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Outros títulos de interesse: Como é que se morre em movimento? E como é que se recriam Clara Saraiva é investigadora do
lugares de pertença a partir dessa morte em movimento? Numa Centro em Rede de Investigação em
Envelhecimento em Lisboa, Antropologia (CRIA) e do
Portugal e Europa sociedade ocidental em que a morte se tornou um tabu, e que é CEC-FLUL. Pesquisa conceções da
Uma Perspectiva Comparada pensada como algo que só acontece aos outros, este morte e rituais funerários e dirigiu o
Manuel Villaverde Cabral
distanciamento face ao último rito de passagem da vida pertence
Ciências Sociais Cruzadas mobilidade dos indivíduos mas também com a criação de lugares Simone Frangella é antropóloga,
entre Portugal e o Brasil de pertença e de ligação com os espaços de origem. investigadora de pós-doutoramento
Trajetos e Investigações no ICS Num mundo globalizado, como morrem os imigrantes, sempre no Instituto de Ciências Sociais
Isabel Corrêa da Silva em movimento entre os seus países de origem e os seus destinos (ICS-ULisboa). Tem pesquisado as
Simone Frangella territorialidades urbanas, e os
Sofia Aboim migratórios? Nos vários capítulos deste livro analisam-se os níveis
fenómenos migratórios
Susana de Matos Viegas múltiplos que a morte toca, desde os mais simbólicos aos mais transnacionais.
(organizadoras) práticos. A morte é uma dimensão onde a abordagem
Tempos e Transições de Vida transnacional é obrigatória – juntamente com o debate crítico Irene Rodrigues é antropóloga,
Portugal ao Espelho da Europa sobre o sentido do «transnacional» e as suas características professora auxiliar do Instituto
José Machado Pais Superior de Ciências Sociais e
multifacetadas – já que encerra uma intensa circulação, não
Vítor Sérgilo Ferreira Políticas da Universidade de Lisboa
(organizadores) apenas de bens materiais e riqueza, mas também de universos (ISCSP-ULisboa). Tem pesquisado
significativos e simbólicos que circulam juntamente com os bens e
as pessoas: o corpo, mas também os espíritos e as relações com o
outro mundo que as pessoas trouxeram para a diáspora.
Movimentos, Espíritos sobre migração chinesa em Portugal
e na China.
ICS ICS
www.ics.ul.pt/imprensa
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Movimentos, Espíritos
e Rituais
Gestões da Morte
em Cenários Transnacionais
Clara Saraiva
Simone Frangella
Irene Rodrigues
(organizadoras)
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www.ics.ulisboa.pt/imprensa
E-mail: imprensa@ics.ul.pt
Índice
Os autores . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 15
Prefácio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 23
João de Pina-Cabral
Introdução
Mobilidade e lugares da morte . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 31
Clara Saraiva, Simone Frangella e Irene Rodrigues
Parte I
Morte: teorias em movimento
Capítulo 1
A morte e o que se lhe segue: a imobilização dos mortos
e a migração . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 37
Maurice Bloch
Capítulo 2
A morte em movimento: uma abordagem teórica sobre a morte
e suas possíveis implicações em contextos transnacionais . . . . . . . 51
Anastasios Panagiotopoulos
Capítulo 3
Corpos em falta e pertença entre os Manjaco:
ou o passado e o futuro de alguns costumes funerários
no contexto do cosmopolitismo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 71
Eric Gable
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Parte II
Circulação transnacional de espíritos, corpos e rituais
Capítulo 4
«As folhas caídas regressam às raízes»: a invisibilidade da morte
e a ideia de «casa» na política de enterro da migração chinesa . . . . 87
Irene Rodrigues
Capítulo 5
Os cemitérios e a diversidade. Expressões de organização
do património religioso funerário em Espanha . . . . . . . . . . . . . . . . 105
Sol Tarrés e Jordi Moreras
Capítulo 6
Pessoa, morte e género entre Lisboa e Dhaka . . . . . . . . . . . . . . . . . 129
José Mapril
Capítulo 7
A visibilidade da morte em Portugal no quadro das migrações
transatlânticas e intraeuropeias . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 149
Maria Beatriz Rocha-Trindade
Parte III
Morte, migração e saúde
Capítulo 8
Viver a morte em Portugal: atitudes de portugueses e diferentes
grupos de imigrantes face à morte . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 173
Violeta Alarcão, Filipe Leão Miranda, Elisa Lopes e Rui Simões
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Capítulo 9
A morte em várias línguas: principais causas de morte
e procedimentos de transporte de cadáveres em Portugal –
análise focada em imigrantes do Bangladesh, Brasil, China,
Cabo Verde e Guiné-Bissau . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 207
Andreia Jorge Silva, Joana Ferreira Duarte, Violeta Alarcão e Clara Saraiva
Parte IV
O lugar e os lugares da morte
Capítulo 10
Encontros com a morte no Noroeste . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 235
António Medeiros
Capítulo 11
«Não vão lá com flores»: as mortes não-evidentes na migração . . 251
Ottavia Salvador
Capítulo 12
O lugar dos mortos: geografias móveis e os monumentos
aos mártires em Timor-Leste . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 269
Rui Graça Feijó e Susana de Matos Viegas
Posfácio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 291
Cristiana Bastos
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Gráficos
8.1 Distribuição por país de origem segundo o sexo (%) . . . . . . . . . . . . 179
8.2 Distribuição por país de origem segundo o grupo etário (%) . . . . . . . 179
8.3 Distribuição por país de origem segundo o estado civil (%) . . . . . . 184
8.4 Distribuição por país de origem segundo o grau de escolaridade (%) . 184
8.5 Distribuição por país de origem segundo o tempo de residência
em Portugal (média e desvio-padrão) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 185
8.6 Distribuição por país de origem segundo ter ou não uma religião (%) 185
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Figuras
5.1 Igreja anglicana de Saint George, antiga capela funerária . . . . . . . . 116
5.2 Interior do cemitério inglês de Málaga . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 116
5.3 Entrada do cemitério de Barcia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 121
5.4 Turistas visitando o interior do cemitério mouro de Barcia . . . . . . 121
5.5 Nichos no sexto departamento . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 126
5.6 Lápides (matzeva) de defuntos judeus . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 126
7.1 Plano de funeral IRMAF (Rio de Janeiro, Brasil) . . . . . . . . . . . . . . . 153
7.2 Residências funerárias Alfred Dallaire (Montreal, Canadá) . . . . . . 153
7.3 Agência funerária Amadeu Andrade & Filhos, Lda.
(Castro Daire, Viseu . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 153
7.4 Agência Funerária do Terreiro, Lda. (Penacova, Coimbra) . . . . . . . 153
7.5 Pompes Funèbres, E. F. G. (Paris, França) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 153
7.6 Lápide aposta em campa do cemitério de Santa Bárbara de Nexe,
Faro. Leia-se: «Ganhei com a liberdade/Meu regresso a Portugal» . 154
7.7 Placa que refere os laços familiares e emocionais com um neto
imigrado na Argentina. Cemitério de Santa Bárbara de Nexe, Faro . . 154
7.8 Mausoléu da família Mendes de Oliveira Castro, cemitério
de Fafe, Braga . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 156
7.9 Estátua do conde de Ferreira, cemitério de Agramonte, Porto . . . . 158
7.10 Jazigo de Adriano Costa Ramalho, cemitério de Agramonte, Porto,
e detalhes das estátuas que fazem alusão ao comércio, à agricultura,
à Europa e ao Brasil . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 160
7.11 Mausoléu em estilo neoclássico, dos condes de Santiago de Lobão,
cemitério de Agramonte, Porto, e detalhe da porta de entrada . . . . 161
7.12 Campas no cemitério de Queiriga, Viseu . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 162
7.13 Estátuas do comendador Agostinho Rodrigues Valgode
e de Joaquim Sobrinho, no jardim público de Santa Cruz da Trapa,
São Pedro do Sul, Viseu . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 163
7.14 Jazigo de José d’Almeida, junto à Igreja de São Cristóvão de Lafões,
São Pedro do Sul, Viseu . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 164
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7.15 Campa de Rosa Noivo, oferecida pelo seu filho residente no Brasil,
cemitério de Mira de Aire, Porto de Mós, Leiria . . . . . . . . . . . . . . . 164
7.16 Campa no cemitério de Santa Bárbara de Nexe, Faro. Detalhes
da ligação a França. Leia-se: «Ses Amis», «Association CS Portugais
de Caen» . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 165
7.17 Jazigo de conde da Trindade, cemitério de Agramonte, Porto . . . . 168
7.18 Campa no cemitério de Santa Bárbara de Nexe, Faro . . . . . . . . . . . 168
7.19 Campa no cemitério de Santa Bárbara de Nexe, Faro . . . . . . . . . . . 168
7.20 Campa no cemitério de Santa Cruz da Trapa, São Pedro do Sul . . 168
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Os autores
Anastasios Panagiotopoulos fez a sua licenciatura no Departamento
de Sociologia na Universidade de Creta, Grécia, em 2003. Em seguida
obteve o grau de mestrado (disciplinas) em 2004, outro grau de mestrado
(Pesquisa) em 2006 e o grau de doutoramento em 2011, todos no De-
partamento de Antropologia Social da Universidade de Edimburgo.
A sua tese de doutoramento baseou-se em investigação etnográfica rea-
lizada entre 2006 e 2007 em Havana, Cuba, sobre o papel da adivinhação
nas tradições religiosas afro-cubanas. Atualmente é investigador de pós-
-doutoramento no CRIA-FCSH, Universidade Nova de Lisboa, e está a
trabalhar sobre temas relacionados ao seu doutoramento, assim como
com a relação entre religiosidade afro-cubana e política socialista cubana.
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Os autores
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João de Pina-Cabral
Prefácio
O livro que aqui vos apresento é um trabalho coletivo sobre um dos
grandes temas de sempre: a morte das pessoas e as reações que ela con-
voca entre os humanos. Precisamente por ser de sempre, o tema necessita
regularmente de ser atualizado, e há que louvar a Professora Clara Saraiva
e os seus coautores por o fazerem de forma tão magistral.
