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ISSN 2175-3172

Música na
Educação
Básica

Volume 10
Número 12
na educação básica

Editora: Cecília Cavalieri França


na Ricardo
educação
Editoração: da Costabásica
Limas

Revisão de português: Priscilla Morandi do Nascimento
e Helena Terra
Revisão de inglês: Duo Translations
Revisão de originais: Cecília Cavalieri França e autores(as)
Periodicidade: anual

Londrina:na
ÚSICA
Música na educação básica. vol. 10, n. 12.
Educação
Associação Básica
Brasileira de Educação
Musical, 2020

na educação básica Início out. 2009.


Anual
ISSN Online: 2594-5181 | ISSN impresso 2175-3172
1. Educação musical 2. Educação 3. Música

VOLUME 10 • Nº 12 • 2020 CDU 37.015:78

Elaborada por Anna Claudia da Costa Flores – CRB 10/1464 – Biblioteca


Setorial do Centro de Educação/UFSM

na educação básica

Associação Brasileira de Educação Musical - ABEM


Rua Caraibas, 211 - Sala A
86026-560 - Vila Casoni - Londrina - PR

www.abemeducacaomusical.com.br
V. 10 Nº 12 2020
Música na Educação Básica Música na Educação Básica

Índice | Contents




DIRETORIA DA ABEM (2018 - 2019)
Presidente: Prof. Dr. Marcus Vinícius Medeiros Pereira – UFJF
Vice-Presidente: Prof. Dr. Vanildo Marinho - UFPB
Tesoureira: Profa. Dra. Edineiram Maciel - UNEB
06 Encontro com Carlos Kater:
vida em movimento e “A Música da Gente”
Encounter with Carlos Kater: Life in movement and
“A Música da Gente”
Segundo Tesoureiro: Prof. Dr. Evandro Rodrigues Higa (UFMS) Stênio Biazon
Secretário: Prof. Dr. Mário André Wanderley – UFRN

30
Segunda Secretária: Profa. Dra. Carla Santos - UFPB
BNCC e educação musical:
CONSELHO EDITORIAL muito barulho por nada?
Presidente: Profa. Dra. Nair Aparecida Rodrigues Pires - UFOP BNCC and music education: much ado for nothing?
Editora Revista da ABEM: Profa. Dra. Cristiane Galdino - UFPE Cecília Cavalieri França
Editora da MEB: Profa. Dra. Cecília Cavalieri França - MUS Consultoria
Membros do Conselho: Profa. Dra. Cláudia Bellochio - UFSM

48
Profa. Dra. Luciana Del-Ben - UFRGS Harmônica: uma opção no
Profa. Dra. Delmary Abreu - UnB ensino de música para as crianças
Harmonica: an option in teaching music to children
DIRETORIA REGIONAL José Staneck
Norte: Profa. Dra. Jéssica de Almeida - UFRR
Nordeste: Prof. Dr. João Emanoel Benvenuto - UFC



Centro-oeste: Prof. Dr. Paulo Affonso Marins - UnB
Sudeste: Profa. Dra. Helena Lopes - UFMG
Sul: Profa. Dra. Cristina Rolim Wolffenbüttel - UERGS
60 Epu’ã! Levante-se! ou o que os Guarani
Mbya podem nos ensinar sobre o fazer
musical e sobre educação musical
Epu’ã! Stand up! or what Guarani Mbya can teach us
CONSELHO FISCAL
about music making and about music education
Presidente: Prof. Dr. Jean Joubert - UFRN
Daisy Fragoso
Membros do Conselho: Profa. Dra. Flávia Candusso - UFBA
Profa. Dra. Solange Maranho Gomes - UNESPAR

74 Possibilidades de ensino remoto de


Prof. Dr. Fernando Galizia - UFSCar
Suplentes do Conselho: Profa. Dra. Adriana Mendes - UNICAMP
Prof. Dr. Fábio Henrique Ribeiro - UFPB
música na educação básica pautadas
Prof. Dr. Marcos Ferreria - IFBA no material Música Br.
Possibilities of remote music teaching in basic
CONSULTORES AD HOC (2020) education based on the material Música Br.
Aline da Paz Ronaldo Aparecido de Matos
Carlos Elias Kater

96
Cleusa Cacione
Fernando Galizia Música na educação do campo:
Gilka Martins superando estereótipos e aprimorando a
Juciane Araldi Beltrame
Juliana Maria Campelo Lima Chrispim
escuta musical por meio da criação de playlists
Music in Rural Education: overcoming stereotypes and
Luís Alberto Bavaresco de Naveda
improving musical listening through the creation of playlists
Magali de Oliveira Kleber
Luana Oliveira
Marcus Vinícius Medeiros Pereira
Maria Cecília Cavalieri França
Rodrigo Batalha
Sílvia Sobreira
Wladimir Marques

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Música na Educação Básica V. 10 Nº 12 2020
Música na Educação Básica

entrevista
Música na Educação Básica

Música na Educação Básica

Música na Educação Básica

Encontro com Carlos Kater:


vida em movimento e
“A Música da Gente”
Stênio Biazon
Doutorando em Processos de Criação
Musical - Sonologia - USP

Encounter with Carlos Kater: Life


in movement and “A Música da
Gente”
Resumo
A entrevista trata do projeto “A Música da
Gente” (AMDG), com ênfase em suas edições
realizadas pelo Brasil sob o título de “A Música Abstract
da Gente na Educação Musical do SESC” em The interview talks about the project “A
escolas SESC, entre 2017 e 2018. Carlos Kater, Música da Gente” [“Our Music”] (AMDG)
coordenador e criador do projeto que nasceu and emphasizes its previous editions, held in
em 2013, situa a importância da realização de different Brazilian States in SESC’s Schools
práticas coletivas de criação musical entre não- under the name “A Música da Gente na
músicos, principal atividade do projeto, como Educação Musical do SESC” between 2017 and
parte do conhecimento de si e do cuidado 2018. Carlos Kater, the project’s creator and
consigo mesmo, bem como as estratégias de coordinator since 2013, stresses the importance
viabilização destas práticas em localidades of collective musical practices among non-
mais diversas, para além das capitais. Nas musicians, which are the project’s major activity,
escolas SESC – distribuídas nos polos Distrito as a part of self-knowledge and care of the self.
Federal, Santa Catarina, Pernambuco e In SESC Schools – located in the Federal District,
Pantanal, contemplando a Educação Infantil, o Santa Catarina, Pernambuco and Pantanal ,
Ensino Fundamental I e II e a EJA –, o projeto and offering Preschool Education, Elementary
contou, além do Curso Presencial de Imersão School and Adult Education – the project, in
oferecido aos educadores (em sua grande addition to the Face-to-face Immersion Course
maioria não-músicos) que implementaram o provided to educators (mostly non-musicians)
projeto, com a coordenadoria remota regular who had implemented the project, counted on
de C. Kater por meio de ferramentas digitais a regular remote coordination from C. Kater
de comunicação. Uma das maiores potências through digital communication technologies.
do AMDG está em fazer uso das tecnologias One of the biggest AMDG’s potencies is the use
digitais para favorecer a presença de práticas of digital technologies to favor the presence of
musicais inventivas no ensino básico a despeito inventive musical practices in regular schools,
de a presença de educadores musicais nas despite the absence of music educators in
escolas estar dificultada pela legislação schools because of the Brazilian legislation,
brasileira, que trata a música como linguagem which treats music as language or content,
ou conteúdo e não como disciplina específica. rather than as a specific discipline.

Palavras-chave: Educação musical no Keywords: School music education. Musical


ensino básico. Práticas de criação musical. creation practices. Remote supervision of
Orientação remota de educadores. Projeto educators. A Música da Gente project [“Our
A Música da Gente. Music”].

BIAZON, Stênio. Encontro com Carlos Kater: vida em movimento e “A Música da Gente”. Música na Educação
Básica, v. 10, n. 12, 2020.

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Música na Educação Básica
entrevista V. 10 Nº 12 2020

invenção musical. Tratam-se de propostas ção Musical do SESC”, tem ainda tamanha
Introdução Para mais informações que procuram se abrir ao surpreendente relevância na realidade do território brasilei-
sobre Carlos Kater, ver: que emerge nos encontros inéditos entre ro ao viabilizar práticas de criação musical
A presente conversação com Carlos Ka- https://www.carloskater.com.br/
indivíduos com suas singularidades em mo- coletiva no ensino básico orientadas por
ter (1948) tem como assunto “A Música da
vimento, permitindo que isto se materialize educadores sem formação musical prévia,
Gente” (AMDG), projeto de educação mu-
não apenas em composições musicais mas questão urgente diante das particularidades
sical iniciado em março de 2013 em escolas música é uma “linguagem” do componen-
também em transformações na vida de da legislação brasileira, conforme mencio-
municipais de São Bernardo do Campo/SP, te curricular Arte, junto às Artes Visuais, a
cada um. Desfrutar de situações em que as nado previamente. Para tal, o projeto recor-
realizando sobretudo práticas de criação Dança e o Teatro (Ribeiro, 2018).
práticas artísticas se dão a partir de inven- re especialmente à coordenadoria remota,
musical coletiva.
O ensino de música em especial, é sabido, ções coletivas favorece que façamos algo realizada pelo professor Carlos Kater, que,
Kater, coordenador e criador do projeto, tende a basear-se na reprodução, isto é, na- similar com nossas vidas? É este tipo de durante a vigência do projeto, prestou su-
trata aqui conosco especialmente de suas quilo que já é previamente conhecido e con- questão que “A Música da Gente” nos traz. porte regular aos professores – no geral de
edições realizadas pelo Brasil junto às es- solidado2. Por um lado, isto ainda é comum formação em artes plásticas – na realização
O projeto, em especial em suas edições de composições musicais coletivas entre os
colas SESC (Serviço Social do Comércio), por conta da suposição de que a produção
intituladas “A Música da Gente na Educa- educandos.
também de ensino básico, entre 2017 e 2018 da música (seja a composição ou a impro-
sob o título de “A Música da Gente na Edu- visação) tem como pré-requisito saberes
cação Musical do SESC”. supostamente inalcançáveis por aqueles
que não tenham a música como ofício (fu-
É sabido que, desde 1996, com a Lei 1.934 turo, no caso da maior parte das crianças)
de Diretrizes e Bases da Educação Nacional ou como a chamada “vocação” prévia. Por
(LDB), a Música está incluída como parte do outro lado, isto é reflexo da predominância
componente curricular Artes, neste que se- dos modos de ensino musical que ignoram
ria o currículo “nacional”. A partir de 2008, as contribuições dos inúmeros experimen-
contudo, a Lei 11.769 reacendeu o debate talismos difundidos pelo século XX que, ao
sobre as práticas musicais no ensino básico, incorporarem o ruído, a chamada indeter-
uma vez que novamente se falou na presen- minação e alguns processos mais abertos
ça destas, mas sem necessariamente definir de invenção musical, questionaram o que se
a necessidade da disciplina Música. O texto entendia por música. Revelou-se ser a escu-
de 2008 nos fala na música como “conteú- ta o principal agente na definição do que é
do obrigatório, mas não exclusivo, do com- musical ou não e, com isso, foi favorecida a
ponente curricular”1. emergência de práticas de educação musi-
cal inventiva, inclusive entre não-musicistas,
A lei de 2008, contudo, teve seu artigo 2º
viabilizando ainda uma aproximação com o
vetado, o que implicou não ser exigida uma
universo e o modo de pensar próprio das
formação específica em música do profis-
crianças (Brito, 2003).
sional que viesse a ministrar este conteúdo
(Costa, 2013). Com isto, estava reiterada, en- Diante deste cenário, em que lamentavel-
tre algumas outras possibilidades, a expec- mente boa parte da educação musical, tam-
tativa por uma espécie de professor “poli- bém no ensino básico, insiste em ignorar as
valente” que ministraria a disciplina Artes, o capacidades inventivas dos educandos, um
que veio ser confirmado pela Lei 13.278 de projeto como o “A Música da Gente” mos-
2016 e sobretudo pela Base Nacional Cur- tra-se potente ao engajar seus participan-
ricular Comum (BNCC) de 2018, na qual a tes em processos coletivos de criação ou

1. https://presrepublica.jusbrasil.com.br/legislacao/93321/lei-11769-08
2. Cabe registrar que isto não decorre das prescrições das legislações, mas sim dos costumes, isto é, da forma como se entende o ensino musical,
uma vez que até mesmo na LDB de 1996 e na vigente BNCC de 2018 as práticas de “criação artística” são recomendadas.

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Música na Educação Básica
entrevista V. 10 Nº 12 2020

Stênio Biazon – É um prazer para mim po- Considero que a educativo, administração do processo, pla-
der tratar aqui deste projeto tão potente nejamento didático, criação de atividades,
que é o “A Música da Gente”. Sabemos que experiência mais formação continuada das equipes de tra-
ele possui várias edições e que ocorreu balho e professores das escolas envolvidas,
tanto em escolas municipais de São Ber-
completa que tive nesse elaboração e preparação de eventos etc. E
nardo do Campo em São Paulo, quanto em sentido se deu na criação não poderia deixar de mencionar, que o fato
escolas SESC em diferentes localidades do de eu ter tido amizade com Cecilia Conde
Brasil. Você poderia nos contar um pouco e coordenação do projeto e José Maria Neves – e conhecido o traba-
sobre como o projeto começou, quais fo- lho educativo que realizaram em favelas do
ram seus disparadores iniciais e a que de-
“Música na Escola”... Rio de Janeiro, em especial –, bem como Estados das localidades das
mandas ele respondeu? de música, ou “oficineiro”, passei a coorde- convivido com Hans-Joachim Koellreutter escolas SESC onde foi realizado
Carlos Kater – O projeto “A Música da Gen- por quase uma década – e me inteirado da o projeto nos anos de 2017 e
nar atividades culturais, que incluíram músi-
2018
te” foi criado com o objetivo de promover a ca, dança, capoeira e outras3 e pude criar a abrangência de seus empreendimentos e
música e sua criação por não-músicos, abar- primeira escola de samba da instituição, que contribuições para a música e a educação
cando modalidades diversas de expressão em fevereiro de 1977, saiu para desfilar na rua musical brasileira – tudo isso e todas essas e
musical e buscando incluir estilos trazidos em frente à antiga UT4 com música própria, outras pessoas mais, criaram marcas e mo-
pelos próprios participantes, como o rap e o bateria de percussões e passistas. No ano tivações em mim. Parte delas encontram-se Nacional e sob o título “A Música da Gente
slam. O projeto ocorreu não apenas em es- seguinte, na Europa, mantive uma relação reunidas no AMDG, como, por exemplo, a na Educação Musical do SESC”, ele foi re-
colas, mas também em múltiplos contextos. muito marcante com Paulo Freire, em Gene- questão do repertório musical a ser reali- alizado em 16 escolas de 4 polos espalha-
Ele foi iniciado em 2013, com alunos de 8 a bra, quando em resposta ao convite-desafio zado na escola regular (isto é, que músicas dos pelo Brasil – Pantanal, Distrito Federal,
11 anos de uma escola municipal da perife- dele para que eu concebesse uma “música trabalhar que informem sobre a riqueza do Santa Catarina e Pernambuco –, atenden-
ria de São Bernardo do Campo/SP – EMEB do oprimido” criei – junto com as crianças patrimônio brasileiro e das diversas culturas do inicialmente a mais de 4.000 pessoas,
Arlindo Miguel Teixeira – via Lei Rouanet, e jovens com que trabalhava no Atelier de do mundo, e ao mesmo tempo respeitem a em sua grande maioria crianças, mas tam-
com o patrocínio da Scania e do Ministério Expression Corporelle et Musicale, em Paris diversidade de representações culturais em bém adultos da EJA (Educação de Jovens
da Cultura, tendo sido implantado sem in- – uma música cênica que envolvia também a sala de aula, propiciando diálogos próprios e Adultos). Já em 2018, o projeto foi no-
terrupção até 2018 em instituições de diver- participação do público, “La Manifestation”.4 e originais), além da preocupação em opor- vamente realizado em 11 escolas SESC de
sas regiões do Brasil. O projeto surgiu como E claro, ela foi dedicada ao próprio Paulo Frei- tunizar o engajamento dos alunos, assim Santa Catarina e no segundo semestre
resposta a necessidades e inquietações que re! A estreia dessa música-evento se deu no como dos educadores, em relação ao cul- deste mesmo ano em 2 escolas no estado
emergiam de meu trabalho como educador “Primeiro Encontro Musical de Crianças da tivo de suas próprias musicalidades e, final- do Pará (simultaneamente à sua realização
musical, preocupado com questões sociais cidade de Paris” (1980), sob minha regência, mente e sobretudo, como conferir um papel em São Bernardo do Campo).
de meu tempo e também por estímulos que e, quando retornei ao Brasil, ela foi apresen- superlativo à Educação Musical, acolhendo,
tive pelo contato com algumas pessoas. tada no Festival de Música Nova, com mon- em seu bojo, o despertar para questões re- SB – E de que modo esta parceria se ini-
tagem e regência de Luzia de la Guardia, em lativas ao desenvolvimento humano, com ciou e o projeto foi implantado? Como
SB – Você poderia falar um pouco mais sobre Cubatão, a convite de seu criador e diretor base em práticas musicais criativas. se dava a sua atuação em relação a cada
essas inquietações e de onde elas vieram? Gilberto Mendes. Embora essas iniciativas uma destas localidades?
CK – Por exemplo, nos anos 1975 e 76, traba- tenham sido muito significativas para mim, SB – É muito interessante que esta multi- CK – “A Música da Gente” foi implantada
lhei na Febem – Fundação do Bem Estar do considero que a experiência mais completa plicidade de experiências tenha resultado em escolas do SESC, de fato como uma
Menor, que anteriormente se chamava Pró- que tive nesse sentido se deu na criação e no AMDG, um projeto realmente consis- parceria, a convite de Leonardo Moraes
-Menor, e possuía UTs (unidades de triagem) coordenação do projeto “Música na Esco- tente e que logo notou-se que ele poderia Batista, do SESC Nacional, que fez a co-
e UEs (unidades educacionais), no quadri- la”, implantado de maneira sistemática na favorecer outras pessoas noutras localida- ordenação institucional. O projeto obede-
látero do Tatuapé, reunindo menores aban- educação básica em Minas Gerais de 1997 a des por todo o território brasileiro, não é? ceu às seguintes etapas. Iniciou-se por um
donados e menores infratores. De professor 1999.5 Ela envolveu concepção de modelo Conte-nos, por gentileza, como se deram Curso Presencial de Imersão, durante uma
as edições realizadas pelo Brasil sob o tí- semana (40 horas), que ministrei para pro-
3. Essa coordenação cultural foi realizada em conjunto com Victor Flusser. fessores de Educação Infantil, Fundamen-
4. Para maiores informações sobre esta composição e para acesso à sua partitura, ver: https://www.carloskater.com.br/ tulo de “A Música da Gente na Educação
5. Esse projeto foi concebido realizado em equipe constituída por José Adolfo Moura, Rosa Lucia dos Mares Guia, Maria Betânia Parizzi, Maria Amália Musical do SESC”… tal I e II e EJA (estando presentes dois re-
Martins e Matheus Braga, no âmbito da Secretaria de Estado da Educação de Minas Gerais, de 1977 a 1999, envolvendo muitos profissionais da presentantes de cada escola a fim de dar
educação, escolas e alunos, gerando materiais didáticos e eventos de impacto em seu tempo. Ver, entre outros: “Projeto Música na Escola: proposta CK – Em 2017, em parceria com o SESC
para a implantação...”, in: Fundamentos da Educação Musical, Série 4, Salvador: ABEM, 1998, p.102-105. sustentação à fase seguinte, de implanta-

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ção).6 A Fase de implantação do projeto nos princípios mais necessários ao projeto. instrumentais e com percussão corporal,
foi realizada pelos professores participan- Você pode nos contar mais sobre o “Curso motivadas por estímulos de diversas natu-
tes do curso presencial anterior, em suas presencial de imersão”? rezas e realizadas em diferentes formata-
respectivas escolas junto às suas turmas, CK – Esta etapa foi decisiva, fundamental ções (individuais, em duplas, pequenos gru-
muitas vezes com a colaboração de outros para assegurar o bom desenvolvimento pos e coletivas). E claro, experimentação
educadores assistentes; simultaneamente à do projeto. Foram 40 horas, com vivência de modelos básicos de notação musical
implantação, fiz a coordenação à distância, intensa de propostas e atividades lúdicas, (não tradicional) para registro das criações
através de ferramentas de comunicação vir- voltadas para a experimentação sonora, inéditas realizadas pelos participantes. Em
tual – email e WhatsApp –, com estabele- criação musical, interpretação, formas de linhas gerais, os focos estruturantes do cur-
cimento de providências a nível conceitual, escrita e registro, construção de instrumen- so, do ponto de vista musical, fundam-se,
educativo, criativo e administrativo, dando tos. Apesar do tempo concentrado, o curso por um lado, no contato e conhecimento Auditório da escola SESC do DF (Taguatinga, 2017) – prof. Carlos Kater
orientando professoras durante o Curso de Imersão, na elaboração das
atenção especial às músicas criadas pelos ofereceu aos professores, por um lado, con- do patrimônio de invenções já constituídas partituras das criações musicais dos grupos de trabalho, antes de suas
participantes também ao longo de seus dições para descobrirem e desenvolverem e, por outro, na descoberta e exploração da apresentações com filmagem no palco
processos inventivos através dos registros os seus potenciais musicais e, por outro, um expressão própria dos participantes e dos
feitos pelos educadores. A “Etapa de Fina- laboratório para experimentarem o que rea- recursos necessários para que se efetive a SB – E quanto ao perfil dos educadores,
lização” deu-se com apresentação das mú- lizariam após o curso com seus respectivos criação musical. É isso o que cabe em pala- quem eram mais precisamente esses pro-
sicas e dos diferentes produtos gerados ao alunos ao longo do ano. Como os partici- vras aqui. fessores que participaram das formações
longo do processo, com minha participação pantes, em sua quase totalidade, não eram do AMDG nas escolas SESC? A maior parte
presencial na maioria dos casos. As apre- músicos, foi preciso recorrer a possibilidades deles não eram músicos ou professores de
sentações públicas do projeto e em especial de criação que não exigisse formação musi- música, mas sim professores de artes plás-
as de encerramento de ano têm dinâmica e cal prévia. Posso citar muito resumidamente ticas e professores de classe, certo?
personalidade próprias e não se restringem os pontos centrais de conteúdo do “Curso CK – Sim, os professores das escolas SESC,
apenas a apresentar seguidamente música presencial de imersão”: apresentação das que participaram das formações que minis-
a música, de grupo a grupo de alunos. Con- particularidades do projeto e fundamentos trei e que foram responsáveis pela implan-
cebidas sob forma de espetáculo, possuem presentes em suas edições anteriores, bem tação do projeto em suas respectivas es-
começo, meio e fim, bem como caracterís- como apreciação de experiências criativas colas, eram, na imensa maioria, professores
ticas de concepção, montagem e realização de projetos sócio-artístico-pedagógicos de Arte, raros com formação ou experiência
próprias. Assim, minha presença nesse en- afins aos princípios do projeto; vivência de musical regular. Isso inicialmente impôs cer-
cerramento final adquire importância para atividades lúdico-musicais, com jogos di- tos limites ao trabalho, como disse, uma vez
que a montagem do espetáculo garanta rigidos ao desenvolvimento da expressão que dificultava o tratamento de conceitos e
também aprendizados a vários níveis para pessoal e de atitudes colaborativas, focados questões musicais relevantes para o desen-
todos os envolvidos, sejam alunos e profes- no desenvolvimento da musicalidade dos volvimento do projeto, sem recorrer, assim,
sores participantes do projeto, como tam- professores, bem como na utilização pos- a definições e termos técnicos da música.
bém seus colegas, funcionários e a institui- terior junto a seus respectivos alunos em – Abro aqui um parêntese para dizer que
ção em geral. classe, por ocasião da implantação do pro- este fato não ocorreu nas versões do pro-
jeto nas escolas; Oficina de Construção de jeto realizadas em São Bernardo, quando
SB – Esta modalidade de ensino baseada Instrumentos Musicais não convencionais; eu próprio convidei e preparei os membros
em orientações à distância certamente Laboratório de Expressão Sonora e Criação para integrar minha equipe de trabalho na
exigiu uma preparação especial e focada Musical, contemplando proposições vocais, condição de músicos-educadores7, parênte-
se fechado! – No entanto, esse desafio de
6. Citamos a seguir apenas o nome dos professores participantes que se responsabilizaram diretamente pela implantação do projeto junto às suas favorecer que não-músicos façam, enten-
turmas de alunos nas escolas SESC participantes do projeto: DF: Gabriela Silva (Gama), Gloria de Fatima (Taguatinga), Ivana N.de Carvalho (Tagua- Desenho de Vitor, criança participante do projeto no DF, ilustrando alguns
tinga), Ketty Nascimento (Ceilândia), Luciana Ribeiro e Gabriel Lira (Taguatinga), Maria Helena Silva Sá (Gama), Paulo Afonso (Taguatinga) e Sara Lu dos instrumentos presentes no AMDG, como tubos de PVC com diferen- dam, criem música, permitiu que várias es-
(Ceilândia); Pantanal: Katia Cirleyde, Juliana Moraina, Priscila Karen, Maura Flavia e Laís Carolina (Poconé); PE: Anselmo e Isaías Trajano (Goiana); tes afinações, garrafões de plástico de água e flautas harmônicas
tratégias fossem aplicadas e a situação su-
SC: Adriana Bruxel, Cimara (Rio do Sul), Adriana e Aline Bonamigo (São Miguel do Oeste), Cledemilson da Silva e Michele F.M. Leite (Joinville), Deise
Cristiane, Micheli Matte e Rudimar (Chapecó), Eliane Poleto e Flavia Regina M. Boeira (Itajaí), Fernanda, Jéssica Dalla Corte e Morgane (Xanxerê),
Isaura Carolina R. Cauduro (Criciúma), Marina Ferreira Pavesi e Paulo (Brusque), Paulo Zwolinski (Jaraguá), Rafael Constantino dos Santos (Lages),
Sandra Graziele C. de Oliveira (Jaraguá do Sul), Sideneia Kopp, Sheila de Luca Kantovitz (Rio do Sul), Simonia (Palhoça); PA: Adonai, Ana Claudia, 7. Aproveito aqui para citar seus nomes: Magno Camilo, Franklin Silva, Tchelo Nunes, Cris Bosch, Mônica Marsola, Eduardo Novaes, Rita Maria Bran-
Abigail Gaioski, Augusto Galvão (Castanhal), Karla, Tati, Socorro Soares, Leila, Monica Andrade, Larissa, Marilia, Campelo, Claudia Perez, Jonathas, dão e Max Barulho, a quem agradeço pela dedicação, amizade e competência.
Sabrina, Pedro Machado, Wilson (Belém).

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Música na Educação Básica
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perada com benefícios. É importante frisar,


sempre, que esse é um projeto de equipe
presença de educadores especificamente
musicais nas escolas, uma vez que trata a
possamos viabilizar, com maior sistemática,
algumas práticas de educação semelhantes
É preciso, aqui,
e, se obteve sucesso, foi porque todos es- música como conteúdo ou linguagem in- pelo país, quem sabe reduzindo desigualda- urgentemente abrir
ses professores participantes contribuíram tegrante das Artes, e não como disciplina des, reequilibrando a distribuição de conhe-
fortemente para isso, lançando-se nos de- específica? Que outros desdobramentos cimentos, socializando resultados. Mas tudo
mão de uma visão e
safios e “aventuras criativas” de cada pro- são possíveis para um projeto como este, isso pode ter também um viés contrário, se leitura ordinária dos
posta, com interesse, inteireza, disposição, e nos tempos atuais, com a pandemia do adotado de maneira restritiva ou exclusiva.
coragem, pois escutar e criar – eixos cen- COVID-19 e o isolamento social, qual é a O uso das tecnologias não pode significar
fatos, que mascara os
trais do projeto - são atos que demandam sua atualidade? uma simplificação ou massificação do en- essenciais do processo
coragem! Na verdade, esses e todos os pro- CK – Você toca aqui numa problemática im- sino, reduzindo os meios existentes, substi-
fessores de arte e de classe são parceiros portante e atual para a Educação Musical tuindo o educador ou sua presença. Deve
educativo...
importantíssimos para a formação musical no ensino básico, tal como vemos de ma- significar, sim, uma ampliação, uma expan- riva, trabalhando isoladamente. Poderíamos
dos alunos, e quanto mais puderem estar neira geral, pelo país. Futuramente quem são de suas ações, somando e integrando continuar indefinidamente essa lista, sem
aptos a preparar as etapas iniciais de vivên- sabe o projeto “A Música da Gente” venha esforços, conferindo democraticamente ainda abordar a questão de métodos edu-
cia com a música em classe – que generica- a se tornar também um projeto de forma- mais acesso ao conhecimento, com quali- cativos, estratégias didáticas, conteúdos. O
mente chamamos “musicalização” –, tanto ção de “Músicos da Gente”, possibilitando dade, para um maior número de pessoas. universo de variáveis que condiciona o fato
mais facilitado será o trabalho do professor expandir o modelo realizado até agora para educativo é imenso, do tamanho do Brasil!
especialista em música e tão mais dinâmico escolas mais distantes e necessitadas ou SB – Você nos dá um alerta muito impor- Apesar disso, podemos utilizar em nosso
poderá ser o percurso dos alunos em suas desejosas de viabilizar a criação de músi- tante com estas considerações, uma vez trabalho os mesmos princípios, e seme-
experiências com a música. Nas escolas em cas inéditas e sua interpretação por profes- que as tecnologias de comunicação não lhantes recursos e atividades na aparência,
que trabalhei o projeto, conheci inúmeras sores músicos e não-músicos. Antes desse são em si soluções. É preciso refletir com mas a concepção efetiva, as decisões finais
pessoas dedicadas, atuando com compe- momento de pandemia que atravessamos, cautela acerca do modo como as usamos. relativas ao planejamento, os objetivos, e a
tência e brilho nos olhos, desejosas por fa- fiz a coordenação, o acompanhamento das A realização do AMDG em escolas de con- abordagem com que conduziremos nossas
zer algo novo. E isso me parece essencial, implantações e as realizações do projeto dições tão distintas entre si, como as es- ações são modulados por essas diferenças
pois com frequência vemos profissionais da AMDG nas escolas SESC, ao longo de dois colas SESC de diferentes localidades do fundamentais, visto que tais condições de-
educação – educadores musicais, professo- anos completos (2017 e 2018) via grupos Brasil e escolas municipais de regiões peri- terminam não só a superfície do fato edu-
res de arte ou não – limitarem a qualidade de WhatsApp, emails, videoconferência, féricas de São Bernardo do Campo, se deu cativo, mas o “diapasão” que dá o tom da
essencial que se manifesta na criação e na gravação de áudios, fotos e vídeos. Hoje o com diferentes abordagens, imagino... abordagem do trabalho apresentado junto
expressão por não se desfazerem de visões isolamento social fez com que grande par- CK – Sim, isso mesmo. Há uma enorme dife- aos alunos e à instituição. As características
de mundo, de interpretação e de compor- te das pessoas esteja já adaptada a esses rença entre as abordagens da educação mu- da proposta do AMDG realizada em esco-
tamento, concebidas no passado com base meios de comunicação, mas os professores sical que praticamos conforme o trabalho se las públicas da periferia de São Bernardo
em outras necessidades. Optar e decidir do SESC, que participaram do projeto, exer- dê numa escola particular ou pública; se os do Campo e nas escolas SESC (e mesmo
por uma melhor maneira de compreender ceram pioneiramente esse protagonismo e alunos estão num espaço especializado de entre elas), embora obedecendo aos mes-
e interpretar a realidade onde atuamos, de com competência! (risos) Apesar da lamen- ensino de música, por vontade própria ou... mos princípios e tendo na aparência muito
escutar e dialogar com ela, desde si, com os tável situação de isolamento que vivemos, se estão numa sala de aula de escola regular em comum, foram bastante distintas e seus
desafios do tempo presente, é uma escolha será proveitoso que ao fim deste período, obrigatória; se são 5 alunos por classe ou... planejamentos, práticas e os resultados re-
necessária e sempre possível de ser toma- 30; se a sala é grande e arejada, os móveis fletem todas essas variáveis.
da por todas as pessoas, livremente, a cada O uso das tecnologias bem conservados e se tem ar condicionado
instante, na música, na educação musical e ou... se a sala é apertada, as cadeiras des- SB – Uma vez esclarecido como o projeto
também fora delas. não pode significar conjuntadas, os vidros quebrados e os ven- foi realizado e seus possíveis desdobra-
uma simplificação ou tiladores velhos e barulhentos; se os alunos mentos, você poderia nos falar então um
SB – Estaria, então, o AMDG, nessa ver- usam tênis importados da marca da moda pouco mais sobre como ele se relaciona
são realizada junto ao SESC, viabilizando massificação do ensino, ou... sandálias havaianas desgastadas; se a com problemáticas atuais da educação e
formas de expandir as práticas e o ensi- substituindo o educador instituição conta com coordenação peda- da educação musical?
no de música na escola básica a despeito gógica eficiente e encontros regulares de CK – A meu ver, um dos desafios mais im-
de a legislação brasileira não favorecer a ou sua presença. avaliação ou... se os professores estão à de- portantes que temos hoje na educação em

