia. "Os evangelhos não têm menos de todas essas histórias. Mas tam-
uma preocupação histórica, pois foram es- bém não existem provas em contrário. ©
Os caminhos da vida
de Jesus são tão
misteriosos quanto
sua verdadeira face.

jmà NO RASTRO DO MESSIAS


Conheça alguns dos homens cuja identidade se confunde com a de Jesus

YUS ASAF, O CURANDEIRO UM BOTISATVA BUDISTA


No século 1, o andarilho Yus Asaf ("líder dos Uma lenda indiana diz que, para salvar Jesus
curados", em persa), percorreu o Oriente Médio, da perseguição do rei Herodes, seus pais foram
realizando milagres e curas semelhantes aos de para o Egito. No caminho, ele teria convivido
Jesus. Segundo essa versão, ele não teria morrido com budistas em Alexandria. 0 contato de Jesus
na cruz: aos 33 anos, teria seguido para o norte da com o budismo também está em A Vida de São
Índia, onde viveria até os 120 anos. Seu suposto Issa. Escrito no século 2, o texto fala de um
túmulo, em Srinagar, atrai peregrinos até hoje. profeta de Jerusalém que estudou num mosteiro
Origem: Caxemira. do Nepal. Até hoje, budistas consideram Jesus
Fontes: Tahrik-i-Kashmir ("História da Caxemira") um botisatva, "homem iluminado", em sânscrito.
e a escritura hindu Bhavishya Mahapurana. Origem: Egito, Índia e Tibete.
Quem acredita: seguidores da seita ahmadi, uma Fontes: A Vida de São Issa.
corrente do islã, e alguns adeptos do hinduísmo. Quem acredita: alguns budistas.

APOLÔNIO, DA CAPADÓCIA ISSA, 0 PROFETA


Lendas e livros antigos contam que Apolônio O Alcorão conta que o filho de Maria nasceu num
foi concebido pelo Espírito Santo, nasceu de dia de sol, na sombra de uma tamareira. Nesse
uma virgem e partiu jovem para conhecer o livro, Jesus é conhecido como Issa, profeta da
mundo. Controlava as leis da natureza, curava linhagem iniciada por Abraão e concluída por
doentes e conseguia até evitar guerras. Apesar Maomé. Nessa versão, o suposto Jesus também não
das coincidências, seu nome era Apolônio, da - morre na cruz. "Não sendo, na realidade, certo que
Capadócía (atual Turquia). Morreu em Éfeso, o mataram nem o crucificaram, mas o confundiram
aos 100 anos. Só faltou ser na cruz. com outro", diz o versículo 157, da 4 a surata.
Origem: Capadócia (atual Turquia). Origem: Oriente Médio.
Fontes: A Vida de Apolônio, livro do século 3. Fonte: Alcorão.
Quem acreditava: pagãos do Império Romano. Quem acredita: muçulmanos.
Exorcista do islã
em ação para
salvar o possesso.

