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baterista mia desses, em visita a uma redago de jornal, uma das editoras, talvez por ca- ‘oete de profissio, perguntou qual era a ‘minha formagio. Sem pensar muito, res- pondi: “Sou baterista. Baterista autodidata”, Refletindo melhor depois, vi que a respo ta nao poderia ser outra. Penso como bateris ta, percebo e deduzo 0 mundo ao meu redor como baterista. Expandi meu universo de in- teresses e angariei uma série de outros oficios. a partir desse. Tocar bateria, pra mim, se confunde com o tempo em que aprendi a andar. Talvez por ter adquirido sozinho ¢ to cedo essa habilidade, acabei por desconflar de qualquer tipo de pro- fessor que nao fosse aquele que designasse. Todo problema virava uma questao a ser resolvida através da bateria. Ansiedaue? Ah, se eu puder tocar cada vez mais lentamente, fade), onde minha alma habita aniquilarei a ansiedade! (...) Percebi que, ritmo qualquer com os dedos. Em seguida, vi ddiminuindo gradativamente o andamento e ve- | rita dficuldade que é manter a precisio na pro- | gue ele cai). | Percebi que, quanto mais se tem dominio Sobre o andamento lento, tnais maturidade m=) sical se adquire. Eisso vale para oresto das coi- | sas da vida. Do sexo & conversa de botequim. (Quem sabe toda criatura que ama seu oficio seja conduzida a enxergar o mundo sob a dtica dessa atividade. Para mim & assim. A bateria ‘me apresentou conceitos como temperanga, at rojo, contencio, paciéncia, concentraco, pre- cisdo e também convicgao (essa no tem por- centual: se voce é 99.9% convicto, vocé é€ um vacilio), Também me ensinou a ver o outro: para saber tocar, antes de mais nada, & preciso aprender a ouvir. E a respirar, imaginar, enten- der o silencio e 0 tempo, ‘Minhas primeiras indagagdes sobre a alma | tiveram a mesma origem: vieram da relagio | de gratidéo que passei.a ter com a minha inde- pendéncia motora. Afinal, se eu Possuia membros de uma solici- tude comovente (meus pés, meus bragos, meu caleanhar — todos em sineronia com a minha von: tia? De onde partiria a vontade de organizar as ordens para 0 quanto mais se tem dominio sobre 0 andamento testo do corpo? A partir de que lento, mais maturidade musical se adquire. E isso vale para o resto das coisas da vida. Do sexo a conversa de botequim Todas as pequenas descobertas que fuzia {quando crianca, e que me causavam intensasale- gtias, ram sempre relacionadas ao fato de tocar ateria: todo niimero impar somado a si mesmo vira par. Toda proparoxitona é uma quitera, © ritmo ternério induz ao circulo, 4 espiral — dai a valsa, © binério tem a ver com 0 sexo, com @ guerra — por isso 0 samba, a marcha, ‘Todo problema virava uma questdo a ser re- solvida através da bateria. Ansiedade? Ah, se eu puder tocar cada vez mais lentamente, ani quilarei a ansiedade! Sim, pois se voc@ estiver ansioso jamais conseguiri seguir um andamen- to Iento com conforto e naturalidade (experi- ‘mente baixar no seu celular um daqueles apli- cativos de metrénomo e tente acompanhar um onto eu no teria mais a frontel- a que separa o que é meu (meu corpo) do lugar que eu verdadei- ramente habito? E assim, impelido pela curio- sidade e pela autocontflanga que a bateria me proporcionou, parti para outras varias atividades. Escrever foi uma das primeiras. Quando escrevia, sentia que as virgulas eram a8 viradas dos tambores. A ex- clamacio, a explosio dos pratos. A poesia, 0 fluir sonoro de uma levada, ‘Tocar um instrumento nos desenvolve pro- fundamente como individuos e nos educa para conviver numa coletividade — 0 aprendizado deixa clara a orcem natural das coisas: primei ro € preciso construir-se. Por isso decidi fazer esta pequena homena- gem ao meu principal e primevo oficio — um sinal de gratidio e amor Squilo que me tornou ‘uma pessoa melhor, mais itil e mais criativa Desejo do fundo do coragao que cada leitor ex: perimente intensamente essa paixao.

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