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geral, e não apenas musical, está menos tura ordinária dos fatos, que mascara os es- quem somos quando atuamos como pro- aula, e cujos efeitos nocivos sobre os alu-
associado a questões propriamente de mé- senciais do processo educativo, e acessar a fessor de música ou educador musical?” nos, particularmente mais jovens, muitas
todo, materiais educativos, instrumentos percepção de uma dimensão extraordinária, Me parece saudável hoje observar de perto vezes só são evidenciados anos mais tarde.
musicais e mais à visão, ainda vigente, de própria da vida em todas as suas manifesta- esse ser profissional e esse ser pessoal para Ao mesmo tempo, dar um passo além do
educação, de realidade e de nós mesmos ções (criações musicais, por consequência) poder distinguir qual de nossos pequenos conhecimento já produzido, nos protege de
nessa realidade. De maneira resumida, eu para compreender o significado legitimo de “eus” atua a cada instante nas aulas (o do pensar os mesmos pensamentos, de sen-
expressaria o desafio de representação da cada fato. Por um lado, não se valer do mun- orgulho, da vaidade, da indiferença, da per- tir os mesmos sentimentos, de sonhar os
realidade da seguinte maneira... Des-fanta- do como anteparo para projeções, por ou- missividade, do medo, do controle excessi- mesmos sonhos, não abrindo mão da pes-
siar para uns, mas também, no oposto, des- tro, enxergar abismos nos lugares, aparen- vo etc.). Será que conseguimos nos colocar soa viva que somos, dessa forma única de
-banalizar para outros. E, importante dizer, temente, comuns. Tanto num caso quanto acima deles para evitar que um dentre eles manifestação que cada um, a sua maneira
todos nós – sem exceção e em diferentes noutro, estamos diante de formas de visão se apodere do comando no processo edu- é. Ser uma pessoa qualquer é mais fácil do
situações – somos esses “uns” e esses “ou- marcadas pela deficiência de uma observa- cativo? O educador que pode trazer estas que ser alguém, com identidade própria.
tros”. A ideia é buscar perceber e compre- ção mais justa e objetiva, que dificulta que questões à tona, como você diz, é aquele Assim também, criar uma música qualquer
ender a realidade em que vivemos tal como o educador acolha a realidade tal como ela ou aquela que reivindica para si a inovação é para muitos alunos mais assegurador do
é, em outras palavras, sem nada retirar, tam- se passa na sala de aula, e possa propor, em e a revitalização de seu trabalho, compreen- que conceber uma criação musical que os
pouco acrescentar. Parece-me sensato, no decorrência, meios, estratégias e estímulos dendo a Educação Musical como um espa- represente, contendo intenções autênticas,
primeiro caso, evitar superlativar o que ve- adequados ao que os alunos necessitam e ço muito mais amplo do que aulas de músi- sustentadas por sonoridades, formas e ló-
mos, não projetando imaginação fortuita e buscam expressar. Ao invés de um processo ca, e ampliando o entendimento sobre si e gicas originais de construção, integrando
fantasias sobre o “outro”, sem exageramen- educativo formador pertinente são ofereci- seu fazer profissional. Aquele ou aquela que sensações, emoções e pensamentos. E vale
tos de interpretação, pois nas ideias musi- das aulas padrão que o professor aprendeu tem consciência dos privilégios que por em- notar que, por outro lado, muitos alunos,
cais e músicas criadas pelos participantes a dominar, até muito atraentes e atuais, mas penho pessoal, por situação de classe so- alunas, professores, professoras, dão esse
existe, com grande frequência (sobretudo que não atendem às problemáticas que cial ou por mera sorte obteve e compreen- passo além, transcendendo suas condições
nas fases iniciais do trabalho), muita repe- emergem das situações autênticas viven- de que pode sempre, por responsabilidade de momento, o que é extremamente gratifi-
tição de padrões assimilados, muito lugar ciadas por todos em classe, além de não também pessoal, reavaliar o que tem feito cante para todos.
comum, cacoetes, estereótipos, expressões favorecer que os alunos tenham uma visão com o patrimônio de conhecimentos que
desintencionadas. Por vezes é justamente o de si adequada ao que estão sendo de fato recebeu e como o socializa. E se dá conta
“erro”, pequeno e quase imperceptível, que naquele momento preciso. de que o desequilíbrio econômico e social
escapou do controle do que se buscou ex- de seu país se manifesta igualmente a nível
pressar corretamente (de acordo com um SB – Suas considerações relembram que cultural, intelectual e de conhecimentos e
padrão musical assimilado do exterior) que uma das tarefas urgentes da educação cer- também em relação às oportunidades de
constitui o maior acerto! E é ele que terá de tamente é fazer com que cada um se per- formação pessoal e de autoconhecimento.
ser resgatado, valorizado pela compreen- gunte, em relação a si e ao coletivo: de que Assim ele reavalia e inova a natureza dos
são de seu significado e desenvolvido até modo vivemos? Como tomamos decisões objetivos que estabelece no planejamento
onde for possível para gerar uma música acerca do modo em que se toca a vida? E, de suas aulas de música, pondo em prática
original e inédita. Por outro lado, é funda- neste sentido, a presença de um educador o que faz parte de seus discursos, atuan-
mental desbanalizar nossa percepção, dei- traz questões que mobilizam nas crianças do de maneira mais coerente e abrangente
xando por exemplo de achar “normal” uma e estudantes situações e reflexões que não do que normalmente. Digo seus discursos,
certa música, ou o resultado da criação se restringem a um mero aprendizado de considerando aqui os discursos construí-
musical dos alunos, “normal” que seus de- conteúdo, mas incidem em como condu- dos, nos quais geralmente o belo, o bom
sempenhos possam ser tolhidos por proble- zem suas vidas, inclusive posteriormente e o verdadeiro são enfatizados. Afora isso,
mas relacionais na classe, “normal” que, no ao período escolar. Qual educador é este um trabalho sobre si buscando ser me-
geral, os alunos pouco se concentrem nas que traz estas questões à tona? lhor hoje do que ontem, possibilita, que o
atividades, “normal” que pouco contribu- CK – É aquele que possui o desejo vivo de educador, além de estar mais consciente
am expressando suas opiniões no processo espiar e passear no mundo pelos ouvidos! de seus próprios processos interiores, evi-
formador coletivo etc. É preciso, aqui, ur- (risos) Para entender que educador é este, te praticar, involuntariamente, as “doces
Depoimento de Clara (6º ano), participante do projeto
gentemente abrir mão de uma visão e lei- vale perguntar: “Temos a percepção de violências”, ainda tão comuns nas salas de na escola SESC de Rio do Sul / SC

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Música na Educação Básica
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...um dos objetivos tar as suas composições, em apresentações


internas e após públicas, bem como de se
apresentação-tipo (ou padrão), o público
é o convidado e merece sempre uma aten-
a participar de Atividades Musicais Intera-
tivas, conduzidas do palco e envolvendo
essenciais da música e perceberem atuando nas gravações em áu- ção especial na organização do evento. Ele todos os presentes. Em dado momento é
dio e vídeo, constrói um movimento que – esse público constituído por pais, familia- entregue o Certificado de Primeira Criação
de toda arte é propiciar gera satisfação e pertencimento, estimulan- res, amigos, instituição, comunidade – é in- Musical, documento que instaura uma espé-
o desenvolvimento do nas crianças e jovens a percepção de si formado do que ocorreu ao longo do pro- cie de rito de passagem aos participantes.
num quadro de referências expandido. O fa- cesso nas salas de aula (algo portanto que 3) Encerramento, quando são interpretadas
e o aprimoramento zer do outro exerce sobre cada participan- ele desconhece por completo ou só ouviu finalmente de uma a três músicas (arranjo
humano... te um forte efeito motivacional e possibilita dizer, pois, em geral, os pais são trabalhado- ou adaptação original de canções brasilei-
a superação de limites técnico-musicais (a res em período integral), os fatos geradores ras já existentes, com significado relevante
SB - E que modos de fazer arte e de viver nível de interpretação, expressão, criativi- do processo, seus protagonistas principais, a nível musical e literário), reunindo todos
esta perspectiva requer e favorece? E as dade) e pessoais (da simples desinibição os resultados obtidos etc. e, assim, esclare- os participantes, acompanhados por uma
práticas e relações coletivas, de que modo ao reconhecimento social), alimentando o cido e acolhido, passa a ter uma qualidade banda (formada pelos músicos-educadores
elas se relacionam com esta habilidade tra- desejo de ir sempre um pouco além. Esse de presença que eleva o nível da festa. do projeto e/ou professores da instituição),
balhada continuamente de evitar o “qual- movimento, afora o que tem de verdade, podendo incluir crianças tocando seus ins-
quer” em busca do “algo”, do “alguém” produz cultura em sentido amplo, intera- Podemos distinguir três seções principais trumentos. É feita a projeção da letra das
e do “algum”, aquilo que é específico em ções sociais em conjunto, e formação pes- na apresentação: 1) “Pré-ludio”, que engloba músicas interpretadas no telão a fim de que
nós e em nossas relações? soal com maior consciência do valor de si e a exposição de desenhos, fotografias, víde- o público possa seguir e cantar junto, se de-
CK - Para isso, precisamos experimentar. E das relações mantidas com tudo e todos. O os, instrumentos construídos etc., montada sejar. Um outro diferencial do projeto pode
a experiência de fato envolve riscos a vários coletivo aqui não mascara nem subtrai o in- em geral no hall de entrada do auditório ou ser observado por uma espécie de cenário
níveis, sendo a possibilidade de cometer er- divíduo, mas, ao contrário, as contribuições da sala. Abertura musical com a interpreta- móvel criado por projeções ao longo do es-
ros a grande oportunidade para construir de cada participante constroem e enrique- ção coletiva de uma música (desde 2018, petáculo, de imagens do processo de tra-
acertos. Os erros observados nas experiên- cem tanto o individuo que é, quanto o cole- é o “Rap-Repente da Gente”, uma espécie balho ocorrido durante o ano, num telão no
cias feitas durante os processos de criação tivo do qual faz parte – grupo que pelas sin- de declaração de princípios do projeto8). fundo do palco. Dessa maneira, processo e
são referências valiosas para avaliar, refle- gularidades de sua formação, se distingue Em algumas escolas, foram oferecidas para produto, bem como o “passado” no projeto
tir e apontar as direções do que queremos de outros e que está na direção oposta a o público Oficina de Construção de Instru- e o “presente” da apresentação se mesclam,
ou necessitamos expressar. Além do que, de qualquer processo de uniformização ou mentos, Mostra de registros e Comunica- e o público pode então ter condições de
quando se considera que, um dos objeti- massificação. ções verbais. 2) Parte principal e interme- compreender a história viva que há por trás
vos essenciais da música e de toda arte é diária, onde é apresentada uma seleção das das músicas produzidas. Integra-se assim,
propiciar o desenvolvimento e o aprimora- SB – Há já algum tempo você vem nos lem- músicas compostas, apresentadas por um nesta apresentação musical, todo o público,
mento humano, é necessário não evitar os brando que, a despeito de a importância Mestre de Cerimônia (que pode ser o pró- que sai enriquecido a nível de informação
riscos que sempre somos levados a correr dos processos ter se tornado uma espécie prio professor ou alguém convidado). Inicia- e de vivência. Em algumas apresentações,
em qualquer processo criativo, mas sim de consenso entre educadores na contem- -se por uma explanação sucinta do que é tivemos também sobre o palco outros artis-
aprender a lidar com eles. Dessa maneira, no poraneidade, é comum que se descuide o projeto AMDG e seus objetivos, seguida tas e/ou professores realizando performan-
AMDG, consideramos para as músicas com- dos produtos ou resultados. Sabemos que pela interpretação das músicas, sendo que ces corporais e até mesmo Live Painting du-
postas, acima do critério de beleza, o crité- as apresentações do AMDG têm particu- antes de cada uma delas é feito breve co- rante as interpretações musicais. É sempre
rio de representação, tanto da expressão laridades que as distinguem de apresen- mentário, informando seu título, a turma e, estimulado que a instituição convide outras
de cada indivíduo participante quanto das tações mais corriqueiras que geralmente se houver, o nome do grupo, além de de- escolas para assistirem as apresentações e
decisões tomadas coletivamente, o que en- observamos nas apresentações musicais monstrar ao público um ou mais dos ins- a visitarem a exposição, como forma de so-
volve por sua vez relativização de pontos de de diversos projetos, espaços de artes e trumentos construídos e objetos sonoros cializar seus projetos e dinamizar a cultura
vista, consistência de argumentação e ética cultura e escolas. Você poderia nos falar utilizados na composição (incentiva-se que de seu entorno (difusão e socialização de
de negociação. Isto extrapola os domínios um pouco como elas estão concebidas? a explicação seja feita por um aluno/a). meios e estratégias de qualificação da arte
técnicos da música e propicia um preparo CK – De fato, as apresentações do “A Mú- Ao longo dessa parte principal e intercala- na sociedade, bem como elevação do pa-
dos alunos também para a vida, em sentido sica da Gente” possuem uma concepção da com as músicas, a plateia é convidada drão de referência artístico).
mais abrangente. Por outro lado, o fato de particular e uma dinâmica própria, asse-
vários deles começarem a criar e interpre- melhando-se mais a um espetáculo. Numa 8. Apresentação do “Rap-Repente da Gente” pelos participantes da 3ª edição do projeto: https://www.youtube.com/watch?v=rms3EfcqPHI&ab_
channel=AMusicadaGente-3aEdi%C3%A7%C3%A3o-2018. Letra da música: https://www.facebook.com/amusicadagente2018/posts/689607784758161

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SB – E quanto às músicas compostas pelos conhecimento sempre bem-vindos, senão


participantes, em especial do “A Música imprescindíveis. A definição do nome das
da Gente na Educação Musical do SESC”, criações se dá normalmente por votação
o que você poderia nos dizer? e ilustra representações de imaginários di-
CK – É muito interessante observar os pro- versos, conforme podemos perceber nos
dutos do projeto, a riqueza de resultados breves exemplos: associação à ecologia
que decorrem das características das mú- (“Bichos do Pantanal”, “Ao som da brisa”
sicas compostas, conforme seja o profes- e “Rock do mar”), as particularidades so-
sor, a turma, a faixa etária, a escola, a ci- noras do local (“Sons Urbanos”, “Música
dade, ou, sobretudo, a etapa do processo da escola”, “Resiliência Sonora”9), referên-
de sua implantação. Foram criadas muitas cias à cultura brasileira (“Bandeirinhas de
peças, por mais de 150 turmas, com uso Volpi”, “A Cor do Brasil”), aspectos ou pro-
de objetos cotidianos e descartáveis como priedades da música (“4 Batidas”, “Som
fontes sonoras originais (garrafões de plás- de Plástico”, “O som das batidas”), livres
tico, baldes, colheres etc.) e instrumentos e imaginativos (“Fênix de Fogo”, “Suspen-
musicais construídos (não-convencionais, se Escolar”, “Sonho e Evolução”, “Nação
como tubos sonoros, marimba de garra- Florestâmica”), de cunho pessoal (“Grito
fas de vidro, chocalhos e paus de chuva de Socorro”, “Sintonia da Vida”; “Menina Crianças gravando suas composições no Teatro Inezita Barroso (São Bernardo do Campo, SP, 2018)
de vários tipos, ao lado de seringofones, linda” – esta, uma canção composta por
cornetofones, ruidofones etc.), afora o aluna de nove anos dedicada à sua faleci-
CK – Sim, exatamente! A prática bem con- rio ter uma ideia de seu projeto criativo -
uso de percussão corporal como recurso da mãe) e social (“Vamos todos cantar”,
duzida da audição alimentada por músicas daquilo que caracteriza a sua origem e o
expressivo. Nos ambientes onde ocorrem “Nosso Som”, “SESC pergunta, Pantanal
interessantes e condições favorecedoras processo que a fez existir. Os alunos apre-
experimentação e criação coletiva, como responde”), entre muitos outros. São mú-
para seu aprofundamento constrói progres- endem isso não apenas do ponto de vista
aqueles do AMDG, é possível ouvir surgir sicas vivas e em movimento, concebidas
sivamente a escuta, possibilitando que se intelectual, mas ao vivenciarem na prática,
sons tímidos que pouco a pouco se juntam numa conjugação saudável entre invenção
perceba a qualidade das sonoridades de su- ao criarem as suas próprias músicas, tendo
a outros, formando frases maiores que, de espontânea e necessidade de organização
perfície, se compreenda a estrutura da mú- o entendimento dos percursos realizados
maneira colaborativa, acabam por gerar para sua apreensibilidade. E aqui a expan-
sica e os princípios que organizam os seus desde a primeira ideia ou matriz e das de-
músicas inéditas e originais. Observar esse são da audição – estimulada pelo fato de
elementos, bem como se capte o sentido cisões que foram tomadas a cada instan-
processo de nascimento das composições serem as suas próprias criações e as de
maior que se produz disso tudo (o discur- te da trajetória criativa face às diferentes
é muito interessante! São todas “Músicas seus colegas – permite aos participantes
so, seu sintagma). Importante lembrar que problemáticas que surgiram. Assim eles
da Gente” criadas pela interação entre par- vivenciarem alguns atributos centrais dis-
a escuta nada tem de passiva ou estanque, podem aceder aos diferentes níveis de ar-
ticipantes com histórias muito diferentes so que chamamos Escuta, como a atenção
ao contrário, é uma habilidade que se cons- ticulação da linguagem, do significado dos
entre si. São criações que em geral nascem focada, o discernimento e a mobilidade da
trói a cada experiência ao longo do tempo, sons até o sentido do discurso musical.
simples e despretensiosas, mas, pouco a percepção (que incidem preponderante-
aliás, como tudo em nós. O que nos é dado Esse projeto é para os participantes uma
pouco, amadurecem como a própria sen- mente na formação musical) e o silêncio
são potenciais que cada indivíduo pode realidade de fato onde agem ao vivo e in-
sibilidade, entendimento e criatividade dos interior e a experiência de acolhimento
ou não desenvolver, cultivar com maior ou teragem em tempo real. Não os retira da
novos compositores. Os títulos falam por (atributos centrais da formação pessoal),
menor qualidade. vida concreta nem alimenta ilusões com
si livremente, mas podem também estabe- entre outros.
situações virtuais ou passadas relativas a
lecer relações com temáticas do patrimô-
SB – E como os participantes podem, criações musicais quaisquer. Eles mergu-
nio cultural brasileiro, o que a meu ver é, SB – Pelo que entendo, então, um trabalho
além da apreensão das questões musicais lham no presente, num mundo de mate-
além de pertinente, valioso quando se tra- sobre a chamada escuta musical é parte
(timbres, texturas, sonoridades), situar as rialidades e signos, dinâmico e humano,
ta da presença da música na escola bási- constitutiva das dinâmicas de invenção co-
práticas musicais em suas vidas, pergun- onde podem fazer experiências e escolhas,
ca, sendo os diálogos com outras áreas do letiva do projeto...
tando-se o sentido destas práticas? observar suas vivências e refletir sobre
9. Nessa peça há referencia sutil a paisagem sonora, quase como um registro documental de uma situação que havia ocorrido em Junho 2017 na CK – Aproximando-se do projeto criativo seus significados, construindo os próprios
cidade, quando após fortes chuvas bombas de aguas trabalhavam intensamente e seu som está registrado ao fundo ao longo de toda a musica. Um que está na base da música que se ouve. entendimentos, se responsabilizando por
exemplo mais característico de paisagem sonora pode ser escutado em “Crime na festa do apartamento”, composta por crianças do projeto em São
Bernardo do Campo. Ver: https://soundcloud.com/carloskater/18-crime-na-festa-do?in=carloskater/sets/musica-da-gente-primeira-edicao Para compreender uma música é necessá- suas ações e criações. Tudo isso - esses vi-

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vidos, concepções, escolhas, experimenta- sua pergunta, cito apenas o seguinte, que é lo à profissionalização em subáreas técnicas onde o tema é em si uma criação do pro-
ções, observações - se oferece como sub- também um diferencial do projeto. Em ge- do fazer musical, em cursos futuros (com- jeto, permite que uma música criada origi-
sídio valioso para as suas vidas de dentro e ral cada turma de participantes indica cerca positor, regente, luthier, arranjador, produtor nalmente encontre a posteriori um sentido
fora da escola, no tempo presente e, quem de três de suas criações musicais para se- musical, cultural, programador audiovisual, maior ao ser revisitada, na condição de ma-
sabe, muito possivelmente, futuro. rem gravadas. As gravações ocorrem entre preparador de cena, trabalho em estúdio de triz para novos processos criativos. A mú-
os meses de outubro e novembro, quando gravação, edição e mixagem em programas sica “Entendeu?” é um exemplo disso. Ela
SB – E como participam os educandos e um estúdio móvel é instalado na bibliote- de computador, pós-produção etc.). foi composta, em 2013, por crianças de oito,
educadores desses singulares processos ca da escola e, durante três ou quatro dias, nove anos da EMEB Arlindo M. Teixeira, de
de invenção musical coletiva, desde seus como uma maratona, todas as músicas são São Bernardo do Campo, e após, em 2017,
inícios até seus “produtos”, como a grava- gravadas. Isto possui uma logística especí- jovens de cerca 15 anos do DF, participantes
ção, você poderia nos contar mais? fica e demanda por parte de todos os en- do polo de Taguatinga, criaram a variação
CK – São muitas invenções e muitos des- volvidos muito planejamento, organização, “Entenderam?”. Esse processo de retroa-
tinos sonoros! (risos) Vale dizer que nem presença, colaboração, responsabilidade. limentação é muito saudável, pois confere
todos os processos iniciados são criativos, Todas as músicas gravadas são tratadas em um sentido ainda maior às produções origi-
assim como nem toda criação chega a bom programas específicos de edição musical; nais e, ao mesmo tempo, estabelece pontes
termo. Não há propriamente uma linea- no entanto, seleciono em geral uma música entre crianças, jovens e professores à qui-
ridade no processo, nem direcionalidade por turma para a qual preparo uma edição lômetros de distância, em regiões distintas
imposta em sua condução. E aqui faço co- especial, uma segunda versão. Nela realizo do Brasil. Com isso instituímos a variação –
Cópia de tela do vídeo da “Edição Propositiva” da música “Galops”,
locações mais gerais, pois é importante ter um trabalho de interferência, criando, con- composta por participantes do projeto AMDG, realizado na escola que integra o “mesmo” e o “diferente” - não
em mente que cada escola, cada professor, forme o caso, introdução, coda, um B ou SESC de Joinville (2017) apenas enquanto técnica, na qualidade de
cada turma, cada grupo de crianças gera C, sobreposições de elementos, repetições recurso fundamental da composição, mas
sempre músicas próprias e com formas de de seções, interlúdios etc. Utilizo apenas os SB – Você poderia trazer detalhes sobre igualmente enquanto recurso formal (Tema
produção bastante particulares. A posição materiais e a concepção original que são alguma composição em especial realizada e Variação), o que abre portas para o co-
do educador do AMDG é da ordem de su- próprios da música deles, com base em no projeto? nhecimento do patrimônio musical já cons-
tileza de um equilibrista, que, por um lado, princípios de remanejamento (justaposi- CK – Na verdade, cada criação é um mun- tituído, do século 16 até nossos dias.10
zela pela liberdade necessária para que a ção, intercalação, sobreposição e variação do, um universo de invenções reunidas, bem
criação floresça, mas que, por outro, suge- amplificada), portanto sem desconstrução, como de experiências de vida fusionadas, SB – E seria ainda possível mencionar mais
re experimentações e enquadramentos ne- nem acréscimo de novos elementos. Um ví- de descobertas e aquisições da percep- alguma característica do projeto?
cessários para que as forças de construção deo é feito da tela do programa desta mú- ção, da emoção e da inteligência postas em CK – Existem muitas características do “A
operem sem se dissipar no espaço dinâmi- sica tratada por mim – “versão propositiva” sons, organizados em música e comparti- Música da Gente”, mas em vista da brevida-
co da invenção coletiva. Orientações sobre – que após submeto à turma para que em lhada por muitos ouvidos... E são tantas as de do encontro, gostaria de mencionar ape-
planos de composição, aspectos de organi- conjunto os compositores a apreciem e ava- músicas criadas, cada qual com sua particu- nas uma, em sintonia com a questão do de-
zação sonora, macro forma, procedimentos liem se as proposições de interferência lhes laridade! No entanto, gostaria de, ao invés senvolvimento pessoal e conhecimento de
de agenciamento, jogos de contraste, equilí- parecem ou não pertinentes. Independen- de comentar sobre uma música em particu- si, cuja importância para a educação musi-
brio, qualidades de textura. E compete a ele, temente das opiniões que emergem desse lar, enfatizar a importância do procedimen- cal venho procurando enfatizar. Faço uso no
sempre que possível, não deixar escapar encontro, que envolve escuta, leitura, aná- to de Variação, como técnica ou forma, que projeto de alguns personagens, dentre os
oportunidades para aprofundar a reflexão lise, crítica e argumentação, a função didá- propicia, entre outros, o reaproveitamento quais o “Dr. Som”, um misto de cientista, mé-
ou experiência (explorando, por exemplo, tica dessa proposta se cumpre tanto pela de músicas via releituras. É muito interes- dico e músico. Ele usa um adereço caracte-
instrumentações, andamentos, reordena- percepção de que existem outras alterna- sante como uma música criada por crian- rístico que é um “Trombofone de Funil”, em
ções, modalidades de contrastes diferen- tivas de elaboração quanto pelo entendi- ças participantes do projeto de uma escola volta do pescoço, simulando um estetoscó-
tes), traçar paralelos com outras referên- mento de que aprimoramentos são sempre em São Bernardo do Campo, por exemplo, pio. Como os demais personagens, ele qua-
cias, universalizar uma situação particular possíveis. De toda maneira, os participan- possa servir de motivação e referência para se não fala, comunicando-se basicamente
etc. Há muitas especificidades no processo tes também acabam por ser informados a criação musical de participantes de ou- por sonoridades vocais ou instrumentais,
criativo musical que considero importan- de que, além de cantor e de instrumentista, tra região! Isto é, a concepção de variação, gestos e expressões corporais. Uma crian-
tes para compartilharmos, mas isto não se- existem tantas outras profissões na música
ria possível agora aqui. No que se refere à que podem lhes interessar, obtendo estímu- 10. Para ouvir as músicas “Entendeu?” e “Entenderam?” conferir os links, respectivamente: https://soundcloud.com/carloskater/06-
-entendeu?in=carloskater/sets/musica-da-gente-primeira-edicao e https://soundcloud.com/carloskater/entenderam

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ça é convidada para decifrá-lo, interme-


diando sua comunicação com a turma. Ele
SB – E o que, ao seu ver, o projeto AMDG
e os educadores musicais de maneira ge-
pressão e valor próprio ao aprendizado dos
alunos, o que na educação musical corres-
...é possível olhar sem
então faz perguntas: “Quem está sentindo ral têm a oferecer à educação hoje? O que pondeu ao espaço de vivência, experiências enxergar, pensar sem
dor física hoje?” Aguarda as respostas e ou- afinal se apreende dos professores de mú- pessoais, típico dos métodos ativos, em es-
tra criança vai a lousa para anotar as dores sica, o que eles podem “ensinar”? pecial. Relativamente há pouco tempo, uma
compreender, se mexer
mencionadas (de cabeça, ouvido, dente, CK – Antes de tudo, espero que o AMDG visão bastante diferente surgiu oferecendo sem sair do lugar, falar
garganta, barriga, joelho etc.). Os tipos de possa continuar sendo oportunidade de uma abordagem que pôs no palco das aten-
dor são anotados e quantificados, tornan- aprendizado para uns (participantes em ge- ções a representação cultural dos alunos, os
sem dizer, ouvir sem
do-se visíveis para toda a classe. O mesmo ral) e fonte de inspiração para outros (edu- valores sociais e a ideologia dos quais são escutar...
ocorre com a pergunta seguinte: “Tem al- cadores que venham a conhecer o projeto). portadores, e por meio dessa compreensão
guém aqui com alguma dor emocional?”, Quanto ao que professores de música po- fez a crítica aos modelos educativos hege- invenções musicais de todas as épocas, lo-
seguida novamente pelas anotações no dem ensinar hoje, respondo sinteticamen- mônicos – Paulo Freire ilustra claramente cais, estilos e culturas. Mas para ser sincero,
quadro (inveja, rancor, tristeza, ciúmes etc.). te, lembrando Koellreutter: nada daquilo esta concepção. Hoje, no entanto, temos a de fato, respondo melhor à sua pergunta
E finalmente uma última questão: “Quem que os próprios alunos possam aprender meu ver necessidade de uma abordagem mencionando não exatamente o que os pro-
tem tido dificuldades para cuidar de si?”, se- sozinhos em qualquer lugar ou circunstân- diferenciada de educação musical que, ao fessores ou educadores musicais têm a ensi-
guida por novo mapeamento das respostas cia, seja nos livros ou na internet. Penso que não excluir as valiosas contribuições do pas- nar, mas o que eles e todos nós temos hoje
(falta de memória, dificuldade de cortar as hoje, em razão da progressiva facilidade de sado, agregue outras, que correspondam a apreender. A educação musical que possi-
unhas, de estudar, conter as fofocas, de evi- acesso a um imenso conjunto de informa- com maior pertinência às problemáticas de bilita oportunidade de desenvolvimento hu-
tar falar mal dos outros, fazer comparações ções, a questão central não é mais o fazer, nosso tempo e cultura, bem como represen- mano é aquela que é conduzida por um edu-
etc.). Uma vez com as perguntas e os itens o aprender fazer, ou mesmo o saber fazer, tações musicais de mais amplo espectro es- cador ou educadora que trilhe seu caminho
das respostas quantificadas expostos no contudo passa a ser o conhecer e o conhe- tético. Uma abordagem que busque incluir sincero de busca, de autodesenvolvimento
quadro, todos os alunos têm a oportunida- cer-se, aprendendo a cuidar melhor de si. E na relação ensino-aprendizagem não ape- e conhecimento pessoal. E, como sabemos,
de de conhecer como seus colegas estão se isto significa adotar uma forma de trabalho nas informações, vivência dos alunos, suas é possível olhar sem enxergar, pensar sem
sentindo e assim compreender o que atua interior, optar por um caminho de conheci- representações culturais e a crítica-social, compreender, se mexer sem sair do lugar, fa-
na base de suas reações (para poder em se- mento que permita a cada pessoa um maior mas também a figura do próprio educador e lar sem dizer, ouvir sem escutar, o que traz à
guida adquirir um recuo consciente, evitan- contato consigo próprio e melhor desempe- educadora musical, pela importância decisi- tona a questão fundamental de termos claro
do discussões e relativizando situações de nho profissional (o que nada tem a ver com va que exercem no processo formador, cujo o que fazemos na educação para construir
conflito). Um som, fragmento musical, clus- a valorização do ego, nem com a falsa perso- sucesso ou fracasso, em última instância, de- um espaço de observação de si e de atua-
ter ou breve melodia é oferecido para cada nalidade). Sei bem que é um pouco estranho les dependem fundamentalmente. Esta é a ção mais consciente na sociedade. Se hoje
tipo de sintoma, recebido de olhos fecha- falar assim, no entanto, dominamos já tantos concepção de abordagem que está na base constatamos tanto solo virar terra, como
dos pelos alunos. “Dr. Som”, bem como o conteúdos sutis e complexos em nosso tra- do AMDG e que chamo de “Modelo Integra- buscar da terra retornar ao solo, o mais fértil
educador musical, auxiliam a nomear o vivi- balho com a música e a educação, que me dor”. E as inclusões e integrações possíveis possível? Como a música e a formação musi-
do de cada participante, para que eles pró- parece possível compreendermos como nos aqui são também da ordem das conquistas cal podem contribuir para isso, uma vez que
prios possam dar nome às suas percepções, dedicar a esse assunto. Em outras palavras, conceituais e estéticas que temos reperto- tudo é semente?
sensações, aos seus sentimentos, emoções, durante muito tempo o foco das propostas riadas no patrimônio musical, estendendo-
aos resultados de suas experiências e rea- educativo-musicais esteve centrado na infor- -se desde as funções do cantar dos juglares
ções. Com atividades assim perseguimos mação técnica da música e na sua transmis- medievais ou repentistas brasileiros atuais
objetivos diferenciados do projeto, dentre são, independente de quem fosse o profes- até a incorporação de conceitos futuristas
os quais se encontram: reconhecimento de sor e ignorando-se quem fosse o aluno, pois de Pratella ou Russolo, das simultaneida-
que o outro é tão importante quanto eu, in- ele nada mais representava que um receptá- des de eventos sonoro-musicais de Mahler,
centivo a uma maior qualidade de diálogo, culo vazio a ser preenchido (vale notar que Charles Ives ou Bério, à descoberta de sono-
aceitação de pontos de vistas divergentes e esta visão tecnicista do ensino de música vi- ridades íntimas do Brasil por Villa-Lobos ou
respeito da diversidade, bem como o forta- gora ainda em nossos dias). Passamos após ainda do silêncio ou dos sons do ambiente,
lecimento das relações sociais, além, é cla- por um momento muito marcante quando conforme proposto inicialmente por Cage e
ro, de um melhor conhecimento de si (um a consciência de educadores, e não apenas após resgatado enquanto paisagem sonora Parte inicial da Partitura de “Atchim x Coff” utilizada para interpreta-
entendimento mais justo e refinado sobre o musicais, buscou oferecer espaço para a ex- por Schafer, além das expressões sonoras e ção e em seguida como estímulo para variações e novas criações dos
seu próprio funcionamento). alunos.11

24 | Stênio Biazon Encontro com Carlos Kater: vida em movimento e “A Música da Gente” | 25
Música na Educação Básica
entrevista V. 10 Nº 12 2020

isto. A preparação dos educadores sem for- Nestas conversações, entre vários relatos
mação musical prévia com conceitos musi- potentes, um participante adulto relata seu
cais simples e pertinentes às composições fascínio com a descoberta do vibrafone, um
coletivas, igualmente.12 instrumento antes nunca visto por ele e que
o mobilizou a buscar uma multiplicidade de
Os meios e ferramentas usados nestas
referências musicais nas plataformas digi-
composições coletivas, por sua vez, tam-
tais de vídeo. O mesmo participante expli-
bém são parte estratégica do que viabiliza
cita também tamanho o deslocamento que
sua realização - instrumentos de baixo custo
foi para si, como prestador de serviços hi-
e tocabilidade acessível, uso da voz, canta-
dráulicos, constatar que os mesmos canos,
da e falada, percussão corporal etc. Trata-se
que dele já estavam tão próximos, poderiam
de usar nas composição musical habilidades
se transformar em inúmeros instrumentos
comuns e recursos disponíveis a estes diver-
Partitura de “Tempestade no mundo dos dinossauros” concebida por musicais.
sos participantes que majoritariamente não
crianças do projeto do polo de Ananindeua/PA, a partir dessa matriz
estrutural. possuem outra formação musical (educado- Uma terceira consideração do mesmo
res e educandos), até mesmo para além do participante revelou ainda tamanha a pe-
período de realização do projeto. netrabilidade das práticas do “A Música da
Renato Almeida, musicólogo brasileiro
Gente” em sua vida ao trazer um impasse
“A Música da Gente” realiza no presente
que nos antecedeu, já havia expressado: “O
mistério de nossa música é o mistério do
“A Música da Gente”, práticas musicais com estes recursos, sem
ligado ao modo como algumas religiões
incidem na maneira pela qual vivem seus

foto: marina manzione


Brasil mesmo, diz-me o que cantas e eu te
direi quem és. Mas nós cantamos tanta coisa
entre crianças e aguardar supostas condições futuras ideais,
como a aquisição de instrumentos musicais
praticantes. Afinal, as práticas de criação
musical coletiva seriam “Música do Mundo”
e tão diferentes... Que seremos nós?”. Hoje, adultos, favorece tradicionais por parte das escolas, como
muitos o fazem.
ou “Música de Deus”, “Música Profana” ou
atualizando esse pensamento, arrisco acres-
centar: E nós, educadores musicais, que co- que cada um se O AMDG não é um projeto interessado
“Música Sacra”? A resposta dada pelo parti-
cipante é surpreendente justamente por ex-
nhecemos tanta música, tantas abordagens
educativas, com acesso a tanta tecnologia,
torne mais disposto apenas na educação musical, mas se ocupa,
antes de qualquer coisa, da vida, com suas
plicitar que tal oposição estava ali em vias
de se dissolver, como consequência de sua
que criamos tantos significados e relações a se rever e a se inúmeras realizações, contingências e movi- entrega às experiências de composição mu-
entre sons e seres humanos... quem somos, mentações. O projeto dissolve assim, quem
e o que, com tudo isso, nos propomos a ser? reinventar... sabe, a dicotomia estrita entre uma dita “arte
sical coletiva do projeto.

