Apesar de contar com uma produção consistente desde meados do século
XVIII, a música clássica no Brasil demorou para seguir os caminhos
abstratos do profano. Parte no processo de colonização que se iniciou no século XVI, a Igreja Católica em grande medida introduziu e quase sempre fomentou no país (então colônia de Portugal) somente a música sacra. Foi só após a vinda da Corte portuguesa para o Brasil, em 1808, que a música clássica secular começou a ocupar mais espaço. Seria por volta de 1810 que Gabriel Fernandes da Trindade teria escrito três Duetos Concertantes para dois violinos, os mais antigos registros de música de câmara no Brasil. A independência brasileira, em 1822, e sobretudo o reinado de Dom Pedro II (1840-1889) daria ainda maior fôlego para esse movimento, resultando, no fim do século XIX, em uma produção de câmara crescente. Dentro da linguagem romântica que floresceu, a formação de trio para violino, cello e piano imprimiu-se de grande relevância, como resultado do esforço dos melhores compositores da época, como Henrique Oswald, Alberto Nepomuceno, Alexandre Levy, Glauco Velásquez e Francisco Braga.
Heitor Villa-Lobos (1887-195), nos primeiros anos de carreira,
acompanharia esses compositores: escreveu três caudalosos trios entre 1911 e 1918 em uma linguagem francamente pós-romântica, afinada com a estética impressionista francesa da época. O Trio nº2, de 1915, apresenta apenas lampejos extremamente rarefeitos da brasilidade que faria Villa- Lobos conhecido mundo afora. Pela ausência dessa brasilidade, o trio é com frequência marcado pela pecha de obra de juventude. Nada mais errôneo. Em sua olimpiana leveza, encontra-se peça de um grande compositor, de sonoridade quase orquestral e já madura na estética e em vários procedimentos musicais villa-lobianos. Apesar de sua linguagem ainda romântica e de seu formato clássico, em quatro movimentos, a obra demonstra arrojo experimental na pesquisa de texturas, timbres e ressonâncias. A isso se associa um segundo elemento da experimentação típica de Villa-Lobos: a escrita ágil, inventiva e sinuosa se conforma no limiar entre a linearidade de um fluxo expressivo, como se a música seguisse contínua como um rio, e a dispersão da torrente de temas propositadamente não desenvolvidos. Vencidas as enormes dificuldades técnicas e interpretativas que a partitura impõe, aflora uma inusual unidade, evidente tecnicamente no tratamento temático, com recorrência das 5as justas e da escala de tons inteiros, mas que se evidencia na atmosfera obcecadamente luminosa e, sobretudo, arrebatadora.
Já o Trio em sol menor de Francisco Braga (1868-1945), se guarda em
comum com Villa-Lobos uma linguagem romântica, não está preocupado em romper mas, sim, em avançar pela via da tradição. Escrito em 1930, quando o modernismo nacionalista era no Brasil a estética em voga, seu trio seguia ainda um estilo mais acadêmico e europeu, fruto de um compositor já maduro. Braga era reconhecido como autor de um dos principais hinos brasileiros — o Hino à Bandeira — e era professor do Instituto Nacional de Música do Rio de Janeiro (INM), então a principal escola do gênero no país. Apesar de sua forma acadêmica, o trio não é de forma alguma passadista ou desprovido de inspiração. Ao contrário, é um dos mais expressivos e líricos já escritos no Brasil. A densidade dos dois primeiros movimentos, Andante e Allegretto Spirituoso, carrega grande frescor, num claro exemplo de romantismo tardio contaminado pelo moderno. O 3º movimento tem o título de “Lundu”, um gênero musical de origem africana que se desenvolveu no Brasil, numa demonstração da influência do nacionalismo sobre a música de Braga. E o 4º e final movimento, Allegretto, retoma materiais do 1º e do 3º em uma rítmica incisiva e dançante que guarda muito da música popular brasileira.
O trio de Braga, porém, fazia só concessões ao nacionalismo, enquanto o
Trio Miniatura de Radamés Gnattali (1906-1988), de 1940, é desbragado em seu esforço de criação de uma identidade nacional brasileira. Das 5 obras para violino, cello e piano que escreveu no percurso de sua vida, é o Trio Miniatura o mais perfeito exemplar desse movimento estético. Gnattali, apesar de nascido no sul do Brasil, fez carreira no Rio de Janeiro, onde foi arranjador de música popular para rádios e TVs. Nesse trabalho foi o principal responsável por uma maneira brasileira de se orquestrar, que o levou a conviver com muitos artistas populares vindos do norte do Brasil. O trio, uma pequena joia da música de câmara brasileira com dois movimentos extrovertidos de 3 minutos ensanduichando um lento expressionista — de menos de um minuto —, é prolífero em temas do Nordeste do Brasil. Mas na amálgama nacionalista também preza a herança europeia, forte no sul do país — como seu sobrenome italiano indica. Além disso, em um gosto pela leveza da música popular, o trio — e praticamente toda a obra de Gnattali —, mesmo quando denso e soturno ou ao empurrar o corpo à dança, sempre zelosamente se mantém dentro dos limites do mais aprazível equilíbrio.