Sir James Frazer inicia The Golden Bough — esse livro que foi a plata-
forma de lançamento da antropologia moderna — com um relato larga-
mente ficcional sobre um rei da antiguidade que, num bosque perto do
lago Nemi, não longe de onde viria a ser Roma, sabe que quem o con-
seguir matar será o seu legítimo herdeiro. Por isso mesmo, o rei passa as
noites em vigília, contornando ansiosamente o carvalho sagrado que é o
centro do seu poder, pois está à espera da morte vinda a qualquer mo-
mento da mão de quem menos espera. O desafio para quem lê hoje o
relato de Frazer é o de entender que o que ele aí tentava identificar não
era a natureza da angústia individual ou o medo da morte que cada um
de nós sente, mas o desafio que a morte lança à vida como fenómeno
social. O potencial de vida que há na morte é o cerne do dispositivo que,
desde sempre, tanto fascinou a antropologia: o sacrifício.
Quando um ser vivo morre, não morre completamente, porque a sua
forma fica viva nos outros seres da sua espécie e porque a sua existência
fica para sempre inscrita na história dessa espécie. Uma borboleta morre
mas outras borboletas ficam, cuja forma reflete a história da espécie e,
portanto, a existência de todas as borboletas anteriores — essa a grande
descoberta de Darwin, afinal. A morte de um ser vivo é uma continui-
dade interrompida; não é um fim, é sempre só um desvio na simetria so-
cial da vida. Nesse sentido, a morte é o ritmo da vida; e a vida é ritmada
porque é inescapavelmente social; vida é uma coisa que acontece a mais
de um organismo.
Acontece que, com os seres humanos, a complexidade é ainda maior
do que com os outros animais. A morte de uma pessoa é ainda menos
morte que a de uma borboleta, porque a pessoa transcende — como teo-
riza neste livro Maurice Bloch. Isto é, quando um bebé humano se torna
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Prefácio
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dem-na. Ele não tinha podido viver com a sua terra; tinha perdido uma
terra que tinha sido sua. Esse outro tão famoso suicida, Stefan Zweig,
também estava literalmente desterrado. Ele descobriu que, apesar de ter
sido muito bem recebido no Brasil, não podia continuar a ser quem era
numa nova terra. Quando perdemos a nossa terra, altera-se muito radi-
calmente o nosso ser enquanto pessoa. Mas será que, tal como nestes
casos, se altera sempre no sentido de promover a inviabilidade da pessoa?
Creio que não, já que houve muitos movimentos humanos (de pessoas
tanto quanto de coletivos) que acabaram por reinventar novas terras.
O movimento, contudo, é sempre um desafio à inserção social e, por
isso, um desafio à pessoa que, mudando de terra, corre o perigo de não
poder reconstruir-se.
Em 1985, uma colega minha na Universidade de Southampton foi
convocada na qualidade de tradutora a um hospital onde estava um por-
tuguês que, sofrendo de cancro terminal, não sabia falar inglês e era ne-
cessário recolher os seus últimos desejos. O homem contou à colega que
havia trinta anos que era cozinheiro de uma família rica em Jersey. Não
tinha amigos na ilha e os seus familiares em Portugal estavam todos fa-
lecidos. Não tinha desejos específicos a comunicar. No dia seguinte, a
minha colega voltou lá para o visitar, mas ele já tinha morrido. O seu
corpo terá sido usado para fins médicos? Ninguém sabe hoje traçar o
que terá acontecido a este homem sem amarras ou qual terá sido a sua
história tal como ele a contava a si mesmo nessas suas últimas horas.
O exemplo é relevante porque, contrariamente a Mário de Sá-Carneiro
ou a Stefan Zweig, ou aos judeus que eram passantes em Lisboa durante
a II Guerra Mundial e que, tendo morrido, estão enterrados no Alto de
São João, este foi um homem que morreu duplamente, não ficou sequer
memória do seu nome. Qual será a percentagem de pessoas na história
da humanidade que desaparecem assim tão totalmente, sem deixar qual-
quer marca entre os restantes? A morte das pessoas é, tal como a pessoa,
um fenómeno complexo, mas não terá ele sofrido uma morte dupla?
Lembra-me a famosa rima jocosa de Carlos Tê, esse mestre do ser por-
tuguês: «Encenei o meu enterro/Para saber quem aparecia/E só de não
te ver por lá/Julguei mesmo que morria.»
Estes são os esquecidos — e não são a maioria. Mas existem pessoas a
quem a morte é recusada, ou a quem os outros querem roubar a morte.
Portanto, no sentido em que a morte da pessoa é mais do que a simples
morte do corpo, torna-se possível cometer morticídio — isto é, matar
a morte, se me permitem o neologismo. Tal é o caso dos albinos, na África
Oriental, de quem os seus conterrâneos afirmam que «não morrem». Que
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Prefácio
quererá mesmo isto dizer? – tenho-me perguntado muitas vezes. Que in-
formação é secretamente contida numa afirmação de tal forma imprová-
vel? E, por isso até (porque não morrem), os pedaços de corpos de albinos
têm um enorme valor para a magia negra — mais uma vez a ver com a
terra, da qual estas relíquias supostamente ajudam a retirar ouro! Por isso,
ocorreu na última década um surto de ataques a crianças albinas cujos
membros são brutalmente decepados para esse fim! Recentemente, um
grupo de albinos decidiu alertar mediaticamente para esta trágica situação
na Tanzânia, no Malawi, na África do Sul e em Moçambique. Esperemos
que consigam que a sua voz se ouça no meio de uma tão ignóbil tragédia.
Os albinos são negros e são brancos e, como tal, não são nenhum
deles, e por isso não têm lugar numa terra que, para os africanos, é terra
negra: como quando o grande poeta da africanidade, Léopold Sedar
Senghor, chama à mulher negra nua a sua Terra Prometida. A morte dos
albinos é-lhes, por isso, simbolicamente roubada. Dirão: é tudo só um
jogo de símbolos. Sim é, mas é um jogo onde a vida e a morte estão tão
profundamente imiscuídas, que há quem, por ganância, roube a vida e
a morte a estes pobres seres oprimidos.
No caso dos albinos da África de Leste, este morticídio não é coletivo,
pois aplica-se a pessoas singulares. Contudo, muitos mais são os exem-
plos na história de morticídios cujo objeto foram coletividades. Por
norma (e felizmente) esse último tipo de morticídio quase sempre é frus-
trado. Senão vejamos, os Yazidis que estão a ser martirizados em massa
nos dias que passam pelos pelejantes da Síria (e é simples de mais dar
responsabilidade por isso a uma entidade mais ou menos fantasmática,
cujo nome nem sequer está estabilizado — ISI, ISIL, Daesh, ou quê?); os
judeus que os consócios de Hitler assassinaram; os mais de um milhão
de arménios que os turcos torturaram e mataram em 1915 — esses todos
continuam vivos num certo sentido, por muito que os alemães de hoje
peçam desculpas ou que os turcos recusem admitir os dados históricos
incontornáveis, ou que os governos de todo o mundo que suportam hoje
essa guerra na Síria deitem as culpas sobre o tal califado fantasma.
Não se sabe precisamente quem organizou a destruição no fim do ano
passado da imponente Igreja Memorial aos Mártires Arménios, erigida
pelos sobreviventes do genocídio em Dayr az-Zawr na Síria. Trata-se,
porém, de mais uma tentativa de morticídio coletivo que, de tão vil, saiu
frustrada. Dayr az-Zawr é o local onde as piores atrocidades foram co-
metidas em 1915 contra mulheres e crianças arménias; foi o palco dos
momentos finais desse movimento trágico e grotesco que foi a expulsão
dos arménios das suas terras ancestrais. Há uns meses, falou-se muito nos
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Prefácio
nós. Não creio que haja hoje no mundo mais assassinos do que havia
antes. E a morte-espetáculo sempre existiu — não eram isso, afinal, os
auto de fé dos que eram encenados no Terreiro do Paço ou os enforca-
mentos públicos tão característicos das cidades anglo-americanas? Mas
hoje a espetacularidade dessas mortes e dos espaços destruídos que as as-
sinalam é universal (quem não sabe hoje como fica uma cidade como
Alepo quando é bombardeada pelos americanos, ingleses, russos ou fran-
ceses?).
A morte como moeda política está hoje mais visível do que jamais es-
teve. Porque não é só no mostrar de corpos mortos ou de ruínas onde
estão soterrados corpos humanos que há espetacularização da morte.
É também no convocar das imagens de quem já viu mil e uma cenas
desse género. Chegámos ao ponto de uma primeira-ministra inglesa, para
poder consolidar o lugar para o qual acabara de ser nomeada, ter de afir-
mar publicamente no Parlamento (e, portanto, em todos os milhões de
ecrãs que temos em casa) que estaria disposta a acionar uma bomba nu-
clear, caso os interesses da Grã-Bretanha o justificassem. Eu acho que ela
estava a mentir, já que ela sabe que se carregar no botão a probabilidade
de estarmos todos mortos dentro dos segundos seguintes é muito alta —
mas isso é algo que nunca poderemos confirmar.
A questão é que o espetáculo em que ela participava, o palco onde
era atriz, é um teatro mediático de viabilização e validação dos interesses
milionários que controlam o nosso mundo e que pessoas como outro fã
do nuclear, Donald Trump, representam. O espetáculo fantasmático que
ela anunciava é por nós todos conhecido. Já todos vimos fotos de como
ficou Hiroxima e o que aconteceu às pessoas que lá estavam. Ao ouvi-la,
uns, como eu, contemplavam a possibilidade de estar entre os incinera-
dos; outros, como ela, achavam que iriam escapar por uma unha negra.
Por isso, há todo um discurso sobre privilégio escondido nestes espetá-
culos pós-modernos de morte.
Em suma, numa época em que morre num ano tanto gente afogada
no Mediterrâneo à procura de emprego, como morrem infelizes apanha-
dos no meio das guerras do petróleo do Médio Oriente, a invisibilidade
da morte parece ter terminado. Se a morte normal de cada um de nós é
cada vez mais decorosamente invisível, a morte espetáculo é cada vez
mais espetacular e ocorre em cada vez maior quantidade. Vivemos no
mundo da morte hipervisível onde a lógica do sacrifício (que produz
morte para dar vida) é cada vez mais a moeda mediática deste nosso
mundo em desassossego.
Agosto de 2016
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Clara Saraiva
Simone Frangella
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Introdução
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Parte I
Morte: teorias em movimento
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Maurice Bloch
Capítulo 1
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social, tal como aquela com que comecei este artigo. Os rituais fúnebres
que Astuti analisa envolvem momentos de festa, em que os membros
da família convidam os mortos a participar numa alegre reunião em que
tudo o que os Vezo consideram ser as coisas boas da vida é partilhado
entre mortos e vivos. Nesta lista estão incluídas a comida (sobretudo a
carne), a bebida, o tabaco e o sexo.