De toda maneira, o que conta não é a res- Transcrevo aqui parte dos dizeres des-
pela arte” e a chamada “arte funcional”, reve-
posta já pronta e falada, mas a consciência te instigante participante: “É música… [mas]
lando que o prazer de se engajar num fazer
segundo a qual criamos mundos no mundo, tudo o que eu aprender aqui eu não posso
musical coletivo e inventivo pode vir a ser
bem como as inquietações profundas que Considerações finais parte constitutiva daquilo que move e trans-
usar lá, não… […] [Alguns dizem:] ‘Eu não vou
nos põem em movimento, a intenção sin- participar [do projeto], isso é música do mun-
forma a vida.
A conversação com o prof. Carlos Kater do’. [Mas, na verdade…] eu nem sei que mú-
cera e visceral no dentro-e-fora de nossas
mostra como o projeto “A Música da Gente” É isto que explicitam as conversações sica foi aquela que a gente fez!” (grifo meu).
ações, o cultivo de um entendimento lúcido,
conciliou práticas coletivas de invenção musi- realizadas com os participantes da edição
desperto e responsável (sem ilusões nem Quem, debatendo conceitos filosóficos e
cal abertas às singularidades dos envolvidos do projeto “A Música da Gente na Educação
devaneios), que expressamos a nível social. estéticas musicais numa universidade, lem-
com um alcance muito diverso em localidades. Musical do SESC” realizada na EJA (Edu-
E isso faz parte das metas de uma Educa- bra-se de tudo aquilo que pode vir a ser um
cação de Jovens e Adultos) na cidade de
ção Musical Viva, cuja abordagem busque A coordenação remota regular, recurso impeditivo no engajamento dos educandos
Goiana (PE), às quais tive acesso a seus re-
integrar criação musical e formação huma- oferecido pelas tecnologias recentes com nas práticas musicais, inclusive de criação
gistros no acervo do projeto e que conviria
na, contribuindo para alimentar a força vital as quais muitas vezes ainda temos hesita- musical? E, invertendo a questão, o quanto
trazer aqui somando-se às considerações
da cultura e de todos os participantes de ções e que hoje o isolamento social mostra- somos capazes de dimensionar o alcance
do prof. Carlos Kater.
seu tempo, hoje e, quem sabe, amanhã. -nos sua relevância, foi decisiva em viabilizar
12. Entre estes conceitos, podemos mencionar a noção de Contraste entre seções musicais, os recursos de variação rítmica de fácil apreensão por
11. U ma das diferentes versões desta música, realizada pelo projeto, pode ser escutada em: https://soundcloud.com/a-musica-da-gente/atchim-coff-amostra educadores e educandos, a abertura às inúmeras fontes sonoras, o uso de notação não-tradicional, bem como dinâmicas coletivas de tomada de
decisão voltadas especificamente para o fazer musical.

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Música na Educação Básica
entrevista V. 10 Nº 12 2020

de práticas como a invenção musical cole- Não seria essa uma de nossas Nogueira, Ilza. Entrevista [Carlos Kater]. Boletim Informa-
tiva na vida dos educandos, adultos e crian- grandes tarefas? Autor tivo TeMA, ano 1, nº 1, jan. 2017, p.3-9. Disponível em:
< https://tema.mus.br/novo/storage/pubs/informativos/3
ças, para além do fazer musical? 75d0c6cd4255ec291a190797d79db92.pdf > Acesso em
16/02/2021.
Situações como estas escancaram que a
cada referência trazida e a cada novo con- Ribeiro, Ariane da Silva Escórcio. Práticas Criativas em
educação musical: concepções, ferramentas pedagógi-
vite à experimentação, um educador pode
cas e veiculação em livros didáticos para o ensino funda-
fazer cada envolvido revisitar ou revirar me- mental. Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-Gra-
mórias e costumes, às vezes, mobilizando Stênio Biazon duação em Música da Escola de Comunicações e Artes,
steniobag@msn.com Universidade de São Paulo, 2018.
transformações surpreendentes que sequer
se acompanhará exatamente onde darão. Santos, Regina Marcia Simão; Kater, Carlos. O projeto “A
Cursa doutorado em Processos de Criação música da gente”: entrevista com Carlos Kater. Revista
Neste sentido, Kater nos traz ainda ou- Musical – Sonologia. Colaborou com Teca
tra questão crucial para se pensar a relação
Entrevistado Alencar de Brito no livro Um jogo chama-
da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salva-
dor, v. 26, n. 48, p.151-166, jan./abr. 2017. Disponível
em: < https://revistas.uneb.br/index.php/faeeba/article/
entre as práticas de educação musical co- do música (Peirópolis, 2019) e trabalhou na view/7581/4919 > Acesso em 16/02/2021 .
letivas e inventivas com o modo como se Teca Oficina de Música, participando dos
vive, que é o conhecimento de si e o cui- _______. Educação musical, educação artística, arte-edu-
CD’s Ondas (2015) e Passarinhada e outros
cação e música na escola básica no Brasil: trajetórias de
dado consigo mesmo. Trata-se de favorecer voos (2018). Colaborou na revisão da pes- pensamento e prática. In.: Santos, Regina Márcia Simão
que cada um volte-se para si, repensando quisa da área de música para o livro Por (org.). Música, Cultura e Educação: os múltiplos espaços
costumes e as relações consigo e com os Carlos Kater toda parte (FTD, 2019), junto a Carlos Kater. da educação musical. Porto Alegre: Sulina, 2012, 2ª ed.,
carloskater@gmail.com pp. 177-213.
demais nas inúmeras práticas da vida.
Links relacionados às edições do “A Música da
Kater nos convida ainda a perguntar: Carlos Kater é educador, musicólogo e Gente” realizadas em São Bernardo do Campo-SP:
como fazer do cuidado de si algo que po- compositor, Doutor pela Universidade de
CD AMDG 2013, 1ª edição: https://soundcloud.com/car-
tencializa o enfrentamento das desigual- Paris IV – Sorbonne e Professor Titular pela loskater/sets/musica-da-gente-primeira-edicao
dades? Estas é uma reflexão difícil de se EM/UFMG. Criador e coordenador do pro- Referências DVD AMDG 2015, 2ª edição: https://www.carloskater.
responder, mas que o AMDG certamente jeto “A Musica da Gente”, é autor de artigos
Brito, Teca Alencar de. Música na educação infantil. São com.br/a-musica-da-gente-2015
movimenta. publicados em conceituadas revistas e de Paulo, Peirópolis, 2003.
DVD físico disponível: https://www.carloskater.com.br
“A Música da Gente”, entre crianças e livros, tendo sido Arte por toda parte (autor
Costa, Tomás Bastos. Educação Musical nas Escolas: Re-
adultos, alimenta a possibilidade de que da parte musical), um dos 10 finalistas indi- flexos da Implementação da Lei 11.769 na cidade de São
Documentário sobre AMDG 2018, 3ª edição (com legen-
cado ao “Premio Jabuti” (2017). É criador e das em inglês e espanhol): https://www.carloskater.com.
cada um encontre no fazer musical coleti- Paulo. Relatório de Iniciação Científica PIBIC, Universidade
br/a-musica-da-gente-2018
vo e inventivo expansões da vida, evitando coordenador do projeto de criação musical de São Paulo, Escola de Comunicações e Artes – Orienta-
ção Maria Teresa Alencar de Brito, 2013. Soundcloud do AMDG 2018, 3ª edição: https://
dogmatizações e engessamentos. Faz as- coletiva “A Musica da Gente” (que já atin-
soundcloud.com/a-musica-da-gente
sim com que cada um que passa pelo pro- giu cerca de 10.000 participantes) e Mem- Kater, Carlos. O que podemos esperar da Educação Mu-
bro Permanente do Conselho Assessor da sical em projetos de ação social. Revista da ABEM, Por- Vídeos Experimentais editados pelas crianças participan-
jeto se movimente, viva em movimento, seja to Alegre, n°10, p.43-51, 2004. Disponível em: < http://
“Catedra Livre de Pensamento Pedagogico tes do AMDG 2018, 3ª edição: https://www.youtube.com/
no contato consigo mesmo ou na relação www.abemeducacaomusical.com.br/revistas/revistaa- watch?v=RBFTczPqR0w&list=PLRECbxoxi0rUORSW3K
com os demais. Musical Latinoamericano”, da Universidad bem/index.php/revistaabem/article/view/361 > Acesso Wm9GkDLZD6wPxoB&ab_channel=AMusicadaGente-
Nacional de las Artes (Buenos Aires). Atua em 22/02/2021. -3aEdi%C3%A7%C3%A3o-2018
Esta música dá em gente, gente múltipla como conferencista, consultor e professor, _______. “Por que música na escola?”: algumas reflexões. Vídeoclipes realizados pelas crianças participantes
e diversa, mais do que qualquer coisa, pois com temas associados à Musicologia Brasi- In: JORDÃO, Gisele. Et al. (Coord.). A música na escola. do AMDG 2018, 3ª edição, com orientação de pro-
se dá entre gente, sem abstrações e ideali- leira e à “Formação Musical Inventiva” (foco
São Paulo: Allucci & Associados Comunicações / MinC / fissional do áudio-visual: https://www.youtube.com/
3D3, 2012. p.42-45. Disponível em: < http://www.amu-
zações. no desenvolvimento humano).
watch?v=saWRrgMcg-s&list=PLRECbxoxi0rXyfYX8D
sicanaescola.com.br/pdf/AMUSICANAESCOLA.pdf > 6Yd7K49IHDDDXi5&ab_channel=AMusicadaGente-
Trata-se de agregar prazer e reflexão, a Acesso em 22/02/2021. -3aEdi%C3%A7%C3%A3o-2018
Para mais informações, inclusive publica-
cada um consigo e associado aos demais ções, ver: _______. “Encontro com H.J.Koellreutter”. Entrevista de Página do Facebook, 1ª e 2ª edições: https://www.face-
e, com isso, favorecer também transforma- • www.carloskater.com.br/
C.Kater com Koellreutter, para Cadernos de Estudo : Edu- book.com/amusicadagente
cação Musical, n°6. SP: Atravez, 1997, p.131-144. Dispo-
ções noutros campos da vida, com suas • lattes.cnpq.br/1845763886645209 nível em: < https://www.carloskater.com.br/caderno-de- Página do Facebook, 3ª edição: https://www.facebook.
tantas e diversas contingências. • www.facebook.com/carlos.kater.5 -estudos#educacao-musical > Acesso em 16/02/2021. com/amusicadagente2018
• www.facebook.com/amusicadagente.

28 | Stênio Biazon Encontro com Carlos Kater: vida em movimento e “A Música da Gente” | 29
Música na Educação Básica V. 10 Nº 12 2020
Música na Educação Básica

ensaio
Música na Educação Básica

Música na Educação Básica

Música na Educação Básica

BNCC e educação
musical: muito barulho
por nada?
Cecília Cavalieri França
MUS Produção
BNCC and music education: much ado
for nothing?

Abstract
This paper proposes a reflection on the reper-
cussion of the “Base Nacional Comum Curri-
cular” (BNCC / Brasil, 2018) in the contexts of
Resumo basic education owing to some controversial
Este ensaio propõe uma reflexão sobre a re- points regarding the field of music. It is no-
percussão da Base Nacional Comum Cur- teworthy that the Base consists of “a possible
ricular (Brasil, 2018) no contexto da educação arrangement”, as expressed in the document
básica em função de alguns pontos controver- itself; therefore, taking other perspectives into
sos no que tange à área de música. Destaca-se account is opportune and necessary. It is sug-
que a Base consiste de “um arranjo possível”, gested that teachers should engage in dialo-
como expresso no próprio documento; assim gue with the text of the BNCC, underpinned
sendo, o contraponto com outras perspectiv- by the conception of music as a primordial
as faz-se oportuno e necessário. Questiona-se human expression, as it has been consolidated
a construção dos currículos de música a partir in recent debates in the field. One can ques-
das matrizes de Objetivos de Aprendizagem e tion the design of music curricula based on the
Desenvolvimento para Educação Infantil e de matrices of Learning and Development Objec-
Habilidades dos demais segmentos, uma vez tives, for Early Childhood Education, and Skills,
que estas apresentam problemas conceituais in the other segments, since they present con-
e metodológicos que podem vir a fragmentar ceptual and methodological problems that
e limitar a experiência pedagógico-musical. may fragment and limit the pedagogical and
Por meio de uma proposta prática, pretende- musical experience. A practical proposal was
se demonstrar como a experiência musical é formulated to demonstrate that musical expe-
multidimensional e, portanto, percorre e integ- rience is authentic and multidimensional, thus
ra diversos pontos das matrizes propostas na integrating several points of the matrices pro-
BNCC. posed in the BNCC.

Palavras-chave: BNCC. Educação musical. Keywords: BNCC. Music education. Music


Currículo de música. curriculum.

FRANÇA, Cecília Cavalieri. BNCC e educação musical: muito barulho por nada?. Música na Educação Básica,
v. 10, n. 12, 2020.

31
V. 10 Nº 12 2020
Música na Educação Básica

com o papel, debater em reuniões, negociar sido produtivo, considerando-se os proble- mudar a embalagem de um produto, mas
com os colegas, pesquisar recursos e elabo- mas observados no documento (estes se- não o seu conteúdo.
rar estratégias. rão comentados no decorrer do texto)? O
O foco direcionado para os OADs e Ha-
que é relevante incorporarmos à nossa ação
Finalmente, chega o momento de ater- bilidades tem feito proliferarem modelos e
educacional e o que não vamos incorporar,
rissarmos em sala de aula e, fortuitamente, “receitas” de planejamentos nos quais os
justamente porque não agrega ao que já fa-
recuperarmos a espontaneidade da nossa professores vão, por assim dizer, “encai-
zíamos?
prática, com um pouco mais de entendi- xando” atividades apressadamente, sem
mento a respeito do que estamos fazendo. Neste ensaio proponho uma reflexão a o cuidado de uma leitura mais abrangen-
O documento curricular que as equipes de respeito de uma leitura, a meu ver, equivo- te e crítica tanto sobre as matrizes quan-
professores preparam nas respectivas esco- cada da BNCC e sobre alguns pontos tam- to sobre as próprias atividades escolhi-
las, por mais bem alinhado que seja à reali- bém equivocados da proposta para a área das. Quando nos atemos às matrizes sem
dade daquele contexto, será ressignificado de música. São ruídos e microfonias, incom- questioná-las e sem as devidas ressalvas,
no dia a dia. Tudo o que foi pensado, dito e preensões e simplificações arriscadas sobre endossamos seus aspectos negativos, que
Panelássom. Arquivo pessoal da autora.
escrito será tonalizado pelas peculiaridades o documento e sobre a própria música, os não são poucos. Os OADs e as Habilidades
de cada turma, pelos humores dos alunos e quais, somados, têm gerado ações educati- para música, além de repetitivos e restri-
até pelas efemérides e os noticiários do dia. vas, de certa forma, anacrônicas. tivos, apresentam problemas conceituais
De Brasília aos Brasis Ou seja: a Base que saiu de Brasília é uma, e metodológicos importantes, alguns dos
e a que chega a cada canto do país é outra. quais representam retrocessos significati-
É fato que a BNCC está fazendo bastante
barulho. Desde o começo da discussão, vem Então, a boa notícia é que a BNCC não Entre a natureza vos para a área. Alguns desses problemas
repercutindo em diversas direções, como é (quase) nada sem você, sem mim, sem abstrata das matrizes serão comentados adiante.
na formação dos alunos nas licenciaturas, cada um de nós! Grande parte do trabalho
depende de nossas escolhas pedagógicas
e a natureza concreta Listagens de objetivos, habilidades,
competências e outros enunciados dos
na oferta de disciplinas, nas discussões e
pesquisas de pós-graduação, na forma- e musicais. Sabemos que há incontáveis das experiências documentos educacionais se prestam a
ção continuada, na revisão das matrizes de maneiras de se fazer música e inumeráveis musicais sintetizar, organizar e padronizar a prática.
avaliação dos exames oficiais e concursos. tradições e práticas que entendemos como Tais matrizes são abstrações de práticas.
O aspecto que tem me chamado mais
À parte da academia, tem movimentado o música – sons organizados de maneiras ex- Nascem, a princípio, da observação e sis-
atenção é que as matrizes de “Objetivos de
meio editorial, com a produção de material pressivas da nossa experiência no mundo. tematização daquilo que fazemos em sala
aprendizagem e desenvolvimento” (OADs),
didático, levantado formadores de opinião e Mas, em meio a tão diversas sonoridades de aula e – quero crer – para ela retornam,
no caso da educação infantil (p. 48), e as
alimentado mídias sociais. e respectivas formas de organização e tão nela repercutem e com ela se retroalimen-
de Habilidades nos demais segmentos (p.
diversos modos expressivos e seus signifi- tam. Mas também são impregnadas pelas
Link para a Base Nacional Comum Curricular 202-203, 208-209) estão sendo superesti-
cados simbólicos, entre tradição, novidade, crenças pessoais e ideologias, sejam elas
http://basenacionalcomum.mec.gov.br/ madas a ponto de serem tomadas como “a
cultura e subjetividade, expressão coletiva e explícitas ou não. Portanto, não são “a coi-
novidade” a ser implementada. Muitos pro-
Enquanto isso, a onda segue em direção pessoal, cada um de nós é único. A música, sa em si”, a experiência concreta, orgânica
fessores, na ansiedade (ou no desânimo) de
às escolas regulares, destino principal de to- que nos une como espécie, também nos e complexa do nosso fazer musical peda-
terem que lidar com mais uma mudança na
dos esses esforços. No trajeto, o documento individualiza como sujeitos. Quem entra gógico, mas uma estruturação plausível
formatação das propostas curriculares, ou
vai sendo modelado pelas disposições esta- em sala de aula, enfim, somos nós, nossos segundo uma perspectiva específica. As
para irem “direto ao ponto” diante de um
duais e municipais, pelo projeto político-pe- alunos e a música que nos diz respeito. habilidades descritas na BNCC não são
texto de 600 páginas, estão concentran-
dagógico de cada escola, pelo programa do “atividades”! A matriz não é uma estrutura
Tenho percorrido debates, reuniões, cur- do seus olhares nos códigos das matrizes.
ano escolar, pelo planejamento da equipe de plano de aula! Já encontrei planejamen-
sos, conversas e também vasculhado a in- Será que a reforma almejada por toda essa
e pelos ajustes de cada professor. Vai sen- tos que espelham as cinco habilidades em
ternet em busca de reflexões, propostas e empreitada se resume a etiquetar o fazer
do filtrado e, dialeticamente, ampliado pela atividades numeradas respectivamente de
experiências, procurando entender como pedagógico com códigos de habilidades?
experiência, pela formação e pela visão de 1 a 5, desconexas entre si e pouco musicais.
todo esse movimento está repercutindo. Colocar um código novo em uma antiga
mundo dos envolvidos. Toda essa “mexida” Quando limitamos nosso olhar para as ma-
Afinal, como a BNCC vem impactando os abordagem não a torna atual, refletida,
pode ser considerada positiva, pois nos faz trizes, corremos o risco de tratar atividades
planejamentos e a prática da educação dialógica; tampouco desobriga a reflexão
parar para pensar, quebrar a cabeça, brigar musicais potentes e multidimensionais de
musical? Até que ponto esse impacto tem sobre o que está implicado neles. É como

32 | Cecília Cavalieri França BNCC e educação musical: muito barulho por nada? | 33
V. 10 Nº 12 2020
Música na Educação Básica

maneira artificial e fragmentada e até mes- playlist de música de resistência, ou outra te, a matriz também pode contribuir para seu corpo, seus gestos e movimentos no
mo de perder a espontaneidade das intera- na periferia de Rio Branco (AC) anotando apontar ausências e, eventualmente, ins- espaço (p. 40-41); a participação em diver-
ções com os alunos. cantos indígenas. Mesmo em se tratando de pirar desdobramentos que não teriam nos sas formas de expressão artística (p. 41), na
universos sociais e culturais tão diferentes, ocorrido de outra forma. Mais importante cultura oral e, gradativamente, na escrita,
Cada um dos descritores das matrizes
com repertórios, sonoridades, corporeida- ainda: nenhum dos descritores expressos nas narrativas pessoais, dos textos e seus
admite um sem-fim de possibilidades musi-
des, tecnologias e modos de fazer, reprodu- na matriz ocorre isoladamente na prática. usos, suportes, gêneros (p. 42); no mundo
cais dentre metodologias, atividades, reper-
zir e distribuir música que lhe são próprios, Atividades musicalmente significativas en- físico e sociocultural, com suas proprieda-
tórios, procedimentos e produtos. Multipli-
com sentidos, significados, níveis de envol- volvem Habilidades de maneira integrada e des fenomenológicas e relações espaciais,
que-se tal infinidade de possibilidades pelo
vimento emocional individuais e coletivos musical. Inclusive, costumam avançar além matemáticas etc. (p. 42-43). Vale salientar
universo de professores, turmas, escolas,
distintos, o código que as acompanhará, daquelas listadas na matriz do respectivo que, apesar de a matriz para a educação
cidades, estados e regiões deste país: é aí
segundo a BNCC, será o mesmo. Na práti- segmento e facilmente traçar percursos in- infantil da BNCC ter alocado à música um
que encontramos “a coisa em si”! Experiên-
ca, nossa escolha vai mobilizar habilidades terdisciplinares. espaço restrito no Campo de Experiência
cias em música são complexas, contextua-
muito específicas de cada gênero e música “Traços, sons cores e formas”, ela percorre,
lizadas, interativas, imprevisíveis; portanto,
trabalhados, condicionadas por outras vari- permeia, complementa, enriquece, articula
escapam à escrita de descritores de habi-
lidades, por definição, áridos e limitados.
áveis, como os recursos disponíveis e a ma- Interdisciplinaridade, todos os campos da experiência da crian-
Se comparada à vida que permeia as aulas
turidade dos alunos.
protagonismo e ça, simplesmente porque a música é ine-
rente à vida!
de música, ricas em estímulos multissenso-
riais e em fazeres de múltiplas naturezas, a
Nenhuma abstração teórica é capaz de
transformar nossa prática de maneira im-
cultura: erramos o Mas, infelizmente, essa festa dos senti-
matriz é um fóssil sem vida, sem cor, sem posta e unilateral. A BNCC, ou qualquer ou- alvo? dos, dos afetos, da imaginação, da experi-
nuances, sem identidade. Diferentes profes- tro documento oficial, tampouco. Ao con- Um preceito central na BNCC, promissor ência íntegra da criança é esvaziada quan-
sores podem desenvolver um OAD ou uma trário, o documento consiste de “um arranjo de avanços relevantes, é a interdisciplinari- do passamos da descrição dos Campos de
Habilidade por meio de propostas diversas possível” como base curricular – e não sou dade. Em última análise, a interdisciplinari- experiências (p. 40-43) aos OADs respec-
e, ainda assim, estarão contemplando e de- eu dizendo isso! Esta ressalva aparece no dade é um esforço de retorno à nossa com- tivos à música, no Campo “Traços, sons,
senvolvendo o mesmo OAD ou a mesma texto da BNCC nada menos do que dez ve- plexa experiência de ser e estar no mundo, cores e formas” (p. 48). Nestes, o universo
Habilidade. Vamos considerar, por exemplo, zes (p. 86, 197, 222 etc.)! Isso é muito po- da qual nos afastamos pela organização de experiências musicais da criança é re-
o seguinte descritor do ensino fundamental sitivo! Assumir que o documento seja “um fragmentada do conhecimento em discipli- duzido a dois blocos de três descritores,
- anos iniciais: arranjo possível” implica reconhecer que nas. Neste sentido, é positiva a abordagem um para cada faixa etária, destacados em
haja outras possibilidades de arranjo. Signi- da educação infantil por Campos de Expe- rosa no Quadro 1. Os descritores da segun-
(EF15AR13) Identificar e apreciar
fica que a proposta não é ideal, infalível e riências (Brasil, 2018, p. 40-52), delineados da linha do quadro referem-se mais espe-
criticamente diversas formas e gêneros
de expressão musical, reconhecendo e
muito menos definitiva; ao contrário: suas li- de maneira a acolherem “as situações e as cificamente às artes visuais, embora sejam
analisando os usos e as funções da música mitações são reconhecidas. Outros olhares, experiências concretas da vida cotidiana procedimentos também utilizados na ex-
em diversos contextos de circulação, em perspectivas e concepções são bem-vindas das crianças e seus saberes, entrelaçando- ploração da notação musical espontânea e
especial, aqueles da vida cotidiana. (Brasil, nesse diálogo. -os aos conhecimentos que fazem parte do analógica pela criança.
2018, p. 203).
Por essas razões, considero mais pro- patrimônio cultural” (p. 40). Ninguém rea-
O texto dessa habilidade comporta um dutivo pensar o planejamento partindo liza interdisciplinaridade de maneira mais Foto: Arquivo pessoal da autora.
cardápio variado de escolhas estéticas, ar- das experiências musicais para a matriz, e natural do que a criança pequena, que des-
tísticas e culturais, de Bach a Beatles, gospel não na direção contrária. Podemos tomar conhece fronteiras entre cultura, arte, vida
a quilombola, Caetano a Lady Gaga, menes- como ponto de partida uma proposta mu- e música. Na primeira infância, ela se coloca
tréis renascentistas a repentistas nordesti- sical potente, levantando possibilidades e no mundo pela totalidade das experiências
nos, e assim por diante. Ou seja: uma tur- caminhos possíveis, os quais serão revis- corporal, estética, emocional, interpessoal.
ma em Diamantina (MG) ouvindo músicas tos e modificados em tempo real na inte- Os Campos de Experiências da educa-
de banda e escolhendo o repertório para a ração com os alunos. A partir desse leque ção infantil abrangem: as relações inter-
festa da cidade estará realizando a Habili- de possibilidades, podemos nos reportar à pessoais, nas quais a criança reconhece a
dade (EF15AR13) tanto quanto uma tur- matriz e anotar quais OADs e Habilidades si mesma e aos outros “como seres indi-
ma em São Paulo, capital, discutindo uma estão sendo contemplados. Dialeticamen- viduais e sociais” (p. 40); a expressão do

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V. 10 Nº 12 2020
Música na Educação Básica

CAMPO DE EXPERIÊNCIAS “TRAÇOS, SONS, CORES E FORMAS” volva competências para atuar criticamente rialidades”), processos criativos e formas de
em sociedade (não me refiro à visão neoli- registro. Os objetos de conhecimento tam-
OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM E DESENVOLVIMENTO
beral de competências, mas à capacidade bém misturam conteúdos musicais propria-
Bebês (zero a 1 ano e 6 meses) Crianças bem pequenas (1 ano e 7 meses a 3 anos e 11 meses) Crianças pequenas (4 anos a 5 anos e 11 meses)
de utilizar o conhecimento adquirido para mente ditos com formas de notação, e ain-
(EI01TS01) Explorar sons produzidos com o (EI02TS01) Criar sons com materiais, objetos e instrumentos musi-
(EI03TS01) Utilizar sons produzidos por materiais, obje- balizar a atuação no próprio contexto)? É da naturaliza a notação convencional como
tos e instrumentos musicais durante brincadeiras de faz
próprio corpo e com objetos do ambiente. cais, para acompanhar diversos ritmos de música.
de conta, encenações, criações musicais, festas. frustrante que, após tanto empenho da área padrão ao nomear de “não convencional”
em construir a percepção de música como as formas de registro gráfico dos sons que
(EI01TS02) Traçar marcas gráficas, em (EI02TS02) Utilizar materiais variados com possibilidades de mani- (EI03TS02) Expressar-se livremente por meio de dese-
diferentes suportes, usando instrumentos pulação (argila, massa de modelar), explorando cores, texturas, su- nho, pintura, colagem, dobradura e escultura, criando campo epistemológico inseparável da cultu- não utilizam pentagrama etc. Os descrito-
riscantes e tintas. perfícies, planos, formas e volumes ao criar objetos tridimensionais. produções bidimensionais e tridimensionais.
ra e do contexto, o documento pareça redu- res trazem modalidades de comportamen-
(EI01TS03) Explorar diferentes fontes sonoras e
(EI02TS03) Utilizar diferentes fontes sonoras disponíveis no am-
(EI03TS03) Reconhecer as qualidades do som (intensi- zir o fervilhar criativo da criança dessa ida- to musical (“composição/criação, execução
materiais para acompanhar brincadeiras canta- dade, duração, altura e timbre), utilizando-as em suas
das, canções, músicas e melodias.
biente em brincadeiras cantadas, canções, músicas e melodias.
produções sonoras e ao ouvir músicas e sons. de ao ensaio do hit emocional do momento e apreciação musical”) misturadas com re-
para apresentação do dia das mães! Graças pertórios e recursos pedagógicos como
Quadro 1: OADs para o Campo de Experiências “Traços, sons, cores e Chama atenção também a confusão a essa concepção, grande parte do que se “jogos, brincadeiras, canções”. Do ponto de
formas”. Fonte: Brasil (2018, p. 48), adaptado pela autora. pratica e se consome em educação musi- vista metodológico, a questão mais crítica,
conceitual e os equívocos pedagógicos
na enumeração de “brincadeiras cantadas, cal, especialmente nos segmentos iniciais, a meu ver, é a separação de procedimentos
São tantos os problemas reunidos nes- canções, músicas e melodias”. “Canções” tem sido limitado a fórmulas artisticamente como apreciar de perceber, explorar e expe-
sa pequena matriz que um detalhamento não são “músicas”? “Melodias” não são vernaculares, de pequeno impacto estético rimentar, que podem implicar planejamen-
completo ocuparia um artigo inteiro. Cin- “músicas”? O que se entende por “música”, e pouca relevância cultural. Observo muitas tos que fragmentam a experiência musical.
co dos seis descritores, à exceção do últi- afinal? Uma “canção” não pode ser uma práticas onde essa visão é mascarada pela Do ponto de vista conceitual, é espantoso o
mo (EI03TS03), são redundantes. A falta “melodia” e vice-versa? Ainda há que se aproximação com coloridos do universo da enunciado que lista como “elementos cons-
de recursos na escrita reflete tanto quanto mencionar o erro conceitual a respeito de infância, em salas decoradas com apetre- titutivos da música” os parâmetros do som
endossa uma prática empobrecida, apática gêneros e tradições musicais, subentendi- chos e recursos diversos. Mas a visão de en- “altura, intensidade, timbre, melodia, ritmo
e imitativa de modelos estereotipados. Em dos na frase “acompanhar diversos ritmos sino de música permanece bastante tradi- etc.” (p. 203). Ou seja, a concepção de mú-
vez de priorizar o fazer musical espontâneo de música” (EI02TS001). Essa expressão cional, com ênfase na repetição de modelos sica e de educação musical implícita na ma-
e criativo, o texto enfatiza repetidamente a pode até circular livremente no senso co- padronizados na qual a progressividade é triz é aquela tradicional, ou conservatorial,
exploração sonora “para acompanhar” re- mum, mas não em um documento curricu- medida pela leitura e discriminação de pa- como aponta Pereira (2013).
pertórios escolhidos pelo professor. Tal em- lar oficial dessa importância e abrangência, drões rítmicos e melódicos ou pelo desen-
pobrecimento revela uma desconexão com destinado a orientar a ação pedagógica de volvimento técnico instrumental.
Para saber mais a respeito da disputa
a natureza do desenvolvimento da criança. milhares de professores. ideológica nas versões da BNCC:
Link para a 2ª versão da BNCC, publicada
Isso transparece quando, por exemplo, se- em 2016: http://basenacionalcomum.mec.
Outro aspecto que chama atenção é que No ensino fundamental
para a exploração sonora do próprio fazer gov.br/images/relatorios-analiticos/bncc-
o texto vinha construindo a noção de prota-
musical nas brincadeiras cantadas (a crian- 2versao.revista.pdf DEL-BEN, Luciana; PEREIRA, Marcus V. M.
gonismo, mas esta é esvaziada em direção
ça não os separa!); ou quando minimiza Música e Educação Básica: sentidos em
a um fazer musical que culmina propondo a As matrizes de Habilidades do ensino disputa. In: SILVA, Fabiany C. T.; XAVIER
a participação do corpo nas Habilidades
utilização de sons em “brincadeiras de faz- fundamental (Brasil, 2018, p. 200-211) tam- FILHA, Constantina (org.). Conhecimentos
para crianças de um ano e meio a 6 anos (a
-de-conta, encenações, criações musicais, bém estão repletas de problemas. A música, em Disputa na Base Nacional Comum
criança se movimenta à menor sugestão so-
festas” (Brasil, 2018, p. 48). Trata-se de um entendida na Base como unidade temática Curricular. Campo Grande: Oeste, 2019. p.
nora!); ainda, quando aponta o reconheci- 189-209.
objetivo de aprendizagem e desenvolvi- do componente curricular Arte, é expressa
mento das qualidades do som (os parâme-
mento que valida situações estereotipadas em Objetos de conhecimento: Contextos e No ensino médio
tros intensidade, duração, altura e timbre)
em lugar de expressões legítimas da cultu- práticas, Elementos da linguagem, Materia- SANTOS, Micael Carvalho Dos. A educação
apenas na faixa dos 4 anos, como se o bebê
ra infantil das diferentes localidades. Como lidades, Notação e registro musical, Proces- musical na Base Nacional Comum
não distinguisse a voz da mãe de outras vo-
esperar que um estudante chegue ao final sos de criação (p. 202-203). Tal formatação Curricular (BNCC) - ensino médio: teias da
zes do ambiente. Além disso, a criança de 18 política educacional curricular pós-golpe
do ensino médio como sujeito protagonista desconsidera a interconexão entre “gêne-
meses já é capaz de controlar movimentos, 2016 no Brasil. Revista da Abem, v. 27, n.
e autônomo se a ele não é permitido fazê- ros de expressão musical” e os respectivos
coordenar esquemas mentais e experimen- 42, p. 52-70, jan./jun. 2019.
-lo desde a infância, uma vez que os OADs elementos que os constituem, bem como
tar ativa e intencionalmente diferentes ma-
insistem que ele “acompanhe” as propostas práticas, repertórios, fontes sonoras (“mate-
neiras de extrair sons de fontes sonoras.
do professor? Como pretender que desen-

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Música na Educação Básica

Ainda hoje é possível enxergar esse enfo- É muito importante estarmos conscientes primeiro caso, a música é uma prerrogati-
que conservatorial, herdeiro da tradição mo- de nossas crenças, porque cada um de nós va de todos e para todos e se aproxima da A música como
derna francesa, pela qual parte significativa tenderá a investir naquilo em que acredita e concepção cultural de educação musical. elemento fundante
dos professores mais experientes foi forma- rejeitar o que fere seus princípios. No segundo caso, não necessariamente, no da identidade das
da. Ele segue enraizado nos cursos superio- que tende à concepção conservatorial. Não
res de música organizados nos moldes “per-
É importante lembrar que, na 3ª versão
é porque a versão da BNCC que foi homo- culturas
da BNCC, a música passou a ser denomi-
cepção, harmonia, repertório predominante logada enfraquece a concepção de música
nada “área temática”, perdendo a creden-
de Bach à virada para o século XX”. Outra como expressão humana que nós, educa-
cial de linguagem, preceito que havia sido
tendência de educação musical seria a es- dores musicais, temos que fazer o mesmo
incluído na 2ª versão após amplo debate
tética, menos preocupada com os aspectos na nossa prática.
nacional. Enxergar música como linguagem
técnicos, com ênfase nos aspectos senso-
implica sua validação como área de conhe- Se não está claro para o professor a qual
riais, na contemplação desinteressada, na
cimento com processos e produtos pró- concepção ele se alinha, basta um rápido
expressão criativa, na imersão em sonorida-
prios e, portanto, de formação docente es- retrospecto das últimas aulas ministradas
des que repercutem em nós. O foco reside
pecializada (Brasil, 2016, p. 112). Existe uma para que ele se localize: como foram as au-
no impacto das sonoridades que arrepiam,
distância importante entre considerar músi- las? Que tipo de atividades, interações, ex-
anestesiam, no poder da música que fala di-
ca como linguagem e como uma área te- pectativas foram propostas? Que resultados
reto à nossa estesia. A concepção mais con-
mática. Linguagens são sistemas simbólicos foram alcançados e como foram avaliados?
temporânea seria a cultural, que tem como
pelos quais interagimos, argumentamos, Que repertório foi trabalhado: a tradição
lócus a prática social mediada pela música.
declaramos visões de mundo; portanto, são europeia, o hit comercial do momento, cria-
A bem da verdade, não é possível fazer ou
expressões humanas legítimas das práticas ções dos alunos? O que foi enfatizado: a
falar de música de maneira desvinculada de Imagem do curta-metragem A primeira flauta.
sociais, imantadas pela diversidade cultural. questão técnica e os parâmetros do som? Fonte: A primeira... (2017).
cultura. Ninguém pode estar fora, imune ou
Mas essa concepção de música como ex- A experiência estética, sensorial, sensível? O
alheio a ela! Bach é cultura, assim como Be-
pressão humana, presente na 2ª versão, foi contexto cultural, social e político? A minha Assista ao curta-metragem de
atles, bossa-nova, funk e o pop do momen-
substituída por “expressão artística” na 3ª visão, que impregna minha escrita e minha animação A primeira flauta:
to. Mesmo a “musiquinha” da rotina escolar https://www.youtube.com/
versão, enfraquecendo sua condição como prática, é em grande parte estética; aposto
é cultura; mas, em sua maioria, uma cultura watch?v=U98blcScuFI
linguagem humana. Errado não está: músi- no poder da experiência com sonoridades
empobrecida, reduzida de padrões rítmicos
ca é uma expressão artística, naturalmente. impactantes. É também fortemente cultural,
e melódicos convencionais e previsíveis. A
Mas já há algum tempo a educação musi- pela busca de validade e validação simbóli- Nesta proposta, vou me remeter ao texto
concepção cultural, no entanto, funda-se
cal brasileira saiu a campo(quem
e travou conta-
elaborou).
ca das singularidades das diversas culturas “A interdisciplinaridade da vida e a multidis-
no reconhecimento de saberes diversos
to com a importância da(s) cultura(s), da musicais. Mas não me furto de lançar mão, ciplinaridade da música”, de minha autoria
como legítimos e no direito de cada um à
diversidade, da identidade, da alteridade. quando apropriado, de estratégias da abor- (França, 2016, p. 89-94), publicado no volu-
sua expressão autônoma. Esta se configura
Aquele ensino musical de tradição france- dagem conservatorial para desvendar por me 7 da MEB. Ele se desenrola em torno do
em contraposição à hegemonia da música
sa, conservatorial, encontrou a música do que combinações sonoras soam vigorosa- livro de imagens A primeira flauta (França,
ocidental de concerto, um esforço de deco-
morro, do interior, do sertão, dos pampas, mente em nós, para identificar sonoridades 2013) e do respectivo curta-metragem de
lonização da educação musical.
do Pantanal, das aldeias, dos bares, das ga- que tornam as expressões culturais diferen- animação (A PRIMEIRA..., 2017). Na história,
Esses três enfoques, conservatorial, esté- ragens, dos estúdios e aplicativos de celular. tes entre si. Procuro conjugar essas três um menino dos tempos pré-históricos des-
tico e cultural, não são excludentes e podem As questões respectivas ao cotidiano e à tendências em propostas esteticamente cobre que é possível produzir sons ao so-
ser combinados com pesos variáveis nos di- cultura passaram a ser vistas como forma- impactantes, culturalmente relevantes e prar um osso oco. Grupos vão sendo atraí-
ferentes contextos. Como mencionei no iní- doras da concepção de música e de edu- tecnicamente acessíveis, para favorecer a dos pelos sons da flauta e passam a ensaiar
cio do texto, nossas escolhas pedagógicas cação musical. A mudança realizada da 2ª participação ativa dos alunos. Na próxima as primeiras danças, até que “o mundo in-
e musicais são de extrema importância. Elas para a 3ª versão não é simplesmente uma seção, compartilho uma proposta alinhada teiro” se renda à música. Trata-se de uma
são impregnadas por pressupostos, crenças substituição de palavras: representa o em- com essa visão e que procura superar limi- leitura poética da universalidade da música
e nuances ideológicas, portanto, políticas. bate entre a visão da música que ganha tações da BNCC ao interconectar Habilida- como expressão humana. O tema se abre
De uma canção despretensiosa ao orça- forma e se constrói no dia a dia da cultura des e extrapolar, inclusive, para campos in- generosamente à abordagem interdiscipli-
mento dos instrumentos utilizados, cada e a visão como expressão artística (p. 196), terdisciplinares. nar, dada a inserção da música na vida e na
escolha tem um pedigree epistemológico. sugestiva de uma aptidão diferenciada. No cultura que nos faz humanos.

