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HISTÓRIA ou ESTÓRIA?
As Edições de Ouro e o Coquetel grafam a palavra história e não estória por julgar a primeira
forma mais correta, conforme dicionários mais categorizados, que julgam a segunda forma
imitação do inglês story, sem correspondente com raízes em nossa língua.
1
Não havia mais muitas coisas que pudessem causar espanto a Cliff
McLane. Estava plenamente convencido de que atravessava as névoas
turvas da vida imperturbável como uma nave espacial fortemente
blindada. Mas nesses últimos minutos seu controle havia sido abalado
mais do que queria admitir.
Sabia onde se encontrava, mas já começou a duvidar da realidade,
julgando que tudo não passava de um sonho particularmente
tenebroso. Um ruído!
Ouviu o zumbido de insetos desconhecidos, depois o gorjeio de
pássaros, cujos nomes desconhecia e que provavelmente jamais
aprenderia. Olhou ao redor. Um jardim florido circundava um terraço,
cujo piso consistia de placas finamente trabalhadas. As cercas vivas,
cuidadosamente podadas, apresentavam formas evoluídas do mais
puro estilo barroco. Repuxos lançavam jatos de água límpida em
direção ao céu azul-pálido. Era um verdadeiro idílio. O uniforme
negro de McLane maculava a harmonia de cores dessa paisagem
cultivada. Tentando acomodar-se melhor, tinha conseguido esticar as
pernas e prontamente rompeu a armação da graciosa cadeira, na qual
estava sentado. O comandante segurava um copo na mão. Não
conseguia sequer adivinhar o que estava bebendo, mas o sabor era
excelente. Consolou-se tomando mais um gole avantajado.
— Faz uma hora que estou sentado aqui! — disse ele, após
consultar o relógio.
Duas jovens, de uma beleza incomum, estavam sentadas à direita e
à esquerda de McLane. Trajavam vestidos que iam até os joelhos, e
calçavam botas finíssimas. Uma parte da gola estava enrolada no
pescoço; apesar da cor amarela dos vestidos, as golas eram de um
azul-profundo. A cor dessas echarpes parecia ser a insígnia do cargo
que as jovens ocupavam.
— Não está gostando daqui? — perguntou uma das moças.
McLane deu um largo sorriso, embora estivesse tudo, menos
seguro.
— Gosto sim, bem que eu gostaria de passar umas férias aqui,
mas...
— Mas? — perguntou a mais velha das duas jovens. Apesar da sua
juventude, ambas davam a impressão de serem decididas e reservadas.
— Se eu ficar mais algum tempo apreciando as belezas desse
jardim, sem poder falar com o governo, então não sei se ainda vou ter
uma chance para pensar em férias!
Com um gesto gracioso, a mais moça estendeu uma cigarreira a
McLane. Continha cigarros ultra longos com a letra grega "chi"
gravada na boquilha dourada. "Chi" era a inicial da palavra "Chroma".
— Não fique nervoso. Relaxe. Fume um cigarro!
McLane recusou, agradecendo.
— Há mais ou menos um século, nós, astronautas, estamos
proibidos de fumar. — respondeu ele. — Mesmo assim, meus
agradecimentos.
— E aceitaram isso sem protestar? — a outra moça riu
ironicamente.
— Não há proibições aqui em Chroma? — quis saber McLane,
ligeiramente aborrecido.
— Muito poucas.
— Nesse caso — disse Cliff e estendendo a mão — tenha a
bondade de me devolver meu rádio de pulso!
A mais velha das duas sorriu, mas o tom de sua voz era decidido:
— Está aí uma das poucas proibições! A diretora da Seção IV...
— Diretora! Comissária! Diga-me uma coisa... aqui não existem
homens?
As suas duas acompanhantes começaram a rir gostosamente.
— Existem, sim! — disse uma delas.
— Lá, por exemplo! — prosseguiu a outra e apontou para trás.
McLane virou-se e reparou três homens, que estavam revolvendo
um longo canteiro com auxílio de barulhentas máquinas de '
jardinagem. A expressão dos três era a de animais domésticos
satisfeitos. Abismado, McLane perguntou, com voz meio embargada:
— Está querendo insinuar com isso, que em Chroma os homens só
podem ser j jardineiros?
— Jardineiros ou técnicos. Conforme o talento e o grau de
utilidade que revelam. Podem ser também cientistas e especialistas.