O que acontece, porém, não se limita a uma simples partilha. Os mor-
tos, como entidades quase orgânicas, são convidados a juntarem-se à
festa, mas esta é palco de excesso no consumo de todas as boas coisas
mencionadas. Para entender este excesso, temos de compreender que os
mortos são simultaneamente uma fonte de bênçãos, mas também de
temor, dado o seu carácter espectral. Por todo o Madagáscar, estes fan-
tasmas dos antepassados são tidos por invejosos das coisas da vida que
perderam, particularmente comida, bebida e sexo. O propósito destes
festins pode portanto ser visto como duplo. Em primeiro lugar, trata-se
de dar aos mortos aquilo que desejam como seres orgânicos, trazendo-
os para a proximidade dos vivos, e oferecendo-lhes tamanha abundância
que eles não terão motivos para assombrar os vivos; ou seja, esta partilha
exagerada tem por fim afastá-los na sua forma transacional. Espera-se que
eles apanhem uma indigestão! Por outro lado, este epílogo dos mortos
na sua forma perecível abre caminho à sua gradual passagem ao estatuto
de antepassados transcendentais, que distribuem bênçãos. É este processo
que as estátuas facilitam. De facto, apenas ajudam, não levam o processo
até à sua conclusão. O significado da madeira de que são feitas ilustra
muito bem este ponto. Trata-se de uma madeira que se degrada com re-
lativa facilidade e que acaba por ser substituída por pedra. Assim, a ma-
deira destas figuras é um agente de transformação entre uma representa-
ção caricatural do transacional que é feita pelo cadáver em putrefação e
a imobilidade final da pedra; algo a que poderíamos chamar a represen-
tação caricatural do transcendental. É de facto necessário pensar nas fi-
guras eróticas neste termos, simultaneamente como parte dos processos
do início da celebração de um antepassado e da expulsão do ser orgânico.
Assim, as figuras esculpidas na madeira oferecem um paralelo ao ritual,
como um estágio intermédio entre o orgânico e o não-orgânico, o tran-
sacional e o transcendental.
Esta utilização da madeira, um material perecível, em esculturas fune-
rárias pode ser encontrada em muitas outras paragens pelo mundo fora.
Susan Kuechler descreve um caso similar (Kuechler 2002). Um ponto
fundamental é que estas estátuas em Madagáscar e na Melanésia são feitas
de uma madeira que muito depressa se desfaz. Como madeira, são cele-
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brações dos mortos, mas a madeira, como já discuti antes (Bloch 1998)
tem a capacidade de simbolizar uma transição do animado para o inani-
mado. Para muitos povos de Madagáscar, as árvores estão vivas e são fas-
cinantes, mas de uma forma ambígua. São grandes coisas vivas, de ma-
terial muito duro, porém nem elas conseguem escapar à transformação
do orgânico. Ou seja, as árvores são feitas de madeira, algo que é quase
inorgânico e inanimado mas que, por fim, mesmo separada da origem,
não escapa à transformação e degrada-se, desfaz-se. É isso que acontece
às estátuas funerárias. O que Astuti realça é que estas figuras evocam uma
simultaneidade ambígua entra a continuação e a expulsão. As estátuas
são feitas com o propósito último de se desfazerem e desaparecerem.
Nessa altura, tudo o que resta são as pedras do túmulo, ou talvez ci-
mento, visto como algo também completamente inanimado, totalmente
imóvel e colocado num local, potencialmente para sempre.
Este padrão de transformação relaciona a carne em putrefação e a per-
manência da pedra através de intermediários. É algo que se encontra por
todo o Madagáscar e em muitas outras áreas do mundo, onde as dife-
renças entre entidades animadas e inanimadas, orgânicas e inorgânicas,
são utilizadas numa filosofia que liga o transcendental, aparentemente
permanente, e o vivo, em contínua mudança, através de substâncias
como a madeira, capazes de estabelecer uma subtil ponte entre os dois.
Contudo, em muitos lugares pelo mundo, este processo de substitui-
ção da vida transformável pelo inorgânico imóvel obriga a um outro ele-
mento implícito. O corpo em acelerada decomposição é associado a ma-
teriais inorgânicos e portanto pleno de permanência, graças à associação
a materiais como a pedra, mas esta, não-transformável, tem também o
papel de um elo permanente à terra no qual o corpo é inumado, e por-
tanto a um local particular na geografia geológica do lugar. Estas práticas
funerárias começam portanto por substituir o corpo orgânico ainda em
transformação pela aparentemente imutável pedra inorgânica, mas depois
colocam este objeto inorgânico num lugar definido, abolindo assim e
por fim o processo transformativo da vida transacional, sobretudo um
dos seus aspetos: a capacidade dos seres vivos de se deslocarem.
Funerais deste género celebram, enfim, a interrupção definitiva do que
era o movimento do corpo no espaço. Quanto tal acontece, e ocorre
com frequência, a relação entre as práticas funerárias e as migrações hu-
manas assume realmente o carácter de um desafio.
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Corpos em decomposição
e lugares permanentes
O sucesso último da transformação do orgânico em inorgânico é a
completa e final associação das pessoas com o lugar. Assim, as pessoas
transformam-se nos lugares (Bloch 1995). Esta estabilidade localizada é
alcançada através dos funerais em muitas outras zonas do mundo além
de Madagáscar, embora numa ampla variedade de configurações. Mas
constitui também a estrutura do desafio que é criado pelas migrações.
A forma como um tal sistema se liga às migrações foi o assunto de
que tratei no meu primeiro livro, Placing the dead (Bloch 1971). Foi ba-
seado no trabalho de campo que realizei para a minha tese de doutora-
mento, desenvolvido na área central de Madagáscar, no seio dos Merina,
que vivem na região em torno da capital; na realidade, porém, a minha
pesquisa foi efetuada longe do coração do território dos Merina, numa
região fronteiriça que, há cem anos, era praticamente desabitada e que
assim se abriu à possibilidade de colonização, através da criação de novos
arrozais. Houve vários fatores que levaram as pessoas a irem viver para
este novo território: 1) escassez de terra nas áreas de origem; 2) tentativa
de escapar a várias formas de controlo governamental; 3) fuga depois de
revoltas contra o governo colonial; 4) deslocação de descendentes dos
escravos que foram libertados em 1896 mas a quem não tinham sido
dadas terras na zona onde tinham sido libertados.
Para as pessoas de ascendência livre, a situação criada pela migração
para estas novas terras era muito diferente da que se punha para os des-
cendentes de escravos. Vou começar por tratar da primeira situação.
Para os Merina, tanto no passado como na atualidade, um valor central
é o da junção, depois da morte e por vezes mesmo muito depois de esta
ter ocorrido, das ossadas dos membros de uma linhagem, em grandes
túmulos de pedra ou pedra e cimento. Esta reunião envolve uma varie-
dade de rituais nos quais os mortos são gradualmente reunidos e condu-
zidos ao túmulo da família. Tal como nos casos já mencionados, este
processo envolve a transformação do corpo. Neste caso, a alteração é so-
bretudo uma questão de eliminação da matéria húmida do corpo, man-
tendo apenas os ossos secos que se vão juntar aos outros no jazigo fami-
liar. A separação da carne putrefacta e dos ossos mais duradouros é já
vista como um passo no movimento do orgânico para o inorgânico, uma
vez que as ossadas têm associada uma ideia de durabilidade e possuem
certa afinidade com a pedra e o cimento que constituem o jazigo. Neste
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sociais. Portanto, para ele, a morte é um fim e nada mais. Claro que a si-
tuação do migrante isolado e só é extrema, embora longe de incomum.
Provavelmente ligar-se-á a alguns outros migrantes com passados seme-
lhantes e tentará recriar um pequeno transcendental privado, mas tal não
lhe permitirá estabelecer ligações com a sociedade em que se insere; pelo
contrário, pode bem contribuir para o isolar dela.
Esta é uma história muito específica que terá ressonâncias noutras re-
giões do mundo, mas não deixa de ser interessante considerá-la no qua-
dro dos termos muito gerais com que dei início a este texto. Uma das ra-
zões é que, no caso dos migrantes Malagasy a que aludi, é isto que eles
fazem. Desde que as deslocações sejam feitas em conjunto com outros
membros do seu grupo e que não impliquem demasiada interação com
elementos estranhos, as modificações podem ocorrer com base no sis-
tema transcendental anterior. É este o caso para os Malagasy cujos ante-
passados eram livres. No caso dos descendentes de escravos é necessária
uma regeneração mais profunda. E tal necessidade é ainda mais acen-
tuada para os emigrantes para um lugar como a França. O carácter fun-
damental da mudança é realçado pelo isolamento em que se encontram.
Este reequacionar exige um regressar às mais profundas considerações
dos princípios básicos do problema da ordem social que é criado pela
morte. Podemos imaginar o emigrante solitário a pensar na morte e a
mergulhar numa reflexão acerca da fluidez e da impermanência do or-
gânico e na possibilidade ou impossibilidade da criação de sistemas ca-
pazes de desafiarem o tempo, idealmente ancorados em rituais e objetos
materiais. O que nos leva a considerar a relação do animado com o ina-
nimado, do transacional com o transcendental. Por outras palavras, a mi-
gração conduz as considerações sobre a fundação da existência humana
e as suas contradições à filosofia ou à antropologia.
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Anastasios Panagiotopoulos
Capítulo 2
A morte em movimento:
uma abordagem teórica sobre a morte
e suas possíveis implicações
em contextos transnacionais
Morte e antropologia
Qualquer tipo de abordagem sobre a morte que aspire a algum tipo
de engajamento frutífero com o assunto deve, de um modo ou de outro,
descartar a visão de que o fenómeno é linear, inequívoco e unidimen-
sional. Não sendo a morte o fim, torna-se, portanto, não apenas um fe-
nómeno etnográfico largamente encontrado, de crenças e práticas rela-
cionadas com a morte, o enterro, o velório e a vida após a morte, mas
também um posicionamento teórico que desacelera, por assim dizer, o
nosso ritmo interpretativo, e concede à morte a vitalidade e o fôlego que
ela merece. Partindo desta proposta, o tema abre-se para um amplo es-
pectro de visões e atitudes que apontam para as suas dimensões mais di-
nâmicas e múltiplas. O posicionamento de que a morte não é o fim abre-se,
não somente à variação intercultural, mas também à variação através do
tempo (o que Philip Ariès [1991], por exemplo, nos ofereceu como a
história social da morte no Ocidente), assim como à multiplicidade den-
tro de um contexto sociocultural (como, por exemplo, a diferença entre
a morte dos cidadãos comuns e a dos membros das elites, entre os nativos
e os estrangeiros, ou entre o que é percebido de várias formas como
morte «natural» em oposição às mortes causadas por bruxaria, violência,
acidentes ou suicídio, entre outros). No entanto, a fluidez e a multiplici-
dade da morte enquanto fenómeno social não nos pode levar a uma frag-
mentação infinita (ou como Johannes Fabian [1973] tem qualificado
como «folclorização», «paroquialização» e «exoticização»), porque desta
maneira nós analiticamente «mataríamos» o próprio conceito.
