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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

CENTRO DE LETRAS E ARTES


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM MÚSICA
DOUTORADO EM MÚSICA

O VIRTUOSISMO E O “SWING” REVELADOS NA REVISÃO FONOGRÁFICA DE


FLOR DA NOITE E MODINHA & BAIÃO DE
RADAMÉS GNATTALI

FERNANDA CANAUD

RIO DE JANEIRO, 2013


O VIRTUOSISMO E O “SWING” REVELADOS NA REVISÃO FONOGRÁFICA DE
FLOR DA NOITE E MODINHA & BAIÃO DE
RADAMÉS GNATTALI

por

FERNANDA CANAUD

Tese submetida ao Programa de Pós-


Graduação em Música do Centro de Letras e
Artes da UNIRIO, como requisito parcial para
obtenção do grau de Doutor em Música, sob a
orientação do Professor Doutor Silvio Mehry.

Rio de Janeiro, 2013


Canaud, Fernanda.
C213 O virtuosismo e o “Swing” revelados na revisão fonográfica de Flor da
Noite e Modinha & Baião de Radamés Gnattali / Fernanda Canaud, 2013.
263f.; 30cm + CD-ROM

Orientador: Silvio Mehry


Tese (Doutorado em Música) – Universidade Federal do Estado do
Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013.

1. Gnattali, Radamés, 1906-1988. 2. Revisão fonográfica. 3. Análise aural.


4. Interpretação. 5. Gestão do conhecimento. I. Mehry, Silvio. II. Universidade
Federal do Estado do Rio de Janeiro. Centro de Letras e Artes. Curso de
Doutorado em Música. III. Título.

CDD – 780

Autorizo a cópia da minha tese “O Virtuosismo e o ‘Swing’ revelados na Revisão Fonográfica


de Flor da Noite e Modinha & Baião de Radamés Gnattali”, para fins didáticos.

________________________________________________________
Fernanda Canaud
À Jacques Canaud (in memoriam),
aos meus pais Ângelo Chaves e Maria Margarida Ventura Chaves
e aos meus filhos Caio Márcio e Daniel René
AGRADECIMENTOS

À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) pelo suporte


financeiro para a realização desta pesquisa;

À Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO);

Ao Programa de Pós-Graduação em Música (PPGM);

Ao Museu da Imagem e do Som (MIS);

À Rádio MEC;

Ao Instituto Moreira Salles (IMS);

À querida Nelly Gnattali, viúva do compositor Radamés Gnattali, por suas colaborações com
fornecimento das partituras autógrafas, objetos, fotos e documentos de grande valor;

Ao orientador desta pesquisa, Professor Doutor Silvio Mehry, pela confiança e oportunidade
de realizar esse trabalho;

Ao Professor Doutor Luiz Otávio Braga e à Professora Doutora Nadge Breide pelo apoio
fundamental e pelas preciosas sugestões dadas na Qualificação, e por participarem da banca
de defesa da tese;

Aos demais componentes da banca de defesa desta tese, Professor Doutor Ricardo Tacuchian,
Professora Doutora Mirian Dauelsberg, Professor Doutor Leonardo Mataruna e Professor
Doutor Sergio Barrenechea;

Ao querido amigo pianista Nelson Freire, Doutor Honoris Causa (UFRJ), pelo apoio,
amizade e incentivos;

Às Professoras Doutoras Martha Ulhôa e Carole Gubernikoff pelas colaborações e incentivos


dados nas aulas, seminários e palestras, bem como pelos sites e livros sugeridos;

Ao maestro Ricardo Tacuchian pela dedicação à música brasileira e pelas aulas imperdíveis
que nos fizeram, entre outras satisfações, a de redescobrir a genialidade das sinfonias de
Camargo Guarniere;

Ao Professor Paulo Aragão pela alegria, entusiasmo e interesse amigo nas aulas, palestras e
conversas, muitas vezes pela correção de textos e orientações humanísticas;

Ao Professor Doutor Leonardo Mataruna pelas inestimáveis sugestões e colaborações na


diagramação da metodologia do trabalho;
Ao amigo parceiro musical, violoncelista e Professor Doutor David Chew por sua inestimável
participação e consequente colaboração para o desenvolvimento desta tese;

Ao amigo querido Dr. Luiz Alberto Colona Rosman que proporcionou a gravação do CD do
Duo Chew-Canaud, lançado em 2006 – Obra Completa para violoncelo e piano de Radamés
Gnattali;

Ao querido Aristides, funcionário exemplar do PPGM, por sua dedicação, amizade, apoio e
incentivo e aos demais funcionários e professores da UNIRIO;

Ao Gilson, que editou os takes;

À querida aluna e amiga Úrsula Abdala por sua dedicação, alegria e ajuda inestimável nas
digitações;

Ao querido Daniel Canaud pelas digitações dos anexos;

A toda minha família pelo amor, incentivo, carinho, ajuda e apoio incondicional em todos os
momentos da minha vida;

Aos meus amados filhos Caio Márcio e Daniel René por serem os seres humanos
extraordinários que são; e muito mais pelo apoio, paciência e compreensão nos momentos de
ausência ou de tensão;

Ao Oswaldo Guilherme Schroeter pelo apoio constante;

À minha família portuguesa Chaves e Berger que me receberam e apoiaram nas viagens;

À família Schroeter e Trachbach, queridos amigos que me receberam tão carinhosamente e


apoiaram meu trabalho em Porto Alegre;

Aos colegas, funcionários e alunos da Escola de Música Villa-Lobos que me proporcionam


tantas alegrias pela oportunidade do magistério e que me apoiaram nesta tese;

A todos os meus alunos queridíssimos que sempre estiveram presentes;

Aos extraordinários músicos, queridos amigos: Odete Ernest Dias, Harold Emert, Maria
Tereza Madeira, Carlos Soares, Marco de Pinna e Bruce Henri, que graciosamente
abrilhantaram as ilustrações do trabalho participando das apresentações públicas relacionadas
ao curso;

A todos os meus professores de piano: Denir Ishikawa, Helena Queiroga, Homero de


Magalhães, Linda Bustani, Antônio Guedes Barbosa, Ondini Mello, Telmo Côrtes e Myrian
Dauelsberg;

Em especial agradeço à professora de piano Myrian Dauelsberg, que embora tenha se tornado
grande empresária no ramo cultural, nunca deixou de lado sua vocação de mestra, além de ter
estado sempre presente, apoiando e incentivando nossos esforços desde nossa adolescência.
Agradeço por seu exemplo e por suas lições de música, de arte e de vida;
Aos meus parceiros de música de câmara, José Botelho, Noel Devos, Harold Emert, Odete
Ernest Dias, Joel Nascimento e outros parceiros de música, de vida e de palco;

Ao amigo Paulo Miranda da Oroboro - Produções artísticas;

À Carpex, ao Dr. Sergio da Costa e Silva e Projeto Música no Museu;

Aos meus queridos amigos e amigas, científicos e “não” científicos, pessoas maravilhosas que
fizeram parte desse momento e que direta ou indiretamente contribuíram para a conclusão do
trabalho;

Ao pessoal do Coro da Igreja Santa Cecília;

Ao Paulo Schroeter pela confecção dos programas do recital apresentado como requisito
parcial para obtenção do título de Doutor em Música;

À querida Karina Cancella pela revisão especializada, pelas correções e formatações finais
para a edição definitiva da tese.

Ao Luciano Perrone – in memoriam, que me deixou de herança todos os seus LPs, alguns
raríssimos, entre eles o LP que originou a ideia desta tese;

Aos parentes e amigos – in memoriam, pois sem a vida deles interagindo na minha, eu não
teria sido quem sou;

Ao mestre e amigo da BSGI, Dr. Daisako Ikeda, pelas palavras de sabedoria e incentivo;

Às Funções Protetoras do Universo pela proteção obtida; à beleza do mundo, da poesia, da


música; e à imensidão do que seja o olhar, magia e mistério que me fascina, me ensina e me
impulsiona, a cada dia, a amar;

Finalmente, agradeço à razão, que nunca deixou a minha curiosidade morrer e levou minha
alma humana a olhar este trabalho como algo além de minha música e de mim mesma.
Na vida há momentos que parecem que
estamos dentro de um túnel. Porém, ao
atravessá-lo podemos ver novamente uma
maravilhosa paisagem. O que não podemos
fazer é parar no meio. A causa da derrota não
se encontra no obstáculo ou no rigor das
circunstâncias; está no retrocesso da
determinação e na desistência da própria
pessoa. Se falasse em dificuldades, tudo
realmente era difícil. Se falasse em
impossibilidades, tudo realmente era
impossível. Quando o ser humano regride em
sua decisão, os problemas que se erguem em
sua frente acabam parecendo maiores e
confundem-no como uma realidade imutável.
A derrota encontra-se exatamente nisso. Como
diz Nitiren Daishonin, sofra o que tiver que
sofrer, desfrute o que existe para ser
desfrutado, considere tanto o sofrimento como
a alegria como fatos da vida e continue
recitando o Nam miohô rengue kyô, não
importando o que acontecer, e então
experimentará a grande alegria. Essa é a
verdadeira chave da vitória em tudo. E
lembrem-se com alegria: A vitória é o início
de um desafio ainda maior. Boa sorte a todos.
(Dr. Daisako Ikeda)
CANAUD, Fernanda. O virtuosismo e o “swing” revelados na Revisão Fonográfica de Flor
da Noite e Modinha & Baião de Radamés Gnattali. 2013. Tese (Doutorado em Música) –
Programa de Pós-Graduação em Música, Centro de Letras e Artes, Universidade Federal do
Estado do Rio de Janeiro.

RESUMO

Esta tese investigou a relevância da Análise Aural, parte da revisão fonográfica, das peças
Flor da Noite e Modinha & Baião para violoncelo e piano de Radamés Gnattali, gravadas
pelo autor-intérprete em Duo com Iberê Gomes Grosso no LP do selo Festa (LDR-5028)
intitulado Villa-Lobos e Radamés Gnattali [1958-1964]. O objetivo principal do estudo foi
revelar características da interpretação do autor-intérprete visando futuras performances de
sua obra. Utilizou-se a Pesquisa Experimental do tipo Ex Post Facto, de acordo com Gil
(2008), para gerar a criação de um modelo de análise aural, baseado na Gestão do
Conhecimento de Nonaka e Takeuchi (1997), a partir da escuta das gravações do próprio
compositor-intérprete comparadas com suas partituras autógrafas. Para as análises aurais,
tomou-se como base o pensamento e o guia pontual de interpretação pianística de Artur
Schnabel (WOLFF, 1972). A questão investigada nesta tese foi se a aplicação da análise aural,
parte da revisão fonográfica, é uma ferramenta para revelar características não escritas pelo
compositor-intérprete em suas partituras autógrafas. Outras hipóteses foram examinadas, por
exemplo, se a revisão fonográfica poderia ser utilizada para o refinamento da expressão
musical artística de intérpretes. Como resultado, constatou-se através da análise aural
minudenciada da interpretação, revisão fonográfica, que o compositor, em suas execuções,
não se ateve à própria escrita, tomando liberdades de andamento, de articulação das frases e
de dinâmica não indicadas na partitura. Em síntese, a revisão fonográfica revelou o
virtuosismo e o “swing”, como características da performance de Gnattali. A partir das peças
escolhidas para análise aural, concluiu-se que a revisão fonográfica é um importante auxílio
para a compreensão e execução das obras desse autor-intérprete; e que pode ser usada como
ferramenta de trabalho nas práticas interpretativas extensivas à obra de outros compositores.

Palavras-Chave: Revisão Fonográfica. Análise Aural. Interpretação. Radamés Gnattali.


Gestão do Conhecimento.
CANAUD, FERNANDA. The virtuosity and “swing” music revealed in the review of Flor da
Noite and Modinha & Baião of Radamés Gnattali. 2013. PhD Thesis (Doutorado em Música)
– Programa de Pós-Graduação em Música, Centro de Letras e Artes, Universidade Federal do
Estado do Rio de Janeiro.

ABSTRACT

This study investigated the relevance of aural interpretation analysis model - part of reviewing
recorded music of Radamés Gnattali´s pieces Flor da Noite and Modinha & Baião for Cello
and Piano recorded by the author-performer in Duo with Iberê Gomes Grosso in the LP Seal
Party (LDR-5028) titled Villa-Lobos and Radamés Gnattali [1958-1964]. The main objective
of the study was to reveal features of the interpretation of the author-performer aiming future
performances of his work. We used the Experimental Research of the type Ex Post Facto
according to Gil (2008) to generate the creation of an aural analysis model from listening to
the recordings of the composer-performer compared with their scores autograph, using the
concept of Knowledge Management of Nonaka e Takeuchi (1997). For aural analysis
approfondly aural analysis model interpretation was taken as the basis of thought and punctual
tab piano performance of Artur Schnabel (WOLFF, 1972). The question was investigated
whether the application of aural interpretation analysis model, recording part of the review, is
a tool to reveal features not written by composer-performer in his handwritten scores. Other
hypotheses were examined, such as the recording revision could be used for the refinement of
artistic musical expression by interpreters. As a result it was found through, review music, the
composer, in his plays, not played to writing itself, taking liberties, tempo, articulation and
dynamics of phrases, not indicated in the score. In summary, the review revealed the
virtuosity and swing, as the performance characteristics of Gnattali. From the pieces chosen
for the analysis model concluded that the revision recording is an important aid to
understanding and execution of the works of this author, performer, and that can be used as a
tool in the interpretative practices extend to the work of other composers.

Keywords: Revision Phonographic. Aural Analysis. Interpretation. Radamés Gnattali.


Knowledge Management.
CANAUD, FERNANDA. La virtuosité et “swing” révélélors de l'examende Flor da Noite ET
Modinha & Baião de Radamés Gnattali. 2013. Thèse (Doutorado em Música) – Programa de
Pós-Graduação em Música, Centro de Letras e Artes, Universidade Federal do Estado do Rio
de Janeiro.

RESUMÉ

Cette étude a examiné la pertinence de l'analyse auditive, une partie de la révision de la


musique enregistré. Le morceaux étaient: Flor da Noite et Modinha & Baião pour violoncelle
et piano de Radamés Gnattali, jouées par le compositeur sur le disque en Duo avec le
violoncelliste Iberê Gomes Grosso dans le LP (LDR-5028) intitulée Villa-Lobos et Radamés
Gnattali [1958-1964]. L'objectif principal de l'étude était de révéler les caractéristiques de
l'interprétation de l'auteur-instrumentiste visant performances futures de ses morceaux. Nous
avons utilisé la recherche expérimentale de type Ex Post Facto selon Gil (2008) pour générer
la création d'un modèle d'analyse auditive, avec le conception de Gestion de la connaissance
de Nonaka e Takeuchi (1997). Pour l'analyse auditive la recherche, Nous avons utilisé la
pensée d'Artur Schnabel (WOLFF, 1972). La question de recherche abordée était la suivante:
Si l'application de le model de l'analyse auditive, cadre de l'examen, est un outil pour révéler
des fonctionnalités non écrites par le compositeur dans ses partitions manuscrites. D'autres
hypothèses ont été examinées, pour exemple: telles que le revision de l'enregistrement
pourrait être utilisé pour le raffinement de l'expression artistique. En conséquence, il a été
trouvé par l'analyse, que, la interprétation de cette compositeur par lui meme, est pleine des
libertés de jouer: le tempo, l'articulation et la dynamique. En résumé, l'examen a révélé que la
virtuosité et le swing sont les caractéristiques de l'écriture et la performance de ce
compositeur, donc, d'jouer des œuvres d'Gnattali. Des morceaux retenus pour l'analyse
auditive a conclu que l'analyse de disque et l'enregistrement révision est une aide importante à
la compréhension et à la interpretation des morceaux de cet auteur, interprète, et qui peut être
utilisé comme un outil dans des pratiques musicales. Peux aussi étendre cette travail en
autres compositeurs.

Mots-clef: Révision phonographique. Analyse auditive. Interprétation. Radamés Gnattali.


Gestion de la connaissance.
SUMÁRIO

Página

PREFÁCIO....................................................................................................................... 1

INTRODUÇÃO................................................................................................................ 3
a. A escolha das peças e a ideia da revisão fonográfica............................................. 3
b. Estudos e Questionamentos.................................................................................... 5
c. O que é análise no estudo da música — alguns tipos de análise musical............... 6
d. A inexistência de padrão para análise aural — revisão fonográfica....................... 10
e. Centre for the History and Analyses of Recorded Music – CHARM.................... 11
f. Metodologia do estudo — a revisão fonográfica: análise aural.............................. 12
g. A fundamentação teórica........................................................................................ 16
h. Interesse na obra de Radamés Gnattali: revisão simplificada da literatura............ 20
i. O perfil biográfico de Radamés Gnattali na tese.................................................... 24
j. A contribuição do trabalho..................................................................................... 26
k. Organização do trabalho......................................................................................... 27
l. Definição de termos................................................................................................ 28
• Swing............................................................................................................. 29
• Virtuosismo................................................................................................... 32
• Pregão........................................................................................................... 33
• O gênero modinha......................................................................................... 34
• O gênero baião.............................................................................................. 35

CAPÍTULO 1 - PERFIL BIOGRÁFICO...................................................................... 39


1.1 Introdução.......................................................................................................... 39
1.2 Antecedentes — raízes musicais de Radamés Gnattali: família de artistas....... 40
1.3 A prática musical em família – ecletismo musical e o apoio à carreira............. 42
1.4 A prática musical fora de casa - primeiros trabalhos......................................... 43
1.5 A prática musical erudita e os incentivos do Professor Guilherme Fontainha.. 45
1.5.1 Radamés no Rio de Janeiro em 1924................................................... 46
1.5.2 De volta a Porto Alegre........................................................................ 47
1.5.3 Em compasso de espera........................................................................ 48
1.5.4 Novamente no Rio de Janeiro em 1929............................................... 49
1.5.5 Entre idas e vindas — Entre Porto Alegre e Rio de Janeiro................ 52
1.5.6 Em 1931, Radamés mudou-se para o Rio de Janeiro
definitivamente............................................................................................. 53
1.6 Mudança do objetivo profissional de ser pianista concertista............................ 54
1.7 Samba no piano — convívio com pianeiros cariocas — fama como
arranjador.................................................................................................................. 56
1.7.1 Tradição dos pianeiros no Rio de janeiro............................................. 58
1.8 O casamento e a nova vida — “operário da música”: pseudônimo Vero........... 61
1.9 O trabalho nas rádios.......................................................................................... 63
1.10 Fama de americanizado — caminhos para sedimentação de seu “swing”........ 66
1.11 O trabalho de Radamés nas gravadoras............................................................ 68
1.11.1 Radamés e suas gravações até 1964................................................... 72
1.12 O lançamento do LP com o Duo Gnattali-Gomes Grosso................................ 74
1.12.1 O sucesso do pregão e Flor da Noite gravada no LP......................... 75
1.12.2 O sucesso do baião e o Baião gravado no LP.................................... 75
1.12.3 O selo Festa — mercado fonográfico Nacional para música
erudita........................................................................................................... 76
1.13 Críticas à obra de Radamés — “puristas” da música erudita e popular............ 78
1.14 Composições inspiradas nos instrumentistas amigos........................................ 83
1.15 Notoriedade que superou as próprias expectativas........................................... 85
1.16 Virtuosismo e “Swing” de Radamés Gnattali................................................... 86

CAPÍTULO 2 - O GUIA DE INTERPRETAÇÃO DE ARTUR SCHNABEL QUE


BASEOU OS CRITÉRIOS DA ANÁLISE AURAL DESTE TRABALHO.............. 89

CAPÍTULO 3 - REVISÃO FONOGRÁFICA............................................................... 95


3.1 Introdução à Análise Aural de Flor da Noite e Modinha & Baião..................... 95
3.1.1 O estado dos fonogramas utilizados no trabalho (LP)......................... 95
3.1.2 Características comuns das peças Flor da Noite e Modinha &
Baião............................................................................................................. 97
3.2 Flor da Noite — A peça...................................................................................... 97
3.2.1 Flor da Noite — Algumas considerações sobre a harmonia................ 98
3.2.2 Flor da Noite — Estrutura geral da peça............................................. 99
3.2.3 Flor da Noite — Revisão fonográfica — Análise Aural — LP
Gnattali.......................................................................................................... 99
3.2.3.1 Comentários de David Chew I (dez compassos)................... 105
3.2.3.2 Comentários de David Chew II............................................. 114
3.2.4 Flor da Noite — Análise Aural sucinta e comparativa de Flor da
Noite pelo Duo Chew-Canaud no CD de 2006............................................. 118
3.3 Modinha & Baião — A obra e sua execução...................................................... 119
3.3.1 Modinha — Algumas considerações sobre a peça............................... 120
3.3.2 Modinha — Estrutura geral da peça..................................................... 120
3.3.3 Modinha — Revisão Fonográfica — Análise Aural — LP Gnattali-
Grosso........................................................................................................... 121
3.3.4 Modinha — Análise Aural sucinta e comparativa de Modinha pelo
Duo Chew--Canaud no CD de 2006............................................................. 130
3.3.4.1 Comentários de David Chew III (Modinha).......................... 134
3.3.5 Baião — Algumas considerações sobre a peça................................... 135
3.3.6 Baião — Estrutura geral da peça......................................................... 135
3.3.7 Baião — Revisão Fonográfica — Análise Aural — LP Gnattali-
Grosso........................................................................................................... 136
3.3.7.1 Comentários de David Chew IV (da execução do Baião)..... 146
3.3.8 Baião — Análise Aural sucinta e comparativa de Baião pelo Duo
Chew-Canaud no CD de 2006...................................................................... 146
3.3.8.1 Comentário V........................................................................ 148
3.4 Modinha & Baião — Versão 2012: Vídeo do recital “ao vivo” com o Duo
Chew-Canaud Modinha & Baião...............................................................................150
3.5 Análise, Interpretação e Discussão dos resultados............................................. 152
CONCLUSÕES E RECOMENDAÇÕES..................................................................... 161

REFERÊNCIAS.............................................................................................................. 165

ANEXOS........................................................................................................................... 177
LISTA DE QUADROS

Página

Quadro 1. Espiral do conhecimento no Processo SECI...................................................... 15


Quadro 2. Forma Musical de Flor da Noite........................................................................ 99
Quadro 3. Forma Musical de Modinha............................................................................... 121
Quadro 4. Forma Musical do Baião.................................................................................... 136
Quadro 5. Processo recomendado de Aplicação da Análise Aural.................................... 163
LISTA DE EXEMPLOS MUSICAIS EM PARTITURAS

EXEMPLO MUSICAL Página

1. Rítmica básica do Baião.............................................................................................. 37


2. Recorte da Partitura editada de Flor da Noite c. 30 ao c. 34...................................... 98
3. Flor da Noite – c. 16 ao c. 17...................................................................................... 100
4. Flor da Noite – c. 1 ao c. 10 (Take 2).......................................................................... 101
5. Flor da Noite – c. 1 ao c. 5 (Take 3)............................................................................ 102
6. Flor da Noite – c. 5.4 ao c. 10 (Take 4)....................................................................... 104
7. Flor da Noite – c. 11 ao c. 19.3 (Take 5)..................................................................... 107
8.1. Flor da Noite – c. 19.4 ao c. 43 Seção B (Take 6).................................................... 109
8.2. Flor da Noite (continuação) – c. 19.4 ao c. 43 – Seção B........................................ 110
9. Flor da Noite – c. 19.4 ao c. 29 – Subseção b1 (Take 7)............................................. 111
10. Flor da Noite – c. 29.4 ao c. 35 – Subseção b2 (Take 8)........................................... 112
11. Flor da Noite – c. 36 ao c. 43 – Subseção b3 (corresponde ao Take 9).................... 113
12. Flor da Noite – c. 44 ao c. 52.1 – Seção A’(Take 10)............................................... 115
13. Flor da Noite – c. 52 ao c. 57 – Coda (Take 11)....................................................... 116
14. Modinha – c. 1 ao c. 7 (Take 14)............................................................................... 122
15.1. Modinha – c. 8 ao c. 20 (Take 15).......................................................................... 124
15.2. Modinha – (continuação) c. 21 ao c. 23.................................................................. 124
16. Modinha – c. 24 ao c. 31 (Take 16)........................................................................... 126
17.1. Modinha – c. 32 (Take 17)...................................................................................... 127
17.2. Modinha – (continuação) c. 33 ao c. 37.................................................................. 127
18.1. Modinha – Seção A’ c. 38 ao c. 50 (Take 18)......................................................... 128
18.2. (continuação da Seção A’ até c. 53 e Coda - c. 54 ao c. 60)................................... 129
19. Modinha – c. 1 ao c. 7 (Take 20.).............................................................................. 131
20.1. Modinha – c. 8 ao c. 23 (Take 21.)......................................................................... 132
20.2. Modinha – (continuação do c. 8 ao c. 23)............................................................... 133
21. Modinha – Subseção b1 (Take 22.)........................................................................... 133
22. Baião – c. 1 ao c. 10 (Take 24).................................................................................. 137
23. Baião – Subseção a1; início da transição c. 11 ao c. 29 (Take 25)........................... 138
24. Baião – c. 30 ao c. 42 (Take 26)................................................................................ 139
25.1 Baião – c. 81 ao c. 110.1 (Take 27)......................................................................... 140
25.2 Baião – (continuação) c. 81 ao c. 101.1.................................................................. 141
26. Baião – c. 117 ao c. 138 (Take 28)............................................................................ 142
27.1 Baião – c. 153 ao c. 15 (Take 29)............................................................................ 143
27.2 Baião – c. 162. 2 ao c. 169 (continuação)................................................................ 143
28. Baião – c. 169.2 ao c. 182 (Take 30)......................................................................... 144
29. Baião – c. 200 ao c. 212 – Coda (Take 31)............................................................... 145
LISTA DE EXEMPLOS MUSICAIS EM ÁUDIO

TAKE Página

1. (00’ 00’’ a 03’ 36’’) Flor da Noite – Versão integral do LP....................................... 99


2. (00’ 00’’ a 00’ 41’’) Flor da Noite – (correspondente ao ex. musical 4).................... 101
3. (00’ 00’’ a 00’ 22’’) Flor da Noite – (correspondente ao ex. musical 5).................... 102
4. (00’ 00’’ a 00’ 41’’) Flor da Noite – (correspondente ao ex. musical 6).................... 104
5. (00’ 42’’ a 01’ 16’’) Flor da Noite – (correspondente ao ex. musical 7).................... 107
6. (01’ 17’’ a 03’ 35’’) Flor da Noite – (ex. musical 8.1 e 8.2)....................................... 109
7. (01’ 17’’ a 01’ 48’’) Flor da Noite – (correspondente ao ex. musical 9).................... 111
8. (01’ 48’’ a 02’ 06’’) Flor da Noite – (correspondente ao ex. musical 10).................. 112
9. (02’ 03’’ a 02’ 34’’) Flor da Noite – (correspondente ao ex. musical 11).................. 113
10. (02’ 30’’ a 03’ 35’’) Flor da Noite – (correspondente ao ex. musical 12)................ 115
11. (03’ 05’’ a 03’ 35’’) Flor da Noite – (correspondente ao ex. musical 13)................ 116
12. (00’ 00’’ a 04’ 26’’) Flor da Noite – Versão integral do CD de 2006...................... 118
13. (00’ 00’’ a 04’ 14’’) Modinha – Versão integral do LP............................................ 121
14. (00’ 00’’ a 00’ 34’’) Modinha – (correspondente ao ex. musical 14)........................ 122
15. (00’ 08’’ a 01’ 38’’) Modinha – (ex. musical 15.1 e 15.2)........................................ 124
16. (01’ 37’’ a 02’ 09’’) Modinha – (correspondente ao ex. musical 16)........................ 126
17. (02’ 09’’ a 02’ 32’’) Modinha – (ex. musical 17.1 e 17.2)........................................ 127
18. (02’ 32’’ a 04’ 14’’) Modinha – (ex. musical 18.1 e 18.2)........................................ 128
19. (00’ 00’’ a 04’ 30’’) Modinha – Versão integral do CD 2006.................................. 130
20. (00’ 00’’ a 00’ 31’’) Modinha – Duo Chew-Canaud – (ex. musical 19)................... 131
21. (00’ 28’’ a 01’ 42’’) Modinha – Duo Chew-Canaud – (ex. musical 20.1 e 20.2)..... 132
22. (01’ 42’’ a 02’ 17’’) Modinha – Duo Chew-Canaud (ex. musical 21)...................... 133
23. (00’ 00’’ a 03’ 26’’) Baião – Versão integral do LP Gnattali-Gomes Grosso.......... 136
24. (00’ 00’’ a 00’ 12’’) Baião – (correspondente ao ex. musical 22)............................. 137
25. (00’ 12’’ a 00’ 28’’) Baião – (correspondente ao ex. musical 23)............................. 138
26. (00’ 30’’ a 00’ 40’’) Baião – (correspondente ao ex. musical 24)............................. 139
27. (01’ 16’’ a 01’ 46’’) Baião – (ex. musical 25.1 e 25.2)............................................. 140
28. (01’ 52’’ a 02’ 16’’) Baião – (correspondente ao ex. musical 26)............................. 142
29. (02’ 28’’ a 02’ 43’’) Baião – (ex. musical 27.1 e 27.2)............................................. 143
30. (02’ 43’’ a 02’ 55’’) Baião – (correspondente ao ex. musical 28)............................. 144
31. (03’ 12’’ a 03’ 26’’) Baião – (correspondente ao ex. musical 29)............................. 145
32. (00’ 00’’ a 03’ 54’’) Baião – (Versão integral) CD 2006 Duo Chew-Canaud.......... 146
33. (00’ 00’’ a 04’ 18’’) Modinha – (Versão Integral) Vídeo 2012 Chew-Canaud........ 150
34. (00’ 00’’ a 00’ 00’’) Baião – (Versão Integral) Vídeo 2012 Chew-Canaud............. 151
LISTA DE ANEXOS

Página

A - Partitura autógrafa de Flor da Noite............................................................................. 179


B - Partitura autógrafa de Modinha de Modinha &Baião.................................................. 183
C - Partitura autógrafa de Baião de Modinha & Baião...................................................... 187
D - Partitura editada de Flor da Noite................................................................................ 197
E - Obras de Câmara para Duos com piano de Radamés Gnattali...................................... 201
1. Canto e Piano.........................................................................................................201
2. Cavaquinho e Piano...............................................................................................201
3. Contrabaixo e Piano.............................................................................................. 202
4. Fagote e Piano....................................................................................................... 202
5. Flauta e Piano........................................................................................................ 202
6. Harmônica de boca e Piano...................................................................................202
7. Dois Pianos........................................................................................................... 202
8. Saxofone tenor e Piano..........................................................................................203
9. Viola e Piano........................................................................................................ 204
10. Violão e Piano..................................................................................................... 204
11. Violino e Piano.................................................................................................... 205
12. Violoncelo e Piano............................................................................................... 205
F - Depoimentos de amigos e parentes de Radamés Gnattali coletados em 1989.............. 207
1. Aída Gnattali......................................................................................................... 207
2. Antônio Carlos Jobim............................................................................................ 211
3. Arthur Moreira Lima..............................................................................................213
4. Braguinha.............................................................................................................. 215
5. Chiquinho do Acordeão......................................................................................... 217
6. Henrique Cazes.......................................................................................................219
7. Luiz Otávio Braga.................................................................................................. 221
8. Raphael Rabello......................................................................................................223
9. Roberta Gnattali..................................................................................................... 225
10. Roberto Gnattali................................................................................................... 227
G - Ilustrações — Figuras Ilustrativas..................................................................................229
1. Capa do LP selo Festa LDR 5028 - Villa-Lobos / Radamés Gnattali....................229
2. Radamés Gnattali e Iberê Gomes Grosso em recital na década de 1960............... 229
3. Radamés Gnattali e Iberê Gomes Grosso em recital na década de 1970.............. 230
4. Família Fossati....................................................................................................... 230
5. Olga Fossati com o pai César – prima e tio de Radamés...................................... 230
6. Alessandro, Angelo, Giovanna, Teresa Bighelli (pai, avô, tia e avó de
Radamés Gnattali).................................................................................................... 231
7. Alessandro Gnattali, pai de Radamés Gnattali..................................................... 231
8. Radamés Gnattali (em 1908) – um mês para completar três anos de idade......... 231
9. Radamés Gnattali com nove anos de idade, em 1915, na Sociedade Italiana...... 232
10. Adélia Fossati Gnattali, mãe de Radamés Gnattali............................................. 232
11. Radamés ao cavaquinho no “bloco de carnaval” intitulado Os Exagerados...... 232
12. Radamés Gnattali atuando como violonista........................................................ 233
13. Radamés Gnattali na década de 1920 experimentando o fagote........................ 233
14. Ideal Jazz Band do Café Colombo...................................................................... 233
15. Radamés Gnattali aos 18 anos............................................................................ 234
16. Fachada do Instituto Nacional de Música........................................................... 234
17. Fachada do Cine Odeon em 1922....................................................................... 234
18. Recital de formatura dos alunos do professor Guilherme Fontainha.................. 235
19. Radamés e Vera Maria em 1929......................................................................... 235
20. Casa Beethoven de Porto Alegre, em 1931........................................................ 235
21. Fachada do Cine Odeon...................................................................................... 236
22. Casa de Carlos Wehrs – o proprietário Carlos Wehrs e ao piano Freitinhas...... 236
23. Rosto de Radamés Gnattali – Gravura de Candido Portinari.............................. 236
24. Orquestra de Romeu Silva no Cassino da Urca.................................................. 237
25. Interior da Rádio Mayrink Veiga........................................................................ 237
26. Radamés na Rádio Nacional............................................................................... 237
27. Iberê Gomes Grosso, Radamés Gnattali e Romeo Ghipsman............................. 238
28. Homenagem da Rádio Municipal de Buenos Aires a Radamés Gnattali........... 238
29. Pixinguinha e Radamés....................................................................................... 238
30. Ary Barroso, Radamés, Jorge Cury e Silvio Caldas na Rádio Nacional............. 239
31. LP Ernesto Nazareth – Radamés Gnattali e Orquestra Continental................... 239
32. LP Samba em três andamentos de Radamés Gnattali......................................... 239
33. LP Suíte Popular Brasileira para Violão e Piano.............................................. 240
34. LP Radamés e a Bossa Eterna............................................................................ 240
35. Sexteto Continental – depois Sexteto Radamés.................................................. 240
36. LP 3ª Caravana – Radamés na Europa.............................................................. 241
37. LP Retratos.......................................................................................................... 241

H - CD que acompanha a tese contendo os seguintes itens: (a) fonogramas do LP


Festa, com as peças Flor da Noite e Modinha & Baião interpretadas integralmente
por Radamés Gnattali e Iberê Gomes Grosso (objeto da revisão fonográfica deste
trabalho); (b) takes com os recortes indicados na análise (referentes ao Capítulo III
desta tese e apresentados na ordem exata de citação no corpo do trabalho); (c)
interpretações das mesmas obras pelo Duo Chew-Canaud (2006); (d) takes com os
recortes; (e) vídeo do concerto ao vivo do Duo Chew-Canaud tocando Modinha &
Baião na versão de 2012.................................................................................................. 243
1

PREFÁCIO

A ideia desta tese surgiu alguns meses após minha gravação, em Duo com David
1
Chew , da obra completa para violoncelo e piano de Radamés Gnattali, realizada no estúdio
sinfônico da Rádio MEC entre o primeiro e o segundo semestre de 2005.
O Duo Chew-Canaud estreou em 2003 em recital com obras de Villa-Lobos e
Radamés Gnattali, tocando na prova de Mestrado de David Chew na Universidade de Hull em
Leeds. Em 2004, gravou o Concerto para piano, violoncelo e orquestra de Radamés Gnattali
para o CD intitulado Retratos do Brasil do selo Rádio MEC. Em 27 de janeiro de 2006, dia do
centenário do compositor Radamés Gnattali, lançou o CD intitulado 100 anos de Radamés
Gnattali — Obra Integral para Violoncelo e Piano, do selo Rádio MEC, em parceria com o
Instituto Moreira Salles.
Na época das gravações desse CD, eu particularmente não tinha conhecimento da
existência do LP intitulado Villa-Lobos / Radamés Gnattali [1958-1964], no qual o próprio
Radamés, ao piano, em Duo com o violoncelista Iberê Gomes Grosso, toca as obras de sua
autoria Sonata nº 1, Flor da Noite e Modinha & Baião; e a Sonata nº 2 de Villa-Lobos —
todas para violoncelo e piano.
Ao ouvir esse disco, face à diferença de concepção interpretativa percebida, sobretudo,
nas obras Flor da Noite e Modinha & Baião, deparei-me com um dilema: deveríamos, eu e
David Chew, manter ou modificar a nossa versão que já estava concluída, com as edições
prontas e em fase de masterização? Por questões práticas que envolviam o cronograma e os
custos do projeto, decidimos manter a versão inicialmente concebida por nós, afinal o CD era

1
David Chew, violoncelista inglês radicado no Brasil desde 1981, estudou com William e Tony Pleeth na
Guildhall School of Music, em Londres, especializando-se posteriormente em música brasileira na Universidade
de Hull (Inglaterra). Foi spalla da Orquestra Jovem Nacional da Grã-Bretanha, onde trabalhou com Pierre
Boulez, também integrando a Orquestra da BBC e o London Mozart Players por seis anos. Desde a sua vinda
para o Brasil, tem sido um dos mais atuantes violoncelistas do país, atuando como solista, camerista e professor,
regularmente convidado para realizar recitais e lecionar no exterior. Integra a Orquestra Sinfônica Brasileira, da
qual é spalla desde 1981, assim como o Quarteto de Cordas da UFF. Foi um dos fundadores das orquestras de
cordas: Brasil Consorte e Rio Cello Ensemble. Fez várias gravações com Duo Folia, Duo Chew-Canaud, Trio
Peranzzetta-Senise-Chew e com a Orquestra de Cordas Rio Strings. Desde 1995 é diretor artístico do Rio
International Cello Encounter (RICE) do Rio de Janeiro, um dos mais importantes festivais mundiais dedicados
ao violoncelo. David é diretor do Mestrado em Instrumentos de Cordas do Conservatório Brasileiro de Música
(lato sensu). Em 2009, recebeu a honraria de Cavaleiro da Ordem do Império Britânico (O. B. E.), outorgado
pela Rainha Elizabeth, por sua valiosa contribuição ao intercâmbio cultural anglo-brasileiro. Em 2012 recebeu o
título de Doutor Honoris Causa em Música pela Universidade de Hull.
2

para ser lançado na efeméride dos cem anos de nascimento do compositor Radamés Gnattali.
Nosso dilema, ao menos aparentemente, estava resolvido, pois prosseguimos com o projeto e,
consequentemente, com o lançamento do CD, que foi prestigiado pela crítica especializada e
recorrentemente tocado nas rádios MEC e Cultura.
Entretanto, no ano de 2009, ao ingressar no curso de Doutorado em Música da
UNIRIO já com um projeto vinculado à obra de câmara de Radamés Gnattali e na condição
de pesquisadora na área de Práticas Interpretativas, comecei a desenvolver a ideia de utilizar a
escuta daquele LP do Duo Radamés Gnattali e Iberê Gomes Grosso como ferramenta para
auxiliar na interpretação da obra de câmara do autor.
O mote determinante da direção desta pesquisa foi a existência de algo que me
intrigava em relação à interpretação do próprio autor com Iberê no que diz respeito ao que não
está indicado na partitura autógrafa. Sentia que havia algo de sugestivo naquela interpretação,
que me parecia “auralmente” evidente, por exemplo, no que se refere à liberdade de tempo, de
dinâmica e das articulações, e que, de alguma forma, não se pode claramente perceber apenas
lendo a partitura de câmara do autor.
Genericamente, sendo notáveis as diferenças entre as duas versões no que se refere ao
swing, sobretudo nas peças Flor da Noite e Modinha & Baião, decidi, então, minudenciá-las
(as diferenças) através da análise aural dos fonogramas e utilizar esta tarefa com o seguinte
objetivo: apontar os aspectos mais típicos de sua interpretação pianística revelados na revisão
fonográfica e, consequentemente, comprovar a utilidade da revisão fonográfica como um
importante auxílio aos intérpretes no estudo interpretativo de peças de Radamés.
A ideia da revisão fonográfica amadureceu e após o Exame de Qualificação do curso
de Doutorado, as seguintes perguntas também passaram a nortear o trabalho final: De que
maneira a escuta poderia ser utilizada como uma aliada do refinamento da expressão musical
artística de um intérprete? A revisão fonográfica seria um caminho válido? Quais as
características da interpretação do autor, reveladas através da escuta, que poderiam capacitar
ouvintes e intérpretes para futuras performances da obra de câmara de Radamés Gnattali? E,
finalmente, a revisão fonográfica seria uma proposta válida para o estudo da interpretação de
outros autores-instrumentistas?
Deparamo-nos, então, com a necessidade de realizar uma análise não das
composições, mas sim das interpretações disponíveis nos registros fonográficos. A partir da
escuta da gravação do Duo Gnattali-Gomes Grosso, investigaram-se as características da
execução reveladas na análise minuciosa e aural das interpretações das peças Flor da Noite e
Modinha & Baião de Radamés Gnattali, pelo próprio autor.
3

INTRODUÇÃO

[...] o valor de uma investigação se mede, em tudo e para tudo, por sua aptidão a
servir à ação. A experiência não apenas nos ensinou que é impossível decidir
previamente se as especulações aparentemente as mais desinteressadas não se
revelarão, um dia, espantosamente úteis à prática. Seria infligir à humanidade uma
estranha mutilação recusar-lhe o direito de buscar, fora de qualquer preocupação de
bem-estar, o apaziguamento de suas fomes intelectuais [...] (BLOCH, 2002, p. 44-
45).

a. A escolha das peças e a ideia da revisão fonográfica

As revisões fonográficas das peças Flor da Noite e Modinha & Baião para violoncelo
e piano, compostas por Radamés Gnattali (1906-1988) e gravadas por ele em Duo com o
violoncelista Iberê Gomes Grosso (1905-1983), revelam aspectos característicos de sua
interpretação pianística: virtuosismo e swing.
Os fonogramas dessas duas peças de câmara utilizados nas revisões fonográficas
encontram-se no LP intitulado Villa-Lobos / Radamés Gnattali, lançado pelo selo comercial
Festa (LDR 5028). Esse raro LP [1958-1964], fonte primária desta pesquisa, é o único
registro comercial de Flor da Noite (composta em 1938) e Modinha & Baião (composta em
1952) na interpretação do próprio Radamés Gnattali ao piano, tocando em Duo com Iberê
Gomes Grosso.
Das três composições de Radamés registradas no referido LP (Sonata nº 1, Flor da
Noite e Modinha & Baião) selecionaram-se, para este trabalho, apenas Flor da Noite e
Modinha & Baião por serem as peças do disco nas quais o autor é inspirado diretamente por
temas populares, como se pode a priori constatar pelos títulos que lhes foram dados. As peças
escolhidas colocam em evidência características da execução de Radamés Gnattali que são
destacadas para reflexão neste trabalho, tendo em vista futuras interpretações de sua música
de câmara.
Ao todo, Radamés compôs seis obras para Duo de violoncelo e piano: Sonata nº 1
(1935), Flor da Noite (1938), Modinha & Baião (1952), Brasiliana nº 9 (1960), Sonatina
(1965) e Sonata nº 2 (1973). Compôs ainda duas peças para violoncelo e piano com orquestra
de câmara: o Concerto para violoncelo, piano e orquestra de cordas (1969) e o Concerto
4

para um jovem violoncelista para violoncelo, orquestra de cordas e piano (1969) que
correspondem à obra completa para essa formação.
O pianista concertista Radamés Gnattali enveredou pelos caminhos da composição
erudita e popular deixando uma vasta produção para a posteridade. Um legado de mais de
trezentos títulos somente para a música de concerto — entre sonatas, sonatinas, sinfonias,
brasilianas, suítes, trios, quartetos de corda, duos, sextetos, quintetos de sopro, quartetos com
piano, concertos com orquestra para diversos instrumentos solistas (tais como piano, violão,
violoncelo, saxofone, acordeão, bandolim, guitarra, marimba, harpa e outros). O legado de
Radamés ainda é formado por aproximadamente cento e cinquenta composições populares em
diversos gêneros como choro, dobrado, sambas-canção, quadrilha, rancheira, polca, polca-
choro, valsa, marcha, bolero, mazurca, foxtrote, serenata, baião, moda, maxixe, entre outros.
Além de suas composições, deixou mais de dez mil arranjos musicais escritos para diversos
trabalhos, por exemplo, em gravadoras (RCA Victor, Columbia, Continental, Odeon); em
rádios (Transmissora, Mayrink Veiga, Nacional); e em televisão (TV Excelsior, TV Globo).
Sua produção para o cinema nacional também é significativa. Ressalta- se que somente entre
os anos de 1950 e 1960, Radamés compôs mais de trinta trilhas sonoras para filmes realizados
pelas companhias: Atlântica, Cinédia, Vera Cruz, Columbia Pictures do Brasil, entre outras.
Portanto, ouve-se afirmar que “Radamés Gnattali é um dos músicos mais completos da
história da música brasileira” (DIDIER, 1996, p. 11).
Músicos e maestros brasileiros de diferentes gerações, por exemplo, Tom Jobim,
Raphael Rabello, Arthur Moreira Lima, Luciano Perrone, Henrique Cazes, Joel Nascimento,
Luiz Otávio Braga, Aída Gnattali, entre outros, cujos depoimentos coletados estão no Anexo
F desta tese, compararam Radamés Gnattali a Mozart pelo dom precoce, talento e volume de
sua obra (BRAGA, 2002; CANAUD, 1991; CAZES, 1998).
Radamés, como instrumentista-pianista-camerista, ao longo de sua vida, formou
diversos conjuntos de música de câmara com diferentes artistas tanto da música clássica
quanto da música popular, como o Duo com Bidu Sayão; o Trio com os irmãos Cosme; o
Quarteto Henrique Oswald (no qual atuou como violista); o Sexteto Radamés; o Duo
pianístico com sua irmã Aída Gnattali; o Duo com a Camerata Carioca; o Duo com Raphael
Rabello; entre outros.
O Duo de câmara de Radamés Gnattali e Iberê Gomes Grosso já existia por mais de
duas décadas na ocasião da gravação do LP utilizado nesta pesquisa, fato que pressupõe plena
maturidade artística e afinidade musical interpretativa entre os dois músicos, sobretudo na
execução da obra do próprio autor, Radamés Gnattali.
5

Nesse LP, o Duo também gravou a Sonata nº 2 de Villa-Lobos, além das três
composições de Radamés anteriormente citadas. Iberê, além de muito amigo de Radamés, foi
um renomado músico brasileiro com quem o compositor-pianista trabalhou durante quatro
décadas.2 No livro Iberê Gomes Grosso: Dois séculos de tradição musical na trajetória de um
violoncelista, Valdinha Barbosa (2005) alia informações de episódios musicais que
constituíram a biografia desse músico com o cenário histórico de nosso país no que se refere à
vida musical e aos movimentos estéticos, sociais e políticos da época. O livro também
apresenta extratos de críticas de apresentações de Iberê em que o violoncelista é citado, por
exemplo, como “Casals nacional” e como músico de “arte superior, musicalidade e técnica
transcendente” (BARBOSA, 2005, p. 160, p. 209-210).
Iberê, assim como Radamés, estava habituado a tocar música popular tanto nas
orquestras das rádios como nos arranjos de gravações dos discos de cantores famosos. Não
raramente, Iberê era o primeiro a ser escalado para o naipe de cordas. Ele possuía experiência
e afinidade com a linguagem popular brasileira, porém costumeiramente se referia a esta
prática de forma pejorativa, pois considerava que o músico que não tocasse apenas o
repertório de concerto se “prostituía” para sobreviver vivendo de música no Brasil
(BARBOSA, 2005, p. 107).

b. Estudos e questionamentos

Em relação à utilização da revisão fonográfica, algumas questões surgiram, uma vez


que se percebeu o virtuosismo clássico e o swing3, ou suingue brasileiro, como aspectos da
interpretação pianística do compositor em Duo com Iberê Gomes Grosso que não estão claros
na partitura. Visando-se à prática interpretativa, a principal questão levantada foi: Seria a
revisão fonográfica (análise aural) de gravação realizada pelo próprio compositor, tendo como
apoio suas partituras autógrafas, uma ferramenta aliada para o refinamento da expressão
artística de intérpretes?

2
Radamés Gnattali e Iberê Gomes Grosso estrearam o Duo em “11 de outubro de 1937 no Instituto Nacional de
Música” e fizeram a última apresentação na “Sala Cecília Meireles, em 1982, em concerto ao vivo” (BARBOSA;
DEVOS, 1985, p. 43, p. 79).
3
Tocar “suingado”, com suingue, com balanço, com bossa, com a agógica característica da música brasileira ou
com a métrica derramada, vide item “Definição de termos” na página 28.
6

Outras questões foram elaboradas: Seria a revisão fonográfica de gravação realizada


com a interpretação do próprio compositor item importante para o intérprete se aproximar do
caráter de uma obra com mais clareza e segurança? A gravação de Radamés ou outro
compositor-intérprete pode substituir a própria partitura como referência para um intérprete?
A liberdade de interpretação põe em risco a fidelidade ao texto? As versões gravadas
estabelecem tradições distintas das partituras? O virtuosismo empregado nas obras de Gnattali
pode ser considerado como elemento característico de sua escrita pianística? Qual a
relevância do virtuosismo e do swing na obra de Radamés? Seria ele um modelo de critério
estético para sua interpretação?
Buscou-se, em cada uma das peças, identificar características na performance do
autor-intérprete que proporcionassem o entendimento de sua interpretação. O emprego do
virtuosismo e do swing foi considerado como elemento idiomático da escrita pianística do
compositor. Por meio das análises aurais inerentes, valorizou-se a abordagem crítica e estética
das gravações de Flor da Noite e Modinha & Baião.

c. O que é análise no estudo da música — alguns tipos de análise musical

Análise é entendida como o processo de decomposição em partes dos elementos que


integram um todo com o objetivo de permitir o estudo em separado desses elementos,
possibilitando entender: quais são; sua natureza; suas proporções; suas funções; como se
articulam; e como foram interligados de modo a gerar o todo de que fazem parte
(FERREIRA, 1999, p. 130).
Bent e Pople (2001) assinam o verbete Análise do Grove’s Dictionary (um dos
maiores compêndios existentes sobre música, atualmente na versão online), no qual podem
ser encontradas algumas definições para análise musical. No Capítulo 1 The place of analysis
in the study of music, na definição geral de Análise, Bent e Pople (2001) consideram que esta
é a parte do estudo da música que toma como ponto de partida a música em si, em vez de
fatores externos. Convencionalmente, a análise pode incluir a interpretação de estruturas da
música, aliada ao conhecimento da resolução dos seus elementos constituintes mais simples, e
a investigação das funções relevantes desses elementos. A seguir, faz-se uma tradução livre da
definição de Análise segundo Bent e Pople (2001):
7

Uma definição geral do termo análise, como está implícita na palavra, pode ser:
parte do estudo da música que toma como ponto de partida a música em si. Mais
estritamente, pode-se dizer que análise inclui a interpretação de estruturas músicais
juntamente com a sua resolução dentro dos elementos constituintes e a investigação
das funções pertinentes desses elementos. Nesse processo, a “estrutura” musical
pode ser parte de um trabalho, um trabalho em sua totalidade, um grupo ou um
repertório de obras, de tradição escrita ou oral. A relação entre as estruturas e
elementos propostos pela análise e os pontos de vista: técnico-experimentais,
geradores e documentais sobre música, tem, de tempos em tempos e dependendo do
lugar, restringido diferentemente a análise e despertado debate. Menos controversa é
a distinção prática entre a análise formal e análise estilística que muitas vezes é feita;
desnecessária, na medida em que, por um lado qualquer composição musical, grande
ou pequena, pode ser considerada um “estilo”; e, por outro lado, todos os processos
comparativos que caracterizam a análise estilística são inerentes à atividade analítica
elementar (fundamental) que estrutura os elementos (BENT; POPLE, 2001, tradução
nossa).4

O entendimento do que seja análise musical dado por Bent e Pople (2001) pode ser
ampliado, uma vez que os autores terminam a frase inicial dizendo que a análise musical tem
como ponto de partida a música em si mesma, desvinculando fatores externos. Além disso, o
texto aponta para uma das principais ocorrências presenciadas no campo da análise musical:
sua emancipação e cristalização como campo autônomo do estudo da música. O autor avalia
que, mais estritamente, uma análise inclui a interpretação de estruturas musicais juntamente
com a sua resolução dentro dos elementos constituintes e a investigação das funções
pertinentes desses elementos. E que, nesse processo, a estrutura musical pode ser parte de um
trabalho, um trabalho em sua totalidade, um grupo ou um repertório de obras, de tradição
escrita ou oral. Porém, ele admite que a relação entre as estruturas e elementos propostos
pelas análises e os pontos de vista tanto técnico-experimentais quanto geradores e
documentais sobre música têm, de tempos em tempos e dependendo do lugar, restringido
diferentemente as análises e, por essa razão, despertado querelas. Bent e Pople (2001) ainda
destacam que bem menos controversa é a distinção prática entre a análise formal e análise
estilística e consideram que a análise estilística é desnecessária, na medida em que por um
lado qualquer composição musical, grande ou pequena, pode ser considerada um estilo e, por
outro lado, todos os processos comparativos que caracterizam a análise estilística são
inerentes à atividade analítica elementar que determina as estruturas concernentes aos
4
More formally, analysis may be said to include the interpretation of structures in music, together with their
resolution into relatively simpler constituent elements, and the investigation of the relevant functions of those
elements. In such a process the musical ‘structure’ may stand for part of a work, a work in its entirety, a group or
even a repertory of works, in a written or oral tradition. The relationship between the structures and elements
proposed by analysis, and experiential, generative and documentary perspectives on music, has circumscribed
analysis differently from time to time and from place to place, and has aroused debate. Less controversially, a
practical distinction is often drawn between formal analysis and stylistic analysis; but this is unnecessary insofar
as on the one hand any musical complex, no matter how small or large, may be deemed a “style”; and on the
other hand, all the comparative processes that characterize stylistic analysis are inherent in the basic analytical
activity of resolving structures into elements (BENT; POPLE, 2001).
8

elementos.
Antenor Corrêa, no artigo intitulado O Sentido da Análise Musical, apresenta uma
síntese histórico-crítica a respeito da Análise Musical, “fazendo uma reflexão sobre os rumos
tomados por essa disciplina no século XX”. O autor ainda explica que a análise musical foi
“usada de início como suporte para notas de programa, posteriormente tornou-se ferramenta
de ensino composicional e subsidiária da crítica musical, até consolidar-se enquanto área
autônoma do estudo da música” (CORRÊA, 2006, p. 33).
Segundo o artigo supracitado, o procedimento de análise musical justifica-se por
admitir-se que a explicação do detalhe sobre o conjunto é o que conduz a um melhor
entendimento global, sendo que “é uma espécie de opinião comum o fato de a análise musical
ter se revestido de um teor positivista, funcionando como espécie de comprobatório das
pesquisas realizadas no campo musical” (CORRÊA, 2006, p. 51).
As preocupações com a análise musical, com a estética musical e com a teoria
composicional têm muitos pontos em comum, pois essas matérias ocupam posições ao longo
de um eixo que tem em um extremo o lugar da música em esquemas filosóficos ou subjetivos
e no outro o ensino da técnica na arte da composição. Uma análise pode servir como
ferramenta para o ensino, pois considera-se que a análise musical (composicional) atua
instruindo o intérprete ou o ouvinte, assim como o compositor, mas pode muito bem ser um
processo de descoberta individual.
Pople (1994), no livro Theory, Analysis and Meaning in Music, dá ao termo Análise
musical um sentido geral que abrange um grande número de atividades diversas. Algumas
dessas são mutuamente exclusivas: elas representam pontos de vista fundamentalmente
diferentes da natureza da música, do papel da música na vida humana e do papel do intelecto
humano em relação à música. Estes diferentes pontos de vista tornam o campo de análise de
difícil definição dentro de suas próprias fronteiras. A tarefa de destacar todos os aspectos da
análise musical é o ponto fundamental de contato entre a mente e o som musical, sobretudo a
percepção musical.
Conforme Pople (1994), um relacionamento bem diferente do supracitado existe entre
a análise musical e a história da música. Para o historiador, a análise pode aparecer como uma
ferramenta para a investigação histórica. Ele utilizaria a análise para detectar relações entre
estilos e, portanto, para estabelecer as cadeias de causalidade que operam ao longo da
dimensão de tempo e são ancorados no tempo por informação factual verificável.
9

A maioria das análises musicais baseia-se na partitura e consideram-na como a


apresentação final das ideias musicais. Neste sentido, é de grande interesse para a análise dos
fonogramas feita neste trabalho o conceito de Bent e Pople (2001) sobre procedimentos de
análise. Os autores afirmam a possibilidade de ser aplicados a diferentes estilos de
composição, assim como para diferentes estilos de interpretação. Entretanto, os autores
ressaltam que o ponto em que a composição para e a interpretação começa raramente é claro
ou preciso. Destaca-se o seguinte trecho do quarto parágrafo do capítulo The place of analysis
in the study of music, com tradução nossa:
Então, se é verdade que a forma através da qual sobrevive a Música Medieval,
Renascentista e Barroca seja um registro incompleto, então é ainda mais apropriado
para o analista de material etnomusicológico, de improvisação de jazz ou de música
popular gravada em disco, fita e CD, considerar que a partitura seja apenas um
artefato intermediário, e que, de modo algum, separa o compositor do intérprete, ou
a composição da sua execução. Nesses casos, a partitura fornece uma comunicação
grosseira da apresentação gravada, que terá de ser analisada auralmente, ou com
equipamento eletrônico. Considerações semelhantes aplicam-se à análise da prática
interpretativa na música clássica, embora, nesse caso, a partitura possa ser utilizada
como ponto de referência constante para medir e comparar diferentes interpretações
(BENT; POPLE, 2001, tradução nossa).5

Portanto, considera-se muito significativo que os procedimentos de análise estejam, na


atualidade, ligados à escuta, ou seja, à análise aural, podendo também ser aplicados tanto para
estilos de composição quanto para estilos de desempenho e interpretação. Além disso,
concorda-se que não é claro o ponto no qual acaba a composição e começa a interpretação
quando se tratam de improvisações, como no caso das diferentes performances da música
popular e das improvisações do Jazz; de material etnomusicológico, sobretudo aquelas
encontrados em gravações realizadas ao vivo. Muitas dessas músicas terão que ser analisadas
auralmente.
Considerações semelhantes foram aplicadas à análise da performance da música
clássica dos fonogramas desta pesquisa com a interpretação do próprio compositor, embora
nestes casos tenha sido possível utilizar a partitura como um constante ponto de referência.
Cabe ressaltar que por não terem sido localizados modelos ou padrões de análise musical
(aural) que satisfizessem às reivindicações desta pesquisa (destacar características estéticas da
performance do autor correlacionando-a com sua partitura autógrafa) procurou-se, então, criar

5
If it is true that the notated form in which a medieval, Renaissance or Baroque work survives is an incomplete
record, it is even more to the point that for the analyst of ethnomusicological material, jazz improvisation or
popular music recorded on tape, vinyl or CD, a score is only an intermediary artefact which in no way marks off
‘composer’ from ‘performer’. It provides a coarse communication of a recorded performance, much of which
will have to be analysed by ear or with electronic measuring equipment. Similar considerations apply to the
analysis of performing practice in Western music, though here the written score may be used as a constant point
of reference in measuring and comparing different realizations of it in performance (BENT; POPLE, 2001).
10

um modelo de análise aural particularizado baseado em critérios e regras de interpretação já


existentes desde o século XIX (LUSSY, 1884). Neste sentido, tomou-se como base para a
presente tese o guia de interpretação de Artur Schnabel (WOLFF, 1972).

d. A inexistência de padrão para análise aural — revisão fonográfica

No início do século XX, pesquisas e métodos foram publicados por estudiosos que,
imbuídos de pensamento científico, decodificaram a técnica moderna do piano. A maioria
desses trabalhos teve em comum uma abordagem que procurou compreender racionalmente
os movimentos pianísticos, visando seu domínio. Pesquisadores como Karl Leimer (LEIMER;
GIESEKING, 1951) 6, Rudolf Breithaupt (1922), Attilio Brugnoli (1936), Alfredo Casella
(1942), Blanche Selva (1924), Otto Rudolf Ortmann (1925), George Kochevitsky (1967) e
Gyorgy Sandor (1981) desenvolveram princípios de compreensão e sistematização da técnica
pianística, possibilitando a pianistas, professores e alunos com acesso a tais conhecimentos
um desenvolvimento técnico pianístico pleno.
Paralelamente ao desenvolvimento da técnica proporcionado pelas descobertas no
campo fisiológico-anatômico, outros conhecimentos na área da teoria musical foram
publicados em larga escala, sobretudo no século XX. Neste aspecto, destacam-se o campo da
análise musical (fraseológica e harmônica) e os conhecimentos concernentes aos aspectos
teóricos da interpretação pianística (rítmica, dinâmica, pedal). Entretanto, ressalta-se que boa
parte dos pianistas que lucrava com os ensinamentos racionais da técnica pianística
encontrava-se na situação de “atleta do piano”, ou seja, sua compreensão musical mostrava-se
muito defasada em relação às suas habilidades físico-motoras e careciam de percepção
estética auditiva apurada. Atualmente, devido aos recursos tecnológicos e, especialmente, às
gravações disponibilizadas, por exemplo, via internet, muitos estudantes instrumentistas com
esse tipo de dificuldade (compreensão musical defasada) têm utilizado essas ferramentas de
estudo como forma de sanar defasagens como as supracitadas. Com o advento da internet,
disponibilizando gravações antológicas que podem ser apreciadas em aparelhos como Ipod e
MP4 Player, entre outros, é possível ouvir a mesma obra em diversas versões executadas por
diferentes artistas considerados modelos irrepreensíveis em suas interpretações.