McLane cerrou os olhos.
— Devem estar brincando com um pobre astronauta! — disse ele,
quase em tom de súplica. As duas caíram em nova gargalhada. De
repente parecia que o brilho daquele sol distante havia empalidecido.
— Servem também como soldados para uma parada ou quando
temos necessidade de uma guarda de honra.
— Uma pergunta — quis saber McLane e tomou um outro gole. —
Houve sufragistas entre as fundadoras do Estado de Chroma?
— suf... o quê?
— Defensoras dos direitos da mulher! Militantes da emancipação
brutal!
— Provavelmente. Por que pergunta, comandante?
— Por nada — respondeu McLane. — Foi uma pergunta como
outra qualquer. Quer dizer que brincar de soldados eles podem, esses
seus fantoches de papelão?
— Certo! Isso nós os deixamos fazer. É inofensivo.
Ao mesmo tempo que fez um gesto desdenhoso com a mão, a mais
velha das duas declarou:
— É claro que, além disso, os homens podem contribuir
sensivelmente para tornar a vida mais agradável!
Pelo tom de sua voz, tinha abordado o assunto mais insignificante
em Chroma. McLane sentiu calafrios.
— Sim, sim, não há dúvida! — respondeu McLane, de leve. Sentiu
que o suor frio lhe estava brotando na testa. Um pássaro providenciou
o fundo musical para aquela constatação lapidar. Começou a cantar a
pouca distância de Cliff, que se encolheu assustado. De repente,
ouviu-se uma voz feminina, habituada a dar ordens:
— Minhas senhoras, por favor! Parem de aturdir o pobre major! A
propósito, ele pode vir!
O "pobre major" esvaziou o copo de um só gole e levantou-se.
Sentia-se como um condenado, que ainda tinha que percorrer um
árduo caminho até o local da execução.
— Quem... que... quem era? — perguntou, inseguro.
— Ela.
— Ela, quem? — quis saber Cliff e colocou a mão atrás do ouvido.
— Ela. Agora o senhor pode falar com Ela.
A paciência de McLane tinha chegado ao fim. Elevou a voz e
gritou, quase berrando:
— Por todos os conversores, vou falar com quem? Quero ver o
chefe dessa joça aqui! O maioral, o presidente, o conselho.
Entenderam? Quero ver o chefe!
Esgotado, cobriu o rosto com as mãos.
— Venha, coitadinho! — pediu a mais jovem das duas.
Pegou Cliff pelo braço e o conduziu através de um longo e fresco
corredor flanqueado por colunas, cujo estilo fazia lembrar os templos
de uma das mais antigas culturas terranas. Passaram por uma porta e
por mais outra. Finalmente, uma terceira se abriu, desvendando o
interior de uma sala aconchegante, cuja decoração denotava o
inconfundível toque de mãos femininas. O chão estava coberto de
tapetes, e delicadas cortinas enfeitavam as grandes janelas. Arranjos
de flores, artisticamente arrumadas em vasos altos, emprestavam um
suave colorido a esse ambiente acolhedor. A harmonia do conjunto só
era maculada por um cacto, em cujos espinhos algum brincalhão havia
espetado bolinhas de algodão colorido. Colocada quase no meio da
sala, havia uma escrivaninha de madeira legítima, de um desenho
notável. E atrás desta mesa estava sentada uma mulher.
Indiscutivelmente uma dama. Alta e esbelta, e de cabelos da cor de
trigo maduro.
— O senhor queria falar comigo, comandante McLane? —
perguntou ela com uma voz, que fazia lembrar o tom reservado de
Tamara quando dirigia um de seus desaforos a Cliff.
McLane estava mais do que estupefato.
— A senhora é...?
— Eu sou, para empregar o seu próprio termo, o chefe aqui.
As duas ajudantes de Ela fecharam a porta atrás de Cliff. McLane
deu alguns passos em direção à escrivaninha.
— O chefe supremo? — perguntou Cliff.
— Com relação ao assunto que lhe trouxe aqui, sou!
— Escute! — começou McLane, agitado, e aproximou-se mais um
pouco. — Esse assunto, como a senhora se dignou a chamar o caso,
não é tão insignificante assim. Pelo contrário. É de vital importância,
tanto para Terra, quanto para Chroma!