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sociais implica algo que por fim impede o reconhecimento pleno da sua
importância. O que quero dizer com isto é que há uma tendência, se se-
guirmos Durkheim através de Hertz, para tratar a morte como epifenó-
meno de uma realidade mais profunda e transcendental, a da sociedade.
A morte, desta maneira, reflete a reverência inicial da sociedade perante
os seus poderes destrutivos e, subsequentemente, reage em consonância
de modo a superá-los (ou como a última citação de Hertz diz, «triunfa
sobre estes»). Isso implica que há morte em algum lugar, fora da socie-
dade e que a própria sociedade luta incansavelmente para se representar,
por assim dizer. Este tipo de crítica foi muito eloquentemente resumido
na «Introdução» de Death and Regeneration of Life, obra editada por Mau-
rice Bloch e Jonathan Parry que constitui uma contribuição importante
para a Antropologia da Morte. Eles argumentam:
Se podemos falar de reafirmação da ordem social no momento da morte,
esta ordem social é mais um produto de rituais do tipo que consideramos do
que a sua causa. Noutras palavras, não é tanto uma questão da «sociedade»
reificada de Hertz a responder ao «sacrilégio» da morte, mas mais os rituais
mortuários sendo eles mesmos uma ocasião para criar aquela sociedade como
uma força aparentemente externa [1996, 6, itálicos no original].
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A morte em movimento
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Os mortos em Cuba
Nesta altura, gostaria de fazer um breve relato da minha própria expe-
riência etnográfica, baseada numa pesquisa feita em Havana, Cuba. Lá,
os mortos podem ser extremamente ameaçadores e presentes nas vidas
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texto, não deve ser entendido como um processo linear de se tornar algo
concreto e pré-ordenado. Isso é o que a linearidade de Hertz, assim como
a espírita convencional (ver Espírito Santo 2010) falha na sua compreen-
são do fenómeno, pois o modelo de Hertz é dinâmico apenas na medida
em que termina idealmente sempre com o mesmo resultado; os mortos
transformam-se em ancestrais e a sociedade segue em frente, tal como
descrito na primeira parte deste artigo.
«Desenvolvimento», seguido de «reconhecimento», refere-se mais dire-
tamente à relação específica criada entre um muerto e o seu correspondente
vivo. Portanto, ao invés de ser visto como algo em direção a um fim es-
pecífico, seria mais bem visto, afirmo, como um cultivo, um aprofunda-
mento de um estado de coisas que se abre, por sua vez, a novas potencia-
lidades. Vamos continuar com uma ilustração mais concreta disto.
O «reconhecimento» e o «desenvolvimento» dos (comunicação e re-
lações entre os vivos e os) mortos em Cuba ocorrem no interior de dois
campos mais amplos, quase sempre intimamente interconectados. Um
é um campo de ação no qual o corpo como um todo (com suas perce-
ções, pensamentos, intuições e afetos) tem um papel central. O segundo
é a materialidade, em que uma variedade de «coisas» é construída, utili-
zada e reunida. O primeiro campo refere-se mais diretamente à capaci-
dade, em vários graus e aspetos, de perceber os muertos em si. Digo «em
seus vários graus e aspetos», porque os muertos não aparecem aos vivos
de forma inequívoca e da mesma maneira ou com a mesma intensidade.
A perceção nativa é de que alguns indivíduos são mais recetivos e perce-
tivos à presença ténue dos muertos. Entende-se que todas as pessoas «têm»
um certo número de muertos «ligados» a eles num dado momento ou pe-
ríodo, o que poderia ser ao longo de uma vida inteira, embora não ne-
cessariamente. Isso significa que as «ligações», originadas da e alimentadas
pela «afinidade», criam a base da comunicação e, em geral, o relaciona-
mento entre os vivos e os mortos. Por exemplo, os meus interesses e ca-
pacidades académicos, em muitas ocasiões, foram vinculados ao meu
«ter» um muerto que costumava ser um intelectual erudito em vida. Esta
erudição é uma inclinação genérica e não uma reflexão ponto a ponto
do conteúdo exato da suposta atividade intelectual passada do meu
muerto. Espera-se que ocorra uma partilha e uma manifestação de uma
vontade e capacidade vaga, variavelmente descrita a mim pelos espíritas
como «amor pelo conhecimento», «desejo de compreender», «simpatia
por livros e pela escrita», entre outras. Este trecho de informação teve
origem nos médiuns que perceberam a presença deste muerto ao meu
redor e no seu contacto com ele, tanto visual quanto verbal, e eles jun-
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A morte em movimento
Antes de fazer a boneca para meu muerto, o seu contacto comigo era
menos claro e articulado; e também mais violento. Como ele costumava ser
uma «homem da rua» (um hombre de la calle) e não era muito educado ou re-
finado, a sua abordagem inicial para comigo foi bastante bruta. Por exemplo,
quando ele vinha «montar» em mim (montar; significando possuir) ele to-
mava-me completamente. Eu começava a andar, falar e comportar-me exa-
tamente como ele fazia quando estava vivo. As pessoas presentes ficavam
temerosas das minhas reações completamente imprevisíveis e algumas vezes
ofensivas. Muito frequentemente as suas possessões eram meras exibições
do seu carácter excêntrico sem fornecer nada de positivo para o restante [aqui
Fran refere-se principalmente aos enunciados oraculares úteis que são a
norma esperada nas situações de comunicação com mortos). A feitura da
boneca foi uma parte essencial de um esforço mais geral para fazer o espírito
«desenvolver-se». Anteriormente, ele estava excessivamente colado a mim,
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sem consciência de que o meu corpo não era seu. Ele agiu e pensou como
se estivesse vivo. A boneca criou um tipo de corpo para ele, um corpo ob-
viamente falso que lhe lembraria que ele estava morto e que teria de «desen-
volver», de seguir em frente.
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A morte em movimento
morta, ele é colocado em perspetiva, por assim dizer. Para ambos, Fran
e o seu muerto, a boneca era um catalisador, de forma que, em manifes-
tações subsequentes, a rebeldia não fosse uma situação completamente
sem controle. A rebeldia é aceite, mas também refinada, digamos, e não
se manifesta só por se manifestar. A boneca faz a mediação de forma a
transformar a comunicação, mesmo se ainda através da possessão, em
algo mais «claro e articulado» e menos violento, isto é, não apenas numa
exibição excêntrica de rebeldia (o que amedronta as pessoas e repete fiel-
mente o feitio passado do muerto), mas numa interação mais inteligível
entre o muerto e o mundo dos vivos. Fran ainda identifica a sua rebeldia
com o seu muerto particular, mas também acredita que a sua suavização
o protege dos efeitos negativos que ela gera (semanticamente condensa-
dos e exemplificados na perda de um olho). Desta maneira, a rebeldia
manifesta-se, senão nas suas dimensões positivas, pelo menos não pro-
vocando as excessivamente negativas. Além disso, Fran compreende este
processo todo como paralelo àquele no qual o seu muerto «se desen-
volve», também em termos da sua rebeldia e da sua manipulação mais
consciente dos perigos e potencialidades nela escondidos. Por outras pa-
lavras, tanto Fran como o seu muerto, embora retivessem essa alimentação
mútua de rebeldia, transformam-na num tipo diferente de rebeldia, com
efeitos idealmente diferentes-de- «perder um olho».
Concluindo, e em oposição à da convicção etnográfica que descreve
a morte e os mortos (em comparação com a vida e os vivos) como um
lugar tanto de diferença ou identidade radical (mesmo que frequente-
mente mascarada ou inconscientemente utilizada), aqui temos uma in-
teração muito mais dialética e dinâmica entre identidade e alteridade,
continuidade e mudança. Essa interação dinâmica entre vida e morte, o
mundo dos vivos e o mundo dos mortos, é o que eu teoricamente gos-
taria de sublinhar neste artigo, e associá-la à qualidade anteriormente
mencionada de «ambivalente», que está aberta e gera mediações fortes.
Mas então e a migração, o transnacionalismo e o fluxo de pessoas, e o
que seja que se segue a isso?
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A morte em movimento
constante com os Pepel, pelo que os indivíduos vivos devem dar oferen-
das, conduzir sacrifícios animais e até submeter-se a iniciações. Os de-
funtos e os irãs, de comum acordo, e como que em resposta aos primei-
ros, oferecerão aos vivos informação valiosa, através da consulta de
oráculos, e um papel geral protetor e orientador.
A nível material, as consultas, oferendas, sacrifícios e iniciações reque-
rem uma variedade de «objetos» muito particulares, variando, entre mui-
tos outros, de tecido (um material considerado particularmente desejado
pelos defuntos) a todos os materiais necessários para a construção de al-
tares e de animais ou partes deles (ambos para o papel do sacrifício, mas
também como ingredientes para objetos consagrados, como os amuletos
da sorte). Muitos desses materiais são essenciais para satisfazer os ances-
trais e salvaguardar o seu papel de protetor. Uma vez que tornar-se um
ancestral não é um processo automático, mas requer um esforço e alguns
passos seguidos pelos vivos, as mortes, os funerais e os cuidados após o
enterro dos Pepel são dotadas de ações ritualizadas (2008, 258-259): «Se
a realização dos rituais funerários corretos é essencial para uma pessoa
morta se tornar um ancestral, a troca de bens entre os dois mundos é
também muito importante» (2008, 259). Mas o que acontece a toda esta
troca intensa e diversa quando os indivíduos Pepel morrem longe de
casa, por exemplo, em Lisboa?