6
9ª. Edição publicada em 1951 traduzida do alemão para o espanhol por Roberto J. Carman. Original publicado
em 1938.
11

A partir dessas diversas possibilidades de audição de gravações, pode-se supor que


existam diferentes modalidades de revisão fonográfica. Exemplificando este ponto, um
interessante trabalho que foi viabilizado graças às novas tecnologias é o estudo de Daniel
Leech-Wilkinson intitulado The Changing Sound of Music: Approaches to Studying Recorded
Musical Performance — disponível online7. Nesse estudo, Leech-Wilkinson (2009) apresenta
revisões fonográficas de gravações antigas feitas em LPs de 78 RPM (1925-1932) como meio
de estudar performances de diversos instrumentistas, desde suas primeiras gravações, com o
objetivo de evidenciar as mudanças de estilo de interpretação ao longo de décadas. O estudo
de Leech-Wilkinson se organiza em torno de escritos contemporâneos sobre as práticas de
desempenho e significado musical de épocas distintas.

e. Centre for the History and Analyses of Recorded Music — CHARM

O Centre for the History and Analyses of Recorded Music tornou-se um site em 2005 e
é também conhecido como CHARM. Esse Centro trabalha com análises aurais visando
comparar interpretações, por exemplo, de escolas pianísticas distintas destacando a evolução
de seus conceitos interpretativos ao longo de décadas. A análise é realizada a partir de
comparações de execuções de algumas peças básicas do repertório erudito tocadas por
renomados artistas.
O CHARM, por ser um centro para estudos da história e da análise da música gravada,
possui farta discografia que inclui grande parte da produção 78 RPM da gravadora
Gramophone, além de séries de LPs de diversas empresas dos Estados Unidos, Reino Unido e
Europa, como Columbia e Decca, bem como gravações obtidas na Enciclopédia do mundo da
música gravada (WERM). O objetivo da discografia do CHARM é tornar mais fácil pesquisar
“o que foi gravado”, “por quem” e “quando” até a década de 1950. Outro objetivo é o de
auxiliar futuros projetos capazes de contribuir com pesquisas em conjunto com o CHARM
acrescentando novos dados aos já existentes. O CHARM entende que a abordagem tradicional
musicológica é considerar a música como um texto escrito, ou seja, como uma partitura
reproduzida na hora do desempenho ou execução. Porém, sabe-se que muitas músicas não
existem sob a forma de partituras, mas sim unicamente na forma de gravações. Mesmo

7
LEECH-WILKINSON, Daniel. The Changing Sound of Music: Approaches to Studying Recorded Musical
Performance. In: Centre for the History and Analysis of Recorded Music (CHARM). London, 2009. Disponível
em: <http://www.charm.kcl.ac.uk/studies/chapters/intro.html>. Acesso em: 25 out. 2012.
12

quando a música se faz existir como texto escrito, considera-se que os artistas têm um papel
essencial na criação dessa música através da experiência de executá-la, que, para a maioria
das pessoas, aí é que existe verdadeiramente a música. CHARM foi criado para promover
uma musicologia que melhor reflita a natureza da música como experiência, tanto no século
XX como na atualidade.
O CHARM considera que as gravações são provas essenciais para uma musicologia
em sintonia com a performance e procura remover os obstáculos substanciais existentes para a
investigação acadêmica.
A discografia e o acervo discográfico do Centre for the History and Analyses of
Recorded Music têm como um dos objetivos contribuir com sua infraestrutura tanto para
disponibilizar fonogramas como também fornecer apoio para o estudo de gravações,
colaborando para o desenvolvimento de métodos e técnicas de investigação de análise.
Um dos grandes projetos encabeçados pelo CHARM é o estudo de interpretações
(performances) das gravações feitas entre 1925 e 1932. Outros projetos também
desenvolvidos pelo centro são o estudo do gesto expressivo e estilo em Schubert — utilizando
análise espectrográfica com métodos de medição por computador — e a análise do
desempenho, estilo e significado das Mazurkas de Chopin. Essa pesquisa investiga a
caracterização, o desenvolvimento histórico e os recursos estilísticos interpretativos herdados
e evidenciados nas gravações, tentando situar as mudanças ou padrões de repetição levando
em consideração o contexto cultural.
Embora o foco global do CHARM seja a pesquisa musicológica, as investigações
baseiam-se também em formações disciplinares distintas, tais como a Teoria Musical,
História, Psicologia e Ciência da Computação.

f. Metodologia do estudo — a revisão fonográfica: análise aural

Nesta tese, o cerne da pesquisa é a análise interpretativa das gravações das peças Flor
da Noite e Modinha & Baião, encontradas no LP intitulado Radamés Gnattali / Villa-Lobos
[1958-1964], destacando-se nesta análise a performance do Duo Gnattali-Gomes Grosso no
que se refere aos andamentos, à dinâmica, às alterações agógicas, aos rubatos e às articulações
(melódica, harmônica, rítmica e métrica).
13

Uma vez que não se encontrou na bibliografia consultada nenhum padrão para a
análise aural passível de ser aplicado no presente trabalho, optou-se pelo levantamento dos
aspectos musicais interpretativos inerentes à execução dos Duos, tomando-se como base o
guia de interpretação de Artur Schnabel8 referente aos tempos, aos andamentos, à dinâmica, à
agógica e, sobretudo, às articulações — melódica, harmônica, métrica e rítmica (WOLFF,
1972). Estes pontos foram utilizados para nortear a análise da performance nos fonogramas.
Outras razões foram consideradas para se tomar como base o guia de Schnabel: sua formação
clássica; sua “escola Leschètizquiana”9, a mesma de Michael Von Zadora (1882-1846),
professor de Guilherme Fontainha (1887-1970) que por sua vez foi professor de Radamés
Gnattali; e o fato de Schnabel ter sido, além de teórico, um especialista nos clássicos com
base prática e interpretativa metodizada.
A revisão fonográfica do trabalho utiliza como referência aspectos musicais e
interpretativos inerentes à execução e interpretação do próprio autor, face à sua partitura
autógrafa. A análise aural é utilizada com objetivo de contribuir para futuras performances da
música de câmara de Radamés Gnattali.
A análise aural se baseia na pesquisa Ex Post Facto, que de acordo com Gil (2008) se
caracteriza quando o experimento se realiza depois dos fatos. Este tipo de pesquisa é
experimental, mas se difere da experimental convencional propriamente dita pelo fato de o
fenômeno ocorrer naturalmente sem que o investigador tenha controle sobre ele, ou seja, neste
caso, o pesquisador passa a ser um mero observador do acontecimento (BOENTE; BRAGA,
2004). Por exemplo: a leitura de uma partitura e a sua execução na forma de música tende a
ganhar uma nova interpretação após a análise aural (Facto), visto que determinados elementos
não são apresentados na escrita, mas sim na performance do autor-intérprete, de acordo com a
nossa hipótese.
Para que tal fato seja desempenhado, o potencial interpretativo, exclusivo da execução,
dependerá do Conhecimento Tácito do intérprete. Esse tipo de conhecimento, para Nonaka e
Takeuchi (1997), é aquele que o sujeito adquiriu ao longo da vida e que está na mente das
pessoas. A busca por compreender as fontes deste conhecimento tácito de Radamés Gnattali
justifica a realização do perfil biográfico presente neste trabalho onde foram destacadas as

8
Artur Schnabel (1882-1951), austríaco, pianista clássico, compositor e professor. Foi discípulo de Theodor
Leschetizky (1830-1915). Artur Schnabel ficou conhecido por sua seriedade intelectual como músico, evitando a
técnica pura. Especialista dos clássicos (austro-alemães), particularmente, as obras de Beethoven e Schubert.
Suas performances destas composições foram aclamadas como modelos de penetração interpretativa em suas
gravações de Beethoven (SCHONBERG, 1990, p. 346-352).
9
O escritor Harold Schonberg (1990, p. 243; p. 275), refere-se ao magistério de Theodor Leschetizky como
“escola Leschètizquiana”.
14

origens e bases dos estilos que influenciaram nosso objeto de estudo. Geralmente, o
conhecimento tácito é difícil de ser formalizado ou explicado para as demais pessoas, pois ele
é parte do indivíduo e, sendo assim, é subjetivo e inerente às habilidades de uma pessoa, como
o know-how. A palavra tácito vem do latim tacitus que significa não expresso por palavras
(POLANYI, 1966). No caso deste estudo, o Conhecimento Tácito está implícito na análise
aural.
Em contraponto ao Conhecimento Tácito, Nonaka e Takeuchi (1997) caracterizam o
Conhecimento Explícito como aquele que é formal, claro, regrado e fácil de ser comunicado.
Pode ser formalizado em textos, desenhos, diagramas e ser fundamentalmente encontrado nas
partituras, nos manuscritos e nos rascunhos, assim como pode ser guardado em bases de
dados ou publicações. O termo explícito “[...] vem do latim explicitus que significa formal,
explicado, declarado”. Geralmente o Conhecimento Explícito está registrado em artigos,
revistas, livros e documentos (NONAKA; TOYAMA, 2003).
A fusão entre os conhecimentos Tácito e Explícito é uma ação da espiral do
conhecimento e este processo de criação do conhecimento organizacional é concretizado em
etapas, definidas pelos teóricos a partir da sigla SECI: Socialização, Externalização,
Combinação e Internalização; ocorrendo mediante a interação contínua e dinâmica entre o
conhecimento tácito (informal e incorporado em valores e crenças) e o conhecimento
explícito (formal e codificável) (NONAKA; KONNO, 1998; NONAKA; TAKEUCHI, 1997).
Nonaka e Toyama (2003) afirmam que o conhecimento é criado mediante os recursos
internos e externos (ambiente). Portanto, focam-se a visão dos recursos (partituras), mas
também o ambiente, a experimentação do sujeito e o momento em que este se encontra na
produção do conhecimento. As etapas do processo SECI podem ser identificadas como:
Socialização (conhecimento compartilhado), Externalização (conhecimento conceitual),
Combinação (conhecimento sistêmico) e Internalização (conhecimento operacional). A espiral
pode, ainda, iniciar-se em qualquer uma das etapas descritas, por exemplo: CISE, ECIS,
ISEC. A espiral do processo SECI foi utilizada nesta tese com a direcionalidade SICE.
Tomou-se conhecimento do processo SECI por meio do estudo de Mataruna (2011)
que utilizou o processo denominado “Gestão do Conhecimento” para realizar a organização
de um modelo metodológico para auxiliar à performance de esportistas. Considerou-se
analogicamente as semelhanças com a área da performance de músicos pela necessidade de
concentração, preparação, planejamento, execução e reflexão. O modelo apresentado por
Mataruna (2011), baseado nos princípios da espiral do conhecimento de Nonaka e Takeuchi
(1997), foi, então, adaptado nesta tese à realidade das práticas interpretativas. Pondera-se
15

ainda que a aplicação do processo SECI é o que de fato, em muitas ocasiões, um artista
performático (instrumentista, bailarino, ator, etc.) realiza durante seu treino, visando o próprio
aprimoramento técnico, interpretativo e artístico. Portanto, a aplicação do processo SECI tal
como concebido por Nonaka e Takeuchi (1997) pode ser considerado como justificativa à
metodologia, assim como uma contribuição original à carência de metodologia na área de
pesquisa das Práticas Interpretativas. O quadro a seguir tende a facilitar a compreensão do
processo SECI.

Quadro 1. Espiral do Conhecimento no Processo SECI (Adaptado de NONAKA; TAKEUCHI, 1997).


16

g. A fundamentação teórica

Existem algumas fontes para a obtenção de conhecimento relacionado à prática


interpretativa da obra musical de um determinado compositor, tais como a leitura e estudo da
partitura; a análise estética e estrutural da peça; a leitura da biografia; a pesquisa das
influências composicionais; o conhecimento das características da escrita; a audição de
material relacionado à discografia do compositor; o conhecimento das partituras autógrafas;
entre outras.
Nesta pesquisa faz-se a análise interpretativa aural, por meio da revisão fonográfica,
utilizando-se também como referência a partitura autógrafa, face à interpretação do próprio
autor das peças Flor da Noite e Modinha & Baião para violoncelo e piano de Gnattali. Os
estudos foram realizados, propositalmente, com os manuscritos autógrafos do compositor,
pois de acordo com o teórico Nikolaus Harnoncourt (1990) — pesquisador e escritor
especialista em música antiga, violoncelista, e maestro, nascido em Berlim em 1929 — os
manuscritos autógrafos das partituras deveriam ser utilizados, preferencialmente, tanto quanto
possível. Harnoncourt, em seu livro intitulado O Discurso dos Sons: Caminhos para uma
nova compreensão musical, aborda a “importância do que subliminarmente nos informa um
manuscrito autógrafo, sem, no entanto, descartar o valor do texto musical impresso”
(HARNONCOURT, 1990, p. 224).
No terceiro capítulo do referido livro, totalmente dedicado ao assunto, o autor defende
a ideia de que ler uma partitura através dos manuscritos pode revelar um pouco mais da
personalidade de um autor e que pode, ainda, proporcionar ao intérprete “além do conteúdo
puramente informativo, uma irradiação sugestiva, uma magia10 à qual nenhum músico
sensível pode escapar, querendo ou não, tendo ou não consciência disso” (HARNONCOURT,
1990, p. 224, grifo nosso).
Corroborando o pensamento de Harnoncourt (1990), utilizamos as partituras originais,
ou seja, as partituras autógrafas de Flor da Noite e Modinha & Baião tanto para a revisão
fonográfica de cada uma das peças das gravações escolhidas quanto para os exemplos
musicais apresentados. As partituras completas destas peças estão nos Anexos A, B e C.

10
Uma irradiação sugestiva, uma magia – essas palavras usadas por Harnoncourt, na nossa concepção,
significam que a leitura de uma partitura através dos manuscritos de um autor pode revelar um pouco mais da
sua personalidade, não exatamente como uma magia, mas sim pelo percebimento de características tais como:
tipo de caligrafia; tipo de rabiscos e anotações; se o autor apagou ou reescreveu alguma indicação; se ele refez
algum trecho; se teve capricho e pensou não apenas em si, mas em quem pudesse futuramente ler aqueles
manuscritos; entre outras questões que podem ser muito úteis a um estudioso e intérprete.
17

Na tarefa de ouvir criticamente a execução do próprio autor atrelada à leitura de sua


partitura autógrafa, considerando-se o áudio para o estudo analítico das interpretações em seus
aspectos musical, técnico e interpretativo inerentes à execução, percebe-se a presença de
swing e de virtuosismo na interpretação de Gnattali. Essa percepção suscitou a seguinte
questão (já anteriormente apresentada): Seria a revisão fonográfica (análise aural) de gravação
realizada pelo próprio compositor, tendo como apoio suas partituras autógrafas, uma
ferramenta aliada para o refinamento da expressão artística de intérpretes?
Na busca de subsídios e fundamentos teóricos para possíveis respostas, discussões e
objeções, constatou-se que o equilíbrio entre fidelidade ao texto e liberdade de interpretação
tem sido objeto de diversos estudos, demandado questionamentos e suscitado proposições em
trabalhos publicados por autores como Nikolaus Harnoncourt (1990), já citado anteriormente,
Hugo Riemann (1884), Alfred Cortot (1986), Artur Schnabel (WOLFF, 1972), Leonard
Meyer (1961) e Charles Rosen (1993, 2010). A seguir, descreve-se sucintamente a
contribuição do pensamento de cada um dos autores supracitados para o desenvolvimento
deste trabalho.
Riemann (1884), em sua obra Musikalische Dynamik und Agogik, criou o termo
agógica para se referir a variações no tempo rítmico ocorridas no fluxo regular e estável de
um dado trecho musical. Segundo o autor, o termo “agógica” pode ser definido também como
um tipo particular de acento dinâmico, capaz de evidenciar gradação ou efeito expressivo que
envolve a duração dos sons e implica modificações no tempo de um determinado trecho
musical sem, contudo, afastá-lo de seu pulso referencial. Fisicamente, existem três tipos de
acentos que resultam em efeitos enfáticos responsáveis por definir intenções expressivas e
reforçar o caráter de uma peça musical: sons mais fortes ou mais fracos que outros (acento
dinâmico); sons mais agudos ou mais graves, que se aproximam ou se afastam de um som
referencial (acento tonal); sons mais lentos ou rápidos que a expectativa (acento agógico). Em
decorrência deste tipo de acento, pode-se ampliar o potencial expressivo da peça identificando
momentos de ritardando e accelerando, rubato, fermata, dentre outros (RIEMANN, 1884).
As teorias de Riemann (1884) foram muito úteis neste trabalho quanto à conceituação do que
se considerou swing.
Alfred Cortot (1986), em seu livro Curso de Interpretação, abaliza que a partir da
compreensão consciente de uma obra e de todos os aspectos que podem estar relacionados a
ela, o intérprete estaria mais apto a transmitir emoções e sensações ao ouvinte de acordo com
aquelas que o compositor sentiu. O autor considera que o intérprete recria a obra musical. No
18

entanto, faz uma ressalva quanto à fidelidade e às indicações expressivas imprimidas na


partitura pelo compositor, incentivando o intérprete a respeitá-las (CORTOT, 1986).
Esse autor ainda afirma: “o compositor que nos transmite o reflexo de suas impressões
conta com o intérprete para evocar nos ouvintes emoções semelhantes àquelas que ele próprio
sentiu” (CORTOT, 1986, p. 6). Essas considerações foram importantes para esta tese em
relação a Radamés Gnattali como intérprete de sua própria música. Afinal, supõe-se que ele
como compositor-intérprete poderia não somente transmitir o reflexo de suas impressões
como também, mais do que ninguém, evocar nos ouvintes as emoções que ele próprio sentiu
ao compor.
No primeiro capítulo do livro The teaching of Artur Schnabel: a guide to
interpretation, Konrad Wolff (1972) descreve o pensamento de seu professor Artur Schnabel,
que corrobora a ideia supracitada de Alfred Cortot de que o intérprete atua como recriador da
obra em cada interpretação. De acordo com Wolff (1972), Schnabel defendia que a relação
fundamental de um intérprete com a tarefa pianística reside na necessidade iminente e inata de
dar expressão e sentimento para a forma musical no momento que produz o som. O respeito à
partitura é uma condição prévia. Portanto, o artista deve buscar o ideal de fazer música de
forma absolutamente fiel, mas, ao mesmo tempo, deve ser capaz de tomar suas próprias
decisões na hora da execução de forma livre, ativa e culta. Konrad Wolff transcreve o sistema
completo de ensino de seu professor Artur Schnabel, pianista de preeminente reputação e
primeiro a gravar todas as sonatas e todos os concertos para piano e orquestra de Beethoven.
Esse sistema foi muito útil para a formulação dos objetos pontuais da análise dos fonogramas
da tese e serviram de base para alguns critérios adotados.
O estudo analítico aural dos aspectos musicais e interpretativos inerentes à execução e
interpretação de Gnattali referentes aos tempos, aos andamentos, à dinâmica e à agógica foi
elaborado de acordo com o sistema pontual de Schnabel, apresentado por Wolff (1972), e
organizado em capítulos denominados Articulação Melódica, Articulação Harmônica,
Articulação Métrica e Articulação Rítmica.
O termo Articulação é utilizado por Schnabel, segundo Wolff (1972), de maneira
bastante elástica. O autor afirma que na maior parte do tempo de uma execução a articulação é
um elemento muito sutil para ser indicado na partitura de forma precisa, pois refere-se a
detalhes musicais que, de certa forma, estão disponíveis apenas para o artista (tais como
duração, intensidade, tempo, etc.) no momento da performance. Segundo Wolff (1972), os
meios musicais e os aspectos técnicos pianísticos são tratados simultaneamente às
considerações musicais, mas a contribuição maior de Schnabel é conectar o significado
19

musical com a articulação adequada para cada frase.


Ressalta-se que nas análises desta tese não serão abordados aspectos da técnica
pianística nem da estrutura das composições, mas sim considerações sobre a disciplina do
ouvido em relação à compreensão da performance musical e a gestão deste conhecimento
(produto da investigação deste trabalho).
Muitas vezes o pianista observa o tempo de cada nota, as pausas, o ritmo, a dinâmica,
porém essas precisões não são necessariamente as de uma “declamação essencial”11 (WOLFF,
1972, p. 26). Regras de fraseado como as encontradas no livro El Ritmo Musical: su origem,
functión y acentuación de Mathis Lussy (1945) podem governar nuances de dinâmica e ritmo.
Porém, segundo Schnabel citado por Wolff (1972), não há símbolos que tornariam a notação
dessas sutilezas possíveis e, mesmo que houvesse, o compositor arriscar-se-ia a distorcer a
unidade total de sua obra. No capítulo “Revisão Fonográfica” desta tese chamaremos a
atenção para as sutilezas não escritas da interpretação de Radamés (pausas, dinâmica, agógica,
andamentos, articulações).
A abordagem das interpretações quanto ao seu significado e sua comunicação baseou-
se no pensamento de Leonard Meyer (1961) que em seu livro Emotions and Meaning
desenvolve uma teoria de comunicação emocional para explicar a existência de significado
em música. Na obra, o autor descarta a possibilidade de significados extramusicais quanto à
sua comunicação e quanto ao seu contexto cultural, ressaltando a importância de estímulos
referenciais e não referenciais que podem ser encontrados tanto na partitura quanto na
experiência da escuta no âmbito da comunicação, emoção e afeto.
Como contribuição ao pensamento de Meyer (1961), achou-se em Rosen (2010) em
seu livro Music and Sentiment um caminho diferente do adotado por aquele autor. Em sua
obra, Rosen examina de que maneira a musicalidade, em sua totalidade, contribui para as
respostas que temos aos estímulos musicais e também como a experiência estilística tem sido
usada para transmitir sentimentos.
Tratando-se de revisão fonográfica, encontramos interessante artigo intitulado O
Impacto das novas tecnologias sobre o estudo do piano, do pianista e professor da
Universidade de São Paulo Eduardo Monteiro, publicado em 2009, em que aborda a
importância da utilização da escuta de gravações antigas, por exemplo aquelas realizadas
entre 1954 e 1960 de master classes com Alfred Cortot na École Normale de Paris
(recentemente distribuídas no mercado pela Sony Classical - S3K89698, 2005), como
11
Considera-se que a expressão “declamação essencial” foi utilizada pelo autor para designar uma performance
eficaz e convincente.
20

ferramenta auxiliar aos intérpretes e alunos de piano. No artigo, Monteiro (2009) ressalta
tanto a importância histórica desse lançamento quanto a possibilidade de atualmente ouvirmos
variadas versões da mesma peça musical na Internet e conclui: “O refinamento de escuta que
é produzido ao se comparar diferentes interpretações de uma mesma obra operará na crítica de
sua própria execução” (MONTEIRO, 2009, p. 111).
Como colaboração interpretativa relacionada à utilização da revisão fonográfica,
foram analisadas auralmente, igualmente com base no guia de Schnabel (WOLFF, 1972),
duas versões distintas da peça Modinha & Baião tocadas pelo Duo Chew-Canaud. Conforme
o método de pesquisa Ex Post Facto, a primeira versão é da fase anterior à pesquisa,
encontrada no CD Obra Completa para violoncelo e piano de Radamés Gnattali de 2006
(vide Anexo H); e a segunda versão é da fase pós-pesquisa e foi realizada no concerto
gravado ao vivo em 13 de julho de 2012 (vide Anexo H).

h. Interesse na obra de Radamés Gnattali: revisão simplificada da literatura

A partir de década de 1980, alguns intérpretes e pesquisadores de música


demonstraram grande interesse pela biografia e pela obra de Radamés Gnattali, que ainda não
estava organizada, catalogada e a maioria das partituras estava em manuscrito a lápis.
Em 1988 iniciei o curso de Mestrado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ) sobre a obra para piano de Gnattali. O interesse em me especializar na interpretação
da obra de Radamés Gnattali já existia desde alguns anos antes do seu falecimento, ocorrido
em fevereiro de 1988, coincidentemente mês e ano da minha entrada no curso de Mestrado
em Música da UFRJ. Quando jovem, tive a oportunidade de tocar para ele e, tendo sido
elogiada e incentivada a tocar outras de suas composições para piano solo, assim o fiz. O
curso de Mestrado iniciado em 1988 foi concluído em 1991 com o trabalho intitulado A
Interpretação da Obra Erudita para Piano de Radamés Gnattali através do Conhecimento da
Música Popular Urbana Brasileira, sob a orientação da Profa. Dra. Miriam Dauelsberg. Esse
Mestrado proporcionou notoriedade à obra para piano do mestre nos meios acadêmicos e a
mim como intérprete da obra para piano de Radamés Gnattali. Pode-se afirmar que no meio
acadêmico houve uma contribuição inconcussa: a obra para piano do mestre, a partir do início
da minha pesquisa, passou a ser aceita e incluída no repertório do programa do curso de
Bacharelado em Piano da Escola de Música da UFRJ. Até então não era permitido tocá-las
nos recitais oficiais por serem, equivocadamente, associadas à produção popular de Gnattali.
21

A primeira publicação contendo um perfil biográfico e um catálogo de obra do autor,


com uma lista substancial de arranjos de música popular feitos para programas da Rádio
Nacional, além de títulos da música erudita e da música popular, é o livro intitulado Radamés
Gnattali: O Eterno Experimentador de Valdinha Barbosa e Anne Marie Devos que foi
lançado em 1985 na condição de vencedor do concurso de monografias da FUNARTE —
Instituto Nacional de Música Divisão de Música Popular12, realizado em 1984. O livro tem o
mérito de conter informações da família de Radamés, desde antes de seu nascimento, sua
infância e ascensão profissional, além de ter sido a primeira tentativa de catalogação da
extensa obra do autor (BARBOSA; DEVOS, 1985).
Em 1995, o violonista Bartolomeu Wiese, pesquisador da obra de autores brasileiros,
concluiu seu Mestrado na UFRJ com a dissertação intitulada Radamés Gnattali e sua Obra
para Violão, na qual aborda o repertório específico do autor para esse instrumento e suas
características. Seguiram-se outros trabalhos e pesquisas de Mestrado, realizados também
sobre a obra para violão solo de Radamés Gnattali, tais como: a dissertação de Robson
Barreto Matos intitulada Brasiliana nº 13 de Radamés Gnattali: uma abordagem técnica e
interpretativa defendida na Universidade Federal da Bahia em 1999; a de Ubirajara Pires
Armada Junior, intitulada Os 10 Estudos para Violão de Radamés Gnattali: Uma análise,
defendida na Universidade de São Paulo em 2006; a de Rodrigo Carvalho de Oliveira
intitulada Seleção de Estudos para Violão de Villa-Lobos, Mignone e Gnattali: O
Idiomatismo Revisitado, pela Universidade Federal de Goiás em 2006; e a de Ricieri Carlini
Zorzal, intitulada Dez Estudos para Violão de Radamés Gnattali: estilos musicais e propostas
técnico-interpretativas, pela Universidade Federal da Bahia em 2005. Os subtítulos dos
referidos trabalhos apontam seu conteúdo e o cerne das pesquisas sobre a obra para violão de
Gnattali (ARMADA JUNIOR, 2006; MATOS, 1999; OLIVEIRA, 2006; ZORZAL, 2005).
Destacam-se, além dos trabalhos supracitados, a dissertação de Mestrado da flautista
Raíssa Anastásia de Souza Melo intitulada Sonatina para flauta e violão de Radamés
Gnattali: Estudo de aspectos estruturais e interpretativos do primeiro movimento, defendida
na Universidade Federal de Minas Gerais em 2007, na qual a pesquisadora teve como objetivo
o estudo analítico interpretativo do primeiro movimento da Sonatina para flauta e violão. O
estudo concentrou-se na análise estrutural da partitura e de três gravações com concepções

12
Monografia vencedora do concurso sobre a vida e a obra do compositor e maestro Radamés Gnattali,
promovido pela Divisão de Música Popular do Instituto Nacional de Música da Funarte sob a direção de Edino
Krieger e na direção adjunta da Divisão de Música Popular, Hermínio Bello de Carvalho. O concurso teve o
apoio do Conselho Nacional de Direito Autoral e na comissão julgadora estavam João Máximo, Ana Maria
Bahiana e Ary Vasconcelos. Coleção MPB-15.
22

diferenciadas dessa obra tocadas pelos Duos formados por Marcelo Barbosa e Fábio Zanon;
José Ananisa e Edelton Gloelton; e Norton Morozowicz e Eduardo Meirinhos (MELO, 2007).
A dissertação de Mestrado do fagotista Jamil Mamedio Bark, intitulada Radamés
Gnattali Suíte para quinteto de sopros: estudo analítico e interpretativo, defendida na
Universidade de São Paulo em 2007, introduz aspectos musicológicos da forma suíte,
características dos movimentos da forma suíte e considerações sobre a formação instrumental
do quinteto de sopros. O estudo analítico da partitura é feito através das técnicas de análise
musical desenvolvidas por Arnold Schoenberg, Wallace Berry e Joaquin Zamacois. De acordo
com esse estudo, estão indicadas sugestões sobre a execução da obra pelos cinco instrumentos
envolvidos (BARK, 2007).
O guitarrista Márcio Guedes Correa, em sua dissertação defendida na Universidade
Estadual Paulista em 2007 e intitulada Concerto Carioca nº 1 de Radamés Gnattali: a
utilização da Guitarra Elétrica como Solista, analisa a música de concerto de Radamés
enfocando características de sua orquestração a partir de aspectos como: ritmo orquestral,
escolha da instrumentação em alguns casos inédita, construção das melodias e seus
procedimentos harmônicos (CORREA, 2007).
São duas as teses de Doutorado abordando a obra de Radamés Gnattali já defendidas
até o momento: a tese da Profa. Dra. Nadge Naira Alvares Breide, intitulada Valsas de
Radamés Gnattali: um estudo histórico-analítico, defendida na Universidade Federal do Rio
Grande do Sul em 2006; e tese do Prof. Dr. Luciano Chagas Lima intitulada Radamés
Gnattali: The Four Concertos for Solo Guitar and Orchestra, defendida na Université de
Montréal do Canadá em 2007 (BREIDE, 2006; LIMA, 2007).
Em Breide (2006) encontra-se uma análise estilística da obra Valsas para piano (1939)
de Gnattali. A autora objetivou em sua tese evidenciar como as Valsas para piano refletem o
diálogo entre os dialetos americanos e as culturas americanas no Brasil dos anos 1930
ocasionados pelo desenvolvimento dos meios de comunicação e acesso às formas de
entretenimento de massa.
Chagas Lima (2007) realiza o estudo das diferenças estilísticas existentes nos quatro
concertos para violão e orquestra de Radamés Gnattali. Em seu trabalho, explana de que
forma o compositor tratou a desigualdade inerente entre o som do violão solista e os tutti de
orquestra de maneira a permitir que o solista pudesse “competir” eficazmente com a massa
orquestral sem que o papel da orquestra ficasse limitado à função de acompanhamento. Além
disso, o autor faz uma comparação dos manuscritos das obras pesquisadas com as edições
americanas da Brazilliance Music Publishing do violonista brasileiro naturalizado americano
23

Laurindo de Almeida.
Atualmente encontra-se na fase de defesa a tese de Doutorado de Bartolomeo Wiese
Filho na qual o autor apresenta o resultado das pesquisas realizadas sobre o Concertino n° 2
para violão e orquestra, além de um breve histórico da técnica violonística da mão direita.13
Em síntese, pode-se considerar que as dissertações e teses defendidas sobre obras de
Radamés Gnattali, em sua maioria, apresentam estudos analíticos focados nos aspectos
estéticos composicionais formais e estruturais das obras abordadas, além de contribuições a
suas execuções e sua compreensão.
Este trabalho aborda a obra de Radamés Gnattali sob uma perspectiva aural, pois o
enfoque está na análise interpretativa do compositor-intérprete através de revisão fonográfica
visando à performance.
O livro biográfico de Aluisio Didier intitulado Radamés Gnattali foi lançado no
mercado em 1996 e vem acompanhado de um vídeo-documentário. Esse livro é muito útil
pelas informações biográficas contidas, sobretudo no destaque que o autor dá à atuação de
Radamés no cinema como compositor de trilhas de filmes brasileiros. No capítulo intitulado
Radamés de A a Z, o leitor é induzido a refletir sobre a personalidade do compositor que
responde a um questionário, elaborado por Didier, com temas que vão da letra A até a letra Z.
A opinião de Radamés Gnattali sobre amizade, música, religião, trabalho, entre outros temas
dados, é transcrita em linguagem coloquial como se estivéssemos ouvindo sua própria voz.
As partituras, bem como fotos, objetos e documentos de Radamés somente foram
totalmente organizados e catalogados alguns anos depois pela viúva do compositor, Nelly
Gnattali, e pelo sobrinho, o músico Roberto Gnattali. Roberto, além de cuidar da organização
e levantamento das obras, supervisionou a digitalização das partituras com o patrocínio da
Petrobrás e do Ministério da Cultura através da Lei de Incentivo à Cultura, sem o qual o feito
se tornaria inviável. No ano da efeméride de nascimento de Radamés foi, finalmente, lançado
o Catálogo Digital Radamés Gnattali que se tornou imediatamente referência para todos os
pesquisadores interessados (GNATTALI, Roberto, 2006).
O perfil biográfico de Radamés apresentado nesta tese foi elaborado com as
informações obtidas no Catálogo Digital (GNATTALI, Roberto, 2006), no livro de Didier
(1996), no livro de Barbosa e Devos (1985) e nas entrevistas de Radamés ao Museu da
Imagem e do Som (MIS, 1985).

13
Informação dada pelo próprio doutorando Bartolomeo Wiese Filho. (PPGM-UNIRIO, 2012).
24

i. O perfil biográfico de Radamés Gnattali na tese

A apresentação do perfil biográfico apoia o conhecimento de fatos da vida de


Radamés que ajudam a entender como o autor-intérprete adquiriu seu virtuosismo e swing
percebidos na análise aural da revisão fonográfica. Considerou-se necessário, neste perfil, o
recorte temporal de 1886 a 1964 e o recorte geográfico da realidade de Radamés nas
Américas até o Duo Gnattali-Gomes Grosso viajar em tournée europeia.
Os aspectos biográficos de Radamés Gnattali abordados no primeiro capítulo do
trabalho são pertinentes ao período necessário e suficiente para o entendimento que converge
(para o intérprete, ouvinte e revisor fonográfico) em conhecimento que contribui para a
compreensão de significados interpretativos propositalmente encontrados em Gnattali.
Pondera-se que o perfil biográfico é uma questão do músico, não da música e,
portanto, sempre muito útil. Segundo François Nicolas (1997), citado por Freire (2010),14
a autoridade da história nos deixa um estado dado de questões musicais, sendo que
esse estado sofre condicionamentos históricos que não podem ser ignorados. [...] A
obra musical será o topo da pirâmide, não sua base. A história musical de uma obra
será sua genealogia (sua relação com outras obras) e sua arqueologia (sua relação
com o mundo da música, com seu material, com sua linguagem, com seus
instrumentos).

Na sequência do pensamento de Nicolas, Freire (2010) prossegue dizendo que a


resposta à estética musical teria que vir da própria música, mesmo que esta seja devedora de
outros domínios do pensamento. Assim, outras disciplinas funcionariam como coadjuvantes e
não como respostas para os problemas da música. “Não existe uma história musical da
música, pois sempre serão histórias da música dos músicos” (NICOLAS, 1997 apud FREIRE,
2010).
Para Robinson (1997, p. vii-x) os compositores “se comportam como agentes
históricos no sentido normal do termo”, afinal, “eles também transformam intenções em
ações, em obras músicais e também participam dos eventos históricos do seu próprio tempo”.
Robinson, tradutor do livro de Carl Dahlhaus intitulado Foundations of Music History, afirma
no prefácio assinado por ele:
Obras de música, ou pelo menos grandes obras da música, não estão
irremediavelmente atreladas ao passado como os eventos históricos estão, mas têm
um pós-vida prolongada durante a qual elas mudam de caráter, adquirem e
descartam significado e influenciam o futuro progresso da arte (ROBINSON, 1997,
p. viii-x).

14
O artigo de François Nicolas intitulado De différents régimes d'historicité en matière de musique foi traduzido,
comentado e objeto de trabalho realizado pelo doutorando João Miguel Bellard Freire para os Seminários
Avançados em Música I, ministrado pela Profa. Dra. Carole Gubernikoff no PPGM-UNIRIO, 2010/1º período.
25

Sendo assim, considera-se que a resposta musical vem ou terá de vir da própria
música. Enquanto um historiador busca ligações com o contexto social e aquilo que é comum
a uma sociedade, o músico busca o que distingue uma peça e aquilo que há de original e único
nela. Isso também se aplica às características percebidas na interpretação musical de uma obra
executada. O pensamento musical advém da própria obra ou da audição de uma interpretação.
Segundo Dahlhaus, “o critério utilizado para avaliar uma interpretação era se, tendo
coincidido com evidências que sobreviveram às intenções do compositor, ela conseguiu um
equilíbrio satisfatório entre a complexidade e a coerência”.15 Segundo o autor, “existia pouco
sentido em se refletir sobre as condições históricas por trás das várias interpretações dadas a
uma obra de arte”. E, nessa linha de pensamento, Dahlhaus ainda escreveu: “o contexto da
descoberta abre caminho apenas para o contexto de validação estética” (DAHLHAUS, 1997,
p. 150, tradução nossa).
Segundo Dart (2002, p. 214) “a música é, ao mesmo tempo, uma arte e uma ciência.
Como toda arte e toda ciência, não tem outro inimigo a não ser a ignorância”. É a medida de
sua singularidade e de sua diferença, em comparação com outras obras, que constituem seu
referente, temporal ou atemporal. Em suas palavras o autor ressalta:
A interpretação deve ser idiomática e ter estilo, não importa que sonoridade
empregue. Cada instrumento e cada versão da obra vai exibir uma faceta diferente
da música para o ouvinte e o executante deve ter o cuidado de iluminar essas facetas
(DART, 2002, p. 212).

A situação de uma obra designa não somente um contexto musical, mas também
aquilo que dela emana por sua intenção. Uma obra ou execução musical se apodera da
partitura, da linguagem musical, dos instrumentos, para dar-lhe a cada interpretação uma
releitura aprofundada.
Pierre Bourdieu (1996), ao propor uma análise sociológica sobre a produção literária,
utilizou o conceito de campo literário. Segundo o autor, o uso desse conceito enfrenta
resistência no âmbito das Ciências Sociais, mas é uma forma de se escapar à alternativa da
interpretação interna e da explicação externa, presentes nas ciências das obras culturais.
Segundo Bourdieu, o fato de o campo artístico rejeitar uma análise sociológica recorrendo à
autonomia da arte em relação aos campos sociais e à “teoria do reflexo” — arte como espelho
da sociedade (citada pelo autor) — reduzem as possibilidades de compreensão e abrangência
do campo. O autor afirma que, paradoxalmente, pode-se compreender de uma forma mais

15
The criterion used for judging an interpretation was whether, having coincided with surviving evidence on the
composer's intentions, it struck a satisfactory balance between complexity and coherence (DAHLHAUS, 1997,
p. 150, tradução nossa).
26

verdadeira um campo específico quando se faz uso de elementos pertencentes a outros


universos.
As explicações feitas servem pra distinguir que os aspectos do perfil biográfico
elaborados neste trabalho objetivam tão somente apoiar a proposição feita a partir da análise
aural das interpretações — virtuosismo e swing revelados na Revisão fonográfica de Flor da
Noite e Modinha & Baião — fornecendo informações que corroboram apenas a compreensão
da aquisição destas características na performance pianística de Radamés Gnattali.
Considera-se que para o analista aural, embora ele tenha tanto como referência
primária quanto como foco a obra musical em si, torna-se também atraente conhecer aspectos
da vida do compositor em questão e tudo o que a ele se relaciona.

j. A contribuição do trabalho

Devido ao fato de Radamés Gnattali ter atuado, ininterruptamente, por mais de seis
décadas em diversas áreas do mercado musical, pode-se perceber que existe ainda muito
material pertinente à sua produção que pode ser explorado em pesquisas acadêmicas.
Pretende-se que esta tese contribua para ampliar o campo de utilização da revisão
fonográfica como ferramenta de estudo para se perceber características da performance não
somente de outras obras gravadas por Radamés Gnattali, como de obras de outros
compositores intérpretes, relacionando-se a escuta das interpretações com as partituras
autógrafas.
Este trabalho tem a perspectiva da abordagem aural interpretativa de Radamés
Gnattali, na qual a revisão fonográfica é utilizada visando contribuir para futuras
performances de pianistas e outros instrumentistas.
Em adição, apresenta-se no Anexo E a lista dos quarenta e cinco Duos com piano
compostas por Radamés Gnattali.
Pretende-se que metodologia adotada nesta tese possa colaborar como justificativa às
pesquisas no campo da performance propriamente dita.
27

k. Organização do trabalho

O texto final produzido a partir desta tese apresenta no Prefácio a relação da autora
com o problema que originou toda a pesquisa.
Na Introdução é explicada, primeiramente, a razão da escolha das peças; em seguida é
apresentada a hipótese que norteou a pesquisa, assim como outros questionamentos gerados.
Apresenta-se o levantamento dos padrões existentes de análise de obras, assim como outras
fontes de análise aural. Verificou-se que todos os tipos de análise encontrados têm seus
modelos diferentes dos apresentados nesta ocasião, verificando-se, ainda, que as análises são
fundamentadas em outros autores. Sendo assim, mostra-se que não foram encontrados
modelos de análise aural com igual abordagem à desta tese. Desta forma, conseguintemente, é
explicada a metodologia adotada e a escolha dos teóricos que nortearam o desenvolvimento
da pesquisa.
Ainda na Introdução apresentam-se, sucintamente, a revisão da literatura colhida, que
é composta por trabalhos de diversos mestres e doutores de universidades brasileiras e do
exterior em que os autores abordam o nome e a obra de Radamés Gnattali. Feito isso,
certifica-se por outro flanco a originalidade desta tese.
Em seguida, explicam-se os critérios adotados no perfil biográfico, bem como as
contribuições esperadas no campo das práticas interpretativas.
No primeiro capítulo, apresenta-se o perfil biográfico de Gnattali com o recorte
temporal de 1886 a 1964 e o recorte geográfico da realidade de Radamés nas Américas até o
Duo Gnattali-Gomes Grosso viajar em tournée europeia. Este item tem o objetivo de
possibilitar a geração, tanto para o intérprete quanto para o ouvinte ou revisor fonográfico, de
conhecimento que corrobore para a compreensão de significados interpretativos encontrados
na escuta das obras e/ou das interpretações de Gnattali.
No segundo capítulo apresenta-se o pensamento e o guia de interpretação de Artur
Schnabel que serviu de base para nortear os critérios adotados na análise dos fonogramas
(WOLFF, 1972).
No terceiro capítulo encontram-se os recortes dos fonogramas da gravação de Flor da
Noite e Modinha & Baião na versão do próprio autor em Duo com Iberê Gomes Grosso
(1958-1964), com as devidas apresentações das comparações minudenciadas da escuta com as
partituras autógrafas (revisão fonográfica); alguns comentários analíticos provenientes da
escuta feitos pelo violoncelista David Chew e pela autora desta tese.
28

No mesmo capítulo, apresentam-se, tanto de Flor da Noite quanto de Modinha &


Baião, as versões do Duo Chew-Canaud (2006) com alguns comentários realizados a partir da
comparação da escuta com o texto autógrafo, também de acordo com o pensamento
interpretativo de Schnabel (WOLFF, 1972). Finalizando-se este capítulo, apresenta-se a
performance ao vivo do Duo Chew-Canaud (2012) após a aplicação do método Ex Post
Facto.
No quarto capítulo apresentam-se as avaliações, interpretações e discussões dos
resultados da análise aural.
Por fim, o capítulo cinco refere-se às conclusões e recomendações, seguidas das
Referências.
Seguem-se os Anexos de A a H. Os anexos impressos contêm as partituras autógrafas
de (A) Flor da Noite – (B) Modinha – (C) Baião; (D) a partitura editada de Flor da Noite; e
(E) a relação dos Duos de Câmara com piano compostas por Radamés Gnattali; (F)
depoimentos de amigos e parentes de Radamés Gnattali; (G) Ilustrações; e, finalmente, (H)
CD que acompanha esta tese contendo os seguintes itens: (a) fonogramas do LP Festa, com as
peças Flor da Noite e Modinha & Baião interpretadas integralmente por Radamés Gnattali e
Iberê Gomes Grosso; (b) takes com os recortes indicados na análise (referentes ao Capítulo 3
desta tese e apresentados na ordem exata de citação no corpo do trabalho); (c) interpretações
das mesmas obras pelo Duo Chew-Canaud (2006); (d) takes com os recortes; (e) vídeo do
concerto ao vivo do Duo Chew-Canaud tocando Modinha & Baião na versão de 2012.

l. Definição de termos

Para melhor compreensão deste estudo, faz-se necessária a definição prévia dos termos
Swing e Virtuosismo que são significativos nesta tese por traduzirem dois diferentes
elementos de destaque da interpretação de Radamés Gnattali em Duo com Iberê Gomes
Grosso, resumo dos aspectos característicos da performance após a análise aural.
Incluem-se também considerações sobre o que é um Pregão, bem como definições dos
gêneros musicais Modinha e Baião.
29

• Swing

Uma avaliação do swing deve considerar o seu mérito musical (estilo swing) e o seu
espírito (maneira de tocar), atentando-se para dois aspectos. O primeiro considera o estilo
swing como característica de músicos talentosos, oriundos das orquestras da “Era do Swing”
(1935-1946) que depois desenvolveram estilos próprios inaugurando novas correntes no jazz.
O segundo aspecto é o fato de que o próprio nome do estilo é também o nome de uma
qualidade muito valorizada no jazz, independentemente do gênero.
Neste trabalho, o termo swing pode significar bossa, balanço ou movimento particular
derivado de certa liberdade na utilização de pequenas alterações das células rítmicas
provenientes da articulação, da dinâmica e da agógica aplicadas à execução de uma
determinada música. A maneira de swingar confere, na maior parte das vezes, características
idiomáticas que permitem a identificação, por exemplo, de um gênero musical, de uma obra
ou mesmo de um intérprete. Portanto, podem-se considerar como uma forma de swing as
flutuações de tempo e a maneira diferenciada de articular e conduzir as frases musicais,
introduzidas pelo intérprete no momento da execução de uma composição musical, tendo
como finalidade a ampliação da margem de expressão. O que denominou-se no atual trabalho
como swing também poderia ser chamado de flutuações “agógicas” (rubato, accelerando,
ritardando, dinâmicas, etc.) não escritas. “Riemann criou o termo agógica para designar as
pequenas alterações do movimento não indicadas pelo compositor, porém exigidas devido à
necessidade de manter-se viva a expressão durante a interpretação” (LEIMER; GIESEKING,
1951, p. 26).
O fato de um intérprete swingar seria considerado como infidelidade ao texto musical
ou apenas como uma liberdade de interpretação? No capítulo 4 de seu livro Plaisir de Jouer
Plaisir de Penser, Charles Rosen (1993, p. 14) indaga: “A crítica deve adotar o ponto de vista
do compositor. O executante não deve fazer o mesmo?” E prossegue ao abordar o problema
da fidelidade à partitura:
o intérprete pode muito bem se mostrar perfeitamente fiel, tocar todas as notas com
exatidão e resultar em uma execução ruim. Por outro lado, ele pode fazer algumas
mudanças na partitura e realizar uma interpretação perfeitamente fiel ao espírito do
compositor [...] Há muitas maneiras de seguir a partitura: elas levam a interpretações
completamente diferentes. É justamente a tensão que existe entre texto e execução
que é interessante, e que desaparece quando o intérprete se afasta demais da
partitura. Aí está toda a dificuldade: conseguir tocar de maneira muito pessoal,
muito criativa, mas se apoiando completamente no texto (ROSEN, 1993, p. 49).
30

O musicólogo alemão Karl Wilhelm Julius Hugo Riemann (1849-1919) criou o termo
Agógica para designar as alterações no movimento ou as flutuações do tempo introduzidas no
momento da execução de uma composição musical. A agógica é muitas vezes intrinsecamente
exigida pela necessidade de se manter viva a expressão durante a interpretação.
Etimologicamente, o termo agógica tem suas raízes no verbo grego ágo que significa
conduzir, andar, levar. A designação Agógica foi criada em 1884 pelo referido musicólogo
Hugo Riemann no livro Musicalische Dinamik und Agogik com o objetivo de suscitar a
ampliação das possibilidades de expressão do intérprete (RIEMANN, 1884).
As modificações agógicas, tais como rubato, accelerando e ritardando, etc., são
pertinentes à interpretação e, em geral, o compositor não consegue colocar na partitura todas
as intenções expressivas que concebe na hora da criação. Muitas vezes não o faz por achar
desnecessário. Trata-se de expressões não indicadas. Por exemplo, o crescendo, por vezes,
demanda certa aceleração enquanto que o diminuendo, algumas vezes, induz ao relaxamento
do pulso que vinha acontecendo na peça. Não se trata de modificação da escrita, sobretudo
quando a agógica é realizada de forma uniforme e proporcional, ou seja, sem ser abrupta. O
intérprete só deve utilizar a liberdade agógica de acordo com o estilo da música e para
destacar notas expressivas, não para diluir dificuldades na execução.
O acento agógico surge através da ênfase natural atribuída à nota mais longa em
relação a uma precedente, já que o cérebro humano dá mais importância às notas longas. O
acento agógico resulta de um padrão agógico de três componentes: ársis, tésis e o ataque da
tésis, o acento agógico por excelência. A ársis, a porção não acentuada do padrão agógico,
consiste em uma nota ou notas que precedem a nota mais longa seguinte; a tésis, à porção
acentuada. O ataque da tésis é o ponto de acento conhecido como acento agógico. A ársis
pode consistir de um grupo de notas, todas mais curtas do que a tésis. O acento agógico
geralmente segue um longo grupo de ársis. Às vezes, o acento agógico pode contradizer o
acento métrico e sugerir auditivamente um compasso diferente do escrito na partitura.
Uma breve espera antes de atacar pode significar um grande efeito e destacar um
momento musical de clímax e valorizar a obra durante a interpretação.
Segundo Mathis Lussy (1945), seu livro intitulado El ritmo musical – Su Origen,
Función e Acentuación pretende proporcionar aos músicos os recursos necessários para que se
possa distinguir e delimitar as diferentes formas rítmicas das obras, analisar e reconhecer
tanto o gênero como a natureza de sua estruturação, a fim de conhecer sua função, acentuação
e articulação correspondentes.
31

No The New Grove Dictionary of Music and Musicians (1980), o termo “agógica” é
definido como uma qualidade de expressão de sentimentos, sensações ou impressões pessoais
do artista, particularmente no que diz respeito a acentuações (acentuação, ênfase, modo de
pronunciar) e acentos (pronúncia característica, sotaque, ênfase, cadência métrica, modulação
rítmica, acentuação da melodia, maneira de pronunciar, acentuar, modular, cadenciar uma
frase musical) concernentes a variações de tempo e não à dinâmica.16
Martha Ulhôa (1999), em interessante artigo intitulado Métrica Derramada: tempo ou
gestualidade na canção brasileira popular, refere-se ao que chamamos neste trabalho de
swing como “métrica derramada”. Em outro artigo sobre esta temática, a autora afirma que
“Um dos elementos mais possantes de expressividade na canção popular brasileira é a
flexibilidade e, em alguns casos, quase independência do canto em relação ao fenômeno que
chamo de métrica derramada” (ULHÔA, 2006, p. 8). No caso específico desse artigo, a autora
se refere principalmente ao deslocamento dos acentos dos tempos iniciais das frases, prática
feita recorrentemente por cantoras de música popular brasileira, tal como Elis Regina que
flexibilizava o ritmo dos compassos.
A autora apresenta resposta para sua própria dúvida em como conceituar o que neste
trabalho chama-se de swing característico de uma interpretação quando faz a pergunta a
seguir: “Qual a melhor explicação, tempo rubato ou métrica derramada? Acredito que o
segundo conceito é muito mais preciso.” (ULHÔA, 2006, p. 8). E conclui:
“Derramar” a métrica não é uma idiossincrasia numa interpretação singular; é um
traço estilístico marcante, principalmente entre intérpretes de samba. Ou seja, a
métrica derramada mais do que um gesto de estilo individual (como o rubato de
Chopin) é uma característica cultural mais ampla (ULHÔA, 2006, p. 8).