A resposta foi mais reservada do que Cliff esperava. Sem mover
um músculo sequer do seu rosto expressivo, Ela disse:
— Aqui em Chroma um assunto de vital importância é da alçada
das mulheres. Só das mulheres. Vai ter que se habituar com essa idéia.
A voz de Cliff tornou-se um pouco mais alta e incisiva.
Respondeu:
— Não estou com disposição para ouvir piadas, minha senhora!
Ela retrucou, com voz fria e decidida:
— Eu também não!
Cliff sacudiu a cabeça, incrédulo. Depois disse, naquele tom de
voz temido por todos que o conheciam:
— Em Chroma são as mulheres que decidem o que vai acontecer!
É inacreditável!
A suprema dama do planeta deu um sorriso de uma indiferença
desarmante e respondeu:
— Nossas experiências têm sido as melhores possíveis.
— Pode ser! — disse Cliff, elevando a voz mais um pouco. —
Talvez até agora. Mas desde que a senhora teve a brilhante idéia de
aquecer artificialmente o sol terrano, essas experiências já não devem
ter sido tão boas assim!
— Isto foi uma idéia dos nossos cientistas. Eles são homens.
— Está certo! Homens, que recebem ordens da senhora! Belos
homens, esses! — Cliff estava ficando furioso.
— Se temos algo a calcular ou a fuçar, dependemos dos homens.
Mas não achamos grande coisa do seu juízo.
— Do meu?
— Não! — disse Ela sorrindo. — Seu, deles!
— Maravilhoso! — exclamou McLane. — Nesse caso, vou apelar
para o seu juízo feminino: suspenda as experiências com o nosso sol!
— Não estamos fazendo essas experiências por mera brincadeira,
major McLane. Verificamos que precisamos de energia solar. Mais do
que o nosso sol pode nos fornecer. Se quisermos manter as nossas
condições de vida, somos obrigados a prosseguir com essas
experiências — respondeu Ela em tom sério.
Levantou-se e dirigiu-se à janela. Afastou a cortina.
— E queremos continuar a viver, major McLane.
— Nós também! — disse Cliff, irado. Ela apontou para a paisagem
florescente.
— Lembre-se, major McLane — começou a mulher e fez um gesto
para realçar sua determinação — que por causa da ânsia pelo poder,
Terra viu-se envolvida em duas guerras pavorosas. Isso nos serviu de
lição. Não queremos o poder. Queremos um mundo pacífico; não
temos ambição de conquistar o universo, nem idéias colonialistas.
Queremos um mundo sem frotas espaciais e sem generais.
McLane a interrompeu:
— Mas estão tentando realizar isso às expensas de Terra, que vai
ficar estorricada, se essas experiências não forem sustadas
imediatamente!
Após uma pausa de alguns minutos, a mulher disse:
— Isso eu não sabia. McLane respondeu:
— Posso prová-lo. Eu trouxe provas científicas irrefutáveis.
— Vamos ter que examiná-las — prometeu Ela, vagamente.
— Mas, quando? Temos muito pouco tempo, minha senhora. O
caso é realmente urgente!
Por um momento, a voz dEla readquiriu a dureza costumeira.
— Isso por acaso é uma ameaça? — perguntou, admirada.
— A situação — explicou McLane, inabalável — está assumindo
proporções catastróficas.
Ela olhou para o comandante com uma expressão de espanto.
— Está querendo me forçar a tomar uma decisão, major? Não
deixou dúvidas quanto às alternativas: Ou Terra perece queimada ou
Chroma morre congelada. Não é isso? Bem, eu agora podia apelar
para o cinismo e perguntar: Quem deve sobreviver: o mundo pacífico
ou o mundo belicoso? O que seria melhor? No decorrer da sua história
Terra mostrou um milhão de vezes que não pode viver sem guerras.
Furioso, McLane respondeu:
— E a senhora mesma descende desse mundo!
— Essa afirmação só é correta até certo ponto — disse a mulher, e
deu um sorriso desdenhoso. — É válida em relação aos meus
antepassados. Mas não se aplica a mim.
— Essa agremiação feminina, aqui, que a senhora chama tão
orgulhosamente de "seu mundo" não tem nem meio milênio de idade.
É evidente, que Chroma é um rebento de Terra!