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A história foi inspirada na descoberta de que surgirem; como se trata de um livro de sidade cultural e à maior autonomia crítica vídeo pode envolver a criação de playlists,
fragmentos de flautas de 35 mil anos feitas imagens, o reconto neste caso é uma ativi- e expressiva. A partir desse segmento, não o compartilhamento e a discussão sobre
de marfim de mamute, ossos de aves e de dade central. A respeito do campo “Quanti- cabe o trabalho com o livro; focamos no as peças que despertarem mais interesse,
urso. Elas possuem orifícios semelhantes
dades, relações e transformações”, podem curta-metragem e nos achados musicoló- apontando-lhes semelhanças e diferenças
aos das flautas modernas, o que sugere
que nossos ancestrais exploravam ser traçadas conexões com a estrutura da gicos sobre os instrumentos pré-históricos. sonoras, corporais, emocionais, simbólicas e
diferentes alturas e, assim, possivelmente história e do curta-metragem, sequências Após a improvisação inicial, podemos am- outros aspectos.
tocavam melodias. dos eventos e linhas de tempo relaciona- pliar a discussão sobre o contexto da his-
Essa proposta tem sido realizada por
dos também a eventos da história familiar tória e elaborar a releitura da mesma com
mim e por vários colegas em escolas pú-
das crianças; propriedades dos elementos, a criação de passos rítmicos. A proposta
blicas e privadas, em projetos sociais e
como osso, vento e instrumentos, também ganha corpo e pode se estender como um
estúdios particulares.1 No Quadro 2, as ati-
são pertinentes, assim como as combina- projeto durante várias aulas. Podemos apro-
vidades são cotejadas com os OADs e as
ções de ritmo, andamento, timbres, textu- fundar a relação entre a música e o proces-
Habilidades propostas na BNCC para os
ras e outros atributos da trilha sonora. Um so de civilização das sociedades primitivas,
quatro segmentos. Esse exercício permite
Fragmentos de flautas esculpidas em osso de abutre e de detalhamento de possibilidades ocuparia o trazendo o debate para a atualidade e ex-
urso, respectivamente, encontrados na caverna Hohle Fels, na visualizar como a vitalidade das experiên-
Alemanha. espaço de outro artigo, certamente. plorando rupturas e permanências. Essa
cias musicais não encontra contrapartida
Fonte: Associated Press e Reuters. discussão contribui para ressignificar a ex-
automática em um ou outro descritor, mas
periência corporal, vocal e instrumental da
abrange e integra diversos destes. Além das
Vídeo de réplica da flauta pré-histórica: história, abrindo o leque para a apreciação
propostas específicas de música, incluí des-
https://www.youtube.com/ de áudios e vídeos impactantes de música
critores de outras artes (todos os que estão
watch?v=AZCWFcyxUhQ &t=7s e movimento conjugados, seja uma bateria
entre parênteses) e também diálogos in-
de uma escola de samba ou a dança dramá-
terdisciplinares (os que estão sublinhados).
tica Kecak, da Indonésia. Cabe uma aborda-
Para a leitura do quadro, o leitor pode se
O trabalho com o livro e o curta-metra- gem da escuta mais detalhada que ajude a
reportar às matrizes da BNCC nestes links:
gem pode propiciar inúmeras experiências compreender por que uma música é esteti-
de prática musical e discussão nos vários camente tão impactante para uns ou outros Educação infantil:
segmentos escolares, mobilizando diversos e como culturas musicais podem soar tão http://basenacionalcomum.mec.gov.br/
abase/#infantil/osobjetivos-de-aprendiza-
níveis de complexidade musical e profundi- diferentes entre si em função dos seus ma-
gem-e-desenvolvimento-para-aeducacao-
dade reflexiva. Na educação infantil, a ên- tizes situados no tempo e no espaço. -infantil
fase será na leitura e na interpretação oral
da história e no fazer musical espontâneo Fundamental – Anos iniciais:
Link para o vídeo da Kecak Dance, ritual
com foco no movimento e na exploração de da Ilha de Bali, Indonésia: https://www. http://basenacionalcomum.mec.gov.br/
Apreciação do curta-metragem. Foto: Vinícius Eufrásio.
sonoridades. Podemos contemplar pratica- youtube.com/watch?v=aGXcnWUqV-Y abase/#fundamental/arteno-ensino-funda-
mente todos os OADs do Campo de Expe- mental-anos-iniciais-unidades-tematicas-
riência “O eu, o outro e o nós”, em especial Nos anos iniciais do fundamental, a ên- objetos-de-conhecimento-e-habilidades
Com os alunos do ensino médio, pode-
o EF03EO006; todos do campo “Corpo, fase se dará na experimentação e na reali-
mos avançar o debate e dialogar com as Fundamental – Anos finais:
gestos e movimentos”, exceto o 004 (ain- zação sonora, ressignificando o contexto
áreas de antropologia, sociologia, filosofia, http://basenacionalcomum.mec.gov.br/
da que se aplique, indiretamente). Do cam- da história no cotidiano e em interação com
política, religião e cultura. O foco se dará abase/#fundamental/arteno-ensino-funda-
po “Traços, sons cores e formas”, o 001 e as demais formas de expressão artística e
na perspectiva histórica e social da músi- mental-anos-finais-unidades-tematicas-ob-
o 003 são centrais; o 002 será trabalhado cultural, incluindo as diferentes formas de jetosde-conhecimento-e-habilidades
ca como mediadora da formação da iden-
se houver desdobramento para a notação interação corporal dos personagens com a
tidade dos grupos, além de aproximações
musical analógica; ainda, se a proposta in- música. À medida que os alunos vão cons-
com a contemporaneidade nas implicações Ensino médio:
cluir a produção de arte parietal e de arte- truindo as noções de tempo e espaço, as http://basenacionalcomum.mec.gov.br/
simbólicas, ritualísticas, estéticas, sociais e
fatos. Todos os OADs do campo “Escuta, dimensões histórica e social da origem e da abase/#medio/linguagense-suas-tecnolo-
políticas da música dentro das diversas cul-
fala, pensamento e imaginação” podem ser função da música poderão ser problemati- gias-no-ensino-medio-competencias-espe-
turas. A pesquisa de repertório em áudio e cificase-habilidades
mobilizados em maior ou menor grau, de- zadas. Nos anos finais do fundamental, essa
pendendo do enfoque e das oportunidades perspectiva é ampliada em direção à diver-
1. E
 ssas atividades foram realizadas em contextos urbanos da região Sudeste, com perfis socioeconômicos variados.

40 | Cecília Cavalieri França BNCC e educação musical: muito barulho por nada? | 41
Apreciação de áudios e vídeos que envolvam percussão TS03 13, 14 (24) 16, 18, 19, V. 10 Nº 12 2020
(102)(502)
instrumental e corporal, como dos grupos Barbatuques, (25) (28) 20 (25)
Música na Educação Básica

Stomp, danças indígenas, folclóricas e de outros matizes (34)


estéticos.

Criação de combinações rítmicas e passos dança (CG01) (08) (10) (09) (10) (201)(301)
CÓDIGOS DE OADs E HABILIDADES inspirados nas imagens; prática de batimentos e (CG02) (11) 14, 15, (12) (13) (501)(503)
Ed. Inf. Fund. Fund. Ensino sonoridades corporais; realização com os grupos (CG03) 17 (19) (20) 20, 23 (25) 603, 604
4-6 anos Iniciais Finais Médio espalhados pela sala, criando um ambiente estereo- TS01 (21) (22) (29)
fônico. TS03, EF02,
ATIVIDADES EI03... EF15AR... EF69AR... EM13LGG EF04

Improvisação coletiva: o professor toca na flauta melodias (CG01) (08) (10) 20, 23 603 Apreciação de músicas que exploram o contraste entre (EF04) 13, 14 (24) (09) 16, 18, 601, 602,
ou improvisos, ou coloca a gravação de um solo de (CG02) (11) 14, elementos percussivos e solo de flauta, como Tomarape- (EF05) (25) 19, 20 (34) 604
flauta. Os alunos são estimulados a se comunicarem (CG03) 15,17 ba, de Egberto Gismonti, e Earth, do Uakti e outras.
musicalmente com o solista improvisando movimentos TS01,
e percussão corporal em pequenos grupos, que depois TS03, (EF2) Criação de audiopartituras, esquemas ou outros tipos de TS03 (02) 16 22 603
podem interagir entre si em uma performance mais notação para as obras apreciadas.
extensa, com entrada e saída de grupos alternadamente,
com simultaneidades e silêncios regidos pelo professor. Discussão sobre o contexto da história: como seria a (EF04) 13 16 (31) (101)
música tocada, e em que ocasiões ocorreriam? Qual seria (EF05) (33) (34)
Apresentação do livro A primeira flauta; leitura das (EO06) (01) (03) a duração das músicas? Haveria cantos? Danças? Percus-
imagens e reconto da história por um ou mais alunos; (EF01) (04) são corporal? Outros instrumentos além da flauta?
comentários, observações, interpretação e discussão (EF03)
sobre opiniões diferentes, visando à construção de (EF04) Realização corporal, percussiva e instrumental simultane- (CG01) (08) (10) (03) (09) (503) 601,
significados. amente à exibição do curta. (CG02) (11) 14, (10) (12) 602, 603
(CG03) TS01 15,,17 (13) 20,
Discussão sobre o fazer musical em conjunto, na escola, (EF01) 13 16 (31) (101) 604 (EF02 23 (25) (29
em família, com os amigos, em grupos musicais diversos.
Releitura da história com instrumentos de sopro e/ou TS01, TS03, 14, 15, 17 20, 23 (101)(102)
Discussão sobre a notação do som do vento e da flauta, TS03 (02) 16 aerofones construídos pelos alunos, tambores variados EF02, EF04 (302) 601,
nas páginas 14 a 21 do livro, e realização com voz ou e outros; exploração de sonoridades para a realização do 604
aerofones. som do vento; elaboração do som de soprar o osso.

Criação e realização coletiva de notações analógicas a (TS02) TS03 16 Discussão sobre o papel da música na coletividade, 13 16 (31) (101)(102)
partir da história. situações em que ela aproxima as pessoas; que tipo de (33) (34)
música seria tocada? Que sensações e sentimentos teria
Análise e leitura de obras em notação analógica, como TS03 16 (04) 22 (102) despertado?
Snowforms, de M. Schafer, e Fontana Mix, de John Cage.
Interação com Artes visuais, Dança e Teatro: pesqui-sa (01) (02) (01) (02) (103)(104)
Interação com Artes visuais: apreciação, criação e releitura TS02 (01) (03) (01) (05) sobre outras manifestações artísticas da Pré-história, (03) (08) (03) (05) (105)(202)
de arte rupestre de sítios arqueológicos brasileiros e (04) (05) (06) (07) notadamente do Paleolítico Superior, imagens e vídeos de (10) (20) (06) (07) (301)(302)
estrangeiros, incluindo as “mãos em negativo”. (06) (25) esculturas, da arte parietal, de adornos e outros. Releitura (21) (22) (09) (10) (502) 601,
das expressões artísticas do período, pesquisa de mate- (12) (13) 602, 603,
Apreciação do curta-metragem A primeira flauta. (CG01) (04) 13, 14, (03) (05) (101)(103) riais para criação de objetos e instrumentos, ensaio de 16, 22, 23 604
Discussão sobre semelhanças e diferenças entre o livro, (CG02) 16 (23 (09) 16, 17, (104)(105) passos de danças primitivas, construção de exposição de (25) (29)
o curta-metragem e as atividades de improvisação, (CG03) 20, 22 (32) (502) 601 adornos e instalação de murais. (31)
sonorização e notação musical realizadas. TS01, (35) (33) (34)
TS03, EF02,
EF04 Interação com as equipes de Geografia e História: situação EF... EF... EM-
desses achados no espaço geográfico e no tempo histórico 04HI02 06HI01 13CHS105
Releitura da história, com batimentos corporais, sons (CG01) (11) 14, 15, 20,21, 23 (201)(301) por meio da construção de mapas e de uma linha do tempo. 05HI08 06HI02
vocais, instrumentos de percussão e movimentos (CG02) 17 (501)(503) Discussão: de que materiais teriam sido feitos os primeiros 05HI10 06HI07
expressivos espontâneos ou ensaiados. (CF03) TS01 603, 604 instrumentos musicais? Como teriam sido construídos e 04GE01 06HI08
TS03 (EF02) como seriam tocados? Que avanços tecnológicos podem 02CI01 09GE03
(EF04) ter influenciado o desenvolvimento de novos instrumentos? 02CI02
Por que só foram encontrados instrumentos de osso, 03CI01
Apreciação de áudios e vídeos que envolvam percussão TS03 13, 14 (24) 16, 18, 19, (102)(502) dessa época? Ao longo de que escala de tempo esses
instrumental e corporal, como dos grupos Barbatuques, (25) (28) 20 (25) instrumentos teriam se desenvolvi-do? Quanto tempo
Stomp, danças indígenas, folclóricas e de outros matizes (34) teria transcorrido entre os primeiros “sopros” e a reunião
estéticos. de grupos em torno da música? É possível situar essas
informações em uma linha de tempo?
Criação de combinações rítmicas e passos dança (CG01) (08) (10) (09) (10) (201)(301)
inspirados nas imagens; prática de batimentos e (CG02) (11) 14, 15, (12) (13) (501)(503) Interação com Ciências (acústica): como a música deveria 14, 15, 17 EF06CI12
sonoridades corporais; realização com os grupos (CG03) 17 (19) (20) 20, 23 (25) 603, 604 soar naquelas cavernas? Como os primitivos entenderiam
espalhados
42 | Cecília Cavalieri Françapela sala, criando um ambiente estereo- TS01 (21) (22) (29) o eco? Teriam sentido medo? Exploração de efeitos de eco, BNCC e educação musical: muito barulho por nada? | 43
Por que só foram encontrados instrumentos de osso, 03CI01
dessa época? Ao longo de que escala de tempo esses V. 10 Nº 12 2020
Música na Educação Básica instrumentos teriam se desenvolvi-do? Quanto tempo
teria transcorrido entre os primeiros “sopros” e a reunião
de grupos em torno da música? É possível situar essas
informações em uma linha de tempo?

Interação com Ciências (acústica): como a música deveria 14, 15, 17 EF06CI12
soar naquelas cavernas? Como os primitivos entenderiam
o eco? Teriam sentido medo? Exploração de efeitos de eco,
pesquisa sobre efeito Doppler, realização com grupos distri-
buídos pelo espaço, criando um ambiente estereofônico.

Discussão: como e por que a música aproximava 13 (08) 16 (101)(202)


pessoas? Que sensações e sentimentos ela teria (31) (33) (302)(303)
despertado? Por que ela teria o poder de fortalecer o (502) 601,
vínculo dentro das sociedades e entre elas? Have-ria 604
diferenças de gênero e de idade nos papéis musicais?
Haveria “plateia”? Serenatas? Danças ao redor do fogo
então descoberto? Será que havia mú-sicas favoritas
entre diferentes pessoas e grupos? Os indivíduos musicais
seriam tratados de maneira especial? Teriam “privilégios”?

Discussão: como a música pode ter contribuído para a (12) 16, (101)(202)
construção da identidade dos grupos sociais? 17, 18 (31) 604
(34)

Discussão: que conexões podemos tecer entre arte, (01) (02) (101)(102)
desenvolvimento humano, sociedade, política e cultura 16, 17 (31) (202)(204)
pré-histórica comparativamente à contemporaneidade? (33) (34) (302)(303)
Que inferências podemos fazer sobre o mundo simbólico, (305)(502)
espiritual, lúdico, estético e artístico das sociedades 601, 604 Cueva de las Manos, Santa Cruz, Argentina.
primitivas? Como esses questionamentos sobre o Outras possibilidades e desdobramentos Fonte: Our ancient World.
papel da música podem se atualizar na educação e na EM... podem surgir a partir das especificidades
sociedade contemporâneas visando à preservação de si CHS101 dos contextos. Escolas do campo podem
e do entorno, ao bem-estar, à alegria, ao culto, aos rituais, CHS103 promover interações com o patrimônio na-
à contemplação estética? Como a música compõe o CHS104
tural e geológico local, experiências acús-
tecido da cultura que faz a mediação entre a experiência
individual e a coletiva? ticas em grutas em parceria com a área
de Ciências, por exemplo (no box há indi-
Quadro 2: Atividades musicais e sua relação com códigos da BNCC. cações de vídeos incríveis). Estudantes do
Piauí podem visitar o Sítio Arqueológico da
Instalação de caverna sonorizada em mostra cultural. Projeto e
foto de Vinícius Eufrásio.
Serra da Capivara, em projetos integrados
de História, Geografia, Artes visuais e Músi-
ca. A pintura das mãos em murais, à seme-
lhança do painel da Cueva de las Manos, na
Patagônia, Argentina, é um projeto de fácil
realização muito apreciado pelos alunos e Elaboração de mural coletivo. Fotos: Ricardo Poeira.

também bastante simbólico da impressão


da identidade e autoria, prerrogativas da
arte. A exploração de sonoridades de ins-
trumentos artesanais feitos de materiais
colhidos na natureza também desperta um
interesse mais perene pela pesquisa sonora.
Escolas com laboratórios de informática ou
estúdios podem utilizar programas de gra-
vação e edição para criação de trilhas so-
noras com esses instrumentos, e assim por
Projeto sobre instrumentos alternativos e pesquisa de materiais da
diante. natureza. Fotos: Vinícius Eufrásio.

44 | Cecília Cavalieri França BNCC e educação musical: muito barulho por nada? | 45
V. 10 Nº 12 2020
Música na Educação Básica

Vídeos de alguns sítios rente às incontáveis formas de ser e estar no


arqueológicos: mundo e de conhecê-lo. Essa premissa se Autora Referências
desdobra na necessidade de nos expressar-
Serra da Capivara, Piauí: https://globoplay.
mos dentro da nossa própria tradição e na A PRIMEIRA flauta. Direção: Simon Brethé e Ricardo Po-
globo.com/v/6313412/?s=0s
disponibilidade de conhecer as demais – o eira. Produção: Cecília Cavalieri França e Ricardo Poeira.
Cueva de las Manos, Argentina: https:// conhecimento de si e o reconhecimento do Curta-metragem de animação. Belo Horizonte: MUS Pro-
www.youtube.com/watch?v=rfA9HXitdrc dução e Poeira Estúdio, 2017.
outro, reciprocamente. É improvável que
Sons de água pingando em gruta, com consigamos abordar uma grande varieda- Cecília Cavalieri BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum
reverberação: https://www.youtube.com/ de de gêneros e expressões musicais no li- França Curricular. Segunda versão revista. Brasília, MEC/Consed/
musproducao@gmail.com Undime, 2016. Disponível em: http://basenacionalcomum.
watch?v=0m2dpBCPivk mitado espaço da nossa ação pedagógica, mec.gov.br/images/relatorios-analiticos/bncc2versao.re-
Órgão de estalactites, na Virgínia, EUA: mas acredito que seja possível capacitar- vista.pdf. Acesso em: 5 jan. 2021.
h t t p s : // w w w . y o u t u b e . c o m / mos nossos alunos quanto a essa disponi- Cecília Cavalieri França é educadora musi- BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum
watch?v=paIJFddHS8k bilidade, ou seja, à condição de respeitar e cal, pesquisadora, compositora e escritora. Curricular (BNCC). Educação é a Base. Brasília: MEC/
eventualmente fruir aquela música diversa É Ph.D. e Mestre em Educação Musical pela Consed/Undime, 2018. Disponível em: http://basenacio-
Universidade de Londres, Especialista em nalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_EI_EF_110518_
da sua e assim se apropriarem todos desse versaofinal_site.pdf.
espaço simbólico compartilhado. Educação Musical e Bacharel em Piano pela
O melhor arranjo Considerando, portanto, que a BNCC é
UFMG, onde também atuou como professo- FRANÇA, Cecília C. A primeira flauta. Belo Horizonte: Fino
Traço, 2013.
ra. É fundadora e diretora da MUS Produção e
possível um arranjo possível, que matrizes são abs- Consultoria em Educação Musical, onde atua FRANÇA, Cecília C. A Interdisciplinaridade da vida e a
Espero que tenha sido possível observar trações, que currículos adquirem sentidos com formação de professores, editoração e multidimensionalidade da música. Música na Educação
diversos nas interações com os alunos, po- produção de conteúdo pedagógico. Autora Básica, Londrina, v. 7, n. 7/8, p. 86-95, 2016.
como as atividades são fluidas, interconec-
demos nos sentir encorajados a dialogar de inúmeras obras para educação musical, PEREIRA, Marcus Vinícius M. Traços da história do currí-
tadas, vívidas, imprevisíveis e estimulan-
com o documento e a não nos submeter incluindo artigos publicados em diversos culo a partir da análise de livros didáticos para a educação
tes, ao passo que os descritores são duros,
automaticamente e acriticamente a ele. Po- periódicos, CDs infantis autorais, obras para musical escolar. Revista da Abem, Londrina, v. 24, n. 37,
abstratos, fragmentados. Ainda que a Base professores, livros didáticos para a esco- p. 17-34, jul./dez., 2016.
não tivesse problemas, ela continuaria sen- demos nos apropriar dos pontos positivos,
incorporar às nossas reflexões e práticas la regular, como a coleção Trilha da Música,
do uma base; quem constrói o currículo e livros paradidáticos e de literatura infanto-
decide a respeito dos fazeres musicais são aspectos que talvez estejamos deixando de
-juvenil, para ensino de piano e repertório de
os educadores diretamente envolvidos nas lado, mas não temos que dar passos atrás
canções, e curtas-metragens de animação.
respectivas escolas. Em vez de “nos espre- em práticas que já fazíamos bem simples-
Atua como consultora, palestrante e profes-
mermos” em meia dúzia de descritores, mente para rezar na cartilha do documen- sora, especialmente nas áreas de desenvolvi-
creio que podemos nos manter fiéis a nós to, um arranjo possível, abstrato, generali- mento musical e planejamento pedagógico.
mesmos, aos nossos alunos e ao estatuto zado, hipotético. O foco do nosso trabalho www.ceciliacavalierifranca.com.br
intrínseco à música que nos diz respeito. É não são as matrizes de habilidades, não é o
hora de transcendermos a concepção de documento da BNCC, mas, sim, a música, Acompanhe meu canal no youtube
a relação das crianças e dos jovens com a https://www.youtube.com/channel/UC0ar-
música anacrônica e fragmentária, ratifica-
música e o entendimento dos sentidos en- 24Bet-W7vcCTIVS6qVw
da pela BNCC, na qual a música é tida como
uma instância abstrata e independente dos volvidos nessa relação. Naturalmente, cada
sujeitos, em favor de uma abordagem que um dos professores, contextos e alunos
a compreenda como uma ação subjetiva e contará suas próprias histórias.
criativa enraizada na cultura, com significa-
dos múltiplos e conexões potentes.
Dizer que música é expressão humana
implica que ela seja essencialmente cons-
tituinte da nossa natureza; que ela ganhe
forma e sonoridades específicas em cada
contexto; que seja multidimensional e ine-

46 | Cecília Cavalieri França BNCC e educação musical: muito barulho por nada? | 47
V. 10 Nº 12 2020
Música na Educação Básica

Música na Educação Básica

Música na Educação Básica

Harmônica: uma
opção no ensino de
música para as crianças
José Staneck
Instituto Música Brasilis

Harmonica: an option in teaching


music to children

Abstract
Resumo An amusement for lonely souls, the
Passatempo das almas solitárias, a harmonica fits into a wide variety
harmônica se insere numa grande of music genres. Owing to its back-
variedade de contextos e estilos ground as a fundamentally popu-
musicais. Por ser um instrumento lar instrument, the harmonica has
fundamentalmente popular, sempre always been played as an intuitive
foi tratada de forma intuitiva e com practice and, therefore, there are not
poucas publicações acadêmicas, não many academic publications about
estando ainda inserida nas grades it. Furthermore, it is not even includ-
de ensino dos cursos técnicos, ed in the syllabus of technical cours-
universitários ou mesmo em projetos es, universities or social projects of
sociais de ensino de música. Neste musical education. This article offers
artigo, além de contar um pouco de an insight on its history together with
sua trajetória e demonstrar algumas some of the most important charac-
de suas principais características, teristics and presents a proposal on

Foto: Acervo pessoal do autor.


proponho algumas ações no ensino what to do when teaching the prin-
de música para as crianças em escolas ciples of music to children in schools
e projetos sociais. and social projects.

Palavras-chave: Gaita. Harmônica. Keywords: Harp. Blues harp. Har-


Ensino de instrumento. monica. Music instrument teaching.

STANECK, José. Harmônica: uma opção no ensino de música para as crianças. Música na Educação
Básica, v. 10, nº 12, 2020.

49
V. 10 Nº 12 2020
Música na Educação Básica

ORIGEM
A harmônica teve a sua origem em um
antigo instrumento chinês, existente há sé-
culos em algumas regiões da Ásia oriental,
chamado sheng, que significa voz sublime.

P
Sua construção se baseia na junção de tu-
assatempo das almas bos de bambu dispostos verticalmente em
solitárias, a gaita tem a forma circular sob uma base onde se situa o
singeleza dos brinquedos re- bocal, com seu orifício na lateral. Cada tubo
motos. Muitas são as histórias dos que contém na sua parte interna uma palheta
foram embalados em sua infância por uma de vibração livre que, inicialmente, era ma-
canção que, mesmo depois de anos, ainda nufaturada em bambu e nos dias de hoje é
lhes remete a um momento permeado de produzida em metal. Na parte inferior dos
afeto. Muitos a tiveram em suas mãos tendo tubos, encontram-se orifícios que serão blo-
a oportunidade de vivenciar essa cativante queados ou não com os dedos, de acordo
experiência. Escondida entre as mãos, em com a nota ou conjunto de notas que se
um só corpo e movimento, é difícil que haja deseje tocar. O sheng acabou sendo a ins-
intimidade maior entre gaita e gaitista. Em piração na construção tanto da harmônica
sua característica única, expirando e inspi- quanto do acordeão e do bandoneon.
rando, o músico transforma o som em um
lamento que remete ao imaginário onde
pastores tocam rebanhos. Para ver e ouvir
Embora pequena, a gaita possui uma
Uma excelente demonstração pode ser
infinidade de recursos e tem sido utilizada
encontrada em https://www.youtube.com/
com grande sucesso em diversos estilos GAITA OU HARMÔNICA? watch?v=qkkA5yWrvww Aeolian, o precursor da gaita.
musicais dentro dos mais variados con- Algumas variáveis ocorrem no Brasil Fonte: https://www.patmissin.com/history/aeolina.html.
textos, seja na música popular, no jazz e quanto à sua designação. Na maioria
no choro, seja na música de concerto. No das regiões, é chamada de gaita ou gai- Foi então que, na primeira metade do sé-
entanto, percebemos que o instrumento ta de boca para se diferenciar da sanfo- culo XVIII, na Alemanha, o organista e afina-
ainda é muito pouco conhecido e que ele na, que no sul do país também é cha- dor Christian Buschmann desenvolveu a har-
ainda terá que trilhar um longo caminho até mada de gaita, ou mesmo de gaita de mônica como a conhecemos nos dias atuais
que possa se firmar nos cenários artístico fole escocesa. No nordeste brasileiro é e em seguida produzida comercialmente
e educacional. Por sua característica funda- conhecida como realejo, confundindo- Sheng. pela primeira vez por Mathias Hohner.
mentalmente popular, a harmônica sempre -se com o instrumento que produz som
Fonte: https://www.sco.com.sg/en/.
foi tratada de forma intuitiva. Poucas são as
por meio da ação de uma manivela se-
publicações acadêmicas que a referenciam melhante a um órgão portátil. No blues,
em estudos descritivos, tanto nas questões onde se faz muito presente, na língua Imagens do Museu Alemão
da Harmônica, na cidade de Trossingen.
interpretativas, no desenvolvimento de re- inglesa é chamada de harp ou blues Fonte: https://harmonika-museum.de.
pertórios e nas técnicas de execução quan- harp. Harmônica é sua designação mais
to na sua utilização na educação musical. internacional, portanto mais abrangen- Em sua primeira forma, chamada de ae-
Fato é que até os dias de hoje a harmônica te, mas também podemos encontrá-la olian, foram dispostas algumas palhetas
ainda não se encontra inserida nas grades com o aposto harmônica de boca, em numa placa de metal, de maneira que se
de ensino dos cursos técnicos ou universi- especial se fizermos a tradução direta produzia o som assoprando-se diretamente
tários, ou mesmo em projetos sociais de en- do alemão – mundharmonika. na placa de vozes.
sino de música.

50 | José Staneck Harmônica: uma opção no ensino de música para as crianças | 51


V. 10 Nº 12 2020
Música na Educação Básica

Note que a escala completa só aparece


COMO FUNCIONA na região central do instrumento – orifícios
Para ver e ouvir
A gaita possui em sua embocadura um 4 a 7. Nas regiões graves e agudas existe
conjunto de furos por onde o instrumentista uma organização estrutural que possibilita
A gaita no blues:
sopra ou aspira, fazendo vibrar, individual- realizar um movimento cadencial do acorde
Sony Boy Williamson – harmônica solo dominante para o tônico (G7 – C).
mente ou não, as palhetas de metal, com a
https://www.youtube.com/watch?v=GOFbfY-wY1I
passagem do ar – conceito de palheta livre. Flávio Guimarães – “The Blues Follows me”
https://www.youtube.com/watch?v=fRzGqrlKeGg
Love me do, dos Beatles (Lennon e
2. A Cromática https://chromhistory.wordpress.com/
McCartney, 1958-9)! A popularização da diatônica e a conse- Placa de vozes da cromática.
https://www.youtube.com/watch?v=0JWl_wUOQc4 quente expansão de sua utilização nos mais
diversos repertórios levaram à necessidade A cromática foi idealizada respeitando os
O instrumento possui dez orifícios com de se criar um novo modelo de harmônica mesmos princípios da diatônica, mas acres-
Palheta livre. Fonte: Wikipedia. duas placas de vozes. Na superior fixam-se que contivesse a escala completa de acordo centando um bocal e uma chave justapos-
https://pt.wikipedia.org/wiki/Harm%C3%B3nica_(instrumento_musical).
as palhetas sopradas e, na inferior, as aspira- com o sistema temperado ocidental – equi- tos na parte frontal do instrumento.
das. Sendo assim, cada orifício produz duas valente às notas brancas e pretas do piano.
Relacionadas ao mesmo orifício, as pla-
Dois são os modelos mais utilizados: notas da escala, que podem ser tocadas Surge assim, no final do século XVIII, a cro-
cas de vozes conterão agora duas palhetas
nota a nota isoladamente ou em bloco de mática; ela chega ao seu formato atual já no
na parte superior e duas na parte inferior.
acordes. início do século XIX.
1. Gaita diatônica Desta maneira, com a ação da chave, pode-
-se variar o fluxo de ar entre as duas placas,
obtendo, assim, quatro notas por orifício: ao
acionar a chave, o fluxo de ar é direcionado
para a placa inferior.