Para começar, os Pepel ocupam e reconstroem espaços Pepel/Guiné-
-Bissau/africanos dentro da cidade de Lisboa, não apenas como lugares
de socialização, mas também de circulação de uma variedade de bens,
os quais, à exceção dos bens de uso mais «secular» (tal como comida),
incluem também bens necessários para as suas cerimónias religiosas e fu-
nerárias. Muitos destes bens vêm da Guiné-Bissau. Um destes materiais
é o altamente valorizado (pelos vivos e pelos mortos) tecido feito tradi-
cionalmente à mão. A circulação, no entanto, tem dois lados, porque os
bens portugueses/europeus também chegam à Guiné-Bissau. Porque o
tecido, em geral, é de facto excecionalmente valorizado, os tecidos por-
tugueses viajam amiúde para casa e, presumivelmente, são lá usados tanto
em atividades cerimoniais como quotidianas. No contexto dos funerais,
se acaso eles acontecem em Lisboa, há algumas restrições e, portanto, al-
gumas adaptações são necessárias. Por exemplo, o envolvimento do
corpo do morto em vários tecidos não pode acontecer da mesma ma-
neira, por causa das restrições legais em Portugal. Assim, os tecidos, ao
invés de embrulharem o corpo, são apenas colocados dentro do caixão.
Além disso, o sacrifício de animais, especialmente os de grande porte
como gado, está muito limitado dentro do centro urbano. Então, o sa-
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entre corpos e terra, já que um Manjaco que morre longe da terra é ainda
assim evocado por um relicário no seu local de origem. Ilustrarei aqueles
que acabaram por se tornar temas duradouros do meu trabalho ao longo
dos anos. Entre eles está a resiliência do ritual. E entre as questões que
coloquei, está esta: quando os rituais permanecem e na prática se tornam
ainda mais pronunciados, o que nos diz isto sobre as «crenças» ou as «tra-
dições» no contexto da modernidade? A modernidade, na forma como
a encaro, é ao mesmo tempo uma atitude – um certo cosmopolitismo –
e um entrançar – na forma de vida – o capitalismo e tudo o mais. Nesta
região da África Ocidental, os Manjaco estiveram entre os pioneiros que
migraram para se dedicarem ao cultivo de produtos que lhes podiam dar
lucro no comércio global. A migração dos Manjaco atingiu proporções
épicas por altura do fim da guerra de libertação em 1974, e tem prosse-
guido até hoje. No fim dos anos 80 do século 20, quando vivi numa al-
deia da Guiné-Bissau, só um dos homens adultos dessa aldeia é que não
tinha já vivido no estrangeiro, e bem mais de metade dos que tinham
nascido na aldeia estavam ausentes, a constituir famílias no Senegal, na
Gâmbia ou em França. Porém, mesmo esses Manjaco ausentes eram ce-
lebrados em casa quando morriam. Mais ainda, os funerais dos Manjaco
e as cerimónias subsequentes envolviam o levantamento de um pilar evo-
cando o antepassado num pátio da aldeia natal. Nessa época, quando
eu lá estava, as casas tinham praticamente o mesmo aspeto que fora des-
crito por viajantes europeus na região no século XIX, ou mesmo antes
disso. Porém, as práticas funerárias tinham-se alterado ao longo do
tempo; e as práticas dos Manjaco diferiam de formas interessantes das
dos grupos étnicos vizinhos, com os quais partilham ainda assim um
mesmo padrão geral.
Se o tempo mo permitir, nas minhas notas finais regressarei a estas va-
riações, e também ao tema da resiliência no contexto da modernidade.
Começarei, porém, por referir uma luta por cadáveres e por território
entre os portugueses e os nativos na então nascente colónia da Guiné,
de forma a deixar a audiência familiarizada com o que poderia, de outra
forma, ser visto como bizarro na preocupação que os Manjaco têm com
a repatriação dos seus cadáveres. O combate dá-se entre membros de um
grupo étnico que partilha quase tudo com os Manjaco, à exceção da lín-
gua. Os Papel e os Manjaco fazem parte de um grupo alargado de socie-
dades, divididas naquilo a que Philip Curtin chamou «microestados» –
povos que cultivavam arroz nos pântanos e mangais da região costeira
da Guiné-Bissau e do Sul do Senegal.
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Suicídios vergonhosos
Eis o aspeto que tinha um Papel prestes a deixar este mundo, visto do
lado errado de uma arma em 1908, altura em que os portugueses tinham
montado uma nova campanha para «punir» os seus recalcitrantes súbdi-
tos nas aldeias situadas a pouco mais de três quilómetros de um pobre
entreposto em Bissau, com o seu forte quase em ruínas e o seu canhão
enferrujado. A coluna de tropas avança lentamente, numa massa com-
pacta, disparando sem cessar em todas as direções. Gastam munições aos
milhares a varrer cegamente as árvores que rodeiam as aldeias nativas, ra-
ramente descobrindo se de facto abateram o inimigo que lhes responde
com inofensivos disparos de velhos mosquetes, ou que os provoca por
trás de abrigos resistentes. Por vezes, porém, um ou dois jovens guerreiros
abandonam a cobertura, enquanto o tenente Nunes da Silva avança com
os seus homens pelo espaço aberto, dirigindo-se para uma linha de árvo-
res e mato cerrado a cerca de cem metros de distância (Ponte 1909, 66):
«Vi um preto completamente exposto, com uma espada na mão, aos sal-
tos e piruetas, escaramuçando, como eles dizem. Não podem sequer ima-
ginar quantos tiros disparámos sobre ele até o abatermos. Caiu por fim,
de cara no chão, morto antes mesmo de embater no solo. Aos seus pés
jazia outro. E alguns dos nossos dizem que no total viram oito mortos.»
Estas proezas suicidárias deixavam os portugueses irritados. Um outro
oficial, Pinheiro Chagas, fez notar nas suas memórias de campanha:
«Ainda me lembro bem de um que se pavoneava (escaramuçava) com
uma espada curva, a fazer caretas e gestos ridículos...» (Chagas 1910, 111).
Abater estes guerreiros tornou-se um macabro e frustrante exercício de
tiro ao alvo – frustrante porque os corpos desapareciam antes que os por-
tugueses os pudessem alcançar. Cada um dos guerreiros nativos tinha
uma corda comprida atada ao cinto, «graças à qual eram puxados para o
meio da floresta, um costume dos pretos que nos impedia de obter uma
contagem exata de quantos tinham sido mortos» (ibid., 112).
Os corpos desaparecidos resultavam em campanhas insatisfatórias,
embora típicas do contexto colonial (ver, para o caso dos ingleses no
Benim, Bacon 1897, 54). Tal como os portugueses queriam recuperar os
corpos dos seus próprios camaradas caídos para os enterrarem na Guiné,
de forma que «da terra que este herói irriga com o seu próprio sangue ir-
rompa a árvore da soberania e do domínio» (Ponte 1909, 95), tal como
o queriam fazer para, em parte, consolidar o seu domínio sobre uma co-
lónia cujos cemitérios se situavam para lá dos portões da praça, e portanto
em território controlado pelos «pretos», pretendiam também ter uma
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Remessas
Gostaria agora de dar um salto em frente no tempo, para ir ao encon-
tro de alguns jovens Manjaco que encontrei quando se preparavam para
voltar a casa, para assistir a um funeral em que o cadáver não ia estar real-
mente presente. No verão de 2000, num bairro degradado de Lisboa, as-
sisti a um encontro de expatriados Manjaco que lamentavam a perda de
um camarada de meia-idade. Enquanto um dos meus jovens companhei-
ros introduzia números no telemóvel para me permitir falar com um
amigo comum na Guiné-Bissau, fazia notar que, para anunciar aquela
morte, iam tratar de enviar por mãos amigas as roupas do morto e apre-
sentá-las aos aldeãos, como sinal físico do falecimento. Seria aquele fardo
de roupas, o uyeman, ou coisa sagrada, como é conhecido, que tornaria
possível realizar um «funeral verdadeiro» – com os seus enormes excessos
de consumo – na aldeia. Este jovem era um líder do clube local da ju-
ventude Manjaco (ver Gable 2002 para uma descrição desse género de
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Nos anos 30 e 40 estes nomes, que usavam «rio» para se referir à agricul-
tura, cederam lugar a nomes que usavam «rio» para se referirem à emi-
gração. O nome de louvor mais comum nessa época era «Ele deixou a
meninice e pegou no remo» – implicando que, no início da era colonial,
a emigração se tinha tornado um verdadeiro rito de passagem para os jo-
vens Manjaco do sexo masculino. «Rio», uma palavra que remete para o
elogio, e que em tempos teve um poder conotativo tirado da criação de
diques em pântanos salobros para criar novos arrozais, tornou-se sim-
plesmente uma alusão a «atravessar o rio», ou seja, emigrar.
Os Manjaco reconhecem dois tipos de nomes de louvor. A um cha-
mam «nome de distinção» (kapitch pepiitch), ao outro «de lamento» ou
«queixoso» (kakanar). Ambos sublinham a competição e o conflito entre
pares. Ambos exaltam o antagonismo. O que é talvez mais revelador nes-
tes nomes é a estreita relação que os Manjaco estabelecem entre o elogio
e a destruição. Em geral, um nome de distinção refere-se – muitas vezes
em termos exagerados (por vezes cómicos) – a vitórias gloriosas e inimi-
gos vencidos. Assim, por exemplo, um nome popular para um caçador
de mérito é «Abate os Comedores de Erva» e existe um análogo humo-
rístico para um produtor de vinho de palma de renome que «Abate os
Anciãos» graças ao vinho forte que os faz cambalear e sucumbir ao sono.
Um nome de lamento é tipicamente um insulto ou afronta, revisto e
lançado de volta a quem o cometeu originalmente. Transforma a zom-
baria em desafio, e dá um carácter permanente ao antagonismo entre
pares. Um exemplo é «As orelhas do branco são mais brancas». Primei-
ramente utilizado nos anos 40 do século XX, tornou-se um nome de lou-
vor comum na região em que fiz trabalho de campo, referindo-se a qual-
quer Manjaco educado – um professor ou burocrata. Teve origem na
forma de um insulto – um homem que acusava outro, um funcionário
sem importância num posto do governo, de se dar ares de superioridade
ao vestir-se e agir como os portugueses. «Orelhas» pode ser uma referên-
cia à aparência, mas também indica inteligência. O funcionário, segundo
a história, respondeu ao insulto com a afirmação de que «as orelhas do
branco eram mais brancas» (significando que um branco teria sempre
uma pele mais clara que qualquer Manjaco) mas que ele, o funcionário
Manjaco, era, de facto, mais esperto e mais educado que os europeus
que ocupavam cargos superiores na hierarquia.