O termo swing utilizado na revisão fonográfica tem o sentido de bossa. Radamés se


referiu ao amigo Iberê Gomes Grosso da seguinte forma: “Quando eu fazia uma peça para
violoncelo, era para o Iberê tocar. Ele tinha muita bossa, muito jeito pra música brasileira”
(DIDIER, 1996, p. 67, grifo nosso). Cabe ressaltar que o termo bossa foi utilizado entre
músicos e compositores populares brasileiros a partir de Noel Rosa, cuja letra de seu samba
intitulado São Coisas Nossas (1932) diz: “O samba, a prontidão e outras bossas, são coisas
nossas, são coisas nossas” (MÁXIMO; DIDIER, 1990). Atualmente é comum a utilização do
termo swing ou suingue (na forma abrasileirada) no sentido de ter-se bossa, balanço, ou de
ter-se aptidão para tocar com bossa, balanço ou com a métrica derramada (ULHÔA, 1999). A
palavra suingue aparece também na forma conjugada, por exemplo, no título da música de

16
AGÓGICA. In: The New Grove Dictionary of Music and Musicians, 1980, p. 185.
32

Walter Serpa Xote Suingado de 2010.

• Virtuosismo

Já o termo virtuosismo em Música está associado à suplantação das dificuldades


técnicas do intérprete. O significado de virtuoso tem sua origem na Itália dos séculos XVI e
XVII denotando um elogio honroso reservado às pessoas distinguidas em alguma área
intelectual ou artística. O termo evoluiu com o tempo dando margem a distintas
interpretações. Originalmente um músico era chamado de virtuoso, fosse ele um compositor,
um teórico, um famoso maestro, um instrumentista ou um artista de grandes qualidades. A
pessoa com habilidade fora do comum, ou seja, com excelência na execução de um
instrumento musical, aliando sua técnica a seu conhecimento de teoria musical, chama-se
virtuoso (virtus, do latim virtude, habilidade, excelência).
Segundo Sébastien de Brossard, no seu Dictionaire de Musique17, no período Barroco
o termo virtuoso ou virtuose (de origem no latim virtus) era utilizado para o músico teórico e
não para o músico prático, ou seja, o virtuosismo enfatizava o treinamento excepcional,
especialmente na parte teórica musical (BROSSARD, 1703).
Mais tarde, no período romântico (século XIX), o adjetivo virtuoso foi usado para
descrever os maestros, instrumentistas e vocalistas apreciados pelo público graças às suas
brilhantes interpretações. Esses músicos de concerto, dotados de uma técnica instrumental
extraordinária, tornavam-se cada vez mais admirados por plateias assombradas com seu
talento. Os compositores, por sua vez, sob o desafio da habilidade técnica desses virtuosos
tornavam a parte do solo cada vez mais difícil. Exemplos de virtuosos desse período que além
de instrumentistas eram compositores são o violinista Niccolo Paganini (1782-1840) e os
pianistas Frédéric François Chopin (1810-1849) e Franz Liszt (1811-1886).
Com o passar do tempo, o significado do termo virtuosismo tornou-se amplo e tema
preferencial nas críticas musicais, passíveis de contestação e discussão. A citação a seguir
mostra um excerto da crítica ao aclamado virtuosismo do maestro Arturo Toscanini (1867-
1957), por Theodor L. W. Adorno (1903-1969), professor, filósofo, sociólogo, musicólogo e
compositor alemão, considerado um dos expoentes da chamada Escola de Frankfurt em seus
Escritos Musicais I – Figuras Sonoras, no capítulo intitulado A Maestria do Maestro.

17
VIRTUOSE. In: BROSSARD, Sébastien. Dictionaire de Musique. 2ª ed. Paris: C. Ballard, 1703.
33

[...] músico que ficou conhecido por seu perfeccionismo, seu ouvido detalhista, sua
precisão e sua memória fotográfica [...] em versões excepcionais, sobretudo das
óperas italianas. [...] As versões de Toscanini, sobretudo das óperas italianas foram
de tal precisão que a nada se pode comparar, no âmbito musical alemão; estabeleceu
um nível de ajuste orquestral que desde então se converteu em referência.
(ADORNO, 2006, p. 54).

No século XX, a utilização do termo virtuoso estendeu-se a outros profissionais de


diferentes áreas possuidores de habilidades e resultados excepcionais.
As considerações feitas acima sobre swing e virtuosismo são necessárias para ressaltar
o que será mostrado das interpretações nas revisões fonográficas.

• Pregão

O termo pregão, de acordo com o Novo Aurélio do Século XXI (1999, p. 1627),
significa “voz ou pequena melodia, de ritmo livre, bastante próxima do recitativo musical, e
com a qual os vendedores ambulantes anunciam suas mercadorias”.
José Ramos Tinhorão (2005, p. 59) em seu livro Música Popular: Os Sons que Vem
das Ruas, no capítulo dedicado aos pregões, escreve: “o pregão pode ser apontado como uma
das formas mais antigas de publicidade do tipo Jingle, considerada a origem mesma dessa
palavra inglesa.” Tinhorão destaca que poucas informações eram sabidas sobre a existência
dos pregões nos centros urbanos e que a existência dos pregões era conhecida não em livros
de folclore ou de música, mas através da prosa de cronistas que ao escreverem sobre suas
antigas cidades, por exemplo, encontravam ecoando na memória “os gritos musicais dos
vendedores de rua ouvidos na infância” (TINHORÃO, 2005, p. 60). O pregão, portanto, é
uma criação ligada à existência de vendedores ambulantes.
Corroborando a fala de Tinhorão, destaca-se uma passagem escrita por Mário
Quintana (1940) em seu livro A Rua dos Cataventos, na qual ele nos fornece um exemplo de
pregão: “Minha rua está cheia de pregões. / Parece que estou vendo com os ouvidos: Couves!
Abacaxis! Caquis! Melões!” (QUINTANA, 1940, p. 26). O autor associa o sentido da visão
ao da audição, já que o pregão apresenta melodia e ritmos característicos dos vendedores de
rua.
Ainda sobre o gênero pregão, Christiane Assano (2007) escreveu no artigo intitulado
Pregões - Uma reflexão sobre o tema na Etnomusicologia a seguinte definição:
34

Trata-se de uma prática muito antiga em que um vendedor apregoa seus produtos ou
oferece seus serviços por meio de um anúncio sonoro, provocando reações nos
ouvintes que, muitas vezes, são seduzidos pela melodia do pregão (ASSANO, 2007,
p. 8).

• O gênero modinha

O termo musical modinha refere-se à moda, cantiga popular, canção folclórica, que da
segunda metade do século XVIII até cerca da segunda metade do século XIX, caracterizou-se
como gênero de romança de salão nacionalizada brasileira, inspirada, quanto à forma, na ária
de ópera italiana “Depois de 1850, tornou-se um gênero de cantiga popular urbana com
acompanhamento de violão” (FERREIRA, 1999, p. 1352).
Segundo alguns musicólogos como Araújo (1963), Alvarenga (1950) e Andrade
(2006), a modinha é o primeiro gênero musical que poderia ser tipicamente brasileiro, mas na
verdade é uma dança nacionalizada brasileira, pois sua origem é a moda ou modinha
portuguesa. Um dos mais importantes pesquisadores do assunto, Mário de Andrade, publicou
em 1930 Modinhas Imperiais, uma coletânea variada com modinhas em ritmos binários,
ternários e quaternários provenientes de diferentes partes do Brasil (ANDRADE, 1930).
No livro Ensaio sobre a Música Brasileira, Andrade (2006) incentiva o nacionalismo
nos compositores contemporâneos e aconselha a criação de formas musicais “abrasileiradas”.
Compositores brasileiros poderiam substituir, por exemplo, a sequência dos movimentos
inspirados nas danças europeias (como allemande, courante, sarabande, gigue, menuet,
gavotte, etc.) precedidos de prelúdio ou ária, por movimentos de danças típicas brasileiras
(martelo, maracatu, maxixe, miudinho, cateretê, frevo, baião, coco, etc.). A modinha
brasileira, por ter um caráter saudosista, melancólico e andamento lento, é equiparada pelo
autor à ária antiga (ANDRADE, 2006, p. 53).
Oneyda Alvarenga, musicóloga e pesquisadora colaboradora na obra de Mário de
Andrade, corrobora o pensamento deste autor ao caracterizar a modinha como gênero
genuinamente brasileiro, conforme atesta a passagem a seguir:
Sim, com o Império, o batuque místico já não bastava para acalmar o nativo
consciente de sua terra e de sua independência. [...] A música profana começou a
predominar em suas manifestações específicas características de sensualidade
sexual: a modinha de salão [...] era válvula de escapamento das paixões. A modinha
já era manifestação intrínseca de coisa nacional (ALVARENGA, 1950, p. 11).

Segundo pesquisas do musicólogo Mozart de Araújo (1963), o brasileiro Domingos


Caldas Barbosa, já em 1775, cantava modinhas e lundus em palácios portugueses. O cantor e
instrumentista do século XVIII compunha para os saraus da nobreza portuguesa e designava
35

modestamente suas modas como “modinhas”. Mozart de Araújo afirma: “No Brasil, a
modinha como o lundu iriam atravessar todo o século XIX, conservando ainda, por largo
período do século atual, a categoria de autênticos cantos nacionais.” (ARAÚJO, 1963, p. 47).
No século XX, o compositor Catulo da Paixão Cearense se destaca como clássico do
gênero. Inspira a maior parte dos nacionalistas e influencia bastante a música de Villa-Lobos
que, em sua vasta produção musical, também compôs modinhas.
O gênero modinha apresentado por Gnattali na peça Modinha & Baião guarda as
características melódicas do gênero: andamento lento, caráter lânguido, saudoso e
melancólico; porém não apresenta letra, é apenas instrumental, como uma canção sem
palavras repleta de brasilidade.

• O gênero baião

Do universo rítmico brasileiro, o baião se destaca como ritmo musical nordestino,


acompanhado de dança, muito popular na região nordeste e norte do Brasil. Como outros
gêneros, o baião designou inicialmente um tipo de reunião festeira dominada pela dança. O
folclorista Câmara Cascudo o associou aos termos “baiano” e “rojão”. Este último significava
o pequeno trecho musical que é executado pelas violas no intervalo dos desafios de cantoria.
O autor registrou a popularização do gênero no país a partir de 1946, depois de uma sensível
adaptação e modificação de sua forma original, passando a anexar além da sanfona
(acordeom), a viola caipira, o triângulo e o pife formando com esses instrumentos a
orquestração típica que intercalava o canto.
Luiz Gonzaga (1912-1989), apelidado Rei do Baião, foi quem proporcionou o sucesso
do baião (DREYFUS, 1997). Humberto Teixeira18, seu parceiro musical e coautor de sucessos
como Asa Branca (1947), contou que houve, da parte de Gonzaga, um real planejamento para
lançar a música do nordeste nos grandes centros urbanos e, para isso, o baião foi o ritmo
escolhido e “devidamente estilizado e amaciado para o paladar urbano” (DREYFUS, 1997, p.
112).
A temática do gênero referia-se ao cotidiano dos nordestinos e às dificuldades da vida.
O ritmo binário, revestido por melodias dolentes era, originariamente, executado apenas por
sanfoneiros. Luiz Gonzaga, que em suas primeiras apresentações era acompanhado apenas da

18
Em depoimento ao pesquisador Nirez - Miguel Angelo de Azevedo, em 11 fev. 1977, reproduzido no livro
Vida do viajante: a saga de Luiz Gonzaga (DREYFUS, 1997).
36

própria sanfona, acrescentou na instrumentação o zabumba e o triângulo. Segundo Gonzaga,


em relato publicado por Dominique Dreyfus, essa instrumentação básica tem origem
portuguesa:
[...] eu verifiquei que esse conjunto era de origem portuguesa, porque a chula do
velho Portugal tem essas coisas, o ferrinho (triângulo), o bombo (o zabumba) e a
rabeca (a sanfona) [...] é folclore que chegou de lá [...] e deu certo [...] o que eu criei,
foi a divisão do triângulo, como ele é tocado no baião. Isso aí não era conhecido.
(DREYFUS, 1997, p. 152).

De acordo com Guerra Peixe (1987, 1988),19 a escala do baião aparece com as
seguintes variações: com todos os graus naturais (modo iônico); com o sétimo grau abaixado
(modo mixolídio); com o quarto grau aumentado (modo lídio); com mistura dos dois modos
anteriores ou dos três e poucas vezes no modo clássico europeu; e ainda, raramente, no modo
menor com o sexto grau maior (modo dórico). As alterações nos acordes das escalas do
gênero baião aparecem tanto nas composições com tonalidade Maior quanto Menor. No modo
Maior: nos graus I, IV e V graus, em ordens variáveis; e/ou nos graus I e II graus, com a
terceira do acorde alterada. Na tonalidade Menor, aparecem nos graus: I e IV graus, com a
terceira alterada. Pesquisadores brasileiros, como José Siqueira (1956), Hermelinda Paz
(2002), Antônio Guerreiro de Faria (2007) escreveram sobre o modalismo na música
brasileira.
Quanto ao aspecto rítmico da execução do baião, ele apresenta-se, na maioria das
vezes, em binário simples (2/ 4), sendo que o baixo é tocado com o primeiro tempo em
semínima pontuada seguida de uma semicolcheia e o segundo tempo com pausa, podendo
haver variantes.
Alguns percussionistas como Edgard Rocca – Bituca [s/d] na apostila intitulada
Ritmos Brasileiros e seus Instrumentos de percussão20, Luiz de Almeida da Anunciação –
Pinduca (1990) no livro A Percussão nos Ritmos Brasileiros21 e o método de Paulo de Sá
(2011) Levadas Rítmicas, têm ensinado o ritmo do baião e suas variantes. O violonista Marco
Pereira (2006), no livro intitulado Ritmos Brasileiros, identifica seis variantes rítmicas para o
baião. Destacou-se a variação rítmica, representada abaixo, por ser a mais parecida com a que
foi utilizada por Radamés Gnattali na obra Modinha & Baião.

19
Guerra-Peixe também utilizava uma apostila usada em aulas particulares de composição (RJ, 1987), que
depois se tornou um livro editado por Irmãos Vitale Editora (1988).
20
Livro/apostila editado no Rio de Janeiro na década de 1980 pela extinta Escola Brasileira de Música [s.d.],
dirigida pelo músico Nelson Macedo.
21
Apostila editada no Texas em 1990.
37

Exemplo musical 1. Rítmica básica do baião (PEREIRA, 2006, p. 64).


38
39

CAPÍTULO 1

PERFIL BIOGRÁFICO DE RADAMÉS GNATTALI

1.1 Introdução

O perfil biográfico do compositor-intérprete Radamés Gnattali tem como objetivo


mostrar que sua vida em família, sua formação humanística, sua formação musical e suas
experiências profissionais colaboraram e permitiram a aquisição do virtuosismo e do swing
revelados na análise aural das obras para violoncelo e piano Flor da Noite (1938) e Modinha
& Baião (1952) gravadas por ele em Duo com Iberê Gomes Grosso (Figura 1, Anexo G) no
LP do selo Festa LDR 5028 [s.d.], intitulado Villa-Lobos / Gnattali, fonte primária para a
revisão fonográfica desta pesquisa.
De acordo com o objetivo exposto é pertinente informar que se aborda o período
aproximado do nascimento de Radamés até a época da gravação, lançamento e tournée
internacional, realizada em 1964, na qual o Duo Radamés Gnattali-Iberê Gomes Grosso
apresentou o repertório gravado no referido LP [1958-1964]. Entretanto, segundo o catálogo
oficial de Radamés Gnattali, o LP foi lançado no Brasil em 1959 (GNATTALI, Roberto,
2006).
Elaborou-se este perfil a partir das biografias contidas no livro de Valdinha Barbosa e
Anne Marie Devos (1985), no livro/documentário de Aloísio Didier (1996) e no Catálogo
Digital Radamés Gnattali (GNATTALI, Roberto, 2006).
O perfil baseia-se também nas entrevistas dadas pelo próprio compositor em
programas de diferentes meios de comunicação, entre os quais se destacam: o programa
intitulado A Música Segundo Tom Jobim (1984), dirigido por Nelson Pereira dos Santos; o
programa o programa intitulado Personalidades — Série Depoimentos (28/07/1985)22,
disponível no acervo do Museu da Imagem e do Som (MIS); o programa Contraluz (1986),

22
Na entrevista de Radamés ao MIS (1985) os entrevistadores foram: Luciano Perrone, Hermínio Bello de
Carvalho, Sergio Sarraceni, Aloísio Didier, Antônio Carlos Jobim e Manoel da Conceição (apelidado Mão de
Vaca). A pesquisa foi de Elizabeth Versiani Formagini e a coordenação do depoimento foi de Jairo Severiano.
Os depoimentos de Radamés ao MIS foram todos transcritos pela autora deste trabalho em 2012.
40

com roteiro e direção de Hermínio Bello de Carvalho, encontrado no acervo da TVE-RJ; a


matéria intitulada Com a Batuta Radamés, veiculada no Jornal O Pasquim do Rio de Janeiro
(1977), concedida pelo maestro a um grupo seleto, composto por amigos e personalidades,
entre os quais estavam: Ziraldo, Sérgio Cabral, Tárik de Souza, Aldir Blanc, Roberto Moura,
Jaguar Jards Macalé, Turíbio Santos e Hermínio Bello de Carvalho; e entrevistas com
parentes e amigos do compositor coletadas pela pesquisadora em 1989 e disponíveis no
Anexo F desta tese.

1.2 Antecedentes – raízes musicais de Radamés Gnattali - família de artistas

Quem convivesse com os Fossati, no início do século XX, saberia que era uma família
de músicos e artistas da cidade de Porto Alegre. Como todos levavam a sério o estudo da
música, provavelmente algum membro poderia tornar-se um virtuose. Os avós maternos de
Radamés eram o escultor italiano Cézar Fossati e a alemã de origem judaica, cultora das artes
e da música, Maria Weingärtner Fossati. A família Fossati era conhecida e identificada como
uma família de músicos (Figura 4, Anexo G).
Todos os treze filhos do casal — Adélia (mãe de Radamés), Camilo, Cézar, Emilia,
Vittorio, Arthur, Paschoal, Frederica, Paulina, Nina (Itala), Carlito (Carlo - filho) e Virgílio
foram músicos. As mulheres tocavam piano e os homens, piano, violoncelo ou violino. Cézar
Fossati, violinista, e Paschoal Fossati, violoncelista, estudaram na Bélgica com bolsa de
estudos.
Após realizarem tournées, nas quais obtiveram críticas favoráveis, retornaram ao
Brasil para trabalhar como profissionais da música. Vittorio, o filho mais novo do casal
Fossati, além de ser pianista era também flautista.
A tradição musical passou para os netos do casal Fossati. A prima de Radamés, Olga
Fossati (1898), assim como o pai, Cézar (ambos na Figura 5, Anexo G), estudou violino na
Bélgica. Com apenas quatorze anos de idade ganhou o Concurso Internacional de Bruxelas.
No Brasil, trabalhou como solista, como músico de orquestra e como professora. Foi com ela
que Radamés aprendeu a tocar violino.
Os avós paternos de Radamés, Angelo Gnattali e Teresa Bighelli Gnattali, e o pai de
Radamés, Alessandro Gnattali (Figura 6, Anexo G), eram naturais da cidade de Verona, Itália.
Alessandro, o mais novo dos cinco filhos do casal Gnattali foi o único da família a deixar a
41

Itália e emigrar para o Brasil para trabalhar como marceneiro com apenas vinte anos de idade
(1886). Em sua cidade de origem, embora apenas dedilhasse o bandolim, ele imaginava um
dia poder estudar e viver como músico profissional.
No Brasil, após se estabelecer na cidade de Porto Alegre, Alessandro Gnattali iniciou
seus estudos de música com Cézar Fossati. Determinado a alcançar seu objetivo, ele dividiu
seu tempo entre o trabalho como marceneiro e o estudo da música. Experimentou tocar vários
instrumentos e optou pelo fagote, que naquela época – início do século XX – era um
instrumento carente nos conjuntos e orquestras de Porto Alegre. Aos poucos foi deixando a
marcenaria. Nove anos depois de sua chegada ao Brasil, Alessandro Gnattali já conseguia
viver da música, sobretudo lecionando. Em 1905, casou-se com a pianista Adélia, da família
Fossati. Radamés foi o primeiro filho do casal e nasceu em 1906. Depois veio Ernani (1908),
Aída (1911) e, mais tarde, Alexandre (1918) e Maria Therezinha (1926). Todos os irmãos de
Radamés também tornaram-se músicos profissionais.
Radamés tinha respeito e admiração pela determinação de seu pai em se
profissionalizar músico (Figura 7, Anexo G). Em entrevista ao jornal O Pasquim (1977)23,
disponibilizada pelo Catálogo Digital Radamés Gnattali, fala sobre ele: “Meu pai era
operário pobre. Veio para o Brasil para ver se melhorava a vida. O irmão dele gastou todo o
dinheiro da família para se formar em medicina” (GNATTALI, Roberto, 2006). Na entrevista
concedida ao MIS (1985), ele também fala sobre a coragem e determinação do pai: “Meu pai
marceneiro, tinha um sonho: ser músico profissional. Já nem tão jovem, conseguiu. Estudou
piano e contrabaixo, tornou-se fagotista e, quando morreu, em 1942, era um respeitado
maestro.”
Percebe-se que Radamés tinha admiração pela história vitoriosa do pai, pois além de
ter conseguido realizar o sonho de se profissionalizar, ele atuou politicamente em Porto
Alegre na busca de reconhecimento público para a profissão de músico. Foi um dos criadores
e diretores do Centro Musical Porto-Alegrense (1920-1933), uma das mais importantes
associações de caráter sindical — como associação privada — promotora tanto de ações
assistencialistas e previdenciárias quanto de ações educativas e agenciadoras. Essa associação
liderou diversas tentativas de regulação da profissão em relação ao mercado, tais como a
fixação de valores para diferentes funções musicais e a efetivação da colaboração da categoria
na organização de suas próprias orquestras. Com isso, estabeleceu um afastamento do que
aconteceu nas décadas anteriores quando a música era associada ao amadorismo e ao

23
Com a batuta Radamés. O Pasquim, 06 de maio de 1977.
42

diletantismo doméstico. O Centro Musical Porto-Alegrense também tinha como meta


desenvolver o gosto artístico-musical da população, programando concertos sinfônicos com
repertório erudito. A maioria dos músicos e membros da diretoria do Centro Musical Porto-
Alegrense era de imigrantes ou filhos de italianos e alemães estabelecidos no Brasil.
O relato acima serve para corroborar a visão de que Radamés e seus irmãos teriam de
encarar futuramente a música como profissão séria e não como hobby ou de forma
amadorística. Radamés, em entrevista a Didier (1996), mostrou senso crítico quando falou
sobre sua vocação e profissionalismo: “[...] Sempre fui músico [...]. Gosto da profissão e faço
tudo bem, honestamente, o melhor que puder. Dizer que faço bem não é dizer que a música é
boa” (DIDIER, 1996, p. 94).
A partir das raízes familiares de Radamés, entende-se que desde a infância ele teve à
sua disposição, na própria casa, a oportunidade de ouvir diversos gêneros musicais e
diferentes instrumentos sendo praticados, bem como diversas formações camerísticas. Além
disso, quando quisesse poderia experimentar instrumentos tanto de teclas como de cordas e de
sopro. Portanto, considera-se que os saberes adquiridos por Radamés nos seus primeiros anos
de vida, em família, mesmo que fossem percebidos inconscientemente, também cooperaram
para o seu futuro, como pianista virtuose, maestro, compositor e arranjador.

1.3 A prática musical em família – ecletismo musical e o apoio à carreira

A carreira de Radamés foi marcada desde o início pelo ecletismo musical, no que
recebeu total apoio de sua família. Pode-se dizer que a formação artística de Radamés
começou na gestação e seguiu adiante ininterrupta. De acordo com o depoimento de sua irmã
Aída nas legendas do Catálogo Digital Radamés Gnattali, aos três anos de idade (Figura 8,
Anexo G) Radamés ouvia os ensaios da pequena orquestra regida por seu pai em casa e
imitava todos os seus gestos até mesmo as viradas das páginas da partitura (GNATTALI,
Roberto, 2006).
Com apenas quatro anos começou a estudar piano em casa com a mãe. Aos nove anos
(Figura 9, Anexo G), Radamés ganhou seu primeiro prêmio: a medalha e o diploma ao mérito,
dada pelo Cônsul da Itália, por reger com sucesso uma pequena orquestra de seis músicos
com arranjos escritos por ele em solenidade realizada na Sociedade Italiana, que era uma
espécie de clube frequentado pelos imigrantes operários onde se organizavam bailes, jogava-
43

se bocha e estudava-se italiano. Segundo Radamés, foi na Sociedade Italiana que, quando
criança, antes mesmo de estudar português, aprendeu a ler e escrever em italiano (MIS, 1985).
Em depoimento ao Museu da Imagem e do Som (MIS, 1985), ao ser indagado sobre
seus feitos musicais e prêmios como prodígio na tenra infância, Radamés minimiza o fato.
Entretanto, demonstrou orgulho ao falar das aulas de piano que teve exclusivamente com sua
mãe, desde os quatro anos até completar quatorze anos de idade. Segundo Radamés, “a
técnica natural, aliada à grande intuição musical, eram características do pianismo de sua
mãe” (MIS, 1985).
Radamés sempre atribuiu o fato de ter passado no exame de admissão ao 5º ano do
curso de piano do Conservatório de Música de Porto Alegre à correta formação pianística
obtida através do aprendizado com sua mãe (Figura 10, Anexo G).
Em depoimento ao Museu da Imagem e do Som, Radamés diz:
Minha mãe era uma mulher formidável. Fazia todo o serviço de casa — todo mesmo
— e ainda arranjava tempo de ensinar música a todos os filhos. Ela tinha uma
intuição musical fabulosa e lia bem partitura. Quando fiz o exame para o
Conservatório, passei direto para o 5º ano. Isso significa que valeu o tempo que
estudei com ela (MIS, 1985).

Radamés, na realidade, mesmo sendo ainda muito jovem, só tinha vontade de fazer
música. Desde sua entrada no Ginásio Anchieta, não gostava do colégio, tinha problemas de
adaptação, não se expressava bem devido à gagueira e era um péssimo aluno. Apesar desses
reveses, a medalha ganha aos sete anos de idade do cônsul italiano havia garantido a seu pai,
Alessandro, a alegria e a certeza do talento musical do primogênito. Certa vez, seu pai,
preocupado, lhe perguntou: “Afinal o que você quer?” A resposta veio imediatamente: “Eu
quero ser músico. Só quero estudar música.” (MIS, 1985). A partir daí, Radamés se
empenhou para se tornar um concertista internacional. Após as aulas particulares de
português, prestou o concurso e entrou para o Conservatório de Música do Instituto de Belas
Artes de Porto Alegre.

1.4 A prática musical fora de casa — primeiros trabalhos

Nos primeiros vinte anos de vida de Radamés, as experiências musicais acumuladas já


teriam sido decisivas, tanto para a obtenção de seu virtuosismo pianístico quanto para a
obtenção de habilidades práticas na linguagem da música popular que apreciava. Em
entrevista ao programa A Música Segundo Tom Jobim (TV Manchete, 1984), Radamés
44

afirmou que ouvia e praticava música tanto popular quanto erudita sem fazer distinção entre
os gêneros.
Enganam-se os que imaginam que Radamés se aproximou da música popular somente
no Rio de Janeiro e por necessidade. É certo que mais tarde, já adulto, por força das
circunstâncias na cidade grande, teve que lançar mão de todo seu potencial musical,
distanciando-se do ideal de ser pianista de concerto. No entanto, ouvir e tocar a música
popular já fazia parte de sua cultura e seu interesse ainda em Porto Alegre.
Paralelamente aos estudos eruditos, as seduções da música das ruas entravam pela
janela da família Gnattali. Radamés que, no começo da década de 1920, já dominava além do
piano, também o violino e o violão, começava a ter “fama de craque” no cavaquinho
(BARBOSA; DEVOS, 1985, p. 13), (Figura 11, Anexo G). Radamés recorda esse fato no
depoimento para o Museu da Imagem e do Som (1985):
Nós formávamos, eu, o Sotero Cosme, que era pintor e também músico que vivia em
Porto Alegre, o Luís Cosme, irmão dele, o Júlio Grauda, flauta e mais outros
músicos. Era um pequeno bloquinho de carnaval, meio moderno na época: Os
Exagerados. Cada um tocava um instrumento. E como não podia levar o piano, eu
comecei a tocar cavaquinho (MIS, 1985).

Radamés, na adolescência, também podia ser visto trabalhando como pianista no


Cinema Colombo no bairro Floresta de Porto Alegre — tocando nos filmes mudos ao piano
repertório de música ligeira24 e ganhando 10 mil réis por dia. Radamés é quem fala: “[...]
ganhava 10 mil réis por dia. As partituras eram pot pourri de canções francesas, italianas,
operetas, valsas, polcas. Nós líamos tudo o que havia na estante enquanto na tela passavam os
filmes mudos” (BARBOSA; DEVOS, 1985, p. 14).
Na juventude, Radamés também participou dos conjuntos carnavalescos da época
atuando como violonista em conjuntos musicais populares. (Figura 12, Anexo G)
Radamés, durante toda a sua infância e adolescência, acompanhou e observou a saga
de seu pai, de quem também experimentou com sucesso os vários instrumentos musicais
estudados, inclusive o fagote (Figura 13, Anexo G).
No mesmo ano, integrava como pianista o sexteto instrumental intitulado Ideal Jazz
Band tocando no Café Colombo (Figura 14, Anexo G). Nessa época, o jovem Radamés
também era requisitado para tocar em bailes e saraus, cujo repertório baseava-se em pot
pourris de operetas francesas e italianas; valsas; polcas e schottisches no estilo Belle

24
Musica Ligeira: no Brasil significa gênero de música popular de fácil assimilação, associado à “ópera ligeira”
ou “opereta”. Em Portugal, significa música folclórica baseada no fado ou estilos musicais dele derivados bem
acessíveis ao público em geral. Disponível em: <http://www.wikipedia.org/>. Acesso em: 28 abr. 2012.
45

Époque.25
As experiências com a música popular, ainda no Rio Grande do Sul, ajudariam
Radamés não só a ter a certeza que poderia viver profissionalmente de música, mesmo que de
forma versátil e não somente como pianista concertista virtuose, mas também ajudariam, já
nessa época, a prepará-lo tanto para o ecletismo musical que demonstraria futuramente, como
compositor e arranjador, quanto para o swing que mais tarde faria parte constante de sua
performance como pianista solista e camerista.

1.5 A prática musical erudita e os incentivos do professor Guilherme Fontainha

O jovem Radamés dos quatorze aos dezoito anos de idade (Figura 15, Anexo G),
frequentou o Conservatório de Música do Instituto de Belas Artes de Porto Alegre, sólida
instituição de ensino musical acadêmico. Nesse período, sedimentou as bases para sua
almejada carreira pianística. No Conservatório, Radamés estudou com o renomado pianista e
professor mineiro Guilherme Fontainha26, que o apoiou na obstinação de se tornar um pianista
virtuose e um músico profissional. Paralelamente, no mesmo conservatório, Radamés também
se formou em violino.
Com apenas dezoito anos de idade, Radamés acumulara em seu repertório os
Prelúdios e Fugas de Bach; a Sonata de Liszt; obras de Chopin; alguns concertos para piano e
orquestra, entre os quais o Concerto para Piano e Orquestra de Tchaikovsky que apresentou
em sua prova de formatura. Além destas, constavam ainda peças de Debussy, Ravel e também
obras de autores brasileiros, como Henrique Oswald, Arthur Napoleão, Villa-Lobos e Ernesto

25
Belle-Époque: Época, a partir de 1870 — fins do século XIX até o início do século XX — caracterizada pelo
afrancesamento dos meios intelectuais e da alta sociedade. No Brasil, o maior exemplo de música no estilo Belle-
Époque é a obra de Ernesto Nazareth. O ragtime americano também é considerado música no estilo Belle-
Époque. O compositor Scott Joplin é apontado como um análogo de Ernesto Nazareth nos EUA. Disponível em:
<http://www.wikipedia.org/>. Acesso em: 17 out. 2011.
26
Discípulo de Francisco Vale em sua cidade natal, Juiz de Fora; de Viana da Mota e Severin Eisenberger em
Berlim; e de Motte Lacroix, em Paris. Guilherme Fontainha foi para o Rio Grande do Sul após estudos em Paris
e Berlim, tendo em sua bagagem muitos concertos realizados por toda a Europa. Quando Radamés foi estudar
com ele, além de titular da cátedra de piano, era o diretor do Conservatório de Música do Instituto de Belas Artes
de Porto Alegre. Fontainha foi um apaixonado pelo ensino. Quando se transferiu para o Rio de Janeiro, na
década de 1930, já havia fundado oito escolas de música no Rio Grande do Sul, exercendo o magistério também
em Pelotas. Após inestimável contribuição à elevação do ensino de música no Rio Grande do Sul, transferiu-se
para o Rio de Janeiro onde foi nomeado professor e depois diretor do Instituto Nacional de Música, cargo que
exerceu por sete anos. Fontainha também criou a Revista Brasileira de Música (1945). Foi professor de Laís de
Souza Brasil, Irany Leme, Luís Carlos de Moura Castro, entre outros pianistas brasileiros de renome (LAGO,
2007, p. 650).
46

Nazareth.
Constatou-se que o virtuosismo pianístico já fazia parte da musicalidade de Radamés
e, desde muito jovem, ele já caminhava em direção ao seu futuro swing característico.

1.5.1 Radamés no Rio de Janeiro em 1924

Radamés obteria reconhecimento artístico e profissional no Rio de Janeiro, cidade que


escolheria como residência. Até o seu estabelecimento definitivo, algumas idas e vindas de
Porto Alegre se sucederam. O professor Fontainha foi o responsável por levar Radamés para a
capital nas três primeiras vezes: em 1924, 1929 e 1931.
Em 1924, Fontainha levou Radamés para o Rio de Janeiro com o objetivo de
apresentá-lo oficialmente em recital como aluno virtuose. Cabe ressaltar que a intenção de
Fontainha não foi apenas de ajudar o jovem pianista, mas também de mostrar sua própria
competência como mestre. É o próprio Radamés que fala sobre isso:
O primeiro concerto que fiz foi com 18 anos, em 1924, no Rio de Janeiro. Eu
cursava o último ano de piano. O Fontainha, que era meu professor e diretor do
Conservatório Musical de Porto Alegre, me trouxe para o Rio. Era para apresentar
um aluno dele [...] acho que ele queria arranjar emprego na Escola de Música [...]
mais tarde foi até contratado mesmo. Toquei Liszt e Bach. Foi na Escola Nacional
de Música e o Fontainha convidou os críticos todos, até a Guiomar Novais estava lá.
Depois do concerto no Rio de Janeiro, voltei para Porto Alegre para fazer os exames
finais. Deu uma encrenca danada com os outros alunos. Eu tinha faltado muito, pois
tinha ficado fora mais de três meses e os outros acharam que eu não podia fazer os
exames por causa das faltas. Só que eu estava no Rio de Janeiro com o professor,
que era diretor do Conservatório, aí ninguém pôde fazer nada. Fiz a prova final que
era realizada no Conservatório e ganhei o Prêmio Araújo Vianna, com medalha de
ouro (GNATTALI, Roberto, 2006).

Radamés, nessa época, já carregava consigo a experiência musical obtida e praticada


ora em família e em companhia de seus amigos músicos, ora nas aulas do conservatório e
apresentações em Porto Alegre, fosse com música popular ou erudita. Preparado, Radamés
Gnattali, aos dezoito anos de idade, fez um recital no salão do Instituto Nacional de Música
— atual Escola de Música da UFRJ (Figura 16, Anexo G). A julgar pelas críticas publicadas
nos jornais da época, ele obteve sucesso. No recital realizado no dia 31 de junho de 1924,
Radamés tocou o Concerto de Órgão de Bach-Stradal e as peças de Liszt Sonata em Si
menor, Gondoliera e Rapsódia nº 9, peças que são consideradas de alto nível de dificuldade e
que requerem, além de desenvolvimento estético, virtuosismo.
Os críticos musicais Borgongino, do O Correio da Manhã; Rodrigues Barbosa, do O
Jornal; Arthur Imbassay do Jornal do Brasil; e Oscar Guanabarino do Jornal do Commercio
47

fizeram excelentes críticas do recital de Radamés no Instituto Nacional de Música


(BARBOSA; DEVOS, 1985). A seguir, como exemplo, apresenta-se apenas um dos extratos
de crítica, publicada em O Jornal e escrita por Rodrigues Barbosa.
[...] Quer como estilo, quer como sonoridade, quer com cambiantes de colorido, a
execução teve certa grandeza que só os intérpretes privilegiados podem imprimir na
sua execução. E de tal modo se elevou a execução desse concerto, que a sonoridade
ampla, homogênea, fazia pensar numa beleza no fraseio [...] a Sonata em si menor,
esse poema dantesco, encontrou no Sr. Radamés um intérprete fervoroso,
apaixonado pela epopeia liszteana, vibrando em todas as suas belezas, que são
infinitas. Não houve uma só joia daquele escrínio sonoro que deixasse de irradiar a
luz puríssima; não houve uma única palpitação de sentimentos na frase poética que
não encontrasse eco nos corações dos ouvintes que souberam expandir-se em
aplausos. [...] Se ele começa a sua carreira com um esplendor que todos conseguem
no período mais glorioso, até onde chegará com o seu talento e a sua personalidade
de tão acentuado relevo? (BARBOSA, 1924 apud BARBOSA; DEVOS, 1985, p.
19).

Da primeira viagem ao Rio de Janeiro, ficou na memória de Radamés outro fato: a


oportunidade de ouvir pela primeira vez tocando “ao vivo” o pianista e compositor Ernesto
Nazareth (MIS, 1985). Radamés, desde seus estudos em Porto Alegre, já apreciava algumas
partituras do compositor que era famoso por seus tangos brasileiros. Foi andando no centro do
Rio de Janeiro que Radamés, por acaso, pode ouvir Nazareth, mesmo que do lado de fora do
Cinema Odeon (Figura 17, Anexo G), conforme contou em entrevista:
Conheci Nazareth quando ele tocava no Cinema Odeon, na [Av.] Rio Branco com
Sete de Setembro [no centro do Rio de Janeiro]. Um dia eu estava passando, ouvi
aquele som e era o próprio Nazareth tocando. Eu não entrava porque não tinha
dinheiro para o cinema, mas do lado de fora eu o ouvia. Sempre juntava um povinho
para ouvir. Parei pra escutar e sempre que podia fazia isso (MIS, 1985).

1.5.2 De volta a Porto Alegre

Após o sucesso obtido no Rio de Janeiro e de volta a Porto Alegre, Radamés presta o
exame final do Conservatório no fim daquele ano de 1924. Forma-se com nota máxima e
também a medalha de ouro — Prêmio Araújo Vianna (GNATTALI, Roberto, 2006). A
Figura 18 do Anexo G desta tese retrata a foto tirada no dia do recital de formatura dos alunos
do professor Guilherme Fontainha.
Para Radamés ficaria marcada a fase de pianista solista. Ao longo da vida, em diversas
ocasiões e entrevistas, Radamés citou com orgulho as críticas de seu primeiro recital ao
mesmo tempo em que lamentava não ter podido seguir a carreira pianística devido à falta de
condições financeiras: “[...] sinto que tocar piano é que era o meu negócio, o que eu queria
48

mesmo. É, e daí? Não pode ser e acabou [...]” (DIDIER, 1996, p. 78).
No início de 1925, Radamés conheceu Vera Maria Bieri, pianista gaúcha de São
Leopoldo, com quem iniciaria um relacionamento e se casaria sete anos mais tarde após
começar a se firmar financeiramente, em detrimento de sua carreira de solista.

1.5.3 Em compasso de espera

Entre 1924 e 1929, época em ainda almejava ser exclusivamente pianista virtuose,
Radamés ficou em uma espécie de expectativa de alcançar seu objetivo. Porém,
paralelamente, trabalhava muito tanto em recitais quanto em bailes, cinemas e teatros de Porto
Alegre, obtendo destaque.
Em 1925, Radamés foi convidado pela Sociedade Paulista (sociedade artística da
cidade de São Paulo que promovia Saraus Musicais e que, nessa ocasião, tinha Mário de
Andrade como vice-presidente) para realizar um recital em 03 de outubro de 1925. No
auditório do Conservatório Dramático e Musical de São Paulo, tocou o mesmo programa
apresentado no ano anterior no Rio de Janeiro27 (BARBOSA; DEVOS, 1985). Sobre a
apresentação, o conhecido mestre de educação musical Sá Pereira,28 por meio de carta
publicada no Jornal do Commercio local, exaltou as qualidades técnico-interpretativas do
jovem intérprete: “Radamés Gnattali revelou excepcionais qualidades de concertista de alta
linhagem”. (PEREIRA, 1925 apud BARBOSA; DEVOS, 1985, p. 22).
Porém, a repercussão tanto em São Paulo como no Rio de Janeiro foi somente a do
dia, ou seja, não houve continuidade. O que se sabe a respeito desses concertos é devido às
críticas que foram publicadas nos jornais da época. Não há sequer um registro fonográfico
desses primeiros concertos.
A partir daí, Radamés esperava por um patrocínio para desenvolver sua carreira de
pianista, para que pudesse aprofundar e multiplicar o repertório virtuosístico sem
preocupações de ordem material, como era o caso de muitos mestres da música, por exemplo,
Carlos Gomes, Villa-Lobos, seus tios e sua prima Olga Fossati. Radamés solicitou uma bolsa
ao governo de Porto Alegre, porém não conseguiu. Para aumentar as suas preocupações
financeiras, o orçamento da família Gnattali ficou comprometido com o nascimento de sua

27
Concerto de Órgão de Bach-Stradal e as peças Sonata em Si menor, Gondoliera e Rapsódia nº 9 de Liszt.
28
Sá Pereira (SP, 1888-1966) foi mestre de música, pianista, musicólogo e pedagogo. Seu principal discípulo foi
Camargo Guarniere. Após estudar os métodos de Jacques Dalcroze, em Genebra, implantou seus princípios no
Conservatório Brasileiro de Música no Rio de Janeiro (LAGO, 2007, p. 651).
49

irmã mais nova em 1926. Não sendo possível bancar o estudo exclusivamente pianístico do
primogênito, seu pai o incentivou a utilizar todo seu talento e versatilidade musical. Em Porto
Alegre prosseguiu com a atividade de professor, que apesar de não gostar, era o que lhe
garantia alguma renda (MIS, 1985). Anos mais tarde, Radamés afirmou em entrevista:
Não sei ensinar. Tive alguns alunos em Porto Alegre, mas não deu, não tenho
paciência. [...] Acho que ninguém pode ensinar música a ninguém, ainda mais para
quem não tem noção de ritmo e de harmonia, é impossível. [...] A pessoa pode
aprender harmonia e não ser compositor. É a mesma coisa que aprender gramática e
não ser poeta. (DIDIER, 1996, p. 61).

Devido à sua versatilidade musical, Radamés lançou mão do curso de violino


concluído paralelamente ao curso de piano. Formou o Quarteto de cordas Henrique Oswald,
atuando como violista e não como violinista, ao lado dos irmãos violinistas Sotero Cosme e
Luiz Cosme e do violoncelista italiano Arduino Rogliano O quarteto durou aproximadamente
dois anos, realizando muitos concertos em Porto Alegre, Caxias, São Leopoldo e até São
Paulo. Na década de 1980, Radamés declarou que aprendeu a orquestrar devido à experiência
no quarteto, reconhecendo que lucrou muito musicalmente com a experiência de violista
naquele grupo. Completou dizendo que, através dessa oportunidade, aprendeu a escrever bem
para o naipe de cordas tanto em suas composições clássicas como em arranjos de música
popular (MIS, 1985).
Tocávamos Beethoven, Mozart, Mendelsohn, entre outros. Era muito bom o
quarteto. Ensaiávamos todo dia, na casa de um e de outro. E eu gostava. [...] Este foi
um período importante para mim; o grupo de cordas é a base da sinfônica; quem
sabe trabalhar com ele, sabe usar a orquestra (GNATTALI, Radamés apud
BARBOSA; DEVOS, 1985, p. 24).

Outros acontecimentos corroboram o virtuosismo de Radamés, indicando que ele


poderia ter tido sucesso apenas como concertista.

1.5.4 Novamente no Rio de Janeiro em 1929

Os anos se passavam e Radamés acumulava experiências musicais. Quatro anos depois


do primeiro recital no Rio de Janeiro, Radamés voltou a então capital federal como hóspede
na casa de seu ex-professor Fontainha — que passara a morar na cidade para trabalhar como
professor titular do Instituto Nacional de Música do Rio de Janeiro. Radamés, que nessa
ocasião (1929) estava com vinte e três anos de idade, foi programado por Fontainha para solar
o Concerto nº 1 em Si bemol menor op. 23 de Tchaikovsky no Teatro Municipal do Rio de
Janeiro, sob a regência de Arnaldo Glückman (BARBOSA; DEVOS, 1985, p. 24).
50

As críticas de 1929 foram ainda melhores do que as da sua estreia no Rio de Janeiro
em 1924. Após a apresentação com orquestra, os críticos reafirmaram as palavras que haviam
escrito cinco anos antes sobre o pianismo de Radamés. Destaca-se, entre outras, a crítica de
autoria de Basílio Itiberê publicada no Correio da Manhã:
pianista absolutamente invulgar, dotado de um temperamento apaixonado, teve a seu
cargo o Concerto em si menor de Tchaikovsky, obra de grande efeito pianístico e
magnificamente combinado a orquestra. O Sr. Gnattali já é sem favor nenhum, um
virtuose. As suas qualidades de bravura, o deslumbramento da técnica, a beleza da
sonoridade, o senso artístico, tudo nele contribui para torná-lo um artista digno de
atenção (ITIBERÊ, 1929 apud BARBOSA; DEVOS, 1985, p. 24).

Na ocasião desse concerto, Radamés dedicou-se apenas ao estudo do piano e, por esta
razão, ficou hospedado na casa de Fontainha que era localizada no bairro das Laranjeiras. Nos
fins de semana, conforme o próprio Radamés contou na entrevista para o MIS, era comum ele
passar as tardes inteiras de sábado na casa do sobrinho de Fontainha escutando discos de Jazz.
Radamés escutava com atenção os discos da considerada Era do Swing de sua época, como os
discos do conjunto de Duke Ellington (1899-1974) que tinha lançado Cotton Club Stomp; da
orquestra do pianista Fletcher Henderson (1897-1952), considerado um dos criadores das Big
Bands; os discos de Benny Goodman (1909-1986) como o Benny Goodman and the Giants of
Swing (1929, Prestige); entre outros. A música no estilo dessas big bands tocava nos clubes
de dança do Rio de Janeiro, como o Theatro Casino e o Casino Beira Mar que ficavam no
Passeio Público, ambos inaugurados desde 1926 seguindo os moldes dos club dancers
americanos.
Radamés estava atraído pelo ambiente musical e cultural do Rio de Janeiro e,
sobretudo, pelas diversas oportunidades de trabalho que ali se encontravam. Sendo assim,
começou a planejar se estabelecer na capital, primeiramente como pianista concertista. Porém,
vendo que cada vez se mostrava mais difícil viver apenas de concertos de piano, começava a
aceitar a ideia de utilizar seu talento e ecletismo musical para se sustentar financeiramente.
Uma novidade para Radamés, que futuramente iria ajudá-lo a ganhar oportunidades de
trabalho, foi o fato de Fontainha adquirir uma casa de música (loja) na Rua do Ouvidor, perto
do Largo de São Francisco (MIS, 1985). As casas de música eram famosas e existiam desde
fins do século XIX. Elas editavam e vendiam partituras, vendiam pianos e outros
instrumentos, alugavam salas para professores darem aulas particulares. A loja de Fontainha
também funcionava como fonte de trabalho para muitos pianeiros que ali “esperavam o
telefone tocar”. Era comum que pessoas telefonassem para as casas de música procurando
contratar pianistas para tocar em cerimônias, almoços, jantares, bailes, etc. Pelas razões
supracitadas, até aproximadamente o final da década de 1930, as casas de música haviam se
51

tornado pontos de encontro de diversos músicos populares. No Rio de Janeiro, as casas de


música mais famosas eram: Casa de Arthur Napoleão & Miguez (que ficava na Rua do
Ouvidor 89); Casa Vieira Machado & Cia. (Rua do Ouvidor 147); Casa Beethoven (Rua do
Ouvidor 147); Casa Carlos Gomes (Rua Gonçalves Dias, 47) de propriedade do pianista e
compositor Eduardo Souto (1882-1942); entre outras.
Entre 1929 e 1931 o compositor e pianista Ernesto Nazareth ainda podia ser visto
tocando na Casa Vieira Machado (que nessa ocasião mudou o endereço para Rua do Ouvidor,
179). Radamés não perdeu a oportunidade de fazer amizade com um de seus compositores
favoritos e também de tocar suas obras para ele ouvir. Radamés conta:
Toquei muito pra ele [...] depois, Nazareth ia tocar na Galeria Cruzeiro. Tinha o
Hotel Avenida, e na esquina a casa de Piano. [...] Nazareth era pianista mesmo. Não
era pianeiro não. Ele odiava que dançassem a música dele [...] achava que sua
música não era feita para dançar. Nazareth era muito influenciado por Chopin e
escrevia sua música em qualquer tonalidade. Todas. Era um excelente pianista,
muito bom mesmo. Não era pianeiro (MIS, 1985).

No final de 1929, como estava com dificuldades financeiras para retornar para Porto
Alegre, Radamés aceitou substituir o pianista Mário Martins no Cassino das Fontes em
Lambari, cidade do sul de Minas Gerais. O percussionista Luciano Perrone (que tocava na
mesma cidade no Cassino Éden), ao ouvir falar de “um pianista” que estava naquela
temporada se apresentando na cidade, foi conferir e desse encontro nasceu uma longa parceria
musical e profissional, além de grande amizade.
Radamés retornou para Porto Alegre, tendo percebido que poderia viver de música
fora de sua cidade natal. Seu desejo de formar uma família com Vera Maria Bieri (Figura 19,
Anexo G), aliada à sua versatilidade como músico, o conduziria definitivamente a um tipo de
carreira musical diversificada.
Antes da vinda definitiva para a então capital federal, Radamés acumularia ainda mais
experiências em Porto Alegre. No Teatro São Pedro, em 17 de setembro de 1930, em seu
próprio recital, fez sua estreia como compositor erudito apresentando as seguintes obras:
Prelúdio nº 2 – Paisagem e Prelúdio nº 3 – Cigarra. Nesse concerto, ele foi homenageado
pela colônia italiana devido a suas atuações artísticas (BARBOSA; DEVOS, 1985, p. 25).
52

1.5.5 Entre Idas e Vindas – Entre Porto Alegre e Rio de Janeiro

Na década de 1930, em consequência da chegada do cinema sonoro ao Brasil, muitos


instrumentistas de Porto Alegre enfrentaram crise de desemprego. Entretanto, a versatilidade
de Radamés não o deixou sem trabalho. Como instrumentista podia trabalhar também como
violista e, ao chegar uma companhia russa de ópera no Teatro Lírico Rio-Grandense,
Radamés foi contratado como violista da orquestra que seguiu para estreia em São Paulo
(WERNER; BARBEITAS, 2012). Radamés, de músico de orquestra, fez aos poucos
conhecido o seu pianismo e acabou como assistente do maestro. É do próprio Radamés o
relato, a seguir:
Em São Paulo, me convidaram para tocar o concerto de Tchaikovsky numa rádio.
Então eu chegava cedo na orquestra para estudar piano. Um dia eu estava estudando,
quando chegou o maestro — que era diretor do Conservatório de Munique — e me
perguntou se eu não era o violista da orquestra. Eu disse que sim e ele me perguntou
se eu não queria ajuda-lo a ensaiar os artistas da ópera. Ele ficou impressionado com
a minha leitura à primeira vista (GNATTALI, Radamés apud BARBOSA; DEVOS,
1985, p. 25).