A resposta era um exemplo típico de lógica feminina:
— Um filho de pais que não prestam, só tem chance de se tornar
alguém, se puder crescer longe da influência desses pais.
A paciência de McLane esgotou-se. Começou a berrar.
— Ah, é?... — gritou, enfurecido — agora, para mim chega! Lá em
Terra, estamos sofrendo os efeitos de inundações catastróficas: o calor
aumenta porque as geleiras estão se derretendo; as selvas estão se
alastrando e vastas extensões já foram transformadas em estepes.
Epidemias vão irromper a qualquer momento... e a senhora fica aí,
sentada nessa gaiola de plantas ornamentais, a tecer considerações
filosóficas sobre o valor ou o desvalor de Terra! Posso saber onde
arranja tamanha arrogância?
Uma tentativa de homicídio não teria provocado um susto maior. A
primeira dama desse planeta empalideceu e apoiou-se no canto da
mesa. Fitou o comandante com olhos arregalados. Seus dedos
começaram a tremer.
— Não estou habituada — sussurrou — que um homem se dirija a
mim nesse tom!
Com voz trovejante McLane, retrucou:
— Infelizmente! É provável que seus jardineiros e astrônomos
calem a boca, intimidados, mesmo se têm outra opinião.
— O senhor ousa falar assim... McLane ainda estava possesso.
Tinha descoberto o ponto fraco naquela defesa aparentemente
impenetrável, e agora estava atacando esse ponto com toda as suas
energias.
— Agora quem fala sou eu! — gritou ele. — E a senhora vai
escutar direitinho o que eu acho desse ridículo circo de amazonas.
Pouco me importa, se depois vai me incorporar ou não ao seu batalhão
de anõezinhos decorativos!
Cliff nem se virou quando a porta atrás dele foi aberta com
violência. As duas moças, que o tinham acompanhado, entraram na
sala e olharam para Cliff com um ar do mais puro espanto, mas
também com uma boa dose de admiração. Aparentemente até hoje
nenhum homem havia berrado tão alto nesta casa como Cliff, cujos
argumentos, nem por isso, se tornavam menos válidos.
— Fechem a porta! — gritou Cliff.
A porta foi fechada pelo lado de fora. Cliff estava ofegante. A
mulher diante dele tinha recuperado o controle e agora sorria
ligeiramente. Voltou para a escrivaninha, sentou-se e entrelaçou os
dedos. Levantou o queixo, indicando uma poltrona diante da mesa.
McLane acomodou-se confortavelmente.
— Fale, major McLane! — disse Ela e recostou-se.
Cliff Allistair McLane sabia que tinha vencido...
Chroma era um mundo de cores difusas e leves, de tom pastel. O
planeta era um pouco menor que Terra, e girava em torno do seu sol a
uma distância de 1,52 unidades astronômicas, o que, no sistema
terrano, correspondia aproximadamente à distância da órbita de Marte.
Esse sol estava situado sobre uma linha que, partindo do sol terrano, se
estendia através do plano da trajetória do sistema Ross 614A e B e
tinha um comprimento de 15 anos-luz. Evidentemente, Terra conhecia
as coordenadas daquele sol. Mas nunca alguém se dirigia para lá, pois
não apresentava o menor interesse.
Esse sol, do tipo K-O, e que acusava uma temperatura efetiva de
4.000°, não era brilhante, nem rico em energia. Daqui a alguns
milhares de anos, não teria mais capacidade para aquecer o planeta. E
o planeta Chroma, o único que este astro possuía, até agora não havia
sido descoberto.
— Bem — disse Ela, depois que McLane tinha terminado sua
explanação. — Isso faz sentido.
— Pelo visto, também não está a par daquele outro perigo, que no
momento ameaça, todos os homens em todos os planetas? —
perguntou Cliff, sombriamente. — Não ouviu falar dos extraterranos,
dos estranhos? Ou dos "sapos", como às vezes são chamados?
Ela sacudiu a cabeça.
— Não ouvi falar, não. Quem são eles? McLane teve que dar uma
nova explicação.
— Estou convencido — disse ele, finalmente — de que as suas
poucas naves não poderiam impedir que Chroma fosse atacada e
destruída. Se alguém puder impedir isso...
— ...então esse alguém é o senhor? — perguntou Ela.