Versos anti-satânicos
Nem só de preces vive o Alcorão, livro sagrado do islã.
Os seus versículos já foram usados para exorcizar demônios
e outros entes malignos. Conheça a história dos exorcistas de Alá.
Texto Álvaro Oppermann • Ilustração Diego Sanches
C W " ^ Por Alá, saia deste corpo e não Tudo o mais sempre mereceu reserva, ou
|-w_^/retornea ele jamais!" até desconfiança - e nisso, claro, se incluem
A frase foi dita em tom imperios. os casos de possuídos. "Não existe uma
. Era noite. No aposento de entra- posição oficial sobre o exorcismo na lei ca¬
da de uma casa de chão batido e paredes de nônica islâmica", diz Bilal Philips. O estra-
barro cozido, um sujeito se debatia, gemia e nho é que o primeiro exorcista da história
gritava. Suas feições estavam crispadas. À muçulmana pode ter sido justamente Mao-
sua volta, muçulmanos rezavam. Os mais mé, como demonstra o historiador Abdel¬
velhos, de olhos semicerrados. Os mais jo- mumin Aya em El Secreto de Muhammad: La
vens, temerosos, não conseguiam parar de Experiencia ChamanicadelProfetadelIslam
fitar o corpo do homem ao chão, com olhos ("O Segredo de Maomé: A Experiência Xa¬
arregalados: era um possesso. Os presentes mânica do Profeta do Islã"), livro de 2007.
entoavam, como numa ladainha monocórdia, Na biografia do profeta, as curas de posses-
os versículos da Surata al-Baqara - "o capí- são podem ser contadas às dezenas, inclu-
tulo da Vaca" - o 2o e mais longo capítu- sive uma que envolve o próprio Maomé,
lo do Alcorão, o livro sagrado do islã. enfeitiçado por um inimigo. Aya tam-
Ao centro, um homem de barba bem bém ressalta que o primeiro manual de
afeitada empunhava o livro sagrado. exorcismo do islã foi... o Alcorão.
Seu nome era Mohamed Taher Abdul Quando foi revelado - segundo a
Muhsin. Sua profissão, exorcista. crença islâmica, por meio de aparições do
"Em nome de Alá, o clemente e misericor- anjo Gabriel a Maomé, no século 7 - o Al-
dioso, saia deste corpo!", gritou de novo. Ao corão logo chamou a atenção dos crentes
ouvir novamente o nome de Alá, o possesso por um detalhe. Parecia haver, por trás do
estremeceu. Fez-se silêncio, e o homem no seu sentido literal, um significado cifrado
chão abriu os olhos. Com voz gutural, disse: e oculto. Místicos muçulmanos tomaram
"Por Alá, eu prometo sair deste homem e esse suposto poder como a presença direta
nunca mais voltar". De súbito, as feições do de Deus no livro. Por isso, os versículos da
possuído serenaram e ele recuperou a luci-
dez. Estava curado da possessão, obra de um Os mais jovens não
espírito maligno, conhecido na tradição is-
lâmica como jinn. "Allahu Akbar!", gritaram conseguiam parar de
em torno - uma exclamação de louvor a
Deus. Abdul Muhsin beijou o Alcorão, depo-
fitar o corpo do homem
sitou-o sobre uma almofada e ajudou o ho- ao chão: era um possesso.
mem recém-curado a se levantar.
Essa cena ocorreu num subúrbio da cida- obra teriam poder de curar enfermidades
de do Cairo, no Egito, em 1988. Ela consta ou expulsar demônios. E mais. O profeta os
do livro The Exorcist Tradition in Islaam ("A recomendava para os mais variados proble-
Tradição do Exorcismo no Islã", de 1997), mas, do mau-olhado à picada de escorpião.
do antropólogo jamaicano - convertido mu- Amuletos de proteção eram confeccionados
çulmano - Abu Amina Bilal Philips. O exor- com a inscrição de versículos do livro sa-
cismo é um dos capítulos menos conhecidos, grado em pedaços de tecido. "O efeito do
e mais polêmicos, da religião muçulmana. mau-olhado é real", dizia Maomé.
Entre islâmicos, a prática sempre foi vista O leitor de hoje pode sorrir diante desses
com reticência, pois para o crente dessa relatos. No entanto, essa atitude é pra lá de
religião o autêntico milagre do islã é o Alco- compreensível quando contextualizamos o
rão, com sua beleza poética e profundidade. surgimento do Alcorão e do islã. Bruxos e
superstições faziam
parte do cotidiano de Meca
nos tempos de Maomé. Para con-
quistar adeptos, a nova religião teve de
dar uma resposta às questões de ordem
sobrenatural - como os enfeitiçamentos - e
Shaitan: o demo do f traduzir as velhas crenças pagãs na forma
islã tambémnãose
curvou perante Adão islâmica. Para essa tarefa, Maomé se valeu
do Alcorão, chamado por ele de "refúgio dos
crentes". É verdade que o Alcorão não dedi-
cou nenhum capítulo especialmente ao exor¬
cismo, tratando-o de modo oblíquo. Mas os
O CAPETA MUÇULMANOS muçulmanos aprenderam os trechos alco¬
O Alcorão conta como nasce um demônio
rânicos certos para cada tipo de exorcismo
com o profeta, que os tinha aprendido por
Chamá-lo de "príncipe das trevas", "maldito"
e "tinhoso", entre outros insultos, não é
inspiração do arcanjo Gabriel, ou diretamen-
exclusividade bíblica. Esses e outros adjetivos te de Deus, segundo a tradição islâmica.
são usados no Alcorão para definir Satã, ou
Shaitan, no idioma árabe, palavra que significa DEMÔNIOS E JINNS: OS POSSESSORES
"o adversário". Adversário da humanidade, As possessões, dizia o profeta, podiam ser
obviamente. Assim como no cristianismo, obra de duas classes de espíritos: demônios
a figura do Diabo está presente no islã. ou jinns. A descrição que o Alcorão dava pa-
Tão presente, aliás, que diversos místicos, ra os demônios era a mesma da Bíblia: eram
como Ibn Attallah e Shibli (ambos do século anjos, criaturas feitas de luz, que teriam
10) garantiram que "quem não acredita no decaído pela soberba, quando se recusaram
Diabo não acredita em Deus". A história de a se prostrar diante de Adão, o primeiro ho-
Satanás é descrita no Alcorão e segue de perto mem. O chefe dos demônios era Satanás, ou
a narrativa do Livro do Gênese, na Bíblia. Shaitan. Já os jinns (palavra que no Ociden-
Quando Deus criou Adão, feito de argila, te foi traduzida por "gênio", como na lenda
ordenou que os anjos e gênios, feitos de luz de Ali Babá) seriam, segundo a cosmologia
e de fogo, respectivamente, se inclinassem islâmica, habitantes de um mundo interme-
diante dele. Diversos se recusaram a fazê-lo diário, entre o material dos humanos e o
e foram amaldiçoados por Alá. Um desses seria imaterial dos anjos e demônios. Alguns gê-
Iblis, que é chamado de Lúcifer, na Bíblia.
nios seriam bonzinhos; outros, malvados.
Chefe de uma legião de seres imateriais, ele
Mas ambos teriam acesso, sem escalas, ao
afastou-se de Deus amaldiçoando Adão, como
mundo humano, nos ajudando ou atazanan-
consta dos capítulos 4 e 34 do Alcorão: "Juro
do, de acordo com a sua predisposição. Eles
que me apoderarei de uma parte dos teus
também conseguiriam tomar formas corpó¬
servos [os homens]. E os desviarei com falsas
reas, ou controlar objetos inanimados, cau-
promessas". Como bom vilão, Iblis assumiu
outra identidade. Nascia o Shaitan. E com
sando, por exemplo, incêndios ao derrubar
esse nome passou à história. À nossa história. lâmpadas a óleo. Segundo o exorcista Abdul
Muhsin, no depoimento ao autor Bilal Philips,
as mulheres seriam mais afetadas do que os vodu haitiano. Um caso notório, diz o autor
homens por possessão de jinns. Os gênios - de El Secreto de Muhammad, foi o do próprio
nada bobos - apreciariam a sua beleza e profeta, enfeitiçado por um mago da cidade
manteriam, inclusive, relações sexuais com de Medina. A bruxaria foi feita a partir de
elas. Nos casos de possessão demoníaca, o cachos de cabelo de Maomé, amarrados em
profeta recomendava a leitura do versículo nós e jogados num poço abandonado. Com
82 do capítulo 17 do livro sagrado, tiro e o feitiço, o profeta passou a sofrer lapsos
queda para afugentar demônios, relata Phi- de memória. No entanto, o anjo Gabriel
lips. Porém, em casos de demônios e gênios revelou o sortilégio ao profeta e aproveitou
renitentes, que se recusam a deixar o corpo, para lhe passar duas suratas curtas -
o espancamento do possesso era recomen-
dado, segundo Ibn Qayim al-Jawziya. Ele
conta que seu mestre, Ibn Taymiya, partiu
Várias ações humanas
para a agressão física frente ao descaso de facilitam o trabalho
um gênio aos versos do Alcorão. Com uma
vara, bateu no pescoço do possesso até seu
dos espíritos malévolos,
braço ficar cansado. Por fim, o gênio, moído como andar nu pela casa.
de tanta pancada, concordou em ir embora.
Quando o possuído voltou a si, ficou espan- Al-Falaq ("A Alvorada") e An-Nass ("Os Huma-
tado com os vergões: não sentira os golpes. nos") - que encerram o Alcorão. Maomé
Em árabe, várias palavras são usadas pediu ao seu genro, Ali, que fosse até o
como sinônimo de "exorcismo". A principal poço e encontrasse os cachos. Depois, pe-
delas é ruqaa. Literalmente, "a cura de um diu-lhe que desatasse os nós, um a um, com
feitiço". Segundo Abdul Muhsin, os sinais a concomitante recitação das duas suratas.
de possessão mais comuns são o desconfor- Isso libertou o profeta do encantamento.
to, o hábito do possesso de se levantar e Com o tempo, os capítulos viraram uma das
sentar repetidas vezes e falar de maneira principais armas dos exorcistas.
incongruente ou incompreensível. Várias Hoje em dia o exorcismo é visto com ceti-
ações humanas facilitam o trabalho dos cismo nos meios islâmicos, principalmente
espíritos malévolos, como andar nu pe- no ambiente cosmopolita das grandes
la casa, não fazer a oração matinal, metrópoles, como Damasco ou Argel.
entrar no toalete - local predileto dos "Deve ser reconhecido que em muitos
jinns mal-intencionados - sem pedir casos a origem desses problemas é pu-
proteção a Deus, jogar água quente ou ramente biológica", diz o psiquiatra Ali
urinar inadvertidamente num gênio (o que Muhammad Mutaawi, da Universidade do
o irrita profundamente) e freqüentar locais Cairo. Aquilo que já foi categorizado de pos-
de seu agrado, como o cume das montanhas sessão é hoje diagnosticado como doenças
e aterros de lixo. Não se deve bobear com mentais pela ciência moderna, como neuro-
eles. Para combater gênios e demônios, o se, esquizofrenia ou outras Síndromes psíqui-
exorcista deve preencher 3 requisitos: 1) cas. Porém, como mostra o autor Bilal Philips,
Utilizar apenas palavras do próprio Alcorão. a mística do Alcorão está longe de morrer,
2) Recitá-las de forma inteligível em árabe. em pleno século 21. Enquanto o mundo ain-
3) Ter ciência de que é Deus quem expulsa da tiver tendas dos milagres, se ouvirá, no
os entes malignos, e não o exorcista. meio da noite, recitais alcorânicos como o
O caso de possessão mais comum no islã dos companheiros do exorcista Abdul Muh-
é o de gênios que agem a mando de um sin, engalfinhados na luta contra os seres do
feiticeiro. É o equivalente muçulmano do além. Acredite-se neles ou não. ©
O livro não escrito
Nenhuma religião sem livros oficiais se difundiu tanto como
a dos povos africanos. Veja como a tradição oral guardou
e multiplicou a crença na mitologia dos orixás.
Texto Débora Sanches

chegada de uma nova mãe-de- dessa cultura permaneceram ligados à reali-

A santo é anunciada com festa no


terreiro de candomblé. Em meio
a batuques e cânticos oferecidos
aos orixás, a devota é presenteada com um
jogo de búzios e um conjunto de elementos
dade dos negros", diz Fernandez Portugal
Filho, professor de antropologia das religiões
Afro-brasileiras da Universidade de Havana,
em Cuba. Nas senzalas, as histórias de lutas,
perdas e glórias dos orixás eram justamente
que simbolizam os fundamentos da crença. o que dava identidade aos negros violentados
Depois de passar anos ouvindo ensinamentos pelo exílio e maus-tratos. Em cada lugar, seus
dos mais velhos, entoando cânticos e prepa- mitos dialogaram com culturas locais para
rando oferendas aos orixás, entre outros formar novas religiões. Hoje, cerca de 100
ritos, ela está pronta para passar adian- milhões de pessoas compartilham essas
te o que aprendeu. Mãe-de-santo, pai- crenças. Uma expansão única entre as
de-santo, babalorixá, babalaô, ngan¬ religiões que nunca traduziram sua fé
ga, mameta-de-inquice, alagbá, doné. em palavras escritas.
Eles têm diferentes nomes, de acordo
com a religião a que pertencem. Todos têm CAPÍTULOS CANTADOS
em comum a missão de transmitir, oralmen- Talvez isso aconteça porque, apesar de a
te, de geração a geração, as crenças nascidas mitologia dos orixás ser transmitida oral-
no continente africano e cultivadas, a partir mente, ela é uma espécie de livro imaginá-
do século 16, nas Américas. A escravidão rio. Segundo a história, Exu, o orixá men-
espalhou os povos do continente pelo Novo sageiro, teria percorrido as terras africanas
Mundo. E, para onde eles foram, levaram na para recolher todas as narrativas de vida
memória seu livro não escrito. possíveis e entregá-las a Ifá, o deus do orá-
"Para os escravos, não se tratava apenas culo, que as organizou em 16 capítulos.
de uma religião mas de um jeito de interpre- Cada um é subdividido em 16 partes, tota-
tar o mundo. Mesmo com a diáspora, extratos lizando 256 lendas de orixás, em forma de
Devota do candomblé se torna
mãe-de-santo para transmitir
os ensinamentos da religião
-áá A TRAVESSIA DOS ORIXÁS
O tráfico de escravos entre os séculos 16 e 19 foi determinante para a difusão das religiões
de origem africana. Para os exilados, elas eram seu contato com o divino e a terra natal.