Apesar de ter sido convidado para continuar naquela companhia russa, Radamés
retornou a Porto Alegre após o encerramento da temporada.
Em Porto Alegre, a produção de Radamés como compositor se intensificou. Em 29 de
março de 1931, Angelo Guido escreveu na coluna Artes e Artistas do jornal Diário de
Notícias de Porto Alegre uma matéria intitulada Radamés Compositor, na qual faz
considerações minuciosas e elogiosas sobre a obra Rapsódia Brasileira, que ainda não tinha
sido estreada publicamente em recital.
Em 09 de julho, Radamés apresentou-se em recital no Teatro São Pedro tocando
Scarlatti, Schubert, Liszt e as obras de sua autoria Ponteio Roda e Samba e a já comentada
Rapsódia Brasileira, que nesse mesmo ano foi editada pela Ricordi. O Correio do Povo,
jornal de Porto Alegre, publicou crítica de Léo Lanner, da qual se destacaram as seguintes
palavras escritas sobre a Rapsódia Brasileira:
Causou-me uma agradável surpresa a tendência acentuada que tem o Sr. Radamés
Gnattali para vazar a ideia musical em uma forma. [...] A unidade da obra é para
mim a sua qualidade principal. É através desse senso de unidade, tão difícil de
aprender-se, que vejo no Sr. Radamés Gnattali uma promessa das mais brilhantes
[...] Intuição formal e harmônica. [...] A Rapsódia brasileira [...] é o primeiro voo
firme de quem pode aspirar a uma envergadura de águia (LANNER, 1931 apud
BARBOSA; DEVOS, 1985, p. 28).
53

Entretanto, em Porto Alegre não havia possibilidade de Radamés se tornar concertista.


O governo lhe recusara bolsa de estudos para que continuasse investindo no estudo do
repertório pianístico. Ele se sustentava com as apresentações esporádicas com o Quarteto
Henrique Oswald e os alunos de piano. Apesar dessa situação, o meio musical porto-
alegrense e a imprensa local reconheciam e apoiavam o talento de Radamés. A Sala
Beethoven (Figura 20, Anexo G), casa de música da cidade, por exemplo, apresentou a Noite
Brasileira de Radamés Gnattali e Luiz Cosme, com obras composta por eles. Como
demonstrava o título dado na programação da Sala Beethoven, é notório que Radamés já
delineava, em suas composições, a tendência nacionalista. Em suas primeiras obras, Radamés
escreveu peças virtuosísticas para piano, porém utilizando temas folclóricos brasileiros. Na
peça Rapsódia Brasileira, por exemplo, Radamés aproveitou os temas das músicas folclóricas
Meu Boi Morreu, Viuvinha Bota Luto e Anda Roda Desanda Roda.

1.5.6 Em 1931, Radamés mudou-se para o Rio de Janeiro definitivamente

Radamés continuava estudando, mas a vida como pianista-intérprete concertista


clássico ficava cada vez mais distante devido à falta de oportunidades e condições financeiras
para sua dedicação exclusiva ao piano. Após a Revolução de 1930, o Brasil passava por
algumas mudanças no que se referia à educação, entre outras, e estas mudanças mantiveram
acesas as esperanças de Radamés em viver profissionalmente como pianista-concertista.
Após a reforma de ensino superior do governo Vargas ocorrida em 1931, o Instituto
Nacional de Música passou a ser incorporado à Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Guilherme Fontainha assumiu a direção em meio a uma crise político-administrativa do
Instituto e escreveu para Radamés informando que haveria concurso para professor. Fontainha
incentivou o antigo aluno a imediatamente se transferir para o Rio de Janeiro com o objetivo
de se preparar devidamente para as provas. Radamés saiu de Porto Alegre em direção ao Rio,
desta vez disposto a de qualquer forma morar definitivamente na então capital federal. Levou
consigo uma carta de apresentação escrita pelo político gaúcho Raul Pilla (amigo de seu pai)
para conseguir uma audiência com Getúlio Vargas. Seu objetivo era apenas saber se não se
trataria de um boato a abertura do concurso. Radamés apresentou-se no Palácio do Catete e,
ao ser recebido por Getúlio Vargas, limitou-se a perguntar se haveria de fato o concurso. O
presidente, que só o recebeu por causa da carta de apresentação, respondeu afirmativamente.
54

Radamés começou a estudar seriamente as matérias teóricas pertinentes às provas.


Orientado por Fontainha, passou a ter aulas de Harmonia com o professor Agnelo França.
Desta vez, no ano de 1931, Radamés morou em uma pensão no bairro da Glória. Passou a
estudar com determinação harmonia e contraponto, objetivando ser aprovado no concurso.
Enquanto estudava, Radamés também precisava trabalhar e, pouco a pouco, foi tomando
contato com a vida profissional da capital.
Frequentava a casa de música de Fontainha, que ficava na Rua do Ouvidor, pois era lá
que estudava piano. Radamés foi aos poucos se ambientando, conhecendo a vida musical e
aprendendo. Os “pianeiros” cariocas tiveram uma grande importância nesse aprendizado de
Radamés. Eles, que sempre estavam nas casas de música à procura de trabalho para tocar ou
para editar suas composições populares, tinham um toque e swing característicos da música
popular urbana carioca, que Radamés logo decifraria.
Radamés, desde sua segunda vinda ao Rio de Janeiro, havia feito amizade com o
percussionista Luciano Perrone (1908-2001) que o indicava para trabalhos como pianista de
música popular. Enquanto se preparava para o concurso, Radamés atuava profissionalmente
apenas na área da música popular. Tocou piano no conjunto do Café Trianon, liderado pelo
violinista Samuel Spilman; na Orquestra da Rádio Clube do Brasil; no Quarteto do Hotel
Central; entre outros trabalhos. Em razão dessas pequenas participações, Radamés foi
conhecendo alguns outros músicos que seriam seus parceiros profissionais também na música
de concerto, tais como Oscar Borgheth, Romeu Ghipsman e Iberê Gomes Grosso, de quem se
tornaria amigo dileto e com quem trabalharia durante toda sua carreira.

1.6 Mudança do objetivo profissional de ser pianista concertista

Tudo caminhava bastante bem para Radamés, exceto pelo fato de que o concurso para
professor de piano, ao qual ele aguardara se preparando seriamente, não aconteceu. Para
Radamés, ficaria eternamente a dúvida se sua carreira de concertista clássico, conforme seus
planos juvenis, teria lhe proporcionado mais realização pessoal: “comecei a trabalhar em
orquestras e tocar música popular pra poder viver. Se tivesse entrado para a escola de Música
talvez a minha vida tivesse sido outra. Getúlio mudou minha vida” (DIDIER, 1995, p. 66).
55

Radamés descreve sua vinda definitiva para o Rio de Janeiro, em 1931, de forma a
transparecer certa mágoa pela desilusão provocada com a não realização do concurso público,
que significou para ele a impossibilidade de viver da carreira de solista-virtuose do piano
erudito. A seguir, a transcrição das palavras de Radamés:
Eu vim definitivamente para o Rio em 1931. Fontainha praticamente nunca me
ajudou em nada, mas dessa vez ele me escreveu dizendo que tinha uma vaga na
Escola de Música [UFRJ] para a cadeira de Professor Catedrático e perguntou se eu
não queria concorrer. Eu larguei tudo em Porto Alegre e vim para cá. Fiquei aqui
estudando quatro ou cinco meses à espera do concurso. Mas fui falar com Getúlio
[Presidente Getúlio Vargas]. Eu trouxe uma carta do Raul Pilla, que era um político
muito bom. Inimigo do Getúlio, mas que Getúlio respeitava. Entreguei a carta na
portaria. Alguns dias depois chegou um telegrama para eu ir lá que ele ia me
receber. E ele [Presidente Getúlio Vargas] disse: — O que o senhor quer?
[Radamés] — Só quero saber se o concurso vai ser realizado no fim do ano, mais
nada. [Presidente Getúlio Vargas] — Tem minha palavra! Haverá sim o concurso.
[Radamés] Eu saí de lá animado, mas depois não houve concurso nenhum (MIS,
1985).

Este episódio mudou o rumo profissional de Radamés, que definitivamente desistiu da


carreira de concertista solista. Entretanto, sua carreira como compositor erudito começaria a
despontar. Em outubro de 1931, Radamés foi convidado para participar da programação do 4º
Concerto da Série Oficial do Instituto Nacional de Música do ano de 1931, na qual também
participaram os jovens compositores Camargo Guarnieri (1907-1993), Luiz Cosme (1908-
1965) e, ainda, Luciano Gallet, Heitor Villa-Lobos e Lorenzo Fernandez representando os
compositores veteranos.
Radamés foi saudado como uma das revelações na área da composição. Apresentou a
Suíte para Piano, a Rapsódia Brasileira e a Suíte para Quarteto de Arcos e Piano que foi
interpretada por ele próprio e pelo quarteto de cordas formado pelos músicos Oscar Borgerth
e Loyolla Rego — violinos, Affonso Henrique — viola, e Iberê Gomes Grosso — violoncelo.
A seguir, o texto publicado no Correio Musical com as palavras de Otávio Bevilacqua:
[...] o pianista Radamés Gnattali revelou, como compositor, qualidades magníficas
na Suíte para Piano, Rapsódia Brasileira e na pequena Suíte para Quarteto de
Cordas e Piano [...] Para essa ótima impressão, [...] não concorreu pouco a
excelência de execução dada pelos artistas de arco, muito conhecidos todos, e, ao
piano, pelo autor, pianista de raras qualidades. Enfim, este concerto deu-nos uma das
ótimas revelações de 1931 (BEVILACQUA, 1931 apud BARBOSA; DEVOS,
1985, p. 30).

A frustração de não poder tornar-se concertista aos poucos foi sendo ocupada por
trabalhos musicais diversos.
56

1.7 Samba no piano — convívio com pianeiros cariocas — fama como arranjador

Radamés estava disposto a se estabelecer no Rio de Janeiro. Do erudito ao popular, ele


foi, aos poucos, aliando ao seu virtuosismo o swing característico dos pianeiros cariocas que
tocavam o samba no piano. Os pianeiros que frequentavam as casas de música do centro da
cidade do Rio de Janeiro — principalmente a Casa Vieira Machado, como mencionado
anteriormente, foram muito importantes para sua vida profissional como arranjador. Radamés,
que já conhecia e nutria verdadeira admiração pela obra de Ernesto Nazareth desde os tempos
do Cine Odeon (Figura 21, Anexo G), dizia que ele estava longe de ser um pianeiro, embora
suas composições como Batuque, Brejeiro, Carioca, Fon-fon, Apanhei-te Cavaquinho, Odeon
entre outras, fossem consideradas por muitos como música popular para dançar.
A música de Nazareth se diferenciava da música dos pianeiros, principalmente na
maneira de tocar. Radamés conheceu de perto as duas e aprendeu muito com isso e,
sobretudo, reconheceu a diferença entre o que era de fato tocar como pianista e como
pianeiro. A seguir apresenta-se um trecho da entrevista em que ele conta que tocou para
Nazareth na Galeria Cruzeiro29:
Eu conheci o Nazareth, ele tocava no Cine Odeon, na sala de espera do cinema, atrás
de uma parede de vidro. O cinema ficava na sete de setembro com Av. Rio Branco.
Nazareth tocava num piano de armário, em cima de um estrado. Dizem que Rui
Barbosa ia muito lá. [...] Eu ia andando pela rua, ouvi um som de longe... Aí vi que
era ele quem estava tocando. Parei pra escutar e sempre que podia fazia isso. [...]
Depois Nazareth saiu do Cine Odeon e foi tocar na Galeria Cruzeiro, uma espécie de
loja, que entre outras coisas, vendia pianos. Foi lá é que eu conheci pessoalmente o
Nazareth. Ele não era pianeiro não. Era pianista mesmo. Eu estudava algumas peças
dele e ia tocar para ele ouvir. Eu também aprendia vendo-o tocar. Eu acredito que
peguei bem o jeito dele tocar (MIS, 1985).

A maneira de tocar dos pianeiros era uma novidade para Radamés. Ele reconhecia que
inicialmente era incapaz de reproduzir a forma de tocar dos pianeiros, principalmente quando
tocavam o samba. Então, conta que com humildade e disciplina, passava horas ouvindo com
atenção os pianeiros famosos e devagarinho ia aprendendo como tocavam o samba carioca.
Nonô, Costinha, Centopéia, Bequinho e Menezes, por exemplo, na ausência de percussão,
bateria e um contrabaixo, tocavam de maneira a forjar a presença desses instrumentos e
preenchendo os espaços. A mão esquerda fazia a voz do contrabaixo e o pedal era usado para
dar o ritmo. “Radamés abre seu horizonte de músico e sente que vai se aproximando de uma
29
A Galeria Cruzeiro foi inaugurada em 1911, mais tarde se consolidou como centro de atividades comerciais e
culturais da cidade do Rio de Janeiro. Construído pela Light em 1911, o Hotel Avenida foi um dos edifícios mais
populares da Avenida Rio. No térreo funcionava uma estação circular dos bondes. A Galeria Cruzeiro oferecia
bares, restaurantes, cafés e leiterias. Disponível em:<www.light.com.br/web/seculolight/>. Acesso em: 02 mai.
2012.
57

nova vertente em sua carreira: a de músico popular.” (DIDIER, 1996, p. 16). Radamés
também ia aprendendo a ser crítico sobre a maneira correta de tocar samba ao piano,
conforme podemos perceber pelas suas palavras no depoimento ao MIS:
O aproveitamento do pedal para dar o ritmo me fascinava. Eu ficava lá só ouvindo...
e aprendendo. Quando me pediam para tocar eu disfarçava, pois o que eu iria tocar
ali? Chopin? Tinha vergonha, pois o negócio ali era o samba... Comecei então a
bater muito papo com os pianeiros. Naquele tempo samba era só no Rio de Janeiro.
Em São Paulo não se sabia tocar samba... (risos)... e até bem pouco tempo também
... (risos). (MIS, 1985).

Considera-se importante o seguinte relato de Radamés para se compreender como ele


acabou aprendendo a tocar ou acompanhar o samba ao piano com o swing característico:
Sabendo que aqueles pianeiros todos iam pra lá e ficavam tocando uns para os
outros, eu sentava ali e ficava só escutando. Absolutamente impressionado. Afinal
eu nunca tinha visto tocar piano daquele jeito. [...] Além do que, eles tocavam com a
mão esquerda bem trabalhada porque não tinham o contrabaixo para ajudar. [...] Os
pianeiros davam aquele molho no ritmo, mesmo sem o auxílio do contrabaixo ou da
bateria. Eu ficava ali do lado observando e aprendendo... Só ouvindo...
Interiorizando que era assim que se tocava no piano a MPB da época. Naquele
tempo em São Paulo não sabiam tocar. Assim como nós do Rio Grande do Sul.
Sabia-se tocar tango, mas samba era só no Rio (MIS, 1985).

Radamés ainda aponta quem eram os pianeiros que encontrava no centro do Rio e cita
os nomes dos frequentadores da Casa Vieira Machado.
A casa Vieira Machado tinha várias funções. Vendia pianos e, além disso, tinha
salas para os professores alugarem e darem aulas. Também funcionava como editora
de partituras populares (Casa Vieira Machado & CIA.) e ponto de encontro de
pianeiros que ali se juntavam procurando trabalhos. Ficavam ali diariamente,
praticamente todos da cidade: Nonô, Costinha, Bequinho, Osvaldo Cardoso de
Menezes (pai da Carolina de Menezes), entre outros. Naquele tempo, os bailes de
pequena sociedade eram feitos com piano. Só com piano. As pessoas interessadas
podiam telefonar para lá e contratar quem elas queriam. Simples. (MIS 1985).

A maioria dos pianeiros não lia bem partituras e também não costumava escrever suas
próprias composições ou arranjos das músicas que tocavam, salvo raras exceções. A
insatisfação com as partituras era unânime entre os compositores e pianeiros, sobretudo de
samba. Conhecendo essa insatisfação, Radamés, depois de aprender as peculiaridades das
execuções, iria resolver essa carência, passando a ser um dos arranjadores mais procurados
pelos pianeiros. Com o depoimento de Radamés, podemos entender como começou a sua
fama de arranjador.
Eu ficava batendo papo com os pianeiros e percebia que eles se queixavam muito
das edições que os arranjadores faziam de suas composições. A melodia em geral
era escrita corretamente, mas o problema eram os baixos e principalmente o ritmo.
Os arranjadores escreviam totalmente diferente do que os pianeiros tocavam. Eu
lembro que um dia o Costinha me pediu para tocar uma música dele que tinha sido
escrita. Eu toquei o que estava na parte. Então, bem decepcionado, ele falou: “Pô...
Mas não é nada disso que eu escrevi...” Aí eu propus: Costinha, da próxima vez que
você fizer outra música você me fala que eu escrevo. [...] Certo dia, ele chegou com
uma música e me pediu pra escrever. Eu fui escrevendo tudo que ele estava tocando.
58

Quando acabei de escrever, toquei pra ele o que estava na parte e ele ficou muito
contente e disse: “Finalmente! É isso aí... Tá certo!”... E daquele dia em diante,
começaram a fazer o meu cartaz como arranjador (MIS, 1985).

A casa de música Carlos Wehrs, situada no nº. 47 da Rua da Carioca, também era
ponto de encontro de pianeiros (Figura 22, Anexo G). Tocava lá o pianista José Francisco de
Freitas (1898-1956), conhecido também como Freitinhas, autor de cerca de 300 músicas entre
valsas, marchas, ragtimes, toadas, canções, maxixes e sambas. Era comum encontrar também
o compositor Ernesto Nazareth tocando ali. Radamés sempre que podia ia ouvir Nazareth e,
com o passar do tempo, tornou-se cada vez mais exigente em relação à interpretação da
música desse compositor, conforme suas palavras apontam no depoimento cedido ao MIS
(1985): “Eu acho que não tocam hoje o Nazareth como se deve, porque pensam que Nazareth
era um pianeiro, quando era um pianista. Não tocava nada staccato. Tocava, mesmo, como se
estivesse tocando Chopin, usava o pedal, era um pianista muito bom”.
Radamés foi, aos poucos, passando a ser conhecido como o arranjador que escrevia o
que realmente os pianeiros tocavam e essa fama foi abrindo mercado de trabalho para ele.
Além disso, Radamés aprendeu a tocar o samba no piano e a sua mão esquerda era capaz de
pontuar qualquer melodia com o procedimento usado pelos pianeiros, só que com a
sonoridade muito mais apurada devido à sua formação pianística. Por causa de sua reputação
ao lado dos músicos populares, Radamés começou a colaborar como pianista para as rádios
Transmissora e Mayrink Veiga.

1.7.1 Tradição dos Pianeiros no Rio de Janeiro

É interessante constatar que o pianeiro é uma categoria de instrumentista que era


tratada de forma depreciativa e, só recentemente, começou a ser considerada como objeto de
estudos acadêmicos.
Sabe-se que a introdução do instrumento piano no Brasil deu-se na metade do século
XIX pelas mãos da nobreza. Apenas a elite do Primeiro e Segundo Reinado tinha acesso à
aquisição de um piano.
Até 1950, apenas poucas famílias possuíam um piano em casa, fato que lhes conferia
conotação de nobreza, poder, cultura e “berço”. Devido à ascensão social das camadas médias
dos grandes centros urbanos (notadamente Pernambuco, Bahia, Rio de Janeiro e Minas
Gerais), o instrumento passou a ser adquirido mais democraticamente.
59

Do momento em que a riqueza da cultura do café no Vale do Paraíba proporcionou a


multiplicação dos salões da Corte do Rio de Janeiro, houve também um incentivo à
importação do caro instrumento, fazendo surgir o comércio de pianos usados; a expansão de
suas áreas de uso (pianoforte); e o aparecimento de um novo artista do povo, o tocador de
piano — possuidor de pouca teoria e muito balanço, que para distinguir dos pianistas de
escola se convencionou chamar de pianeiro.
O livro de José Ramos Tinhorão (2005), Os Sons que vem das Ruas, no capítulo
dedicado aos pianeiros, conta um pouco desses músicos e os agrupa em quatro ou cinco
gerações. O autor conta que após a facilitação da compra do instrumento pelos profissionais
30
liberais e comerciantes, o Rio de Janeiro passou a ser apelidado de “a cidade dos pianos”
(TINHORÃO, 2005, p. 196). Para a música popular significou a incorporação do instrumento
piano aos conjuntos musicais já existentes e formados, geralmente, por flauta, violão e
cavaquinho. Consequentemente, pode-se dizer que se inicia a história do pianeiro no Brasil.
Os dois mais conhecidos pianeiros que ficaram na história por terem sido
compositores importantes da música popular foram Chiquinha Gonzaga (1847-1935) e
Ernesto Nazareth (1863-1934). Chiquinha, nascida na metade do século XIX, cujo pai era
Marechal prestigiado no Império, estudou piano quando o instrumento ainda era privilégio de
pouquíssimas famílias. Ernesto Nazareth, dezesseis anos mais novo do que Chiquinha, era
filho de um funcionário público e de mãe pianista. Sabe-se que Nazareth estudou piano com
Charles Lucien Lambert, afamado professor de piano de Nova Orleans radicado no Rio de
Janeiro e amigo do compositor Louis Moreau Gottschalk. Tanto Nazareth quanto Chiquinha
tiveram formação musical destinada à elite, ou seja, o aprendizado do piano era clássico à
base de repertório romântico, seguindo o estilo dos mestres europeus. Esses dois pianeiros de
renome fazem parte da primeira geração que, embora tenha escrito música dançante, entre
valsas, polcas, tangos brasileiros, maxixes e choros, sua técnica e bom acabamento denunciam
as aspirações eruditas.
A partir dos últimos anos do século XIX, surgiu a segunda geração de pianeiros, todos
eles de formação autodidata, desligados da boa técnica pianística e autores ligados à música
dos choros. Segundo Tinhorão, o musicólogo Brasílio Itiberê se referia a eles como
responsáveis pela “zoeira de arpejos, trinados e trêmulos em estertor” (ITIBERÊ apud

30
O apelido “cidade dos pianos” foi dado ao Rio de Janeiro por Araújo Porto-Alegre, barão de Santo Ângelo
(1806-1879), político e jornalista (fundador de várias Revistas, entre elas a Revista Guanabara, divulgadora do
gênero literário romântico e Lanterna Mágica, publicação de humor político). Foi também um escritor do
romantismo, pintor, caricaturista, arquiteto, crítico e historiador de arte, professor e diplomata brasileiro.
60

TINHORÃO, 2005, p. 197). Na verdade, ao contrário da primeira geração de pianeiros, eles


tinham muito pouco conhecimento de teoria musical e seu compromisso era apenas com o
público dançar e que desejava dar um baile em suas residências, só demandando a eles o
“ritmo dengoso, sapeca, repinicado, conforme exigia a modalidade dançante” (ITIBERÊ apud
TINHORÃO, 2005, p. 198). Dessa geração de pianeiros incluem-se, entre outros, os nomes de
Aurélio Cavalcanti, J. Cristo, Alexandre G. de Almeida (o Xandico), Azevedo Lemos, Chirol,
Chico Porto, Azeredo Pinto, Maneco Leal, Júlio Barbosa, Escobar, Porfírio da Alfândega,
Benedito Monte, e as mulheres dona Naninha e dona Vidinha, entre outras.
A terceira geração de pianeiros, segundo Tinhorão (2005, p. 201), despontou nos
primeiros anos da Grande Guerra (1914-1918) influenciada pela música norte-americana,
pelos ritmos one-step, ragtime e foxtrote. Trabalhavam empregados nas casas de música, nos
clubes recreativos e nas orquestras de salas de espera de cinemas, tendo sido responsáveis
pelo processo final da profissionalização de sua arte. Essa terceira geração de pianeiros
estendeu-se até o aparecimento das orquestras de rádio, das gravadoras e dos clubes de dança.
Incluem-se os nomes de Mário Pena Forte, Eduardo Souto (que além de pianeiro era
proprietário da Casa Carlos Gomes), José Barbosa da Silva (o Sinhô, pioneiro do samba),
Henrique Vogeler, José Francisco de Freitas (o Freitinhas), Ary Barroso, Romualdo Peixoto
(o Nonô), Oswaldo Chaves Ribeiro (o Gadé), entre outros. Em Pernambuco citam-se os
nomes de Tia Amélia, Lourenço da Fonseca Barbosa (o Capiba) e Nelson Ferreira.
A quarta geração de pianeiros apareceu em cena no final da década de 1930 e início da
década de 1940, no auge da Rádio. Alguns destes pianeiros31 eram também maestros,
arranjadores ou componentes de orquestras de estúdio e de dança. Citam-se os nomes de Lírio
Panicalli, Osvaldo Gogliano (o Vadico), Leo Perachi, Gabriel Migliori e Lindolfo Gaya, todos
de origem italiana naturais do estado de São Paulo. Atraídos para a cidade do Rio de Janeiro,
então capital brasileira, eles iriam se juntar aos pianeiros cariocas Custódio Mesquita, Mário
Cabral, Carolina Cardoso de Menezes, Ribamar, Bené Nunes e Dick Farney,
complementando, segundo Tinhorão, a quarta geração (TINHORÃO, 2005, 195-205).
Depois de 1960, a tradição dos pianeiros é interrompida devido à influência do jazz,
dos gêneros musicais modernos e da Bossa Nova. O termo pianeiro (algo pejorativo) foi
substituído por “pianista de música popular” ou “pianista popular”.

31
Pode-se dizer que a maioria desses músicos, a partir da década de 1950, já não seria mais chamada de
pianeiro, mas sim de pianista popular. Na prática o preconceito era o mesmo, afinal até recentemente, o pianista
com intenções de carreira tinha mais responsabilidade de não se misturar com aqueles da música popular.
61

Radamés foi um dos primeiros pianistas de formação erudita e virtuose que percebeu
que o pianismo de Nazareth estava longe de ser o de um pianeiro. Não só isso, ele interagiu
com Nazareth e com os verdadeiros pianeiros de sua época. Radamés intencionalmente
observou e estudou (auralmente) a bossa e o swing desses músicos cariocas. Acabou sendo
beneficiado duplamente, pelo aprendizado do samba ao piano e pelas oportunidades de
trabalho surgidas da sua boa fama de arranjador, divulgada primeiramente entre os pianeiros.

1.8 O casamento e a nova vida — “operário da música”: pseudônimo Vero

Finalmente, melhorando a situação financeira devido às oportunidades crescentes de


trabalho, em 1932 Radamés se casou com Vera Maria Bieri com quem teria dois filhos e
viveria por 33 anos, até o ano do falecimento dela em 1965.
Radamés já havia aprendido que a música de concerto não lhe daria o sustento e o
conforto que buscava para sua nova família. Então, em 1932, já casado com Vera Bieri e com
a vida mais tranquila, Radamés foi se dedicando cada vez mais à música popular e,
paralelamente, à composição erudita. Entretanto, no ano de seu casamento, ainda aceitou solar
o Concerto nº 1 para Piano e Orquestra de Tchaikovsky no Theatro Municipal sob a regência
do maestro Francisco Braga. Foi seu último concerto como pianista clássico. A partir dali, na
música de concerto se tornaria não mais o pianista concertista, mas sim o compositor
Radamés Gnattali.
Nesse mesmo ano de 1932, viu sua peça ser tocada por outro músico clássico — a
pianista Dora Bevilacqua — que interpretou em recital sua Rapsódia Brasileira, obtendo
crítica favorável. A apresentação da peça mereceu referência a Radamés do musicólogo Luiz
Heitor (1905-1992) pela inclusão da peça no programa (BARBOSA; DEVOS, 1985, p. 31).
Como compositor, também em 1932, atuou no teatro de revista escrevendo a música de duas
operetas populares: a opereta Marquesa de Santos, com libreto de Luís Peixoto e Batista
Júnior — na qual conduziu a orquestra na estreia no mesmo ano; e a opereta Os Sertões, em
parceria com o compositor e poeta Jaime Ovale (1894-1955).
Radamés, convencido a deixar de lado a carreira de concertista, dedicou-se (na vida
social) a fazer amizades duradouras com aqueles que de forma direta ou indireta viviam das
62

artes, da literatura e da música de seu tempo, tais como Portinari32, Murilo Mendes33, Manoel
Bandeira34 e Jorge Lima35, entre outros.
O casal Vera e Radamés fez amizade com o pintor Candido Portinari (1903-1962).
Eram vizinhos no bairro das Laranjeiras e tinham em comum, além do fato de serem filhos de
imigrantes italianos, a afinidade de sentirem-se operários da arte, o gosto pela música e a
época de jovens com dificuldades financeiras e ainda o quase anonimato. Na entrevista ao
MIS, ele conta:
Aquele era o tempo do aperto. Todo mundo sem dinheiro, eu, os músicos, conheci
na casa do Portinari o Murilo Mendes [...] Manoel Bandeira, Jorge de Lima, todos
modernistas. A gente se reunia na casa do Portinari em Laranjeiras. [...] O Portinari
ficava pintando o tempo todo e a gente batendo papo. Nós morávamos em
Laranjeiras e a minha mulher Vera dava aulas de piano para a irmã de Portinari.
Naquele tempo eu não tinha emprego fixo e Portinari também não. Ele não
conseguia vender nenhum quadro, estávamos todos num miserê danado [risos]. Nós
ficamos muito amigos mesmo (MIS, 1985).

Radamés não ligava para política, tampouco ligava para politicagens do meio artístico.
Ele se interessava apenas em boa música. Ouvia as inovações musicais que estavam
constantemente acontecendo e sempre procurava aprender algo que pudesse se encaixar nos
seus arranjos e composições, não fazendo distinção entre música de concerto e música de
consumo, afinal sempre primava pela qualidade antes de tudo.
As experiências narradas pelo próprio Radamés corroboram para mostrar que ele era
um homem de gosto musical contemporâneo ao seu tempo: “Eu escutava muita música de
jazz. Arranjos de Benny Goodman e outros discos de jazz. Ficava aprendendo como usar os
saxofones. De tanto ouvir, acabava aprendendo” (MIS, 1985).
Em 1932, Radamés tocava nas orquestras de Romeu Silva, de Simon Bountman, assim
como nas rádios Transmissora e Mayrink Veiga, em operetas e em gravações de discos. Aos
poucos ele sedimentava e incorporava os novos swings ao seu virtuosismo.

32
Cândido Portinari (Brodowsky, SP, 29/01/1903 – RJ, 06/02/1962) um dos maiores pintores brasileiros, filho
de imigrantes italianos, membro do partido comunista, se candidatou ao senado em 1947.
33
Murilo Mendes (Juiz de Fora, MG, 13/05/1901 – Lisboa, Portugal, 13/08/1975) exponente poeta do
Modernismo no Brasil.
34
Manuel Carneiro de Sousa Bandeira Filho (Recife, 19/04/l886 — Rio de Janeiro, 13/10/1968), poeta, crítico
literário e de arte, professor de literatura e tradutor brasileiro, fez parte da geração de 1922 da literatura moderna
brasileira, sendo seu poema Os Sapos o abre-alas da Semana de Arte Moderna de 1922.
35
Jorge Mateus de Lima (União dos Palmares, 23/04/l893 — Rio de Janeiro, 15/11/1953) político, médico,
poeta, romancista, biógrafo, ensaísta, tradutor e pintor brasileiro.
63

Sobre a sua experiência como pianista na Orquestra de Romeu Silva36 (Figura 24,
Anexo G), Radamés contava “Eu trabalhei muito com o Romeu Silva e isso também me
ajudou musicalmente” (MIS, 1985). Romeu Silva foi saxofonista, compositor e famoso líder
de bandas, que criou, por exemplo, a Jazz Band Sul-Americana, uma orquestra que tocava nos
principais clubes da cidade como o Country Club, Fluminense, América, Botafogo, Jóquei
Clube, Tijuca e Guanabara. Radamés aprendeu muito com essa experiência.
As primeiras experiências de Radamés como profissional no Rio de janeiro
corroboraram para aquisição de seu swing: “Eu passei a tocar piano em tudo que era canto:
orquestra de salão, orquestra de tango argentino, orquestra de música americana, e ainda
acompanhava os cantores de orelhada” (MIS, 1985). Em seu depoimento, ele fala do
preconceito que existia na época diante da versatilidade de um músico erudito tocar e compor
para música popular e, por essa razão, da necessidade de se ter um pseudônimo. Radamés
desejava continuar compondo para música de concerto, então passou a utilizar o pseudônimo
Vero, masculino de Vera — nome de sua mulher, para evitar o desagravo dos puristas que não
aceitavam, naquela época, um músico erudito trabalhar com música popular e conta: “O Vero
fui eu mesmo. Minha primeira mulher (que faleceu) chamava-se Vera. Quando comecei a
fazer arranjos para a RCA Victor, não ficava bem o compositor de música sinfônica — erudita
— fazer música popular. Aí arranjei esse nome. Ficou Vero” (MIS 1985).

1.9 O Trabalho nas Rádios

O trabalho de mais de trinta anos nas rádios renderam a Radamés notoriedade


inimaginável para ele próprio. Esse trabalho também lhe permitiu o aprofundamento na
técnica de composição e arranjo; na versatilidade do seu swing e na inspiração para a
composição de diversas obras de concerto, além das peças populares.
Radamés, que desde a primeira vez que esteve no Rio de Janeiro, em 1924, conhecera
de passagem a Rádio Clube do Brasil (uma das primeiras rádios do país, cujo estúdio ficava
no Largo do Machado) não só viveria a ascensão deste meio de comunicação de massa, como

36
Romeu Silva (1893–1958) levou sua orquestra para a Europa, tocando em diversas cidades de Portugal e
Espanha. Na França se apresentaram na Maison Lafite do Barão de Rothschild e no Château Ramboillet (a
residência de Verão do presidente). Silva integrou o grupo The Baker Boys, que acompanhava as excursões da
cantora Josephine Baker em toda Europa.
64

trabalharia em todas as rádios do Rio de Janeiro, até chegar ao auge — a “época de ouro” —
da Rádio Nacional.
Radamés foi responsável por muitos programas de grande audiência e talvez não
imaginasse que seria um dia considerado um dos maiores arranjadores do Brasil, cuja música
conquistava a audiência naquela que se tornaria a mais conhecida emissora radiofônica da
América do sul — a Rádio Nacional.
A Rádio Clube do Brasil, em 1930, foi a primeira a contratar os serviços de pianista de
Radamés, que começou a tocar profissionalmente nessa rádio como músico da orquestra. Em
seguida, foi trabalhar para a Rádio Mayrink Veiga (Figura 25, Anexo G), que, segundo ele,
pagava muito mal. Depois, trabalhou para a Rádio Cajuti, que funcionou apenas durante
alguns meses. A Rádio Transmissora, que pertencia à Gravadora Victor Talking Machine Co.
of Brazil, foi a emissora radiofônica que primeiramente deu notoriedade a Radamés, pois
divulgava os arranjos e músicas de sucesso da gravadora a qual pertencia.
A Rádio Nacional, criada em 1936 pelo governo de Getúlio Vargas, desde o início foi
a emissora de maior qualidade e que alcançou prestígio internacional. Radamés, devido à sua
reputação pelo trabalho bem sucedido nas outras rádios, foi um dos primeiros músicos a ser
contratado. Permaneceu na Rádio Nacional aproximadamente trinta anos, trabalhando como
pianista, camerista, maestro, compositor e arranjador.
Radamés conta na entrevista ao Museu da Imagem e do Som alguns detalhes do
trabalho na Rádio Mayrink Veiga que lhe foram positivos para sua reputação.
Minha primeira participação na rádio foi na Mayrink Veiga [...] Toquei lá muito
tempo. Na rádio Mayrink Veiga, eu tocava tudo e de tudo. Eu tocava piano de
partitura, de orelha, concertos clássicos, foxtrotes, até violino. Trabalhava muito. Na
Mayrink Veiga eu tocava popular e erudito. Ganhava mal. Eu tocava piano em todas
as orquestras da rádio e ainda acompanhava os cantores que iam lá. O violonista
recém-contratado ganhava mais do que eu. Aí eu fui embora. Quando saí, tiveram
que contratar quatro pianistas. O César Ladeira mandou a orquestra toda me chamar
lá em casa e perguntar quanto eu queria para voltar. Eu não queria nada, não. Você
fica com a tua rádio, que eu não quero mais (MIS, 1985).

Entre 1927 e 1939, o rádio foi tratado e considerado como sendo um complemento da
imprensa escrita. A partir de 1939, com o início da Segunda Guerra, ele se tornou veículo
fundamental para difundir notícias da guerra e os fatos do dia a dia. Os ouvintes eram tanto a
elite quanto a classe não alfabetizada. O radiojornalismo, como o Repórter Esso, foi um
marco, pois surgiu alcançando toda a população, ignorando condição social.
Radamés entrou para a Rádio Nacional em 1936 (Figura 26, Anexo G). Nessa época,
aos trinta anos de idade, ele compôs peças eruditas, como o Concerto para piano e orquestra
nº 1; a Fantasia Brasileira para Piano e Orquestra; a Sonata para Violoncelo e piano; o
65

Quarteto de Cordas nº1.


As obras desse período foram francamente influenciadas pelo folclore nacional, mas
também, outras, pela música de Jazz, o que lhe valeu algumas críticas de puristas da música
clássica nacional. Existia uma razão para as obras de Radamés soarem um pouco jazzísticas.
Era um tipo de música muito em voga na época e Radamés sempre trabalhou, como ele
mesmo dizia, como operário da música: “[...] Pra mim é como no tempo de Haydn. Ele não
tem cem, duzentas sinfonias? Isso é trabalho [...]. Música pra mim é trabalho, não
divertimento. Aliás, pode ser também um divertimento” (DIDIER, 1996, p. 70).
Radamés, na entrevista ao MIS, conta como começou a produzir muitos arranjos e
composições clássicas para a formação de trio, primeiramente para violino, violoncelo e
piano. Esse trio contava com o violino de Romeu Ghipsman, o violoncelo de Iberê Gomes
Grosso e o piano de Radamés (Figura 27, Anexo G). A seguir um trecho da entrevista:
Na Rádio Nacional, por exemplo, tinha uma orquestra de jazz, tinha uma orquestra
de tango e eu era o pianista. No início cordas e flautas, para tocar trechos de
operetas, árias de óperas. Já vinha tudo impresso, tudo de fora. [...] eu comecei a
fazer pequenos arranjos para trio - eu no piano, o Iberê [Iberê Gomes Grosso] no
violoncelo e o Romeu Ghipsman no violino. Eu comecei a fazer pequenas peças,
como toada, choro, valsa. Porque naquele tempo, como não tinha um roteiro, e não
podia haver um buraco na programação, eu tocava alguma música para tapar esse
buraco. Então comecei a escrever os trios. Depois os cantores começaram a gostar e
pediram para eu fazer os arranjos (MIS, 1985).

Flor da Noite (1938) foi originariamente composta para violino e piano e dedicada ao
amigo Romeo Ghipsman.37 No mesmo ano que a compôs, o próprio autor a transcreveu para
violoncelo, dedicando essa nova versão ao parceiro musical Iberê Gomes Grosso, para ser
executada pelo Duo.
Em 1941, o programa intitulado Instantâneos sonoros do Brasil passou a ser
apresentado na Argentina no programa Hora do Brasil. Radamés foi convidado a ordenar, em
Buenos Aires, uma orquestra com as mesmas características daquela organizada por ele na
Rádio Nacional. Na ocasião foi homenageado com alguns concertos como os da Associação
Sinfônica de Rosário (Figura 28, Anexo G) e o do Instituto Argentino de Cultura Integral, de
Buenos Aires. Nesse mesmo ano, recebeu o Prêmio Roquete Pinto por seu trabalho na rádio
brasileira. Sobre esse episódio, Radamés disse:

37
A grafia do nome de Romeo nesse caso está de acordo com a dedicatória de Gnattali, que escreveu o nome do
amigo com “i”. No catálogo digital Radamés Gnattali, o nome é grafado com “y” Ghypsman.
66

Não podia acreditar que aquilo estivesse acontecendo. Achava que ninguém me
conhecia fora do Brasil. Estava enganado!, comentaria Radamés, anos mais tarde,
sobre a recepção dos artistas locais quando da sua chegada à Argentina, em março
de 1941. Radamés fora convidado a participar do programa Hora do Brasil, da Rádio
Municipal de Buenos Aires, em cadeia com a Rádio Nacional de Montevidéu. Ele e
a família permaneceram quase um semestre na capital portenha. Durante esse tempo,
sua música de concerto foi sempre acolhida com entusiasmo pela imprensa e
músicos argentinos (GNATTALI, Roberto, 2006).

1.10 Fama de americanizado — caminhos para sedimentação de seu swing

A fama de americanizado começa a pairar sobre suas composições, tanto clássicas


quanto populares. Entretanto, isso não desagradava nem ao mercado nem a muitos críticos,
que vislumbravam, nessa característica, um ganho para a música nacional, seja popular seja
erudita. José Carlo Burle, jornalista e locutor da Rádio Nacional, por exemplo, compara
Radamés a Gershwin, chamando-o de Gershwin brasileiro ao declarar:
A Radamés devemos o alicerce da renovação e valorização da nossa música popular,
tornando-a compatível com a nossa cultura e colocando-a lado a lado com a dos
países civilizados do mundo. [...] música popular brasileira, selecionada com
arranjos orquestrais modernos e bem feitos. Eis a única maneira de se levantar o
nível da cultura musical do nosso povo e de se poder fazer alguma coisa de utilidade
real, no assunto, pelo nosso país. [...] Talento insofismável de RG. [...] Se eu
quisesse fazer um elogio póstumo a Gershwin, não vacilaria na comparação
chamando-o de Gershwin brasileiro (BURLE apud BARBOSA; DEVOS, 1985, p.
44).

Ao mesmo tempo, algumas críticas eram bastante ambíguas, como a de Andrade


Muricy que em seu livro Caminho da música escreveu sobre influências do jazz na música
brasileira, no qual comentou a Fantasia Brasileira de Radamés Gnattali, ressaltando que a
obra “destinava-se à vulgarização mundial de elementos da música brasileira” (MURICY
apud BARBOSA; DEVOS, 1985, p. 41-42) e que se deveria compreender a intenção do
compositor, afinal, a instrumentação de jazz facilitava a difusão e aceitação da música.
Depois, Muricy aprecia em Radamés “o seu sacrifício à conveniência da propaganda”, como
podemos ver no extrato a seguir:
Essa Fantasia Brasileira de Radamés Gnattali está cheia de jazz e, entretanto, não
podemos condená-la por isso. A obra destina-se à vulgarização mundial de
elementos da música brasileira. A sua instrumentação para jazz facilita a difusão, a
sua aceitação é mais segura [...] É feita essa observação apenas para que seja melhor
compreendida a intenção do autor, e seu sacrifício à conveniência da propaganda.
RG sabe como poucos, usar do nosso ambiente instrumental próprio, como vimos
recentemente, quando fez gravar em disco um saboroso “choro”, de inteira
propriedade de timbres e de dinâmica expressional. Após uma introdução
francamente jazz, os temas brasileiros esfuziam com acerto e vivacidade, nos
violinos, nas flautas, numa atuação complexa de metais e madeiras, sustidos por
uma parte de piano, escrita como poucos, muito poucos, no Brasil podem fazer. RG
67

é um pianista nato de técnica rica e fácil, invulgarmente seguro e brilhante, no jogo


das oitavas, o que bem transparece na sua escrita pianística. Todo o episódio de
oitava e acordes é magnífico (MURICY apud BARBOSA; DEVOS, 1985, p. 44).

Radamés começou a inovar nas orquestrações da Rádio Nacional ao colocar o ritmo


na orquestra. A ideia, dada pelo baterista Luciano Perrone, foi posta em prática pela primeira
vez na audição da música Ritmo de samba na cidade, de Luciano Perrone. A Orquestração
com uma inédita utilização dos ritmos brasileiros divididos entre os instrumentos de cordas e
com tratamentos melódicos no ritmo, essa forma musical inédita era anunciada como “o mais
lindo presente de Ano Novo da Nacional aos seus ouvintes.” (BARBOSA; DEVOS, 1985, p.
45).
Criou a Orquestra Brasileira de Radamés Gnattali em 1941. Esta orquestra tocava
sucessos estrangeiros com arranjos em que ele usava os naipes da orquestra de forma
percussiva, além de instrumentação brasileira conseguindo efeitos até então inéditos.
Apresentavam-se no programa intitulado Um Milhão de Melodias da Rádio Nacional, que era
uma espécie de parada musical com composições de várias partes do mundo.
Devido ao sucesso do programa, Radamés fazia nove arranjos por semana que eram
tocados por sua orquestra. Um Milhão de Melodias ficou treze anos no ar. Radamés, com esse
conjunto, revolucionou a orquestração tornando-a mais brasileira, substituindo a base de jazz
americano que até então prevalecia (com piano, baixo, bateria e guitarra), pela utilização de
dois violões, com Garoto e Bola Sete; cavaquinho, com Zé Menezes; bateria e percussão, com
Luciano Perrone; contrabaixo com Vidal; pandeiro com João da Bahiana; caixeta e prato com
faca com Heitor dos Prazeres; e o ganzá, com Bide. O programa foi também o primeiro a
prestar homenagens a compositores como Ernesto Nazareth, Chiquinha Gonzaga e Zequinha
de Abreu.
O trabalho de Radamés como arranjador e orquestrador de música popular foi
facilitado pelo desenvolvimento dos meios de comunicação e o acesso às diversas formas de
entretenimento de massa. Em contrapartida, sua vivência e experiência mediadora das culturas
popular e clássica, bem como da cultura nacional e americana, lhe imputou a polêmica fama
de americanizado. Vista com satisfação por uns e desagrado por outros, o fato é que Radamés
influenciou gerações. Em suas palavras, ele mostra a sua afinidade com o swing brasileiro:
Para fazer uma boa orquestra de música brasileira, precisamos ter também uma boa
base. Dois violões, cavaquinho, às vezes três cavaquinhos, conforme o arranjo que
eu queria. Eu tinha uma bateria espetacular, que era o Luciano (Luciano Perrone); o
João da Baiana, no pandeiro. O Heitor dos Prazeres, que tocava caixeta, prato e faca
e o Bide [Alcebíades Barcelos], que tocava ganzá. Era uma massa muito boa. [...]
Eu trabalhava todo dia na Rádio Nacional. Ensaiava duas horas por noite para fazer
o que eu quisesse. [...] Fazia nove arranjos por semana para o programa Um Milhão
68

de Melodias. Quem escolhia as músicas era o Paulo Tapajós e o Haroldo Barbosa,


que era o discotecário da rádio e estava por dentro de todas as músicas de sucesso,
do mundo inteiro (MIS, 1985).

“Enquanto atuou na rádio não deixou de lado as carreiras de pianista, concertista e


compositor. Compôs concertos e peças sinfônicas que foram executadas ao redor do mundo”
(ALBIN, 2001). Radamés chegou ao final da década de 1930 como principal maestro da
Rádio Nacional, dividindo a fama de maior arranjador do Brasil ao lado de Pixinguinha
(DIDIER, 1996, p. 21). Pode-se dizer que Radamés, a partir daí, somente vai amadurecer o
virtuosismo e o swing já alcançados.