— Não sou eu, não — respondeu Cliff. — Apesar da impressão de
que pudesse ser eu. Esse alguém é Terra. E somente Terra, com o
potencial de sua frota, poderia proporcionar uma defesa eficaz a
Chroma. Mais ninguém.
McLane relatou o incidente em MZ-4, e o caso daquele planeta em
chamas, que os estranhos tinham colocado num curso de colisão com
Terra. Narrou o episódio dos robôs influenciados, e contou a triste
história dos homens, que estavam prontos a desertar, por se
encontrarem dominados pelo raio telenótico dos extraterranos.
— Estou começando a ver a sua missão com outros olhos
comandante — disse a mulher à sua frente.
— Isso me alegra — respondeu McLane. — Qual é a sua decisão?
Ela encolheu os ombros bem formados.
— Ainda não sei. Preciso refletir mais um pouco.
— Ficaria muito grato — observou Cliff com sarcasmo — se
Vossa Alteza pudesse refletir rapidamente!
Ela o encarou com um sorriso franco e respondeu:
— Eu vou ver o que posso fazer.
7
ESTA noite era diferente das outras. Havia uma nota dissonante.
As pessoas que estavam sentadas em torno da mesa naquele nicho,
sentiam que algo faltava, ao mesmo tempo que havia algo demais. A
barulheira. Era quase meia-noite. No cassino Starlight, reinava uma
animação decididamente exagerada. Tinha atingido o auge. Não se
poderia tornar mais frenética e mais barulhenta do que agora. As pistas
de dança pululavam de pares, que se contorciam aos ritmos de Tomas
Peter. Homens e mulheres acotovelavam-se nos bares, entornando
quantidades incríveis de bebidas alcoólicas. Os alto-falantes berravam
a pleno volume, tentando subjugar a vozeria daquela multidão
excessiva, que povoava os diversos níveis do enorme estabelecimento.
Era como se todos, que habitavam o vasto complexo situado entre
Burketown, Endeavour Straight e as ilhas Wessel, estivessem
festejando ao mesmo tempo. Festejando o quê? Certamente, não a
ausência do major Cliff Allistair McLane. Fazia três dias que a Orion
VIII havia pousado na Base 104. Atan Shubashi, que trajava o bem
cuidado uniforme de gala, dirigiu-se ao marechal Wamsler, sentado à
sua frente.
— Gostaria de fazer uma pergunta, marechal — disse ele, em voz
alta.
O estado de ânimo de Wamsler não podia ser melhor. A toda hora
soltava uma das suas risadas retumbantes. Envergava o uniforme com
a displicência de um homem, que não precisava pagar do próprio
bolso pelo fardamento oficial.
— Pois não, Shubashi, pode perguntar — disse ele.
— Afinal, qual foi a opinião da Suprema Comissão Espacial? —
perguntou Atan.
Wamsler soltou outra gargalhada e largou a palma da mão na
mesa, quase derrubando os copos.
— Falar, quase não falaram — respondeu.
— Sim, mas...
— Mas que riram, riram! Riram tanto, quanto eu agora. McLane
sozinho em Chroma! Sozinho com meio milhão de mulheres birutas!
McLane em Chroma, isso é...
Não se conteve e caiu em nova gargalhada. Tamara forjou um
sorriso cortês. Exatamente aquele sorriso, que exibia perante um
superior crente de estar divertindo todo mundo com suas piadas. Helga
olhou para Wamsler e sacudiu a cabeça, num gesto de desaprovação.
— Não estou achando isso tão engraçado assim, não! — disse ela,
contrariada.
— E por que não, tenente Legrelle? — gritou Wamsler, ainda
gargalhando.
— Ninguém sabe o que estão fazendo com o coitado do Cliff lá em
Chroma!
— Isso depende das circunstâncias — respondeu Hasso
tranqüilamente.
— É precisamente a resposta que eu ia dar! Depende das
circunstâncias. Veja! Temos a consciência meio pesada e pretendemos
ajudar esse pessoal em Chroma. Provavelmente, parte da frota vai ser
enviada para aquela região, sob o pretexto de realizar manobras. Na
realidade, vai aumentar a segurança de Chroma. Segurança contra os
extraterranos, é claro.
— Pela lua de Mercúrio! — disse Mario, estupefato. — Não é que,
de repente, Terra resolveu mostrar o seu lado bom?
Wamsler ergueu a mão.