Gaita diatônica
a) b)

A diatônica chegou aos Estados Unidos Placa de vozes da diatônica. Fonte: Wikipedia.
durante a Guerra Civil Americana, na segun-
da metade do século XVIII. Ela passou a ser o Este modelo de gaita é chamado diatô- Gaita cromática.
a) Chave aberta, b) chave fechada.
instrumento dos negros, especialmente por nico porque nele só constam as notas per- Fonte: Arquivo pessoal do autor.
seu baixo custo e portabilidade, expandindo tencentes ao tom, ou seja, não possui notas
sua expressão para além dos temas tradi- alteradas (acidentes). Por essa razão, po-
dem ser encontradas opções de gaita em
Estrutura das notas na cromática
cionais e folclóricos: a gaita tornou-se o ins-
trumento que viria a caracterizar o blues. O diferentes tonalidades. Tomando como re- Esta é a distribuição das notas na cromática de 48 vozes (3 oitavas).
universo do country e o pop também foram ferência a gaita em Dó, a sequência de no- A cada quatro orifícios, a estrutura das notas se repete: de 1 a 4, 5 a 8 e 9 a 12.
marcados pela presença da gaita, nos solos tas nesse modelo de gaita é a seguinte:
de Bob Dylan, Mick Jagger e dos Beatles.

Estrutura das notas na diatônica. Fonte: Arquivo pessoal do autor.

52 | José Staneck Harmônica: uma opção no ensino de música para as crianças | 53


V. 10 Nº 12 2020
Música na Educação Básica

Para ver e ouvir

 gaita na música de concerto...


A
•C oncerto para Harmônica e Orques-
tra, de Villa-Lobos – I movimento

https://www.youtube.com/
watch?v=IKMiuKn1vp8

• Concertino Romântico para Harmô-


nica e Orquestra de Aluísio Didier
sob os rascunhos de Tom Jobim
https://www.youtube.com/
watch?v=8rhDgs_7Lqc
Para saber mais:
• Libertango – Astor Piazzolla, com o Crianças da Rede Municipal do Rio de Janeiro
Quatro publicações acadêmicas se debruça-
Harmonitango
https://www.youtube.com/
ram em assuntos diversos da harmônica: UTILIZAÇÃO DA GAITA NA
watch?v=0jlI205mG8A FAGUNDES, Pablo Viejo. Utilização de espé- EDUCAÇÃO MUSICAL INFANTIL
cies de madeiras amazônicas na fabricação
No jazz: do corpo da gaita diatônica. Departamento
Na fase inicial, a maneira de segurar o ins-
Nos últimos 15 anos, tenho participado
• Blusette – Toos Thielemans de Engenharia Florestal, Faculdade de Tec-
de vários projetos utilizando a harmônica trumento e sua embocadura é normalmente
nologia, Universidade de Brasília, Brasília,
na educação infantil, por meio de oficinas, o alvo das primeiras atenções, mas, mesmo
2003.
cursos e concertos didáticos. Algo em torno que estas questões ainda não estejam resol-
PINHEIRO, Edson Tadeu de Queiroz. Harmô- de 3 mil crianças, a partir dos 7 anos, tive- vidas, podemos pensar em tocar alguns tre-
nica cromática: sua escrita em formações chos e fazer alguns exercícios nos quais os
ram acesso ao instrumento e a informações
orquestrais nas obras de Heitor Villa-Lobos,
básicas sobre a harmônica. Tenho trabalha- alunos terão um forte estímulo devido aos
Radamés Gnattali e César Guerra-Peixe. Dis-
https://www.youtube.com/ do nesse contexto, no sentido de ampliar rápidos resultados iniciais alcançados.
sertação (Mestrado em Música) – Instituto de
watch?v=6xLw61bTfJU essas atuações, pois acredito que a gaita é
Artes, Universidade Estadual Paulista, São
Paulo, 2018. um instrumento de forte empatia junto aos
No choro: que estão se iniciando no mundo da música.
• Desvairada – Garoto, com Pablo RIOS, Ailton Carneiro. Estudo da Música atra-
Fagundes vés da Harmônica. Artigo científico apresen- Para demonstrar sua utilização no ensi-
tado ao grupo Educamais como requisito no infantil, propomos aqui três ações que
parcial para obtenção do título de Pós-Gra- possam refletir alguns procedimentos pos-
duação em Educação Musical. São Paulo, síveis. Para nossa exemplificação, utilizare-
Posição da mão Embocadura
2020. mos a diatônica afinada em Dó, por se tratar
TEIXEIRA, Natanael Pereira. Musicalização de um instrumento de tamanho menor que
através da Harmônica Diatônica. Trabalho de se adéqua bem às mãos das crianças e que
https://www.youtube.com/ Graduação. Centro de Humanidades, Univer- tem um valor bastante acessível. Os mode-
watch?v=6N0AcGAwObA sidade Estadual do Ceará, Fortaleza, 2017. los mais populares custam o preço aproxi-
mado de uma flauta doce.

54 | José Staneck Harmônica: uma opção no ensino de música para as crianças | 55


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Música na Educação Básica

PROPOSTA 1 Valsa PROPOSTA 2


Levadas de diferentes Tocando melodias
gêneros musicais Propomos agora dois exercícios adapta-
Uma de suas características mais mar- dos da obra para piano de Béla Bartok, Mi-
cantes é a possibilidade de tocar alguns krokosmos, nos quais, de forma progressiva,
acordes. Em vez de tentarmos focalizar um o aluno vai não só conhecendo as notas da
só orifício para produzir apenas uma nota, escala, mas ao mesmo tempo fazendo refe-
como na figura anterior, podemos abrir um rência da sua posição no instrumento.
pouco a boca, de maneira que possamos Baião Existem algumas tablaturas usadas para
tocar várias notas ao mesmo tempo, de iniciantes na harmônica. Todas utilizam os
acordo com a Figura 17. números relativos aos orifícios associados a
um símbolo que indica o reflexo soprado ou
aspirado.
Utilizaremos a seguinte forma por con-
siderá-la a mais intuitiva e de fácil identifi-
Embocadura para mais de uma nota.
Maracatu cação:
• número sem círculo – soprado
Podemos tocar aleatoriamente sopran-
do em várias regiões da harmônica, desde • número circundado – aspirado
a região grave até a região aguda, acom-
panhando a ordem crescente dos números Exerxicio
existentes no corpo do instrumento. Em se-
guida, faça o mesmo exercício aspirando e
depois alternando os reflexos. Funk

grave médio agudo


Embocadura nas 3 regiões.
Esses exercícios servirão de motivação Clique aqui e veja crianças

para o aprendizado de algumas cantigas do do Projeto Harmônica Brasilis
Explorando combinações de À medida que os alunos exercitam os rit- folclore, como o “Cai, cai, balão”. tocando “Cai, cai, balão”.
sopros e ritmos mos, sugestões de músicas nos respectivos
Podemos registrar a maneira de tocar a gêneros vão surgindo naturalmente. Assim, Cai, cai, balão
harmônica utilizando a representação da o professor pode tocar diferentes peças
proposta por Hal Walker em Harmonica junto com a turma, colocar gravações para
Foundations – for a musical life: eles acompanharem, apreciarem, improvi-
sarem e se divertirem. As crianças podem
Tablatura soprar
ser estimuladas de variadas formas, poden-
aspirar do criar livremente seus próprios ritmos, as-
sociando a movimentos corporais, sons per-
Podemos trabalhar a realização de dife- cutidos pelo corpo, canto e instrumentos de
rentes ritmos associados ao reflexo (sopra- percussão.
do ou aspirado).

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PROPOSTA 3 Podemos dividir a turma em dois grupos: oncluindo, temos ainda muito o que de música através da gaita para crianças em
o primeiro faz o movimento do trem, e o se- contribuir na construção desta po- diversas locais do Brasil. Atua com diferen-
Criando efeitos sonoros para
gundo, o apito. Podemos trabalhar a dinâ- ética, na estruturação e desenvol- tes formações camerísticas e já foi solista
uma canção
mica como se o trem estivesse bem longe, vimento de novos conteúdos que possibi- de diversas orquestras sinfônicas brasileiras
É possível realizar efeitos sonoros bas- mas se aproximando; trabalhar andamento litem que a harmônica possa alcançar um e internacionais.
tante interessantes, como estes do trem de como se o trem acelerasse bem gradativa- patamar merecido dentro dos mais diver-
ferro: mente e depois desacelerasse. Outro efeito sos estilos musicais e que também possa se
O movimento do trem, na região grave: interessante pode ser obtido afastando a tornar uma forte aliada no ensino de músi-
harmônica um pouco da boca, de maneira ca para as crianças. Seguimos construindo Referências
que possamos deixar o ar vazar, produzin- essa história! Enquanto isso, que tal você
ÆOLINA. Pat Missin, [s. d.]. Disponível em: https://www.
do o chiado característico da maria-fumaça. comprar uma gaita e experimentar as pro-
patmissin.com/history/aeolina.html. Acesso em: Jul. 2020.
Tablatura soprar/aspirar. Podemos, então, reunir todos esses efeitos postas apresentadas aqui?
em um arranjo para a canção “Maria Fuma- ANTAKI, James. FIG 1. A Exploded view of the ten hole
O apito do trem, na região média aguda, diatonic harmonica showing the upper, blow reed pla-
ça”, de Cecília Cavalieri. te, the lower, draw reed plate and the separating comb.
aspirando continuamente entre os orifícios
5, 6 e 7. Pode-se articular as vogais de ma- Autor Research gate, May 1998. Disponível em: https://www.
researchgate.net/figure/a-Exploded-view-of-the-ten-
neira que a nota altere sua afinação ao se Para ouvir -hole-diatonic-harmonica-showing-the-upper-blow-reed_
tencionar o sopro na vogal “u” - bend. fig1_13714801. Acesso em: Jul. 2020.

CHROMATIC Harmonica History. Chrom History, [s. d.].


“Maria Fumaça” Disponível em: https://chromhistory.wordpress.com/.
Acesso em: Jul. 2020.
Tablatura bend.
https://www.youtube.com/ José Staneck DEUTSCHES HARMONIKAMUSEUM. Disponível em:
watch?v=xelge75Nbak jose.staneck@gmail.com https://harmonika-museum.de. Acesso em: Jul. 2020.

HARMÓNICA (instrumento musical). In: Wikipédia: a enci-


Músico, concertista, Mestre em música, clopédia livre. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/
(CD Poemas musicais), de
“Maria fumaça” Cecília Cavalieri França produtor e editorador, José Staneck faz de Harm%C3%B3nica_(instrumento_musical). Acesso em:
Jul. 2020.
sua harmônica um instrumento de transfor-
mação. Chamado de David Oïstrakh da har- HARMONICA. Made How, [s. d.]. Disponível em: http://
mônica pelo crítico francês Olivier Bellamy www.madehow.com/Volume-3/Harmonica.html. Acesso
em: Jul. 2020.
e comparado aos músicos Andrés Segovia
e Mstislav Rostropovich por sua atuação no SACHS, Curt. Real-Lexikon der Musikinstrumente. Ber-
lim: Verlag Von Julius Bard, 1913.
desenvolvimento e divulgação de seu ins-
trumento pelo crítico Luiz Paulo Horta, José SACHS, Curt. Ancient european musical instruments: a
Staneck tem um estilo próprio onde ele- review. Resenha: Ancient European Musical Instruments
by Nicholas Bessaraboff. The Musical Quarterly, v. 28, n.
mentos tanto da música de concerto quan- 3, p. 380-383, jul. 1942.
to da música popular brasileira e do jazz se
SACHS, Curt. The history of music instruments. London:
fundem a serviço de uma sonoridade e ex- J. M. Dent & Sons, 1968. (1ª edição: New York: Norton,
pressividade marcante. 1940).

Estudou harmonia funcional com Isido- SADIE, Stanley. Dicionário Grove de Música: edição con-
ro Kutno, análise estética com o maestro e cisa. Rio de Janeiro: Zahar, 1994.
compositor H. J. Koeullreutter e interpreta- WACHSMANN, Klaus et al. Lute. Grove Music Onli-
ção com Nailson Simões. Em 2007, obteve ne. Oxford Music Online. Disponível em: http://www.
oxfordmusiconline.com/subscriber/article/grove/
o título de Mestre em Música pela Universi-
music/40074pg4. Acesso em: Jul. 2020.
dade Federal do Estado do Rio de Janeiro
(UNIRIO). Viabiliza um trabalho social de WALKER, Hal. Hal Walker the Musical Explorer. [Entrevis-
ta]. Harmonica.com, [s. d.]. Disponível em: https://www.
inclusão cultural, atendendo a comunidades harmonica.com/hal/foundations.html. Acesso em: Ago.
carentes e projetos sociais, levando o ensino 2020.

58 | José Staneck Harmônica: uma opção no ensino de música para as crianças | 59


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Música na Educação Básica

Música na Educação Básica


Jade Jaxuka, guarani mbya que
mora na aldeia Tenonde Porã

Epu’ã! Levante-se!
Foto: Denise Fragoso
Música na Educação Básica

ou o que os Guarani Mbya podem


nos ensinar sobre o fazer musical e
sobre educação musical
Daisy Fragoso
Universidade Estadual Paulista (UNESP)

Epu’ã! Stand up! or what Guarani


Mbya can teach us about music
Resumo
making and about music education
O modo como os professores e
professoras guarani Mbya da aldeia
Tenonde Porã (SP) conduzem as
práticas musicais na escola, a Escola
Abstract
This article briefly discusses how Guarani
Estadual Indígena Guarani Gwyra Pepo,
Mbya indigenous people from Tenonde
é construído sob a mesma concepção
Porã village (SP) teach and learn music
de ensino e aprendizagem que permeia
at opy (Guarani praying house). These
o fazer musical no contexto da opy (casa
teaching and learning processes hap-
de rezas): com ênfase na experiência. No
pen as part of the cultural activities of the
entanto, o que se observa é que, mais que
School of Indigenous Education Gwyra
privilegiar o fazer, os Mbya priorizam o
Pepo. It was found that Guarani Mbya em-
fazer coletivo. Isso indica não somente a
phasize practice and, more importantly,
relevância da experiência nos processos
collective practice. This finding suggests
de ensino e aprendizagem de música,
that music can only be taught and learnt
mas, principalmente, da aprendizagem
by making music, through experience.
tanto entre pares quanto intergeracional.
Also, it can happen both among peers
Nesse sentido, a maneira como esse
and between generations. Therefore, the
grupo guarani faz, aprende e ensina
way Guarani make, teach and learn music
música provoca algumas reflexões que
may help us to think about music educa-
podem ser úteis à educação musical em
tion in non-indigenous contexts.
contextos não indígenas.

Palavras-chave: Povos indígenas. Keywords: Indigenous peoples. Guarani


Música Guarani Mbya. Diversidade. Mbya music. Diversity.

FRAGOSO, Daisy. Epu’ã! Levante-se! Ou o que os Guarani Mbya podem nos ensinar sobre o fazer musical e
sobre educação musical. Música na Educação Básica, v. 10, n. 12, 2020.

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Música na Educação Básica

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erta vez, assisti aos rapazes guarani os colegas como supostamente incapazes? Durante meu trabalho de pesquisa, tenho
Mbya dançando o xondaro. No cen- Por que nossos alunos e alunas não podem PARA OUVIR: participado das atividades culturais da EEIG
tro do círculo formado pelos parti- participar do acontecimento musical de Gwyra Pepo. Essas atividades, planejadas
cipantes, Tiago Karai e seu filho Tadeu dan- maneira tal que suas soluções criativas, mui- Alguns mboraei (cantos) dos Guarani foram pelos professores indígenas, são momen-
çavam um com o outro, como que à parte tas vezes vistas como desvios, sejam a eles gravados pelas crianças guarani de quatro tos em que as práticas musicais estão mais
da dança, mas, ainda assim, inseridos nela. permitidas e estimuladas? Por que o fazer aldeias: Sapucaí, na cidade de Angra dos presentes. Nesses momentos, os estudantes
Reis; Rio Silveira, em São Sebastião; Morro
À época, Tadeu tinha três anos de idade e musical da criança tem que ser igual ao do – que são todos indígenas guarani –, normal-
da Saudade, na cidade de São Paulo; e Ja-
não conseguia acompanhar a velocidade adulto? Por que a música que as crianças exaá Porã (Boa Vista), em Ubatuba. Esses mente, dirigem-se até a opy, isto é, a casa de
dos xondaro (guerreiros, guardiões) adul- fazem, do modo como fazem, não são mui- mboraei gravados fazem parte do CD Ñande rezas, para cantar os mboraei, que são, em
tos, mas sua avó me confessou que Tadeu tas vezes consideradas músicas? Reko Arandu – Memória Viva Guarani, grava- linhas bem gerais, os cantos por meio dos
gostava muito de dançar. O pai dançava do em 2000. É possível ouvi-lo no link https:// quais os Guarani se conectam às divindades,
fazendo os movimentos cabidos, e o filho www.youtube.com/watch?v=l469uaunv6A, e para fazer os jeroky (ou danças) que tam-
o acompanhava, à sua maneira, com os VOCÊ SABIA? no YouTube.
bém atendem, dentre outras coisas, a este
mesmos movimentos. Em momento algum fim. Os mboraei e jeroky, no contexto das ati-
Tadeu foi corrigido ou advertido, porque, De forma geral, os Guarani são divididos em Desde a primeira vez que os Guarani vidades culturais que acontecem no espaço-
três subgrupos: os Kaiowá, os Nhandeva e os
ainda que a seu modo, o pequeno já estava Mbya da tekoa ou aldeia Tenonde Porã (SP) -tempo escolar, ou seja, nos momentos e es-
Mbya. O grupo sobre o qual conversaremos
performando a dança. Ao mesmo tempo, aqui são os Guarani Mbya, da aldeia Tenonde me receberam entre eles, em 2013, tenho paços ocupados durante o tempo em que os
esse não era um momento separado, com Porã (SP). pensado e refletido sobre a maneira como estudantes guarani estão na escola, são, em
o pai ensinando a dança ao filho; era o filho este grupo ensina e aprende música. Alguns geral, seguidos de brincadeiras tradicionais
participando da dança com o pai e com os ensaios sobre esse assunto já foram feitos guarani, conversas com o xeramoĩ (xamã) ou
demais rapazes ao mesmo tempo em que a (Fragoso, 2015, 2017), mas ele parece nunca alguma atividade relacionada à cultura, ao
dança acontecia. se esgotar. À medida que acompanho, de nhandereko guarani.
Esse momento, dentre muitos que com-
Jajogueroayvu... forma participativa ou não, momentos di-
partilhei com os Guarani, apontou-me mo- Vamos conversar... versos de ensino e aprendizagem de músi-
Pequeno vocabulário
dos outros de pensar a educação musical ca, ou mesmo quando, no convívio com os
Tenho acompanhado as atividades cul- Guarani, vivencio com eles momentos con- Guarani:
e minha prática docente com as crianças:
turais da Escola Estadual Indígena Guarani figurados pelo ensinar e aprender qualquer Nhandereko: palavra que os Guarani
promover espaços para que as crianças fa-
(EEIG) Gwyra Pepo como parte de minha atividade prática (não necessariamente mu- usam como equivalente de cultura, em
çam música e legitimar seu fazer musical (e que nhande significa “nosso/nossa” e
pesquisa de doutorado 1. Essa escola, que sical), novos estalos são disparados. Quan-
todos os outros “fazeres”). Assim como pa- reko é traduzido como “vida”, “conjunto
fica na própria aldeia, está localizada no do esses momentos acontecem – e eles são
rece ser entre os Guarani, o fato de as crian- de costumes”.
extremo sul da cidade de São Paulo (SP) frequentes –, são inevitáveis as conexões
ças não performarem como performam os Nhanderu: demiurgo guarani. É um dos
e atende a estudantes guarani do Ensino com o meu campo de atuação, que é a edu- habitantes imortais dos domínios celes-
adultos não significa que elas estejam em
Fundamental I e II e do Ensino Médio. Ape- cação musical. tes, cósmicos, onde nada perece. Literal-
déficit em relação a eles. Antes, indica tanto
sar de ser administrada pelo Governo do mente, sua tradução é “Nosso pai”.
o modo como a criança está interpretando
Estado de São Paulo, é gerida pelos Mbya Xeramoĩ: xamã ou, em tradução literal
o acontecimento musical e tudo a que esse
dessa comunidade. Isso quer dizer que o Para saber mais para o português, “meu avô”.
momento remete (como as relações esta- Xondaro/xondaria: traduzido pelos Mbya
Projeto Político-Pedagógico, o currículo e a
belecidas entre os sons, os movimentos, as como guerreiro/guerreira, guardião/
maior parte do material didático são todos Sobre quem são os Guarani Mbya, consul-
pessoas e os ambientes físico e cosmológi- te os livros Cantos da Floresta, escrito por
guardiã. É também o nome de uma dan-
elaborados pelos professores guarani dessa ça, o xondaro jeroky.
co), quanto o modo como elas estão tradu- Magda Pucci e Berenice Almeida, e O pere-
escola. Mbaraka: violão com cinco cordas, as
zindo e reinventando esse musicar. Quantas cível e o imperecível, de Daniel Pierri. Além
quais estão relacionadas às divindades
vezes pressionamos nossos alunos e alunas disso, você pode encontrar ainda mais infor-
principais do panteão guarani.
para que façam o que estamos fazendo e mações no site https://pib.socioambiental.
org. Para saber mais sobre a tekoa Tenonde Mbaraka mirĩ: chocalho guarani feito de
do modo como estamos fazendo, cons- cabaça e sementes. O guarani Mariano
Porã, visite o site organizado pela própria
trangendo-os e expondo-os para si e para comunidade indígena: https://tenondepora. (2015), em interessante trabalho sobre
org.br/aldeias/tekoa-tenonde-pora/. esse instrumento, descreve a maneira
1. Pesquisa de doutorado, ainda em andamento, realizada no Programa de Pós-Graduação em Música da Universidade como é feito o chocalho e a história do
de São Paulo, sob orientação do Prof. Dr. Pedro Paulo Salles, que investiga as práticas musicais na EEIG Gwyra Pepo.
surgimento do mbaraka mirĩ.

62 | Daisy Fragoso Epu’ã! Levante-se! | 63


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LETRA TRADUÇÃO LIVRE PRONÚNCIA


Epu´ã! Levante-se! Akuxi ojere A cutia dá voltas A-cu-TCHI o-dje-RÊ
Foi em um destes momentos que eu ouvi Pyávy ara py De noite, de dia Py-ÁU-vy a-RÁ PY
um dos professores mbya me dizer “Epu’ã!”,
Uru ojapukai rã O galo cantou U-ru o-dja-pu-KÁI rã
enquanto eu ainda preparava meu grava-
Oo hoapa! A casa caiu! Ô ro-a-PÁ!
dor. A situação era que o mbaraka (violão
guarani) e o mbaraka mirĩ (chocalho gua-
Qaudro 1: Letra, tradução livre e pronúncia da brincadeira tradicional guarani “Akuxi ojere” (Fragoso, 2015, p. 54)
rani) já soavam, os estudantes já haviam se
levantado para cantar, e eu ainda ajeitava Para brincar desse jogo guarani, os partici- Desse único jogo já pude apreender al-
meu material de gravação. Mesmo tendo pantes dão-se as mãos, em roda e em pé, gumas lições úteis para o meu trabalho em
sido feito em guarani, entendi que o pedi- fazendo a roda girar. Enquanto a roda gira, sala de aula, na educação musical. A primei-
do, em tom imperativo, significava que eu o texto é falado ritmicamente, até que, na ra delas tem a ver com o modo como os
também deveria me levantar e participar última sílaba da última palavra (sílaba “pa” Guarani concebem o ensino e a aprendiza-
do oporaei, isto é, do momento dos cantos, de “hoapa”), todos se agacham. Sem vence- gem. Em um contexto de ensino não indíge-
pois importava mais que eu fizesse e menos dores ou perdedores, a brincadeira pode re- na, ocidental, parece haver uma tendência
que eu visse (e gravasse). Ou melhor, ver começar quantas vezes o grupo quiser. Na de se explicar as coisas para fazer depois.
e aprender eram, na verdade, fazer. Além transcrição feita abaixo (Partitura 1), tentou- Com os Guarani, a partir do que tenho ob-
disso, acho curioso que não foi necessário -se preservar a entonação de cada sílaba na servado, não se pode nem dizer que o sen-
o mesmo comando às crianças, aos estu- língua guarani. Porém, essa discriminação tido é o inverso: primeiro se faz e depois se
dantes, de modo que, em todos os oporaei das alturas serve somente para registro, explica. Ali, parece não haver um sentido,
dos quais participei, bastavam soar os ins- devendo-se tentar preservar a naturalidade mas uma ação: fazer. Porém, esse verbo
trumentos para que os professores guarani da fala, considerando a entonação da língua é, na maioria das vezes, acompanhado de
e as kyrĩ gue (crianças) se levantassem e se guarani. uma preposição: fazer com. Para aprender
dispusessem nos lugares devidos. é necessário que se faça e que se faça com:
Foram as próprias crianças guarani que
com os pares, com os adultos, com os jo-
Figura 2: Guilherme com seu mbaraka mirĩ. Foto de Mariano (2015, s.p.). me ensinaram essa brincadeira durante meu
vens, com os mais novos.
trabalho de mestrado (Fragoso, 2015). Nes-
Em outro momento das atividades cultu-
se dia, pedi a elas que me ensinassem músi- Lembro-me que, em uma de minhas au-
rais, professores e estudantes se dirigiram,
cas e brincadeiras guarani de que gostavam las de música com o 5º ano do Ensino Fun-
após os mboraei, para o campo de futebol
e que achavam que meus alunos e minhas damental I, as crianças propuseram um jogo
que tem na aldeia. Lá, o grupo de estudan-
alunas não indígenas também fossem gos- que eu não conhecia. Pedi, portanto, que
tes, de todos os níveis da escola (Ensino
tar. Sem me explicar a brincadeira, já me co- me explicassem para que eu pudesse par-
Fundamental I e II e Ensino Médio), partici-
locaram na roda, fazendo-a girar enquanto ticipar. Ao mesmo tempo, algumas crianças
paria de algumas brincadeiras tradicionais
falavam o texto e abaixando-se todos ao fi- começaram a explicar como se jogava, mas
guarani. Uma delas foi a brincadeira “Akuxi
nal. Sem explicação alguma, entendi como eu não estava entendendo. Reparando na
ojere”, que, traduzida para o português, é
brincar, isto é, aprendi a brincar durante a minha expressão de incompreensão, uma
“A cutia corre”. No Quadro 1 estão a letra, a
própria brincadeira. delas, pondo-se à frente na roda de modo
tradução livre e a pronúncia da brincadeira.
apaziguador, disse: “Professora, vamos fa-
Essa brincadeira, que pode ser con-
siderada em nosso contexto como Akuxi ojere Partitura 1: Brincadeira tradicional dos Guarani Mbya (Fragoso, 2015, p. 54)
um brinquedo cantado, tem temá-
tica próxima daquele conhecido
Figura 1: Imagem que ilustra os encontros na opy. Na ilustração, é pos- jogo “Corre cutia”. No entanto,
sível notar os instrumentos utilizados nos mboraei: o rave’i (rabeca de o jeito de brincar de
três cordas) e o mbaraka. Também se notam adultos, jovens e crianças
“Akuxi ojere” é bas-
envolvidos no oporaei em conjunto. Essa ilustração faz parte do livro
Xondaro (Paciornik, 2016), que conta, em quadrinhos, algumas das lu- tante diferente.
tas dos Guarani Mbya de São Paulo.

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Música na Educação Básica

zer como você faz com a gente. Vamos fa- multietária e intergeracional, as atividades Sobre isso, arrisco uma provocação as atividades são conduzidas ali. Isso quer
zer como você diz que os Guarani fazem: escolares que envolvem aspectos quaisquer quanto à maneira como ensinamos a nos- dizer que os processos que envolvem, por
aprenda jogando”, e deu início à brincadeira. do nhandereko também serão aprendidas e sos alunos e alunas as brincadeiras tradicio- exemplo, o ensino e a aprendizagem dos
ensinadas pelo fazer com os outros. Assim, nais da cultura infantil, por exemplo. Se ori- cantos, das danças e das brincadeiras tra-
quando as crianças guarani vão, como parte ginalmente essas brincadeiras aconteciam e dicionais orientam-se também pelos “prin-
VOCÊ SABIA? das atividades escolares, para a opy fazer eram ensinadas e aprendidas “na rua” com cípios de autonomia e liberdade da criança,
A LDB (Lei nº 9.394/96) assegura o direito o oporaei, elas cantam os mboraei e fazem outras crianças, hoje, pelo menos nos cen- bem como acontecem da mesma forma
dos povos indígenas a uma escola bilíngue, o jeroky junto com os estudantes de todos tros urbanos, a escola parece ser a principal como aconteceriam fora do ambiente es-
intercultural e diferenciada quanto ao currí- os níveis do Ensino Fundamental e Médio (e, muitas vezes, a única) responsável por colar: pela experiência, pela observação, de
culo, conteúdos, calendário, materiais didáti- e com os professores guarani, professores promover espaços e momentos para que forma oral, na opy” (Fragoso, 2019, p. 187) e,
cos e aos processos educativos e produção
não indígenas e todos mais que ali estive- essas brincadeiras sejam ensinadas às crian- completo neste texto, no fazer com, isto é,
de conhecimento.
rem (como era o meu caso na situação nar- ças. O que me pergunto é: em que medida na coletividade.
rada no início desse texto). estamos escolarizando os brinquedos, brin-
Sobre o fazer com, proponho algumas
Os momentos escolares de atividades cadeiras e músicas da cultura infantil? Quais
De acordo com um de meus interlocu- reflexões que podem ser úteis no trabalho
culturais na EEIG Gwyra Pepo evidenciam são as consequências disso? Quais são as
tores guarani, Tiago, todas as atividades com as crianças em sala de aula. A primei-
essa concepção. Se, durante as aulas do rotas possíveis para minimizar, assim como
que acontecem no tempo escolar da EEIG ra é que fazer música implica ação, ou seja,
currículo comum, isto é, do currículo das os Guarani, a escolarização dessa modali-
Gwyra Pepo e que se referem ao nhande- o fazer musical é uma ação: ouvir, cantar,
escolas convencionais, os estudantes gua- dade das culturas infantis? É possível alterar
reko guarani são abordadas de forma a compor, dançar, tocar, enfim, fazer música.
rani são submetidos à divisão serial e etária, o sentido desse processo levando a escola
não escolarizar a cultura guarani. Ou seja, Isso nos remete à proposta que Small (1998)
durante as atividades culturais e todas que para os espaços onde se efetivam/efetiva-
em vez de os professores guarani levarem faz quanto ao fazer musical. Para este autor,
dizem respeito ao nhandereko guarani, os vam essas brincadeiras, em vez de confiná-
o nhandereko para dentro da escola, confi- “música não é, de jeito algum, uma coisa,
estudantes aprendem como aprenderiam -las aos modos de ensino e aprendizagem e
nando sua cultura aos espaços e formatos mas é uma atividade, algo que as pessoas
no nhandereko. Ou seja, se fora da escola espaço-tempo escolares?
escolarizados, a rota por eles tomada (e que fazem” (p. 2). Por essa razão, isto é, porque
a aprendizagem e o ensino entre os Guara-
é uma rota de resistência) é aquela em que No caso do trabalho dos Mbya na EEIG música é ação, Small propõe a invenção do
ni são marcados pelo fazer com e de forma
se leva a escola para o nhandereko, trans- Gwyra Pepo, além dos espaços utilizados verbo to music ou musicking (p. 9), o que,
formando-a. que podem ser considerados extraescolares traduzido para o português, seria o neolo-
(como a opy, por exemplo), também pode gismo musicar.
ser considerado extraescolar o modo como

Viajando no trem

Estudantes do Ensino Fundamental e Médio brincando de “Akuxi


ojere”. No centro da roda, estão os professores Mbya organizando a
brincadeira. Acervo pessoal.

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Música na Educação Básica

Outro ponto a ser ressaltado sobre o fa- Vejam a explicação dos jovens B, os grupos trocam de lugar, cruzando-se
zer com consiste no fato de que esse fazer guarani sobre a dança: lateralmente entre si, conforme descrito na
se efetiva na coletividade. Se compreende- citação anterior (Figuras 5 e 6). Já na parte
Atualmente o tangara é como é conhecida
mos, como propõe Small (1998, p. 10), o mu- C os participantes devem acompanhar a cé-
uma dança feminina que também podemos
sicar como um encontro humano, temos um considerar como xondaria. O tangara é um lula rítmica que se repete “passando” os pés
fazer musical que, por ser coletivo, se con- pássaro que faz movimentos harmônicos e alternadamente (Figura 7).
cretiza a partir das e nas relações estabele- graciosos, antigamente os homens não dan-
cidas durante o acontecimento musical ou çavam muito o tangara, mas hoje em dia,
performance. Paralelamente, como experi- se tiver vontade, também podem. Existem
dois tipos de tangara: tangara joaxa-axa va’e
ência social, o fazer musical coletivo acaba
(tangara cruzado) e tangara oguyro-guyro
se assumindo também como espaço e mo-
va’e (tangara passando por baixo). Tangara
mento de aprendizagens e trocas sociais e joaxa axa va’e é dançado com duas fileiras de

TANGARÁ MIRIM | FOTO: REPRODUÇÃO


culturais. Assim, o que eu percebo no fazer xondaro, uma de frente para outra; quando
com entre os Guarani é a assunção de que a velocidade do ritmo do mbaraka aumen-
todos podem fazer música, e isso, em vez ta, os xondaro trocam de posição, passando
de depender de habilidades, depende das de um lado para o outro e com pulinhos. O
Figura 4:
tangara oguyro-guyro é dançado em duas
trocas estabelecidas na convivência musical Esquema ilustrando a
fileiras com no mínimo duas xondaria atrás e
com o outro, em comunidade. uma na frente, as xondaria de traz vão para formação inicial no Tan-
gara e o cruzamento dos
Na prática musical em sala de aula com frente com os braços abertos, a xondaria da grupos durante a seção
nossos alunos e alunas, em nosso contexto frente se agacha passando por baixo e volta B da música. Ilustração
por cima com os braços abertos, enquanto feita em meu diário de
de educação musical, o fazer com parece
divertido) iam ganhando sentido para mim, as outras voltam por baixo. O tangara acon- campo durante as visitas
desvendar um caminho por meio do qual à aldeia.
de modo que minutos depois eu já não pre- tece mais frequentemente no ara pyau (no
as crianças, imersas no acontecimento mu- tempo novo), em comemoração à renovação
cisava mais imitá-los e podia dançar auto-
sical, apreendem o sonoro e a relação deste da vida. (CTI, 2013, p. 44) Figura 5:
nomamente.
com o mundo que as cerca. Tal apreensão, Esquema ilustrando as
porém, dá-se nas interações sociais estabe- Tangará é um pássaro, também conheci- posições inicial e final dos
A dança à qual me referi anteriormente participantes após a troca
lecidas no musicar, que são as relações en- do como tangará-dançarino. Para os Mbya, de lugares (cruzamento
parece ser, pela descrição acima, o tangara
tre os pares e mesmo aquelas intergeracio- o Tangara é um pássaro sagrado que com- dos grupos) provocada
joaxa-axa va’e, ou tangara cruzado. Da for- pela seção B da música.
nais. Em outras palavras, o sentido do fazer partilha sua sabedoria quando a revoada
ma como assisti e dancei na Tenonde Porã,
musical ou do musicar parece ser apre(e) está muito ruidosa (Seára, 2014, p. 203). Por
os participantes se dividem em dois grupos:
ndido pelo indivíduo somente no fazer com, meio da dança Tangara, então, os partici-
mulheres e homens. As mulheres se alinham,
na coletividade. pantes estabelecem um diálogo com esse
lado a lado, de frente para os homens, que,
pássaro, como explica Seára (2014, p. 204):
assim como elas, estão alinhados, lado a Figura 6:
“Relacionando-se com o Tangara, os apren-
lado (Figura 4). Os movimentos que os par- Esquema que ilustra a
Jajeroky! dizes de guerreiros/guerreiras conseguem
ticipantes deverão fazer dependem do que
maneira como é feito o
obter dele um saber, sendo este saber tra-
Vamos dançar!
cruzamento: todos vira-
está sendo tocado pelos instrumentos. A dos para o mesmo lado e,
zido de longe, e considera-se o pássaro um
música é toda instrumental, com a seguinte quando chegam ao novo
Uma das danças guarani que aprendi e mensageiro de Nhanderu”. lugar, tornam a virar de
formação: mbaraka, mbaraka mirĩ, rave’i e frente para o outro grupo.
de que mais gosto é o Tangara. Assim como No livro Xondaro mbaraete: a força do angu’apu (tambor).
tudo o que tenho aprendido na aldeia com xondaro (CTI, 2013), os próprios jovens gua-
os Guarani, eu aprendi as regras do Tangara Quanto à estrutura da música, pode-se
rani Mbya, atuando como pesquisadores (p.
dançando junto com eles. Sem explicações, dizer que esta tem três seções, como se Figura 7:
16), explicam o que é o Tangara. De acordo
apenas imitando-os, os movimentos regi- fossem partes A, B e C. Cada parte tem um Ilustração indicando como
com eles, a dança Tangara é um dos tipos da
movimento específico: na parte A, os gru- é feita a passagem de
dos pelo que era tocado pelos instrumentis- dança das xondaria (p. 40-43) e “imita um pés durante a seção C da
tas (o que faz dessa dança um jogo de per- pos dançam em seus lugares fazendo um
pássaro que se chama tangara, que é muito música.
cepção e improvisação musicais bastante movimento específico com os pés. Na parte
ligeiro e muito difícil de ser pego” (p. 44).