CARIBENHAS
: Nas colônias espanholas de Cuba
I e no Haiti o sincretismo originou
a santeria e o vodun ("espírito",
ORIGEM
I no idioma fon). Na crença haitiana,
Povos africanos de mais de 1000
I bonecos são mensageiros entre
etnias com relações de aliança
j homens e deuses. Mas os alfinetes
e guerra fundem divindades
i são invenção de filmes americanos.
de diferentes regiões. Desses
mesmos lugares sairiam os
escravos levados para a América.

Benin
CUBA-HAITI Nigéria

ÁFRICA

R. D. do
Congo

CANDOMBLÉ
0 sincretismo do candomblé nasce Angola
na Bahia graças à proibição dos
cultos africanos: forçados ao
catolicismo, os escravos disfarçavam
o culto aos orixás com imagens de
santos. Em 1960, o fim da proibição
difunde o culto no Brasil. BRASIL

UMBANDA
No Rio de Janeiro, o contato com DIÁSPORA
o espiritismo formou a umbanda, À partir do século 19, navios
na década de 1920. Na nova religião, negreiros fizeram cerca
guias espirituais incorporados de 35 mil viagens à América.
no terreiro, como o preto-velho A bordo, seguiram para
e o caboclo, fazem a comunicação o continente 12,5 milhões
entre os devotos e os orixás. de africanos, principalmente
dos povos iorubá e banto.
poemas cantados. Cada conjunto de poemas, permitem fazer as previsões. Os jejes jogam
os versículos de Ifá (ou itans de Ifá), é co- as peças - que, além dos búzios, podem ser
nhecido como odu e descreve a vida e as nozes de dendê - para a frente. Os nagôs,
atribuições de orixás e seus filhos. Tais para trás. Os odus, os versículos do livro, são
lendas e deuses são compartilhados por relacionados à vida de quem faz a consulta
diferentes povos africanos, inclusive inimi- se revelam na posição em que eles caem. "No
gos. O reino Abomei, da nação jeje, que jogo de búzios, a combinação de 3 odus
comercializou homens e mulheres iorubás sintetiza a vida da pessoa, dando ênfase ao
com portugueses mercadores de escravos, passado, presente ou futuro", diz Portugal
reverenciavam os inquices, deuses seme- Filho. Aqui, os pais-de-santo preservaram
lhantes, com nomes diferentes. "As divin- apenas o nome dos odus, os orixás protago-
dades africanas representam manifestações nistas de cada história, as previsões e os ebós
da natureza, com nomes diferentes de acor- (ou oferendas). "Os pais e mães-de-santo
do com a região. O iorubá Xangô pode ser brasileiros simplificaram a leitura dos odus,
o vodum Badé ou o inquice Zaze. E Oyá tornando rápida e simples a formação
pode ser o vodum Sobô ou o inquice dos sacerdotes", diz Reginaldo Prandi,
Bamburucema", diz o sociólogo Ar- autor de Mitologia dos Orixás. Na Áfri-
mando Vallado, da USP. ca e em Cuba os babalaôs - conhecidos
Em praticamente todos os lugares como pais do segredo - ainda memo-
para onde vieram escravos negros, a rizam meticulosamente cada história.
mistura desses ritos e divindades mistura- Os ritos de possessão são o outro elemen-
ram-se com características regionais e to- to ritual transmitido com o "livro", com
maram diversas formas. A partir do século algumas mudanças em cada rito. No can-
19, surgiram crenças como o xangô, em domblé, os orixás "pegam a cabeça" de um
Pernambuco, o tambor-de-mina, no Mara- filho-de-santo - como se diz no terreiro
nhão, e o batuque, no Rio Grande do Sul. quando eles incorporam em um devoto com
No início do século 20, o candomblé se en- o dom da mediunidade -, dançam ao som
controu com o espiritismo francês, no Rio
de Janeiro, e fez nascer a umbanda. Em
Cuba, além da santeria, onde as vestimentas
Cada conjunto
dos orixás lembram trajes ciganos e de co- de poemas descreve
lonizadores espanhóis, há o palo monte e o
palo mayombe, formas de culto aos egun¬ a vida e as atribuições
guns (espíritos ancestrais) de origem banto.
As crenças se desdobraram no Brasil, em
de orixás e seus filhos.
Cuba, no Haiti e em Trinidad e Tobago, mas de batuques e cânticos, com movimentos
o transe de possessão das divindades e a fé que sinalizam suas qualidades. Iansã, por
no jogo da adivinhação permaneceram co- exemplo, é a deusa dos ventos e das tempes-
mo ponto comum dos ritos em cada local. tades e tem poder sobre o mundo dos vivos
Segundo a mitologia, Ifá seria dono de e dos mortos. Quando incorporada, empur-
todos os porquês dos acontecimentos na ra o ar com as mãos como quem quer espan-
vida do ser humano e saberia como identi- tar os eguns ou controlar os ventos. Nessa
ficar e solucionar os problemas de cada um vertente, os orixás não conversam com seus
deles. E contam os africanos que Ifá teria devotos, ao contrário dos voduns do tambor-
deixado o dom do oráculo a todos os povos de-mina, que se expressam verbalmente e
por onde passou, mudando apenas a manei- comem do banquete servido no terreiro. Na
ra de cada nação manipular os amuletos que umbanda, os orixás nem chegam à Terra.
Quem toma o corpo dos filhos-de-santo são odus em suas libretas (cadernetas), anota-
guias espirituais, como os ancestrais pretos- ções pessoais com mitos, interpretações e
velhos, caboclos e crianças, que visitam os prescrições de sacrifícios. Os primeiros es-
humanos para levar seus pedidos e agrade- critos desse tipo também são do século 19,
cimentos aos deuses e para trazer do mundo e apareceram em pesquisas do padre Baudin,
divino as bênçãos e os alertas. de 1884, e do coronel Ellis, de 1894, missio-
nários europeus que levaram a escrita à
A FALA QUE MUDA E RENOVA África Ocidental, dando início à esco¬
Mesmo com o desenvolvimento da larização dos negros e à formação da
escrita nas civilizações africanas e o primeira gramática iorubá, com listas
contato com a língua de outras cultu- de verbos e substantivos. O mais anti-
ras, as religiões africanas continuaram go registro brasileiro com divinizações
sem livro. Até hoje só existem inúmeros li- de antigos babalaôs foi o do baiano Agenor
vros etnográficos - surgidos a partir do sé- Miranda Rocha, o mestre Agenor, datado de
culo 19 - e registros nas cadernetas dos sa- 1928. O curioso é que, ao mesmo tempo que
cerdotes - que acabam servindo como guardam informações para a posteridade,
consulta para os seguidores. Em Cuba, os quando essas coisas vão para o papel, muitas
babalaôs cultivaram o hábito de registrar os outras se perdem. "Toda a literatura sagrada

já O PANTEÃO
A vida e os poderes dos orixás, deuses da religião iorubá, são contados nos