— E tem mais. Naturalmente vamos permutar programas de
pesquisa. Por exemplo: estamos tremendamente interessados naquele
raio, com que desviaram a energia do nosso sol. Vamos manter um
intercâmbio constante de cientistas e técnicos.
Tamara zombou.
— Isso vai deixar aquelas senhoras um bocado contentes! — disse
ela.
— Com certeza! — afirmou Mario.
— Pode ter razão — disse o marechal Wamsler, em meio a outro
acesso de riso. — É de se supor, que nem todas as mulheres em
Chroma sejam velhas!
Desta vez a risada foi geral. Mario ergueu o copo e segurou-o
contra a luz. Olhou através daquele líquido amarelo dourado e parecia
estar às voltas com pensamentos profundos.
— Uma coisa eu não entendo — disse ele, com voz abafada.
— Eu também não entendo muita coisa — disse Atan, tentando
consolar o companheiro. — Posso ajudá-lo?
Mario sacudiu a cabeça larga.
— Dificilmente!
— De que se trata? — perguntou Helga Legrelle, que estava
esperando dançar com Mario, como Cliff havia sugerido.
— Eu não entendo por que essa suprema mandatária não examinou
toda a tripulação da Orion. Era o mínimo que ela devia ter feito!
— Não foi preciso — disse Tamara, reservada; imaginava o que
viria agora.
— E por que não?
Mario olhou para Tamara com olhos grandes e tristes.
— Ela teve ensejo de conhecer dois membros da tripulação e
estendeu suas conclusões aos demais. Foi isto que aconteceu. Ela
estava convencida que todos nós éramos tão bonzinhos e capazes
como o major McLane. Mesmo assim — insistiu o subcomandante —
ela devia ter visto todos nós!
— Agora que eu estou começando a ficar curioso! — observou
Hasso.
— Assim, ela me teria conhecido, antes de nomear um oficial de
ligação.
— Entendo — disse Helga e riu maliciosamente. — Você acha
que, nesse caso, ela teria escolhido você, e não Cliff?
— Evidentemente. Você tem dúvidas? Helga agarrou o braço de
Mario.
— Venha — disse ela. — Você pode me seqüestrar para uma
dança, antes que toda a tristeza da galáxia desabe sobre sua cabeça.
Mario colocou o copo na mesa e arrastou Helga Legrelle para a
pista de danças.
— Falando sério — perguntou Tamara.
— Quanto tempo Cliff vai permanecer em Chroma?
Wamsler encolheu os ombros.
— Meio ano, no máximo. Depois, vou ter que chamá-lo de volta;
não posso esquecer que ele foi removido em caráter punitivo para a
Patrulha Espacial. E isso me obriga a selecionar novas tarefas para ele.
Mas estou convencido de que o major McLane vai ter uma
participação decisiva no fomento da cooperação entre Chroma e Terra.
— É exatamente isso que eu receio — murmurou Tamara e acenou
afirmativamente, quando Wamsler a convidou para dançar. A esta
altura, recorreria a qualquer meio para se distrair.
Seis meses sem Cliff McLane. Seis meses sem brigas... seis meses.
— Você reparou alguma coisa, Hasso? — perguntou Atan
Shubashi, curioso.
— Eu vivo reparando coisas. O que eu devia ter reparado hoje de
noite?
Atan apontou o indicador para Hasso e disse em tom misterioso:
— Houve alguma coisa entre Cliff e Tamara, pode crer.
Hasso, acenou, concordando.
— O que há entre eles é sempre a mesma coisa: desavenças.
Atan sacudiu a cabeça energicamente.
— Desta vez, houve algo de especial.
Hasso fez um gesto meio descrente.
— Só se for uma briga mais violenta que as outras — disse ele e
virou o copo. — Mais do que nunca estou convencido que esses dois
nutrem uma aversão especialmente cordial um pelo outro.
Wamsler e Tamara voltaram da pista de dança. Wamsler
transpirava profundamente, enquanto Tamara não mostrava qualquer
sinal de cansaço.
— Foi uma noite encantadora — disse o marechal. — Espero que
consegui contribuir um pouco para isso. Mas vejo que já são duas da
manhã. Está na hora de um homem velho ir para a cama. Muito grato,
minha cara.
— Não há de quê, marechal — respondeu Tamara, bem educada.
— Foi um prazer.