1.11 O Trabalho de Radamés nas Gravadoras

Paralelamente ao seu trabalho nas rádios, Radamés teve intensa atuação no mercado
fonográfico. Destacou-se como arranjador da maior parte dos LPs dos cantores famosos das
décadas de 1930 e 1940, teve sua própria orquestra e pôde, como poucos compositores
clássicos brasileiros, ter a oportunidade de registrar em LPs algumas de suas obras.
De 1932 a 1965, Radamés participou de gravações atuando como pianista e arranjador
em LPs de cantores famosos. Foi contratado em 1932 pela gravadora Victor Talking Machine
Co. of Brazil, primeiramente apenas como pianista das orquestras Típica Victor e Guarda
Velha. Logo em seguida também começou a colaborar como arranjador e orquestrador. Com
abordagens criativas, Radamés fugiu à tendência muito comum nos arranjos da década de
1920 até meados da década de 1930, inspirados no estilo Ragtime — no qual se usavam as
instrumentações somente com sopros, por exemplo as orquestrações e arranjos feitos por
Pixinguinha (Figura 29, Anexo G). Entre as principais mudanças ou inovações encontradas
nos arranjos de Radamés, destaca-se a introdução de riffs — do inglês refrain, refrão: neste
caso, uma célula melódica, harmônica ou rítmica curta de até quatro compassos, que
caracteriza a música, como em Carinhoso, Baixa do Sapateiro, New York New York e
centenas de outras (DIDIER, 1996, p. 18).
Outras inovações foram: a divisão dos solos das músicas entre os diversos naipes da
orquestra; a harmonização de cada nota da melodia; a combinação dos instrumentos de
maneira surpreendente (inspirado na música de Ravel); a organização dos improvisos —
como já se fazia há tempos com as orquestras de jazz nos Estados Unidos e que Radamés
costumava ouvir e apreciar.
69

Assim como Radamés, o cantor Orlando Silva também tinha sido contratado pela
Victor em 1932. Atento às inovações que começavam a ser feitas nos arranjos das canções,
como a utilização das cordas na música Vidro Vazio, gravada pelo cantor Silvio Caldas
acompanhado da Orquestra Victor (julho de 1932), Orlando Silva, ao ouvir, logo solicitou à
gravadora que os arranjos de seu próximo disco fossem feitos por Radamés Gnattali. Foi o
início, então, de uma das parcerias de maior sucesso de vendas da Victor. A dupla Orlando
Silva-Radamés, em seu segundo disco, vendeu trinta vezes mais do que a média da época.
Enquanto Orlando Silva cantava com a voz que o tornou conhecido como “o cantor das
multidões”, Radamés foi para a história como um dos maiores arranjadores da música popular
brasileira (DIDIER, 1996, p. 19).
Radamés prosseguiu na carreira musical como compositor e intérprete aberto ao
swing. Em 1933, ele gravou pela primeira vez suas próprias composições, ainda na
discografia de 78 rotações da Victor. As peças escolhidas foram seus choros: Espritado e
Urbano. Como se tratava de música popular, Radamés optou em assinar o pseudônimo Vero.
No mesmo ano, passou a ser regente e arranjador da Victor, que já contava em seu staff de
arranjadores com os talentos de Pixinguinha, Luís Americano, entre outros. Assim que foi
contratado como arranjador, formou a Orquestra Típica Victor e, em seguida, gravou suas
valsas: Vibrações d'alma e Saudosa. Faziam parte dessa orquestra, além dele ao piano, os
músicos: Romeu Ghipsman, Célio Nogueira, Jaime Marchevsky — violinos; Luiz Americano
— sax alto e clarineta; Dante Santoro — flauta; Oswaldo Alves — baixo; Bonfiglio de
Oliveira — trompete; Luperce Miranda — bandolim; e Luciano Perrone — bateria,
vibrafones e sinos. A partir desse disco, Radamés registrou a cada ano duas a três peças
populares de sua autoria, sempre utilizando o pseudônimo Vero, ou simplesmente utilizando o
nome do conjunto: Orquestra Típica Victor ou Orquestra Brasileira Victor (ALBIN, 2001).
Pouco tempo depois de ser contratado pela Victor, Radamés passou a trabalhar
também para as gravadoras Odeon e Columbia-Continental. Paralelamente à sua produção na
música popular, Radamés, na década de 1930, aumentou sua produção erudita, compondo
concertos para piano e orquestra; trios (violino, violoncelo e piano); quartetos; sonatas para
diversos instrumentos; fantasias; a peça Flor da Noite; entre outras.
Em 1934, Radamés apresentou-se em tournée no sul do Brasil acompanhando ao
piano a cantora lírica Bidu Sayão (1902-1999) em concerto realizado no Theatro São Pedro,
em Porto Alegre, no qual na programação foi apresentado o Trio nº 1 para violino, violoncelo
e piano de Radamés. Os músicos que participaram do último concerto da cantora no Brasil
70

foram, além de Radamés, o violinista Carlos Baroni e o violoncelista Nelson Cintra


(BARBOSA; DEVOS, 1985, p. 36). No mesmo ano, Radamés registrou na Gravadora Odeon
seu choro Serenata do Joá e sua valsa Vilma, com solos de Luiz Americano (1900-1960) —
clarinetista, saxofonista e compositor.
Em 1935, pela Orquestra Típica Victor, suas seguintes composições foram gravadas:
Berenice (valsa), Estilo de vida (polca-choro), Tristonho, Saudoso e Dengoso (choros). Em
1936 gravou, novamente com a Orquestra Típica Victor, três valsas e um choro de sua
autoria, respectivamente: Às duas da manhã, Primavera de amor, Zeli e Amoroso. Em 1937,
gravou seus choros Recordando e Cabuloso na Gravadora Victor (ALBIN, 2001).
Os anos de 1939 e 1940 foram marcantes na vida profissional de Radamés por três
acontecimentos importantes relacionados a suas gravações: o primeiro foi a gravação com a
Orquestra Odeon de seu choro Alma brasileira e de seu samba batucada Eu hei de ver você
chorar; o segundo foi a viagem aos Estados Unidos, patrocinada pelo governo brasileiro que
escolheu a obra Fantasia Brasileira para registro fonográfico e Radamés como um dos
representantes da música brasileira na Feira Mundial de Nova York de 1939.38
Entre seus contemporâneos estavam: Francisco Mignone, Lorenzo Fernandez, Villa-
Lobos, Camargo Guarnieri. De cada um foi gravada, em disco, uma obra que serviria para
ilustrar os filmes sobre o Brasil. Mário de Andrade nessa ocasião já chamava atenção sobre a
falta de registros da música de concerto no país e saudava a iniciativa de documentarem-se as
obras escolhidas com registos fonográficos. Bastante crítico e defensor da “brasilidade”,
Mário de Andrade escreveu, sobre a obra Fantasia Brasileira apresentada por Radamés, as
seguintes palavras: “É certo que jazzifíca um pouco demais para o meu gosto defensivamente
nacional, mas apesar de sua mocidade, já domina a orquestra como raros entre nós. É a nossa
maior promessa no momento” (ANDRADE apud BARBOSA; DEVOS, 1985, p. 48).
O terceiro fato marcante, ainda no mesmo ano de 1939, foi o registro fonográfico que
notabilizou sua carreira de maestro-arranjador. Radamés, após a apresentação do samba-
exaltação Aquarela do Brasil de Ary Barroso (1903-1962) durante o espetáculo Joujoux e
Balangandãs no Teatro Municipal, com a participação das orquestras das rádios Mayrink
Veiga e Nacional regidas por ele mesmo, impactou a audiência ao fazer um arranjo colocando
os metais e as palhetas em destaque. Em 1940, quando Aquarela do Brasil foi gravada por

38
Pavilhão do Brasil na Feira de Nova York de 1939 representa a materialização da arquitetura moderna
brasileira apresentada e reproduzida ao longo da produção arquitetônica das décadas seguintes. Também mostra
um país que procura através do “estado novo” construir uma ideia de nação e de identidade. Um país que
reconhece sua fauna e flora nacionais e sua música — através de seleções de obras nacionais organizadas por
Heitor Villa-Lobos e Francisco Mignone, e que deveriam soar de forma ininterrupta ao longo dos meses da
exposição.
71

Francisco Alves, a nova roupagem instrumental dos arranjos da música popular brasileira
tornou-se conhecida internacionalmente através do samba-exaltação de Ary Barroso. O
tratamento dado à introdução incorporou-se a música de Ary Barroso (Figura 30, Anexo G).
A utilização dos riffs já era marca registrada de Radamés e o sucesso do arranjo consagrou a
nova maneira de orquestrar impingida por Radamés. Em entrevista, ele esclarece que não foi
o autor da introdução, contrariando o que muitos pensavam: “A introdução e a música são de
Ary Barroso. O Ary queria que eu colocasse os riffs nos contrabaixos. Eu disse, deixa comigo.
E coloquei tudo nos metais, destacando aquela ‘bossa’ mais ainda. Não inventei nada. Só fiz
botar os instrumentos no lugar certo” (MIS, 1985).
O arranjo de Aquarela do Brasil rendeu a Radamés o convite de Walt Disney para
trabalhar com ele nos Estados Unidos (início da década de 1940). Como nessa época Radamés
estava muito bem posicionado no mercado brasileiro e a situação política mundial era de
incertezas, pois o mundo preparava-se para uma guerra iminente, ele acabou recusando o
convite (BARBOSA; DEVOS, 1985, p. 52).
A partir da década de 1940, dotado de virtuosismo e swing, pode-se dizer que o
pianista-arranjador era quase onipresente tanto nas gravadoras Victor, Odeon e Columbia-
Continental, quanto na Rádio Nacional, atendendo a quase todos os cantores e compositores
populares que queriam um tratamento musical novo para suas composições e parcerias
(DIDIER, 1996, p. 25).
Apesar de ter ficado ausente do Brasil durante oito meses, a trabalho na Argentina
para organizar a orquestra da Rádio Municipal de Buenos Aires, os arranjos de Radamés não
pararam de ser gravados. Tratando-se de gravações da produção erudita, sua canção clássica
Gaita com letra de Augusto Meyer (1902-1970) foi gravada pela soprano Cristina Maristany
(1906-1966) na Odeon.
De volta ao Brasil (1941), Radamés participou de um projeto como arranjador,
compositor e orquestrador que lhe deu significativo retorno financeiro. O compositor popular
João de Barro, ou Braguinha (1907-2006), que fazia trabalhos de dublagem e de versões
adaptadas das canções dos desenhos de Walt Disney lançados no Brasil, ao assumir a direção
artística da gravadora Columbia-Continental, decidiu criar para o mercado brasileiro uma
série de disquinhos coloridos com histórias infantis, contendo canções de sua autoria. O
projeto lançou setenta disquinhos infantis, a maioria com orquestrações e arranjos feitos por
Radamés Gnattali (ALBIN, 2001).39

39
Alguns arranjos dos disquinhos de Braguinha também foram feitos por Pixinguinha e Guerra-Peixe
72

1.11.1 Radamés e suas gravações até 1964

Nos anos seguintes Radamés, tanto como compositor quanto como pianista,
amadureceu artisticamente, gravou muitas de suas obras, sobretudo as pequenas peças
populares, sempre mantendo o seu virtuosismo impregnado de swing.
Entre 1943 e 1944, pela Continental, Radamés gravou seus choros Assim é Melhor,
Mulata Risoleta, Olhe bem pra mim, Saltitante e Sofisticada, com a participação do Quarteto
de Saxofones Continental e da orquestra Rio Serenaders Orchestra.
Em 1949, Radamés criou o Quarteto Continental, formado por ele ao piano, José
Menezes na guitarra, Vidal no contrabaixo e Luciano Perrone na bateria, e gravou, com o
quarteto, seu samba-canção Fim de tarde e seu choro Remexendo. Gravou também com o
Quarteto Continental e Zé Bodega no sax-tenor o choro Bate Papo e a valsa Caminho da
Saudade.
Entre 1951 e 1953, na gravadora Todamérica, Radamés gravou com o Quinteto
Todamérica o samba-choro Salamaleque e seu choro Na gafieira, ambos em parceria com
Valdemar de Abreu — o Dunga (1907-1991). Com José Menezes, Radamés gravou o mambo
Mambolero e o foxtrote Improviso. Com orquestra, gravou a Fantasia brasileira e o samba-
baião Rapsódia brasileira.
Em 1953, gravou ao piano acompanhado de sua orquestra arranjos que fez para uma
série de oito obras de Ernesto Nazareth (Figura 31, Anexo G) — Expansiva, Tenebroso,
Ameno Resedá, Odeon, Fon-Fon, Apanhei-te Cavaquinho, Confidências, Batuque, e mais
quatro discos contendo o choro Carinhoso, de Pixinguinha e João de Barro; os sambas-canção
No rancho fundo, de Ary Barroso e Lamartine Babo; e Linda flor, de Henrique Vogeler; as
canções Casinha pequenina, de domínio público; Guacira, de Hekel Tavares e Joracy
Camargo; e Luar de Paquetá, de Freire Júnior e Hermes Fontes; o tango Despertar da
montanha e a valsa Nuvens de Eduardo Souto.
Em 1955, Radamés gravou pelo selo Sinter SLP 1037 o Samba em Três Andamentos,
cuja partitura é composta (curiosamente) sem a adição de instrumentos de sopro. A
orquestração tem apenas cordas, piano e percussão. Nessa obra, Radamés sintetiza, talvez pela
primeira vez, a possibilidade de se sofisticar o samba sem alterar a sua essência. O resultado é
o samba delicado e moderno, o mesmo que seduziu Vinícius de Moraes e Antônio Carlos
Jobim. Radamés reservou para essa gravação o direito de apenas tocar o piano; a regência
ficou a cargo de Lyrio Panicalli e a bateria a cargo do mestre da percussão Luciano Perrone.
Esse disco é também um dos raros registros do maestro Radamés Gnattali tocando solo ao
73

piano em todo o lado B. O lado A é ocupado pela suíte-título. Nas cinco peças para piano
solo, Radamés toca à vontade seus choros, valsas, um samba-canção, intitulados: Canhoto,
Porque, Vaidosa, Perfumosa e Noturno. Ainda que despidas do acompanhamento orquestral,
como é o caso de Samba em Três Andamentos, as peças solo espelham o retrato preciso do
que o Maestro vivenciou em termos de swing e de virtuosismo e, por que não dizer, de
história musical do samba (Figura 32, Anexo G).
Em 1956, gravou ao piano o LP intitulado Suíte Popular Brasileira para Violão e
Piano (Figura 33, Anexo G) com Laurindo de Almeida. Nesse disco, Radamés toca em Duo
com o violonista as cinco peças da suíte, todas de sua autoria: Invocação a Xangô, Toada,
Choro, Samba Canção, Baião e Marcha.
Nos anos 1956, 1957 e 1958, Radamés foi escolhido em votação realizada pela equipe
de redatores e repórteres da revista Radiolândia como o melhor arranjador do ano. Em 1958,
no LP intitulado Radamés e a Bossa Eterna (Figura 34, Anexo G), gravou doze obras
populares de sua autoria: Papo de Anjo; Puxa-Puxa; Bolacha queimada; Pé de Moleque;
Zanzando em Copacabana; Gatinhos no Piano; Vou andar por Aí; Cheio de Malícia;
Escrevendo para Você; Seu Ataulfo; Amargura; e De amor em amor, tocando com o
Quarteto Continental, formado por ele, Vidal (baixo), Luciano Perrone (bateria) e Zé
Menezes (violões e guitarra). O disco conta também com a participação especial de Heitor dos
Prazeres na percussão.
Dois concertos de Radamés foram lançados em 1959 pelo selo Festa. O primeiro com
o Concerto Para Harpa e Orquestra, tendo como solista o harpista Gianni Fumagalli
acompanhado da Orquestra Sinfônica Brasileira. O segundo com o Concerto Para Violino e
Orquestra, também com a Orquestra Sinfônica Brasileira, e o violinista Anselmo Zlatopolsky
como solista. Ambas as peças tiveram que ser adaptadas para o curto espaço de tempo do LP
em vinil. Por exemplo, o movimento Allegro Moderato, do Concerto para harpa, foi
adaptado para pouco menos de dez minutos.
Em 1960, ampliou o já existente Quarteto Continental transformando-o em Sexteto
Continental. O sexteto (Figura 35, Anexo G) foi formado por ele e Aída Gnattali ao piano;
Romeu Seibel (1928-1993) – cujo pseudônimo foi Chiquinho do Acordeom; Zé Menezes
(1921) na guitarra; Pedro Vidal Ramos no baixo; e Luciano Perrone na percussão.
Com esse grupo viajou para a Europa integrando a II Caravana Oficial da Música
Popular Brasileira com apresentações em Portugal, nas cidades de Lisboa, Coimbra e Porto,
além de apresentações na França, na Alemanha, na Itália e na Inglaterra. Com o sexteto,
74

lançou o LP intitulado Terceira Caravana – Radamés na Europa com seu sexteto (Figura 36,
Anexo G), gravado com o instrumentista Edu da Gaita. Os arranjos são executados com muito
virtuosismo e swing.
Em 1964, com solos de Jacob do Bandolim, Radamés gravou a Suíte Retratos no LP
intitulado Retratos – Jacob e seu bandolim, Radamés Gnattali e orquestra. Considerada pelos
críticos uma obra prima, essa suíte, em quatro movimentos, apresenta em cada um deles
homenagens aos compositores Pixinguinha, Ernesto Nazareth, Anacleto de Medeiros e
Chiquinha Gonzaga, cujos nomes, respectivamente, intitulam cada movimento, que são
interpretados com virtuosismo e swing pelo bandolinista Jacob e pela orquestra de cordas sob
a regência de Radamés (Figura 37, Anexo G).
O ano de 1964 marcou a volta de Radamés às apresentações como pianista clássico,
após a gravação do LP [s.d.] do selo Festa (LDR 5028) intitulado Villa-Lobos / Radamés
Gnattali com o violoncelista Iberê Gomes Grosso (Figura 1, Anexo G). O Duo viajou em
tournée internacional tocando nas cidades de Berlim, Roma, Jerusalém e Telaviv o repertório
gravado.

1.12 O Lançamento do LP com o Duo Gnattali Gomes Grosso

O LP do Duo Gnattali-Gomes Grosso não contém informação na capa sobre a data de


gravação e lançamento no mercado. Sabe-se que as tournées de divulgação ocorreram em
1964 (vide Figuras 1 e 2, Anexo G) e por esta razão delimitou-se o perfil a esse ano.
Entretanto, é importante ressaltar que segundo o Catálogo Digital Radamés Gnattali
(GNATTALI, Roberto, 2006) o referido LP é do ano de 1959.
Observa-se que Radamés Gnattali estava com aproximadamente 60 anos de idade
quando gravou o referido LP. Vinte e oito anos depois da primeira audição da Sonata nº 1,
apresentada no Concerto Comemorativo do 8º Aniversário de Fundação da Associação dos
Artistas Brasileiros na Escola Nacional de Música em outubro de 1937, com o próprio autor
em Duo com Iberê Gomes Grosso. Esses quase trinta anos tocando juntos pressupõem uma
grande maturidade artística e afinidade musical entre os dois intérpretes.
Pode-se considerar que Radamés, entre os anos de 1959 e 1964, estava em plena
maturidade artística, já tocava há muitos anos em Duo com Iberê e acumulava uma grande
produção e experiência, tanto no campo da música popular quanto na música de concerto.
75

Os estilos musicais e gêneros populares na sua obra de concerto eram uma realidade,
que o fazia ser notado não só como compositor, mas também como intérprete que transitava
na fronteira entre o erudito e o popular, aliando o swing característico de cada estilo ao seu
virtuosismo.

1.12.1 O sucesso do Pregão e Flor da Noite gravada no LP

Radamés Gnattali escreveu Flor da Noite com a melodia, de cunho popular, que versa
“sobre o pregão de uma vendedora de pipocas da Bahia, trazido por Dorival Caymmi”
(GNATTALI, Roberto, 2006). Radamés também passou a utilizar o tema de Flor da Noite em
outras obras, como no Concerto Romântico, no Trio para Violino, Violoncelo e Piano e no
Quarteto para Violino, Viola, Violoncelo e Piano.
Os pregões faziam muito sucesso na década de 1930. Henrique Fóreis Domingues
(1908-1980), conhecido como Almirante (cantor, compositor e um dos mais importantes
radialistas de seu tempo), que trabalhava como locutor e produtor da Rádio Nacional,
responsável pelos programas Caixa de Perguntas, Curiosidades Musicais, entre outros,
recebia por cartas, enviadas à emissora, partituras de pregões de diversas partes do país. Ele
recolhia os pregões e apresentava-os no programa intitulado Instantâneos Sonoros do Brasil.
Certa vez, indagado sobre a inspiração no tema do pregão, Radamés contou uma história
engraçada que depõe sobre o declínio da “moda” do pregão:
Almirante tinha aquela salinha lá na Rádio Nacional, no prédio do Edifício da Noite,
e em cima da mesa estavam sempre àquelas partituras com os “pregões” que ele
recolhia pro programa Instantâneos Sonoros do Brasil. As pessoas mandavam
canções pra ele, aquela história de folclore e tal. Um dia mandaram um envelope
com um prego de ferro enorme, um pregão (DIDIER, 1996, p. 47).

1.12.2 O sucesso do baião e o Baião gravado no LP

Radamés foi atento aos gêneros da música popular que faziam sucesso e,
eventualmente, os utilizava em sua música de concerto. Com o baião não foi diferente. Era
sua maneira de trabalhar o nacionalismo musical em sua obra.
O ritmo do baião, na forma modificada pela influência inconsciente do samba e das
congas cubanas, alcançou enorme sucesso e teve no compositor Luiz Gonzaga seu maior
76

divulgador. Com sua popularização, passou a anexar além da sanfona, a viola caipira, o
triângulo, o pife e o acordeão, formando com esses instrumentos a orquestração típica que
intercalava o canto. A temática do baião referia-se constantemente ao cotidiano dos
nordestinos e suas dificuldades.
Conforme as palavras de Fernando Lobo no livro de Dominique Dreyfus, intitulado
Vida do Viajante: A Saga de Luiz Gonzaga, pode-se ter ideia da aceitação alcançada por esse
gênero musical nos bailes da então capital federal, cidade do Rio de Janeiro:
O baião atingiu todos os públicos: povinho, povão, classe média, classe alta. Os
cassinos, que na época estavam abertos, tocavam Nat King Cole, Cole Porter e, de
repente, um baião, com violino e tudo, e o público dançava: a grã-fina nas boates e o
pé-de-chinelo nas gafieiras (LOBO apud DREYFUS, 1997, p. 171).

O enorme sucesso desse gênero musical também influenciou e inspirou a música de


concerto de Radamés Gnattali, que estando atento às sutilezas dos estilos, soube manter as
características de swing e virtuosismo do baião em suas composições e execuções.

1.12.3 O selo Festa — mercado fonográfico nacional para música erudita

A gravação e lançamento do LP do Duo Radamés Gnattali e Iberê Gomes Grosso


deveu-se à iniciativa do jornalista e empresário Irineu Garcia, natural de Mococa, cidade do
estado de São Paulo.
Irineu Garcia ainda jovem transferiu-se para o Rio de Janeiro, onde trabalhou como
cronista do Jornal do Brasil. Conhecido da grande parcela da intelectualidade do país da
década de 1950 e de 1960, Irineu Garcia tornou-se um empresário e produtor de música e
poesia.
Em 1956, ele criou o selo Festa com o objetivo de produzir LPs sem preocupações
comerciais, mas sim artísticas, sobretudo porque sabia que as grandes gravadoras não tinham
interesse em produzir o que ele gostava de ouvir. O projeto do selo Festa existiu até o final da
década de 1960 e, ao longo de aproximadamente doze anos, deixou um legado de cento e seis
títulos em catálogo.
Primeiramente, o selo lançou LPs de poetas brasileiros declamando suas próprias
obras — uma ideia até então inédita no Brasil — que resultou em 67 discos com participação
de Cecília Meireles, Paulo Mendes Campos, Murilo Mendes, Vinícius de Moraes, Augusto
Frederico Schmidt, João Cabral de Melo Neto, Mario Quintana, entre outros. Seguindo essa
linha, o selo Festa também lançou LPs com poetas estrangeiros, como o cubano Nicolas
77

Guillén, o espanhol Rafael Alberti, os chilenos Pablo Neruda e Gabriela Mistral, além do
espanhol Federico Garcia Lorca, nas vozes de atores do teatro espanhol.
Na música popular, o selo lançou LPs, por exemplo, da cantora Lenita Bruno
intitulado Por Toda Minha Vida (com músicas de Tom Jobim e Vinícius); o LP Modinhas
Fora de Moda (gravações de modinhas de Mário de Andrade, Villa-Lobos, Carlos Gomes,
Jaime Ovalle, entre outros); o LP Dentro da Noite, último álbum do pianista, compositor e
arranjador Oswaldo Gogliano — o Vadico — conhecido por suas parcerias com Noel Rosa
nas músicas Feitio de Oração, Feitiço da Vila e Conversa de Botequim, entre outros títulos.
Ainda na música popular, o lançamento do selo Festa considerado mais importante foi o LP
intitulado Canção do Amor Demais (Festa LDV 6002 - 1958) com músicas de Tom Jobim e
poesia de Vinícius de Moraes cantadas por Elizeth Cardoso. Apesar do LP Canção do Amor
Demais ter tido apenas dois mil discos prensados e distribuídos, ele é considerado por muitos
como o primeiro registro fonográfico da bossa nova. Na contracapa do disco, que foi assinada
por Vinicius, não consta que os arranjos são de João Gilberto. Segundo Irineu Garcia, a
ausência desse tipo de ficha técnica nos LPs se deu por inexperiência dele como produtor.
Na área da música erudita, o selo Festa foi uma oportunidade inédita para músicos e
compositores nacionais apresentarem seus trabalhos fonográficos. Além do LP de Radamés,
foram lançados outros títulos, entre eles, o álbum duplo do pianista Arnaldo Estrela —
Antologia da música brasileira para piano (1958); o LP do compositor Claudio Santoro
regendo sua própria Sinfonia nº 5 — dodecafônica, a Orquestra Sinfônica Brasileira (1959); e
o LP com a Missa de São Sebastião para Três Vozes e Coro à Capela de Villa-Lobos (1963)
interpretada pela Associação de Canto Coral e regência de Cléofe Person de Mattos.
É de se estranhar que músicos do gabarito de Gnattali, Santoro, Mignone, que
normalmente eram requisitados arranjadores e trabalhavam para grandes gravadoras, não
tivessem antes do selo Festa gravado suas peças clássicas. Segundo Irineu Garcia, por dois
motivos. O primeiro é que mesmo reconhecendo o talento dos músicos clássicos brasileiros,
os empresários dessas gravadoras achavam que sua música era pouco comercial, portanto
alegavam que as vendas não compensariam o trabalho. O segundo é que com o selo Festa os
músicos poderiam registrar seus trabalhos com toda liberdade criativa e não prestariam contas
a um patrão, mas sim a um amigo.
Durante seu autoexílio português em 1981, o próprio Irineu quem melhor definiu o
selo Festa em texto escrito:
78

Agora, passados muitos anos, estou tranquilo por não ter me preocupado com o
imediato. Tenho a certeza de que Canção do Amor Demais (como muitos outros
títulos que produzi de música e literatura) permanecerá como um informe [...] como
um marco importante da modernização de sua fabulosa música, como criadores e
intérpretes indiferentes ao tempo (TOSO; NOBILE, 2012).40

Apesar da iniciativa louvável que foi o lançamento do selo Festa, é preciso constatar
que a qualidade de alguns fonogramas é questionável. Por exemplo, as gravações do Duo
Radamés Gnattali e Iberê Gomes Grosso tocando a Sonata nº 1 para violoncelo e piano de
Villa-Lobos e as peças de Radamés Gnattali Sonata nº 1, Flor da Noite e Modinha & Baião,
foram feitas em sistema mono. Além disso, não existe ficha técnica, tampouco existe
informação das datas e local dessas gravações, nem na capa do LP, nem no rótulo do
“bolachão” do vinil.

1.13 Críticas à obra de Radamés Gnattali — “puristas” da música popular e erudita

Devido ao seu ecletismo, as composições eruditas de Radamés Gnattali guardam


características próprias de quem transitou por diferentes estilos e linguagens nas práticas
musicais. É certo que algumas composições guardam folclorismo, contendo colorações
orquestrais jazzísticas. Porém, a fama de americanizado atribuída a Radamés pelos puristas,
tanto populares quanto eruditos, estendeu-se ao longo de décadas.
A explicação reside em dois fatos singulares. Nos arranjos de música popular, por
exemplo, o compositor costumava usar metais identificados comos jazz-bands, introduzindo
riffs, seja dividindo os solos entre os diversos naipes da orquestra, seja organizando os
improvisos e combinando os instrumentos de maneira não tradicional.
Já no repertório clássico, Radamés não conseguiu fugir ao estigma de jazzístico,
embora declarando-se um nacionalista-neoclássico que, em diversas obras, utilizou o
modalismo da escala nordestina; a rítmica da música urbana genuinamente brasileira, como a
do samba, do frevo, do baião, do ponteio; entre outras. Além disso, na obra de Radamés,
apesar de prevalecerem formas estruturais clássicas de composição, ele nominava os
movimentos de suas suítes e concertos com palavras que designam gêneros musicais
nacionais, como maxixe, marcha-rancho, samba-canção, samba-batucada, entre outros.
Do lado da música erudita (da parte de compositores ou críticos, amantes do
nacionalismo musical brasileiro; da música de vanguarda; da música moderna; dos
40
Disponível em: <http://www.orquestrapaulista.com.br>. Acesso em: 13 ago. 2012.
79

compositores dodecafonistas; da música aleatória; entre outros grupos contemporâneos),


Radamés sofria críticas que tentaram estigmatizar sua obra como demasiado romântica,
populista, para consumo, jazzificada e fronteiriça. Destacam-se e comentam-se a opinião de
dois ilustres musicólogos brasileiros que publicaram declarações sobre as composições de
Radamés Gnattali: Mário de Andrade e José Maria Neves.
Mário de Andrade, em crítica publicada no jornal Estado de São Paulo de 12 de
fevereiro de 1939 por ocasião da I Caravana Cultural (promovida pelo governo) composta de
artistas e compositores que participaram da Feira Mundial de Nova York, escreveu as
seguintes palavras sobre Radamés: “Tem uma habilidade extraordinária para manejar o
conjunto orquestral, que faz soar com riqueza e estranho brilho. É certo que ‘jazzifica’ um
pouco demais para o meu gosto defensivamente nacional” (ANDRADE apud BARBOSA;
DEVOS, 1985, p. 47).
Ainda sobre a fama de jazzificar demais as obras, as palavras do musicólogo José
Maria Neves em seu livro Música Contemporânea Brasileira corroboram as manifestações de
preconceito e desagrado à música de concerto composta por Radamés (NEVES, 1981, p. 72).
No referido livro, o autor se baseia em uma única peça — o Concerto Carioca nº 2 para
piano, contrabaixo, bateria e orquestra sinfônica (em três movimentos: I – Samba; II-
Samba-Canção; III- Choro), apresentada no I Festival de Música da Guanabara em 1964, para
falar da totalidade da produção musical de Gnattali. Destacaram-se dois trechos para
comentários.
Gnattali, compositor de excelente técnica [...] perdeu-se justamente por seu
excessivo apego à estruturação e às sonoridades jazzísticas. Ainda que ele afirme
fazer absoluta distinção entre sua produção destinada ao consumo imediato no rádio
e no disco e sua obra propriamente artística, os vícios de linguagem estão sempre
presentes, inclusive em obras mais recentes, criando uma barreira para sua aceitação
por parte do público mais exigente (NEVES, 1981, p. 72-73, grifo nosso).

Em primeiro lugar, quando o autor escreve que “Radamés perdeu-se”, a palavra


pressupõe que Radamés estivera antes bem situado em algum critério de aceitação, e que a
partir de algum momento deixou de estar. Neves (1981) completa seu pensamento explicando
que o “perder-se” de Radamés foi devido ao “seu excessivo apego à estruturação e
sonoridades jazzísticas”. Entende-se que Radamés, segundo o musicólogo, utilizava
recorrentemente na sua música de concerto os procedimentos orquestrais que utilizou nos seus
arranjos populares e que aprendeu a usar por recomendação e encomenda das rádios e
gravadoras, visando o mercado radiofônico e fonográfico das décadas de 1930 até 1950. De
fato, Radamés não apenas gostava das orquestras de jazz, como também estudou e ouviu
80

gravações até desenvolver essas habilidades. Entretanto, generalizar-se a sua música de


concerto e seu estilo composicional como “apegado à estruturação e sonoridade jazzística”,
denota desconhecimento.
Em segundo lugar, o autor se referiu a “um público mais exigente” quando escreveu:
“os vícios de linguagem estão sempre presentes [...] criando uma barreira para sua aceitação
por parte do público mais exigente”. Considera-se que o que Neves (1981) chamou de “vícios
de linguagem” seriam características da escrita de compositores como Villa-Lobos, Debussy,
Chopin, Mozart, entre outros, que são inconfundíveis. A música de Radamés também é
inconfundível para quem tem oportunidade de conhecer, diferentemente de contemporâneos
seus, que passaram por diversas técnicas de escrita musical contemporânea (serialista,
dodecafônica, microtonal, entre outras) e voltaram à música tonal. No entanto, foram tratados
de forma parcimoniosa pelo musicólogo.
Em terceiro lugar, José Maria Neves faz referência a um público “mais exigente”. O
autor se referiu, neste caso, a um público que esperava ouvir música de vanguarda, no referido
festival de música, e que teria se frustrado ao ouvir uma obra de verve popular e
instrumentação de jazz. Cabe ressaltar que os solistas eram um trio de piano, baixo e bateria.
Radamés escreveu um concerto tríplice com orquestra para instrumentos solistas de sua
contemporaneidade. Entretanto, apenas a formação instrumental do trio fazia lembrar o jazz.
Os movimentos do concerto tinham gêneros e caráter bem brasileiros (I - Samba, II - Samba-
canção, III - Choro). Com essa obra, Radamés mostrava o quão nacional um conjunto
aparentemente jazzístico como o Tamba Trio41, por exemplo, pode ser. Neves (1981),
prosseguindo suas considerações críticas sobre Radamés escreveu:
[...] falta-lhe a força primitiva dos nacionalistas mais puros e seu populismo já não é
mais admissível. [...] este compositor encontra-se em posição incômoda, pois que é
considerado demasiadamente erudito pelos compositores de música popular, [...] e
demasiadamente popular pelo público de música erudita (NEVES, 1981, p. 73).

Críticos, músicos e público da música de concerto não compreenderam as intenções


inovadoras e as harmonizações do compositor Radamés Gnattali. Basearam-se em uma única
obra, o Concerto Carioca nº 2 para piano, contrabaixo, bateria e orquestra sinfônica,
apresentado em festival, I Festival da Guanabara em 1964, para manifestações francas de
desagrado à popularidade do compositor. Apesar de essa peça ser formalmente construída e
nela ser demonstrada grande habilidade e equilíbrio no trato das sonoridades instrumentais,
principalmente entre solistas e a massa orquestral; de ser de difícil execução devido ao
41
Conjunto musical da década de 1960 composto originalmente por Luiz Eça (1936-1992) piano, vocal e
arranjos; Bebeto Castilho(1939) contrabaixo, flauta, sax e vocal; e Hélcio Milito(1931) bateria, percussão e
vocal.
81

virtuosismo e swing exigidos dos intérpretes; de ser elaborado com movimentos rítmicos
genuinamente nacionais; e de, além disso, ter uma formação orquestral inusitada para as
tradicionais salas de concerto da época, sua primeira apresentação criou polêmica.
Na expressão “força primitiva dos nacionalistas mais puros” (NEVES, 1981, p. 73),
acredita-se que o escritor tenha se referido à música brasileira do folclore, com bases
harmônicas da tradição europeia. Villa-Lobos (1887-1959), por exemplo, foi o primeiro a
escrever música moderna nacionalista, tirada do ambiente da cidade e do folclore (ainda que
utilizando harmonizações baseadas na música europeia de tradição e de sua
contemporaneidade). Radamés fez o mesmo, porém nas suas harmonizações seguiu caminho
característico da chamada harmonia funcional, ou seja, com utilização de acordes com nonas
e décimas terceiras, sem preocupações com resoluções baseadas na harmonia tradicional.
Além disso, Radamés empregou harmonizações debussyanas e evitou, propositalmente, os
caminhos e procedimentos contrapontísticos utilizados, por exemplo, por seu contemporâneo
Camargo Guarnieri (1907-1993).
Radamés não se interessou em trabalhar a música com a técnica dodecafônica,
utilizada e abandonada, por exemplo, por seus contemporâneos Francisco Mignone (1897-
1986), Claudio Santoro (1919-1989) e Cezar Guerra-Peixe (1914-1993), entre outros.
Portanto, as críticas sobre Radamés Gnattali e sua obra, escritas no livro Música
Contemporânea Brasileira, apenas denotam falta de conhecimento da vasta obra de concerto
do referido compositor.
Radamés, em algumas entrevistas, falou sobre a pressão contra sua música de
concerto. Destacam-se, como exemplo, duas situações de convencionalismo. Uma delas no
Theatro Municipal do Rio de Janeiro quando ele apresentou pela primeira vez o Concerto
Carioca nº 1 com a Orquestra Sinfônica do Theatro Municipal, sob a regência do maestro
Henrique Morelembaum; e o outro episódio ocorreu quando Radamés recebeu o Prêmio Shell
de Música Erudita, em 1983.
Apresentei o Concerto nº 1 para Guitarra Elétrica, Piano, Orquestra Sinfônica e
Batucada no Theatro Municipal. Quem dirigiu foi Henrique Morelembaum [...]
Depois do concerto ele me falou: “Sabe o que estão dizendo na plateia? Que no
Theatro Municipal até samba se toca agora”. [...] Sou da Academia Brasileira de
Música do Villa-Lobos, cadeira nº 2, e também da Academia de Música Popular,
então não posso fazer discriminação nenhuma (DIDIER, 1996, p. 82).
82

Na entrevista ao MIS, Radamés contou:


Quando ganhei o Prêmio Shell, em 1983, [...] apresentei o Concerto nº. 3 -
Seresteiro, para piano e orquestra. Como a música desse concerto é muito
brasileira, achei bom botar um regional junto com o piano. Os puristas não gostaram
nada de misturar regional com orquestra sinfônica, mas se o concerto é meu, eu
escolho o repertório que vou tocar, é ou não é? (MIS, 1985).

Sobre o preconceito musical, Radamés, no livro de Didier, demonstra indignação:


Agora você vê: o pessoal da camerata carioca foi falar recentemente para propor um
programa com músicas minhas no Theatro Municipal e perguntaram: “Tem música
popular?” “Popular não, baseada em música popular”. E a resposta foi “Ah, então
não serve. Música Popular aqui não entra!”. Ou seja, continua a mesma coisa...
(DIDIER, 1996, p. 82).

Em relação à música popular, Radamés também sofreu resistência por parte de


críticos: amantes das orquestrações tradicionais para o samba (sem violinos); defensores da
sonoridade dos conjuntos regionais e do autodidatismo dos instrumentistas, compositores e
arranjadores populares. Radamés foi acusado de americanizar a música popular brasileira e de
tentar descaracterizar o samba. Na declaração dele, pode-se constatar a oposição à sua forma
de orquestrar.
música brasileira só se tocava com regional. Eu então comecei a fazer os arranjos
para Orlando Silva, usando violinos nas músicas românticas e metais nos sambas. Aí
começaram a reclamar, até por cartas, dizendo que música brasileira só podia ter
violão e cavaquinho. (BARBOSA; DEVOS, 1985, p. 35).

É fato que alguns questionavam a utilização das cordas nos arranjos dos sambas. O
próprio Radamés falou em entrevista: “Eu gravei um disco na Continental de música popular
com orquestra e um crítico disse que o disco estava muito bonito, mas que eu tinha levado,
um pouco, para o lado clássico” (MIS, 1985).
Radamés, sobre a acusação de “jazzificar” a música popular com seus arranjos e
orquestrações, argumentava que, se a música popular brasileira existe “não seria por causa de
um timbre dentro da orquestra” que ela iria deixar de existir. E ainda: “Tem gente que acha
que se a gente coloca um saxofone na orquestração, a música já vira jazz” (DIDIER, 1996, p.
52). Sobre as críticas à sua orquestração, Radamés opina:
Muitos acham que a música brasileira só pode ser tocada com flauta, violão e
cavaquinho. Ora, tanto faz tocar Guriatã de Coqueiro42 com órgão ou sanfona. Quer
dizer que se a música não é tocada com bandolim, que aliás nem é um instrumento
brasileiro, ela não é brasileira? Então, a rigor, música brasileira, no duro, seria
apenas música de índio. O próprio samba se modificou se formos ver as origens.
Esses ortodoxos vivem no século passado (DIDIER, 1996, p.74).

42
Choro de autoria de Severino Rangel de Carvalho, o Ratinho (1896-1972).
83

1.14 Composições inspiradas nos instrumentistas amigos

“Eu sempre escrevi música para os meus amigos” (DIDIER, 1996, p.74). Radamés
tinha fascínio pelos bons instrumentistas e fazia questão de conviver com “a fina flor” dos
intérpretes brasileiros sempre em clima de “camaradagem”. Era comum nos fins de tarde ele
estar “tomando um Chopp” com amigos instrumentistas que trabalhavam com ele tanto nas
orquestras da rádio como das gravadoras. Encontra-se apoio para se entender o que Radamés
considerava serem “bons músicos” ou “a fina flor dos intérpretes” nas palavras de Radamés,
por exemplo, sobre o amigo acordeonista de formação popular Romeo Seibel (Chiquinho do
Acordeom): “O Chiquinho, identificado como um acordeonista popular, é de uma
musicalidade fantástica, de um preparo impressionante para a execução também de peças
eruditas” (BARBOSA; DEVOS, 1985, p. 66).
A explicação sobre o conhecido hábito de Radamés escrever músicas inspiradas e
dedicadas aos seus amigos virtuoses é a seguinte: Radamés era muito respeitado na Rádio
Nacional e por isso tinha total liberdade para programar e tocar suas próprias músicas, mesmo
as clássicas, e, de fato, isso aconteceu, sobretudo entre as décadas de 1940 e 1960
aproximadamente. Então, em razão dessa liberdade, surgiu a ideia de começar a compor
concertos para os amigos músicos que ele admirava. Afinal, já que estes também tocavam na
orquestra sinfônica da rádio, todos teriam oportunidade de executar as obras. Essa era uma
fonte indubitável de inspiração e uma forma de poder ouvir a performance dos amigos
virtuoses.
Considera-se que Radamés foi um dos compositores clássicos brasileiros (de sua
geração) que teve maior possibilidade de ouvir as suas obras executadas e gravadas, sobretudo
na época que trabalhou na Rádio Nacional.
Radamés escreveu concertos com orquestra para: Oscar Borgeth (1906-1992), violino;
Iberê Gomes Grosso, violoncelo; Vidal, contrabaixo; Gianni Fumagalli, harpa; Edu da Gaita,
gaita; Joel do Nascimento e Jacob do Bandolim, bandolim; Turíbio Santos, violão; Duo
Assad, dois violões; Luiz D´Anunciação, marimba; Luciane Perrone, bateria; Romeu Seibel,
acordeom; entre muitos outros instrumentistas virtuosos, a maioria companheiros na Rádio
Nacional.
Radamés convidou seu amigo pianista Arnaldo Estrela (1908-1981), que tocou seu 2º
Concerto para piano e Orquestra e sua Fantasia Brasileira para piano e orquestra ao vivo na
Rádio Nacional. O Concertinho nº 1 para piano e orquestra também foi tocado na Rádio
84

Nacional por Tomás Terán (1895-1964). O Concerto para Acordeão e Orquestra, por
exemplo, escrito para o amigo Chiquinho do Acordeom, era uma peça muito especial para
Radamés, pois foi a primeira obra escrita no Brasil para essa formação.
A maior parte das obras compostas para os amigos é caracterizada pelo virtuosismo e
o swing que Radamés valorizava muito como qualidade para um intérprete e instrumentista
clássico ou popular.
Radamés valorizava a qualidade de o músico tocar com swing não em detrimento do
virtuosismo, mas aliado à erudição musical. Por ocasião da audição e posterior gravação de
sua Cantata Maria Jesus dos Anjos - cantata umbandista para orquestra, coro, narrador e
percussão popular (1965)43, ao ouvir o comentário crítico de um amigo músico que era
conhecedor da cultura afro-brasileira no qual elogiava a obra, mas censurava a execução em
razão do coro não ter “balanço”, Radamés prontamente respondeu: “Se você me arranjar um
terreiro onde o pessoal leia música, eu gravo de novo!” (DIDIER, 1996, p. 56).
Já sobre o amigo Iberê Gomes Grosso, músico de formação erudita, Radamés o
valorizava como um músico que além de virtuoso, tinha a capacidade de swingar44. Sobre sua
inspiração em peças de violoncelo dedicadas ao amigo ele dizia: “Quando eu fazia uma peça
para violoncelo, era para o Iberê tocar. Ele tinha muita bossa, muito jeito pra música
brasileira” (DIDIER, 1996, p. 67).
Capaz de transitar entre o repertório erudito e o popular, Radamés se cercava de
instrumentistas que tinham em comum o virtuosismo e o swing.

43
Cantata Maria Jesus dos Anjos (composta em 1965), música de Radamés Gnattali. Texto de Albertode Castro
Simões da Silva (1898-1986), o Bororó. Cantata com tratamento livre de pontos colhidos por Radamés Gnattali,
Bororó, Jerônimo da Silva e Rubens Ferreira, na Tenda Espírita Pai Jerônimo — Culto Fetichista, Afro-
Brasileiro, Terreiro de Umbanda. Primeira audição pelo Coro do Theatro Municipal do Rio de Janeiro sob a
regência de Mário Tavares [s.d.].
44
Termo swing foi abrasileirado e designa tocar com swing, ou tocar com bossa. No caso de se utilizar um
substantivo que não tem conjugação, optou-se por conjugar o verbo referente ao substantivo bossa, em inglês.
Considerou-se que swingar soa melhor que bossar.
85

1.15 Notoriedade que superou as próprias expectativas

Radamés teve seu ideal de concertista erudito frustrado. No entanto, o concertista, que
viu restringida a atmosfera de sua especialização, enveredou pelos caminhos da composição
deixando um legado de mais de trezentos títulos somente para a música de concerto (como:
sonatas; sonatinas; sinfonias; brasilianas; suítes; trios; quartetos de corda; duos; sextetos;
quintetos de sopro; quartetos com piano; concertos com orquestra para piano, violão,
violoncelo, saxofone, acordeão, bandolim, guitarra, marimba, harpa, entre outros); mais outras
aproximadamente cento e cinquenta composições populares (entre as quais peças nos gêneros
choro, dobrado, samba, samba-canção, quadrilha, rancheira, polca, polca-choro, valsa,
marcha, bolero, mazurca, foxtrote, serenata, baião, moda, maxixe); assim como mais de nove
mil arranjos escritos para música popular, feitos para diversos trabalhos em gravadoras,
rádios, cinema e televisão.
Atribui-se a Radamés a renovação da maneira de orquestrar a música popular
brasileira conforme atestam as palavras do jornalista José Burle em A Nova Hora do Brasil,
programa irradiado na Nacional, em 1937.
Ao Radamés devemos o alicerce da renovação e valorização da nossa música
popular, tornando-a compatível com a nossa cultura e colocando-a lado a lado com a
dos países civilizados do mundo. [...] música popular brasileira selecionada com
arranjos orquestrais modernos e bem feitos. Eis a única maneira de se levantar o
nível da cultura musical do nosso povo e de se poder fazer alguma coisa de utilidade
real, no assunto, pelo nosso país. [...] Talento insofismável de Radamés Gnattali [...]
Se eu quisesse fazer um elogio póstumo a Gershwin, não vacilaria na comparação
chamando-o de Gershwin brasileiro (BURLE, 1937 apud BARBOSA; DEVOS,
1985, p. 44).

Quase cinquenta anos depois, Luiz Paulo Horta, em artigo publicado no Jornal do
Brasil em 27 de janeiro de 1986, enalteceu a brasilidade do compositor:
Com Mignone e Camargo Guarniere, forma um grande trio de ascendência italiana
que ensinou a música séria a falar português. Os três fizeram nesse sentido, um
trabalho mais minucioso que o de Villa-Lobos. [...] Guarniere, Gnattali, Mignone
escreveram juntos toda uma biblioteca musical. Exploraram todos os gêneros, todas
as formas, tendo em comum um métier extraordinário. Dos três, Radamés é o que
está mais próximo das matrizes populares. É um caso único de músico igualmente
identificado com os gêneros populares e clássicos. [...] queria ser pianista de
concerto terminou ganhando a vida como arranjador – pois nisso era melhor que os
outros, e pianistas clássicos são multidão. [...] Tornou-se um patrimônio da música
brasileira, mestre de todos os músicos – clássicos e populares. (HORTA, 1986).45.

45
HORTA, Luis Carlos. Radamés: Uma usina de música. Jornal do Brasil. 27 jan. 1986. Caderno B.
86

Segundo Alceo Bochino46 (1997), Radamés Gnattali foi um dos músicos expoentes do
século com quem teve o privilégio de trabalhar. Considera que Radamés possuía um
“ecletismo impermeável”, pois quando fazia música “popular” era “popular”, quando se
tratava de “música de concerto”, era “música de concerto”, sem que um estilo atrapalhasse o
outro. Bochino cita a frase de Georges-Louis Leclerc De Buffon (1707-1788) “O estilo é o
próprio homem” para corroborar sua ideia a respeito da capacidade de Radamés.
Como classificar um músico capaz de escrever, com autenticidade, alentadas obras
sinfônicas, concertos, para violino, piano, violoncelo, acordeão, harmônica de boca e
tantos outros instrumentos; valsas e chorinhos populares brasileiros, e depois sentar-
se ao piano e executar com precisão o que escreveu e ainda, obra de outros autores?
Se “o estilo é o homem”, conforme Buffon e, na verdade, o é, devemos consagrar,
batizando com o nome Estilo Radamés Gnattali, todos os que forem capazes de tais
façanhas (BOCHINO, 1997).47.

1.16 Virtuosismo e Swing de Radamés Gnattali

Constatou-se que o virtuosismo e o swing são indicativos presentes na música de


Radamés Gnattali. De forma direta ou indireta, seja como intérprete, seja como ouvinte,
cultivou essas duas características ao longo de sua carreira e soube utilizá-las para sua
expressão artística como intérprete, como compositor e como arranjador.
Desde a música que ouviu tocada pelo próprio Ernesto Nazareth, passando pela
música que ouviu nos primeiros discos das orquestras de jazz americano; passando pelo
samba que ouviu tocado pelos pianeiros (que soube identificar quão diferente era, quando
executado ao piano à moda carioca); ou ainda pela percepção tanto do molejo da batucada de
Luciano Perrone, como do ecletismo do Chiquinho (que com seu acordeom transitava entre a
música do norte e o sul do Brasil, do baião ao erudito); pode-se dizer que Radamés escolheu
manter próximo à sua musicalidade as características indicativas do virtuosismo e do swing.
No virtuosismo estava a sua facilidade. No swing estava o aspecto que talvez tenha
sido a razão de ele mesmo dizer que não gostava de dar aulas. Da forma que vivenciou e
assimilou o swing, ele sinalizou que se pode aprender pela “auralidade” aguçada e analítica.
46
Alceo Bochino (Curitiba, 30/11/1918). Maestro e pianista brasileiro. Foi fundador e professor titular da Escola
de Música e Belas Artes do Paraná, fundada em 1948. Em 1956, orquestrou e dirigiu o programa Quando os
maestros se encontram da Rádio Nacional. Foi assistente do maestro Eleazar de Carvalho na Orquestra
Sinfônica Brasileira e presidente da comissão artística, regendo a orquestra de 1963 a 1965. Recebeu a Comenda
General Gomes Carneiro da cidade da Lapa (PR). Fundador da Orquestra Sinfônica do Paraná do Teatro Guaíra.
Regeu no exterior a Orquestra Sinfônica de Bilbao (Espanha) e a Orquestra Filarmônica de Burgas (Bulgária),
entre outras.
47
BOCHINO, Alceo. Texto do Encarte. In: GNATTALI, Radamés. Três Concertos e Uma Brasiliana. Rio de
Janeiro: SOARMEC, 1997. 1 CD.
87

Sua aproximação e percepção das diferenças e similitudes na prática interpretativa dos


pianeiros com a intenção de apreender impregnaram-no musicalmente na execução.
É pertinente ressaltar que, através do perfil apresentado, sabe-se que Radamés
valorizava tanto o virtuosismo quanto o swing inerentes a uma obra. Radamés vivenciou a
prática da música de concerto e da música popular brasileira, que estava se delineando desde
o início do século XX, sobretudo a que se concentrava no Rio de Janeiro. Foi um compositor
que atuou de forma marcante na música popular em insurgência no Brasil, não apenas como
compositor-intérprete, mas também como colaborador (BREIDE, 2006). Paralelamente,
Radamés soube aproveitar as oportunidades que surgiram para criar sua música de concerto,
caracterizadas pela presença de virtuosismo e de swing, denominado bossa por Breide (2006).
Após 1964, ano de lançamento do LP em Duo com o violoncelista Iberê Gomes
Grosso e ano final do recorte temporal do breve perfil biográfico de Radamés, o compositor
viveu mais vinte e três anos em franca produção musical. A partir de 1965, trabalhou como
arranjador pianista e maestro contratado da TV Globo. Paralelamente, como compositor
clássico escreveu cantatas, concertos, música para filmes, para duos, trios, entre outras
formações musicais. Após a morte de Vera, sua primeira esposa no ano de 1965, Radamés
casou-se com Nelly Martins Gnattali, cantora, atriz e médica, com quem conviveu até 1988.
Radamés faleceu na cidade que escolheu viver, Rio de Janeiro, em 13 de março de 1988.
O perfil apresentado não teve a intenção de ser crítico, mas sim de fornecer informações
para o entendimento das características da interpretação do autor-intérprete.
88
89

CAPÍTULO 2

O GUIA DE INTERPRETAÇÃO DE ARTUR SCHNABEL QUE BASEOU OS


CRITÉRIOS DA ANÁLISE AURAL DESTE TRABALHO

De acordo com Schnabel, citado por Wolff (1972), a tarefa fundamental de um


intérprete é relacionar o impulso inato de sua expressão e sensibilidade com as formas
musicais. A submissão no que se relaciona à leitura da partitura é requisito prévio.
Consequentemente, o artista deve fazer música de maneira tanto fiel ao texto musical quanto
livre no momento de expressá-la. Segundo Wolff (1972), Schnabel considerava que a
composição, mais do que a sua apresentação, está no supremo posto na classificação
hierárquica da arte e o intérprete deve ser guiado apenas por ela. Entretanto, dentro desses
limites, ele é livre, ativo e formativo de um modo especialmente privilegiado. Basicamente, é
ele (intérprete) que é o músico, pois é quem produz o som. O músico só vai ser capaz de
executar a sua tarefa fundamental se tocar fluentemente, se a apresentação revelar o artista em
sintonia com o compositor, ou seja, se ele conseguir convencer a audiência de que sua versão
corresponde à obra daquele compositor. Inteligência e exatidão no texto e no espírito de uma
composição atuam como estímulos e revitalizam a performance, afirma o autor.
O termo recriação poderia ser utilizado recorrentemente, porém ele pode dar origem
ao mal-entendido de que o intérprete pode tentar estabelecer a personalidade do compositor
no momento da criação. Sabe-se que todas as recriações interpretativas dependem da
consciência da estrutura e do caráter objetivo de uma composição. Schnabel discutiu estes
problemas de uma forma absoluta e dogmática, mas por trás de seus pronunciamentos sempre
houve intenção de guiar os seus discípulos (sobretudo os músicos ainda inexperientes) para o
centro de sua tarefa fundamental (WOLFF, 1972, p.15).
Wolff (1972) relata que Schnabel, frequentemente, enfatizava que o intérprete, tanto
ao estudar quanto ao executar, estivesse preocupado apenas com a música, não com sua
execução, por exemplo, com o público (fator externo) ou com a comunicação entre o
compositor e o público. Entendia que se o artista se tornasse um com a música, o público
sentiria, ao passo que se ele tocasse para os ouvintes, talvez não fizesse justiça à música ou ao
90

texto (fator interno).


Schnabel, nas palavras de Wolff (1972), também alertou seus alunos contra
generalizações estilísticas. Sentia fortemente que era desnecessário e, às vezes, perigoso para
o intérprete de música guiar a sua reprodução por considerações de estilo de um período ou de
características nacionalistas ou regionalistas. Não acreditava que o pianista tivesse, por
exemplo, que morar em Viena para tocar as marchas características de Schubert; ou em Paris
para tocar impressionistas franceses. Era também avesso a imagens caricaturais que geravam
interpretações superficiais de um autor, por exemplo Johannes Brahms, visto como homem
dos três B’s — Bier, Bart und Bauch (cerveja, barba e barriga). Schnabel acreditava que esse
tipo de abordagem pseudoestilística era irrelevante e distraía o caráter de cada composição
individual. Na visão de Schnabel, todos os bons compositores criaram cada partitura para
viver por si, como se não existisse outra música. Intervalos deliberados em Mozart; atrasos de
terceiros tempos em valsas de Schubert; mudanças de andamento em Schumann; sonoridade
stacata em Bach – esses e outros maneirismos eram rejeitados como tal, mesmo em
composições baseadas na música popular, como rapsódias húngaras e mazurkas. Schnabel
assegurava que a concentração na peça por si só traria à tona o seu “elemento folclórico”
(WOLFF, 1972, p. 16).
Na Escola de Schnabel, de acordo com Wolff (1972), a singularidade de cada obra de
arte, sua qualidade de pertencer à arte em geral, tem que ser preservada. Preconcepções sobre
estilo podem restringir a própria compreensão do intérprete. Por exemplo, para ele nem todas
as obras de Mozart são clássicas; nem tudo de Bach é barroco; e é nesse ponto que um
compositor rompe restrições estilísticas de sua época, sua nacionalidade, sua fonte de
inspiração e o intérprete tem que estar alerta, palavras do autor.
Schnabel dizia que os “criadores não são especialistas”. No momento em que um
artista está pronto para iniciar a execução, todas as experiências de diferentes músicas devem
ser dissolvidas na experiência direta da peça individual diante dele. A citação favorita de
Schnabel era de Goethe: “O que é o universal? O único caso! O que é o particular? Milhões
de casos!” Cada grande composição foi, para Schnabel, “tudo incluído, abrangentemente” e
não comparável a qualquer outra composição, até mesmo do mesmo compositor (WOLFF,
1972, p. 17).
Certas imagens musicais são mais aurais do que visuais e não podem ser eliminadas da
imaginação do intérprete. No entanto, Wolff (1972) diz que Schnabel estava ciente de que
imagens muitas vezes são de âmbito limitado, pois são subjetivas. Para ele, a música pode
evocar imagens, mas o inverso não é verdade: as imagens não evocam música (WOLFF,
91

1972, p. 18). A declaração de Schnabel não é de todo dispensável, afinal sabe-se que ideias
programáticas fixas podem levar um intérprete a uma distorção da frase musical. A música,
mesmo se é programática ou descritiva, deve ser sempre musicalmente autossuficiente.
Exageros no foco a ideias programáticas podem levar o intérprete a dinâmicas exageradas e
rítmicas deturpadas.
O autor, segundo descreve Wolff, diz que uma “análise frutífera” da obra seria o
resultado da reação espontânea do músico frente a algum detalhe musical que se tornou como
um enigma para ele, forçando-o, então, a investigar aquele acontecimemto em particular
(WOLFF, 1972, p. 19). A análise pode, talvez, explicar porque as mudanças interpretativas
ocorrem. Em certos casos, o instinto musical vem em primeiro lugar. Em seguida, ele é
confirmado, podendo também, em alguns casos, ser alterado pelas conclusões determinadas
pela análise do texto. Essa análise também pode e deve ser exercida pela audição, comenta o
autor.
Diz Wolff (1972) que a tarefa do intérprete, finalmente, inclui ser concretamente
voltado para a unidade e diversidade inerente a cada peça tocada. Isso inclui um equilíbrio
entre elementos superficiais e inerentes à obra. Elementos superficiais, neste caso, referem-se
a tudo que não é a música em si. Por exemplo: biografia do compositor, contexto social, etc.
Em todo o seu guia de interpretação, Schnabel recorrentemente fala sobre articulações
musicais (WOLFF, 1972). O termo Articulação, entretanto, foi usado bastante elasticamente
pelo autor, referindo-se ao esclarecimento de detalhes musicais disponíveis para o artista tais
como duração, volume, tempo, etc. Para Wolff (1972), na concepção de Schnabel, a
Articulação é o elemento mais sutil da performance, tão sutil que na maior parte do tempo
não se consegue de forma precisa indicá-la na partitura.
Na opinião de Konrad Wolff (1972, p. 26), as regras de articulação aprendidas,
desenvolvidas e ensinadas por Schnabel foram “sem precedentes e constituíram-se
contribuição original e duradoura para a prática interpretativa”.
Ressalta-se, entretanto, que na verdade houve precedentes como, por exemplo, os
livros de Mathis Lussy: Le Traité de l'expression Musicale (1873), Le Rythme Musical: son
Origine, sa Fonction et son Accentuation (1884), L’Anacrouse dans la Musique Moderne
(1903). (LUSSY, 1873, 1884, 1903). Regras de articulação, de certa forma, já estavam
decifradas pelo teórico suíço quase cem anos antes do guia de interpretação de Schnabel ser
publicado por Wolff (1972).
92

O pensamento de Schnabel, apresentado por Wolff (1972) é, de certa forma,


compartilhado por outro reconhecido mestre de música, Alfred Cortot, que segundo Thieffry
considerava que a música, por si só, deveria ser o primeiro veículo do pensamento musical
(CORTOT, 1986, p. 19). Por exemplo, se depois de estudar a música, o intérprete encontrasse
algum documento capaz de corroborar os sentimentos despertados, só então deveria se apoiar
nesse novo conhecimento. Em adição, relata que na opinião de Cortot (1986) mesmo se
existisse (mas não existe) algum documento que fosse capaz de estabelecer,
indiscutivelmente, o caráter emocional da obra, mas que o sentimento do intérprete dele
diferisse, ele não recearia afirmar que o intérprete deveria levar em conta o sentimento
pessoal. E afirmava “A música não passa de nosso reflexo. Não é senão o espelho que
inscrevemos nossa imagem” (CORTOT, 1986, p. 19).
Segundo Dart48 (2002, p. 213), “o ouvinte não deve esperar compreender todas as
músicas, a não ser que conheça o que o compositor estava tentando dizer e de que modo o
disse, e isso vale tanto para Bach, Byrd, [...] como para Berg, Bennet e Boulez”. Em relação a
quaisquer execuções musicais, ele expunha:
Nenhuma música [...] deve ser tocada de maneira maçante, pois a música sempre foi
escrita para ser apreciada tanto pelo executante como pelo ouvinte. Porém toda
música deve soar com espontaneidade, e o intérprete não deve se preocupar com ela
como um cão se preocupa com um osso (DART, 2002, p. 214).