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Música na Educação Básica

No entanto, o que tira risos dos inexpe- mboraei e brincadeiras guarani no reper- e a inclusão dela no musicar e nhandereko
rientes e provoca a atenção de cada parti- tório utilizado nas aulas de música, como guarani. O que tenho visto também é o res-
cipantes é que tais partes não seguem uma a brincadeira “Akuxi ojere” mencionada peito ao ser criança, às suas capacidades,
ordem fixa, preestabelecida, mas se alter- acima, vejo a forma como os Guarani con- às suas habilidades, aos seus interesses, às
nam de forma improvisada pela pessoa que cebem o ensino e a aprendizagem (e, por- suas contribuições, às relações que estabe-
está tocando o mbaraka. Esta pessoa, como tanto, a infância) como a principal questão lecem com os pares, com os mais velhos,
se estivesse em um jogo, tenta enganar os sobre a qual refletir. com a natureza e até com as divindades;
participantes, tornando imprevisível o que enfim, aos seus modos de fazer o mundo e
Se é no fazer com que os indivíduos gua-
será tocado: se a parte A, se a parte B, se a de estar no mundo.
rani aprendem, é também no fazer com que
parte C. Esse instrumentista pode fingir que
eles ensinam. Isso significa que tanto crian- Em uma de minhas aulas de música do 4º
começará determinada parte, mas, em vez
ças quanto jovens, adultos e idosos estão ano, as crianças, assim que se sentaram em
disso, manter-se na mesma ou ir para outra,
fazendo, ensinando e aprendendo música roda para o início da aula, repararam que
enganando os desatentos; pode ir da parte
juntos. Isso quer dizer que é no próprio fa- em uma das lâmpadas da sala havia
A para a parte C; pode ir da parte B para a
zer musical e enquanto fazem música que uma lagartixa que, supostamente,
C; pode ir da B para a A; pode se demorar o
as crianças guarani aprendem a fazer músi- repousava. Na semana seguin-
tempo que quiser na parte B, C ou A, repe-
ca e ensinam a outros. te, a primeira coisa que fizeram
tindo-as quantas vezes quiser. Além disso,
ao entrar na sala foi olhar para
os instrumentistas aceleram aos poucos o Assim, se todos estão aprendendo e en-
a lâmpada no teto para ver o
andamento, e a dança pode durar o tempo sinando, não há, no acontecimento musical,
que havia acontecido com a la-
que os participantes aguentarem fisicamen- na performance entre os Guarani, aquele
gartixa. Para a inquietação das
te. Tenho, por exemplo, uma gravação (que, que nada saiba. E, mais importante que isso,
crianças, a lagartixa ainda esta-
infelizmente, não pode ser disponibilizada) o fazer a seu modo não significa erro; antes,
va lá, levando-as à conclusão de
de quase 15 minutos de música do Tangara. significa que a aprendizagem, no fazer com,
que a lagartixa não descansava,
está acontecendo. Também não se espera
Essa dança, da forma como é performa- mas estava morta. Uma das crian-
que todos saibam a mesma coisa ao mesmo
da, pode inspirar algumas atividades para ças, então, sugeriu que fizéssemos
tempo, porque estão todos fazendo música
as aulas de música com crianças não indíge- um funeral para o réptil. Muitas ideias
a seu modo, conforme seu próprio tempo; e
nas, já que, como um jogo de percepção e surgiram de como fazer isso, mas ne-
isso não impede que o indivíduo faça com,
improviso, exige dos participantes e instru- nhuma parecia plausível, na opinião do
dispensando os aprendizes de explicações
mentistas que estejam atentos ao que está grupo. Aproveitando a mobilização em
sobre como fazer “corretamente”, porque já
soando para, respectivamente, não serem torno do assunto, fiz um desvio da rota
se está fazendo.
enganados ou para enganar. Por exemplo, planejada para a aula e propus que compu-

FOTO: REPRODUÇÃO
é possível compor com os estudantes uma Todas as atividades musicais, todas as séssemos coletivamente uma canção para
música instrumental com três seções (A, B performances musicais dos Guarani às a lagartixa ou sobre o episódio, tendo apro-
e C) e, enquanto um grupo toca a música quais assisti durante todo o tempo em que vação das crianças. Assim, melodia e texto
composta, outro faz os movimentos com- tenho me relacionado com eles envolvem foram criados pelo grupo, fazendo da nova
binados para cada seção. Os instrumentis- crianças e adultos juntos, fazendo músi- canção um hit de sucesso entre os quartos
tas, inclusive, podem combinar, em segredo, ca juntos. Das crianças, nunca vi cobrarem anos, permanecendo no repertório do
diferentes sequências para as seções, de um resultado musical esperado; tampouco grupo até o final do 5º ano.
modo que os dançarinos não saibam o que vi crianças serem impedidas de participar
Em outra aula com o 1º ano,
virá e tenham que estar atentos ao que está dessas performances porque não estavam
enquanto fazíamos determi-
sendo tocado. dançando, cantando ou tocando de deter-
nada atividade, come-
minada forma. O contrário também é ver-
De toda forma, ainda que algumas dan- çou uma forte chu-
dade: nunca vi crianças serem obrigadas a
ças guarani, como o Tangara, possam inspi- va, com raios,
participar de determinada performance ou
rar atividades de educação musical ou que
apresentação. O que vejo é o respeito ao fa-
seja possível (e necessário) incluir alguns
zer musical da criança, no tempo da criança

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Música na Educação Básica

trovões e tudo mais. Imediata e euforica- mo com aqueles que estão em outro plano,
mente, as crianças correram para a janela como as divindades da cosmologia guarani, Autora
– como esperado. Lembro que o primeiro fortalecendo, assim, seu vínculo com cada
pensamento que tive foi de pedir a elas que um deles.
voltassem à roda, à aula. Em seguida, pensei
Naquele dia em que Tiago pediu para
em minhas experiências com os adultos e
que eu me levantasse, eu não conhecia os
crianças guarani: é preciso que sejam res-
cantos, não sabia como me comportar du-
peitados os modos de ser criança, suas des- Daisy Fragoso
rante a performance e achava que estava
cobertas, interesses, curiosidades, em vez daisy.fragoso@usp.br
lá para fazer minha pesquisa. Contudo, era
de, por coação, fazermos com que vejam
necessário que, enquanto encontro huma-
com nossos olhos, que caminhem nossos Doutoranda e mestra em Musicologia (com
no (Small, 1998), eu participasse do musicar
passos, que se encantem com nossas des- linha de pesquisa em Etnomusicologia) pela
com os professores e estudantes guarani
cobertas e curiosidades, e não com as suas ECA-USP. É educadora musical formada em
tanto para aprender quanto para comparti-
próprias. Quando a chuva já não mais as Licenciatura em Música pela mesma insti-
lhar o significado que tal musicar impunha.
instigava, sozinhas, voltaram à roda. Propus, tuição, professora de música na educação
Dessa forma, o que me parece é que, entre
então, que compuséssemos algo combi- básica e professora substituta no curso de
os Guarani, a aprendizagem e o ensino de
nando os sons que a forte chuva nos trazia, Licenciatura em Música do IA-Unesp.
música só acontecem pelo fazer e na coleti-
aproveitando essa paisagem sonora, com
vidade se efetivam (fazer com).
os objetos sonoros e instrumentos musicais
que tínhamos à disposição. Que o modo como os Guarani fazem,
ensinam e aprendem música com suas
Esses dois exemplos mostram algumas
crianças inspire educadores musicais não
possibilidades que podem emergir das situ-
indígenas no fazer musical com suas alunas Referências
ações que, legítima e genuinamente, têm a
e seus alunos. Que nossos alunos e nossas BRANDÃO, Carlos Rodrigues. A pergunta a várias mãos: MARIANO, Cláudio Ortega. A nossa história sobre o mba-
atenção e a curiosidade das crianças. Além raka mirim ou mbae’epu mirim (o chocalho guarani). Tra-
alunas sejam respeitados quanto aos mo- a experiência da pesquisa no trabalho do educador. São
disso, esses episódios também evidenciam Paulo: Cortez, 2003. balho de conclusão de curso (Licenciatura Intercultural
dos como se relacionam com o sonoro, indígena do sul da Mata Atlântica) – Centro de Filosofia e
o modo como as crianças se relacionam
como fazem música e a percebem; que a CTI – CENTRO DE TRABALHO INDIGENISTA (coord.). Ciências Humanas, Universidade Federal de Santa Catari-
com a música e, porque são capazes dis- Xondaro Mbaraete: a força do Xondaro. São Paulo: CTI,
eles e a elas sejam oferecidas oportunida- na, Florianópolis, 2015.
so, como fazem música. As composições, 2013.
des para fazer música à sua maneira, de PACIORNIK, Vitor Flynn. Xondaro. São Paulo: Fundação
nesse caso, partiram de momentos com-
acordo com suas apreensões de mundo e FRAGOSO, Daisy. Entre a opy e a sala de música: arran- Rosa Luxemburgo, Elefante, 2016.
partilhados com o grupo (do qual, naquele jos entre crianças guarani Mbya e crianças não indígenas.
desenvolvimento. Que nossas crianças não SANTOS, L. K. A esquiva do xondaro: o movimento como
momento, eu fazia parte) e que, tendo sido Dissertação (Mestrado) – Escola de Comunicações e Ar-
sejam pressionadas a fazer música nem tes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2015. ação política entre os Guarani Mbya. Dissertação (Mes-
respeitados, provocaram-lhes/provocaram- trado em Antropologia Social) – Faculdade de Filosofia,
impedidas disso, respeitando seu tempo,
-nos descobertas e se configuraram em for- FRAGOSO, Daisy. A infância e o processo de ensino- Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo,
seus interesses e descobertas; que nossos -aprendizagem entre os Guarani Mbya: jogo, música e São Paulo, 2017.
mas musicais significativas dessas experiên-
estudantes sejam por nós instigados a des- educação. Orfeu, Florianópolis, v. 2, n. 2, p. 31-44, dez.
cias coletivas. 2017. Disponível em: http://www.revistas.udesc.br/index. SARMENTO, Manuel Jacinto. Imaginário e culturas da in-
cobertas sonoras e à escuta curiosa, devol-
php/orfeu/article/view/1059652525530402022017031/7 fância. Braga, Portugal: Instituto de Estudos da Criança
Na Gwyra Pepo, os participantes do vendo-lhes e legitimando o(s) modo(s) de 416. Acesso em: 15 nov. 2020 da Universidade do Minho, 2003. Disponível em http://tito-
acontecimento musical têm seus papéis ser criança. E que essas crianças possam, sena.faed.udesc.br/Arquivos/Artigos_infancia/Cultura%20
FRAGOSO, Daisy. As práticas musicais na Escola Estadu- na%20Infancia.pdf. Acesso em: 21 fev. 2021.
dissolvidos e passam a fazer música juntos, igualmente, fazer o mundo e estar no mun- al Indígena Guarani Gwyra Pepo e a construção da pessoa
a fazer música com. Dessa forma, a apren- do com a mesma autonomia e liberdade Guarani: pequena reflexão sobre os usos da música no SEÁRA, Éliton Clayton Rufino. Diálogos interculturais com
dizagem dos mboraei e mesmo do nhan- que as kyrĩgue kuery, as crianças guarani. espaço-tempo escolar guarani. In: ENCONTRO NACIO- os Tchondaro Guarani. In: TASSINARI, Antonella Maria
NAL DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE ETNOMUSICO- Imperatriz; ALMEIDA, José Nilton de; RESENDÍZ, Nica-
dereko guarani ficam em segundo plano, nor Rebolledo (org.). Diversidade, educação e infância:
LOGIA, 9., 2019, Campinas. Anais […]. Campinas, 2019.
como uma consequência do que realmente p. 182-189. Disponível em: https://www.abet.mus.br/ reflexões antropológicas. Florianópolis: Editora da UFSC,
se pretende, que é gerar encontros entre os portfolio/ix-encontro-nacional-da-abet-campinas-2019/. 2014.
Acesso em: 18 nov. 2020.
participantes, guarani ou jurua (pessoas não SMALL, Christopher. Musicking: the meanings of perfor-
indígenas), que estão ali presentes e mes- ming and listening. Middletown, CT: Wesleyan University
Press, 1998.

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Música na Educação Básica
Música na Educação Básica

Música na Educação Básica

Música na Educação Básica

Música na Educação Básica

Música na Educação Básica Possibilidades de ensino


remoto de música na
educação básica pautadas
no material Música Br.1
Ronaldo Aparecido de Matos

Possibilities of remote music teaching in


basic education based on the material
Música Br.

Resumo
O objetivo deste artigo é compartilhar Abstract
atividades musicais adaptadas ao ensino The purpose of this article is to share
de música no formato virtual. Tem como musical activities adapted to teach
base teórica o material Música Br. (Matos music online. The theoretical basis is
et al., 2021, no prelo), originalmente the class material Música Br. (MATOS
pensado para o formato presencial, e et al, 2021, in press), originally designed
que serviu de base para as adaptações for the face-to-face format, and which
propostas. As atividades apresentadas served as the basis for the proposed
envolvem roteiros de escuta para adaptations. The activities involve listening
repertório selecionado, experimentação scripts for the selected repertoire, sound
sonora, prática coletiva e criação. experimentation, collective practice and
Almejo com isso oferecer subsídios aos creation. The aim of such activities is to
professores de música para exercerem provide music teachers with opportunities
suas práticas pedagógicas em ambiente to exercise their pedagogical practices
virtual e, desta forma, desenvolverem in a virtual environment and, in this way,
experiências de ensino onde os alunos develop teaching experiences in which
possam participar de forma ativa. students can participate actively.
Palavras-chave: Ensino remoto de Keywords: Remote music teaching.
música. Educação musical na escola. School music education. Class material
Material de classe Música Br. Música Br.
1. O referido material foi elaborado pelo Prof. Me Ronaldo A. Matos e teve a colaboração dos estudantes do
MATOS, Ronaldo Aparecido. Possibilidades de ensino remoto de música na educação básica pautadas no material curso de Licenciatura em Música da Universidade Estadual de Londrina Reinaldo Neves dos Santos e Vitor
Música Br. Música na Educação Básica, v. 10, n. 12, 2020. da Silva Malta.

75
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Música na Educação Básica

As sugestões aqui apresentadas têm


como propósito auxiliar os professores de
PANORAMA SOBRE
música a exercerem suas práticas peda- O ENSINO REMOTO
gógicas durante esse período de crise, se EMERGENCIAL NA
apropriando dos meios virtuais para desen-
volverem minimamente experiências de en-
EDUCAÇÃO BÁSICA
sino onde os alunos possam participar de
forma ativa, mesmo com as dificuldades ge-
radas pela mudança repentina, do formato
tradicionalmente presencial para o formato
totalmente remoto. Após a retomada do
ensino presencial, as atividades e estraté-
gias apresentadas podem vir a inspirar a
elaboração de materiais e atividades com-
plementares, aplicados de forma remota
em complemento às atividades presenciais,
que chamamos de formato híbrido. As distâncias do ensino a distância. Fonte: Andes (2020) 4

A partir desse cenário de ensino remoto


emergencial, elaborei adaptações de ativi- Em abril de 2020, através da Medida
dades musicais, com base no material Mú- Provisória nº 394 (Brasil, 2020), foi oficiali-
sica Br. (Matos et al., 2021, no prelo), que zada a suspensão das atividades de ensino
Exemplo de aula realizada via videochamada. foram aplicadas durante o ano de 2020 presencial no país, como medida preventi-
Contextualizando a Fonte: Canguru News (2020)
em contextos de ensino remoto, como, por va à aglomeração e disseminação do novo
proposta exemplo, disciplinas de educação musical2
e cursos de formação complementar para
coronavírus. Meses depois, em agosto de
2020, o governo federal, através da Lei nº
A pandemia de Covid-19 que se ins- A necessidade de utilizar esse novo professores de música.3 As atividades pro- 14.040 (Brasil, 2020), deliberou a retomada
taurou em 2020 impôs grandes desa- formato acarreta questionamentos, prin- postas neste artigo derivam dessas expe- das atividades de ensino e aprendizagem
fios aos professores de música da escola cipalmente no sentido de como desen- riências e foram pensadas a partir de duas na educação básica, em caráter emergen-
básica. Como e até que ponto podemos volver as atividades de ensino de música dinâmicas básicas: 1) momentos síncronos, cial. Nesse cenário, as instituições de ensi-
desenvolver nossas atividades pedagó- – oriunda de experiências presenciais, prá- onde professor e alunos atuam juntos em no aguardavam não só um posicionamento
gicas em ambientes virtuais? O ensino ticas e compartilhadas – em um ambiente um horário estabelecido e compartilhando sobre a realização das atividades pedagó-
no espaço virtual sob uma perspectiva virtual. De antemão, é preciso deixar claro um mesmo ambiente virtual (Moreira; Bar- gicas, mas também um respaldo técnico-
emergencial – denominado pelo Conse- que não se pretende substituir ou anular ros, 2020, p. 2); 2) atividades assíncronas, -metodológico; neste segundo caso, sem
lho Nacional de Educação através da re- a natureza e as potências das práticas de onde o aluno terá alguma proposição feita êxito. Assim, sem uma avalição prévia e
solução CNE/CP nº 2 como ensino remo- ensino e aprendizagem em música que pelo professor e, a partir dela, terá que re- sem medidas de planejamento e aplicação
to (Brasil, 2020) – caracteriza-se como ocorrem de modo presencial, muito me- alizá-la de modo individual, extra sala virtu- necessárias para uma transição adequada
um formato no qual equipe pedagógica, nos equipará-las às ações de ensino remo- al, onde, em um momento posterior, deverá para o formato virtual, instituições de en-
professores, alunos e familiares adotam to. Cada um destes formatos, presencial e compartilhá-las com o professor e com o sino, professores e alunos retomaram suas
processos de ensino e aprendizagem virtual, possui suas respectivas limitações grupo de alunos que integra um determi- atividades virtualmente e tiveram que ado-
de forma inédita e provisória, enquanto e potências. Cabe ao professor realizar nado contexto de ensino remoto (Moreira; tar modos alternativos e provisórios, cada
durar a pandemia. Portanto, este apre- essa mediação de modo a garantir que Barros, 2020, p. 2). contexto à sua maneira, para cumprir a de-
senta especificidades que se distinguem o aluno, mesmo em um ambiente virtual,
de propostas pedagógicas cujo enfoque possa ter experiências musicais que não 2. Disciplinas de Metodologia e Prática de Ensino e Atividades de Estágio Curricular Obrigatório, que integram a grade curricular do curso de Licenciatura em
Música da Universidade Estadual de Londrina. Foram ministradas pelo autor, em medida emergencial, no formato remoto, durante o ano letivo de 2020.
no ambiente virtual (Gohn, 2014; Migon, sejam exclusivamente expositivas. 3. Curso de formação complementar para professores de música intitulado “Possibilidades pedagógicas pautadas na escuta musical: uma experiência oriunda da
2020) está presente em todas as suas adaptação do material educacional Arte Br”,
4. Disponível em: https://www.andes.sindoif.org.br/2020/05/24/o-ensino-remoto-a-pandemia-e-a-educacao-do-faz-de-conta/. Acesso em: 1 de mar. de 2021.
etapas.

76 | Ronaldo Aparecido de Matos Possibilidades de ensino remoto de música na educação básica pautadas no material Música Br. | 77
V. 10 Nº 12 2020
Música na Educação Básica

terminação de retorno obrigatório às ativi- A ausência de um ambiente virtual de formato ocorre, em parte, pela formação e so rosto exposto ao escrutínio dos outros e
dades de ensino e aprendizagem. aprendizagem (AVA) é também um aspec- experiência profissional, oriundas de uma a nós próprios, gera mais stress (ESTUDO...,
to crucial nesse cenário, tendo em vista que realidade cujo formato virtual era tido ain- 2020).
No decorrer desse cenário de ensino
um desempenho satisfatório das atividades da como um recurso complementar, não
emergencial, instituições governamentais, É preciso considerar também o papel da
de ensino e aprendizagem virtuais neces- obrigatório. O impacto dessa mudança de
profissionais da educação, pesquisadores, família no ensino remoto. Além da necessi-
sita de um ambiente que possibilite mate- formato poderia ser atenuado por meio de
professores e entidades têm buscado medi- dade de equipamentos e condições básicas
riais de qualidade e variedade, ferramentas ações de amparo técnico (equipamentos e
das para gerir essa crise na educação, mas necessárias, já citadas anteriormente, a par-
para troca de vídeos, sons, imagens, textos materiais necessários para realizarem suas
trata-se de uma situação complexa e que ticipação da família é um elemento crucial
e mensagens (Belloni apud Jacks, 2017, p. aulas) e de formação complementar (me-
traz consigo aspectos determinantes que para o processo de aprendizagem. Muitos
13-14). Logo, tratando-se de uma proposta todologias e estratégias de ensino no am-
justificam as dificuldades enfrentadas, e ain- alunos, principalmente aqueles que cursam
de ensino remoto, é fundamental o uso de biente virtual aplicadas às especificidades
da não superadas, pela comunidade escolar. a primeira etapa da educação básica, neces-
AVAs que atendam às demandas de pro- de cada área), mas que ficaram à margem
sitam de suporte para que as interações vir-
O primeiro ponto a ser considerado é a fessores e alunos, como também às espe- adiante da celeridade imposta para a reto-
tuais e as atividades sejam realizadas e en-
questão do acesso ao ambiente virtual. Se- cificidades das áreas de conhecimento que mada das atividades escolares.
caminhadas para o professor. São processos
gundo pesquisa do IBGE, aproximadamen- integram os currículos escolares, ação que
Além disso, os professores, atuando em que demandam a mediação dos familiares.
te 25% dos brasileiros não possuem acesso demanda planejamento e investimento em
suas próprias casas, em home office, en- Na pesquisa já citada, da revista Nova Esco-
à internet (IBGE, 2018). Desses 25% de pes- tecnologia, equipamentos e treinamento
frentam sérios problemas de precarização la, os professores da rede particular relatam
soas que não têm acesso à internet, apro- para que os envolvidos possam usufruir
do trabalho: o uso de recursos pessoais que 58% das famílias estão participando do
ximadamente 12% não têm acesso à rede, adequadamente dessas plataformas. Além
(computador, celular, notebook, energia elé- que é proposto. Na rede pública, a taxa de
pois não sabem lidar com tal tecnologia. disso, mesmo que haja um direcionamento
trica, internet etc.) (APESJF, 2020); horas participação é de 36% (BIMBATI, 2020). Al-
Ainda sobre o grupo sem acesso, aproxi- nesse sentido, da adoção dos AVAs, esse é
de trabalho extra não remuneradas (pesqui- guns motivos alegados para a baixa taxa de
madamente 34,6% manifestaram não ter in- um processo lento, gradual e que deman-
sa, preparação e edição de materiais para o participação são, por exemplo, desmotiva-
teresse em acessar a internet (TOKARNIA, da constantes avaliações e reavaliações em
formato virtual); condições insalubres (uso ção dos alunos e familiares em relação ao
2020). Portanto, é possível observar que seu decorrer. Na área de educação musi-
de iluminação e móveis de um ambiente formato ou indisponibilidade de tempo em
não se trata apenas de uma questão de dis- cal, por exemplo, instituições pioneiras no
doméstico, não adequados para a atividade participar por motivo de trabalho ou outras
ponibilização de dispositivos e de internet ensino a distância, como UFSCAR, USP e
docente) (APESJF, 2020); violação de di- demandas domésticas (BIMBATI, 2020).
de qualidade aos alunos. Envolve proble- UFRGS (GOHN, 2009, p.40), vêm realizan-
reitos de autorais (imagem e conteúdos de Nesse sentido, é possível notar que as famí-
mas como a inclusão digital e, em certos ca- do ações de ensino a distância há anos, de
aulas utilizados pelas instituições em outros lias também passam por dificuldades, que
sos, rejeição das pessoas ao formato virtual. forma gradual e pontual, oriundas de ações
contextos de ensino não relacionados aos transcendem inclusive as competências da
de pesquisa e ensino. Esses contextos, que
grupos com que o professor atua) (APESJF, escola, já que englobam aspectos de saúde
contam com uma estrutura adequada, pla-
2020). Além de todos esses fatores, há o mental, assistência social e educação fami-
nejamento sistemático e equipe capacitada,
próprio aspecto da saúde mental, estresse, liar. Sem ações que levem em considera-
ainda caminham tentando lidar com a ques-
ansiedade, depressão e fadiga física e men- ção um atendimento e suporte às famílias,
tão da educação no ambiente virtual. Por-
tal. Em pesquisa realizada pela revista Nova o problema da desigualdade de acesso e
tanto, incorporar esses ambientes virtuais
Escola, 8,1 mil professores das redes pública interação permanece, e, na outra ponta do
no contexto da educação básica não é uma
e privada de todos os estados brasileiros fo- processo, professores continuam tendo que
tarefa simples, muito menos rápida.
ram entrevistados, onde 28% avaliaram sua lidar com experiências de ensino desiguais
Outro aspecto determinante é a dificul- saúde mental como ruim ou péssima, por e não inclusivas; uma parcela dos alunos
dade de atuação do professor nesse ce- exemplo (BIMBATI, 2020). Outra pesquisa, participando e outra parcela sem condições
nário. Em pesquisa realizada pelo Instituto realizada pela Universidade de Stanford, para poder participar.
Península (2020), por exemplo, 90% dos destaca a fadiga e o estresse gerados pelo
Considerando todos os pontos apresen-
professores entrevistados alegaram nunca uso contínuo de videoconferências para
tados nessa etapa, em síntese, podemos
terem tido experiência com o ensino virtu- aulas a distância (ESTUDO..., 2020). O mo-
inferir que o ensino emergencial na educa-
al. Na mesma pesquisa, 83% disseram não saico de rostos com que interagimos, geral-
ção básica é um problema complexo, que
estarem preparados para atuar nesse novo mente a partir de casa, com dificuldade em
demanda ações integradas a curto, médio
formato. Essa insegurança diante do novo captar a linguagem não verbal e com o nos-

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Música na Educação Básica

e longo prazos, envolvendo diversas esferas Desta forma, podemos considerar que
da sociedade brasileira e que, de modo con-
OS PROCESSOS DE o uso de ferramentas de ensino virtual na
traditório, vem sendo pautada pelas insti- ADAPTAÇÃO AO educação básica está atrelado a fatores
tuições governamentais apenas sob a pers- FORMATO REMOTO como a precariedade de recursos tecnoló-
pectiva da realização e do cumprimento de gicos; a adoção de recursos improvisados;
prazos, em detrimento de ações que via- Em decorrência da necessidade de mi- processos de inclusão digital (domínio das
bilizem recursos técnicos, tecnológicos, de grar as ações pedagógicas presenciais para ferramentas); sobrecarga na preparação e
formação e de condições básicas para que o formato remoto, escola e professores aplicação de aulas (planejar a aula no am-
os envolvidos – principalmente professores, adotaram medidas diferentes para viabili- biente virtual, via videoconferência, e pro-
alunos e familiares – tenham experiências zar a realização das atividades de ensino e duzir/disponibilizar os conteúdos aborda-
de ensino e aprendizagem de qualidade. aprendizagem. Para que isso ocorra de ma- dos em diversos formatos digitais).
neira adequada, é necessário um conjunto
O desfecho dessa situação emergencial Tendo em mente essa situação, é funda-
de ferramentas que reproduza as dinâmi-
ainda é incerto. Em dezembro de 2020, mental retomar a pergunta inicial do texto:
cas de exposição, participação coletiva,
com o início da segunda onda de contágios como e até que ponto podemos desenvol-
momentos alternados de fala, o acesso aos
da Covid-19 no Brasil, oriunda na nova cepa O que pude observar, a partir do contex- ver nossas atividades pedagógicas em am-
conteúdos abordados e mecanismos que
do vírus – de alta taxa de contaminação –, to de trabalho onde atuo – escolas e insti- bientes virtuais? As adaptações propostas
viabilizem a produção de atividade, avalição
o Conselho Nacional de Educação (2020) tuições públicas de Londrina (PR) –, é que nesse trabalho são oriundas desse contexto
e controle de presença, por exemplo.
emitiu um despacho autorizando todos os os professores estão adotando o uso de e dessas dificuldades e são aqui apresenta-
níveis de ensino a manterem as aulas a dis- Para esse fim, diversas tipos de platafor- das e compartilhadas não no sentido de ig-
ferramentas específicas, muitas vezes não
tância como única e exclusiva modalidade, mas disponíveis trazem consigo um pacote norar os problemas expostos, mas de com-
projetadas originalmente a determinadas
inclusive tendo o referido documento prazo de ferramentas para o ensino virtual, como partilhar formas emergenciais de lidar com
práticas pedagógicas para, dessa forma, si-
indeterminado para revogação, até que a si- é o caso dos AVAs, citado anteriormente, essa situação de crise.
mularem o pacote de ferramentas integra-
tuação sanitária seja segura para o retorno mas também há outras plataformas, utiliza-
das presentes nos AVAs. Por exemplo, para Adentrando nas adaptações realizadas,
presencial. Nesse cenário, ainda incerto de das para ações de ensino a distância e for-
as mediações em tempo real no ambiente adotamos duas plataformas para viabilizar
uma solução breve, os professores continu- mação complementar, como, por exemplo,
virtual, utiliza-se um programa destinado à as atividades remotas. Uma delas é o Google
am, cada um à sua maneira, buscan- a plataforma Moodle: um website/platafor-
videoconferência de reuniões empresariais, Meet, destinada aos momentos síncronos –
do desenvolver suas atividades da ma de ensino com recursos que po-
como o Zoom; para disponibilizar os arqui- videoconferência –, e o Google Classroom,
maneira que lhes são possíveis, dem tanto apoiar aulas presen-
vos, cria-se uma pasta virtual, a partir de para armazenamento e compartilhamento
com os recursos que lhes são ciais quanto permitir que um
uma conta de e-mail pessoal; para a expo- de conteúdo, em momentos assíncronos,
disponíveis. curso inteiro seja realizado
sição de vídeos e áudios, utilizam-se plata- extra sala virtual. São plataformas gratuitas
on-line e a distância (Jacks,
formas de entretenimento, como YouTube e que não necessitam de instalação de pro-
2017, p. 13).
Spotify; para a comunicação com o grupo, gramas, nem requerem dispositivos de alta
são utilizados aplicativos de comunicação performance para acessá-las. Além disso,
instantânea, como o WhatsApp. Enfim, a um fator determinante para a escolha foi o
necessidade de adotar diferentes tipos de idioma; ambas em português.
ferramentas para viabilizar um AVA minima-
É importante salientar que essas platafor-
mente funcional acaba impondo ao profes-
mas escolhidas se enquadram nos proces-
sor dedicar um tempo considerável de sua
sos de adaptação descritos anteriormente.
rotina para aprender a lidar com as caracte-
São ferramentas que, de modo geral, são
rísticas e limitações de cada uma das ferra-
projetadas para o formato de videoconfe-
mentas adotadas. Além disso, há também
Professor ‘multitarefas’ durante a rência, onde a interação se dá por meio da
pandemia. um tempo considerável dedicado à prepa-
voz falada e com apenas uma pessoa por
Fonte: Grooland (2020) ração das aulas e dos formatos de conteú-
vez expondo suas ideias. Quando trazemos
do abordado (vídeos, áudios, apresentação
para essas plataformas ações de cunho mu-
de slides, roteiros por escrito, textos infor-
sical, como, por exemplo, a performance ins-
mativos etc.).