OXALÁ EXU OGUM XANGÔ


Chamado de Grande Orixá, Mensageiro entre Deus da guerra e dos Governador da justiça,
é o criador do homem, orixás e humanos, foi caminhos, da tecnologia foi um dos primeiros
senhor do princípio da incumbido de receber e das oportunidades reis da cidade de Oió,
vida, da respiração e do numa encruzilhada de realização pessoal. que dominou por muito
ar. Castigado por Exu por os presentes das visitas Dono do segredo da forja, tempo diversas cidades
não lhe oferecer uma de Oxalá, enquanto ele que cria instrumentos iorubanas. Geralmente,
oferenda, bebeu muito criava o homem. Por isso, mais resistentes para a quem o incorpora usa
e, bêbado, não pôde criar ele não executa pedidos agricultura e lanças para uma coroa, demonstrando
o mundo. Restou a ele sem algo em troca. Tem caçadores e guerreiros. seu nobre posto. E o
criar os humanos. Ainda, personalidade vingativa, Além da enxada, seu patrono das religiões dos
embriagado, modelou que o fez ser associado símbolos é a espada que o orixás no Brasil e marido
seres distintos, dando ao demônio cristão por fez ser ligado aos católicos de Iansã, Obá e Oxum,
origem à diversidade. missionários europeus. santo Antônio e são Jorge. deusas de rios africanos.
Em Cuba, os babalaôs essencial do oráculo, no Brasil. "Como a mi-
tologia iorubá é muito rica em símbolos e
cultivaram o hábito signos, teria gerado uma maleabilidade de
de registrar os mitos ritos", diz o sociólogo Vallado. Em Mitologia
dos Orixás, Reginaldo Prandi compilou 301
em suas cadernetas. mitos africanos e afro-americanos. Em cada
um os orixás se multiplicam em vários, crian-
tem que ser memorizada. E, quando se usa do uma diversidade de devoções, cada qual
a escrita, perde-se a memória do que não com um repertório específico de ritos, cantos,
está registrado", diz Reginaldo Prandi. danças, paramentos, cores, preferências ali¬
Com o tempo, tanto a falta de uma versão mentares, cujo sentido pode ser encontrado
escrita como a transcrição de alguns mitos nos mitos. Essa flexibilidade que a tradição
para o papel mudou a forma da tradição. Ao oral viabiliza e admite, no entanto, é justa-
longo do tempo, o jogo de adivinhação limi- mente a fonte da riqueza e da resistência das
tou-se a um segredo de iniciação na religião religiões de origem africana. Isso e a fé dos
- a leitura dos búzios para quem ingressa no velhos negros nos orixás e suas histórias,
terreiro. Já os mitos se difundiram mais como passadas adiante de pai para filho-de-santo,
manifestação popular do que como parte de sacerdote para discípulo. ©

DOS ORIXÁS
versículos de Ifá. Sua origem humana os faz imperfeitos, com desejos e defeitos

IANSÃ OXÓSSI IEMANJÁ OMULU


Dirige o vento e as Orixá das florestas, de Senhora das águas, Senhor da peste e
tempestades e é também onde se retira o sustento. tem o culto ligado ao rio conhecedor de seus
deusa da sensualidade Na África, teria sido rei Niger, na África, onde segredos e curas. Por
feminina. Seu nome quer de Ketu, cuja população também é celebrada entre ter no corpo as marcas da
dizer "mãe nove vezes" e, foi destruída pelos as divindades femininas varíola, uma das doenças
segundo o mito, precisou inimigos jejes. Por isso, primordiais, donas a que os escravos foram
fazer uma oferenda para sobreviveu apenas no do conhecimento e do expostos, tem sincretismo
conseguir ter a prole. Brasil, onde é padroeiro feitiço. É mãe dos orixás com são Lázaro, cujo
Mãe batalhadora, vendia dos ketus. Incorporado, porque ajudou a criar corpo também é coberto
dendê para sustentar os segura arco e flecha e e povoar a Terra. Em sua de chagas. Nos ritos,
filhos. Outra lenda diz que dança como se estivesse festa, dia 2 de fevereiro, sacode o xaxará, feixe
teria sido uma princesa na caçando. Em alguns mitos devotos oferecem flores de palha com cabaças
cidade de Irá, em 1450 a.C. também é irmão de Ogum. e presentes ao mar. que guardam remédios.
Os bastidores do
Livro dos Espíritos
Saiba como um professor de ciências investigou as mensagens
dos espíritos para fundar uma religião na Paris do século 19.
Texto Artur Fonseca • Ilustrações RS2

N
a sala principal de uma mansão engraçado. Suas mãos, porém, desenham
em Paris, um grupo de senhores no papel frases que em poucos meses irão
elegantes observa em silêncio a fundar uma religião: o espiritismo.
garota de 14 anos. Julie Baudin Publicado pela primeira vez em 1857, o
está sentada em frente a uma mesa redon- Livro dos Espíritos foi organizado em cerca
da e segura um estranho objeto - uma de 20 meses pelo professor francês Allan
cesta com um lápis encaixado na borda, Kardec, que coordenou longas reuniões com
que risca letras em espiral. Cada palavra é médiuns, fazendo perguntas a eles e colhen-
analisada atentamente por um dos homens. do respostas que acreditava vir dos espíritos.
A garota parece não saber por que os adul- Dos vários médiuns que contribuíram para
tos olham para ela tão concentrados - vol- o livro, 3 garotas se destacam. Julie e Ca¬
ta e meia ela ri e faz algum comentário roline Baudin, de 15 e 18 anos, e Ruth Japhet
Kardec fez O Livro
dos Espíritos com
a ajuda das médiuns
Julie e Caroline

Japhet, de 20. Organizando as respostas para reuniões em salões culturais ou mansões de