Em contrapartida ao pensamento de Schnabel (WOLFF, 1972) e de Dart (2002), os


mestres do piano Leimer e Gieseking (1951) no livro intitulado Rítmica, Dinámica, Pedal y
otros Problemas de la Ejecución Pianística preconizavam que o intérprete deveria se
preocupar apenas em manter a execução das peças de maneira exata, do ponto de vista rítmico
e formal, conforme citação a seguir:
O pianista pensa com frequência ser obrigado, interpretando uma composição, a
modificar a escrita do compositor, especialmente quanto ao ritmo. Muitas vezes ele
o faz inconscientemente, por não saber ler direito, por tocar superficialmente, ou por
que pense que seja mais interessante ou mais “expressivo” tocar, por exemplo, uma
série de semicolcheias com desigualdade e com forte rubato, apezar [sic] de o
compositor tê-las escrito em valores iguais. [...] Execução absolutamente correcta é
a única base sobre a qual poderá edificar-se uma interpretação de real valor.
(LEIMER; GIESEKING, 1951, p. 34).

Segundo Charles Rosen (1993) ainda que respeitassem totalmente a partitura, outros
intérpretes poderiam tocar de maneira diferenciada, consequentemente personalizada, devido,
por exemplo, às pequenas respirações utilizadas, bem como às escolhas de tipo de toque

48
Robert Thurston Dart (1921-1971), cravista e regente britânico especialista em música antiga, professor na
Universidade de Cambridge, teve entre seus discípulos o maestro Sir John Eliot Gardiner e o maestro
musicólogo Christopher Hogwood, com quem realizou uma das primeiras gravações “historicamente
informadas” dos Concertos de Brandemburgo de J. S. Bach.
93

pianístico (ou tipo de arcada para o violoncelo), ou ainda às articulações e às gradações de


dinâmica aplicadas às frases musicais no momento da execução. As particularidades
expressivas de cada intérprete significariam, então, um resultado artístico distinto que
enfatizaria, ou não, características da obra.
Portanto, elegeu-se o guia de interpretação de Artur Schnabel, apresentado na
publicação de Wolff (1972), como parâmetro válido para as análises das interpretações dos
Duos nos fonogramas. As articulações musicais, por serem capazes de conectar o componente
musical e o significado musical com a técnica, facilitam a Externalização. Quando em uma
nova peça, imediatamente o músico se concentra na adequada articulação de cada frase, os
meios técnicos e musicais são resolvidos simultaneamente. O empenho em se conscientizar as
articulações em todos os seus aspectos (melódicos, harmônicos, rítmicos e métricos) fornece
algo concreto com a qual se pode trabalhar auralmente. Por exemplo, Schnabel, de acordo
com Wolff (1972, p. 26) chamava de “sotaque” um acento indesejado (ou estranho) que
muitas vezes é atribuído a uma nota (que não deveria ser enfatizada). Os motivos podem ser
vários: desde a falta de controle (dos dedos), até a falta da disciplina do ouvido, passando pela
falta de compreensão musical. Porém, para ele, essa questão do “sotaque indesejável” se
resolveria com a consciência das articulações. Considerações técnicas e musicais são
geralmente tão intimamente ligadas que, em muitos casos, o músico tem dificuldade para
determinar qual elemento provocou esse “sotaque”.49
O músico geralmente imagina que esteja articulando quando toca o legato, o portato
ou o staccato, de acordo com o que está marcado; quando respeita o valor do tempo de cada
nota e de cada pausa; quando executa fielmente o ritmo e a dinâmica; quando executa a peça
com pulsação uniforme. Entretanto, estas precisões não são necessariamente as de um
“discurso musical eficaz.”50 Regras não escritas governam nuances de dinâmica e de ritmo.
Portanto, não há símbolos que tornariam a notação dessas sutilezas possíveis e, mesmo que
houvesse, o compositor iria arriscar distorcer a unidade total da obra por causa da anotação
dessas nuances.
Detalhes musicais interpretativos, ao serem insistentemente marcados, aprisionariam
tanto o compositor quanto o intérprete, além do que, de certa forma, faz parte do momento da
execução o artista tomar liberdades imprevistas tais como duração, intensidade, tempo, que

49
O chamado “sotaque” no fraseado musical é considerado aqui como falha. Significa que o músico fez
acentuações estranhas ou indevidas, por exemplo, no início ou no final de frases musicais.
50
Na expressão “discurso musical eficaz”, a palavra eficaz está sendo usada no sentido de se inculcar o carácter
da obra.
94

podem ser eventualmente fruto de um momento do intérprete, e até mesmo um insight, que
por sua vez tem a ver com a conexão do significado musical com a articulação adequada no
discurso musical ou na frase musical.
Não foi exatamente o termo Articulação — usado por Schnabel no livro de Wolff
(1972) para esclarecer detalhes musicais interpretativos disponíveis para o artista, tais como:
duração; volume; tempo; métrica; agógica; dinâmica; legato; stacato; sforzando; entre outros
— que norteou este trabalho como referência para as análises aurais dos fonogramas. Foi sim
a essência do que o autor considerava importante em uma interpretação. Como Schnabel
enfatizou em sua fala, “precisões não são necessariamente as de uma declamação essencial,
afinal, regras não escritas governam nuances de dinâmica e de ritmo” (WOLFF, 1972, p. 26).
95

CAPÍTULO 3

REVISÃO FONOGRÁFICA

3.1 Introdução à Análise Aural de Flor da Noite e Modinha & Baião

A capa do LP do Duo de Radamés Gnattali e Iberê Gomes Grosso está, conforme pode
ser visto na figura 1 do Anexo G, com dedicatória escrita por Radamés: “Ao querido amigo
Luciano com o abraço de Radamés”, datada “Rio, 1966”. Apesar de o Catálogo Digital
Radamés Gnattali informar que o lançamento deste LP no Brasil ocorreu no ano de 1959,
considerou-se que a data exata do lançamento e da gravação não está de fato esclarecida, uma
vez que não encontrou-se nenhum documento ou recorte de crítica publicada que comprove a
data informada (GNATTALI, Roberto, 2006). O selo Festa não datou o LP e tampouco no
livro biográfico de Iberê Gomes Grosso existe qualquer confirmação de data de gravação e
lançamento (BARBOSA, 2005).

3.1.1 O estado dos fonogramas do utilizados no trabalho (LP)

Para a revisão fonográfica elegeu-se a versão do Duo Radamés Gnattali & Iberê
Gomes Grosso feita para o LP do selo Festa LDR 5028 [s/d], intitulado Villa-Lobos /
Gnattali, único registro em LP existente dos músicos em Duo e fonte primária desta pesquisa.
Os fonogramas de Flor da Noite e Modinha & Baião foram gravados provavelmente no final
da década de 1950, época em que no Brasil os discos eram, em sua maioria, de 33 ½ rotações
por minuto (RPM) e pode-se dizer que ainda não era comum fazerem-se muitos cortes e
edições nas gravações. Além disso, nessa época, existem algumas deficiências nas produções
dos LPs, conforme os apontamentos a seguir:
96

1. A maior parte dos LPs dessa época não contém informações sobre ficha técnica e datas das
gravações em sua capa;
2. Existem dúvidas quanto à afinação relativa à tonalidade das músicas executadas. Muitas
vezes existem problemas de afinação que não se pode determinar com exatidão se estão a
cargo da rotação de cada aparelho reprodutor ou se estão relacionados ao diapasão utilizado
nos instrumentos. Muitas vezes, a afinação não coincide, por exemplo, com a afinação em 440
ou 442, que eram as mais utilizadas até a década de 1990 aproximadamente;
3. As gravações em geral eram feitas em mono.
No caso do LP de Radamés e Iberê, a qualidade do som não pôde ser melhorada pelo
fato de os instrumentos violoncelo e piano terem sido gravados no mesmo canal. Nos
exemplos do áudio de Flor da Noite e Modinha & Baião, que estão anexados a este trabalho,
o som apresenta muito ruído típico da agulha no vinil, tais como estalinhos e “frituras”. Como
a gravação foi feita originalmente em apenas um canal (mono), ela também é reproduzida em
mono. Por esta razão, não houve condição de “limpar” ou atenuar as “sujeiras” na reprodução
sem que houvesse comprometimento maior da qualidade do som. Através de aparelhagem
moderna, notou-se que os dois instrumentos, tanto o violoncelo quanto o piano, estão em fase
pulsando igualmente, conforme foi mostrado na tela do monitor pelas ondas de medida de
nível de frequência e volume do programa Sound Forge 10, um software considerado de
última geração para a edição de áudio. Pode-se ver através do gráfico que aparece durante a
reprodução que o sinal é o mesmo, referente aos dois instrumentos. Por meio desse software,
pôde-se ter certeza que os dois instrumentos foram gravados no mesmo canal. Assim sendo,
ao se tentar limpar os ruídos característicos do contato da agulha sobre o vinil, verificou-se
que ocorriam distorções dos sons do violoncelo, do piano, ou de ambos simultaneamente.
Portanto, preferiu-se utilizar o fonograma conforme a gravação original do LP, sem quaisquer
manipulações no intuito de melhorar a qualidade do som. Entretanto, tomou-se cuidado de se
verificar a rotação, que foi aferida de acordo com o estroboscópio do aparelho toca-discos,
que indicou a medição original de 33 ½ RPM.
Mesmo com os ruídos característicos de um LP da década de 1950/1960, os
fonogramas utilizados podem ser perfeitamente úteis como material ilustrativo para a
confirmação do que está sendo estudado e demonstrado neste trabalho, que é o aspecto
interpretativo da performance, virtuosismo e swing, e que leva em consideração a análise
aural sob o ponto de vista estritamente humano focando-se a escuta no âmbito artístico das
interpretações comparada à partitura autógrafa. Não se utilizou nenhum procedimento
matemático, medições e gráficos. Tampouco se aferiu quantitativamente com o auxílio de
97

hardware e software como se tem feito, por exemplo, no Centre for the History and Analyses
of Recorded Music — Centro para a História e Análise de Música Gravada (CHARM, 2005).

3.1.2 Características comuns das duas peças Flor da Noite e Modinha & Baião

Algumas coincidências são observadas em Flor da Noite e Modinha & Baião. Por
exemplo: primeiro o fato de serem peças da produção erudita de Radamés Gnattali que não
fazem parte de ciclos ou conjuntos formais, tais como sonatinas, sinfonias, brasilianas,
fantasias, divertimentos, miniaturas, valsas, entre outros títulos que abrigam composições,
tanto para diversos instrumentos solistas quanto para diferentes formações camerísticas e
orquestrais. Em Flor da Noite e Modinha & Baião, como se pode perceber, o compositor
intitula usando nomes sugestivos independentes.
A segunda coincidência a destacar-se é que em Flor da Noite e Modinha & Baião a
escrita para o piano funciona preferencialmente como instrumento acompanhador,
diferentemente de seus outros Duos para violoncelo e piano, nos quais os dois instrumentos
dialogam virtuosisticamente. Como terceira coincidência observa-se particularmente que em
ambas as peças o compositor é inspirado pelos gêneros populares. A melodia estilizada de
Flor da Noite, por exemplo, foi inspirada em motivo colhido diretamente das ruas: o pregão.
Já os temas de Modinha & Baião, conforme o título indica, possuem suas bases populares
(aproximação estilística) nestes dois gêneros: a modinha e o baião. A quarta coincidência é
que dentre os seis Duos para violoncelo e piano escritos por Radamés Gnattali, estas duas
obras são as únicas não dedicadas ao violoncelista Iberê Gomes Grosso.

3.2 Flor da Noite — A peça

A partitura de Flor da Noite para violoncelo e piano é uma versão do próprio autor,
datada do mesmo ano da partitura original para violino e piano, escrita em 1938. Sua melodia,
conforme já foi dito no Capítulo 1, versa “sobre o pregão de uma vendedora de pipocas da
Bahia, trazido por Dorival Caymmi” (GNATTALI, Roberto, 2006). Essa informação não
consta nem na partitura autógrafa de Radamés Gnattali nem na partitura editada. O
compositor utilizou o tema estilizado do “pregão” que conheceu através de Dorival Caymmi,
98

que o cantava informalmente para Radamés. A forma indolente de como Caymmi o


apresentou — “Oooolha a flor da noite” — é transcrita para a peça Flor da Noite como uma
imitação estilizada do pregão (GNATTALI, Roberto, 2006).

3.2.1 Flor da Noite — Algumas considerações sobre a harmonia

Em Flor da Noite encontram-se características da harmonização do jazz, o bop-jazz. O


bop-jazz, ou bebop, ou rebop, ou simplesmente bop (TANNER; GEROW; MEGILL, 1988, p.
91), caracterizado por andamentos rápidos, leveza rítmica, melodias complexas e harmonias
expandidas carregadas de dissonâncias, se consolidou como estilo entre 1935 e 1950 nos
Estados Unidos, difundindo-se pelo mundo.
Os encadeamentos do bop apresentam arquiteturas complexas com as harmonias
expandidas pelo emprego de nonas, décimas-primeiras, décimas-terceiras. Os acordes trazem
adições de dissonâncias resultantes da superposição dos harmônicos superiores, alterações das
notas das tríades, assim como alterações das dissonâncias naturais ou diatônicas. Não raro, as
dissonâncias se sucedem resultando em uma contínua tensão variando em intensidade, de
acordo com os intervalos dissonantes utilizados. A música do jazz, de uma forma geral, bem
como a música clássica de Gershwin, seduziu e inspirou Radamés Gnattali.
Destaca-se, a seguir, a sequência de acordes do piano (c. 30 ao c. 34) demonstrando a
aventada complexidade harmônica encontrada em Flor da Noite.

Exemplo Musical 2. Recorte da Partitura de Flor da Noite (c. 30 ao c. 34).


99

3.2.2 Flor da Noite — Estrutura Geral da Peça

No intuito de facilitar a análise dos fonogramas relacionando-os com a partitura,


optou-se por apresentar um quadro sucinto contendo o resumo da análise formal mostrando
apenas a delimitação das seções e subseções da peça.
Flor da Noite é uma pequena peça de 57 compassos (c.) estruturada em corte ternário,
contendo pequena Coda: A-B-A’-Coda bem definidas em suas seções pertinentes e bem
costuradas entre si. As partes dispõem-se como apresentado no Quadro 2.

Quadro 2. Forma Musical de Flor da Noite

A – c. 1 ao c. 19.3 — {a – c. 1 ao c. 10}; {a’ – c. 11 ao c. 19.3};


B – c. 19.4 ao c. 43 — {b1 – c. 19.4 ao c. 29.4}; {b2 – c. 29.4 ao c. 35}; {b3 – c. 36 ao c. 43};
A’ – c. 44 ao c. 52.1
Coda – c. 52.1 ao c. 57

3.2.3 Flor da Noite — Revisão Fonográfica — Análise Aural da Gravação de Radamés


Gnattali e Iberê Gomes Grosso

Apresenta-se a gravação de Flor da Noite na versão de Gnattali-Gomes Grosso. A


partitura integral encontra-se no Anexo A deste trabalho.

Take 1. (00’ 00” a 03’ 36”) Flor da Noite — versão integral

Primeiramente faz-se a análise fonográfica do trecho correspondente à Seção A, em


seguida os trechos correspondentes às seções subsequentes (B, A’ e Coda), apresentando-se o
Take correspondente a cada seção com a partitura autógrafa de Radamés. Em alguns casos
foram feitos recortes mais detalhados a fim de evidenciar aspectos característicos das
interpretações de Iberê e Radamés percebidos.

***
100

Na peça Flor da Noite pode-se sentir a influência do jazz em relação à harmonização


da melodia. A textura homofônica, com alguns contracantos na maior parte das vezes em
fragmentos escalares de semínimas, oscila frequentemente em dissonâncias. Em Flor da
Noite, os acordes normalmente densos ocupam a região média do piano alcançando raras
vezes a região aguda. O papel do piano resume-se ao acompanhamento com alguns
contracantos discretos em fragmentos de escalas ou mesmo appoggiaturas que, em vez de
resolverem em consonâncias, encaminham-se para outras dissonâncias. Ressaltam-se as
poucas intervenções em que o piano apresenta o tema ou uma escala, ou apenas arpejo.
Apesar da harmonia com tratamento sofisticado, influenciada pelo jazz, e melodia complexas,
a troca de valores de duas colcheias para quiálteras entre piano e violoncelono c. 16 e c. 17
(Exemplo Musical 3) deixa ao ouvinte um sabor levemente debussyiano. Entretanto, a
brasilidade da obra está presente na linha melódica cujo contorno resulta na dramaticidade e
plangência urbano-seresteira.

Exemplo Musical 3. Flor da Noite c. 16 e c. 17.


101

Take 2. (00’ 00” a 00’ 41”) Flor da Noite — Seção A

Exemplo Musical 4. Flor da Noite c. 1 ao c. 10.

Após um único compasso introdutório ao tema, em que o piano toca, inicia-se o solo
de violoncelo (c. 2), com tema curto formado por um simples arpejo descendente do acorde de
Ré Maior que termina na sétima menor dando a ideia de modo mixolídio, com temática de
caráter modal. Radamés utilizou sequências harmônicas à maneira do jazz. O tema se repete
uma terça menor abaixo com as mesmas relações intervalares conforme se vê na partitura (c.
4), estendendo-se até o c. 9.
No c. 10 a frase do tema é relembrada pelo piano uma quarta aumentada abaixo. O
Duo toca a seção A de forma romântica e em rubato, com características do swing específico
de quem conhecia a origem do tema, um pregão. A pulsação escolhida pelo Duo em Flor da
Noite só começa a ficar clara a partir do terceiro compasso.
102

O violoncelista apresenta a nota mais aguda do tema (c. 2.1) com uma fermata que não
está escrita. Certamente o parceiro de Radamés sabia a história do tema e cantou em seu
instrumento “Oooolha a flor da noite...” Porém o arpejo descendente que se segue é tocado
em andamento flutuante pelo violoncelo acompanhado pelo piano. Essa variação agógica
executada pelos músicos não está escrita.

****

A seguir, analisam-se separadamente os cinco primeiros compassos executados (c. 1


ao c. 5.3), e constata-se que, logo no início, a pulsação dada nos acordes introdutórios é
totalmente ignorada após a entrada do tema do pregão feita pelo violoncelo.

Take 3. (00’ 00’‘ a 00’ 22’’) Flor da Noite — Seção A c. 1 ao c. 5

Exemplo Musical 5. Flor da Noite – c. 1 ao c. 5.

Desde o início, no c. 1, encontram-se liberdades de interpretação, não demarcadas pelo


compositor na partitura autógrafa. Essas liberdades são pormenorizadas a seguir:
1. Os dois primeiros compassos são livres e plenos de rubato;
2. Radamés toca os primeiros acordes da peça, tanto o acorde que contém acento, como o
acorde de resolução, em mezzo forte, quase em forte. A dinâmica proposta é p (piano).
Musicalmente correto, devido ao acorde da resolução (c. 1.3) estar escrito no contratempo,
formando síncope, que vai soar em todo o segundo compasso. A indicação P, então, pode ter
sido sugerida por Radamés devido ao seu senso de acompanhamento. Essa indicação
denotaria apenas o aspecto de delicadeza que ele talvez quisesse indicar;
103

3. Radamés escreve na partitura do piano, no c. 1, a dinâmica p (piano). No 2º tempo desse


compasso (c.1), ele escreveu um acento (>) na mão direita do piano. Esse acento de dinâmica
requereria que o acorde seguinte, do terceiro tempo (sua resolução), fosse tocado com o som
mais piano, de acordo com regras de fraseado e interpretação preconizadas por Mathis Lussy
(1884). Na gravação, Radamés toca os dois acordes praticamente com o mesmo volume de
som, procedimento recorrente na interpretação de trechos similares da peça. Cabe ressaltar
que o acorde da resolução (c. 1.3) provoca uma síncope que é diluída no c. 2. Assim, o acorde
tocado com leve acento e tenuto (não escrito), tem significado dinâmico expressivo;
4. A partir do c. 2, quando Iberê toca o tema (c. 1 e c. 2), onde está escrito na dinâmica, piano,
ele toca pianíssimo e faz um grande crescendo na própria primeira nota. Essa é uma dinâmica
que não está indicada na partitura, e é interessante porque, apesar disso, musicalmente está
correta, afinal, no segundo compasso (para Radamés), na partitura do piano, não há
movimento nenhum, existindo apenas uma suspensão ou prolongamento do valor do acorde.
De acordo com as regras do guia de interpretação de Schnabel (WOLFF, 1972, p. 26), o início
de uma frase, se tocada com acento indesejado, pode gerar o que ele chama de “sotaque” ou
“barriga”. Quando o violoncelo entra, Iberê aproveitou a sonoridade em piano que provinha
do primeiro compasso (acorde introdutório do piano) e escolheu começar em pianíssimo e
imediatamente utilizar um crescendo na própria nota, ou seja, executou uma fermata não
indicada que acrescenta quase um tempo no valor dessa nota. (Ouça-se: Take 3. 00’ 00’’ a 00’
12’’). Isso foi uma característica expressiva que ele não repetiu no terceiro compasso, quando
aparece o tema uma terça menor abaixo (c.3 e c.4), em que o piano tem movimento de
semínimas. O Duo confirma a regra prática de execução de fraseado apresentada no guia de
Schnabel, (e preconizada por Mathis Lussy), mantendo o diálogo simbiótico entre os
intérpretes;
5. No c. 3 Radamés, desta vez, vai tocar bem a tempo. Isso ocorre porque o piano, a partir daí,
apoia a frase do violoncelo com acordes em mínimas contendo um contracanto em semínimas
na mão direita, com articulações de duas em duas notas, que não são executadas por Radamés;
6. A fermata não escrita e executada pelo violoncelo na primeira nota do c. 2 não é executada
em c. 4, como seria esperado, embora o tema “Oooolha a flor da noite...” esteja repetido uma
terça abaixo. Quando o tema surge pela segunda vez, o acompanhamento do piano tem
movimento de semínimas na mão direita, e, só aí, o Duo estabelece claramente a pulsação da
peça em andamento moderato. Percebem-se os dois compassos iniciais como uma introdução
adlibitum. É interessante observar que Radamés não escreveu o que poderia ser um subtítulo
104

para Flor da Noite: tema de pregão, uma informação que seria de utilidade para outros
intérpretes pensarem na possibilidade da aludida fermata não indicada;
7. Em relação à partitura, pode-se dizer que os compassos c. 3 e c. 4 são executados de forma
mais ritmicamente apropriada, se comparada apenas à partitura, e aos três primeiros
compassos, que estão carregados de liberdade rítmica — swing;
8. A variação agógica realizada pelo Duo não está, em nenhum momento, indicada com
marcações tais como Tempo rubato, Tempo tenuto, livremente, entre outras. A única
informação feita no que se refere ao andamento geral da peça está no início da música, com a
indicação da palavra Moderato.
Prossegue-se a análise aural pormenorizada apresentando-se os cinco compassos
seguintes (c. 5.4 ao c. 10), e em seguida destacam-se algumas realizações interpretativas que
diferem do que foi marcado no texto pelo compositor.
No Take 4, a seguir, sentiu-se necessidade de ouvir-se a peça desde o início para que
se pudesse perceber melhor as variações agógicas referentes à Subseção a’ que inicia-se na
realidade na minutagem 00’ 22’‘.

Take 4. (00’ 00” a 00’ 41”) Flor da Noite — Seção A c. 5 ao c. 10

Exemplo Musical 6. Flor da Noite - c. 5.4 ao c. 10.


105

1. Nos dois compassos c. 5.4 e c. 6, como se pode observar na partitura, não existem
indicações de agitando, porém, neste início anacrústico Iberê já começa a acelerar o
andamento e agitar o fraseado. Iberê toca as tercinas do início da frase em acelerando;
2. Pode-se considerar que Iberê não realiza de fato a tenuta, que é indicada sob a nota Si
bemol do último tempo do c. 6 (c. 6.4), se for comparada à primeira nota do tema, que ele
executa em fermata (ou em tenuta exacerbada) e não há marcação alguma;
3. Iberê não faz a articulação indicada no c. 6.4, e sim um grande legato e agitando
ininterrupto, só acalmando no final da frase, no segundo 5/4, em c. 9.4;
4. O agitando deveria ter começado no primeiro 5/4, em c. 7.3, depois da colcheia pontuada,
conforme o texto;
5. O cedendo indicado no final do compasso c. 8.3 em 4/4 é ignorado pelo Duo, que prolonga
o agitato até o c. 9.2 em 5/4 (compasso seguinte);
6. Em c. 8.4, Iberê usa as últimas tercinas como swing do agitato. Como um levare;
7. Pode-se dizer que Iberê “troca” o cedendo que está escrito no compasso c. 8.3 por um
cedendo feito no final do compasso c. 9, exatamente nas três últimas notas — nos dois
últimos tempos do compasso, onde não há nenhuma marcação.
Na verdade, Iberê fez o cedendo no local onde é musicalmente mais natural, só no
finalzinho da frase, antes do piano solar a frase do canto do pregão “Olha a Flor da Noite”.
Não se sabe por que razão Radamés escreveu o cedendo muito antes do local que seria natural
e não modificou a partitura, já que na gravação eles tocam a frase de forma diferente do que
está no manuscrito. Cogita-se que foi para dar ênfase ao tema que é apresentado de forma
reduzida no piano.

3.2.3.1 Comentários de David Chew I — dez primeiros compassos executados

Sobre o fato de Radamés deixar na partitura marcações que ele mesmo não realizou
tocando com Iberê, ouviu-se o violoncelista David Chew, que também gravou Flor da Noite.
O comentário do violoncelista, em entrevista para esta pesquisa51, sobre a interpretação de
Iberê, que difere da gravação feita pelo Duo Chew-Canaud é o seguinte:

51
A entrevista foi realizada no Rio de Janeiro, em 13 de janeiro de 2013.
106

Eu gostei muito da frase do Iberê, como ele faz a frase mais rubato. Porém devo
dizer que segui o que estava escrito, afinal a gente aprende nas escolas a fazer a frase
do jeito que está escrita pelo compositor. Uma pessoa que pegue essa partitura e que
seja bem minuciosa em respeitar a parte, jamais tocará como Iberê tocou (CHEW,
2013).

David prossegue com o comentário:


Eu gravei com Radamés e Iberê na Orquestra da Cooperativa, no último concerto
de Iberê na Sala Cecília Meireles, em 1985. Eu lembro que quando Radamés
apaixonava-se por uma nota ou interpretação que não estivesse escrita por ele
mesmo, ele dizia, “Ficou bom, tá bonito, pode fazer assim”, só que ele não mudava a
partitura. Então, talvez as variações de dinâmica e fraseado feitas por Iberê na
gravação de Flor da Noite, podem ser um caso semelhante. Então é por isso que se
torna importante poder ouvi-los tocando, principalmente, porque se a pessoa for
tocar como está na partitura vai tocar com menos swing (CHEW, 2013).

O tema de Flor da Noite era uma melodia conhecida pelos dois músicos, que sabiam
de sua origem, um pregão, entoado por uma vendedora de pipocas da Bahia. Obviamente,
como conhecedores do tema também sabiam como deviam entoá-lo. Por essa razão,
considera-se que o tema é tocado com característica própria do swing inerente. Considera-se
que Iberê e Radamés se sentiam à vontade em interpretar o tema como ele era cantado.
Embora Radamés não tenha colocado no enunciado da partitura, a indicação, por
exemplo, que Flor da Noite era um tema tirado de pregão, considera-se que essa informação
seria útil para um músico não conhecedor de sua biografia ou de sua fonte de inspiração se
aproximar do swing característico e inerente.
A seguir, apresenta-se o Take 5, a partitura e a análise da Subseção a’’ (c. 11 ao c.
19.3).
107

Take 5. (00’ 42” a 01’ 16”) Flor da Noite — Subseção a”’ c. 11 ao c. 19.3

Exemplo Musical 7. Flor da Noite – c. 11 ao c. 19.3.

As diferenças encontradas entre interpretação e partitura na Subseção a’’ são:


1. Embora menos enfaticamente, Iberê estendeu novamente o tempo da primeira nota do tema
(c. 11), como se estivesse escrito uma fermata ou a palavra tenuta na nota;
2. No acompanhamento do piano nos compassos c. 12 e c. 13 existem ligaduras de duas em
duas semínimas, o que sugeriria articulação de dois em dois tempos. Radamés toca-as sem a
articulação escrita, como se fossem quatro tempos bem marcados. Isso em inglês chama-se
“plodding” que quer dizer andando, pé ante pé, andando pesadamente. Talvez nessa parte do
acompanhamento do pregão, Radamés estivesse evocando o andar da vendedora de pipocas;
108

3. Radamés escreveu um crescendo para Forte do c. 13 ao c. 14. Iberê não respeitou essa
indicação. Ele fez sim um grande acelerando em direção à nota Lá Bemol do primeiro tempo
do c. 15;
4. Na nota Lá Bemol do primeiro tempo do c. 14, Iberê a executa como tenuta, e isso não está
indicado na partitura;
5. No compasso c. 17.4, existe uma articulação marcada na partitura do violoncelo, que pede
um tipo de distinção na qual a arcada ligaria a colcheia do tempo anterior com a primeira nota
da tercina. Está marcado, na partitura, um legato para a primeira nota da tercina e, para as
outras duas, estão marcados staccati. Iberê realiza a frase exclusivamente em legato;
6. No final da Subseção a’’, no compasso c. 19, o piano de Radamés faz um cedendo não
escrito na partitura. Pode ser que Radamés o tenha considerado óbvio, se tratando de um final
de frase e de período. De qualquer forma isso não fica claro, uma vez que não foi indicado;
7. No mesmo compasso, no terceiro tempo (c. 19.3), na última nota da Seção A, Radamés
executa uma fermata não escrita. Esse recorte pode ser verificado no final do Take 5,
especificamente entre a minutagem 01’ 00” a 01’ 16”;
8. E, por fim, destaca-se que a nota do terceiro tempo c. 17.3 é tocada arpejada pelo piano.
Isso também não foi devidamente indicado na partitura.
A Seção B inicia-se em anacruse ao c. 19.4 e termina no c. 43. Essa Seção B compõe-
se de três subseções: Subseção b1 (c. 19.3 ao c. 29); Subseção b2(c. 29.4 ao c. 35); e
Subseção b3 (c. 36 ao c. 43). A seguir, apresenta-se o Take 6 e a partitura correspondente.
109

Take 6. (01’ 17” a 03’ 35”) Flor da Noite — Seção B c. 19.4 ao c. 43

Exemplo Musical 8.1 Flor da Noite – Seção B - c. 19.4 ao c. 43.


110

Exemplo Musical 8.2 – Flor da Noite – Seção B - c. 19.4 ao c. 43 (continuação)

****

A Subseção b1 (c. 19.3 ao c. 29) consta de um desenvolvimento clássico com


pequenos trechos ou blocos composicionais repetidos três vezes. Notam-se os desenhos dos
contornos melódicos, do primeiro bloco, no c. 23.4 ao c. 25.2. O segundo bloco em c. 25.4 ao
c. 27.2, a repetição do bloco reduzido em c. 27.4 ao c. 28.2 e o último bloco, também redução
da última frase, no compasso c. 27.4 ao c. 30.
A seguir apresenta-se o Take 7, a partitura correspondente e a análise aural da
execução, correspondente à Subseção b1.
111

Take 7. (01’ 17” a 01’ 48”) Flor da Noite — Subseção b1

Exemplo Musical 9. Flor da Noite – Subseção b1 - c. 19.4 ao c. 29.

1. Nota-se que o Duo começa os quatro primeiros compassos da Subseção b1 com a pulsação
regular, porém em andamento M.M = 85 (semínima) muito mais rápido do que a pulsação
inicial da peça, verificada na Seção A (c. 3 e c. 4) com andamento de aproximadamente M.M
= 72 (semínima). Transparece uma atmosfera de agitato não marcada no texto;
2. Em c. 23.4 o Duo começa a fazer cedendo em cada trecho ou bloco de variações em
contornos melódicos sem que estes estejam escritos no texto;
112

3. Eles terminam a Subseção b1 com uma grande variação de tempo, um rallentando que não
está marcado na partitura (c. 29). Iberê talvez tenha executado o trecho dessa forma para dar
mais efeito aos harmônicos do final da frase;
4. Iberê executa o trecho indicado para ser tocado em harmônico uma oitava acima do que
seria natural. Essa indicação não consta na partitura. Radamés simplesmente escreveu:
harmônico mi-fá-ré. Isso foi uma liberdade na interpretação de Iberê.

***

A seguir, a Subseção b2 começa no quarto tempo do c. 29 em elisão. A partir do


quarto tempo do c. 30, o violoncelo repete o mesmo inciso composto de quiálteras na parte
aguda em accelerando até o rallentando proposto no final dessa subseção no compasso c. 35.
A harmonia nesse trecho tem acordes de mesma natureza, porém com disposições diferentes,
em contraponto com o violoncelo.

Take 8. (01’ 48” a 02’ 06”) Flor da Noite — Subseção b2

Exemplo Musical 10. Flor da Noite - Subseção b2 - c. 29.4 ao c. 35.


113

1. Nota-se que o Duo começa a frase a partir de c. 29.4 em andamento vivo e acelerado, que
na verdade está indicado um compasso depois, em c. 31;
2. No compasso onde está indicado VIVO (c. 34) tem uma indicação de forte (F) escrita na
barra de compasso do violoncelo. Iberê, em vez disso, executa a frase em retenu e toca
algumas notas ligeiramente tenutas;
3. O rallentando no violoncelo está escrito para começar em c. 35.2, porém Iberê continua
com o retenu no início de c. 35 e precipita as últimas quatro semicolcheias (c. 35.4) para a
nota ré do c. 36.1, como se estas fossem uma anacruse. Iberê toca com a intenção de
finalização da frase.

****

A Subseção b3 é tética e inicia-se no c. 36. Consta de arpejos do violoncelo e de


ampliação do mesmo inciso da Subseção b2 (c. 20 e c. 21), por repetição, dos desenhos
melódicos em quiálteras. No c. 43, os desenhos em quiálteras funcionam como uma
preparação para a próxima seção, reexposição, Seção A’, no compasso seguinte (c. 44).

Take 9. (02’ 03” a 02’ 34”) Flor da Noite — Subseção b3

Exemplo Musical 11. Flor da Noite – Subseção b3 – c. 36 ao c. 43.


114

Observa-se que, apesar de na sua escrita Radamés ter situado claramente o início da
Subseção b3 (c.36), inclusive colocando a indicação Tempo, Iberê toca a nota Ré 1 do c. 36
como se ela pertencesse ao fim da frase anterior (Subseção b2). Ou seja, auralmente parece
que a Subseção b3 começa em c. 37.
Existem outras pequenas diferenças interpretativas em relação ao texto correspondente
à Subseção b3.
1. Nos compassos c. 37 e c. 38 o violoncelo toca em legato e na partitura não há ligadura para
a frase;
2. Nos compassos c. 39 e c. 40 Iberê não faz o cedendo escrito;
3. Nos compassos c. 42 e c. 43 Iberê faz um grande crescendo e rallentando que não estão
marcados por Radamés na partitura.
Observa-se que, na partitura do violoncelo (c. 40), não estão escritas indicações de
variações agógicas (ced... — tempo — ced...). Porém elas estão na partitura do piano (grade)
na pauta do violoncelo (vide Exemplo Musical 8, c. 40). Nesse caso, não se pode dizer que
Iberê deixou de tocar o que foi escrito. Esse fato pode gerar controvérsias em futuras
interpretações.

3.2.3.2 Comentários de David Chew II

Conforme aventou David Chew na entrevista mencionada anteriormente neste


trabalho, Radamés teria concordado com a versão de Iberê ou teria se esquecido de indicar na
partitura do violoncelista as mesmas indicações que escrevera na própria (CHEW, 2013). O
fato é que o Duo gravou esse trecho da peça (c. 40) com a interpretação do solista
dessemelhante à grade, porém Radamés manteve as indicações (ced... — tempo — ced...)
originais. Radamés provavelmente tenha achado válido gravar a versão não escrita. Este fato
corrobora a importância de uma revisão fonográfica na obra do autor.

***

A seguir, a Seção A’ inicia-se no c. 44 apresentando o tema novamente no violoncelo,


com as notas um tom abaixo e com as mesmas relações intervalares da Seção A. A ampliação
do tema assemelha-se à frase da Seção A, porém com harmonia diversa, terminando no c. 52.
115

Take 10. (02’ 30” a 03’ 35”) Flor da Noite — Seção A’

Exemplo Musical 12. Flor da Noite – Seção A’ - c. 44 ao c. 52.1.

As diferenças entre execução e texto evidenciadas são:


1. Iberê toca o tema principal reexposto no compasso c. 44 sem rubato. Radamés puxa o
andamento com o movimento das colcheias do acompanhamento;
2. Nestas colcheias existem articulações de duas em duas notas e Radamés as faz todas
ligadas. (c. 45 e c. 46);
3. No compasso c. 45 e c. 46 existem contracantos nas vozes intermediárias — na mão direita
do piano — em colcheias. Essa sequência de colcheias na reapresentação do tema (Seção A’)
provocou um movimento e um balanço na interpretação do violoncelo, que, talvez por essa
razão, faz o tema a tempo, diferentemente do trecho similar da Seção A (c. 2 e c. 3) onde ele
116

havia tocado com muito rubato e feito uma grande fermata que aumentou em um tempo o
valor da nota. Considera-se aqui o swing característico;
4. A nota tenuta, que está indicada na partitura no c. 48.4, foi realizada enfaticamente por
Iberê no lugar em que está marcada, ao contrário do que tinha feito na exposição do tema,
Seção A (c. 6.4);
5. Iberê faz um acelerando no compasso c. 49 que não está escrito;
6. Iberê valoriza a entrada do ritmo 5/4 (c. 49) fazendo uma nota tenuta enfatizada. Pode-se
considerar que isso é uma característica de swing, pois ele dá um movimento na alternância
do 4/4 com o 5/4. No 5/4 ele puxa o andamento para frente e depois cede;
7. Ele faz o cedendo escrito para ser realizado no c. 50 um compasso depois (c. 51), em
direção ao c. 52. Ou seja, ele só faz o cedendo no final da frase (c. 51), para a entrada da Coda
(c. 52). No cedendo escrito, o Duo toca acelerando. O cedendo só é de fato realizado pelo
violoncelo e pelo piano no c. 51.3.
A Coda, do c. 52 até o c. 57, apresenta nos seus três primeiros compassos (c. 52, c. 53
e c. 54) o tema reduzido na voz do piano que o toca arpejado três vezes: em Fá Maior, em Si
Bemol Maior e em Ré Bemol Maior. O violoncelo apresenta contraponto com arpejos
ascendentes nos últimos incisos dos compassos. Em seguida, nos três últimos compassos (c.
55, c. 56 e c. 57), em que ocorre a cadência perfeita, o piano toca um acompanhamento
similar ao do início da peça, em contraponto com trinados do violoncelo.
A seguir o Take 11, as partituras correspondentes e a análise aural da Coda.

Take 11. (03’ 05” a 03’ 35”) Flor da Noite — Coda

Exemplo Musical 13. Flor da Noite – Coda – c. 52 ao c. 57.


117

1. Na Coda (c. 52 ao c. 57) no c. 52, c. 53 e c. 54, o piano apresenta o tema realizando um


crescendo que não foi marcado na partitura. E no c. 56 e c. 57, realiza um grande decrescendo
na sonoridade em direção a um pianíssimo, sendo que essa dinâmica realizada, também não
foi marcada no texto;
2. O andamento da Coda com o tema de Flor da noite é tocado pelo piano a tempo;
3. Iberê nas notas em sequência ascendente que levam aos trinados (em contracanto com o
solo do piano) acrescenta coloridos ao som que caminha para o pianíssimo final. Essa
interpretação não foi marcada na partitura;
4. Iberê insere na última nota do violoncelo uma appoggiatura. A nota fá4 é tocada duas
vezes, depois de ser trinada no compasso anterior. Isso não está escrito e foi uma das
liberdades tomadas pelo violoncelista com o consentimento do autor- intérprete.
Apesar da virtuosidade técnica exigida pela obra, os intérpretes executam-na com
primor, de maneira livre, não-metronômica, evidenciando um swing característico, ou seja,
executam-na utilizando a agógica em proporções naturais, ainda que exacerbada no que se
refere ao texto. Radamés Gnattali, tal qual outros compositores, como Chopin nas Mazurkas,
não indica exatamente algumas modificações correspondentes a suas intenções, deixando livre
a imaginação dos intérpretes. Considera-se, entretanto, que o autor poderia ter indicado que o
tema foi originado de um pregão, pois em sua própria interpretação deu à peça caráter
descritivo.
Nos capítulos 3 e 4 discorre-se sobre as interpretações e a validade das análises aurais
— parte da revisão fonográfica como ferramenta de auxílio interpretativo.
118

3.2.4 Flor da Noite — Análise Aural sucinta e comparativa da peça na interpretação do


Duo Chew-Canaud no CD Obra Completa para Violoncelo e Piano de Radamés Gnattali
— 2006

Take 12. (00’ 00’’ A 04’26’’) Flor da Noite — versão integral Chew-Canaud (partitura
integral editada, vide Anexo D)

A análise do fonograma é baseada na dinâmica, acentos, ritmo e agógicas realizadas na


interpretação do Duo Chew-Canaud do CD Obra Completa para Violoncelo e Piano de
Radamés Gnattali – 2006.
É interessante destacar-se que estes intérpretes, na ocasião da gravação realizada para
o lançamento do referido CD em 2006, ainda não conheciam a origem do tema da peça Flor
da Noite. Tampouco tiveram a oportunidade de ouvir a rara gravação em anexo, feita quarenta
anos antes, pelo próprio compositor com seu parceiro Iberê Gomes Grosso.
O Duo Chew-Canaud dedicou-se a interpretá-la procurando obedecer às indicações da
partitura original manuscrita para violoncelo. Entretanto, a partitura do acompanhamento do
piano não foi a autógrafa (usada por Radamés), e sim uma versão transcrita para a tonalidade
do violoncelo, extraída da edição para violino e piano publicada por Irmãos Vitale —
copyright 1940 — para Brasil e Portugal. Cabe ressaltar que existem algumas diferenças
apenas no acompanhamento do piano entre a partitura editada e a partitura manuscrita,
utilizada pelos pianistas na gravação do LP e na gravação do CD. A partitura do piano editada
por Irmãos Vitale está no Anexo D deste trabalho.
Na interpretação registrada por David Chew e Fernanda Canaud, a peça Flor da Noite
é executada com duração 04’ 33’’, ou seja, mais de um minuto da duração da gravação do
compositor com Iberê.
A principal diferença desta versão está na menor ocorrência de variações de
andamento e de agógica. Chew-Canaud utilizam a pulsação em torno de M.M. = 58
(semínima), porém sem grandes alterações no andamento geral da peça.
Analisando-se comparativamente apenas os dez primeiros compassos de Flor da
Noite, percebe-se que, se um violoncelista seguir a partitura de acordo com as indicações
feitas pelo autor, provavelmente dará uma versão bastante diferente da interpretação de Iberê
Gomes Grosso. Por exemplo:
119

1. A primeira nota do tema tocada pelo violoncelo no compasso c. 2.1 é tocada por David
Chew sem a fermata e sem o crescendo feitos por Iberê, que provavelmente conhecia a
origem do tema (pregão “Oooolha a Flor da Noite”) ou pelo fato de conhecer o autor e tocar
com ele;
2. Na apresentação do tema (nos cinco primeiros compassos), a pulsação é regular sem
alterações agógicas marcantes;
3. Os acentos, os fraseados e a dinâmica são respeitados de acordo com a forma que foram
escritos, sem tomar liberdades;
4. A nota marcada tenuta para o violoncelo e o piano no c. 6.4 é feita de acordo com a
partitura, ao contrário da versão de Iberê e Radamés;
5. O andamento é mais lento e o agitando do c. 7 é feito sem que a pulsação seja flutuante;
6. O violoncelo executa o cedendo do c. 8.3 (ced...) no lugar marcado, estendendo-o até o c.
10;
7. Chew faz a articulação das tercinas conforme o que está escrito (c. 9), ou seja, a ligadura
das duas primeiras notas e a separação da terceira nota da tercina. Iberê toca agitato e em
legato;
8. No c. 10, na lembrança do tema, o piano recupera a pulsação em vez de fazer rallentando e
fermata no acorde em c. 10.4, conforme a versão de Radamés. O piano entra a tempo fazendo
a citação do tema;
9. A dinâmica é mantida em piano, conforme o escrito. Na versão de Iberê e Radamés
constatou-se que a dinâmica da interpretação oscilou entre piano, forte e mezzo forte.

3.3 Modinha & Baião — A obra e sua execução

Radamés Gnattali dedicou Modinha & Baião (1952) ao violoncelista Gregory Benko.
A obra estilizada foi inspirada nos gêneros homônimos. Está dividida em duas partes,
Modinha em andamento lento, e a outra, Baião, em andamento rápido. A última inspirada no
gênero baião, muito em voga na década de 1950. A gravação da peça Modinha & Baião tem
duração total de 07’ 22’’. No LP, ela é apresentada em duas faixas distintas: a terceira faixa
tem a Modinha com 04’ 00” e a quarta faixa tem o Baião com 03’ 20’’.
120

Para as análises dos fonogramas dessa obra, fazem-se algumas considerações sobre a
estrutura geral de cada uma das peças e em seguida a revisão fonográfica propriamente dita.
Primeiramente apresenta-se a Modinha e depois o Baião.

3.3.1 Modinha — Algumas considerações sobre a peça

A modinha possui um caráter cantábile, seresteiro e plangente e o acompanhamento


discreto do piano permite certa liberdade de interpretação ao violoncelo. A melodia ou o tema
possui um caráter melancólico, quase dramático com um acompanhamento austero e obscuro,
tornando-se mais claro no decorrer da obra, porém voltando à melancolia inicial, no final da
peça. A escolha da tonalidade menor confere certa dramaticidade ao movimento, sobretudo na
Introdução e na Coda. A utilização de toda a extensão do violoncelo com aproveitamento do
colorido das regiões grave, média e aguda do instrumento, em perfeito equilíbrio com o piano,
resulta em clareza composicional e objetividade invulgar no que se refere à apresentação das
seções. Destaca-se que Radamés Gnattali empregou na peça procedimentos da harmonia
funcional e, na Seção B que é iniciada com solo do piano, imprimiu caráter improvisativo à
melodia. A rítmica característica do gênero modinha apresenta-se de forma evidente e a
temática tem caráter regionalista voltada para a música urbana paulista, carioca e nordestina.

3.3.2 Modinha — Estrutura geral da peça

No intuito de facilitar a análise dos fonogramas relacionando-os com a partitura,


optou-se por apresentar um quadro sucinto contendo o resumo da análise formal mostrando
apenas a delimitação das seções e subseções da peça.
A Modinha é uma peça de 60 compassos de estrutura ternária, contendo Introdução e
Coda, tal como as formas tradicionais (Introdução A B A’ Coda), contendo frases e períodos
regulares, irregulares e assimétricos.
As partes dispõem-se como no quadro a seguir:
121

Quadro 3. Forma Musical de Modinha

Introdução — c. 1 ao c. 7
A — c. 8 ao c. 23
B — c. 24 ao c. 37
A’ — c. 38 ao c. 53
Coda — c. 54 ao c. 60

3.3.3 Modinha — Revisão Fonográfica — Análise Aural da Gravação de Radamés


Gnattali e Iberê Gomes Grosso

Apresenta-se a gravação integral de Radamés Gnattali e Iberê Gomes. A partitura


autógrafa completa encontra-se no Anexo B.

Take 13. (00’ 00” a 04’ 14”) Modinha — versão integral

Primeiramente faz-se a análise fonográfica do trecho correspondente à Introdução da


Modinha, em seguida os trechos correspondentes às seções subsequentes (A, B, A’ e Coda),
apresentando-se o Take correspondente a cada seção com a partitura autógrafa de Radamés.
Em alguns casos foram feitos recortes mais detalhados a fim de evidenciar aspectos
característicos das interpretações de Iberê e Radamés.
A Introdução (c. 1 ao c. 7) possui melodia com caráter melancólico, quase dramático
com um acompanhamento austero tornando-se mais claro nas seções subsequentes. Consta de
seis compassos em que o violoncelo apresenta melodia seresteira sobre um pedal grave da
nota Lá com um desenho em contratempo, e o sétimo compasso apresenta um desenho
melódico de ligação para a Seção A.
Embora apenas na parte do acompanhamento do piano Radamés tenha escrito
indicações de legato e marcato, o solo do violoncelo é tocado de forma appassionata,
evocando dramaticidade.
A partitura autógrafa tem indicação metronômica M.M. = 68 (semínima), que é
totalmente ignorada pelo Duo. O autor gravou com Iberê Gomes Grosso a introdução em
M.M. = 58 (semínima), aproximadamente.
122

Take 14. (00’ 00’’ a 00’ 34’’) Modinha — Introdução

Exemplo Musical 14. Modinha – (c. 1 ao c. 7).

Logo no início, constatam-se liberdades expressivas na interpretação do Duo, que não


estão claramente evidenciadas nas marcações da partitura autógrafa de Radamés.
1. No c. 1 o violoncelo faz um grande acento tenuto na segunda colcheia e essa liberdade
expressiva muda o valor da nota para colcheia pontuada;
2. No contraponto do acompanhamento existem as indicações mezzo forte, ligado e marcado
e Radamés toca non legato, com as colcheias encurtadas e na dinâmica ele toca em Forte;
3. A respiração indicada por uma vírgula no c. 2.4, na parte do violoncelo, não é realizada.
Iberê faz uma grande frase em legato até o c. 3.3. Só então ele respira;
4. No quarto tempo do c. 3 Iberê toca a colcheia pontuada como nota tenuta, sem que isso
esteja indicado na parte;
123

5. Tanto no c. 2 como no c. 4 Iberê toca as semicolcheias sem a articulação indicada. Ele as


faz como um grande legato;
6. O último tempo do c. 5 Iberê toca as semicolcheias em rubato;
7. O Duo faz um leve rallentando antes do c. 6 que é perfeitamente justificável por se tratar
do final da Introdução, porém isso não foi marcado na partitura;
8. Iberê toca as notas de ligação para a Seção A, no c. 7 em rubato.

****

A Seção A (c. 8 ao c. 23) apresenta textura homofônica e acompanhamento menos


sombrio, com contracantos discretos, mantendo a pulsação rítmica da peça. O equilíbrio entre
melodia e acompanhamento, aliado a poucas indicações de dinâmica e agógica, confere
fluidez às dissonâncias. O piano limita-se à região central do instrumento, à maneira da
harmonia funcional. A Seção A começa no c. 8 e consiste de um período binário com duas
frases de quatro compassos. A primeira frase (c. 8 ao c. 15) é repetida com ligeiras
modificações nas frases e no acompanhamento (c. 16 ao c. 23).
A seguir o Take 15 e a partitura da Seção A (c. 8 ao c. 25) para análise aural.
124

Take 15. (00’ 08” a 01’ 38”) Modinha — Seção A

Exemplo Musical 15.1. Modinha (c. 8 ao c. 20).

Exemplo Musica 15.2. Modinha (c. 21 ao c. 23, continuação do exemplo).


125

As liberdades interpretativas percebidas que não estão marcadas no texto são:


1. Na Seção A o Duo diminuiu o andamento de M.M. = 58 (semínima) para M.M. = 54
(semínima) utilizando grandes oscilações agógicas;
2. Chama-se a atenção, no acompanhamento do piano, para a articulação que está indicada na
partitura, no c. 8, que não é executada. Para as seis colcheias, três em staccato e três em
legato, ele usa o staccato apenas nas duas primeiras, apoia a terceira colcheia ligando-a as
outras três do compasso. Ele faz um leve acento na terceira colcheia (c. 8.3), em legato com
as notas cromáticas que se seguem, em vez de tocá-la em staccato conforme está escrito, e
assim o faz em toda a peça quando esse desenho aparece;
3. No c. 9 as tercinas do quarto tempo (c. 9.4) são tocadas com um ligeiro acelerando
causando efeito interessante, característico do swing inerente. As tercinas escorregam para o
baixo no acompanhamento à maneira típica do pianeiro na música popular;
4. Em contrapartida, Iberê toca a primeira nota do c. 10 com uma pequena fermata (ou pode-
se considerar como nota tenuta), e com isso equilibra-se a frase, como num diálogo, entre o
violoncelo e o piano;
5. Todas as vezes que aparecem colcheias pontuadas seguidas de semicolcheias Iberê as
executa como nota tenuta (c. 8.4; c. 10.4; c. 16.4; c. 18.4);
6. A maioria das articulações escritas nas tercinas, por exemplo, a do c. 17, não são realizadas.
Iberê as toca em legato;
7. No c. 21, Iberê separa os intervalos melódicos com ligaduras de duas em duas notas, bem
como utiliza o glissando nos intervalos de mais de quarta justa no violoncelo, gerando um
efeito muito expressivo. Esta articulação não está escrita no texto por Radamés.

****

A Seção B (c. 24 ao c. 37) inicia-se com solo de piano com caráter de improvisação.
Impregnada de appoggiaturas expressivas, apresenta também cromatismo da linha melódica
na extensão de duas oitavas da região médio-aguda do piano. A seção tem duas subseções,
Subseção b1 (c. 24 ao c. 31) e Subseção b2 (c. 32 ao c. 37) de oito e seis compassos,
respectivamente.
A Subseção b1 apresenta indicação Pouco mais e inicia com solo de piano que
transmite caráter tanto improvisativo quanto virtuosístico à frase. Nessa subseção, o
violoncelo está em contracanto.
126

Take 16. (01’ 37” a 02’ 09”) Modinha — Seção B — Subseção b1 c. 24 ao c. 31

Exemplo Musical 16. Modinha (c. 24 ao c. 31).

Perceberam-se poucas diferenças no que se refere à interpretação do Duo Gnattali-


Gomes Grosso em relação à partitura.
1. Pode-se notar que na interpretação de Gnattali não há mudança de andamento e sim uma
execução em que o compositor-intérprete faz modificações agógicas com bastante swing e
virtuosismo;
2. No c. 29, após fazer em tenuta a primeira nota das quatro colcheias do terceiro tempo (c.
29.3), Iberê também executa um pocoacelerando, justamente onde Radamés escreveu
cedendo;
3. Iberê inicia no lugar do cedendo escrito, um longo rallentando (a partir do c. 29.4) até o
final da subseção (c. 31), que não está indicado;
4. A dinâmica F (forte) é indicada no c. 30, mas Iberê tocou em mezzo forte e, em seguida,
ainda no mesmo compasso, executa um diminuendo.
127

A Subseção b2 (c. 32 a c. 37) começa no A Tempo e termina em cadência suspensiva


apresentando notas de ligação para a Seção A’. Nessa subseção, o solo é do violoncelo com
acompanhamento do piano. A seguir o Take 17 e a partitura da Subseção b2 (c. 32 a c. 37)
para análise aural.

Take 17. (02’ 09” a 02’ 32”) Modinha — Subseção b2

Exemplo Musical 17.1 Modinha (c. 32), continuação a seguir.52

Exemplo Musical 17.2 Modinha – (c. 33 ao c. 37, continuação).