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Música na Educação Básica

trumental e vocal e a prática coletiva (seja Por dentro das DICAS e alunos – no caso, grupos cuja faixa etária
vocal, instrumental etc.), surgem problemas ferramentas virtuais tenha grau de autonomia suficiente – po-
de qualidade sonora (corte ou supressão de •F
 aça um mapeamento sobre as condições dem configurar a câmera de seus disposi-
determinadas frequências que o programa Google Meet - Ferramenta de de acesso e interação de seus alunos nes- tivos para a opção de projeção da imagem
julga não serem compatíveis com um perfil videochamadas que comporta um ses espaços virtuais: com essas informa- real ao invés da espelhada.
de voz humana, sendo tratados, portanto, coletivo de pessoas em um mesmo ções, é possível realizar ações diversifica-
espaço virtual, com interação em tempo das que amenizem dificuldades oriundas •E
 stabeleça com o grupo as regras de con-
como “ruído”). Outro problema recorrente é vivência no ambiente virtual: dialogue
real, mediada através de câmera de vídeo, de questões socioeconômicas.
atraso sonoro, ou delay, que inviabiliza a sin- microfone, chat para troca de mensagens com os alunos para estabelecer regras de
cronicidade das sonoridades emitidas por e apresentação de arquivos (GOOGLE, •C
 entralize a distribuição de arquivos que atuação do grupo relacionadas ao uso do
cada participante. 2017). sejam disponibilizados pelo professor: microfone, câmera e envio de opiniões no
arquivos oriundos do computador do pro- chat etc.
Durante a apresentação das possibilida-
Google Classroom - Ferramenta de fessor se mostraram menos propensos a
des pedagógicas, serão compartilhadas al- gerenciamento de conteúdo e atividades • I ntegre os alunos aos processos de media-
problemas técnicos do que aqueles com-
gumas sugestões para que, mesmo com as em espaço virtual que viabiliza o acesso, partilhados diretamente de páginas e pla- ção do espaço virtual: podemos integrar
limitações citadas, seja possível desenvolver compartilhamento e avaliação de trabalhos taformas da internet. um ou mais alunos, revezando a cada en-
práticas coletivas e outros tipos de intera- (GOOGLE, 2014). contro os participantes, para auxiliar o pro-
ção e expressão fundamentais ao fazer mu- •T
 enha à disposição um ou mais formatos fessor a mediar o ambiente virtual durante
sical. Delay – O delay refere-se ao atraso de um mesmo arquivo a ser apresentado as aulas. A utilização de alguns recursos
para a reprodução do som, uma vez na aula: por exemplo, ao apresentar um dessas ferramentas, como, por exemplo, a
Como complemento, é preciso salientar que ele é emitido (Sanches, 2015, p. 64). vídeo, caso haja problemas técnicos, tê-lo projeção de slides, inabilita o professor a
que têm ocorrido gradativamente ajustes Nos ambientes virtuais, isso ocorre por também no formato de áudio, ou, caso ain- ter contato visual com os alunos e a aces-
nessas plataformas que caminham na dire- questões que envolvem a qualidade do da haja problemas técnicos, um roteiro ex- sar o chat de perguntas e comentários du-
ção de sanar essas limitações apontadas há sistema de som do dispositivo e a qualidade plicativo com o arquivo, para que o aluno rante sua exposição. Portanto, essa pode
de transmissão de dados (internet).
pouco. Há também outras plataformas que possa acessá-lo posteriormente. ser uma estratégia útil para que, por meio
vêm surgindo, voltadas especificamente Ferramenta de chamadas de vídeo e áudio do auxílio de um ou mais alunos, o profes-
• F
 ique atento ao problema da imagem es-
para a prática musical – como o Soundja- voltada para músicos: sor mantenha a comunicação com os alu-
pelhada/invertida: automaticamente as
ck, Sonobus, Bandlab e Musify –, por exem- Soundjack: https://www.soundjack.eu/ nos durante ações expositivas.
configurações de imagem desses ambien-
Sonobus: https://sonobus.net/
plo. Caso tenha interesse, o professor pode tes virtuais adotam como padrão a pro- •E
 xperimente práticas coletivas nos mo-
Bandlab: https://www.bandlab.com/
experimentá-las, mas há algumas barreiras Musify: https://comunidade.startse.com/ jeção da imagem espelhada, o que pode mentos síncronos: apesar das limitações
que as tornam inviáveis ao contexto da edu- in/musify dificultar, portanto, a compreensão de ati- das ferramentas comentadas anteriormen-
cação básica. Além da barreira linguística, vidades musicais cujo senso de lateralida- te, é possível desenvolver atividades coleti-
em inglês, requerem recursos mais sofisti- de – diferenciação de esquerda e direita, vas voltadas à experimentação e expressão
cados para a sua utilização, como placa de por exemplo – seja fundamental. Professor sonora. Nesse caso, como o foco não está
som e dispositivo de acesso (computador)
com configurações de alto desempenho.
É importante mencionar também o surgi-
mento de um número considerável de apli-
cativos para dispositivos portáteis, como
celulares e tablets, por exemplo, que podem
servir como suportes pedagógicos em ca-
sos específicos, a critério do professor.

Exemplo de aluno acessando uma aula no formato de ensino remoto


via telefone celular. Fonte: Fdr. (2020)

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em questões técnicas, como andamento e ticas. Tem como base teórica os conceitos decorrer do ano de 2020. Foram realiza-
sincronicidade, é possível realizá-las, opor- da escuta musical presentes nas obras de das com grupos de 10 a 25 pessoas cada,
tunizando que os alunos tenham experi- autores como Murray Schafer (2002), Hans- constituídos de jovens e adultos, alunos de
ências de performance, interação e escuta -Joachim Koellreutter (Brito, 2001), Teca graduação ou professores de música atuan-
sonora a partir de uma prática coletiva. Alencar de Brito (2019) e da aprendizagem tes na rede pública. 70% dos participantes
•P
 roponha práticas individuais nos mo- por meio da experiência prática, presen- acessaram as atividades propostas via ce-
mentos assíncronos: é possível também te na obra de Keith Swanwick (Swanwick, lular. Os outros 30%, através de dispositivos
desenvolver práticas individuais, de modo 2003; França; Swanwick, 2002). como tablets, notebooks e computadores
assíncrono, que posteriormente fomenta- Figura 5: Registro de curso de formação de professores no formato tradicionais.
remoto. Registrado por Ronaldo Matos. Cada caderno aborda um tema específi-
rão práticas coletivas nos momentos sín-
co e, para discuti-lo, são apresentadas três Foram ações de formação docente e for-
cronos. A partir das produções individuais,
obras musicais de autores brasileiros de mação complementar realizadas pelo autor
o professor pode, por meio de programas
de edição de som, sobrepô-las, sincronizá-
O MATERIAL épocas, lugares e estilos diferentes, que tra- do trabalho em parceria com o Departamen-
-las etc., possibilitando, dessa forma, que o MÚSICA BR. tam de um mesmo assunto, porém a partir to de Música da Universidade Estadual de
grupo as escute sendo executadas simulta- de concepções e sonoridades distintas. Londrina para dar subsídios aos professores
neamente. Caso seja de comum acordo do
As atividades propostas neste artigo são de música frente às dificuldades impostas
O contato com cada uma das obras mu-
grupo e respeitando os termos de uso de baseadas no material Música Br. (Matos et pela pandemia. Além disso, foi uma ação
sicais se inicia por meio de um roteiro de es-
imagem que regem um determinado am- al., 2021, no prelo), elaborado como subsídio de pesquisa em ensino voltada a verificar
cuta que instiga o aluno a investigar, refletir
biente virtual, essas produções podem ser ao ensino presencial de professores de mú- como propostas musicais do material Músi-
e compreender cada uma delas e, em segui-
compartilhadas nas mídias sociais, o que sica da educação básica pública. ca Br., destinadas à educação básica públi-
confere um senso de realização e de auto- da, transitam por outros tipos de atividades
O Música Br. é uma adaptação do mate- ca e presencial, poderiam contribuir para o
valorização dos alunos, podendo também pedagógicas, pautadas no diálogo, na ati-
rial Pasta Arte Br, publicado em 2003 pelo ensino no formato virtual. A partir das ações
integrar familiares, amigos e comunidade. vidade de experimentação sonora, prática
Instituto Rede Arte na Escola. A Pasta Arte de formação ofertadas, os participantes pu-
coletiva e criação. Além disso, conta com
•E
 xplore as possibilidades de interação do deram replicar as atividades propostas em
Br (INSTITUTO REDE ARTE NA ESCOLA, informações complementares que podem
ambiente virtual: nos casos em que sejam diversos contextos de ensino, seja em aulas
2003) é um material pioneiro no ensino de incentivar o professor a ampliar e desenvol-
necessárias a repetição e a internalização particulares de instrumento, seja em práti-
Arte no Brasil tanto pela sua abordagem, ver novos encaminhamentos e aprofunda-
de uma determinada ideia musical (rítmi-
pautada na leitura de imagem, como por in- cas coletivas em escolas de música ou em
ca, melódica etc.), é possível utilizar formas mentos sobre o tema e sobre as atividades
tegrar em seu acervo importantes obras de escolas da rede pública e privada da edu-
de interação alternadas, partindo de uma propostas.
artistas brasileiros do século XX. cação básica. O retorno dos participantes
ideia musical proposta pelo professor, com O material vem sendo aplicado em di- a respeito dessas experiências também foi
os alunos interagindo, em um primeiro mo- A adaptação do material para a lingua- versos contextos educacionais da educa- muito importante para que gradativamente,
mento, com seus microfones bloqueados. gem musical originou-se do projeto de ção básica pública e por meio de ações de a cada experiência de formação, as ativida-
Em um segundo momento, o professor
extensão “Arte na escola: renovando cami- formação complementar para professores.
pode solicitar que cada aluno demonstre des fossem sendo repensadas e ajustadas a
nhos para a formação contínua de profes- Atualmente se encontra na etapa de revisão
sua forma de interpretar a ideia musical partir dos relatos dos participantes.
sores de arte”, em parceria com o Polo Rede final e encaminhamento para publicação.
apresentada inicialmente. Um terceiro pas-
Arte na Escola Londrina, entre 2017 e 2019. Apresentado o contexto, de onde sur-
so poderia ser sugerir que os alunos, um
O projeto, coordenado pela Prof.ª Dra. Ma- giram essas propostas, selecionei algumas
por vez, proponham ideias musicais para
os colegas. A ativação das câmeras nesses ria Irene Pellegrino de Oliveira Souza, conta POSSIBILIDADES atividades desse trabalho desenvolvido no
ensino remoto. Para isso, tomei como exem-
processos é fundamental, pois, mesmo que com uma equipe multidisciplinar, formada PEDAGÓGICAS plo um dos cadernos que integram o ma-
não possamos escutar a performance de por docentes e estudantes dos cursos de
cada aluno – devido às limitações de som Licenciatura em Artes Visuais e Música da As atividades musicais sugeridas nesse terial Música Br., no caso, o caderno com o
relatadas –, o contato visual com o grupo Universidade Estadual de Londrina. trabalho se originaram por meio de expe- tema “infância”. As propostas pedagógicas
pode ser produtivo no sentido de obser- riências de ensino de música em formato apresentadas estão divididas em três eta-
O material Música Br. é constituído de 12
var movimentos e expressões dos demais remoto, via Google Meet e Google Class- pas: 1) atividades de escuta, 2) atividades de
cadernos e tem como ponto estruturante o
participantes do grupo, o que pode vir a room, a aproximadamente 120 pessoas, no diálogo e reflexão, 3) atividades de experi-
contribuir não só para uma memória física uso de temas geradores, que são desenvol-
e sonora, mas também visual. vidos a partir da escuta musical, do reper- É um instituto fundado em 1989 que tem como finalidade qualificar, incentivar e reconhecer o ensino de Arte no Brasil por meio de ações de formação
tório musical brasileiro e de atividades prá- continuada. Dentre as ações desenvolvidas, destacam-se os cursos de formação continuada, a oferta gratuita de materiais educativos e as ações de
reconhecimento de profissionais da educação (Prêmio Rede Arte).

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Música na Educação Básica

mentação sonora, prática coletiva e criação. Para a reprodução das obras sugeridas, proposta. De preferência, nesse primeiro
Essa divisão e sequência foram pensadas o professor pode acessá-las e carregá- momento, não revelando o nome, o autor,
visando a um diálogo entre cada uma das -las previamente através das plataformas nem a temática da obra.
etapas e também a uma construção gradual
(escuta, diálogo, reflexão, experimentação
de streaming, como YouTube ou Spotify,
e projetá-las para o grupo dentro dos am-
3 Devido às características cognitivas
dessa faixa etária, é interessante o professor
sonora, prática coletiva e criação) para que bientes de ensino virtual. Caso seja possível
ir desenvolvendo gradativamente esse
possam exemplificar uma possibilidade de que o professor tenha esses arquivos em
processo de escuta. Em um primeiro
proposta a ser desenvolvida a médio e lon- seu computador, um recurso interessante é
momento, inclusive apresentando partes ou
go prazos e também de conexão entre di- o de renomear o título de cada um. O nome
fragmentos da obra.
ferentes tipos de atividades. Contudo, nada
impede que sejam selecionadas ações es-
e título de cada obra, ao serem revelados
previamente à escuta, já dão algumas pistas 4 Após o primeiro momento de escuta, é
pecíficas, de acordo com as características aos alunos, portanto, ao omitir essas infor- interessante deixar que os alunos comentem
e demandas de cada contexto educacional. mações, pode haver uma surpresa e uma suas impressões sobre a obra, tendo em
No decorrer das ações pedagógicas sugeri- curiosidade mais aguçadas nesse contato vista as regras de convivência estabelecidas
das, há também a indicação de informações inicial. no ambiente virtual.
básicas, como faixa etária, objetivo, contex-
Para o formato assíncrono, há a possibi-
to e avalição, porém nada impede que se- Brinquedos e brincadeiras da infância retratados na música Bola de
lidade de serem encaminhados os roteiros Meia, bola de gude. Fonte: Blog Nossa poesia de cada dia Diálogo e reflexão
jam adaptadas para outros contextos.
de escuta, links de acesso de cada obra e
também de sugerir atividades de pesquisa
5 A partir das falas dos alunos, o
Métodos de avaliação: além da avaliação professor pode instigá-los com alguns
ETAPA 1 sobre outras músicas que tratam do mes-
por meio da observação e participação dos questionamentos, a fim de culminar na
mo tema. Nesse último caso, é interessante
ATIVIDADES DE ESCUTA que os alunos compartilhem com o grupo
alunos no decorrer da atividade, o professor necessidade em retomar a escuta da obra
pode utilizar mecanismos avaliativos, como (tendo em vista os apontamentos sobre
A escuta aqui é tratada no sentido de as obras musicais escolhidas e também os
palavras-chave sobre a atividade realizada atenção e tempo de escuta comentados
estimular e sensibilizar os alunos para in- critérios que cada um utilizou para selecio-
e, a partir delas, realizar a síntese e discussão há pouco). É interessante incentivar que os
teragirem com uma obra musical por meio ná-las.
pelo grupo. alunos ativem suas câmeras durante esses
de experiências coletivas, dialéticas e co- diálogos para que o grupo mantenha contato
laborativas, diferentes daquelas impostas visual e possa desenvolver minimamente o
pelos padrões uniformizantes mediados ESCUTA 1 Preparação senso de coletivo e de atenção à fala e às
pelo mercado. Essas experiências são cons- (Ensino Fundamental I; 1 É importante preparar os alunos para expressões do outro.
truídas gradativamente, pela escuta atenta,
pela troca de impressões sobre a obra e
Anos Iniciais do Fundamental II)
Música: Bola de meia, bola de gude (Milton
o momento de escuta e estabelecer com
o grupo as regras necessárias para que a
6 Alguns exemplos de questionamentos
que podem ser colocados no roteiro ou
pelo diálogo com outras pessoas. Para isso, experiência ocorra de maneira adequada
Nascimento e Fernando Brant) no chat: que tipo de música é essa? Quem
apresento como sugestão roteiros conten- no ambiente virtual. A partir dos anos finais
Objetivo: experienciar formas de escuta, a está cantando? Como é essa voz? De
do questionamentos, informações e apon- do primeiro ciclo do ensino fundamental,
diálogo e reflexão a partir de uma que lugar é essa música? Quais tipos de
tamentos para auxiliar o professor a mediar os alunos já possuem autonomia para
determinada obra musical, ampliando a instrumentos musicais há nela? A música é
os processos de escuta de cada obra. A estabelecerem esses acordos. O professor
noção de escuta musical, comumente toda igual ou tem partes diferentes? O que
ideia central é partir de impressões e sensa- pode preparar os alunos dos anos iniciais
relacionada ao entretenimento/passatempo. diz a letra? Sobre o que ela fala?
ções pessoais que vão sendo compartilha- desse ciclo previamente, pedindo a ajuda e
das pelo grupo e instigá-lo a ouvir as obras Contexto: o professor pode adotar a colaboração dos responsáveis para mediar
novamente e a conferir, a pensar e repensar proposta de temas geradores para discutir esse processo. Possíveis desdobramentos a
a respeito de cada obra musical. Durante a obra com base no tema infância, ou então,
partir da atividade inicial
essas experiências de escuta, o professor
pode ser também um participante, como os
caso prefira, pode adotá-la para tratar de
conteúdos como identificação de elementos Apresentação 7 Durante essas idas e vindas de escuta
alunos, mediando, compartilhando e apren-
dendo com o grupo.
musicais (ritmo, melodia, textura etc.), 2 De início, é interessante incentivar os e diálogo, o professor pode experimentar
interações com a música. Em uma dessas
identificação de instrumentos, identificação alunos a ouvirem atentamente a música
experiências de escuta, por exemplo, foi
de timbres, por exemplo.

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comentado certa vez por um aluno que “essa Contexto: o professor pode adotar a Diálogo e reflexão realizar atividades integradas com a área
música parece que tem um monte de gente
brincando nela”. A partir de uma fala dessa,
proposta de temas geradores para discutir
a obra com base no tema infância, ou
2 A partir das falas dos alunos, o de geografia, a respeito dos aspectos
socioeconômicos e de desigualdade social
professor pode instigá-los com alguns
por exemplo, o professor pode propor, de então, caso prefira, pode adotá-la pra questionamentos, a fim de culminar na presentes no nosso país. Pode haver
forma lúdica, que os alunos interajam com tratar de conteúdos como identificação necessidade de retomar a escuta da obra. É também a experiência de trabalho em
a música, através de movimentos corporais. de elementos musicais (ritmo, melodia, interessante incentivar que os alunos ativem grupos, para que os alunos se reúnam extra
Os alunos podem reposicionar a câmera do textura etc.), identificação de instrumentos, suas câmeras durante esses diálogos para sala virtual, organizando uma apresentação
dispositivo e ficarem em pé, próximos ao identificação de timbres, forma musical que o grupo mantenha contato visual e das informações e depoimentos coletados
mesmo, e realizar essas ideias propostas. (introdução, estrofe, refrão, coda) gênero possa desenvolver minimamente o senso de para o grupo.
Cada aluno pode interagir de acordo com as musical (canção) e processos de criação coletivo e de atenção à fala e às expressões
particularidades e limitações do seu espaço (letra de canção), por exemplo. do outro.
ETAPA 2
– em pé, movimentando-se ou sentado,
utilizando apenas as mãos, por exemplo.
Métodos de avaliação: além da avaliação
por meio da observação e participação dos
3 Alguns exemplos de questionamentos ATIVIDADE DE DIÁLOGO E
8 A partir das observações dos alunos, é alunos no decorrer da atividade, o professor
que podem ser colocados no roteiro ou no
chat: que tipo de música é essa? Quem está
REFLEXÃO (aplicável para
possível propor jogos a fim de identificar pode utilizar mecanismos avaliativos, como cantando? Como é essa voz? Quais tipos de qualquer segmento da
padrões e elementos presentes na obra. palavras-chave sobre a atividade, listadas instrumentos musicais há nela? A música educação básica)
Por exemplo, nas partes em que não houver pelos alunos e, a partir delas, realizar a é toda igual ou tem partes diferentes? O
voz, bateremos palmas ou levantaremos as síntese e discussão pelo grupo. que diz a letra? Sobre o que ela fala? A
mãos, por exemplo. Objetivo: estabelecer e expressar relações
música narra uma história. Que história é
9 Após avançar nas experiências de escuta essa? Quais os personagens? Quais ações,
com a obra musical abordada e com o
tema gerador por meio de memórias e
e diálogo, o professor pode fazer uma breve lugares, etc. a integram? experiências de vida.
apresentação da obra, autor e contexto,
fazendo conexões com os destaques que
4 A música Tá relampiano expõe a rotina Contexto: essa etapa tem como finalidade
de um menino de rua. Incentive seus alunos o diálogo e a reflexão a partir de músicas
os alunos trouxeram mediante as escutas a refletir sobre a infância. A partir disso,
realizadas. apresentadas anteriormente. Para isso,
convide os alunos para o diálogo e a reflexão
10 Além disso, é possível sugerir atividades sobre os tipos de infância que os cercam:
uma sugestão de atividade é convidar
os alunos a escreverem sobre as músicas
de pesquisa e aprofundamento sobre um ou pessoas e famílias morando nas ruas, apreciadas. Esse é um exercício que torna
mais aspectos abordados durante a aula e, crianças fora da escola, trabalhando etc. Uma possível organizar as ideias, as relações que
posteriormente, incorporar os resultados de possibilidade interessante nesse processo surgem no percurso da escuta e também
cada aluno para fomentar novos diálogos e é a de incentivar os alunos a pesquisarem fomentar reflexões a respeito da temática
reflexões. sobre o tema, realizarem o levantamento compartilhada pelas obras musicais.
de outras obras musicais relacionadas ao
assunto, ou então entrevistarem familiares, Métodos de avaliação: além da avaliação
ESCUTA 2 amigos e pessoas próximas a respeito desse por meio da observação e da participação
problema social que nosso país enfrenta. dos alunos no decorrer da atividade, a
(Anos finais do Ensino Fundamen- A infância desamparada retratada em Tá relampiano. Autor: Cau
produção escrita proposta na atividade
Gomez. Título: Sinaleira.
tal II; Ensino Médio) pode ser tratada como um método

Preparação Possíveis desdobramentos a avaliativo, seja formativo (mensurar uma


partir da atividade inicial nota) ou processual (como registro parcial
Música: Tá relampiano (Paulinho Moska e
Lenine)
1 É importante levar em consideração as 5 Após avançar nas experiências de escuta de um processo a ser averiguado ao final de
sugestões apresentadas nos tópicos 1,2,3 e um ciclo).
Objetivo: experienciar formas de escuta, e diálogo, o professor pode fazer uma breve
4 da primeira atividade de escuta, tendo em
diálogo e reflexão a partir de uma apresentação da obra, autor e contexto.
vista as características de cada faixa etária
determinada obra musical, ampliando a que integra os ciclos sugeridos. 6 Levando em consideração o teor da Apresentação
noção de escuta musical, comumente
relacionada ao entretenimento/passatempo.
obra, de uma infância que transparece
as desigualdades sociais, é possível
1 É possível sugerir que os alunos escrevam
um texto a partir desses diálogos e

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Música na Educação Básica

reflexões promovidos, por exemplo, em três colegas e, posteriormente, dialogar sobre ATIVIDADE 1 e compartilhado um mapa mental, com as
partes: Primeira: falando sobre as músicas essa experiência de leitura. Com os alunos palavras-chave expressadas pelo grupo.
apreciadas. Segunda: relacionando-as com dos primeiros anos do ensino fundamental I Recordando Sons (Ensino Fun-
o tema infância. Terceira: contando uma pode-se trabalhar com a leitura de imagens, damental I; Anos Iniciais do
lembrança de sua própria infância. mapa conceitual de palavras-chave etc. Fundamental II) Realização da atividade
5 Além disso, com base nessas produções, Objetivo: atentar-se para os sons presentes 4 Para a realização da atividade, o professor
diálogos e reflexões estabelecidos, pode-se em seu entorno, objetos, movimentos, ações; pode convidar os alunos a criarem, por meio
Realização da atividade vivenciar processos de experimentação e de materiais de pintura, uma representação
2 O grau de complexidade da atividade conduzir o grupo a deduzir coletivamente
que há vários tipos de infâncias. A partir expressão sonora; experimentar processos visual dos sons presentes nas brincadeiras
pode ser definido pelo professor de acordo de representação gráfica de sons. rememoradas. Fica a critério do professor
disso, como última sugestão, pode-se
com a faixa etária, o grau de alfabetização estabelecer o tempo que julgar necessário
incentivar que os alunos entrevistem seus Contexto: essa proposta tem seu foco
dos alunos e a autonomia para utilizar os para a realização dessa etapa (veja alguns
familiares e amigos, investigando sobre na memória auditiva e está diretamente
dispositivos eletrônicos de acesso aos exemplos de representação):
a infância de cada um. Nesse momento, ligada às ideias de paisagem sonora,
ambientes virtuais de aula. Para alunos do
podem ser estabelecidas parcerias com limpeza de ouvidos, notação alternativa
fundamental I, o professor pode partir de
as áreas de língua portuguesa e história, e experimentação de sons e timbres. O
desenhos, palavras-chave, frases, pequenos
para auxiliar em roteiros de entrevista, professor pode aplicá-la a partir da música
textos etc., inclusive encaminhando
transcrições de relatos e também tratar Bola de meia, bola de gude, como também
um roteiro da atividade para que os
aspectos históricos – outras épocas, lugares, utilizar o roteiro da atividade para adaptá-
responsáveis auxiliem os alunos nesse
costumes etc. Os dispositivos eletrônicos la a outro repertório, ou como suporte para
processo, caso necessário. Para alunos do
podem ser incorporados nessa proposta abordar assuntos como paisagem sonora,
ensino fundamental II e ensino médio, já é
para realizar gravações de voz, vídeo ou por exemplo.
possível propor produções textuais mais
pesquisas, por exemplo.
extensas. Com essa faixa etária, já é possível Métodos de avaliação: além da avaliação
inclusive realizar um trabalho interdisciplinar por meio da observação e da participação
com a área de língua portuguesa, a partir da dos alunos no decorrer da atividade, as
produção textual dos alunos.
ATIVIDADES DE representações gráficas e as criações

3 Quanto ao formato, a realização dessa EXPERIMENTAÇÃO sonoras podem servir de instrumento

atividade pode ocorrer de forma tradicional, SONORA, PRÁTICA avaliativo para a atividade. Registro fotográfico da produção de um aluno. Representação dos
sons de uma pessoa brincando com uma bola em seu quintal. Regis-
em papel, onde posteriormente o aluno COLETIVA E CRIAÇÃO trado por Ronaldo Matos.

pode enviá-la para o professor através de


As atividades práticas foram pensadas
Apresentação
um registro fotográfico, via dispositivo
com câmera. Para os alunos do ensino a partir da conexão com as obras musicais 1 É importante retomar com os alunos a
apresentadas na etapa anterior. São descri- música Bola de meia, bola de gude.
fundamental II e ensino médio, outra
possibilidade é que a produção da proposta tas aqui em forma de roteiro, passo a passo, 2 A partir dela, o professor pode convidar
seja feita por meio de um programa para criar com sugestões que partem de uma ação os alunos a lembrarem das sonoridades
documentos de texto. Outra possibilidade pontual, em uma única aula ou podendo de um brinquedo com que brincam ou
ainda são os relatos via arquivo de áudio. também gerar o desenvolvimento e a ex- brincavam e as brincadeiras que fazem ou
tensão da atividade a médio e longo prazos. faziam com eles.

Possíveis desdobramentos a
Cabe ao professor filtrar aquilo que achar
mais pertinente ao seu planejamento e ao
3 Em seguida, o professor pode incentivar
o diálogo entre o grupo sobre as memórias,
partir da atividade inicial perfil de seus alunos.
escolhas e relatos de cada um (respeitando
4 O professor pode utilizar os ambientes as regras de convivência no espaço virtual
virtuais para concentrar e compartilhar o estabelecidas). O professor pode escolher
Registro fotográfico da produção de um aluno. Representação dos sons
acesso do grupo a essas produções. Dessa um ou mais relatores nessa etapa, para de uma brincadeira de esconde-esconde. Aluno ao centro e os demais
forma, os alunos podem ter contato com anotar as falas e pontos discutidos nesse correndo para se esconder enquanto ele conta de olhos fechados.
Registrado por Ronaldo Matos.
as opiniões e experiências de cada um dos processo. Posteriormente pode ser criado

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Música na Educação Básica

5 Após concluírem suas produções, os por vez. É possível que as apresentações ATIVIDADE 2 3 A partir desse diálogo, o professor pode
alunos podem mostrá-las, um por vez, ocorram via microfone do dispositivo de selecionar um padrão rítmico a ser repetido
pela webcam aos demais colegas e, acesso à sala virtual, ou mesmo através Eu também vou reclamar (Anos ciclicamente. Pode ser aquele presente na
posteriormente, registrá-las em arquivo de um registro de áudio a ser enviado finais do Ensino Fundamental II; própria canção Tá relampiano ou outro de
digital (foto) e encaminhá-las ao professor. posteriormente ao professor. Ensino Médio) escolha do professor, via arquivo de áudio ou
6 O professor poderá, em um momento mesmo executado com algum instrumento
ou percutido com palmas, por exemplo,
posterior, projetar as produções de cada Objetivo: atentar-se aos elementos
Possíveis desdobramentos a ou até criado por meio de programa de
aluno, sugerir que o grupo as observe presentes em uma obra musical e como eles
partir da atividade inicial editoração de partituras.
atentamente (sem que os autores comentem
nada ainda) e questionar sobre quais
11 Após a apresentação ou envio
se relacionam (voz e ritmo); experimentar
processos de criação de letra (canção).
das criações sonoras, o professor pode
brinquedos, brincadeiras e sonoridades
retomar cada um dos trabalhos e pedir Contexto: a atividade pode ser aplicada Realização da atividade
estão presentes em cada uma delas.
7 Em seguida, o professor pode redistribuir que nesse segundo momento o autor de no intuito de promover debates a respeito
da desigualdade social presente em nosso
4 Definido o padrão rítmico, o professor
cada representação visual comente sobre pode apresentá-lo à turma, propondo que
os registros das produções para que, nesse a relação entre o que havia pensado, país, fomentar processos de criação a partir todos tentem executá-lo coletivamente. Os
segundo momento, cada aluno tenha comparando com a interpretação realizada do gênero canção e servir como introdução alunos podem utilizar palmas, pés, ponta
acesso a uma representação que não seja pelo(a) colega de turma. a aspectos rítmicos (ostinato, por exemplo). dos dedos percutida no tampo da mesa
a sua. Feito isso, peça que cada um tente
reproduzir sonoramente aquilo que está
12 Em um momento posterior, é
O professor pode se apoiar nos princípios
de criação propostos e aplicá-los em outro
etc. Essa experiência é importante para que
todos se atentem à ideia de repetição cíclica
interessante que cada autor apresente repertório, caso prefira.
representado no papel. de um padrão rítmico. Durante o processo,
a interpretação sonora de seu próprio
8 O professor pode trazer alguns exemplos trabalho. Desta forma, será possível Métodos de avaliação: além da avaliação o professor pode sugerir que alguns alunos
para ilustrar esse processo de sonorização de fomentar a discussão sobre as diferentes por meio da observação e da participação liberem seus microfones e executem o padrão
imagens e escolher um deles para realizá-lo formas de nos expressarmos musicalmente dos alunos no decorrer da atividade, as para os demais colegas. Essa é uma estratégia
coletivamente. Um exercício interessante é e as várias formas de interpretarmos um produções textuais e as gravações de áudio interessante não só de interação entre o
o de propor algo, por exemplo, “uma pessoa mesmo registro (partitura). podem servir de instrumento avaliativo para grupo, mas também para que o professor
correndo”, e pedir que pesquisem objetos
em suas casas que possam reproduzir tal
13 Como complemento das etapas
a atividade. possa averiguar o processo de cada aluno.
5 Após isso, com base na música Tá
anteriores, é possível incentivar que todo
sonoridade. Pode-se destinar um tempo relampiano, sugere-se que o professor
para que os alunos façam essa pesquisa e
o grupo execute suas respectivas criações Apresentação
experimentação dos objetos selecionados
musicais simultaneamente, a fim de
representar sonoramente os espaços de
1 Descrevendo o contexto do momento convide os alunos a pensarem nos diálogos
sobre infância, em algo que os incomoda
e, em seguida, convidá-los a compartilhar da composição da música Tá relampiano: os em suas respectivas rotinas e incentivá-los
convivência presentes nas brincadeiras, autores, Moska e Lenine, estavam em um táxi
como cada um representaria a proposição a relatar o que cada um pensou a respeito.
pátios, quintais, quadras etc. Para isso,
feita.
9 Retomando a atividade da sonorização dialogue com o grupo sobre as regras
e, ao pararem em um semáforo, avistaram
um menino descalço, vendendo balas, 6 Em seguida, o professor pode encaminhar
necessárias para que isso ocorra de maneira em pleno dia de relampejos, anunciando ao grupo o arquivo contendo o padrão
dos desenhos, o material sonoro a ser organizada no ambiente virtual. rítmico tratado anteriormente e, com base
a chuva que logo viria. Ao ouvir o som de
utilizado pode ser a voz, sons corporais,
objetos do cotidiano ou instrumentos
14 O professor pode realizar o registro um trovão, os autores ouviram o menino nele, extra sala virtual, sugerir que cada
aluno tente criar uma ou mais frases a partir
dessas produções coletivas e depois realizar se assustar e comentar “Tá relampiano”. A
musicais tradicionais que os alunos possuam do seu relato anterior e, dessa vez, tendo
uma escuta e diálogo sobre a performance partir desse cenário e dessa fala, criaram a
em casa. O professor pode dedicar o tempo como desafio tentar entoá-lo em diálogo
do grupo. obra apresentada.
que julgar necessário para que os alunos
possam explorar e organizar a interpretação 15 É interessante também, a partir das 2 É interessante que o professor apresente com o padrão rítmico proposto.
7 O professor pode retomar a música Tá
desejada. produções realizadas, criar um banco esse relato aos alunos e comente sobre o
10 Terminado o processo de criação,
de sons, onde os alunos poderão dar
continuidade às atividades de pesquisa,
papel da arte de retratar e ressignificar os
fatos, pessoas, sensações etc. de nosso
relampiano para que os alunos observem
como se dá essa relação de voz e base
é importante incentivar os alunos a rítmica na obra. Outras obras podem ser
experimentação e performance. cotidiano.
apresentarem suas criações sonoras, um utilizadas, oriundas do rap ou do repente,