501 perguntas sobre o Universo, Kardec senhoras da sociedade, nos quais as pessoas
criou a doutrina e visão de mundo do espi- iam para girar mesas apenas com o poder
ritismo, fazendo dele muito mais que uma da concentração. "Toda a Europa tem o es-
diversão da burguesia parisiense. pírito voltado para uma experiência que
Na época, os fenômenos mediúnicos ser- consiste em fazer girar uma mesa", afirmou
viam como passatempo nos salões de Paris, o jornalL`Illustrationdo dia 14 de maio de
que começava a ganhar ares cosmopolitas. A 1853. "Ide por aqui, ide por ali, nos grandes
partir de 1850, a cidade passou por uma salões, nas mais humildes mansardas,
grande reforma. Ruelas medievais e no atelier do pintor - e vereis pessoas
casebres deram lugar a avenidas largas gravemente assentadas em torno de
e bulevares que convergiam no Arco uma mesa vazia, que elas contemplam
do Triunfo, símbolo da força da moder- à semelhança daqueles crentes que
nidade e da nova burguesia francesa. passam a vida a olhar seus umbigos." Nas
Com novos parques, a cidade se preparava reuniões, havia poetas, intelectuais e nobres.
para virar o século como a Cidade das Luzes. O poeta Victor Hugo era freqüentador assí-
Era tempo de revolução industrial e desco- duo das reuniões e chegou a escrever que
bertas científicas, que tornavam o homem "negar a atenção a que tem direito o espiri-
capaz de explicar e interferir nos fenômenos tismo é desviar a atenção da verdade".
ao seu redor. Ou em quase todos. Numa noite de maio de 1855, a reunião
Porque no meio de toda essa modernida- das mesas girantes aconteceu na casa de
de, as mesas girantes eram uma febre que uma senhora chamada Plainemaison. Uma
assolava a Paris de 1850. Eram comuns as das pessoas que compareceu à reunião foi
Hippolyte Léon Denizard Rivail, um profes- Como a identidade das duas foi mantida em
sor de ciências de 50 anos. Mais tarde, ele segredo por muitos anos, sabe-se pouco sobre
contaria como a visita o deixou impressio- elas. O que se sabe é que Julie era uma mé-
nado. As mesas, segundo ele, não só giravam dium passiva, inconsciente do que escrevia.
como batiam no chão e se moviam "em con- Somente achava divertido as pessoas lhe
dições que não deixam margem a qualquer darem tanta importância. As reuniões, diri-
dúvida". A reunião na casa da sra. Plaine¬ gidas pelos pais delas, não eram secretas,
maison deixou Rivail aturdido. "Entrevi mas restritas a poucos convidados. Para es-
naquelas aparentes futilidades, no passatem- crever as mensagens, Julie e Caroline usavam
po que faziam daqueles fenômenos, qualquer uma cesta-de-bico, feita de vime, com 15 a
coisa de sério, como que a revelação de uma 20 centímetros de diâmetro e uma espécie
nova lei, que tomei a mim investigar a fun- de bico com um lápis na ponta. "Pondo o
do", escreveria o professor, anos depois. médium os dedos na borda da cesta, o apa-
relho todo se agita e o lápis começa a escre-
COMEÇAM AS SESSÕES ver", contou Kardec em O Livro dos Médiuns.
Rivail passou meses observando o fenôme- Com o tempo, as garotas passaram a usar a
no naquela e em outras casas da cidade, psicografia direta, mesmo método usado
como a dos Boudin, que tinham duas filhas mais tarde pelo brasileiro Chico Xavier.
que acreditavam ser médiuns. O mais estar¬ Diante delas, Rivail fazia perguntas que
recedor era que as mesas pareciam não só nós, mortais, sempre quisemos fazer a quem
rodar como também falar. Isso mesmo: passa pela morte e volta para contar. A
pareciam indicar letras com pancadas 4a pergunta do Livro dos Espíritos, por
no chão e, quando interrogadas, mo- exemplo, é "Poderíamos dizer que
viam-se para a direita ou esquerda, Deus é infinito?" E a resposta: "Defi-
tentando comunicar "sim" ou "não". nição incompleta. Pobreza da lingua-
"Se as pessoas viam o fenômeno como gem dos homens, insuficiente para de-
uma diversão, Rivail ia às reuniões de mesas finir coisas acima de sua inteligência". A
girantes como um cientista. Fazia perguntas 150a é "A alma, após a morte, conserva sua
sérias e anotava as respostas que obtinha", individualidade? Sim, nunca a perde. O que
diz o médium e jornalista Jorge Rizzini. Em seria ela se não a conservasse?"
abril de 1856, 11 meses depois da primeira As respostas que Caroline e Julie psico¬
visita a uma daquelas reuniões, a mensagem grafavam eram revistas, analisadas e muitas
da mesa perturbou ainda mais aquele pro- vezes comparadas a outras mensagens. Na
fessor de ciências. Um espírito teria escolhi-
do Rivail para reunir e publicar os ensina-
mentos que ele obtinha nas mesas. Rivail Rivail fazia perguntas
não acreditou e pediu que o espírito repe- que mortais sempre
tisse a mensagem. "Confirmo o que foi dito,
mas recomendo discrição, se quiser se sair quiseram fazer a quem
bem. Tomará mais tarde conhecimento de
coisas que agora o surpreendem", foi a men-
passa pela morte
sagem que ele recebeu como resposta. fase de revisão, a médium que mais contri-
Assim o trabalho começou. Todas as ter- buiu foi Ruth Japhet, uma médium sonâm¬
ças-feiras, Rivail freqüentava a casa da se- bula que tinha mais de 50 cadernos com
nhora Boudin. Julie, a moça de 14 anos, e mensagens que psicografava à noite. Para
sua irmã Caroline, de 16, psicografaram Rivail, a revisão era necessária, primeiro,
quase todas as questões do Livro dos Espíritos. por causa da dificuldade em se entender o
O sucesso das mesas
girantes nos salões de
Paris atraíram Kardec

que os espíritos diziam. Segundo, porque, ele o nome de Allan Kardec, porque esse
para ele, os espíritos não eram donos de tinha sido o nome que ele teve numa vida
toda a sabedoria do Universo. "Um dos pri- passada, como um sacerdote druida." Assim
meiros resultados das minhas observações surgiu o nome do pai do espiritismo.
foi que os espíritos, não sendo senão as al- Em 18 de abril de 1857, os primeiros
mas dos homens, não tinham nem a sobe- exemplares sairiam da Tipografia de Beau,
rana sabedoria nem a soberana ciência; que em Saint-Germain-en-Laye, cidade vizinha
seu saber era limitado ao grau de adianta- a Paris. O livro rapidamente correu o mun-
mento; e que a opinião deles não tinha senão do e criou polêmica, provocando protestos
o valor de uma opinião pessoal", escreveu de padres e cientistas céticos, mas atraindo
ele em O Livro dos Médiuns. Por isso, Kardec a atenção de outros médiuns, que entraram
afirmava que muitas mensagens de entida- em contato com Kardec. O pai do espiritis-
des eram ignoradas, ou por terem gracejos mo viu que seu trabalho ainda não estava
ofensivos ou por não fazerem sentido. Tam- terminado. Eram tantas novas revelações
bém por esse motivo, quanto mais médiuns que ele decidiu revisar mais uma vez e es-
participassem da composição do livro, me- tender o livro. A 2 a edição, definitiva, con-
lhor. Segundo ele, mais de 10 deles contri- tém 1 019 perguntas. A última delas é "O
buíram na 1a edição da obra. reino do bem poderá um dia realizar-se na
Quando Rivail acabou de editar as per- Terra?" Parte da resposta é: "O bem reinará
guntas, surgiu um problema: qual seria o na Terra quando, entre os espíritos que vêm
título e quem deveria assinar a obra? Como habitá-la, os bons predominarem sobre os
não se considerava autor, e sim um organi- maus; então eles farão reinar na Terra o
zador, deu o nome óbvio: O Livro dos Espíri- amor e a justiça, que são a fonte do bem e
tos. Mas alguém precisava assiná-lo. "Rivail da felicidade". Estava criado o livro e, com
consultou os espíritos e uma entidade deu a ele, uma nova religião para os homens. ©
Os profetas
da América
Conheça a história por trás do único livro sagrado escrito na América.
E a origem das polêmicas ligadas à religião fundada pelo Livro de Mórmon.
Texto Nina Weingrill

U
m anjo aparece para você e diz religião, conhecidos por mórmons ou santos,
que sua missão é contar a todos acreditam que sua "Bíblia" seja o livro se-
que Cristo instituiu uma reli- guinte ao Novo Testamento. "Os mórmons se
gião verdadeira, e ela não é afirmam como os donos da verdadeira pala-
nenhuma das que você conhece. Foi o que vra de Jesus Cristo", diz John Gordon Melton,
aconteceu com Joseph Smith em 1823, professor de Estudos Religiosos da Cultura
quando o adolescente de 14 anos rezava Americana da Universidade de Indiana.
numa floresta atrás de casa, na cidade de Um detalhe crucial da devoção ao Livro
Palmira, Nova York. O anjo era Morôni, e de Mórmon é a crença de que apenas seus
sua mensagem o ponto de partida para a seguidores serão salvos no Juízo Final. Gra-
elaboração do Livro de Mórmon, única ças a essa convicção, os fiéis da nova
escritura sagrada feita na América. religião foram perseguidos por gru-
Segundo o anjo, após a ressurrei- pos evangélicos que proliferavam na
ção, Cristo atravessou o oceano rumo mesma época e viam naquela fé uma
à América. Aqui, ele viveu entre po- afronta à sua própria. Para fugir da
vos judeus que teriam emigrado para o violência, Joseph Smith retirou-se de
continente a partir de 600 a.C. Durante 40 Nova York em busca da terra prometida, ou
dias, Ele operou milagres, curou doenças e "Nova Jerusalém", e rumou para oeste.
transmitiu aos nativos valores cristãos. Um
dos profetas que acompanhou o Messias POLIGAMIA EM NOVA JERUSALÉM
durante esse período foi Mórmon - outro Em Illinois, Smith, acompanhado de profe-
anjo, pai de Morôni -, que registrou a pas- tas, inclusive do jovem Bringham Young, que
sagem do Messias em placas de ouro. viria a sucedê-lo, fundou uma legião chama-
Smith foi guiado pelo anjo até as placas e da de Nauvoo. Lá, a religião tomou uma
recebeu a missão de traduzi-las. Com a ajuda dimensão barulhenta. Primeiro porque Smi-
de pedras mágicas, que colocava no chapéu th instituiu a poligamia como regra em sua
ao trabalhar, o jovem levou 10 anos para comunidade. A ordem teria sido dada a ele
decifrar o manuscrito e publicar a primeira por Deus - segundo a religião, as revelações
versão do Livro de Mórmon, escritura que até são feitas sempre aos profetas da doutrina,
hoje guia a Igreja de Jesus Cristo dos Santos que podem mudar mandamentos e leis den-
dos Últimos Dias. Os seguidores da nova tro da Igreja a qualquer momento.
Entre 19 e 26 anos,
os mórmons viajam
em busca de novos
fiéis para a religião
I