52
O Exemplo Musical 16. Seção b2 foi propositalmente recortado para facilitar a audição e a leitura da partitura
concomitantemente.
128

Em toda a Subseção b2, o Duo toca as articulações e dinâmicas escritas, o que prova
que a escrita de Radamés, por si, já favoreceria a reprodução de swing, ou seja, ela é uma
escrita idiomática. Contudo, perceberam-se algumas inflexões naturais não escritas, porém
musicalmente claras e compreensíveis.
A Seção A’ inicia-se no c. 38 e vai até o c. 51, idêntica à Seção A. Na verdade é um
trecho com indicação Al segno (Ritornelo) no qual a Seção A’ é igual à Seção A, à exceção
dos dois últimos compassos (c. 51 e c. 53.1) que preparam para a entrada da Coda.
A seção final (Coda) começa com a mesma nota que termina a Seção A’ no c. 53 e
termina no c. 59. Essa parte foi quase integralmente retirada da Introdução, à exceção dos
dois últimos compassos em que o piano, em vez de executar um acorde suspensivo, apresenta
a cadência final.
A seguir, apresentam-se o Take 18 e a partitura da Seção A’ e da Coda para as
análises.

Take 18. (02’ 32” a 04’ 14”) Modinha — Seção A’ e Coda.

Exemplo Musical 18.1. Modinha (c. 38 ao c. 50 e a seguir continua Seção A’ até c.53).
129

Exemplo Musical 18.2. (continuação da Seção A’ até c. 53) e Coda (c. 54 ao c. 60).

A Seção A’ e a Coda são executadas pelo Duo Gnattali-Gomes Grosso com poucas
diferenças em relação à partitura autógrafa, apenas três foram percebidas na análise aural:
1. No c. 48.4, a semicolcheia do quarto tempo é tocada por Iberê como uma nota tenuta
exacerbada;
2. No c. 51, Iberê faz um grande rallentando não escrito;
130

3. A Coda pede a dinâmica em pp (pianíssimo) e o Duo toca variando a sonoridade entre o


piano e o mezzo Forte, relembrando a dinâmica da introdução, com sonoridade encorpada, só
fazendo o pianíssimo escrito no último compasso depois do F (forte).
Iberê e Radamés fazem algumas notas tenutas que são justificáveis no gênero modinha
e as variações de tempo e agógica parecem bastante naturais, não carecendo, neste caso, de
serem exaustivamente marcadas pelo compositor. Comenta-se que, segundo Mário de
Andrade, “em geral nos últimos tempos dos compassos das nossas modinhas,
convencionalmente, torna-se natural executarem-se notas tenutas” e “[...] uma rítmica mais
livre, sem medição isolada musical era mais de nossa tendência” (ANDRADE, 2006, p. 25).
Falando sobre a influência portuguesa que permaneceu na música nordestina, no
quaternário gaúcho, nas modinhas, entre outros gêneros, ele destaca:
É na rítmica dessas manifestações principalmente que a gente encontra base nacional
por onde variar os metros. A própria invenção mais livre do criador individual lhe
dará quando sair do característico popular a variedade métrica que o populário não
fornece (ANDRADE, 2006, p. 31).

Sobre a dramaticidade melódica das modinhas brasileiras, Andrade fala: “a melódica


das nossas modinhas principalmente, é torturadíssima e isso é uma constância” (ANDRADE,
2006, p. 36).

3.3.4 Modinha — Análise Aural sucinta da peça na interpretação do Duo Chew-Canaud


no CD Obra Completa para Violoncelo e Piano de Radamés Gnattali — 2006

Take 19. (00’ 00’’A 04’ 30’’) Modinha — versão integral Chew-Canaud.

Na interpretação registrada por David Chew e Fernanda Canaud no CD Obra


Completa para violoncelo e Piano de Radamés Gnattali, a Modinha é executada com duração
03’ 58’’. A versão de Radamés e Iberê tem duração 04’ 16’’, ou seja, uma diferença de
dezoito segundos (18’’). A principal diferença entre as duas versões está na menor variação
agógica da execução do Duo Chew-Canaud. A versão de Radamés e Iberê está com a
pulsação mais livre e também com mais swing. O Duo Chew-Canaud preocupou-se em
realizar as marcações do compositor. Por esta razão, são sensíveis as diferenças
interpretativas, das quais se apresentam apenas alguns exemplos.
131

Take 20. (00’ 00” a 00’ 31”) Duo Chew-Canaud — Introdução (c. 1 até c. 7)

Exemplo Musical 19. Modinha (c. 1 ao c. 7).

1. O andamento da Introdução e da Coda é centrado no andamento indicado pelo compositor,


MM. = 68 (semínima);
2. O Duo executa a Introdução (c. 1 ao c. 7) com menos variações agógicas;
3. O acompanhamento do piano é tocado mais a tempo e são realizados o ligado e marcado
indicados pelo compositor na partitura (c. 1);
4. As ligaduras de articulação nas semicolcheias do c. 4 são realizadas pelo violoncelista tal
qual é pedido na partitura;
5. As articulações marcadas para o piano no acompanhamento (c. 8 e c. 16) são realizadas.
Essa é uma característica da escrita que permite ao acompanhador swingar. Talvez Radamés
não tenha se importado em mostrar claramente em sua execução essa articulação marcada por
ele próprio, porque o swing já fazia parte de sua musicalidade. Supõe-se que Radamés
escreveu as articulações para que outro pianista pudesse fazer esse acompanhamento o mais
próximo possível do swing característico;
132

6. David executa a nota sol do primeiro compasso como tenuta (não escrita), tal qual Iberê.
Porém, David canta a nota sol que está no quarto tempo, sem modificar o seu valor. Isso é
uma característica da modinha;
7. O levare do segundo compasso, depois da vírgula de respiração, separando a semicolcheia
da colcheia pontuada do terceiro tempo, está mais perceptível (c. 2 – c. 3), comparada à
execução de Iberê.

Take 21. (00’ 28” a 01’ 42”) Duo Chew-Canaud — Seção A (c. 8 até c. 23)

Exemplo Musical 20.1. Modinha (c. 8 ao c. 23)


133

Exemplo Musica 20.2. Modinha (continuação do exemplo c. 8 ao c. 23).

1. No c. 8 e c. 16, o piano executa bem claramente a articulação escrita. Essa pontuação para o
piano caracteriza uma escrita que possibilita a intenção de swing. Na execução de Radamés,
ele não se importou em mostrar tão claramente a articulação, porque, devido a sua formação
descrita e comentada no perfil biográfico deste trabalho, sabe-se que ele tocava naturalmente
com swing. Ele talvez não tivesse essa preocupação porque o swing inerente era naturalmente
conhecido e executado por ele. Esse tipo de indicação (de articulação) teria sido de bom
proveito para que outros pianistas pudessem realizar o swing revelado em suas execuções;
2. Pode-se dizer que do c. 8 ao c. 23, o Duo Chew-Canaud procurou seguir o que está
indicado na partitura.

Take 22. (01’ 42” a 02’ 17”) Duo Chew-Canaud — Subseção b1 (c. 24 até c. 37)

Exemplo Musical 21. Modinha – Subseção b1.


134

1. O Duo Chew-Canaud faz o andamento Pouco Mais como está indicado, porém com a
pulsação constante, iniciando o cedendo exatamente no local indicado na partitura;
2. No c. 27, o piano faz duas notas tenutas no quarto tempo, que não estão escritas, embora de
forma natural uma vez que elas são referentes ao término da frase;
3. No c. 30, o Duo executa o (f) Forte que está escrito;
4. No c. 31.4, onde Iberê tratou as duas notas da tercina como um levare para o ATEMPO
(Subseção b2) do c. 32, David executa ainda como cedendo, pois considerou o que foi escrito
na partitura;
Na Subseção b2, Seção A’’ e Coda não foram percebidas diferenças significativas
entre as gravações de Chew-Canaud e as de Gnattali-Gomes Grosso. Destaca-se apenas que
nas tercinas do baixo no acompanhamento do piano c. 39.4 e c. 47.4, apesar de estar escrito
legato, a pianista tomou a liberdade de tocar non legato, imaginando as cordas de um violão
de sete cordas.

3.3.4.1 Comentários de David Chew III (interpretações de Modinha)

As palavras do violoncelista David Chew, a seguir, são tiradas da entrevista concedida


à autora da pesquisa. David faz algumas considerações sobre sua execução da Modinha e
compara-a com a versão de Iberê.
Ambos, eu e Iberê, na Coda ao invés de fazermos pianíssimo como está marcado,
tocamos com sonoridade bem presente. Essa música é mais simples de analisar e
interpretar porque as delimitações das seções estão bem definidas. Em comparação
com Flor da Noite, as seções estão mais evidentes para os ouvintes. A Modinha tem
um modelo clássico de construção (forma) e por essa razão, se torna naturalmente
mais fácil de perceber onde fazer um rallentando natural. Curioso é que Iberê nem
sempre faz as terminações em rallentando, que seria a interpretação mais próxima
do que Radamés anotou na partitura, sobretudo quando ele indica A tempo (CHEW,
2013).

David destaca as peças de movimento lento Modinha e Flor da Noite.


Comparando a Modinha com Flor da Noite, que são duas peças com movimentos
lentos, Flor da Noite se torna mais difícil do intérprete se distanciar da partitura, não
tendo o conhecimento de que o tema é tirado de um pregão, ao passo que na peça
Modinha, o próprio nome já define o gênero e isso embute a maneira dolente de
interpretar. O fato do gênero musical (modinha) ser conhecido faz com que o
intérprete se arrisque ou ouse um pouco mais no que se refere a ele dar expressão ao
que sente e entende ser característico do estilo de uma modinha (CHEW, 2013).
135

3.3.5 Baião — Algumas considerações sobre a peça

No Baião, Gnattali utiliza francamente os modos nordestinos em linguagem muito


mais simples e popular do que na Modinha. As passagens cromáticas se devem, sobretudo, à
variedade de transposições e alterações do modo lídio e mixolídio, facilmente identificados
mesmo em pequenas passagens escalares. Gnattali não utilizou uma constância rítmica
característica da música popular para construir seu baião. Embora empregasse elementos
estéticos nordestinos, como a escolha da rítmica, pode-se perceber que as frases feitas por
grupos de semicolcheias aparecem com as acentuações deslocadas, configurando, dessa
forma, uma estilização do ritmo tradicional de baião.
A textura do baião é homofônica com poucas passagens em contracantos. O papel do
piano é quase exclusivamente reservado aos acordes nos tempos fortes, ritmos divididos para
as duas mãos e poucas intervenções ocupando os contratempos. Os acordes não são densos,
deixando grande parte da música entregue aos ritmos. A harmonia, embora usando poucas
dissonâncias, é variada dando suporte às várias modificações efetuadas nas escalas modais.
Sua estrutura complexa não compromete a fluência do discurso, pois não apresenta
prolixidade, facilitando assim a assimilação das frases mesmo quando são irregulares ou
assimétricas.

3.3.6 Baião — Estrutura geral da peça

No intuito de facilitar a análise dos fonogramas relacionando-os com a partitura,


optou-se por apresentar um quadro sucinto contendo o resumo da análise formal mostrando
apenas a delimitação das seções e subseções da peça.
O Baião tem 212 compassos, divididos em seções e subseções, com quantidades
variadas de compassos por seção e subseção, que são bem costuradas e entremeadas por
pequenos trechos com funções de ligação, transição, preparação e finalização. A estrutura
geral apresenta: Introdução, Seção A, Seção B, Seção A’e Coda.
As partes estão dispostas da seguinte maneira:
136

Quadro 4. Forma Musical do Baião

Introdução = i1 (c. 1 ao c. 5) — i2 (c. 5 ao c. 10)


Seção A = a1 (c. 11 ao c. 27.1) — transição (c. 27 ao c. 36) — a2 (c. 37 ao c. 45) —
transição (c. 45.2 ao c. 48) — a3 (c. 49 ao c. 65.1) — transição (c. 65.1.2 ao c. 68) — a4
(c. 69 c. 81.1) — transição (c. 81.1.2 ao c. 86.1).
Seção B = b1 (c. 86.2 ao c. 98.1) — b2 (c. 98.2 ao c. 110) — b3 (c. 110.2.2 ao c. 119.1) — b4 (c.
119.2 ao c. 125) — b5 (c. 125.2 ao c. 134) — ligação (c. 135 e c. 136).
Seção A’ = a’1(c. 137.1 ao c. 153) — transição (c. 153.2 ao c. 162.1) — a’2 (c.
162.2 ao c. 169.1) — a’3 (c. 169.2 ao c. 179.1) — transição ( 179.1 ao c. 182)— a’4 (c. 183 ao c.
194)— transição (c. 195 ao c. 200.1)
Coda. = (c. 200 ao c. 212).

3.3.7 Baião — Revisão Fonográfica —Análise Aural da Gravação de Radamés Gnattali e


Iberê Gomes Grosso

Apresenta-se a gravação integral do Baião na versão de Radamés Gnattali e Iberê


Gomes Grosso (do LP). A partitura correspondente encontra-se no Anexo C deste trabalho.

Take 23. (00’ 00” a 03’ 26”) Baião – versão integral

Primeiramente faz-se a análise fonográfica do trecho correspondente à Introdução, em


seguida os trechos correspondentes às seções subsequentes (A, B, A’ e Coda), apresentando-se
o Take correspondente a cada seção com a partitura autógrafa de Radamés em recorte
especificado.
Na interpretação do Baião, poucas diferenças foram encontradas entre a execução e a
partitura autógrafa. As características de virtuosismo e swing percebidas na interpretação
baseiam-se no andamento imprimido na gravação da peça pelo Duo no LP.
Destaca-se que Radamés não escreveu indicação metronômica na partitura do Baião,
cabendo aos intérpretes escolherem a pulsação que darão para a indicação de caráter VIVO e
Ritmado do enunciado. As indicações de sinais de expressão referem-se normalmente ao tipo
de termos que servem para reafirmar e melhor construir os andamentos.
137

Take 24. (00’ 00” a 00’ 12”) Baião — Introdução c. 1 ao c. 10

Exemplo Musical 22. Baião (c. 1 ao c. 10).

A Introdução (c. 1 ao c. 8) apresenta duas subseções. A Subseção i1 com uma frase do


violoncelo a partir de um único acorde do piano (c. 1 ao c. 4). As acentuações marcadas na
quarta parte do último tempo de cada compasso escritas na partitura são típicas de ritmos
regionais nordestinos. A Subseção i2 apresenta-se com mudança de compasso de 2/4 para 3/4
e o piano tem acordes ritmados e marcados em contraponto com o violoncelo (c. 5 ao c. 10).
Analisando-se auralmente a gravação de Radamés e Iberê, percebem-se
particularidades na interpretação do Duo:
1. Ao contrário da primeira peça de Modinha & Baião, na qual Radamés define o andamento
de forma metronômica, MM = 68 (semínima), nesta partitura do Baião Radamés não indica
andamento de forma metronômica. Ele escreve apenas VIVO e Ritmado. O Duo toca em
andamento quase presto MM = 138 (semínima), caracterizando logo na primeira subseção da
Introdução características de virtuosismo;
2. Considera-se que por causa do andamento escolhido, Iberê não executa os acentos escritos
na última semicolcheia de cada tempo dos compassos c. 2, c. 3 e c. 4 da Subseção i1 da
Introdução. O único acento que ele faz é na última semicolcheia do c.1.
A partitura da Seção A (c. 11 ao c. 86.1, vide a partitura completa no Anexo C) é
composta das seguintes subseções: Subseção a1 (c. 11 até c. 27.1), transição (c. 27.1.2 até c.
138

38), Subseção a2 (c. 39 até c. 48), Subseção a3 (c. 49 até c. 65.1), transição variada (c. 65.1.2
até c. 68), Subseção a4 (c. 69 até c. 81.1) e transição (c. 81.1.2 ao c. 86.1).
A Subseção a1 começa no c. 11 com uma preparação de quatro compassos feita pelo
piano até a entrada do tema exposto pelo violoncelo (c. 15). A transição para a Subseção a2 é
feita basicamente pelo violoncelo em escalas de semicolcheias ascendentes e descendentes (c.
27.1 até c. 38). Segue-se a Subseção a3 (c. 39 a c. 48) em que o piano apresenta o tema em
oitava (c. 39 até c.44) acompanhado por cordas duplas agudas do violoncelo, em pizzicatos
com o arco e tratamento dinâmico acentuado. Nota-se a indicação de arcadas, dinâmicas bem
planejadas, acentuações e ligaduras precisas e rítmicas inteligentemente construídas. Os
compassos finais da Subseção a3 (c. 46 até c. 48) conduzem a uma repetição da Subseção a1
que se nominou Subseção a4, seguida de transição.
Na versão de Radamés e Iberê, em toda a Seção A (c.11 ao c. 86.1) destacam-se
apenas cinco alterações da partitura percebidas na execução.
Nos Takes 25 e 26 a seguir, encontram-se os recortes necessários para as
comprovações e apresentam-se as partituras correspondentes.

Take 25. (00’ 12’’ a 00’ 28’’) Baião — (c. 11 ao c. 49).

Exemplo Musical 23. Baião — Subseção a1 e início da transição (c. 11 ao c. 29).


139

1. Iberê sola o tema da Subseção a1 mantendo o mesmo tempo VIVO que executou na
Introdução, ou seja, ele não sai da pulsação inicial de aproximadamente MM = 138
(semínima). Em razão do andamento da execução, o violoncelista não toca todas as
articulações escritas nas semicolcheias no c. 25.

Take 26. (00’ 30’’ a 00’ 40’’) Baião — (c. 30 ao c. 42).

Exemplo Musical 24. — Baião (c. 30 ao c. 42)

1. No final da escala descendente do c. 36, o violoncelista omite na sua execução a última


nota do grupo de semicolcheias do c. 37, transformando-as em uma semínima tenuta e
staccato. Essa execução de Iberê (c. 37.2), não escrita na partitura, preparou a entrada das
notas duplas (Ré e Lá). Foi uma liberdade de expressão do violoncelista. Acredita-se que essa
omissão foi intencional em razão do caráter Com Brilho que o Duo imprimiu ao Baião. Iberê
repetiu esse procedimento na passagem semelhante que acontece na Seção A’ (c. 162.1);
2. No c. 37 Iberê não realiza o crescendo que vai para o Forte (c. 39) marcado na partitura;
3. Devido ao andamento muito rápido adotado pelos músicos, os acentos indicados nas
terceiras semicolcheias dos primeiros tempos do c. 39; c. 40; c. 41 e c. 42 não são muito
enfatizadas pelo violoncelista.
140

Ressalta-se que na partitura, a Subseção a3 (c. 49 ao c. 65.1) e os três primeiros


compassos da transição (c. 65 ao c. 67) para a Subseção a4, são iguais aos compassos da
Subseção a1 (c. 11 ao c. 27.1) em Ritornelo. A interpretação do Duo nesse trecho em
Ritornelo confirmou as mesmas características percebidas e apontadas.
Prossegue-se com a análise aural da Seção B, destacando-se alguns exemplos
pormenorizados de passagens (em subseções) executadas que imprimem virtuosismo e swing
à interpretação do Baião pelo Duo Gnattali-Gomes Grosso.

Take 27. (01’ 16’’ a 01’ 46’’) Baião – Transição e Subseção b1 (c. 81 ao c. 110.1).

Exemplo Musical 25.1. Baião (c. 81 ao c. 101.1)


141

Exemplo Musical 25.2. Baião (continuação c. 81. Ao c. 110.1).

1. Iberê toca precipitando o andamento nas semicolcheias da transição (c. 81 ao c. 83) para a
Subseção b1. Existe uma coerência nesse aumento do andamento ou precipitação do tempo
que é realizado de forma musical e não como um susto ou por debilidade técnica. Fica claro
que ele “puxa” o andamento porque sente necessidade de tornar a passagem ascendente mais
brilhante até seu final suspensivo seguido do baixo em oitava (85.2) e do acorde (c. 86) no
piano escrito e tocado com sonoridade em Forte por Radamés;
2. Depois da transição (com a escala em acelerando não escrito), o solo, ainda do violoncelo
com o tema da Subseção b1, cujo tema melódico que é apresentado pela primeira vez na peça
é tocado de forma lírica e com o andamento um pouco mais lento (c. 86.2 ao c. 97);
3. Em seguida, (c. 98) o piano retoma o andamento e toca o tema da Subseção b2 a tempo.
Toda essa variação da pulsação e da agógica não está indicada na partitura. Cabe ressaltar que
o pianista toca a Subseção b2 com bastante swing devido à célula rítmica, muito característica
do ritmo de baião, escrita na partitura do acompanhamento na mão esquerda, em contracanto
com o tema lírico na mão direita.
142

Take 28. (01’ 52’’ a 02’ 16’’) Baião – (c. 117 ao c. 138).

Exemplo Musical 26. Baião (continuação c. 117. Ao c. 138).

Do c. 117 ao c. 138, Radamés e Iberê executam toda a passagem antes de iniciar-se a


Seção A (c.138) com variações agógicas e de andamento não indicadas na partitura.
1. No c. 117, antes da mudança de compasso para 3/4, Iberê realiza uma pausa de colcheia
maior do que a escrita, dando intenção de rallentar, ou seja, no final da Subseção b3, o Duo
faz um retenu não indicado;
2. No c. 125.2, entrada da Subseçãob4, o tema lírico tocado pelo violoncelo é iniciado em
andamento maislento (M.M = 112 semínima) e com as notas tenutas. Paulatinamente, o Duo
vai acelerando o andamento até chegar ao início da transição (c. 134) para Seção A’
(Subseção a’1) em andamento Vivo (M.M. = 132 semínima). Toda essa variação de
andamento não indicada na partitura imprime tanto virtuosismo quanto swing à interpretação
do Duo Gnattali-Gomes Grosso.
Apresenta-se a transição para a Subseção a’2 e análise, a seguir.
143

Take 29. (02’ 28’‘ a 02’ 43’’) Baião – Transição e Subseção a’2 (c. 153 ao c. 169).

Exemplo Musical 27.1. Baião (c. 153. Ao c. 158.2).

Ouve-se perfeitamente que Iberê no c. 158.2 da transição para a Subseção a’2,


novamente, tal qual o fez no c. 36, não completa as quatro semicolcheias (c. 158.2) do
segundo tempo do compasso. A omissão das notas transformando-as em uma semínima foi
uma execução proposital não indicada na partitura nem mesmo como opcional para o
violoncelista.

Exemplo Musical 27.2. Baião (c. 162.2. ao c. 169),


144

Do c. 162 ao c. 169, a dinâmica está escrita para ser executada forte no solo de piano.
Radamés toca em mezzo forte e marcato sem realizar as articulações indicadas. Só o acorde
de c. 169.1.2 está tocado com sonoridade forte e com intenção de crescendo, pois o pianista
adiciona um acento esforzato não escrito. Embora esse fraseado adotado na performance
possa talvez ter sido considerado “musicalmente óbvio” por ser um final de seção, considera-
se que Radamés poderia tê-lo indicado mais precisamente.
A seguir, apresenta-se o Take 30 com a execução da Subseção a’3 e partitura
correspondente (c. 169.2 ao c. 182) com a análise das interpretações. Destacam-se as
diferenças percebidas entre a execução e as indicações marcadas na partitura.

Take 30. (02’ 43’’ a 02’ 55’’) Baião – (c. 169.2 ao c. 182)

Exemplo Musical 28. Baião (c. 169. 2 ao c. 182)

1. O violoncelo inicia a Subseção a’3 (c. 169.2) com o solo de Iberê que executa as notas
tenutas e ligadas em andamento rubato. Essa interpretação não está de acordo com a partitura;
2. A dinâmica feita, Mezzo Forte e Forte, não confere com a dinâmica indicada, piano;
3. Iberê toca as semicolcheias do c. 173.1 como se fosse um mordente;
4. Iberê faz uso de glissandos, por exemplo, ao fá sustenido (c. 174). Segundo o violoncelista
145

David Chew, “Iberê está tocando em uma posição só utilizando o glissando53, pois além de
ficar mais fácil, é mais expressivo, sobretudo na música popular. Nesse caso, o violoncelista,
solta o dedo da corda em direção ao fá sustenido.” (CHEW, 2013). Isso é uma característica
de swing percebida na execução.
Dispensou-se a abordagem das referidas subseções que antecedem a Coda, que será
analisada auralmente a seguir, pelo fato de terem sido executadas pelo Duo com
características interpretativas similares destacadas na análise da Seção A. Vide partitura
integral no Anexo C e Take 24.

Take 31. (03’ 12’’ a 03’ 26’’) Baião – Coda (c. 200 ao c. 212).

Exemplo Musical 29. Baião (c. 200 Ao c. 212).

53
Tipo de técnica do instrumento violoncelo em que o instrumentista escorrega os dedos ao longo da corda
enquanto ela soa, produzindo um aumento ou diminuição da frequência, que passa por todas as notas
intermediárias. Executável em qualquer instrumento com braço, mas melhores resultados podem ser obtidos em
instrumentos sem trastes.
146

Destaca-se que Iberê só acentua a última semicolcheia do início da Coda (c. 200.2.4).
As demais acentuações de semicolcheias não são executadas, tal qual fez na Introdução.
A versão é muito virtuosística. No último acorde, Iberê mantém o arco da nota
sustentada até o acorde final e Radamés, no compasso 210, prepara o baixo e o sustenta até o
acorde final com dinâmica crescendo e Fortíssimo.

3.3.7.1 Comentários de David Chew IV (da execução do Baião)

As palavras do violoncelista David Chew sobre o trecho analisado do Baião são


tiradas da entrevista concedida à autora da pesquisa.
O andamento imprimido nessa versão do Baião denota o virtuosismo da
interpretação. Seria improvável (muito difícil mesmo) realizar todas as articulações e
acentos marcados por Radamés no andamento que Iberê tocou. Eu particularmente
acho que, como é um Baião, não precisava ser tão rápido. Eles podem ter combinado
que iriam fazer um Baião virtuosístico e estilizado ao invés de um Baião ritmado em
termos de acentuação. É importante frisar, também, que antes da corda dupla do
violoncelo, Iberê come uma nota propositalmente (c. 36) devido à dificuldade que é
para o violoncelista chegar naquelas notas duplas depois de uma escala descendente
(CHEW, 2013).

Embora, nessa versão, o Duo não realize todas as indicações rítmicas determinadas na
partitura, o swing está o tempo todo presente através das variações agógicas e métricas
executadas e destacadas na análise acima. Sobretudo em razão do andamento da execução,
Radamés e Iberê imprimem na versão do LP caráter virtuosístico.

3.3.8 Baião — Análise Aural sucinta do Baião na interpretação do Duo Chew-Canaud


no CD Obra Completa para Violoncelo e Piano de Radamés Gnattali — 2006

Take 32. (00’ 00’’ a 03’ 54’’) Baião — versão integral — Duo Chew-Canaud (partitura
integral no Anexo C).

Esta análise sucinta comparou a versão de Iberê e Radamés com a execução de David
Chew e Canaud. Foi utilizada a partitura de piano feita pela copista Margarida Vieira, datada
de agosto de 1977. Assinala-se que existem, entre as partituras autógrafa e copiada, diferenças
de notas em alguns acordes (por exemplo, no acorde do compasso 182), sem que, no entanto,
147

cause algum prejuízo de ordem estética.


A seguir, destacam-se apenas os compassos nos quais se percebeu diferenças entre as
duas versões.
1. O andamento é sensivelmente mais lento, entre MM = 108 e 112 (semínima), porém bem
ritmado. As subseções são bem enunciadas na execução e apresentam entre si menor variação
de andamento;
2. Todas as semicolcheias marcadas são executadas pelo violoncelo (Introdução);
3. As articulações de duas em duas notas no final da frase lírica são realizadas como está
escrito (c. 25 e c. 64). Na versão de Iberê, essas notas são executadas todas ligadas e
precipitadas para a nota conclusiva da frase (c. 26 e c. 64). Observa-se que David faz as
referidas articulações (c. 25 ou c. 63) e essa ação causa um ligeiro cedendo. Na nota
conclusiva da frase (c. 26 e c. 64), depois das articulações feitas, David faz um crescendo que
não está escrito, porém é musicalmente aceitável por ser um crescendo que acompanha o
acorde sforzando que está em contratempo ao acorde dado pelo piano;
4. No compasso 36, ao contrário de Iberê, David executa o que está escrito na partitura e faz
todas as semicolcheias para a entrada das cordas duplas ré lá (c. 37) do violoncelo mantendo a
sonoridade equilibrada com o piano;
5. As articulações do piano, do c. 39 ao c. 44, são realizadas bem como as articulações e
sforzando marcados para o violoncelo.
O Duo está executando a dinâmica e as articulações propostas (c. 170) e o tema lírico
é valorizado pelo violoncelo.
Nos quatro últimos compassos da Coda, o Duo executa um pequeno retenu não
escrito, enfatizando a conclusão da peça.
148

3.3.8.1 Comentários V (sobre a versão do Duo Chew-Canaud comparada à versão de


Iberê e Radamés)

O Duo Chew-Canaud executa o Baião em andamento VIVO, porém confortável, pois


se ateve à palavra Ritmada escrita no enunciado da partitura, procurando fazer todas as
indicações marcadas nesta.
No Baião, ao contrário da Modinha, Radamés não indicou a pulsação do tempo com
marcação metronômica, deixando livre e à escolha dos intérpretes a pulsação da execução,
apenas sugerido no enunciado da partitura o caráter: vivo e ritmado. Cabe lembrar que
existem na música popular baiões com andamentos diversos, de moderado (como por
exemplo: “Minha vida é andar por esse país...”) ao vivo (como “Eu vou contar pra você como
se dança o baião” e “O ovo” de Hermeto).
Normalmente, o músico se atém às articulações escritas na partitura, tanto para o
violoncelo quanto para o piano. Porém, ao fazer um andamento extremamente VIVO, fica
quase impossível manter todas as articulações e marcações. O próprio Radamés em Duo com
Iberê, ao escolherem uma versão mais virtuosística em termos de andamento, deixaram de
lado as marcações feitas pelo próprio compositor pianista.
Musicalmente é muito mais fácil esse baião porque as frases são bem definidas e têm
início acéfalo (o contratempo). Não é uma música complexa. É importante saber,
especificamente nesse baião, qual é a importância dos acentos, já que Iberê só faz o primeiro
acento das frases em semicolcheia e Radamés permitiu. Então é bom pensar qual é a
importância musical do acento, afinal Radamés escreveu.54 Sobre esse assunto,
transcreveram-se as palavras de David Chew, na entrevista concedida para este trabalho.
A perfeita execução dos acentos que estão escritos na partitura faz com que o
violoncelista não consiga tocar tão rápido quanto Iberê tocou. Quando se ouve a
gravação analisando [auralmente], se percebe que Iberê só faz o primeiro acento e,
por isso, ele pôde tocar tão rápido. Talvez seja mais difícil criar com o público
erudito uma comunicação de virtuosismo se o baião for tocado mais lento e
respeitando todos os acentos e articulações marcadas. Tocando-se um pouco mais
lento do que a versão de Iberê, porém de forma mais jocosa e ritmada, essa peça de
concerto pode parecer muito popular (CHEW, 2013).

Ao ser indagado sobre o andamento do Baião tocado por Iberê e Radamés, David fez
algumas considerações, a seguir.

54
Fala-se do acento na última nota de cada grupo de semicolcheias da Introdução.
149

O fato é que para tocar no andamento VIVO que fizeram, eles passam por cima de
muitas marcações escritas. E como se dançaria esse baião tocado tão rapidamente
quanto na versão de Iberê? A resposta para mim é: não se dançaria. Então eles
aplicaram à interpretação desse baião uma versão estilizada de baião. Se fosse
perguntado ao Guerra-Peixe sobre o andamento talvez ele dissesse: se é baião, tem
que poder dançar (CHEW, 2013).

Segundo David Chew, não seria tão difícil tocar esse baião rápido e explica que, como
ele não tinha ouvido a gravação de Radamés, ele ateve-se a tocar no andamento possível para
realizar o que está escrito na partitura. Dessa forma, optou pelo andamento mais cômodo, caso
contrário ele perderia os acentos. Quando se faz todos os acentos, essa ação “segura” um
pouco mais a velocidade no andamento (CHEW, 2013).
Valeria uma futura reflexão, mais aprofundada, se o fato de se tocar o Baião com o
andamento muito rápido se perderia um pouco a característica nacionalista em função da
característica virtuosística, afinal isso acontece em peças de outros compositores, como
Chopin que em suas mazurcas e poloneses, às vezes tocadas em andamento tão rápido,
passando por cima das articulações, ficam mais virtuosísticas do que caracterizadas como
gênero nacionalista polonês.
Considera-se que tanto a versão do LP quanto a do CD são corretas e aceitáveis. Uma
valorizou mais respeitar as articulações escritas pelo compositor e a outra valorizou mais o
virtuosismo. Segundo David Chew (2013), todas as diferenças verificadas entre a sua
interpretação e a de Iberê têm a ver com o andamento.
Pode-se considerar que a versão de Radamés é mais leve e virtuosística. Tem mais
leveza em geral. Existem momentos que, talvez, se tocassem os dois violoncelistas um ao lado
do outro, poder-se-ia constatar que a diferença de abordagem na execução é uma questão de
decisão interpretativa. Se o violoncelista quer tocar tudo o que está escrito ou de maneira mais
virtuosística.
David fala a respeito da análise proposta neste trabalho:
Talvez se fôssemos hoje, depois de ter feito essa revisão fonográfica, acredito que
iríamos tocar levando em consideração a influência da audição desse registro.
Mesmo tocando no andamento que a gente tocou, talvez tocássemos com mais
leveza. Isso devido a termos analisado não a partitura no aspecto morfológico ou
estrutural, mas sim termos analisado como o compositor tocou e permitiu que fosse
gravada sua própria obra. Eu gostei de fazer isso, acho que teria me ajudado a
preparar a peça. Porém, no meu caso [David], eu manteria o andamento como está
no nosso CD, em função das articulações feitas (CHEW, 2013).
150

3.4 Modinha & Baião — Versão 2012 — Apresentação vídeo com o Duo Chew-Canaud
após a revisão fonográfica do LP de Radamés Gnattali e Iberê Gomes Grosso

Figura 3855. Fernanda Canaud e David Chew em recital do Duo na Sala Funarte Sidney Miller -
“Projeto Musicafinidades – Ecos de 22” (Foto: Cristina Zappa).

Take 33. Modinha — vídeo recital “ao vivo” Duo Chew-Canaud — 2012

A versão em vídeo disponibilizada no Take 33 pertence à etapa posterior no método


Ex Post Facto deste trabalho, conforme descrito na metodologia adotada. No referido Take,
apresenta-se a gravação “ao vivo” de Modinha & Baião, incluída entre outras peças, no recital
do Duo Chew-Canaud (Figura 38) realizado no dia 13 de julho de 2012, no “Projeto
Musicafinidades — Ecos de 22” na Sala Funarte Sidney Miller no Rio de Janeiro. É
interessante constatar que o violoncelista David Chew se posiciona do lado direito, conforme
mostra a figura 38. Já o violoncelista Iberê Gomes Grosso tocava do lado esquerdo de
Radamés Gnattali, afastado do tampo de ressonância do piano, conforme mostram as figuras 2
e 3 do Anexo G (p. 229-230).
Destaca-se o fato de que, após as análises aurais realizadas nesse trabalho, percebeu-se
que o Duo Chew-Canaud executou a peça Modinha & Baião, na versão de 2012, com
diferenças sensíveis se comparada à versão do CD de 2006 (Obra completa para violoncelo e
piano de Radamés Gnattali), sobretudo no que se refere aos andamentos da Modinha. Na
versão de 2006, a minutagem é de 04’ 37’’ e na versão de 2012, a minutagem é de 04’ 17’’,
ou seja, considera-se que a variação de aproximadamente 20’’ é resultado de maior liberdade
interpretativa, sobretudo no que se refere à agógica.

55
Figuras de 1 a 37 apresentadas no Anexo G.
151

Take 34. Baião — vídeo recital “ao vivo” Duo Chew-Canaud — 2012

Já no Baião, o Duo manteve o andamento da gravação de 2006. Em relação à agógica


e aos andamentos das Subseções, percebeu-se que houve, em adição, maior liberdade na
execução e na acentuação das articulações métricas das frases.
No registro de 2012, não houve a intenção (da parte do Duo Chew-Canaud) de se fazer
uma repetição ou imitação da performance de Gnattali e Gomes Grosso. Ressalta-se, porém,
que a revisão fonográfica realizada foi fundamental para criar um grau de liberdade e
aprofundamento não antes compartilhado entre os intérpretes.
Segundo Nonaka e Takeuchi (1997), ambiente e circunstâncias influenciam na
performance. Considera-se, portanto, que cada nova execução das peças de Radamés Gnattali
selecionadas para a análise aural pelo Duo Chew-Canaud fará parte do processo posterior
referente ao método Ex Post Facto.
Não há símbolos que tornariam a notação das sutilezas interpretativas possíveis e,
mesmo que houvesse, o compositor ou mesmo o revisor iria arriscar distorcer a unidade total
da obra por causa da anotação destas nuances. Entretanto, no caso específico da interpretação
de Radamés e Iberê, talvez, futuramente, se possa pensar em uma edição revisada contendo
indicações dos aspectos da interpretação do Duo, que foram minudenciados através da análise
aural apresentada.
As análises aurais foram feitas com base nos critérios estéticos encontrados no guia de
interpretação de Artur Schnabel apresentado por Konrad Wolff (1972), destacando-se,
portanto, andamentos, variações agógicas, dinâmica, articulações (métricas; rítmicas;
harmônicas ou melódicas) das execuções. O pensamento de Schnabel apenas norteou os
trabalhos realizados na revisão fonográfica.
A seguir, apresentam-se a Análise, Interpretação e Discussão dos resultados
provenientes das revisões fonográficas e dos demais capítulos precedentes.
152

3.5 Análise, Interpretação e Discussão dos Resultados

Neste trabalho investigou-se a relevância da Análise Aural das peças Flor da Noite e
Modinha & Baião para violoncelo e piano de Radamés Gnattali, gravadas pelo autor-
intérprete em Duo com Iberê Gomes Grosso no LP do selo Festa (LDR-5028) intitulado Villa-
Lobos / Radamés Gnattali [s.d.].
Logo na primeira escuta desse LP, em uma abordagem geral, percebeu-se que
Radamés Gnattali em sua execução pianística tomou liberdades, por exemplo, de andamento,
de articulação das frases e de dinâmica, não indicadas na sua partitura original. Não somente
isso, o compositor permitiu que Iberê Gomes Grosso também o fizesse, alterando, por
exemplo, articulações propostas, em favor de sua expressão artística, sem que houvesse a
preocupação ulterior em refazer a partitura. Cabe ressaltar que apesar das semelhanças
estruturais, as peças preservam linguagens individuais no que se refere à interpretação
conferida a elas pelo Duo. Por conseguinte, considerou-se que a interpretação do compositor
(em Duo) evidenciou o virtuosismo dos intérpretes, bem como sua capacidade de tocar com o
que denominamos swing (bossa) e, mais do que isso, que ele não se importou em deixar
indicado em sua partitura as oscilações agógicas, as matizes dinâmicas bem como as
articulações realizadas na gravação do referido LP.
O objetivo principal do estudo foi revelar características da interpretação do
compositor Gnattali visando futuras performances de sua obra. A hipótese aventada foi se a
Análise Aural — parte da Revisão Fonográfica — pode ser utilizada como uma aliada do
refinamento da expressão musical artística de um intérprete, uma vez que é capaz de revelar
características não escritas pelo compositor em suas partituras autógrafas. Entretanto,
deparou-se com a não existência de um padrão ou método de análise aural.
A partir disso, uma vez que não se encontrou na bibliografia consultada nenhum
padrão para esse tipo de análise (aural) passível de ser aplicado no presente trabalho, optou-se
pelo levantamento dos aspectos musicais interpretativos inerentes à execução dos Duos,
tomando-se como base o guia de interpretação de Artur Schnabel referente aos tempos, aos
andamentos, à dinâmica, à agógica, e, sobretudo, às articulações (melódica, harmônica,
métrica e rítmica). Estes pontos foram utilizados para nortear a análise da performance nos
fonogramas. Outras razões foram consideradas para se tomar como base o guia de Schnabel:
sua formação clássica; sua escola Leschètizquiana (a mesma de Michael Von Zadora,
professor de Guilherme Fontainha, que por sua vez foi professor de Radamés Gnattali); e o
153

fato de Schnabel ter sido além de teórico, um especialista nos clássicos com base prática e
interpretativa metodizada.
Levando-se em consideração os critérios adotados no guia para interpretação de
Schnabel, percebeu-se que seria possível, de certa forma, metodizar a análise aural, parte
integrante da revisão fonográfica deste trabalho, utilizando-a como ferramenta aliada do
refinamento da expressão musical artística dos intérpretes.
Em se tratando de compositor-intérprete, a utilidade da revisão fonográfica pôde
fornecer subsídios para alimentar a releitura das peças, ou seja, a revisão fonográfica
mostrou-se como um caminho válido.
Considerou-se como ponto de abordagem interpretativa o aspecto de o músico prático,
em sua tarefa fundamental de executante, ter o privilégio da releitura, afinal todo intérprete é,
ou pode ser, no momento da performance, um parceiro do compositor. Muitas vezes é capaz
de enxergar aspectos de interesse nas entrelinhas da pauta, até mesmo aqueles que não
estejam escritos, mas que estão aventados pela intenção percebida como intrínseca; ou ainda
que estejam induzidos na sequência do discurso musical. Outras vezes, acontece de o artista,
devido ao seu amadurecimento técnico e artístico, passar a interpretar uma peça que outrora
tenha se dedicado de maneira diferenciada daquela que em um primeiro momento entendeu
como oportuna. Portanto, a interpretação pode ser associada também à releitura de uma obra
musical.
Outro ponto a se considerar é o fato de que, para um compositor, marcar todas as
modificações expressivas correspondentes às suas intenções seria uma tarefa praticamente
impossível. Alguns compositores, como Grieg e Ravel, por exemplo, conseguem apurar a
comunicação de suas intenções expressivas e agógicas com o intérprete, através do texto, de
maneira bastante eficaz. Entretanto, Radamés Gnattali, ao contrário destes compositores
detalhistas, tinha uma escrita muito econômica em relação a suas intenções expressivas e
agógicas.
Alfred Cortot (1986), no livro Curso de Interpretação redigido por Jeanne Thieffry,
abaliza que a partir da compreensão consciente de uma obra e de todos os aspectos que podem
estar relacionados a ela, o intérprete estaria mais apto a transmitir emoções e sensações ao
ouvinte de acordo com aquelas que o compositor sentiu. Destacam-se, a seguir, as palavras do
professor de piano e teórico nas quais ele afirma: “Interpretar é recriar em si a obra que se
toca” (CORTOT, 1986, p. 6). Entretanto, o autor prossegue fazendo uma ressalva quanto à
fidelidade à expressão musical imprimida pelo compositor, incentivando o intérprete a
154

respeitá-la e reproduzi-la. Conforme atestam suas palavras: “E o compositor, que nos


transmite o reflexo de suas impressões, conta com o intérprete para evocar nos ouvintes,
emoções semelhantes àquelas que ele próprio sentiu” (CORTOT, 1986, p. 6).
Já no livro Plaisir de Jouer Plaisir de Penser, Rosen (1993) aborda alguns problemas
da fidelidade à partitura, fazendo uma exploração do assunto a partir da seguinte indagação:
“Se a crítica deve adotar o ponto de vista do compositor, o executante não deveria fazer o
mesmo?” (ROSEN, 1993, p. 49). O teórico prossegue afirmando que existem muitas maneiras
de seguir a partitura e que elas levam a interpretações completamente diferentes. Afirma ser
justamente a tensão existente entre texto e execução que é interessante perceber e que esta
tensão desaparece quando o intérprete se afasta demais da partitura. O autor considera que “aí
está toda a dificuldade: conseguir tocar de maneira muito pessoal, muito criativa ao mesmo
tempo se apoiando completamente no texto” (ROSEN, 1993, p. 49). Por outro lado, Rosen
(1993) aponta que o intérprete pode mostrar uma execução perfeitamente fiel ao texto, tocar
corretamente todas as notas com exatidão e resultar em uma execução insatisfatória; enquanto
que ele pode, também, fazer algumas mudanças na partitura e realizar uma interpretação
perfeitamente fiel ao espírito do compositor. Esse pensamento de Rosen corrobora o de
Schnabel quando ele isenta o intérprete de muitas exatidões, ao dizer que regras não escritas
também podem governar opções de dinâmica e agógica (vide Capítulo 2, p. 93).
Em relação a Radamés Gnattali, como intérprete de sua própria música, pode-se dizer
que ele também recriava sua obra a cada execução, e não somente podia transmitir o reflexo
de suas impressões, como também podia, mais do que ninguém, evocar nos ouvintes as
emoções que ele próprio sentiu ao compor. De fato, Radamés em Duo com Iberê Gomes
Grosso não tocou tudo que escreveu nas peças e depois de gravar não escreveu tudo que tocou
no LP.
Segundo Leonard Meyer (1961), na sua teoria da comunicação emocional para
explicar a existência de significado em música, não há significado extramusical e os
elementos referenciais são encontrados na partitura e na experiência da escuta promotora da
comunicação, emoção e afeto. Assim sendo, aventam-se novos subsídios que promovam
possibilidades de recriação ou aproximação estimulando a releitura da obra de um compositor,
por meio da análise aural dos fonogramas, como método.
Rosen (2010) ponderou que as escolhas propositais de um compositor, como a escolha
da tonalidade, a experiência estilística, entre outras, podem contribuir tanto para respostas aos
estímulos musicais quanto para transmissão de sentimentos. Então foi importante buscar-se
subsídios que propiciassem o entendimento do intérprete quanto ao emprego do virtuosismo e
155

do swing como elementos idiomáticos da escrita de Gnattali.


Todavia, o ponto importante para a análise aural da presente tese foi considerar as
análises interpretativas (revisão fonográfica) em seu aspecto estritamente humano, focando-se
a escuta no âmbito artístico das interpretações comparada à partitura autógrafa. Não se
pretendeu, por exemplo, analisar as variações agógicas das interpretações com procedimentos
matemáticos, com medições e gráficos; tampouco se pretendeu aferi-las quantitativamente
com o auxílio, por exemplo, de hardware e software desenvolvidos nas últimas décadas e
disponíveis atualmente para auxiliar análises de gravações, seja por solicitação de
pesquisadores, seja para fins comerciais.
A literatura em performance musical tem apontado para uma relação estreita entre a
ação conjunta da agógica e da dinâmica com a estrutura musical, porém utilizando software.
Atualmente, reflexões sobre características das execuções têm sido realizadas em trabalhos
acadêmicos a partir de comparações de gravações, analisando-se, por exemplo, o
comportamento matemático de variações agógicas sobre temas líricos relacionadas com a
estrutura musical com o auxílio de software que geram gráficos destas oscilações agógicas,
além de estatísticas a partir dos meios tecnológicos (ZORZAL; ÁVILA, 2007).
Escolheu-se a análise aural sem a utilização de software devido ao critério de
utilização da gestão do conhecimento por pessoas e não por máquinas.56 Não foi objetivo
neste trabalho o desenvolvimento de análises com software. A análise dos fonogramas foi
realizada a partir da gestão do conhecimento de Nonaka e Takeuchi (1997) pelo processo da
espiral do conhecimento, processo SECI com suas quatro etapas, a saber, Socialização,
Internalização, Combinação e Externalização.
Adaptou-se de Nonaka e Takeuchi (1997, p. 23-24) o processo SECI que foi relido
para a área de música neste trabalho, uma vez que se pode utilizar qualquer direcional na
espiral do conhecimento. Priorizou-se, então, pela ordem SICE. A etapa Socialização é
concernente ao conhecimento tácito — conhecimento acumulado (é o compartilhar e o criar
através de experiência direta); a etapa Internalização refere-se ao conhecimento tácito e
explícito, combinados — leitura e estudo da partitura e o reconhecimento das diferenças
interpretativas (é o aprender e adquirir novo conhecimento tácito na prática); a fase
Combinação diz respeito ao conhecimento explícito — análise aural aliada à partitura e
reestudo da obra (é o sistematizar e o aplicar do conhecimento explícito à informação); por
fim, a Externalização refere-se novamente ao conhecimento tácito (adquirido) — desempenho
56
A máquina pode ser programada para ler qualquer forma de conhecimento explícito baseado em uma
informação (estímulo) só que ela não tem a capacidade criativa — potencial.
156

no concerto (é articular o conhecimento tácito através do diálogo entre as etapas do processo e


a reflexão). Pretendeu-se, como resultado, uma efetiva contribuição para as práticas
interpretativas, conforme metodologia apresentada e adaptada à área de música.
Nonaka e Takeuchi (1997), autores do referido processo, assim definem estas etapas
que não têm um ponto obrigatório de partida, conforme o princípio da espiral do
conhecimento:
Socialização: a transferência de conhecimento tácito para tácito por meio do
compartilhamento de experiências, da observação ou de habilidades que resultam na
criação do conhecimento tácito; Externalização: processo de conversão de
conhecimento tácito em explícito através do uso de palavras e/ou imagens, diálogo,
reflexão coletiva, metáforas, analogias e hipóteses, além da dedução, indução e
abdução. Combinação: é a ligação e sistematização de conhecimentos explícitos e
está fundamentada na codificação em documentos, memorandos, banco de dados -
são diferentes conjuntos de conhecimento explícitos sendo trocados; Internalização:
é a conversão de conhecimento explícito em conhecimento tácito sob a forma de
modelos mentais, compartilhado com os outros integrantes da rede, iniciando assim
uma nova espiral de criação de conhecimento (NONAKA e TAKEUCHI, 1997, p.
23-24).

Na área de música, alguns autores como Koivunen (2002), da Universidade de


Tampere (Finlândia), e Weick (1998) da Universidade de Michigan, já utilizaram o método de
Gestão do Conhecimento de Nonaka e Takeuchi (1997). O artigo de Niina Koivunen intitula-
se Organizational Music: the Role of Listening in Interaction Processes; e o de Karl Weik
intitula-se Improvisation as a Mindset for Organizational Analysis.
O desenvolvimento do processo interativo da escuta fornece elementos que levam a
uma reflexão de como a teoria de Nonaka e Takeuchi pode ser referência para esta tese. Na
abordagem crítica das gravações de Flor da Noite e de Modinha & Baião, pode-se perceber
liberdades do compositor, no momento da performance, em relação à sua própria escrita.
Entretanto, este fato não é privilégio de Radamés Gnattali. Por exemplo, disponibilizados no
site You Tube, atualmente, pode-se escutar performances de Scriabin (1894)57, Debussy
(1903)58 e Ravel (1905)59 enviadas por Louiu (2007); performances de Prokofieff (1912)60 e
Leschetizky (1876)61 enviadas por Truecrypt (2008); e performances de Marlos Nobre
(2007)62 enviadas pelo próprio autor (2008) em que percebem-se nas execuções características
expressivas não indicadas, ou seja, eles também tomam liberdades de tempo, dinâmica, de
notas e acordes que não conferem com o que se lê na partitura.

57
Estudo op. 8 nº 12. Disponível em: <http://youtu.be/VK2uTtuI84w>. Acesso em: 22 jan.2013.
58
La soirée dans Grenade. Disponível em: <http://youtu.be/PekrB_IuGIc>. Acesso em: 22 jan. 2013.
59
Sonatina 1º e 2º movimentos. Disponível em: <http://youtu.be/zE0kvi-15L4>. Acesso em: 22 jan. 2013.
60
Toccata op.11. Disponível em: <http://youtu.be/AHv919Pn8_w>. Acesso em: 02 jan. 2013.
61
Die beiden Lerchen. Disponível em: <http://youtu.be/n0XP4xuRVpQ>. Acesso em: 12 abr. 2008.
62
Frevo nº 2 para piano, Opus 105. Disponível em: <http://youtu.be/kyeebeklf4k>. Acesso em: 12 abr. 2008.
157

Radamés Gnattali e Iberê Gomes, ao executarem as peças, contrariam o que diz


Leimer e Gieseking no livro Rítmica, Dinámica, Pedal y otros Problemas de la Ejecución
Pianística, no capítulo intitulado “Interpretação Natural”, quando preconizaram que a
execução rítmica deveria ser “absolutamente correta” (LEIMER; GIEKEKING, 1951, p. 34).
Neste ponto, aplicariam-se as considerações de Rosen (1993) sobre a possibilidadede
outros intérpretes tocarem de maneiras diferenciadas, consequentemente personalizadas,
devido, por exemplo, às pequenas respirações utilizadas; bem como às escolhas de tipo de
toque pianístico (ou tipo de arcada para o violoncelo); ou ainda às articulações e às gradações
de dinâmica aplicadas às frases musicais no momento da execução.
As particularidades expressivas de cada intérprete significariam, então, um resultado
artístico distinto que enfatizaria, ou não, no caso da execução da obra de Radamés Gnattali, o
destaque do virtuosismo e do swing.
Portanto, cabe ressaltar que a análise feita neste trabalho não visou à tarefa
composicional. Não foram analisados os elementos da linguagem musical empregados em
cada peça, tais como ambiente harmônico, organização melódica, rítmica e estrutural;
tampouco a análise foi realizada sob o ponto de vista funcional, considerando-se que não
houve intenção de se estabelecerem, com os dados obtidos, padrões que configurassem certo
estilo de escrita, mas sim o estilo de interpretação de Radamés (prática interpretativa).
De acordo com o pensamento de Alfred Cortot (1986), que estimulava o intérprete a
conhecer e se municiar do máximo de informações sobre um autor e sua obra, foi possível
através do perfil biográfico pesquisado de Radamés Gnattali saber com certeza que ele
valorizava a capacidade de o músico clássico, possuidor de virtuosismo, ter swing ou bossa
(vide Cap. 1, 1.14, p. 83). Ele próprio também buscou adquirir a capacidade de swingar tanto
como arranjador, quando ele vai escutar os discos de jazz nos anos 1920 (vide Cap. 1, 1.5.4, p.
49), quanto como pianista, quando ele vai se aproximar dos pianeiros (vide Cap. 1, 1.7, p. 56).
Além disso, desde sua infância e adolescência vividas com a família de músicos, sem que
houvesse nenhuma censura ao fato de ele tocar música popular; passando pelas experiências
profissionais vividas após sua vinda para o Rio de Janeiro; o background exigido pela nova
carreira; tudo isso contribuiu para que, além do virtuosismo como pianista, o autor adquirisse
o swing. No caso de Radamés, tornou-se interessante mostrar no perfil biográfico a trajetória
do intérprete que se tornou compositor e impregnou no seu virtuosismo a maneira de swingar
característica dos pianeiros e pianistas populares do Rio de Janeiro do início do século XX,
enriquecendo, assim, suas habilidades.
158

Todas estas razões identificadas por meio do perfil biográfico apresentado, aliadas à
análise aural, corroboraram a afirmação para que se considerassem o virtuosismo e o swing
como característicos de um modelo de critério estético para a interpretação da obra de
Radamés Gnattali. É importante ressaltar, entretanto, que não se pretendeu caricaturar,
aprisionar ou limitar a interpretação da música de Gnattali nessas duas características, assim
como pensava Schnabel, que alertava os alunos a evitar na abordagem interpretativa imagens
preconcebidas, caricatas, maneiristas e exacerbadas do que ele chamava de “elemento
folclórico” (WOLFF, 1972, p. 16). Afinal, preconcepções sobre estilo podem restringir a
própria compreensão de um intérprete.
Talvez para evitar esse tipo de imagem caricata, Radamés tivesse escrito em sua
partitura autógrafa poucas indicações dinâmicas e agógicas.
Levando-se em consideração os critérios adotados no guia para interpretação de
Schnabel, percebeu-se que sua fala, ao citar Goethe, “O que é o universal? O único caso! O
que é o particular? Milhões de casos!” cada grande composição foi, para Schnabel, “tudo
incluído, abrangentemente” (WOLFF, 1972, p. 17), corrobora o conceito do conhecimento
tácito do processo SECI. O que Nonaka e Takeuchi consideram conhecimento tácito é o que
Schnabel evoca em Goethe — tudo incluído, abrangentemente. Mediante o resultado da
análise aural, percebeu-se que o elemento tácito já havia sido aventado por Schnabel, também
quando ele fala sobre o que seria uma análise frutífera — eficiente (fruto da reação
espontânea do músico em face de algum enigma que ele sinta necessidade de investigar como
acontecimento – vide Capítulo 2, p. 91).
Para Nonaka e Takeuchi, o processo de fundamentação da gestão do conhecimento
tácito passa pela aglutinação das experiências que o indivíduo acumulou ao longo da vida,
fatores que vão incidir no processo de recriação. No caso desta tese, recriação interpretativa
durante a performance musical
As peças em destaque têm em comum o fato de serem fronteiriças com a música
popular e, por essa razão, foi possível reconhecer mais facilmente, na execução do Duo, tanto
o swing quanto o virtuosismo. Outras peças executadas no LP, como a Sonata nº 1, cujo
trabalho de elaboração motívica e a organicidade dos elementos estruturais não evidenciam
tão claramente os aspectos destacados em Flor da Noite e Modinha & Baião, provavelmente,
também apontariam para outras características interpretativas além do virtuosismo e do swing.
159

As mudanças de compasso são constantes e regulares na escrita em ambas as peças.