92 | Ronaldo Aparecido de Matos Possibilidades de ensino remoto de música na educação básica pautadas no material Música Br. | 93
V. 10 Nº 12 2020
Música na Educação Básica

para exemplificar a relação entre voz e ritmo. BRASIL. Medida Provisória nº 934, de 1º de abril de 2020. IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Con-
Uma estratégia interessante é criar uma Autor Estabelece normas excepcionais sobre o ano letivo da
educação básica e do ensino superior decorrentes das
tínua - Tecnologia da Informação e Comunicação (Pnad
Contínua TIC) 2018. Rio de Janeiro: IBGE, 2018.
playlist, no YouTube ou Spotify, com essas medidas para enfrentamento da situação de emergência
músicas complementares para auxiliarem de saúde pública de que trata a Lei nº 13.979, de 6 de INSTITUTO PENÍNSULA. Em quarentena: 83% dos pro-
fevereiro de 2020. Diário Oficial da União: seção 1 - extra, fessores ainda se sentem despreparados para ensino vir-
os alunos nesse processo.
Ronaldo Brasília, DF, 1 abr. 2020. tual. São Paulo: Instituto Península, 2020. Disponível em:
8 O professor pode dedicar o tempo que Aparecido BRASIL. Lei nº 14.040, de 18 de agosto de 2020. Estabe-
https://www.institutopeninsula.org.br/em-quarentena-83-
-dos-professores-ainda-se-sentem-despreparados-para-
julgar necessário para esse processo de de Matos lece normas educacionais excepcionais a serem adotadas -ensino-virtual-2/. Acesso em: 3 mar. 2021.
experimentação e criação de frases ou versos. ronaldomatos@uel.br durante o estado de calamidade pública reconhecido pelo
Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020; e altera INSTITUTO REDE ARTE NA ESCOLA. Pasta Arte BR. São
Em seu decorrer, os alunos podem compartilhar, Paulo: Arte na Escola, 2003. Disponível em: http://artena-
a Lei nº 11.947, de 16 de junho de 2009. Diário Oficial da
via texto e via áudio, suas criações. Mestre em Etnomusicologia pela Universida- União: seção 1, Brasília, DF, 19 ago. 2020. escola.org.br/artebr/. Acesso em: 28 fev. 2021.
de Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho BRASIL. Ministério da Educação. Despacho s/nº, de 09 JACKS, Estevan Andreis. Ensino de música a distância:
(Unesp, Campus São Paulo, 2016). Graduado planejamento e elaboração de um website para o ensino
Possíveis desdobramentos a de dezembro de 2020. Diário Oficial da União: seção 1,
de violão através de videoconferências. Trabalho de Con-
em Licenciatura em Música pela Universida- Brasília, DF, 9 dez. 2020.
partir da atividade inicial de Estadual de Londrina (UEL, 2011). Tem
clusão de Curso (Licenciatura em Música) – Universidade
9 A partir disso, o professor pode, inclusive, experiência como professor de música na
BRASIL. Ministério da Educação. Resolução CNE/CP Nº
2, de 10 de dezembro de 2020. Institui Diretrizes Nacio-
Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2017. p. 11-
41.
propor a criação de uma canção, integrando educação básica, em ONGs, projetos socio- nais orientadoras para a implementação dos dispositivos
da Lei nº 14.040, de 18 de agosto de 2020, que estabele- MATOS, Ronaldo A. de; SANTOS, Reinaldo N. dos; MAL-
todas as produções. Inclusive esse processo culturais, serviços de convivência e fortaleci-
ce normas educacionais excepcionais a serem adotadas TA, Vitor da S. Música Br. Cadernos temáticos pautados
de escolhas, ajustes e organização das mento de vínculos e escolas de música. Atu- na escuta musical, voltados ao ensino de música na edu-
pelos sistemas de ensino, instituições e redes escolares,
produções pode ser discutido e decidido almente é docente do curso de Graduação públicas, privadas, comunitárias e confessionais, durante cação básica. Material didático. Londrina, 2021. No prelo.
coletivamente em sala, de forma síncrona, e em Música (Licenciatura) da UEL, na área de o estado de calamidade reconhecido pelo Decreto Le-
MIGON, Graciano. Brincando de rede: uma análise meto-
educação musical. Participa como professor gislativo nº 6, de 20 de março de 2020. Diário Oficial da
culminar na disponibilização desse registro dológica dos processos de ensino-aprendizagem de mú-
colaborador do Projeto de Pesquisa e Exten- União: seção 1, Brasília, DF, 11 dez. 2020.
nas mídias sociais, por exemplo, para que sica no contexto EaD. Trabalho de Conclusão de Curso
são Arte na Escola, que desenvolve ações de BRITO, Teca A. de. Koellreutter educador: o humano (Licenciatura em Música) – Universidade de Caxias do Sul,
outras pessoas possam fruir da canção Caxias do Sul, 2020.
formação complementar para professores como objetivo da educação musical. 1. ed. São Paulo:
criada coletivamente pelo grupo. Peirópolis, 2001. v. 1.
de Arte da rede pública e estudantes do cur- MOREIRA, Darlinda; BARROS, Daniela Melaré Vieira.
so de Pedagogia da UEL. Atua nas áreas de BRITO, Teca A. de. Um jogo chamado Música: escuta, Orientações práticas para a comunicação síncrona e
CONCLUINDO educação musical e etnomusicologia, princi- experiência, criação, educação. 1. ed. São Paulo: Peiró-
polis, 2019. v. 1.
assíncrona em contextos educativos digitais. Repositório
Aberto, 2020.
palmente nos seguintes temas: culturas tra-
A partir das atividades apresentadas, é dicionais em contexto urbano; processos de ESTUDO sugere que reuniões por Zoom cansam mais do PEREIRA, Maria Irenilda. Sinal de celular só no alto do
possível desenvolver experiências musicais musicalização na educação básica pautados que as presenciais. Contacto, 3 mar. 2021. Disponível em: morro: os desafios da educação a distância em Minas.
https://www.wort.lu/pt/sociedade/estudo-sugere-que- Estado de Minas, 9 jun. 2020. Disponível em: https://
práticas, mesmo em um ambiente virtual. na prática coletiva; formação complementar.
-reuni-es-por-zoom-cansam-mais-do-que-as-presen- www.em.com.br/app/noticia/gerais/2020/06/09/inter-
Escuta, experimentação sonora, prática co- ciais-603f7cb1de135b9236c607ce. Acesso em: 6 mar. na_gerais,1155346/sinal-de-celular-so-no-alto-do-morro-
letiva e criação são algumas das possibilida- 2021. -educacao-a-distancia-em-minas.shtml. Acesso em: 6
mar. 2021.
des compartilhadas e que podem auxiliar e FRANÇA, Cecília Cavalieri; SWANWICK, Keith. Composi-
inspirar outras produções pedagógicas no ção, apreciação e performance na educação musical: te- SANCHES, Vítor Locilento. Acordos e acordes: espaços
ensino de música na educação básica. Referências oria, pesquisa e prática. Em Pauta, Porto Alegre, v. 13, n. híbridos, música e meios digitais. Dissertação (Mestrado
em Arquitetura e Urbanismo) – Universidade de São Paulo,
21, p. 5-41, 2002.
Por fim, o trabalho traz alguns aponta- São Carlos, 2015. p. 63-65.
APESJF – ASSOCIAÇÃO DOS PROFESSORES DE EN-
GOHN, Daniel Marcondes. Educação musical a distân-
mentos a respeito da transição emergencial SINO SUPERIOR DE JUIZ DE FORA. Demissões, adoeci-
cia: propostas para ensino e aprendizagem de percussão. SCHAFER, R. Murray. O ouvido pensante. São Paulo:
do ensino de música, do formato presencial mento e precarização do trabalho: a realidade do ensino Unesp, 2002.
2009. Tese (Doutorado) – Universidade de São Paulo, São
remoto na pandemia. Juiz de Fora: Apes, 2020. Disponí-
para o formato remoto, no contexto da edu- Paulo, 2009. p. 26-40.
vel em: https://www.apesjf.org.br/demissoes-adoecimen- SWANWICK, Keith. Ensinando música musicalmente.
cação básica, contribuindo, desta forma, to-e-precarizacao-do-trabalho-a-realidade-do-ensino-re- GOHN, Daniel Marcondes. Educação musical a distância: Trad. Alda Oliveira e Cristina Tourinho. São Paulo: Moder-
para fomentar novas estratégias de plane- moto-na-pandemia. Acesso em: 3 mar. 2021. abordagens e experiências. São Paulo: Cortez, 2014. na, 2003.
jamento e de ensino de música no contexto BIMBATI, Ana Paula. Qual é a situação dos professo- GOOGLE. Google Classroom. 2014. Disponível em: ht- TOKARNIA, Mariana. Um em cada 4 brasileiros não tem
virtual, como também dar subsídios para res brasileiros durante a pandemia? Nova Escola, 1 jul. tps://classroom.google.com/. Acesso em: 28 fev. 2021. acesso à internet, mostra pesquisa. Agência Brasil, Rio de
2020. Disponível em: https://novaescola.org.br/conteu- Janeiro, 29 Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.
futuros aprofundamentos sobre o tema e a GOOGLE. Google Meet. 2017. Disponível em: https:// br/economia/noticia/2020-04/um-em-cada-quatro-brasi-
do/19386/qual-e-a-situacao-dos-professores-brasileiros-
criação de novas perspectivas para o ensino -durante-a-pandemia. Acesso em: 3 mar. 2021. meet.google.com/. Acesso em: 28 fev. 2021. leiros-nao-tem-acesso-internet. Acesso em: 3 mar. 2021.
remoto de música, imposto pela pandemia.

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V. 10 Nº 12 2020
Música na Educação Básica

Música na Educação Básica

Música na Educação Básica

Música na educação
do campo: superando
estereótipos e aprimorando
a escuta musical por meio
da criação de playlists
Luana Oliveira
Universidade Federal de Juiz de Fora (MG)

Music in Rural Education: overcoming


stereotypes and improving musical
listening through the creation of
playlists

Resumo Abstract
O texto traz uma proposta de criação de The text brings a proposal to create
playlists individuais e coletivas a partir da individual and collective playlists that
qual o professor poderá se aproximar das teachers can use to gain insights into
relações com música de estudantes de how students from rural schools relate
escolas do campo, superando possíveis to music, overcoming possible prejudice
preconceitos e estereotipias a respeito and stereotypes about this population.
desta população. A partir da playlist, o By exploring songs in the playlists to be
professor de música poderá desenvolver created, music teachers will be able to
várias habilidades previstas na Base develop various skills prescribed by Brazil’s
Nacional Comum Curricular. Compreender Common Base National Curriculum.
a necessidade de ouvir a população do Understanding the need to listen to
campo e a apreciação das músicas que the people from the countryside, and
integram seu cotidiano permitirá uma appreciating songs that are part of their
ampliação dos modos de escuta e dos daily life will allow an expansion of the
repertórios dos estudantes, promovendo, students’ listening modes and repertoires,
ainda, o respeito e o acolhimento da while also promoting respect for other
subjetividade do outro. people’s subjectivity.

Palavras-chave: BNCC. Educação rural. Keywords: BNCC. Rural education.


Lista de reprodução. Playlist.

OLIVEIRA, Luana. Música na educação do campo: superando estereótipos e aprimorando a escuta musical por
meio da criação de playlists. Música na Educação Básica, v. 10, n. 12, 2020.

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Música na Educação Básica

A professora, a música Para saber mais sobre a educação do campo


e o campo Consulte as Diretrizes Operacionais para a Educação Básica nas
Em 2015, ingressei como professora em escolas do campo, instituídas na Resolução CNE/CEB 1, de 3 de
um curso de Licenciatura em Educação do abril de 2002. Essas diretrizes encontram-se disponibilizadas no
site do Ministério da Educação: http://portal.mec.gov.br/index.
Campo (LEduCampo) na Universidade Fe-
php?option=com_docman&view=download&alias=13800-rceb001-
deral de Mato Grosso do Sul, tendo sido 02-pdf&Itemid=30192.
aprovada em um concurso específico para
a área de Música. Foi uma experiência sin- Conheça o periódico Revista Brasileira de Educação do Campo,
gular em minha trajetória profissional, uma editada pela Universidade Federal do Tocantins: https://sistemas.
vez que havia trabalhado sempre com mu- uft.edu.br/periodicos/index.php/campo/index
sicalização infantil em escolas urbanas, seja
de educação básica ou em cursos livres. Veja também o volume n.15 (2016) da Revista NUPEART, dedicado
ao tema do ensino de arte na educação do campo – https://www.
O curso adotava a Pedagogia da Alter- revistas.udesc.br/index.php/nupeart/issue/view/520
nância, proposta pedagógica e metodoló-
gica capaz de atender às necessidades de
articulação entre escolarização e trabalho,
propiciando a esses indivíduos o acesso à ROMPENDO
escola sem que tenham que deixar de tra-
balhar (Cordeiro; Reis; Hage, 2011, p. 116). A
PRÉ-CONCEITOS
Pedagogia da Alternância assume o traba- Na BNCC, a Música é uma das linguagens
lho como princípio educativo e permite aos artísticas que integram o componente cur-
jovens do campo a possibilidade de con- ricular Arte – que, por sua vez, está incluído
tinuar os estudos e de ter acesso aos co- na área de Linguagens (no Ensino Médio a
nhecimentos científicos e tecnológicos, não área recebe o nome de Linguagens e suas
Alunas da LEDUCAMPO - UFMS em ensaio da Ópera do Malandro Figura 1: Arte e Linguagens na BNCC
como algo dado por outrem, mas como co- Tecnologias1 ). Fonte: BNCC (BRASIL, 2017, p. 27 e 32)
nhecimentos conquistados e construídos a
partir da problematização de sua realidade, Aprendi que a educação do campo é
que passa pela pesquisa, pelo olhar distan- uma modalidade de ensino que procura
ciado do pesquisador sobre o seu cotidiano. construir uma educação popular a partir
dos camponeses, de suas memórias coleti-
Dessa forma, no tempo universidade, eu
vas, da sua realidade e dos anseios de cada
trabalhava com os licenciandos questões
localidade (Nascimento, 2009, p. 1).
relacionadas à educação musical que se-
riam colocadas em prática com seus alunos Precisamos estar atentos para evitar a
no tempo comunidade. No tempo universi- construção de um processo educativo para
dade seguinte, ou mesmo quando íamos ao os campesinos, muitas vezes utilizando es-
campo, eram problematizadas a realidade tereótipos naturalizados sobre a vida no
local e as situações vivenciadas pelos licen- campo. Ao contrário, é fundamental que a
ciandos com seus alunos. educação seja construída com eles.

Foi um tempo de grandes aprendizados, É com esta intenção que as atividades


de contato direto com pessoas singulares, aqui propostas foram pensadas: a de co-
com sonoridades e músicas variadas e rea- nhecer, explorar e aprofundar a relação dos
lidades múltiplas – tanto com semelhanças estudantes campesinos com as músicas, em 1. A BNCC esclarece que a organização por áreas “não exclui necessariamente as disciplinas, com suas especificidades e saberes próprios historicamente
quanto com diferenças marcantes em rela- diálogo com a BNCC, buscando aprimorar construídos, mas, sim, implica o fortalecimento das relações entre elas e sua contextualização para apreensão e intervenção na realidade, requerendo o
trabalho conjugado e cooperativo dos professores no planejamento e na execução dos planos de ensino” (BRASIL, 2017, p. 32, grifos no original).
ção à minha vida cotidiana. suas habilidades de escuta.

98 | Luana Oliveira Música na educação do campo | 99


V. 10 Nº 12 2020
Música na Educação Básica

O documento compreende as diferentes e de suas relações com o universo sono-


linguagens como mediadoras das ativida- ro, ampliando suas habilidades de escuta e DICA
des humanas que se realizam nas práticas compreensão musical e superando precon-
sociais (BRASIL, 2017, p. 63). É por meio ceitos que muitas vezes levamos para a sala Se você não está familiarizado com a
dessas práticas que “[…] as pessoas inte- de aula. Uma proposta pensada como uma criação de uma playlist, será divertido
ragem consigo mesmas e com os outros, forma de pensar com os alunos campesi- pedir que os estudantes lhe ensinem! Caso
queira se preparar, há vários tutoriais na
constituindo-se como sujeitos sociais. Nes- nos, e não para ou sobre eles.
internet:
sas interações, estão imbricados conheci-
Mariana Castro (2019) realizou sua pes-
mentos, atitudes e valores culturais, morais • “Como montar uma playlist no Youtube”,
quisa de mestrado em uma escola do cam-
e éticos” (BRASIL, 2017, p. 63). do site Techtudo: https://www.techtudo.
po no Rio Grande do Sul. A partir do conta-
com.br/dicas-e-tutoriais/noticia/2011/10/
Uma das competências específicas da to que teve com professores e estudantes
como-montar-uma-playlist-no-youtube.
área de Linguagens para o Ensino Funda- do Ensino Médio dessa escola, essa autora html
mental é justamente reconhecer tais lin- destacou algumas questões relacionadas
guagens e valorizá-las “como formas de aos preconceitos que a sociedade tem em • O site de suporte do Spotify também
significação da realidade e expressão de relação ao campo. Por exemplo, os alunos tem uma seção que orienta a criação de
subjetividades e identidades sociais e cul- que participaram da pesquisa queixaram-se playlists: https://support.spotify.com/br/
turais” (BRASIL, 2017, p. 65). Essas subjeti- dessas visões afirmando que não ouvem só using_spotify/playlists/create-a-playlist/
vidades se manifestam como formas de ex- “música da década de [19]60 do interior”,
• O site Tecnoblog ensina a montar uma
pressão no processo de aprendizagem em mas que ouvem de tudo: “Música clássica
playlist no Spotify no computador e no
Arte, que contribui, ainda, “para a interação à música contemporânea, de tudo!” (Castro, celular: https://tecnoblog.net/265133/
crítica dos alunos com a complexidade do 2019, p. 64). como-criar-uma-playlist-no-spotify/
mundo, além de favorecer o respeito às
Sua pesquisa evidenciou, ainda, que a es-
diferenças e o diálogo intercultural,
cola é, muitas vezes, o único local onde os
pluriétnico e plurilíngue, importantes Os estudantes serão convidados a cons-
alunos podem acessar a internet por meio
para o exercício da cidadania” (BRA- truírem playlists individuais a partir de títulos
de seus dispositivos móveis, em especial os
SIL, 2017, p. 193). sugestivos, como “Trilha Sonora da minha
celulares, para escutar música como qual-
No Ensino Médio, por sua vez, uma quer jovem. vida”, “Trilha Sonora das minhas férias”, “Tri-
das competências visa “compreender lha sonora da minha infância”, entre outros.
Para conhecer melhor a relação dos alu- Outros “temas” para as playlists podem ser
os processos identitários, conflitos e
nos com música, superando possíveis ima- discutidos e sugeridos pelos próprios estu-
relações de poder que permeiam as
gens estereotipadas em relação às práticas dantes.
práticas sociais de linguagem, respei-
culturais dos alunos campesinos, bem como
tando as diversidades e a pluralidade É fato que a música está presente no co-
para promover o respeito às opções dos
de ideias e posições” bem como “atu- tidiano de crianças, jovens e adultos – mui-
colegas, sugere-se uma série de atividades
ar socialmente com base em princípios tas vezes constituindo uma trilha sonora
que partem da criação de playlists individu-
e valores assentados na democracia, na para diferentes momentos e atividades em
ais e coletivas.
igualdade e nos Direitos Humanos, exer- suas vidas. As músicas também evocam
citando o autoconhecimento, a empatia, Playlists são listas de reprodução de mú- sentimentos e recordações de momentos
o diálogo, a resolução de conflitos e a co- sicas (ou de vídeos) que podem ser tocadas e pessoas importantes para cada um – as
operação, e combatendo preconceitos de em sequência ou em ordem aleatória. Há delineações de que nos fala Lucy Green
qualquer natureza” (BRASIL, 2017, p. 490). vários aplicativos que permitem a criação (1997). Essas delineações são uma dimen-
de playlists, como o YouTube e o Spotify, são do significado musical, que é também
Essa proposta foi pensada com o intui-
por exemplo. É muito provável que não seja construído a partir de significados inerentes
to de explorar as manifestações de subje-
necessário explicar aos estudantes o que é – próprios das relações entre os sons.
tividades dos alunos campesinos dos anos
uma playlist, contudo, a depender da faixa
finais do Ensino Fundamental e do Ensino Tudo isso pode ser explorado e aprofun-
etária, é importante estar preparado.
Médio por meio de seus gostos musicais dado nas atividades em sala de aula a partir

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Música na Educação Básica

da criação de fichas com informações que A criação da playlist coletiva permitirá A evolução do armazenamento
podem usualmente passar despercebidas
Ficha para o trabalho com a playlist que o professor conheça melhor as práticas de músicas
nas relações cotidianas com a música: títu- de escuta de seus estudantes, bem como
lo, artista(s) intérprete(s), compositor(es), incentive o acolhimento respeitoso do gos-
letrista(s), instrumentação, álbum em que to musical do outro – o que contribui para o
a canção está incluída (se for o caso). Os desenvolvimento da seguinte competência
estudantes podem também escrever um geral da educação básica:
parágrafo relatando o motivo da escolha da
Exercitar a empatia, o diálogo, a resolução
música, o significado desta em sua vida, a
de conflitos e a cooperação, fazendo-se
relação com a temática proposta, entre ou- respeitar e promovendo o respeito ao outro
tros. Alguns templates para os stories2 do e aos direitos humanos, com acolhimento
Instagram podem ser disparadores da ativi- e valorização da diversidade de indivíduos
dade, como os exemplos abaixo: Figura 3 Fonte: Elaborado pela autora e de grupos sociais, seus saberes,
identidades, culturas e potencialidades,
sem preconceitos de qualquer natureza
Templates para o trabalho com a playlist (Brasil, 2017, p. 10).

Expandindo
conhecimentos:
Se quiser, pode aproveitar para apresentar
a evolução do armazenamento de músicas
ao longo da história. Você encontra
uma matéria ilustrada a respeito no site
Tecmundo, disponível em: http://portal.
mec.gov.br/index.php?option=com_
docman&view=download&alias=15548-d-c-
n-educacao-basica-nova-pdf&Itemid=30192

Para ampliar as habilidades de escuta dos


estudantes, será bastante enriquecedor rea-
lizar atividades de apreciação guiada. Inicial-
Figura 2 mente, é importante começar explorando,
compreendendo, compartilhando e acolhen-
Fonte: Modelos para Instagram de @blogdecotti e @lalaismerim
do as relações, sensações e experiências co-
tidianas musicais de cada um, como já des-
Os estudantes poderão apresentar as Pode-se pedir, se for possível, que os es- crito anteriormente. Também é fundamental
playlists para a turma e escolher uma ou tudantes tragam essas músicas para a aula, orientar a audição dos alunos de maneira a
duas músicas para se aprofundar nos de- em quaisquer suportes, para que sejam ou- aprofundar questões ligadas à organização
talhes. Os modelos da Figura 2 já exploram vidas por todos (o professor poderá pes- sonora: aspectos relacionados aos materiais
as relações dos alunos com as músicas que quisar outras versões/gravações da mesma sonoros utilizados, os caracteres expressivos
escutam em seu dia a dia. Demais informa- música para realizar audições comparadas). construídos a partir da combinação desses
ções poderão ser anotadas em fichas técni- Dessa forma, será possível organizar uma materiais sonoros, a estrutura da música (ge-
cas como a da Figura 3. playlist coletiva, com rodadas de apreciação ralmente, nas canções, há introdução, estrofe
das músicas escolhidas por cada um. e refrão, interlúdios instrumentais, entre ou-
tros) e sua ligação com os materiais e suas
2. Postagens do Instagram que ficam disponíveis para visualização por um período de 24h. Alguns perfis disponibilizam modelos como esses para que
os usuários preencham e compartilhem em sua rede.no original).
diferentes combinações expressivas. Fonte: Daquino (2012)

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Música na Educação Básica

Pode-se começar observando quais ins- A ficha apresentada na página anterior A canção escolhida pelo estudante de 16
trumentos eles já conhecem e identificam. Para saber mais: pode ser preenchida conjuntamente com anos de idade é bastante oportuna no con-
Neste caso, pode-se introduzir ou relembrar os estudantes, anotando e sistematizando texto deste artigo, pois difere de muitos dos
o conceito de timbre e de fontes sonoras. Para se aprofundar na condução da essas informações, construindo um relatório estereótipos que possam existir com rela-
Em seguida, para transcender a mera iden- apreciação, bem como nas propostas de de escuta. O exemplo na Figura 6 foi o re- ção aos jovens que habitam o campo. Sua
Keith Swanwick como o modelo C(L)A(S)P,
tificação de timbres, é possível conduzir os sultado da apreciação realizada com a can- letra também revela a ligação do estudante
consulte:
alunos no estabelecimento de relações en- ção “Girl on Fire”3, interpretada por Alicia com a canção: ele se considera uma pessoa
tre os materiais sonoros (alturas, durações, SWANWICK, Keith. A confusão criativa Keys. Essa música foi escolhida por um dos forte, que vive em um mundo com dificul-
timbres, dinâmicas etc.) com os caracteres da Educação Musical. Intermeio: revista estudantes do Assentamento Morraria, em dades e desafios, mas certo de que há uma
expressivos das canções ou de suas partes do Programa de Pós-Graduação em Bodoquena (MS), como uma canção que o grande força interior que o faz vencer esses
(Swanwick, 1994) com perguntas como: Educação, Campo Grande, MS, v. 19, n. 37, representava. obstáculos e deixar a sua marca no mundo.
quantas partes tem essa música? Quais as p. 13- 28, jan./jun. 2013.
“Girl on Fire” foi composta por Jeff
características que vocês percebem em
FRANÇA, C.; SWANWICK, Keith. Bhasker e Salaam Remi, com participação
cada parte? Quais instrumentos estão pre- DICA
Composição, Apreciação e Performance da própria Alicia Keys e de Billy Squieris.
sentes nas diferentes partes da música? na Educação Musical: Teoria, Pesquisa e Seu lançamento se deu em 2012, na iTunes Essas fichas podem ser muito interessantes
Quais saem, quais permanecem e quais en- Prática. Em Pauta, Porto Alegre, v. 13, n. 21, Store, como um single que antecipava o ál- na comparação de diferentes versões
tram durante as estrofes? Muda algo no re- p. 5-41, dez. 2002. da mesma canção. A própria Alicia Keys
bum que teria o mesmo nome. A letra fala
frão? Que “climas” são construídos em cada lançou versões alternativas: Inferno
de uma garota solitária que consegue ven-
parte? Como vocês acham que esses climas FRANÇA, C.; MEDEIROS, Marcus. Keith Version, com a participação da rapper
Swanwick: educação musical com cer um mundo cheio de catástrofes, pas-
foram construídos? Qual estilo de música Nicki Minaj; e a Bluelight Version, esta com
liberdade e criação. Revista Música e sando em chamas sobre as chamas. vocais diferentes do original.
é esse? Como vocês o identificam? Como
Educação, v. 2, n. 2, p. 24-29, mar. 2012.
vocês o diferenciam de outros estilos seme-
lhantes?
Tudo poderá ser anotado em fichas Exemplo de relatório de escuta
como as figuras 4 e 5

Ficha para a apreciação das músicas trazidas pelos colegas

Figura 5 Fonte: Elaborado pela autora

Figura 4 Fonte: Elaborado pela autora


3. A versão utilizada para a apreciação é a do vídeo oficial de Alicia Keys no YouTube: a descrição do vídeo é “Alicia Keys – Girl on Fire (Official Video)”.

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Música na Educação Básica

Os gostos musicais dos estudantes da Várias dessas músicas foram exploradas Ensino Médio
educação do campo são os mais diversos. ao longo dos semestres em que trabalha- (EF69LP46) Participar de práticas DICA
Em pesquisa realizada em 2015, onde pro- mos juntos, resultando num rico mosaico de compartilhamento de leitura/re-
curei conhecer a relação dos estudantes de de gêneros e estilos, e possibilitando per- O canal da Click Audioworks no YouTube
cepção de obras literárias/ manifesta-
uma escola do Assentamento Itamarati, no ceber as semelhanças e as diferenças nas produziu uma série com três curtos
ções artísticas, como rodas de leitura, episódios chamada “Um dia em estúdio”,
Município de Ponta Porã (MS), com a cul- diferentes músicas que integravam as ricas clubes de leitura, eventos de contação que nos apresenta os bastidores da
tura de fronteira, ficou claro que os gostos playlists dos estudantes. de histórias, de leituras dramáticas, de gravação de uma banda. No primeiro,
musicais são bastante variados. Os estu- apresentações teatrais, musicais e de “Conhecendo a Música”, é mostrado o
Essas explorações serão fundamentais
dantes ouvem músicas da mídia (sertanejo, filmes, cineclubes, festivais de vídeo, momento em que os profissionais do
tanto para observar quais conhecimentos
funk, músicas internacionais), músicas liga- saraus, slams, canais de booktubers,
estúdio conhecem a música, a partir de
os estudantes já trazem para a sala de aula
das ao universo gospel, bem como músicas uma audição com a banda para definir
quanto para ampliá-los e sistematizá-los. redes sociais temáticas (de leitores, de como seria feita a gravação. No segundo
típicas do contexto em que estão inseridos: cinéfilos, de música etc.), dentre outros,
Além disso, todos esses conhecimentos episódio, intitulado “Gravação”, é possível
vanerão, chamamé e guarânias. tecendo, quando possível, comentários
poderão ser utilizados posteriormente em acompanhar o momento da gravação
momentos de criação de arranjos, versões, de ordem estética e afetiva e justifican- dos músicos e o trabalho dos técnicos
paródias ou novas canções. do suas apreciações, escrevendo co- durante o processo. No último, “Mix/
Portfólio de estudantes do Master/Publicação”, um dos técnicos
mentários e resenhas para jornais, blo-
Assentamento Itamarati (MS) aborda alguns detalhes da mixagem e
gs e redes sociais e utilizando formas
da masterização da música, passando
NA BNCC de expressão das culturas juvenis, tais também pela assessoria que o estúdio
Com esta atividade, o professor estará como, vlogs e podcasts culturais (lite- oferece para o lançamento virtual do
favorecendo a aquisição das seguintes ratura, cinema, teatro, música), playlists single.
habilidades: comentadas, fanfics, fanzines, e-zines,
fanvídeos, fanclipes, posts em fanpa-
ges, trailer honesto, vídeo-minuto, den- Note que esta atividade não é especí-
Ensino Fundamental – Anos tre outras possibilidades de práticas de fica para a educação do campo, podendo
Finais apreciação e de manifestação da cultu- ser utilizada nos mais diferentes contextos.
(EF69AR16) Analisar criticamente, por ra de fãs. Contudo, sua importância reside em permi-
meio da apreciação musical, usos e fun- tir uma aproximação da vida musical cam-
ções da música em seus contextos de pesina, despida de estereótipos, que será
produção e circulação, relacionando as Será possível, ainda, apresentar as fichas muito útil para a continuidade da ação pe-
práticas musicais às diferentes dimen- técnicas das músicas, onde informações dagógica.
sões da vida social, cultural, política, his- variadas sobre a gravação podem ser en-
tórica, econômica, estética e ética. contradas. Em geral, essas fichas vinham
nos encartes dos CDs, mas hoje em dia elas
(EF69AR19) Identificar e analisar diferen- podem facilmente ser encontradas na inter-
tes estilos musicais, contextualizando-os net. Questões relativas à gravação também
no tempo e no espaço, de modo a apri- podem ser exploradas por meio de visitas
morar a capacidade de apreciação da es- programadas a estúdios localizados em ci-
tética musical. dades próximas, ou mesmo visitas virtuais a
(EF69AR20) Explorar e analisar elemen- estúdios de gravação. Profissionais da área
tos constitutivos da música (altura, inten- também podem ser convidados para con-
sidade, timbre, melodia, ritmo etc.), por versarem com os estudantes na escola.
Fonte: Acervo pessoal da autora
meio de recursos tecnológicos (games
e plataformas digitais), jogos, canções
e práticas diversas de composição/cria-
ção, execução e apreciação musicais.

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Música na Educação Básica

Notas finais Autor Referências


As atividades aqui propostas tiveram
BORBA, Borba, Julio César Matos Estilo duetado: o Cha-
o objetivo de permitir que os professores mamé instrumental em Campo Grande, Mato Grosso do
conhecessem as relações dos estudantes Sul. 2018. 143 f. Dissertação (Mestrado em Música) – Uni-
campesinos com a música, especialmente versidade Federal do Paraná, Curitiba, 2018.
seus gostos e os usos e funções da músi- CASTRO, Mariana Gomes Godinho de. Educação musical
Luana Oliveira na educação do campo: um estudo de caso. 2019. 137
ca no cotidiano. A partir da criação de uma luanaufmg@hotmail.com
f. Dissertação (Mestrado em Música) – Instituto de Artes,
ou várias playlists comentadas, o professor
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre,
poderá explorar importantes questões mu- Bacharel em Música – Trompa e mestre em 2019.
sicais, descritas na BNCC. É preciso desta- Educação Musical pela Escola de Música da BRASIL. Resolução CNE/CEB 1, de 3 de abril de 2002.
car que, neste caso, a presença de um pro- Universidade Federal de Minas Gerais. Foi Institui Diretrizes Operacionais para a Educação Bási-
fessor de música será fundamental para a professora de música em diversas escolas ca nas Escolas do Campo. Brasília, 2002. Disponível
exploração consistente das obras musicais. em: http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_
de educação básica em Belo Horizonte, docman&view=download&alias=13800-rceb001-02-
Conduzidas dessa maneira, as ativida- bem como em clínicas e escolas especiali- pdf&Itemid=30192. Acesso em: 20 abr. 2020.
des permitem que os estudantes percebam zadas. Entre 2015 e 2016, atuou como pro-
BRASIL. Ministério da Educação. Diretrizes Curriculares
que os conhecimentos musicais escolares fessora do curso de Licenciatura em Educa- Nacionais Gerais da Educação Básica. Brasília: MEC, SEB,
não são necessariamente tão distantes do ção do Campo, na Universidade Federal de DICEI, 2013. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/in-
Mato Grosso do Sul, e atualmente é profes- dex.php?option=com_docman&view=download&alias=15548-
seu cotidiano, levando-os a descobrir novas -d-c-n-educacao-basica-nova-pdf&Itemid=30192.
possibilidades para a apreciação musical. sora dos cursos de Música da Universidade
Federal de Juiz de Fora, onde coordena o BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum
É importante ouvir e comentar todas as Curricular – Educação é a base. Brasília: Ministério da
Bacharelado em Música e o projeto Musica- Educação, 2017. Disponível em: http://basenacionalco-
músicas trazidas por todos os estudantes,
lização Infantil UFJF. mum.mec.gov.br/images/BNCC_EI_EF_110518_versaofi-
sendo possível decidir em conjunto com nal_site.pdf. Acesso em: 20 abr. 2020.
eles quais poderiam ser objeto de maior
CASTRO, Mariana Gomes Godinho de. Educação musical
aprofundamento. Ao ouvirem e traba- na educação do campo: um estudo de caso. 2019. 137
lharem músicas trazidas por seus f. Dissertação (Mestrado em Música) – Instituto de Artes,
colegas, muitas vezes terão seu re- Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre,
2019.
pertório ampliado, o que também
poderá acontecer quando ouvirem CORDEIRO, Georgina N. K.; REIS, Neila da Silva; HAGE,
e trabalharem músicas trazidas pelo Salomão Mufarrej. Pedagogia da Alternância e seus desa-
fios para assegurar a formação humana dos sujeitos e a
professor. sustentabilidade do campo. Em Aberto, Brasília, v. 24, n.
85, p. 115-125, abr. 2011.
Neste sentido, as atividades possibili-
tam que o universo cultural dos campesi- DAQUINO, Fernando. A evolução do armazenamento de
músicas [infográfico]. Tecmundo, 1 out. 2012. Disponível
nos seja respeitado, que estereótipos se-
em: https://www.tecmundo.com.br/infografico/30658-
jam desconstruídos – especialmente por -a-evolucao-do-armazenamento-de-musicas-
parte do professor, no caso deste não ser -infografico-.htm#:~:text=Embora%20o%20ato%20
oriundo ou familiarizado com o contexto de%20fazer,para%20guardar%20e%20executar%20
can%C3%A7%C3%B5es. Acesso em: 20 abr. 2020.
onde se localiza a comunidade e/ou a
escola – e que um trabalho consistente GREEN, Lucy. Pesquisa em Sociologia da Educação Musi-
cal. Revista da Abem, Londrina, v. 4, n. 4, p. 25-35, 1997.
com música seja realizado, em acordo
com as prescrições da Base Nacional NASCIMENTO, Claudemiro Godoy do. Educação e Cul-
tura: as escolas do campo em movimento. Fragmentos
Comum Curricular.
de Cultura, Goiânia, v. 16, n. 11/12, p. 867-883, nov./dez.
2006.

SWANWICK, Keith. Musical Knowledge: intuition, analysis


and music education. London: Routledge, 1994.

108 | Luana Oliveira Música na educação do campo | 109


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MÚSICA
ISSN 2175-3172

na educação básica

Volume 7
Número
7/8
abem
Associação Brasileira
de Educação Musical

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