Os nomes de louvor são representados em pantomimas durante o fu-
neral. Mais abaixo, refiro três exemplos dessas representações e os nomes
que a elas estão associados – um para o típico camponês, outro para o
emigrante genérico – que tiveram lugar em funerais a que assisti no fim
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dos anos 80. Quero fazer notar a justaposição que os Manjaco efetuam
entre o elogio e a destruição, como se ela fosse um inevitável facto da
condição humana.
Uma pantomima popular, praticada pelos homens, é conhecida como
«a dança do camponês». O dançarino escava literalmente a terra solta do
recinto, e lança a areia pelo ar com a sua ferramenta. Começa lentamente,
fazendo uma pausa enquanto coloca a pá, realçando nesse gesto o quanto
o trabalho é «pesado». Nesse momento as mulheres podem aproximar-se
e fazer o gesto de quem planta alguma coisa, à frente da pá, como se es-
tivessem a lançar sementes ao solo. Ou podem simplesmente dobrar-se
para examinar a pá, produzindo sons de admiração. Depois de algumas
cavadelas deliberadas, o dançarino começa a mover-se de forma frenética,
escavando de forma espasmódica, atirando a areia para todos os lados,
mexendo-se cada vez mais rapidamente mas com menor precisão. En-
quanto ele labora desta forma, as mulheres aproximam-se de novo, para
o ventilar ou para o abafar com tecidos. E nesse momento ele para.
O nome de louvor que acompanha esta representação, entoado pelos
tambores, é «Todos fazem montículos; eles desfazem-se», e refere-se a um
acontecimento em particular. Um grande trabalhador do campo é aquele
que é capaz de fazer os montículos com uma pá rudimentar mais de-
pressa do que os seus pares. Quando existem grupos de trabalho organi-
zados pelos jovens solteiros de uma aldeia, estes alinham-se num campo
e competem para ver quem é melhor. Estas corridas são consideradas
«boas», porque «te fazem esquecer a dureza do trabalho». Ao mesmo
tempo, contudo, são «más», porque os mais lentos, ao tentarem recuperar
terreno, muitas vezes fazem montículos pouco cuidados, o que «arruína»
o terreno e o torna menos produtivo. A representação da pantomima
que acompanha este «Todos fazem montículos; eles desfazem-se» captura
nos gestos miméticos o momento em que um camponês vitorioso goza
com os seus pares que, na tentativa de se equiparar a ele, produzem um
trabalho medíocre.
De forma similar, as pantomimas sobre emigrantes integram este tema
da destruição social como consequência do sucesso pessoal. A «dança
do emigrante» imita aquilo que podemos considerar a exagerada lassitude
do diletante. O «dançarino» usa um fato, e passeia-se casualmente em
redor de uma garrafa de «vinho dos brancos» – brandy, whisky, ou algo
semelhante. Também neste caso as mulheres vão ao seu encontro para o
cobrir de panos ou para o abraçar. E ele paga-lhes o serviço com um copo
cheio de álcool. Neste ponto, os batedores estão normalmente a fazer
soar vários nomes de louvor aplicados a emigrantes. Um deles, por exem-
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plo, é uma canção de louvor composta no início dos anos 60 para o filho
de um chefe que regressa da sua estadia no estrangeiro com um motoci-
clo, e o refrão é «(som de motor), e as cabras quebram as cordas», refe-
rindo-se assim à entrada triunfal do jovem na aldeia, no pino da época
das colheitas, quando toda a gente trata de prender o gado para o impedir
de ir aos arrozais e devorar os grãos maduros. Prender o gado é a perfeita
imagem da responsabilidade individual para com a comunidade. Cada
um deve refrear o que é seu para benefício dos outros. Assim, a canção
apresenta-nos de forma compacta o cerne dos paradoxos em torno do
louvor. O triunfo do emigrante acaba por ser destrutivo em termos so-
ciais: as cabras partem as cordas e correm para o campo do vizinho, onde
destroem a colheita.
Notas finais
Haverá algo para além de uma espécie de continuidade adventícia nos
dois eventos – o funeral dos emigrantes ausentes e as provocações suici-
das dos guerreiros Papel –, os dois corpos ausentes, separados por um sé-
culo, que descrevi antes? Gostaria de sugerir que sim. Quanto ao guer-
reiro Papel que salta e provoca os soldados portugueses, mal podemos
imaginar no que estaria a pensar. Estaria tão disposto a arriscar a morte
se não tivesse a certeza absoluta de que os seus amigos da mesma idade
recuperariam o seu cadáver, o levariam para a aldeia e lhe dariam um fu-
neral glorioso? No seu caso, tendemos a atribuir-lhe aquela certeza ine-
fável que também associamos à tradição, no seu sentido mais romântico.
Há uma certa nobreza na crença de que a morte é um momento apenas,
que é inevitável e que conduz a algo mais permanente e exaltante. Tor-
cemos o lábio não ao guerreiro, mas aos oficiais portugueses que consi-
deraram as suas danças provocatórias tão «ridículas». Em contraste, po-
demos tentar perceber (já que o podemos entrevistar) o que pensa o
jovem Manjaco que transporta consigo no avião de regresso à terra um
fardo de roupas. Mas neste ponto as coisas tornam-se confusas. Ao falar
com os meus jovens amigos Manjaco na sua aldeia, nunca conseguia des-
cobrir com toda a certeza até que ponto é que eles acreditavam, por
exemplo, nos antepassados, e na vida para lá da morte. Era evidente que
muitos não tinham essa crença, e não se inibiam de o proclamar (ver
Gable 2002). Porém, também eles participavam com deleite num con-
junto de práticas que, a seus olhos, não se deviam basear em mais do
que uma espécie de compromisso teatral, um prazer na performance.
A dança do guerreiro transformou-se assim numa representação.
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04 Movimentos Cap. 4.qxp_Layout 1 11/02/17 15:46 Page 85
Parte II
Circulação transnacional
de espíritos,
corpos e rituais
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Irene Rodrigues
Capítulo 4
1
O trabalho de campo foi realizado no âmbito do projeto de investigação «A gestão
transnacional da morte», financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia PTDC/
CS-ANT/102862/2008.
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2
Tradução da autora.
3
Getting Home na versão inglesa e A Caminho de Casa na versão brasileira. O filme não
teve estreia em Portugal.
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em Portugal. Mas apesar de começarem por dar conta deste ideal, todas
as situações de morte em território português que consegui identificar de
modo concreto tiveram como desfecho o enterro do corpo num cemitério
português, ainda que me tenha sido dito que os chineses «costumam»
mandar o corpo para a China ou fazem cremação, por ser mais fácil levar
as cinzas do que o cadáver. Na verdade estas possibilidades ficaram sempre
no plano teórico, não tendo sido por mim identificado nenhum caso con-
creto. Esta contradição entre um ideal de regresso à terra natal e um efetivo
enterro no «país de destino», quando a morte ocorre em situação de mi-
gração, encerra parte do drama da morte dos migrantes chineses em Por-
tugal, e contribui também para adensar a invisibilidade do fenómeno, de
um modo que mais à frente procurarei demonstrar.
Este ideal chinês de morrer e ser enterrado na sua terra natal marcou
a migração dos coolies chineses que, na segunda metade do século XIX,
deixaram as suas aldeias natais na China para irem trabalhar para as Amé-
ricas e para África através de um sistema de trabalho por contratos em
condições miseráveis. Como Lynn Pan nos descreve (1994), estes traba-
lhadores, que vieram substituir a mão de obra escrava, quase sempre fi-
cavam reféns das condições que tinham contratualizado, e que os afas-
tavam do convívio social com residentes dos locais para onde emigravam,
o que, aliado às duras condições de vida e de trabalho, concorria para
que os lugares da emigração fossem percecionados como lugares de so-
frimento (chi ku), e a aldeia natal, de onde saíram, embora o tivessem
feito por dificuldades económicas, se transformasse no paraíso para onde
todos ansiavam regressar. Este sentimento domina também a situação
dos migrantes internos na China atual, que há décadas rumam em dire-
ção às grandes cidades industriais do Sul e do Sudeste em busca de me-
lhores condições de vida e acabam a viver em zonas guetizadas e objeto
de discriminação por parte dos urbanitas locais (ver Rodrigues 2012;
Zhang 2001; Xiang Biao 1999). Imagens do local para onde se migra
como um local inóspito, cheio de perigos, e a terra natal como o local
ideal, depósito de todos os desejos e emoções positivas – o lugar onde se
deseja estar –, foi também um dos quadros da migração chinesa que en-
contrei numa investigação anterior (Rodrigues 2012). Esta imagem que
surge tanto para descrever as migrações internas como as migrações in-
ternacionais na China dá conta, particularmente, dos primeiros tempos
da migração, caracterizados por um grande sentimento de vulnerabili-
dade, não apenas devido à própria situação do migrante como também
devido às dificuldades de compreensão do contexto social, linguístico e
cultural da realidade portuguesa, e que aparece traduzido em histórias
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4
Sobre o sofrimento e o sentimento de vulnerabilidade dos migrantes, ver Sayad
(2004).
5
A literatura sobre o tema da morte e da imigração em geral é muito escassa, veja-se a
título de exemplo Saraiva, Mapril e Levy (2013) e Mazzucato et al. (2006). No caso espe-
cífico da migração chinesa não me foi possível identificar qualquer trabalho recente.
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Número de óbitos 13 1 9 1 47
Total populacional
residente em Portugal 17 447 1351 5657 2425 17 759
em 2012
Fonte: Instituto Nacional de Estatística (INE) e Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF).
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6
Numa outra variante, que procura explicar não a «não-morte» dos migrantes chineses,
mas as razões para os baixos preços praticados pelos restaurantes chineses, a carne servida
nos restaurantes chineses em Portugal seria carne de cão e/ou de gato, animais que seriam
apanhados nas redondezas dos restaurantes.
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visitei em Lisboa oito meses depois de a ter visto pela última vez na China.