Com um aceno jovial Wamsler despediu-se do garçom e de alguns
conhecidos seus, e desapareceu com passos inseguros na direção de
um dos elevadores que levavam à rede de galerias submarinas da Base
104.
A roda ficou reduzida a Helga, Atan, Mario e Tamara.
— Mario — disse Tamara. — O senhor tem um carro. Poderia me
levar em casa?
— Já quer ir? — perguntou Helga.
— Quero, sim. Já é tarde e eu estou cansada.
— Está bem — disse Mario de Monti. — Então vamos.
Despediram-se dos amigos e abriram caminho por entre as mesas e
os pares dançantes até a escada rolante que descia ao estacionamento.
Minutos mais tarde, Mario freou o carro diante do enorme prédio de
apartamentos.
— Muito bem — disse ele. — Mais uma tarefa concluída. Graças à
nossa intervenção, o planeta Chroma escapou ileso.
Tamara acrescentou, séria:
— E nós temos três semanas de férias pela frente. O que vai fazer?
Mario encolheu os ombros, indeciso.
— Vou praticar esportes, botar o sono em dia e passar as noites no
cassino em companhia das moças das diversas ante-salas.
— O senhor é um sujeito feliz, que não complica as coisas — disse
Tamara, com um traço de amargura.
— O que mais um pobre solteirão da Navegação Espacial pode
fazer? — respondeu Mario com outra pergunta.
— De alguma maneira tem razão. Vamos nos ver em breve?
— Prometo chamá-la se me ocorrer algo de interessante.
— Ótimo! — respondeu Tamara e despediu-se com um aperto de
mão. — E obrigado pela carona!
Mario fez uma continência displicente.
— Disponha sempre, camarada Jagellovsk — respondeu.
Tamara desceu e por alguns segundos ainda ficou olhando atrás do
pesado carro que se perdia rapidamente na distância. Depois chamou o
elevador e subiu ao centésimo décimo primeiro andar. Abriu a porta
do apartamento e estava em casa. Em casa, com a música de Tomas
Peter... com a "Psicologia dos Astronautas" de Hammersmith... com a
vista deslumbrante sobre metade de Groote Eylandt. Estava em casa...
e estava só. Sem Cliff McLane.
***
As coordenadas: Um/Sul 019. Ninguém mais pensava naquela
estrela, naquele anão vermelho e seu satélite que, em conjunto,
formavam o sistema Ross 614A e B. Um planeta e um sol de brilho
embotado giravam em torno de um centro de gravidade comum. A
uma distância de treze anos-luz de Terra, a dois anos-luz de Chroma.
E como na opinião geral aquele incidente em Chroma tinha sido
encerrado, graças à intervenção corajosa do major McLane, poucas
naves se dirigiam a essa região do espaço. E isto foi um erro.
Ross 614 A e B encontravam-se exatamente no centro de um longo
e tubular corredor, invisível na solidão do universo, mas nem por isso
menos perigoso. Nas profundezas da Via Láctea, originava-se uma
torrente constituída de partículas minúsculas e que há anos vinha
atravessando aquele sistema em direção ao planeta Chroma. Pressão
de radiação...
A perda de massa de uma estrela pode ser ocasionada também por
pressão de radiação. No caso, a radiação era emitida pela própria
estrela: um sol desconhecido, muito claro, situado nas proximidades
da barreira de hidrogênio. Sobre qualquer superfície, por menor que
seja, essa radiação exerce uma determinada pressão que pode ser
medida. E como a estrela emissora era enorme, luminosa e rica em
energia, a pressão resultante apresentava valores condizentemente
altos. E entre as partículas, que aquela radiação arrastava, uma se
distinguia por suas propriedades físicas especialmente perigosas: era
hidrogênio. E uma força inconcebível impelia esse hidrogênio para a
região em torno do sol Xun, que estava morrendo lentamente. Cliff
McLane e a primeira dama de Chroma encontravam-se nas
proximidades daquele sol agonizante. Então, Cliff descobriu o
hidrogênio.
***
Dezessete dias após a partida da Orion VIII de Chroma. A nave
enviada por Terra já havia chegado com sua carga preciosa, que
incluía um grande número de funcionários do governo. Ela havia
aceito a sugestão de Cliff e recebeu a tripulação em audiência,
agraciando-a, não com condecorações, mas sim, com um longo
período de férias. Depois Cliff pediu a nave emprestada e decolou em
companhia de Ela, a fim de realizar análises mais precisas com auxílio
de aparelhos terranos.