A nova regra criou dissidências. Revolta-


dos eles buscaram apoio do governador, que
-asl VINDE AOS MÓRMONS te.
Busca por mais fiéis muda regras e costumes
tinha uma rixa pessoal com o profeta. Smi-
th era um homem charmoso e carismático, Além da polêmica da poligamia, que levou o
com planos de se candidatar à presidência fundador da religião à morte e foi extinta entre
dos Estados Unidos. Era melhor contê-lo os mórmons em 1890, outras regras da religião
antes que sua carreira decolasse, e ele foi causam - ou causavam - controvérsias, como
parar no xadrez, junto com seu irmão. Três a proibição da entrada de negros nos templos.
dias depois, em 27 de junho de 1844, os dois Essa foi extinta em 1978, por ordem de uma
foram mortos a tiros dentro da cadeia. revelação, e fez aumentar as conversões em
A essa altura, a Igreja já tinha bases bem países de grande população negra, como
estabelecidas e Young assumiu a liderança o Brasil. 0 incentivo ao sexo após
mórmon. A tragédia, porém, confirmara a o casamento, com fins reprodutivos,
necessidade de os fiéis se mudarem para uma é mais um fator importante para
área isolada. Dispersos em cidades do Mis¬ o crescimento do número de fiéis.
souri, Illinois e Iowa, os convertidos se uni- A natalidade entre os mórmons
ram rumo a Utah, estado praticamente alheio americanos é 50% maior que a
ao comando dos EUA. Lá, construíram um média do resto da população.
templo, onde hoje está Salt Lake City. E, quanto mais filhos, mais fiéis
no futuro. A busca por novos
Até hoje, a cidade é a sede da religião e
seguidores vai até o além. "Todas
base de treinamento dos missionários, res-
as pessoas têm o direito de escolher
ponsáveis por levar a palavra do Livro de
fazer parte da Igreja", diz Nei Garcia,
Mórmon a todos os cantos do mundo. Um
do Departamento de Assuntos Públicos
sistema que só tem dado certo. Hoje existem
da sede da Igreja no Brasil. Por isso, cerca
12 milhões de mórmons e eles continuam de 200 milhões de pessoas mortas já foram
crescendo. "É possível que daqui a 40 anos batizadas, para que possam optar pela
o mundo tenha cerca de 50 milhões deles", conversão na hora do Juízo Final. Entre eles,
afirma Rodney Stark, professor de sociologia estão Buda, todos os papas e Elvis Presley.
da Universidade de Baylor, no Texas. ©
Osho durante uma conferência.
A transcrição de suas palavras
deu origem a centenas de livros.

O guru dos
novos tempos
Conheça Osho, o indiano fundador de um movimento
espiritual com todas as características de uma nova religião -
inclusive uma obra escrita com mais de 600 volumes.
Texto Bianca Nunes
N
o fim dos anos 50, um professor orientais, que segundo ele não surtem efeito
de filosofia chamava atenção na no homem moderno e num mundo extrema-
Universidade de Jabalpur, na mente consumista e dinâmico. Seria preciso
Índia. As aulas do barbudo de algo mais agressivo para nos tirar do estado
gorro e óculos escuros, sempre lotadas, "vicioso" em que estamos. Para isso, Osho
eram as únicas em que homens e mulheres desenvolveu técnicas, como a meditação
podiam sentar-se juntos e debater livremen- dinâmica, e reformulou outras. "O objetivo
te - apenas mais uma das controvérsias do é a libertação do ser humano por práticas
homem que se definiu como "um místico diversas das quais Osho se apropriou, de
espiritualmente incorreto". Chandra Mohan tradições religiosas como o zen-budismo, o
Jain, ou simplesmente Osho, causava polê- tantrismo e o sufismo", diz Usarski.
mica principalmente com seus ataques às Segundo a autobiografia de Osho, sua
religiões tradicionais. Pregando a busca da trajetória espiritual começou de maneira
liberdade através da meditação, ele conquis- semelhante à de antigos profetas, aos 21
tou uma geração de pessoas que bus- anos, com uma revelação. Ele conta que
cava a espiritualidade sem ter de se numa noite de março de 1953 foi acor-
comprometer com antigas crenças. dado por uma energia forte em seu
Mas o movimento que ele criou assu- quarto, correu para o jardim onde
miu todos os contornos de uma nova meditava e viu tudo iluminado. Ficou 3
religião, como a busca pelo divino, seguido- horas em estado contemplativo - "chapa¬
res, rituais, doutrinas e até mesmo escritu- dão", como definiu - e 7 dias sem falar.
ras - mais de 600 livros que são best sellers "Dias se passavam e eu não sentia fome, não
internacionais, traduzidos em 55 idiomas. sentia sede. Desde aquela noite, nunca mais
"Não existe homem mais cabeça-dura que estive em meu corpo." A luz trouxe a per-
o papa, o Polaco", disse sobre João Paulo 2 o cepção de que não há nada a ser obtido, pois
durante uma entrevista de 1985, publicada o ser humano já é perfeito.
em 6 volumes no livro O Último Testamento.
O Polaco, como sempre chamava o então DA FILOSOFIA A RELIGIÃO
chefe da Igreja Católica, era um dos alvos Formado em filosofia, Osho passou a dar
favoritos de Osho: "O mundo está superpo¬ aulas e a reunir nas universidades seus pri-
voado e ele continua pregando contra o con- meiros discípulos. A quantidade de pessoas
trole de natalidade, a pílula e o aborto". Seus que o buscavam era tão grande que em 1962
livros, editados a partir de palestras e entre- ele abriu um centro de meditação e começou
vistas, oferecem novas interpretações de li- a fazer inúmeras viagens para palestras ao
vros sagrados, líderes religiosos e sistemas redor da índia. Em 1964, suas palavras fo-
políticos. O objetivo era discutir a importân- ram publicadas pela primeira vez em livro,
cia da liberdade, do autoconhecimento e da sob o título O Caminho Perfeito. Foi a primei-
relação do homem com ele mesmo e com o ra das muitas obras que fizeram o sucesso
planeta - a busca por um novo homem. do movimento. Dois anos depois, Osho aban-
"A abordagem de Osho traz elementos donaria sua atividade acadêmica para dedi-
religiosos, especialmente no sentido de que car-se exclusivamente à vocação de guru e
o ser humano tem a capacidade de se ilumi- passou a organizar acampamentos de medi-
nar e pode desenvolver seu potencial ineren- tação na zona rural do país.
te", explica o professor de teologia da PUC-SP Nos anos 70, Osho já tinha uma pequena
Frank Usarski. Esse potencial seria desen- multidão de seguidores e o movimento co-
volvido pela meditação, mas não com os meçou a ganhar as feições de uma religião.
métodos desenvolvidos há séculos pelos Em 1970, num campo de meditação, ele fez
a iniciação formal do primeiro de seus dis- seguidores mudaram-se para uma comuni-
cípulos - ou neosanias. Em 1971, ele mesmo dade no parque Koregaon, em Puna, Índia,
mudaria seu nome para Bhagwan Shree que se tornou um resort de meditação. Se-
Rajneesh - ou "Rajneesh, o senhor abenço- gundo Usarski, mais uma característica de
ado", em sânscrito - deixando clara sua li- um movimento religioso. "Religiões inte-
gação divina. Os neosanias adotaram rituais gram socialmente, já que membros de uma
como vestir roupas vermelho-alaranjadas, comunidade religiosa compartilham a mes-
um colar de 108 contas e um medalhão com ma cosmovisão, têm valores comuns e pra-
a imagem do líder. Além disso, cada novo ticam sua fé em grupo."
discípulo era rebatizado pelo mestre para Em Puna, Osho aplicava métodos tera-
caracterizar a adesão. Afinal, Osho e seus pêuticos em workshops e dava palestras

Discípulos de Osho
em terapia: liberação
sexual em pratica.