Na altura, já bastante combalida, dizia não saber o que iria acontecer, mas
que estava muito feliz por ali estar. Cerca de três meses depois Zhang veio
a falecer num hospital público de Lisboa para onde foi levada de urgência
pela família. A morte de Zhang ocorreu poucas semanas depois do nosso
último encontro, mas eu só tive conhecimento cerca de um mês depois
quando contactei a família para saber notícias suas.7 Quando lhes per-
guntei sobre o «funeral», responderam-me que não o houve, não houve
cerimónia pública, apenas o seu marido e os seus filhos assistiram à de-
posição do caixão com os seus restos mortais numa gaveta num cemitério
de Lisboa. O «enterro» só ocorreu cerca de uma semana depois, aguar-
dando a chegada de um dos filhos residente na América do Norte, tempo
durante o qual o corpo esteve guardado na morgue do hospital.8
A palavra «funeral» em língua chinesa é composta por dois caracteres
que em mandarim corresponde aos fonemas zang li, e que literalmente
significa ritual de enterro ou ritual da sepultura. No caso dos migrantes
chineses em Portugal, as formas rituais associadas à morte surgem con-
ceptualmente ligadas à noção chinesa de ritual (li) que envolve a ideia
de regras de comportamento adequado também no sentido ético e
moral, ou seja, o modo adequado e moralmente virtuoso de lidar com
todas as situações da vida, neste caso com a morte (Watson 1988a).
Quando questionei a família sobre as razões que os levaram a não fazer
um «funeral», um dos filhos argumentou que o pai estava muito abalado
com a morte da mãe e que não estava preparado para enfrentar a situação
publicamente; então acharam que se não tornassem a situação pública
seria «como se ela ainda estivesse entre nós», disse-me. Voltarei às razões
por detrás deste «não-funeral» um pouco mais à frente. Em seguida com-
paro a falta de cerimonial no «enterro» de Zhang com um outro funeral,
ao qual pude assistir em Lisboa em Maio de 2011, e que descrevi com
algum detalhe etnográfico num texto anterior (Rodrigues 2012).
7
A morte de Zhang ocorreu apenas duas semanas depois do nascimento do meu filho
e, acredito que por esse motivo, a família não me tenha contactado. A morte na China
está simbolicamente conotada com uma elevada carga de poluição espiritual (ver Stafford
2010, e Watson 1988b), enquanto o parto inicia um período de resguardo para a mãe e
para a criança, acreditando-se ser um período especialmente vulnerável (ver Rodrigues
2003). Já aquando da minha última visita, Zhang disse-me que no meu estado eu não
deveria estar perto de uma pessoa na situação dela.
8
As palavras «enterro» e «funeral» quando aplicadas ao caso de Zhang surgem aqui
entre aspas, na medida em que a família não considera ter-se tratado de um ritual fúnebre
e não acha que a palavra seja adequada neste caso. Conversando com conhecidos da fa-
mília confirmaram-me a ideia de que não houve «funeral».
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9
Refiro-me aqui ao único templo budista chinês existente em Lisboa, o templo da As-
sociação Internacional Buddha’s Light (BLIA) (ver Rodrigues 2012 para mais detalhes).
10
Em 2014, o jornalista João Paulo Meneses (2014) do jornal Ponto Final de Macau,
dava conta dos primeiros funerais chineses realizados na freguesia de Árvore, na Varziela
(Vila do Conde) onde se situa uma das mais importantes comunidades chinesas em Por-
tugal.
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11
No caso migratório ver, a título de exemplo, Leal (2005) sobre os rituais das festas
do Divino Espírito Santo entre as comunidades açorianas em Nova Inglaterra, EUA, que
o autor caracterizou como mantendo uma ligação ao modelo da origem, mas simulta-
neamente inovando a partir de aspetos recolhidos da sociedade de acolhimento.
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podem assim ser uma forma de contornar o lado potlatch do ritual fúne-
bre chinês (Yang 2000), e evitarem contrair despesas pesadas num con-
texto em que a palavra de ordem é zhuan qian ou acumular dinheiro (Ro-
drigues 2012), ao mesmo tempo que se aproveita a possibilidade de não
se estar sujeito aos constrangimentos da morte em território chinês, e
poder enterrar ou depositar o corpo numa gaveta ou jazigo ou simples-
mente numa campa rasa.
Em abril de 2012, passados poucos dias sobre um ano da morte de
Zhang, acompanhei o seu marido, filho, nora e dois dos netos, numa vi-
sita à sua sepultura no cemitério em Lisboa. O filho residente em Portu-
gal, dissera-me que iria haver uma pequena cerimónia assinalando a com-
pletação do ciclo de um ano sobre a morte da mãe. Depois de
percorrermos as ruas de jazigos de um dos cemitérios mais emblemáticos
da capital, chegámos a uma zona de gavetas, onde Zhang procurou o
número que trazia no porta-chaves. O número 420 é a única referência
existente no exterior da sepultura, lá dentro uma fotografia e alguns ob-
jetos pessoais fazem-me reconhecer que se trata efetivamente de Zhang.
Em frente ao muro de gavetas, damos as mãos e fazemos uma vénia, o
viúvo proferiu algumas palavras, dirigindo-se à defunta. Depois de Zhang
ter limpo os poucos objetos que, juntamente com a urna, se encontravam
no interior da gaveta, deixamos o local. As flores que eu havia trazido
foram depositadas numa jarra e colocadas num móvel em casa. A sim-
plicidade e a discrição desta cerimónia mimetizou o que já fora a depo-
sição do caixão no gavetão um ano antes. À invisibilidade estatística jun-
tam-se assim a invisibilidade ritual e a invisibilidade simbólica da morte
dos migrantes chineses nos cemitérios portugueses. Depois de tratar os
rituais fúnebres dos migrantes chineses em Portugal, na próxima secção
abordarei o lugar da morte, e as decisões e indecisões em torno da escolha
do sítio onde se pretende morrer e a sua relação com o «local de destino»
da migração.
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12
Bloch (1971) descreveu o uso do termo «sementes» entre os Merina para designar as
saídas para territórios fora da aldeia natal.
102
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Sol Tarrés
Jordi Moreras
Capítulo 5
Os cemitérios e a diversidade.
Expressões de organização
do património religioso funerário
em Espanha
Os cemitérios representam os lugares da «memória habitada» da nossa
sociedade (Rodriguez Barberán 2005). Trata-se de espaços singulares da
cidade, diferenciados e associados ao luto e à tristeza. Mas também lu-
gares de e para uma memória em permanente transformação, a partir da
qual é possível tratar a história das populações e dos indivíduos como
seres sociais e culturais. Talvez sejam um dos espaços sociais de maior
confluência simbólica. O seu valor simbólico tem uma dimensão tanto
material como imaterial, pois neles convergem diversos significados his-
tóricos, sociais, artísticos, artesanais, científicos, paisagísticos, arquitetó-
nicos, simbólicos, económicos, políticos e de relações de poder, assim
como de diversidade cultural e religiosa, de tradições, usos e costumes,
etc., de uma comunidade na relação com os seus defuntos, transformados
em antepassados, com a importante carga identitária que tal acarreta.
Os cemitérios são, também, o reflexo dos avatares políticos e religiosos
de uma sociedade. As transformações que ocorrem nestes espaços são
antes consequência direta das mudanças sociais, não de mudanças em
relação à ritualização da morte e da memória. Na atualidade, a sociedade
espanhola está a aceitar a sua transformação numa sociedade plural a
nível cultural, em parte assumindo as contribuições derivadas das migra-
ções recentes, e em parte incorporando a própria diversidade inerente à
sua história recente. Neste texto pretendemos explorar como é que esta
diversidade se situa no interior dos cemitérios espanhóis. Ainda não foi
agora que a diversidade questionou os costumes funerários da sociedade
espanhola. A separação entre tumbas, que hoje em dia se interpreta como
exemplo positivo do reconhecimento da diversidade, tem gerado debates
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1
O reconhecimento da pluralidade religiosa baseia-se no princípio de que aquilo que
é particular e próprio de um coletivo já não implica apenas os seus membros, como tam-
bém as instituições públicas, que devem proporcionar os meios para que o direito de li-
berdade religiosa seja efetivo.
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Os cemitérios e a diversidade
2
«O principal motivo do enterro ad sanctos era assegurar a proteção do mártir, não ape-
nas do corpo mortal do defunto, mas de todo o seu ser, para o dia do despertar e do
juízo» (Ariès 1999, 36).
3
Atualmente, o Código do Direito Canónico de 1983 (cânone 1184) indica «aqueles
a que se devem conceder ou negar as exéquias eclesiásticas». Serão negadas a «aos noto-
riamente apóstatas, hereges ou cismáticos; aos que peçam a cremação do seu cadáver por
razões contrárias à fé cristã; aos demais pecadores manifestos, a quem não possa conce-
der-se as exéquias eclesiásticas com escândalo público dos fiéis».
4
O desejo e o feito de se enterrar em terra «binesa» ou virgem, onde nunca tivesse sido
enterrado ninguém, e fora dos cemitérios e igrejas, surgem muito rapidamente como
sinal de judaizar» (Jiménez Lozano 2008, 268).
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5
A etimologia contemporânea deste termo, reconhecida no Dicionário da Real Aca-
demia Espanhola, é muito ilustrativa: «o que suja ou infeta material ou moralmente».
6
Os cemitérios municipais só têm início em finais do século XVIII. O mais antigo de
que temos notícia é o construído em Cartagena em 1774, destinado aos escravos mou-
ros que trabalhavam nas obras do Arsenal, seguindo-se o cemitério do Real Sitio de San
Ildefonso, de 1785» (Fernández de Velasco 1935, 134).
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Os cemitérios e a diversidade
7
A tese que defende este autor é que os cemitérios civis, devido ao fracasso da secula-
rização política em Espanha, se converteram num espaço onde colocar os dissidentes da
ortodoxia-espanholidade, que haviam desafiado toda uma sociedade, a sua tradição e,
inclusivamente, «o afeto dos seus». Daí que aqueles que foram inumados nele arrastavam
consigo o estigma de serem diferentes na vida e na morte: «na mente popular, ser enter-
rado ‘como um cão’ assemelha-se aos mesmos provérbios populares a ser ‘enterrado
como um judeu’, ‘como um mouro’, ‘como um herege’, e todas estas expressões eram
usadas na linguagem popular para assinalar a mesma realidade de um enterro civil, sem
a presença da liturgia católica. E apesar de não ter fé, na medida em que rompeu ou feriu
as normas sociais da tribo; há uma decastificação, uma rutura violenta com os valores
estabelecidos, até mesmo estéticos, o que torna emocionalmente intolerável essa ausência
de liturgia fúnebre» (Jiménez Lozano, ibid., 222).