— Há anos — disse ele — que o hidrogênio está sendo impelido
para este distrito espacial.
— Eu não entendo.
Cliff apontou para a tela central. Um monitor especial, que só
mostrava essa massa gasosa, revelou a extensão do espaço já ocupado
pelo hidrogênio.
— Eu sou tudo, menos um astrofísico — disse Cliff, pensativo —
mas é claro que tive que aprender algumas coisas a respeito da origem
dos sóis.
Ela deu um daqueles sorrisos perturbadores.
— Não há nada mais importante a discutir que o nascimento de
uma estrela?
Cliff devolveu o sorriso.
— No momento, não.
Ela reclinou-se graciosamente e disse, baixinho:
— Então, por favor, exponha a sua teoria, major!
— A força de gravitação pode compactar aquele hidrogênio. Se a
pressão no interior for suficientemente alta, origina-se um sol. É claro
que isso é um processo que não passa despercebido e que dá um
bocado o que falar.
— É perigoso?
— É, sim. Para Chroma. Se os seus técnicos conseguirem levar o
hidrogênio para o interior da estrela, vão aumentar a sua força de
radiação, já que vai haver uma maior produção de núcleos de hélio. É
claro que eu não sei precisamente que quantidades, temperaturas e
forças são necessárias para isto. Mas o processo já foi iniciado.
Cliff bateu com a unha do indicador sobre a tela central. Via-se o
seguinte quadro: uma esfera, prolongada por duas protuberâncias que
apresentavam comprimento e espessura diferentes. Uma dessas
protuberâncias apontava exatamente na direção de Chroma e
situava-se sobre a trajetória que esse planeta descrevia em torno do sol
Xun.
O outro prolongamento apontava para o espaço cósmico. Apontava
mais ou menos para a região, na qual se devia localizar o centro da Via
Láctea. E no centro da esfera...
— Estou vendo — disse a mulher ao lado de Cliff. — O que
significa essa esfera?
— O centro dessa esfera é o sol de Chroma.
Não havia dúvida que a física não era o forte de Ela. Perguntou
insegura:
— Isso significa que a força gravitacional do sol já atraiu o
hidrogênio? Então, por que ainda estamos vendo a estrela?
McLane apontou para os aparelhos especiais, que estavam
conectados à tela. Eram aparelhos terranos, e estavam sendo
empregados aqui, para apressar o exame das numerosas possibilidades
de uma ação de salvamento.
— Porque a concentração do gás é muito fraca. Somente aparelhos
da mais alta precisão podem determinar uma densidade tão diminuta.
— Isso já seria o segundo plano!
Cliff acenou. Um dos planos aventados previa deslocar o
planetóide NI 16A de alguns anos-luz. Depois que se encontrasse no
campo gravitacional do sol, seria transformado numa fonte de
radiação, mediante uma gigantesca explosão atômica. O outro plano
tinha sido concebido neste instante: enriquecer Xun com hidrogênio.
— Com esse afluxo de núcleos de hidrogênio Xun poderia voltar a
produzir núcleos de hélio. O poder luminoso aumenta-
j ria, como no caso do sol terrano manipula-, do. E o clima em
Chroma também melhoraria. O sol estaria salvo por milênios. Ela
sacudiu a cabeça, incrédula.
— E tudo isso o senhor acabou de descobrir agora, Cliff?
— Eu não — disse ele. — O senhor Einstein, de saudosa memória,
já sabia disso. Mas eu lhe aconselho mandar calcular, a todo o vapor,
qual desses planos tem mais chance de êxito. Ou se podemos pôr em
prática os dois planos ao mesmo tempo, pois existe um perigo
envolvido nesse negócio todo. O hidrogênio está como que desgarrado
e constitui uma permanente ameaça para a atmosfera de Chroma. Se
chegar a afetá-la, todos os esforços terão sido em vão.
— Vou tomar providências imediatas!
McLane religou a tela para visão normal, acelerou a nave, e a fez
seguir um curso que os levaria de volta a Chroma. Sabia que teria
muito trabalho pela frente. Um trabalho que não poderia ser realizado
sem o auxílio de Terra.
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