-*sd GURU DO SEXO


Na busca pelo novo homem, é preciso acabar com as repressões Inclusive as sexuais

Em 1968, Osho foi convidado para palestrar sobre fizessem o teste de HIV. Pioneiro, recomendou
o amor. Seu discurso incentivou a libertação sexual, usar camisinha e luvas de látex na hora do sexo,
causando furor entre audiência e crítica. 0 conteúdo coisas ridicularizadas na época. Para A. Racily,
da palestra está no livro Do Sexo à Supraconsciência, que conviveu com Osho, o guru queria apenas que
um dos títulos mais populares do autor. Ao dizer, o sexo não fosse renegado. Ela diz que nunca houve
por exemplo, que "o orgasmo sexual oferece orgias na comunidade e que esses boatos vinham
o primeiro vislumbre da meditação, porque nele a de quem queria se aproveitar da liberdade sexual
mente pára, o tempo pára", a mídia o apelidou de para "aprontar". Mas até hoje o exame de aids é
"guru do sexo". Quando se descobriu a causa da obrigatório para irão resort de meditação da Osho
aids, Osho determinou que seus discípulos International, em Puna - e soropositivos não entram.
diariamente. De manhã, comentava os en- foram hipotecados para comprarmos mate-
sinamentos de tradições religiosas, como o rial de construção." Seu liberalismo em re-
budismo, o sufismo e o cristianismo. À tarde, lação ao sexo (veja ao lado) também criou
respondia perguntas sobre temas como amor, repúdio. Ainda havia uma agravante: "Nós
ciúme e meditação. Num mês, falava em andávamos de vermelho. E naquela época
hindi, no outro, em inglês. Cada série de 10 vermelho era coisa de comunista", diz Raci-
dias foi publicada em forma de livro, com- ly. Rajneeshpuram começou a sofrer boi-
pondo mais de 240 obras em 7 anos. Na cotes da comunidade local. Alvarás
época, Osho já tinha cerca de 400 li- foram negados e o visto de residente
vros publicados, somando um volume de Osho foi negado. Em 1985, acusado
de texto maior que o da Bíblia ou do de violar a lei de imigração, passou 6
Alcorão. Em 1976, o complexo de Puna dias preso e foi libertado sob fiança de
ganhou um edifício dedicado exclusivamen- US$ 400 mil e a promessa de deixar o país.
te à produção editorial do guru. Os livros Pessoalmente, a temporada americana
levavam a palavra de Osho para o mundo foi ruim para Osho, que em seguida teve
inteiro e atraíam cada vez mais gente para visto negado em 21 países e foi obrigado a
conhecer de perto seu movimento. No fim voltar à Índia. A perseguição, no entanto,
dos anos 70, o centro recebia cerca de 100 teve muita repercussão na mídia. O que, de
mil pessoas por ano. E cada vez mais ociden- forma contemporânea, teve um efeito seme-
tais eram conquistados pela idéia de renun- lhante às perseguições sofridas por profetas
ciar às repressões impostas por religiões, da Antiguidade, como Moisés, Jesus e Mao-
educação, governos e outras tradições, sem mé, ajudando a fortalecer a adesão dos fiéis
ter de abrir mão do mundo material. ao movimento e a popularizá-lo entre os
demais. Antes de morrer, em 1990, o guru
A CONQUISTA DA AMÉRICA mudaria de nome uma última vez, para o
O interesse de estrangeiros fez o movimen- definitivo Osho - sinônimo de "oceânico".
to buscar uma base fora da Índia e em 1981 Aliás, a placa sobre suas cinzas diz que ele
Osho e seus seguidores mais próximos mu- "nunca nasceu, nunca morreu. Apenas ha-
daram-se para um terreno 150 vezes maior bitou este planeta Terra entre 1931 e 1990".
que o Parque do Ibirapuera, no deserto de Sua palavra, com certeza, está bastante viva.
Oregon, nos EUA, dando um passo impor- Segundo Klaus Steege, presidente da Osho
tante para internacionalizar o movimento. International em Nova York, ainda há
"Queríamos construir um lugar para viver-
mos o novo homem. Um centro terapêutico,
um resort, uma comunidade, um clube de
No fim dos anos 70,
meditação enorme", conta A. Racily, brasi- o centro de meditação
leira membro da Osho International, que
morou com o guru em Rajneeshpuram, co-
de Osho recebia 100 mil
mo foi chamada a comunidade. pessoas por ano.
Por não condenar a riqueza, o movimen-
to atraiu a atenção de milionários. E come- palestras não traduzidas do híndi para o inglês
çaram as polêmicas que marcariam aquela - o que significa que mais livros serão pu-
temporada. Osho ficou famoso por sua cole- blicados. E como era de esperar de um guru
ção de 93 Rolls-Royces. Segundo Racily, os moderno, os livros não são mais o principal
carros foram doados por discípulos ricos veículo da palavra de Osho. "O grande pro-
para ajudar a construir a cidade. "Sem bens, jeto agora são os dvds com técnicas de me-
não podíamos pegar empréstimos. Os carros ditação e os livros com cds." ©
O poder da mente
Ciência, psicologia e pitadas de ficção científica são os
ingredientes básicos de Dianética, livro fundador da cientologia.
Texto Nina Weingrill • Ilustração Lilian Laszio

V
ocê já deve ter ouvido falar da O livro logo entrou na lista de best sellers
cientologia, religião de Tom Crui- do jornal The New York Times e acumula 20
se, John Travolta e outras cele- milhões de cópias vendidas desde o lança-
bridades de Hollywood. Nascida mento. Famoso, Hubbard começou uma
em 1954, nos EUA, ela promete acabar com luta contra a psicologia e o uso de remédios
os problemas do mundo ajudando as pesso- para doenças mentais que, na sua opinião,
as a se livrarem de seus traumas. A doutri- eram psicossomáticas. A Associação Ameri-
na tem influências de outras religiões, como cana de Psicologia reagiu afirmando que o
o hinduísmo e o budismo, e de ciências livro não tinha fundamento científico, o que
humanas, como a psicologia. Mas o livro derrubou as vendas. Hubbard realizou mais
que fundou toda essa história foi uma obra um ajuste de trajetória, e fez da Dianética o
de auto-ajuda chamada Dianética -A Ciên- livro-guia da cientologia, religião da qual
cia Moderna da Saúde Mental. seria profeta e fundador.
O misto de filosofia com psicologia nas- Em 1954 ele começou a peregrinar por
ceu da cabeça de Lafayette Ronald Hubbard, universidades e centros comunitários, mi-
um escritor de ficção com centenas de livros nistrando palestras sobre a nova doutrina e
publicados nos anos 30 e 40. Apesar de ser reunindo seus primeiros seguidores. O mo-
um autor razoavelmente conhecido, espe- vimento logo abriria igrejas na Inglaterra,
cialmente por seus títulos de ficção cientí- Austrália e na Nova Zelândia - além dos
fica, Hubbard não tinha retorno financeiro EUA. Para os seguidores se tornarem "lim-
com seus livros, que custavam apenas pos", devem seguir as terapias, até hoje
alguns centavos. Então, depois de o principal ritual da cientologia, que as
servir como oficial da Marinha ame- oferece na forma de cursos pagos. E
ricana na 2 a Guerra Mundial, ele de- bem pagos: custam entre US$ 750 e
cidiu escrever um livro diferente de US$ 8 mil. Dependendo dos problemas
tudo que tinha feito até o momento. que tem, o fiel pode demorar para chegar à
Dianética chega às livrarias em 1950 com iluminação, ou não alcançá-la nunca.
a teoria central de que a fonte das doenças Àqueles que chegarem lá, todos os segre-
mentais e físicas são cicatrizes chamadas de dos da Igreja serão revelados - inclusive sua
"engramas". Elas se fixam no subconsciente teoria da criação do homem. "Hubbard
das pessoas, a "mente reativa", e viram obs- achou que seria importante ter uma história
táculos para uma vida plena. Para se livrar de como tudo começou, assim como acon-
desses traumas e aproveitar 100% da sua tece em outras religiões", afirma Stephen
capacidade, as pessoas devem passar por Kent, professor de sociologia da Universida-
audições, espécie de terapia regressiva, para de de Alberta, no Canadá. A sensação de
se tornarem "limpas" - seres iluminados. que algo na vida está errado e precisa ser
consertado é o que move toda religião, e na
de Hubbard isso não poderia faltar.
Durante décadas, o mito da criação foi
mantido em segredo, sendo revelado apenas
aos fiéis mais graduados. Só que alguns deles
resolveram falar, e o mito se tornou público
em 1995. Há 75 milhões de anos, vários
planetas se reuniram numa "confederação
das galáxias", governada por um líder do mal
chamado Xenu. Como os planetas estavam
com problemas de superpopulação, Xenu
mandou bilhões de seus habitantes para a
Terra, onde foram mortos com bombas de
hidrogênio. Seus espíritos - chamados de
"thetans" - continuaram por aqui, reencar¬
nando justamente em nós, seres humanos.