Contudo, a análise aural revelou que o Duo, em sua execução, manteve a integridade do
material temático promovendo a percepção do caráter virtuosístico e swingado.
A limitação do estudo encontra-se na escolha proposital do modelo de análise aural
feita nesta tese, uma vez que existem outros vários tipos de modelos analíticos, inclusive com
o auxílio de software, como o Sound Forge, capaz de gerar gráficos de medição de tempo das
variações agógicas e revelar estatísticas de variações de dinâmica com absoluta precisão
matemática. Porém, considera-se que do ponto de vista humano da criação, da recriação
artística e da acuidade da escuta, o modelo de análise aural apresentado é mais profícuo
conforme aventado na etapa da Externalização, de acordo com a fundamentação teórica
adotada (NONAKA; TAKEUCHI, 1997).
160
161

CONCLUSÕES E RECOMENDAÇÕES

A aplicação da análise aural, parte da revisão fonográfica, pode ser uma ferramenta
para revelar características não escritas pelo compositor intérprete em suas partituras
autógrafas e pode ser utilizada como aliada do refinamento da expressão musical artística de
intérpretes. Como resultado, constatou-se, através da revisão fonográfica e análise aural
minudenciada da interpretação de Radamés Gnattali e Iberê Gomes Grosso, que o compositor-
intérprete, em sua execução pianística, não se ateve à própria escrita, tomando liberdades de
andamento, de articulação das frases e de dinâmica não indicadas na partitura autógrafa.
A Pesquisa Experimental do tipo Ex Post Facto foi importante para metodizar o
trabalho e gerou a criação de um modelo de análise aural específico para a revisão fonográfica
feita a partir das gravações do próprio compositor-intérprete, comparadas com suas partituras
autógrafas.
Após a verificação do conjunto (audição das gravações de Flor da Noite e Modinha &
Baião do LP), houve a necessidade de se detalharem aspectos da execução percebidos a partir
desta escuta, minudenciando-os para reflexão sobre o conjunto. Desta escuta resultou uma
percepção muito clara do que se considera virtuosismo e swing na interpretação do Duo
Gnattali-Gomes Grosso.
Embora tenha executado o que estava escrito na partitura, o Duo Chew-Canaud, em
sua primeira versão, imprimiu atmosfera clássica, realizando menos variações agógicas,
resultando, portanto, menos swing do que a interpretação posterior à análise aural da versão
de Iberê Gomes Grosso e Radamés Gnattali. Consequentemente, a revisão fonográfica da
gravação realizada com a interpretação do próprio compositor tornou-se importante para os
intérpretes (Duo Chew-Canaud) se aproximarem do caráter das obras com mais clareza e
segurança. Além disso, a revisão foi muito útil para mostrar que a liberdade de interpretação
não põe em risco a fidelidade ao texto, pois se observou que o virtuosismo empregado nas
obras de Gnattali pode ser considerado como elemento característico de sua escrita pianística
e tem tanta relevância quanto o swing.
Constatou-se que a gravação de Gnattali-Gomes Grosso não substituiu a partitura
como referência para os intérpretes (Chew-Canaud); ela, porém, agregou elementos para a
interpretação do Duo. Foi evidente que as versões gravadas estabeleceram tradições distintas
162

das partituras. Não se quer afirmar que a revisão fonográfica possa substituir uma partitura.
Entretanto, ela torna-se útil como fonte para o aprofundamento da pesquisa prática sonoro-
interpretativa auxiliando os intérpretes a se inculcarem do caráter da obra de Radamés
Gnattali, bem como externarem na prática interpretativa, além do virtuosismo, o swing
inerente.
A revisão fonográfica revelou que o virtuosismo e o swing são características da
interpretação de Radamés Gnattali e que, através da análise aural minudenciada, as
características das interpretações podem ser estendidas a toda sua obra, de forma cuidadosa e
não generalizada.
A partir das peças de câmara para violoncelo e piano escolhidas para a análise
fonográfica, concluiu-se que a revisão fonográfica é um importante auxílio para o
aprofundamento na compreensão das obras desse autor-intérprete, visando sua execução.
A questão a investigar da pesquisa fonte desta tese perquiriu se a utilização da análise
aural, aplicada às obras de Radamés Gnattali, poderia constituir-se em um meio de renovação
das tradições formas do estudo de uma partitura. A conclusão síntese em resposta a esta
indagação demonstra que a base de conhecimentos tácitos permitiu garantir uma nova forma
de abordagem estratégica para alimentar novas releituras das partituras desse autor e que os
critérios adotados nesta análise podem ser ampliados a outros trabalhos de revisão
fonográfica.
Conclui-se que a análise aural é um método que promove um diferencial na
interpretação das obras no que se refere a elementos da performance, tais como: 1 – escolha
de andamentos; 2 – escolha de articulações e fraseados; 3 – variações agógicas; 4 – variações
de dinâmica; e 5 – maturação do conteúdo musical. A partir das peças de câmara para
violoncelo e piano escolhidas para análise, concluiu-se que a revisão fonográfica é um
importante auxílio tanto para a compreensão quanto para a execução das obras desse autor-
intérprete, uma vez que ela pode fornecer, em adição à partitura, elementos de suporte para
novas releituras e interpretações.
Como o autor pouco marcava as intenções expressivas nas partituras e ele mesmo
gravou Flor da Noite e Modinha & Baião, recomenda-se assim a revisão fonográfica de
outras obras desse autor e de outros compositores-intérpretes contemporâneos visando suas
execuções. As particularidades de cada intérprete significam um resultado artístico distinto
que pode enfatizar, ou não, características como o virtuosismo e o swing ressaltados nesta
tese. Na execução dos Duos de câmara para violoncelo e piano, o próprio autor-intérprete
tomou liberdades de expressão, evidenciando seu swing e seu virtuosismo.
163

A revisão fonográfica da obra de Radamés Gnattali não substituiu a partitura. A


revisão fonográfica serviu, sim, como fonte para o aprofundamento da pesquisa sonoro-
interpretativa no intuito de municiar os intérpretes de conhecimentos.
É possível executar a música de Radamés Gnattali com certa liberdade agógica, porém
faz-se ressalva quanto ao respeito à partitura e ao estilo.
A partir do exposto, faz-se necessária uma revisão fonográfica extensa a outros
registros de Gnattali e pode-se estender o trabalho de análise aural a outros compositores-
intérpretes.
Visando o processo de reprodutibilidade técnica e artística, utilizando-se a análise
aural de modo a respeitar a interpretação original a contraponto da autenticidade da obra
apresentada nesta tese, sugere-se que os seguintes indicadores façam parte da “espiral do
conhecimento” alcançada na fusão do conhecimento tácito (vivência prévia do músico
prático) e do conhecimento explícito (partitura). Destacam-se os seguintes elementos a serem
abordados, dispostos no quadro abaixo, e aconselha-se sua aplicação em análises aurais de
fonogramas de compositores-intérpretes, visando a futuras performances.

Quadro 5. Processo recomendado de Aplicação da Análise Aural

1. Leitura da obra pelo pesquisador com todas as suas particularidades evidenciáveis referentes a
indicações do compositor.
2. Execução da partitura pelo pesquisador.
3. Levantamento do perfil biográfico verificando indícios de possíveis influências sofridas pelo
compositor.
4. A audição da gravação com a interpretação do compositor-intérprete.
5. Análise minudenciada da interpretação do compositor em comparação com sua partitura
autógrafa.
6. Releitura da obra pelo pesquisador, à luz dos conhecimentos acumulados, que poderá ser
registrada ou não.

Recomenda-se que para a utilização da análise aural o indivíduo tenha o domínio do


conhecimento explícito — tangível: leitura de partitura — para a Socialização do
conhecimento tácito — intangível: implícito — de modo a propiciar o funcionamento do
mecanismo do processo denominado Gestão do Conhecimento (SECI) de Nonaka e Takeuchi
(1997).
Recomenda-se a utilização de revisão fonográfica como ferramenta de estudo que
amplie possibilidades de compreensão, absorção e desenvolvimento de ideias musicais
corroborando como aliada do refinamento da expressão musical do intérprete.
Aconselha-se o estudo da música de câmara de Radamés Gnattali levando-se em
164

consideração os aspectos característicos da execução do compositor-intérprete abordados no


presente trabalho e apresenta-se no Anexo E uma lista de obras clássicas de câmara para Duos
(com piano) do compositor que poderiam ser objeto de futuros estudos, baseados nos
conhecimentos pressupostos na presente tese.
Em resumo, esta pesquisa analisou e construiu um procedimento (processo) de
inovação na preparação da performance musical, fundamentado na gestão do conhecimento
para a aplicação da análise aural. Tal ordenação final e conclusiva pode considerar a análise
aural um mecanismo de renovação das tradições com relevância para as práticas
interpretativas. Constitui-se, desta forma, a contribuição do trabalho como sugestão para
pesquisas futuras, apontando-se para a aplicação da análise aural realizada nesta tese. Outras
pesquisas experimentais na área das práticas interpretativas que venham a utilizar o modelo de
pesquisa Ex Post Facto aplicado à gestão do conhecimento servirão também para outras obras
do mesmo autor, extensivo a outros compositores e intérpretes.
165

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177

ANEXOS
178
179

ANEXO A

PARTITURA AUTÓGRAFA DE FLOR DA NOITE


180
181
182
183

ANEXO B

PARTITURA AUTÓGRAFA DE MODINHA & BAIÃO


184
185
186
187

ANEXO C

PARTITURA AUTÓGRAFA DE BAIÃO


188
189
190
191
192
193
194
195
196
197

ANEXO D

PARTITURA EDITADA DE FLOR DA NOITE – PÁGINA 1


198
199
200
201

ANEXO E

OBRAS DE CÂMARA PARA DUOS COM PIANO DE GNATTALI

CANTO E PIANO

Três Poemas de Augusto Meyer para canto e piano (1931).


I. Violão (dengoso)
II. Oração da Estrela Boieira (vagarosamente e triste)
III. Gaita (movido em tempo de polca)

Modinha para canto e piano (1937), dedicada à cantora Christina Maristany.

Valsa Romântica n° 1 para canto e piano com poema de Manoel Bandeira, [s.d.].

Valsa Romântica n° 2 para canto e piano com poema de Manoel Bandeira, [s.d.].

Nhapopé: motivo popular para canto e piano, [s.d.].

Prenda Minha: motivo popular para canto e piano, [s.d.].

Oração para canto e piano; poema de Jorge de Lima, [s.d.].

Tayeras: motivo popular para canto e piano (1941), dedicada ao violonista argentino Gastón
O.Talamon.

Seis Canções, para canto e piano (1967), versos de Manoel Bandeira, dedicada a Nelly Biato
Gnattali.
I. Dona Janaína IV. Cantiga
II. Canto de Natal V. Canção
III. Temas e Voltas VI. Acalanto (para John Talbot).

CAVAQUINHO E PIANO

Variações sem Tema para cavaquinho e piano (1983), dedicado a cavaquinhista Luciana
Rabello.
202

CONTRABAIXO E PIANO

Canção & Dança (1934).

FAGOTE E PIANO

Canção sobre tema de aboio, (1934), dedicada ao pai Alessandro Gnattali.

FLAUTA E PIANO

Sonata em três movimentos [s.d.].

Sonatina para flauta e piano ou violão (1959), dedicada ao Duo flautista Norton Morozowicz
e a pianista Laís de Souza Brasil.
I. Cantando com Simplicidade (Allegro moderato)
II. Expressivo e poco rubato (Adágio)
III. Movido

Sonatina para flauta e piano (1974), dedicada a Celso Wotzenlogel e a Heitor Alimonda.
I. Allegro Moderato,
II. Expressivo
III. Alegre (lembrando Pixinguinha).

HARMÔNICA DE BOCA E PIANO

Canção e Dança para Harmônica de Boca e Orquestra de Cordas, versão para harmônica de
boca e piano do autor [s.d.].

Concertino para Harmônica De Boca e Orquestra, versão para harmônica de boca e piano do
autor, [s.d.]

DOIS PIANOS

Rapsódia Brasileira (1933), para dois pianos baseada nos temas populares, dedicada a Brutus
Pedreira e Ayres de Andrade.
I. Meu Boi Morreu;
II. Viuvinha bota luto;
III. Anda Roda Desanda Roda

Valsa para dois Pianos (1933), dedicada ao pintor Candido Portinari.


203

Melodias do Brasil para piano a quatro mãos quatro (1945).


I. Tutu Marambá (tema com variações),
II. A canoa virou,
III. Teresinha de Jesus,
IV. Um Pouco de Ritmo

Concerto Romântico para piano e orquestra sinfônica, (1949), redução para dois pianos do
autor.
I. Allegro,
II. Lento com fantasia,
III. Allegro Moderato;

Acalanto para Piano a Quatro Mãos, (1956).

Brasiliana n° 8 para dois pianos (1956).


I. Schottisch,
II. Valsa,
III. Choro (Tocata)

Negrinho do Pastoreio – Suíte (bailado) para dois pianos, (1958-1959).


I. Allegro Moderato IV. Movido
II. Dança (movido) V. Tema do Vento
III. Allegretto VI. Tempo de Polca (movido)

Sonatina Coreográfica para dois pianos (1960)


I. Samba,
II. Valsa,
III. Baião;

Valsa Vaidosa n° 2 para dois pianos (1963)

SAXOFONE TENOR E PIANO

Brasiliana n° 7 para sax tenor e orquestra de cordas, versão para sax e piano (1956), dedicada
ao saxofonista Sandoval de Oliveira Dias.
I. Variações sobre um tema de viola
II. Samba Canção
III. Choro
204

VIOLA E PIANO

Concerto para viola e orquestra de cordas, versão para viola e piano (196-).
I. Allegro Moderato
II. Saudoso
III. Vivo

Sonata para viola e piano (1969).


I. Allegro
II. Adágio
III. Con Spirito

VIOLÃO E PIANO

Suíte Popular Brasileira para violão elétrico e piano (1953).


I. Invocação a Xangô IV. Samba Canção
II. Toada V. Baião
III. Choro VI. Marcha

Sonatina para violão e piano (1957), dedicada a Dilermando Reis.


I. Allegro Moderato,
II. Saudoso,
III. Ritmado

Suíte Brasileira para piano e três violões (1985), dedicado ao Trio Op. 12.
I. Brinquedo
II. Acalanto
III. Acalanto
IV. Aboio
V. Desfile
205

VIOLINO E PIANO

Violino para violino e piano de (1929)

Poema, (1934), redução para violino e piano do original para orquestra de cordas, dedicado a
Célio Nogueira.

Uma Rosa para Pixinguinha para violino e piano, (1964) original para piano solo.

Sonata para violino e piano, (1966), dedicado a Colin Holman Howden.


I. Cantilena
II. Lento - Allegro Moderato
III. Alegre

Flor da Noite (1938), dedicado a Romeo Ghypsman.

ARIA da Suíte Antiga (1972), transcrição do autor para violino e piano original para orquestra
de cordas, dedicada a violista Nathércia e João Pinheiro da Silva Filho;

VIOLONCELO E PIANO

Flor da Noite, versão para violoncelo e piano (1938) da obra original para violino e piano.

Sonata n° 1 para violoncelo e piano (1935), dedicada ao violoncelista Iberê Gomes Grosso.
I. Movido
II. Lentamente
III. Alegremente

Modinha & Baião para violoncelo e piano (1952), dedicada ao violoncelista Gregory Benko.

Brasiliana n° 9 para violoncelo e orquestra (1960) versão para violoncelo e piano, dedicada
ao violoncelista Iberê Gomes Grosso.

Sonatina para violoncelo e piano (1965), original para violoncelo e dois violões.
I. Allegro,
II. [s.i.]
III. Ritmo

Sonata n° 2 para violoncelo e piano (1973), dedicada a Iberê Gomes Grosso.


I. Allegro Moderato
II. Lento
III. Alegre
206
207

ANEXO F

DEPOIMENTOS INÉDITOS DE AMIGOS DE RADAMÉS GNATTALI COLHIDOS


PELA PESQUISADORA ENTRE 1988 E 1990

AÍDA GNATTALI

Radamés era um gênio... Desde pequeno ele teve uma facilidade incrível para música.
Tudo era a música. Com dois anos, ele imitava os adultos no violino de brinquedo e dizia que
queria a música. Aprendeu piano com nossa mãe. Ela era muito severa na leitura, nos dedos
no lugar certo e em cada compasso da partitura, o respeito ao texto. Radamés entrou para o
conservatório com 14 anos.
Estudou com Fontainha durante cinco anos. Aos 18 anos, ele preparou a sonata de
Liszt em apenas um mês. Foi quando ele foi para o Rio de Janeiro se preparar para o 1º recital
na então capital federal. Radamés tinha uma leitura de primeira vista inacreditável.
Por ocasião da prova de formatura, ele preparou os “Estudos Sinfônicos” de
Schumman também em um mês, tendo tirado a nota máxima. Por isso ele era um gênio. Sua
facilidade era absolutamente fantástica. Quando começou a compor foi da mesma forma; com
a mesma facilidade.
Eu convivi com muitos músicos, mas jamais conheci algum como Radamés. Não sei
quando a gente vai ter outro artista assim. Nasceu para ser músico. Foi um músico completo.
Pianista excelente, arranjador, regente, compositor, sinfônico, compositor de música popular.
Sobre a vida do meu irmão, eu posso dizer que ele foi feliz. A vida o fez abandonar a
carreira de concertista. Ele poderia ter sido um grande concertista, mas era pobre. Teve que se
virar para sobreviver. Casou-se e veio para o Rio com a mulher e quando tiveram o primeiro
filho, Radamés já estava dentro da área de compositor e arranjador. Na verdade, ele já
compunha, mesmo que timidamente, desde os 18 anos. Estudou violino, viola, cavaquinho,
violão... Interessava-se por vários instrumentos.
Mais tarde pegou no violoncelo e fagote, apenas com interesse de compositor – não
era para tocar propriamente. Interessante é que ele não tinha ouvido absoluto; mas o seu
ouvido harmônico era sofisticadíssimo. Trabalhou muito como arranjador. Ele fazia uma base
de oito ou nove arranjos por semana, no mínimo! Ele tinha uma prática muito grande.
Escrevia música como se fosse uma carta. Era autodidata.
208

Aprendeu ouvindo as sinfonias e acompanhando pela partitura. Aliás, Radamés


estudou sim um pouco de harmonia na época em que faria um concurso para professor no
Instituto Nacional de Música. Mas foi pouco tempo e que eu saiba, jamais frequentou aulas de
contraponto e fuga. Começou a se interessar pela composição bem cedo, mas não mostrava
nada a ninguém. A Rapsódia Brasileira, por exemplo, ele fez antes de casar, ainda em Porto
Alegre. Acho que tinha uns 19 anos. Radamés várias vezes escreveu peças para algum músico
que ele gostasse. Não tinha orgulho bobo. Era muito humilde, apesar de ter muita
personalidade. Às vezes ele perguntava para o próprio músico se ele achava que a frase que
tinha escrito estava difícil de tocar. Se estivesse complicado, ele mudava. Radamés sempre
fazia questão de escrever fácil --- mas ao mesmo tempo tinha que soar cheio e sofisticado
harmonicamente.
As peças para piano, principalmente, parecem difíceis, mas não são. Está tudo debaixo
das mãos. Não sei se o Radamés desenvolveu sua técnica com o nosso professor Fontainha,
pois ele tinha outros alunos que não apresentavam a técnica de Radamés. Meu irmão tinha a
mão muito boa para piano. Carnuda, flexível. Muito natural. O seu som era redondo, mesmo
nos fortíssimos. O som tinha sempre um veludo. Radamés tocava sem fazer caretas, sem
contrações. Ele admirava muito o Claudio Arrau.
Radamés não estudava de ouvido. Ele botava a partitura na frente e era cuidadoso.
Radamés tocava o texto tal qual era e sentia a música dentro de si. Inclusive não gostava de
tocar de memória. Tinha um pouco de preocupação para tocar sem a partitura na frente, isto
porque com o passar do tempo não estudava mais. Não tinha tempo de praticar a memória,
então só tocava com a partitura na frente. Ultimamente, ele estava estudando os detalhes nas
obras. Sempre descobria uma coisa. Gostava de novidades. Sua mão esquerda era fantástica.
Tocava muito límpido, muito cristalinamente. Ouvia-se tudo o que ele tocava, claramente. Eu
sempre me lembro de Radamés no piano.
Adulto, Radamés era um anarquista. Desejava que todos vivessem muito bem, mas
sem leis. Não suportava o Getúlio Vargas. Adorava o Rio de Janeiro e adotou esta cidade
como sua morada, seu meio de vida e sua inspiração para a música. Radamés era muito
querido pelos músicos populares: sambistas, cantores. Dizia sempre que a música popular era
a base. Para Schubert, Haydn, Chopin... Sempre tinha sido assim.
Ganhou muito dinheiro na Rádio Nacional. Comprou um apartamento em
Copacabana, carro e tudo o que gostava. A Rádio Globo fez de tudo para tirá-lo de lá, mas foi
fiel à Nacional até o fim.
209

Radamés adorava conviver com os amigos. Tê-los em casa para um churrasco e um


chope era tudo de bom para ele. Dizia: “que ambiente formidável é o ambiente de churrasco!
A gente reúne os amigos, toma um chope, nada melhor...” O mau humor de Radamés é uma
lenda. Ele era muito tímido. Vivia sorrindo e mesmo quando se estava pensando que ele
falava sério, era na verdade uma brincadeira, uma ironia qualquer. Não era mal-humorado,
mas sim muito impaciente.
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211

ANTÔNIO CARLOS JOBIM

Radamés foi um humanista. Dava tudo para todo mundo. Mas o Brasil da época do
Radamés era tão tolo que ficava “xingando-o de jazzista”. Sabe essas pessoas que não
entendem as coisas? E, principalmente, não entendem nada de música? Eles confundem tudo.
O Brasil é uma confusão total. Tudo é de cabeça para baixo. O Radamés poderia ter vivido
muito bem em qualquer país do mundo. Era um gênio e um excelente orquestrador. Ele
orquestrou todo mundo. Me ajudou muito. Gravou e orquestrou muita coisa minha quando eu
estava começando e de graça.
Em 1984 eu escrevi a contracapa de um disco seu, que diz:
Meu amigo Radamés é a coisa melhor que tem.
É um dia de sol na floresta, é a graça de querer bem.
Radamés é água alta, é fonte que nunca seca.
É cachoeira de amor, é chorão, rei da peteca.
Deu sem saber que dava e deu muito mais que tinha.
Multiplicaram-se os pães, multiplicou-se a sardinha.
O Radar é concertista, compositor, pianista, orquestrador Mestrão.
E mais que tudo é amigo, navega junto contigo.
É constante doação.
Ajudou a todo mundo, e mais ajudou a mim...
Alô Radamés, te ligo
Vamos tomar um chope
Aqui fala o Tom Jobim
Te apanho na mesma esquina
Já comprei o amendoim.
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ARTHUR MOREIRA LIMA

O essencial da música do Radamés está em sua facilidade, seu “metier” na arte de


compor. Era uma espécie de Bach, Haydn, um Mozart do século XX. Sua contribuição do
ponto de vista pianístico foi enorme. A rítmica das peças é difícil e muito píanistica. Obrigam
o intérprete a tentar ouvir aquilo e se informar. O que o Villa-Lobos fez com a música
folclórica, o Radamés fez com a música popular urbana. A grande diferença é que o Radamés
pegou um tema do Garoto ou do Pixinguinha e fez uma sinfonia e não sobre o Passa-Passa-
Gavião.
Foi maravilhoso trabalhar com o Radamés. Ele era muito engraçado, extremamente
fácil. Ele dizia: “Eu gosto é de fazer música. Se não tiver música não tem graça”.
Radamés é Mozartiano, (risos) não é a toa que nasceu no mesmo dia 27 de janeiro,
150 anos depois. Mozart não se preocupava em ser inovador. Beethoven sim. A atitude de
desprezo e de descaso que o meio intelectualóide brasileiro teve para com a música de
Radamés é inadmissível. Certos setores continuam tendo o mesmo preconceito de sempre em
relação a Radamés Gnattali, mas alguns tiveram também em relação a Villa-Lobos. É só
vermos os jornais da época. A sorte de Villa é que ele tinha uma noção intrínseca de
marketing e foi um gênio também nisto. Radamés não sabia nada de marketing pessoal
promocional e não estava interessado em fazer política. Isso foi ruim para ele.
Digo que ele era um Mozart ou Haydn, pela maneira econômica de compor, tirando o
máximo de efeito e usando o mínimo de notas, desenvolvendo pouco os temas e quase não
usava o pedal. Ele conhecia muito bem o piano. Era um grande pianista. Uma figura que
estava em paz com o mundo.
Talvez daqui a um século ou dois, a música brasileira se universalize como a das
grandes nações. Quando você capitula diante da música de um país é também porque aquele
país é ou foi mais poderoso economicamente no cenário mundial.
Não temos dinheiro para mandar nossas orquestras tocarem nossa música pelo mundo.
Se a Bossa Nova aconteceu, é única e exclusivamente porque o americano descobriu e
abraçou-a como sendo “jazz”, que é uma maneira de tornar tudo americano. O Free Jazz é
isso, foi criado para dar lucros enormes para eles (risos).
A música brasileira é boa o suficiente para se tornar universal. Villa-Lobos cada vez
mais está sendo tocado. Isaac Albéniz, Manuel de Falla, também demoraram a ser executados.
Hoje em dia, há muito mais interesse na renovação do repertório.
214
215

BRAGUINHA

Na década de 1930 eu fui diretor artístico da fábrica de Discos Continental. Radamés


foi um dos meus maiores amigos. Eu tinha as músicas de maior sucesso nos carnavais e o
Radamés era quem eu convidava para gravar e fazer os arranjos de minhas músicas. Radamés
foi o que mais me ajudou fazendo arranjos. Ele dirigia as orquestras nas gravações de minhas
músicas e também de outros compositores que gravavam na Continental.
Era um grande amigo e, além disso, camarada — figura ímpar — formidável. Eu
gostava muito dele. O Radamés ajudou a muitos compositores como eu, que não sabiam
música. Lamartine Babo, Noel Rosa, nós não sabíamos nenhuma nota de música, de maneira
que Radamés ajudou muito, fazendo nossas orquestrações, nos aconselhando. Era
maravilhoso! Muito bom, grande amigo, sempre pronto a ajudar os outros.
Ele fez muitas orquestrações de minhas músicas e um dos trabalhos mais originais e de
muito sucesso foi a orquestração de minhas historinhas infantis lançadas em disco
Continental-Colúmbia. As historinhas de Walt Disney foram lançadas em disco aqui no Brasil
porque um americano que esteve no Brasil em 1945 pediu que eu fizesse a dublagem. Ele
gostou. As músicas tinham arranjos do Radamés. Pela qualidade das orquestrações, Radamés
recebeu um convite para trabalhar na Companhia de Walt Disney, mas preferiu ficar no
Brasil.
Radamés não era ambicioso. Tinha um grande valor, trabalhou muito e também
ganhou muito dinheiro com gravações e com a Rádio. Naquele tempo, não havia televisão e
quase tudo era pela Rádio Nacional, que era a melhor. No meio popular, nunca ninguém falou
mal de Radamés. Nunca teve problema nenhum com ninguém. Para nós populares, que não
sabíamos música, ele nos deu grande ajuda, pois, sem preconceitos e com enorme seriedade,
ele orquestrava valorizando nosso trabalho. Sempre ouvi falar bem do Radamés, como músico
e como pessoa humana.
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217

CHIQUINHO DO ACORDEÃO

Até 1951 Radamés detestava acordeão. Não escrevia nada para esse instrumento até
que nos conhecemos em uma gravação. Eu trabalhava na boate Monte Carlo com Carlos
Machado e Huguinho de Moraes. A gravação era para um disco de 78 rotações e teria
Radamés nos arranjos e no piano, José Menezes na guitarra, Vidal no contrabaixo. Eu fiquei,
então, com um “supercomplexo”, pois os outros liam muito bem de primeira vista e eu tive
que estudar três dias firme e direto para aquela ocasião.
Daí, Radamés disse que só gravaria com acordeão se fosse comigo tocando. Ficamos
muito amigos. Tínhamos afinidade como instrumentistas, éramos os dois do Rio Grande do
Sul, morávamos em Copacabana com nossas famílias e trabalhávamos para a Rádio Nacional
(foi o Radamés que me recomendou para lá). Eu passei a tocar na orquestra da Rádio, no
Sexteto Radamés, no Quinteto e em gravações.
Na música, Radamés sempre soube o que queria. Ele era muito seguro. Para as coisas
da vida, ele era indeciso. Era muito esquisito e tímido. Não gostava de dar entrevistas. Não
gostava de falar de si próprio. Só ia a algum lugar se fosse com a companhia dos amigos. Era
para se proteger das pessoas que não conhecia. Nos últimos 10 anos ele mudou muito... (risos)
Deixou até que o Hermínio Bello de Carvalho fosse com a TVE na casa dele para fazer um
programa em sua homenagem.
Radamés foi um autodidata. Era um excelente pianista que começou a escrever com
muita facilidade. No início, ele não sabia escrever nas claves certas dos instrumentos.
Escrevia tudo em dó. O Mariano Ptzialli copista é que transportava na hora de escrever para
os naipes dos instrumentos transpositores. No início também não sabia a tessitura dos
instrumentos, aprendeu tudo na prática e dizia que música não se ensina, se aprende fazendo.
Radamés jamais fez distinção entre erudito e popular, mas sim do que achava bom e
ruim. Muitas vezes em seu trabalho na Rádio, tinha que fazer arranjos de músicas muito ruins.
Radamés adquiriu tanto conhecimento através da prática que escreveu concertos com
orquestra para todos os instrumentos solistas existentes e ainda para aqueles pouco
convencionais como é o caso de Concerto para Harpa e orquestra; Concerto para Gaita e
orquestra; Concerto para Acordeão e orquestra; Concerto para Bandolim e orquestra;
Concerto para Marimbafone e Orquestra; e muitos outros.
Escrevia para o instrumentista e para os amigos. Viveu tranquilo e indiferente ao
sucesso ou ao insucesso. Depois que acabou a Rádio Nacional ele foi para a TV Excelsior e
depois para a TV Globo.
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Quem mais influenciou o Radamés para a composição foi a música de Rachmaninoff.


Não que escrevesse nesse estilo, mas pela comunicação imediata que a música deste
compositor alcançava. O engraçado é que ele e a Aída gostavam muito do Claudio Arrau, que
detestava Rachmaninoff. Radamés também adorava o Michelangelli como pianista. E no jazz,
o Nath King Cole, o André Previn e o Art Tatum. Tirava todas as frases de ouvido do rádio e
tocava.
A obra do Radamés era elaborada. Soava como sendo complicada, mas não era nem
complicada nem difícil de tocar, fruto da experiência absurdamente vasta que ele teve como
orquestrador profissional. Tudo soa bonito. As coisas mais simples, com três ou quatro
instrumentos soam bonito. Não tem nada fora do instrumento. É incrível a maneira fácil com
que ele chega ao instrumento do camarada músico. Radamés escreve fácil uma coisa que seria
complicada de tocar. Ele dizia que num concerto o difícil eram os adágios, pois era ali que o
intérprete tinha que mostrar tudo que tinha dentro de si e tudo que sabia de música.
Radamés escrevia para o instrumentista. Quando era gravação de música popular e ele
sabia que encontraria no estúdio “os feras”, ele apenas colocava a cifra e deixava o músico
improvisar. Ele confiava, sobretudo, na música. Não enchia se o músico era bom... (risos).
Acima de tudo ele amava a música.
219

HENRIQUE CAZES

Conheci Radamés em fevereiro de 1980, no Bar Amarelinho. Fui apresentado como


novo membro da Camerata Carioca, substituindo Luciana Rabello. Eu só tocava de ouvido e
participava do conjunto “Coisas Nossas”. Fiquei com o tempo totalmente dedicado à música,
só para conseguir tocar o que o Radamés propunha.
Em fevereiro de 1980 eu o conheci e em junho do mesmo ano, eu tinha que gravar
com a Camerata e o Radamés. Ele era um mito. Só digo o seguinte: “eu me preparei e me
esforcei muito para fazer aquela gravação”.
Radamés, apesar da fama de impaciente, passava a música comigo com muita
paciência e devagar. Radamés dava valor ao empenho. O que mais me marcou positivamente
foi que ao terminarmos a gravação, Radamés falou que eu era o músico que mais tinha
estudado e se empenhado para aquele disco. De fato, eu de tanto estudar sabia as partes de
todo mundo. Radamés havia valorizado o meu empenho.
Quando a Camerata começou, ele não acreditava que iria fazer música de câmara com
aquela formação, pois não imaginava que iria encontrar músicos dispostos a estudar e a
ensaiar. Um regional é basicamente composto por músicos que tocam somente de ouvido, de
uma forma muito intuitiva. Nunca foi um grupo de músicos que estudassem para ler música,
que estivessem dispostos a tocar arranjos ou músicos usando partitura.
Radamés dizia que se Bach ou Beethoven conhecessem esses instrumentos eles teriam
escrito para esta formação. A combinação era muito boa.
Se compararmos os primeiros arranjos feitos para a Camerata, notamos uma grande
diferença. Os primeiros eram mais acompanhamento de algum solo; os últimos um verdadeiro
conjunto de câmara.
Radamés contava muita coisa de sua vida quando saíamos para tomar chope. E cada
vez eu admirava mais o mestre.
Radamés era totalmente aberto, não tinha fronteiras musicais. Como era pobre, quando
chegou ao Rio de Janeiro teve que trabalhar. Aqui ele tomou contato com outros músicos e se
fascinava com um tipo de música que não era comum a um erudito se interessar. Por exemplo:
ao invés de ver os “pianeiros” com olhos preconceituosos, ele viu com olhos de grande
criador. Isso se incorporou na sua cultura.
A influência de Ernesto Nazareth foi fundamental para o Radamés compositor.
Naquela música havia outro universo como ponto de partida. Aliás, toda a vivência do
Radamés deixou um lastro muito visível na obra dele. O fato de ter tocado de clássicos até os
220

românticos; de ter tocado num conjunto chamado “Os Boêmios”; de ter tocado num quarteto
de cordas; de ter conhecido os pianeiros de época; de ter passado por todo o tipo de trabalho
como músico até se firmar financeiramente; enfim, foram todas experiências rápidas, porém
marcantes.
Depois veio a consagração. Já recheadas das influências que sofria constantemente no
trabalho como arranjador e orquestrador da Rádio Nacional, no contato com outros
instrumentistas como Garoto e Luiz Americano e no contato com arranjadores como
Pixinguinha.
Radamés dizia sempre que Pixinguinha era um gênio. O sucesso do Orlando Silva, que
estourou em 1936, tinha por trás o talento e bom gosto do Radamés. Em Lábios que Beijei
(sucesso de 1937), Radamés fez um arranjo para quarteto de cordas e colocou um solo de
violoncelo feito por Iberê Gomes Grosso que é uma obra prima. Muito evoluído para a
concepção de orquestrador que havia no Brasil nessa época.
A orquestração de Radamés foi pioneira. Toda a forma de orquestrar música popular
foi mudada a partir do Radamés. E ele era um autodidata por excelência. Talvez por isso ele
nunca tenha acreditado em ensino. Ele tinha muito talento natural.
Excluindo-se a direção musical da Rádio Nacional e os arranjos que fazia, ele ainda
tinha tempo de compor sua música de concerto. Isso é certamente um fenômeno como
capacidade de trabalho. O Radamés trabalhou muito mais do que o normal para um músico
extraordinário, mas o que é mais curioso é que isso não o consumia. Era fácil e prazeroso para
ele.
Radamés absorveu toda a vivência que teve da música popular brasileira. Sempre
compôs muito para sua música de concerto. Mesmo no período mais fértil da Rádio Nacional,
quando tinha realmente muito trabalho e fazia por certo, no mínimo, nove arranjos por
semana, não considerava este trabalho como sua música. Considerava que era apenas uma
forma de sustento. Dessa forma, compunha sua música de concerto paralelamente e
ininterruptamente.
Talvez pela prática adquirida, sua orquestração dinâmica e sucinta acabou se tornando
característica na sua obra. Se pegarmos a primeira obra para piano, Rapsódia Brasileira,
veremos que era Liszteana, nacionalista e muito rebuscada. Totalmente diferente das obras
posteriores que são mais sucintas.
O grande “barato” do Radamés foi quando ele incorporou tudo: a experiência e a
vivência da música popular; a admiração pelos músicos de jazz; o instrumentista virtuoso que
ele era; com toda a sua bagagem erudita.
221

LUIZ OTAVIO BRAGA

O Radamés era uma figura formidável. Enquanto ele não chegava, as pessoas faziam
as coisas mais ou menos. Quando ele chegava, elevavam o nível. Se não tocavam com arte
suprema, pelo menos faziam direito.
O músico tinha consideração com ele. Ele sempre incentivava, sem saber que o fazia,
apesar do respeito exagerado que todos tinham por ele e até de um pouco de medo. A figura
do Radamés impunha respeito. Apesar de ser um cara simples, ele era um músico muito
importante.
Radamés só entendia a linguagem da música e só se interessava realmente por isso.
Nas entrevistas, jamais foi o protótipo do vaidoso. Ele pensava muito na música.
Suas ideias musicais eram sempre direcionadas ao músico. Escrevia para o
instrumentista. Se você pedisse um concerto para ele, ele pensava na personalidade da pessoa
e escrevia.
Radamés gostava muito do violonista Garoto. As peças do Radamés para violão têm
muito do movimento dos baixos que o Garoto fazia.
Radamés usou toda a experiência que teve, tudo o que ouviu e gostou, para a sua
composição erudita. Por exemplo, a música do Ernesto Nazareth, a música de Ravel, os
ritmos brasileiros, o choro, a bossa nova, essas foram suas influências marcantes.
Radamés não deixou alunos. Ele achava que o músico devia tocar com absoluta
liberdade.
Uma razão para ele não ter escrito na música indicação de dinâmicas, indicações de
agógica e andamentos, é porque achava que o verdadeiro músico saberia tocá-la e percebê-la.
Ele dizia que não adiantava escrever tudo, pois a boa interpretação não iria sair se a pessoa
não sentisse qual a atmosfera que criou a obra. Radamés dizia que muitas obras que eram
demasiadamente indicadas pelos autores, muitas vezes, eram tocadas absolutamente erradas,
sem bossa e sem interesse nenhum. O exemplo disso são as Mazurcas de Chopin, que ele
considerava realmente difíceis de interpretar. Nesse tipo de peça era preciso sentir o espírito
da obra.
Certa vez perguntei ao Radamés em que escola ele se enquadrava. Primeiro ele disse
que em nenhuma, depois ele respondeu que se considerava um Neoclássico Nacionalista.
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223

RAPHAEL RABELLO

Antes de conhecer Radamés Gnattali, eu era um músico de choro. Radamés foi para
mim um grande mestre. Abriu-me o mundo musical. Eu estava enxergando a árvore e ele me
fez ver a floresta. Atribuo 80% do meu conhecimento musical a tudo que aprendi com
Radamés. A maior importância que Radamés teve, a meu ver, foi o fato de ter sido tão
eclético. Ele não via barreiras entre as músicas. Radamés me fez saber que sem os dogmas e
preconceitos, poderíamos fazer as músicas que bem entendêssemos e que nos despertasse
vontade. Radamés, por si próprio, quebrou todos os conceitos e preconceitos. Ele mergulhou
fundo na brasilidade, misturando tudo, fez uma loucura e foi completo.
Como violonista, posso dizer que não existe nenhuma obra que supere tecnicamente a
obra de Radamés para violão. A obra dele se iguala em importância ao que existe de mais
perfeito em termos de técnica violonística. Além do mais, ele desfila por várias escolas,
passando pelo jazz, choro, baião, sobretudo valorizando a música brasileira. Ele tem uma
identidade nacionalista muito grande.
A linguagem violonística que ele imprimiu em sua obra é brasileira e carece de um
instrumentista que tenha trânsito direto com esta linguagem. Um violonista acadêmico nunca
vai tocar um Radamés da maneira que deve ser tocado. Assim como não vai tocar Villa-
Lobos, Granados, Albéniz ou qualquer compositor que tenha uma identidade com a rítmica de
raízes populares. O violão é um instrumento de música do povo. Não adianta dizer que é um
instrumento de música clássica porque não é verdade. Não tem literatura e todos os
compositores que escreveram para violão pensaram em grandes festas populares. Isso não é
vergonha nenhuma.
O violão tem uma erudição muito grande sim, na parte técnica. É um paradoxo, pois o
instrumentista-intérprete tem que ter erudição, técnica, virtuosidade e, ao mesmo tempo, a
consciência que seu instrumento é de grande comunicação. Tem que ser músico aberto. No
Concertinho nº. 2 e em toda a obra de Radamés para violão, encontramos uma forma clássica
e ao mesmo tempo livre no sentido musical. Os tempos, os temas, a mensagem muito livre.
Era essa a grande filosofia do Radamés.
Como influências na música de Radamés, existiu o jazz, os impressionistas do início
do século XX. Radamés era também muito voltado para os instrumentistas para quem
escrevia. A alma dele se voltava para o instrumentista para quem escrevia. Ele mesmo foi um
ótimo exemplo de instrumentista que é compositor. O maior exemplo brasileiro disso.
Encontramos em sua obra recursos harmônicos que se ouve no jazz adaptado à música de
224

concerto e também outras características da música popular brasileira carioca.


Também tinha uma coisa meio rococó nos desenhos e frases. O exagero de arabescos
tanto nos baixos quanto na própria melodia. Floreios onde o intérprete pode botar pra fora
toda sua vaidade de virtuose. A execução violonística da obra de violão de Radamés é mais
difícil que a de Villa-Lobos. Talvez porque Villa-Lobos fosse violonista. Radamés escrevia
fácil para piano, pois conhecia a alma do piano. Quando era jovem, o interesse dele era ser
apenas um pianista, mas, finalmente, acho que uma coisa não impediu a outra. Na verdade, eu
acho que ele seria compositor de qualquer maneira, pois tinha grande criatividade e talento
para a composição.
Radamés adquiriu grande técnica de orquestração. Escreveu simples. Não tem nota
jogada fora. A redução que ele fez do Concertino para violão e orquestra para nós dois
tocarmos juntos, eu no violão e ele no piano, é muito bem feita, aliás, como tudo o que ele
fez. Entretanto, como é uma redução é naturalmente mais pobre.
A contribuição que os jovens chorões da Camerata Carioca deram ao Radamés foi o
fato de sermos jovens e estarmos em torno dele. Na época, Radamés estava muito desanimado
e muito parado, talvez desiludido com essa falta de estrutura que existe no Brasil. A
contribuição desse grupo de jovens sedentos por aprender e por poder tocar com Radamés foi
a de tê-lo feito se sentir amado e respeitado. Ele estava se sentindo muito largado e o contato
conosco o animou e revitalizou. Radamés rejuvenesceu. Por conta disso ele, que já usava
choro como influência em suas músicas de concerto, passou a escrever para regional,
escrevendo, então, música para regional e orquestra; piano e regional; cavaquinho e piano;
bandolim e orquestra; violão de sete cordas e orquestra; etc.
225

ROBERTA GNATTALI

Sou filha de um gênio. Apesar de termos sido muito companheiros, sua paixão maior
sempre foi sua música. Ele vivia para isso. Curtia intensamente a música.
Morei com meu pai até 1966, época do seu segundo casamento, quando ele se mudou
de Copacabana para o Jardim Botânico. Lá em casa era aquele entra e sai de amigos e de
artistas. Isso até quando mamãe adoeceu em 1960, mais ou menos, e esse clima festivo mudou
um pouco.
Houve uma fase no início da década de 70 que ele ficou muito desiludido com o meio
e estava muito só. Aí apareceu o Joel Nascimento e o pessoal da Camerata Carioca que o
reanimaram de uma maneira extraordinária. Ele viveu seus últimos dez anos muitíssimo feliz
novamente. Ele escrevia música como que por compulsão. Gostaria de ver sua música mais
tocada. O tempo todo ele escrevia para concertos. Era o que ele gostava.
Conhecia muita música. Era absolutamente eclético e nem um pouco radical nos
gostos musicais. Foi de uma generosidade imensa. Era o que ele tinha para dar e dava para
quem quer que fosse. Meu pai nunca acreditou em mitos, nem para ele nem para os outros.
Ele admirava uma pessoa pelo que ela era. Tranquilamente. Gostava de ser elogiado, mas não
era como uma “sensação”.
Não entendia nada de marketing. Não soube se viabilizar, não tinha paciência, não
fazia lobby. Isso ele nunca estava a fim de fazer. Gostava de sossego, da música, de sentar
com a família, amigos, chope e de conversa. Muita conversa.
Eu sempre me lembro dele como um homem que teve uma vida de muito trabalho.
Acho que ele gostaria de ser lembrado pelo músico que ele foi. E teve um reconhecimento por
parte dos músicos durante sua vida que poucos tiveram, apesar das críticas.
Viveu muito bem com ele mesmo, foi muito feliz com a vida e com a música que fez.
Não era nem um pouco encucado com nada.
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ROBERTO GNATTALI

Radamés nunca dava aulas. Ele realmente tinha uma facilidade muito grande para a
música. Um traço genial. Ele era impaciente. Muito mesmo. Se ele tivesse que ter batalhado
para fazer música, certamente ele não seria músico. Para ele, a música era uma coisa fácil. O
Radamés era um compositor que quase não usava borracha. A arquitetura da obra estava na
cabeça. Não é que ele não elaborasse, mas a elaboração vinha junto com a inspiração, direto
para o papel. Essa impaciência dele reflete em várias coisas na vida prática. Por exemplo, se
uma música não vinha na cabeça, passava para outra. Ele era impaciente mesmo. Não era de
ficar mudando muito ou reescrevendo uma peça. Ele não era um compositor que rejeitasse
suas próprias obras, mas ao mesmo tempo não fazia questão de divulgá-las, não “corria atrás”.
Nunca pediu nada para ninguém.
Ele era muito dado à família. Era um ser muito especial. Havia momentos que parecia
ser muito feliz e outros que parecia distante de tudo. Num chope, num almoço, você tinha a
impressão que ele estava muito feliz. Ele era uma pessoa muito charmosa, muito atraente e o
famoso mau humor não assustava. Não admitia, mas gostava de elogios.
Ele mesmo estabelecia a diferença da música dele e dos arranjos que fazia. E se
aborrecia muito se chegassem a ele apenas como músico popular. Sempre perguntava: “você
sabe quantas sinfonias eu tenho?” Querendo ele ou não, isso sempre aconteceu. Mas a música
dele, em qualquer gênero, tinha a cara dele. Parecia que era sua, o estilo Radamés Gnattali
inconfundível.
Radamés não sabia a força que tinha. Não cobrava, não sabia dar preço, não dava a
menor bola em ser “Radamés Gnattali”. Ele não tinha noção nenhuma de Marketing. Por
exemplo: se ele fizesse uma vinheta de comercial de 30 segundos, isso para ele não era nada
em termos de música; por isso, não sabia o que iria cobrar. Ele esquecia que por trás daquele
comercial, às vezes, se vendiam milhares de unidades daquele produto.
E assim era o Radamés, gênio, desligado das coisas práticas da vida. Era um ser livre,
desbloqueado, despretensioso, que acima de tudo viveu da facilidade natural que tinha como
músico completo.
228
229

ANEXO G

FIGURAS ILUSTRATIVAS

Figura 1. Capa do LP Villa-Lobos / Radamés Gnattali do Duo Iberê Gomes Grosso e Radamés Gnattali
(Fonte: Leme [1958-1964] / Foto: Capa do LP LDR-5028, por Reynaldo Dias Leme e Ari Fagundes [s/d]).

Figura 2. Radamés Gnattali e Iberê Gomes Grosso em recital na década de 1960 (Fonte: GNATTALI, Roberto,
2006).
230

Figura 3. Radamés Gnattali e Iberê Gomes Grosso em recital na década de 1970 (Fonte: Barbosa, 2005, p. 80).

Figura 4. Em pé da esquerda para a direita: Adélia (mãe de Radamés), Camilo, Cézar, Emilia, Vittorio, Arthur,
Paschoal e Frederica. Sentados: Paulina, Maria Weingärtner Fossati (avó de Radamés), Nina (Itala), Carlito,
Carlo Fossati (avô de Radamés) e Virgílio em 1902 (Fonte: GNATTALI, Roberto, 2006).

Figura 5. Olga Fossati com o pai Cézar — prima e tio de Radamés (Fonte: GNATTALI, Roberto, 2006).
231

Figura 6. Alessandro, Angelo, Giovanna, Teresa Bighelli (pai, avô, tia e avó de Radamés). Essa é uma foto
montagem, cuja técnica foi muito utilizada no início do século XX. Ao receber a foto original, vinda da Itália,
Alessandro mandou incluir uma foto sua e a reenviou para a Itália. Depois de sua chegada ao Brasil, nunca mais
ele veria sua família de origem (Fonte: GNATTALI, Roberto, 2006).

Figura 7. Alessandro Gnattali, pai de Radamés Gnattali (Fonte: GNATTALI, Roberto, 2006).

Figura 8. Radamés Gnattali, foto de 1908, um mês para completar três anos de idade (Fonte: GNATTALI,
Roberto, 2006).
232

Figura 9. Radamés Gnattali com nove anos de idade, em 1915, na Sociedade Italiana, no dia que recebeu a
medalha e o prêmio do Consul da Itália (Fonte: GNATTALI, Roberto, 2006).

Figura 10. Adélia Fossati Gnattali, mãe de Radamés Gnattali (Fonte: GNATTALI, Roberto, 2006).

Figura 11. Radamés ao cavaquinho no “bloco de carnaval” intitulado Os Exagerados (Fonte: GNATTALI,
Roberto, 2006).
233

Figura 12. Radamés Gnattali, abaixado à direita, atuando como violonista (Fonte: GNATTALI, Roberto, 2006).

Figura 13. Radamés Gnattali na década de 1920 experimentando o fagote (Fonte: GNATTALI, Roberto, 2006).

Figura 14. Ideal Jazz Band do Café Colombo (Fonte: GNATTALI, Roberto, 2006).
234

Figura 15. Radamés Gnattali aos 18 anos (Fonte: GNATTALI, Roberto, 2006).

Figura 16. Fachada do Instituto Nacional de Música (Fonte: Acervo José Ramos Tinhorão/IMS, 2001).

Figura 17. Fachada do Cine Odeon em 1922 (Fonte: Acervo José Ramos Tinhorão/IMS, 2001).
235

Figura 18. De baixo para cima, na terceira fileira, Radamés é o terceiro, da esquerda para a direita,
(Fonte: GNATTALI, Roberto, 2006).

Figura 19. Radamés e Vera Maria em 1929 (Fonte: GNATTALI, Roberto, 2006).

Figura 20. Casa Beethoven de Porto Alegre, em 1931,


(Fonte: Virgilio Calegari [s/d] - Acervo Ernesto Nazareth 150 anos/ IMS, 2012).
236

Figura 21. Fachada do Cine Odeon (Fonte: Acervo José Ramos Tinhorão/IMS [s/d]).

Figura 22. Casa Carlos Wehrs – O proprietário Carlos Wehrs e ao piano Freitinhas,
(Fonte: Acervo José Ramos Tinhorão/IMS [s/d]).

Figura 23. Rosto de Radamés Gnattali - Gravura de Candido Portinari (Fonte: Pedro Bastos, 2005).
237

Figura 24. Orquestra de Romeu Silva no Cassino da Urca (Fonte: Acervo Ao Chiado Brasileiro [s/d]).

Figura 25. Interior da Rádio Mayrink Veiga (Fonte: Acervo José Ramos Tinhorão/IMS [s/d]).

Figura 26. Radamés na Rádio Nacional (Fonte: GNATTALI, Roberto, 2006).


238

Figura 27. Iberê Gomes Grosso, Radamés Gnattali e Romeo Ghipsman (Fonte: GNATTALI, Roberto, 2006).

Figura 28. Homenagem da Rádio Municipal de Buenos Aires a Radamés Gnattali (Fonte: GNATTALI, Roberto,
2006).

Figura 29. Pixinguinha e Radamés (Fonte: GNATTALI, Roberto, 2006).


239

Figura 30. Ary Barroso com Radamés Gnattali, Jorge Cury (locutor), Silvio Caldas (cantor) na Rádio Nacional,
(Fonte: Arquivo fotográfico de Ary Barroso [s/d]).

Figura 31. LP Ernesto Nazareth - Radamés Gnattali e Orquestra Continental (Fonte: Capa do LP –V-02 1954).

Figura 32. LP Samba em três Andamentos de Radamés Gnattali (Fonte: Capa do LP Sinter – SLP 1037, 1955).
240

Figura 33. LP Suíte Popular Brasileira para Violão e Piano (Fonte: Capa do LPP-36, Continental, 1956).

Figura 34. LP Radamés e a Bossa Eterna (Fonte: Capa do LP- PPL-12-104, selo Continental, 1964).

Figura 35. Sexteto Continental, depois Sexteto Radamés (Fonte: GNATTALI, Roberto, 2006).
241

Figura 36. LP 3ª Caravana - Radamés na Europa (Fonte: Capa do LP selo EMI Music. 542465 2, 1960).

Figura 37. LP Retratos (Fonte: Capa do LP Gravadora Continental, 1964).


242
243

ANEXO H

CD COM TAKES NA ORDEM DE APRESENTAÇÃO DO CAPÍTULO 3 – REVISÃO


FONOGRÁFICA

CD que acompanha a tese contendo os seguintes itens: (a) fonogramas do LP Festa, com as
peças Flor da Noite e Modinha & Baião interpretadas integralmente por Radamés Gnattali e
Iberê Gomes Grosso (objeto da revisão fonográfica deste trabalho); (b) takes com os recortes
indicados na análise (referentes ao Capítulo 3 desta tese e apresentados na ordem exata de
citação no corpo do trabalho); (c) interpretações das mesmas obras pelo Duo Chew-Canaud
(2006); (d) takes com os recortes; (e) vídeo do concerto ao vivo do Duo Chew-Canaud
tocando Modinha & Baião na versão de 2012.

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