A cientologia promete
às pessoas remover
bloqueios e realizar um
potencial desconhecido.
A história incrível, digna da carreira de
ficção científica de Hubbard, não atrapa-
lhou a difusão da religião, que desde o prin-
cípio buscou fiéis entre as celebridades, que
a colocam nas manchetes dos tablóides.
Uma de suas estratégias pioneiras de pro-
moção foi o Projeto Celebridade, lançado
em 1955 para estimular a adesão de famo-
sos do cinema, do esporte e da política com
descontos no preço dos cursos. Uma vez
cooptadas, as celebridades tornavam-se
divulgadores espontâneos da Igreja, como
é Tom Cruise hoje em dia.
A tática tem dado bastante certo, a julgar
pelo meio milhão de adeptos que a religião
contabiliza em 156 países, inclusive o Brasil.
Mas, para Kent, esse não é o principal apelo
da religião. "A fórmula do sucesso deles é a
adequação à necessidade de cada um. A cien-
tologia promete às pessoas remover seus
bloqueios e realizar um potencial que elas
não conhecem. Se isso funciona por causa da
religião ou não é um longo debate", diz. ©
Sagrados
extraterrestres
Novas crenças e escrituras religiosas surgiram no século 20.
Em algumas delas, os anjos tradicionalmente associados
a revelação foram substituídos por extraterrestres.
Texto Michelle Veronese

C£ W ^ Parai o mais breve possível com as tauro, extraterrestre preocupado com o


\^J experiências bélicas ou ireis pre- destino da humanidade. Em sua "revela-
senciar terríveis sofrimentos", ção", ele pede que o jovem divulgue suas
JL. anuncia um ser alto, loiro e mensagens de paz e amor pela terra.
vestido com um uniforme de astro- O encontro parece obra de ficção
nauta. A mensagem é transmitida ao científica, mas está no livro O Jovem
brasileiro Paulo Fernandes, uma das que se Encontrava com Extraterrestres,
pessoas que dizem ter recebido a pa- de 1972. Antes dele, pelo menos ou-
lavra do comandante Ashtar Sheran, tras duas pessoas, um inglês e um ale-
extraterrestre da constelação de Alfa Cen- mão, publicaram livros sobre um contato
sagrado com o Comandante Ashtar, como
é conhecido, e suas recomendações para a
salvação. E ainda existem dezenas de ou-
tras obras sobre contatos sagrados entre
Ashtar: o humanos e habitantes de outros mundos.
comandante
Esses livros são a base de novas religiões
alienígena que
nos protegeria. em que ETs são objeto de culto.
Os seguidores dessas correntes acredi-
tam que habitantes de outros planetas são
os criadores da raça humana ou espíritos
mais evoluídos encarregados de nos orien-
tar espiritualmente - crença sugerida in-
clusive pelo Livro dos Espíritos, publicado
por Allan Kardec ainda no século 19. Des-
de então, esses seres visitam a Terra e se
comunicam com alguns poucos escolhidos
para proteger e ajudar a humanidade, mais
ou menos como anjos e deuses de outras
religiões. A maioria das pessoas que encon-
tram esses profetas funda seitas.
JÊÍ FÉ NO OUTRO MUNDO
Veja algumas livros que cultuam ETs

MOVIMENTO RAELIANO
Sediado no Canadá, esse grupo atrai
simpatizantes no mundo inteiro com a idéia
de que os seres humanos foram criados por
manipulação genética à imagem e semelhança
dos elohim ("aqueles que vieram do céu",
em hebraico). Os raelianos consideram o
ex-jornalista francês Rael seu líder e profeta
e aguardam o retorno dos ETs, previsto para
2035, conforme diz o livro A mensagem
Transmitida pelos Extraterrestres.

ASHTAR SHERAN
Ele é loiro, alto, mora na constelação de Alfa
Esse tipo de crença começou a surgir no Centauro e seu nome quer dizer "o sol que
fim da década de 1940, com o mundo mer- mais brilha", em sânscrito. Usa uma roupa de
gulhado nas paranóias da Guerra Fria e na astronauta com uma insígnia no peito, símbolo
corrida espacial. Naquela época surgiram da Frota Intergaláctica, grupo de naves que
ele comanda para zelar pela segurança da
os primeiros relatos de óvnis, logo associa-
Terra. Seu contato no Brasil foi com o baiano
dos a discos voadores pilotados por extra-
Paulo Fernandes, autor de 0 Jovem Que se
terrestres. É nesse clima que surgem os Comunicava com Extraterrestres.
"contatados": homens e mulheres que re-
cebem revelações de ETs e são encarrega-
CULTURA RACIONAL
dos de divulgar sua palavra. Tal como Bu-
Os fãs acharam estranho quando Tim Maia
da, Moisés e Jesus, os contatados viraram
largou o álcool e as drogas, se vestiu de branco
os profetas da era espacial, com crenças
e passou a cantar "leia o livro Universo em
semelhantes às de outras religiões. A dife-
Desencanto". 0 livro de 1006 volumes contém
rença é que suas figuras sagradas são ver-
os ensinamentos e a doutrina da Cultura
des ou usam roupas de astronauta. Racional, movimento religioso fundado nos
Hoje basta navegar na internet para anos 70 pelo carioca Manoel Jacintho Coelho
encontrar centenas de cultos a extraterres- a partir da revelação feita pelos racionais,
tres espalhados pelo mundo. É verdade que extraterrestres considerados puros e perfeitos.
essa mistura de religião e ufologia ainda
causa estranheza, especialmente depois TRIGUEIRINH0
que os integrantes de um desses grupos, o Os seres contatados pelo ex-cineasta José
Heaveri`s Gate, cometeram suicídio coletivo Trigueirinho Netto estão bem perto de nós -
no estado americano da Califórnia, nos mais precisamente no interior da Terra.
anos 90. Mas para o cientista da religião Ele registrou a revelação em A Nave de Noé
Alberto Moreira, da Universidade Federal e a Quinta Raça. 0 livro diz que a missão
de Juiz de Fora, esses grupos fazem suces- dos intraterrestres é conduzir a humanidade
so por causa de uma necessidade bem ter- para uma nova era de paz e harmonia. E que,
rena. "As pessoas têm necessidade de en- se algo der errado, eles têm naves espaciais
cantamento e fascínio para viver. E algumas capazes de resgatar os seres humanos.
buscam isso além do horizonte." ©
Cronologia dos livros
Aqui estão organizados os principais livros sagrados citados nas reportagens,
segundo a época em que surgiram, de acordo com os estudiosos da área.

SJ HINDUS H « BUDISTAS BC * ABRAÂNICOS BC *j CHINESES BC

GURU GRANT SAHIB


| LIVRO DE MÓRMON
Sikhismo
Mórmons
1469 a 1708
1830

GRANDE TESOURO ALCORÃO


Islamismo
DAS ESCRITURAS
610 a 633
Budismo chinês
983

NOVO TESTAMENTO3
Cristianismo
50 a 400

TRIPITAKA
Budismo teravada
SUTRAS MAHAYANAS
500 a 100 a.C.
Budismo mahayana
100 a.C.

TATTVARTHA SUTRA
Jainismo | MANU SMRITI
200 a.C. Hinduísmo
200 a.C. a 200
ANALECTOS
Confucionismo TAO TE CHING
500 a 200 a.C. Taoísmo
500 a 300 a.C.
TORÁ
Judaísmo
500 a.C.
CLÁSSICOS CONFUCIANOS
Confucionismo
551 a 479 a.C.
RAMAYANA
Hinduísmo
750 a 500 a.C.
VEDAS MAHABHARATA
Hinduísmo Hinduísmo
1500 a 1000 a.C. 800 a 500 a.C.
OS 3 0 LIVROS QUE MAIS CAEM NA PROVA,
JUNTOS NO MESMO LUGAR.

Guia do Estudante Literatura Vestibular. t

Fique por dentro das principais obras que caem nas provas dos vestibulares:
analise e síntese dos livros, biografias dos autores e explicações das escolas literárias.
Não faz sentido não ler

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