8
Citado por Fernández de Velasco (1935, 285-286), que encontrava graves contradições
entre o ato de apelar a um significado sagrado, para justificar a supressão das simbologias
religiosas nos cemitérios municipais.
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9
Muitos municípios espanhóis quiseram fazer homenagens nos seus cemitérios locais
àqueles que morreram na Guerra Civil, instalando placas ou erguendo motivos comemo-
rativos. Alguns compensaram desta maneira a existência de monólitos ou mausoléus que
haviam sido dedicados àqueles que lutaram do lado dos «vencedores». Outros optaram
por um exercício reparador de agrupamento de todos aqueles que morreram durante a
guerra, sem considerar o grupo a que pertenceram. Seja como for, é também necessária
uma análise espacial para ver que lugar ocupam esses espaços da memória nos cemitérios.
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Os cemitérios e a diversidade
Argumentando a distinção
A salvaguarda do princípio de não-discriminação por motivos religio-
sos ou ideológicos na hora de receber atenções funerárias, na prática, não
tem sido compatível com a determinação de espaços de inumação dife-
renciada. A lei não apenas outorga às comunidades religiosas a possibi-
lidade de disporem de cemitérios próprios, como também lhes permite
10
Noutro trabalho analisámos a configuração de um património funerário das minorias
religiosas em Espanha, mostrando como a discrição de simbologias distintas das católicas
não impedia a sua presença dentro dos cemitérios públicos (Tarrés e Moreras 2013a).
11
Nas palavras de Mariano Blázquez, secretário da Federação de Entidades Religiosas
Evangélicas (FEREDE), «Se durante anos quisemos que se tirassem os muros, não vamos
agora reivindicar que se voltem a colocar os muros. Por isso não há nada relativo a cemi-
térios no Acordo de Cooperação de 1992. As parcelas evangélicas que possam existir são
iniciativa de igrejas locais, mas não é essa a nossa posição oficial como FEREDE» (en-
trevista realizada a 22 de outubro de 2011).
111
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12
Se bem que num plano diferente do público, alguns cemitérios privados em Espanha,
têm oferecido, dentro dos seus serviços, a possibilidade de se poder ser inumado de
acordo com as tradições funerárias dos defuntos.
13
Recolhemos, em primeiro lugar, a recomendação elaborada pelo Governo da Cata-
lunha («Recomendaciones para la gestión de la diversidad religiosa en el ámbito de los
cementerios», 2009): «recomenda-se que estas parcelas sejam criadas no interior dos ce-
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As experiências de ordenação
A gestão das tarefas fúnebres tem variado ao longo do tempo e dos
distintos contextos socio-históricos. Durante séculos foi a Igreja Católica
que se ocupou da gestão da morte em todos os seus aspetos, quer fosse
por meio dos sacerdotes ou através das irmandades, confrarias ou ordens
religiosas criadas para o efeito; por eles o não-católico ficava fora desta
ação. Desde o século XIX, depois de várias vicissitudes políticas, a gestão
passa a ser municipal e com ela começam a aparecer espaços funerários
e cemitérios específicos para esse «outro». Na atualidade são as grandes
empresas funerárias que progressivamente estão a encarregar-se dos ser-
viços relacionados com a morte (tanatórios, funerárias, gestão partilhada
dos cemitérios dos municípios). Empresas que não apenas estão a recrear
novos rituais funerários (por exemplo, os rituais civis) e a resignificar as
tradições da população maioritária, como também se ocupam e atuam
nos rituais funerários das minorias religiosas. Em seguida mostraremos
três exemplos de como os cemitérios ordenaram a localização dos «ou-
tros» defuntos. Neles se observará que a dimensão patrimonial surge cla-
ramente enunciada.
114
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Os cemitérios e a diversidade
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É importante assinalar que estas parcelas eram consideradas civis ou seculares, e que
se destinavam aos crentes não-católicos nem adscritos à Igreja, aos não-crentes, e àqueles
que por decisão pessoal (mística, filosófica ou política) decidissem ser inumados neles,
aos suicidas e aos estrangeiros em geral. Daí que encontremos denominações singulares,
como esta, de cemitério neutro, internacional, parcela livre, etc.
16
Há algumas exceções que têm origem em conflitos armados. Assim, na cidade de
Tarragona foi criado o chamado «Fossar de Jans», na sequência do estabelecimento das
tropas britânicas na cidade a partir de 1709. Ver Adserà (2002).
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Os cemitérios e a diversidade
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«Depois de um infelizmente grande atraso a Fundación Cementerio Inglés de Málaga
nasceu a 13 de julho de 2010» (www.fundacioncementerioingles.org).
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Os cemitérios e a diversidade
18
A presença de soldados indígenas do corpo de Regulares na Península é anterior à
Guerra Civil. Assim, por exemplo, em 1934 formaram «uma parte das tropas enviadas
pela Segunda República para sufocar o levantamento de trabalhadores» nas Astúrias (Ál-
varez et al. 2006, 132).
19
Sobre os rituais funerários muçulmanos, ver Tarrés (2006).
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Este tipo de iniciativas tem sido habitual por parte das corporações locais em muitos
municípios onde há um cemitério mouro que não está em uso e que, às vezes, ocupa
um espaço necessário para a ampliação da necrópole municipal. O Reino de Marrocos,
em general, ignorou estas petições.
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Os cemitérios e a diversidade
21
As escavações arqueológicas realizadas em 1945 e 2001 localizaram mais de 700 tum-
bas que pertenciam ao antigo cemitério judaico. Em 2007, e por petição da comunidade
hebraica local, o Departamento de Cultura do Governo da Catalunha declarou este es-
paço como «Bem cultural de interesse nacional», o que supõe a sua proteção perante
qualquer tipo de intervenção urbanística. O Centro de Estudos Zakhor para a proteção
e transmissão do património judaico (www.zakhor.net) desempenhou um papel funda-
mental neste processo.
22
Sobre o processo de reconstrução das estruturas sociais da comunidade judaica em
Barcelona, baseando-se na história oral dos seus membros entre os anos 1914 e 1954,
veja-se o trabalho de Berthelot (2001).
123
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23
As primeiras referências documentais do cemitério de San Andrés de Palomar re-
montam a 1834, quando esta população constituía um município independente em re-
lação a Barcelona. Foi apenas depois da sua anexação territorial em 1897 que este espaço
começou a adquirir a função de cemitério municipal, servindo a população do bairro
anexo de San Andrés, assim como dos restantes bairros de Barcelona (especialmente os
defuntos provenientes de outro antigo município que também foi anexado à cidade, San
Martín de Provençals). Para uma visão histórica do cemitério, evolução arquitetónica e
artística deste cemitério, ver Lacuesta et al. (2009).
24
Este recinto constitui o atual quarto departamento, formado por nichos de sete ní-
veis. Com o tempo converteu-se em mais uma secção do cemitério católico.
25
Na memória descritiva apresentada para o projeto de ampliação do cemitério em
1919, justificava-se o facto de dispor de uma secção para enterros protestantes, «cuja ne-
cessidade é patente por estar ocupada a do cemitério do Este [Poblenou] e próximo a
estar o do Sudoeste [Montjuïc]».
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Foto J. Moreras
Conclusões
Os exemplos anteriores permitem-nos apresentar uma reflexão sobre
a forma como construímos a nossa noção de património, mas ao mesmo
tempo como se gera esse processo de apropriação da pluralidade de for-
mas de viver e morrer. Se até ao momento se investigou e trabalhou a
partir da conceção de património cultural como construção simbólica
das identidades nacionais ou regionais, que têm expressão no Estado (e
no resto das Comunidades Autónomas), como implantar nelas o patri-
mónio funerário das minorias religiosas? Neste processo de seleção e ela-
boração sociopolítica de um património em que se apela a um «nós» co-
letivo, o encaixe dos «outros» não é um assunto das políticas de gestão
da multiculturalidade. Para além disso, este processo de repensar o patri-
mónio ocorre num momento em que a sociedade espanhola elabora um
processo de interiorização da sua própria pluralidade. É evidente que este
processo está marcado por um atenção que provoca a vontade de cons-
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Os cemitérios e a diversidade
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José Mapril
Capítulo 6
* A pesquisa que deu origem a este capítulo foi realizada no âmbito do projeto
PTDC/CS-ANT/102862/2008, «The invisibility of death among immigrant populations in
Portugal: vulnerabilities and transnational managements», coordenado por Clara Saraiva.
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tualidade e velar (Mapril 2009; Saraiva e Mapril 2015; Rodrigues, este vo-
lume, inter alia). Aqui encontramos imaginários que relacionam lugares
de pertença, religião e ritual e como estes se reconfiguram, criando novas
geografias morais.
Contudo, os rituais funerários em contextos migratórios são também
reveladores de outras dinâmicas e processos. Como Karen Fog Olwig
(2009) mostra no caso da migração caribenha para o Reino Unido, a
morte de um conterrâneo, e os respetivos rituais funerários, são uma oca-
sião de superação de tensões e divergências e de produção de um sentido
de comunidade de pertença com base em experiências comuns. Tais di-
nâmicas estão frequentemente presentes noutros contextos onde encon-
tramos, por exemplo, associações informais organizadas para o repatria-
mento dos corpos ou estratégias informais de coleta e de quotização
(Mapril e Saraiva 2014). Em todos estes casos, o que emerge é precisa-
mente a importância dos rituais fúnebres, e respetivos trânsitos, «[...] na
criação de sociedade como algo aparentemente exterior» (Bloch e Parry,
1982, 6). Assim, os rituais fúnebres reificariam uma ideia de sociedade
para além das relações sociais que a compõem através de um processo
de coparticipação.
Este capítulo pretende ser um contributo para esta literatura, mas atra-
vés de um estudo de caso sobre a vivência do luto e da viuvez num con-
texto migratório. Como Maurice Bloch e Jonathan Parry (1982) argu-
mentam, a morte é frequentemente encarada como um período perigoso
que implica a separação dos enlutados da vida quotidiana, mas também
a sua posterior reintegração. A partir desta constatação, o objetivo deste
capítulo é analisar a forma como a viuvez é experienciada e como se ar-
ticula com práticas transnacionais de cuidar. Este caso mostra a impor-
tância da unidade doméstica de origem da jovem viúva num momento
de crise.
Algumas das ideias discutidas neste capítulo apresentam um outro
lado da morte e do morrer na migração bangladeshi. Os trabalhos de
Katy Gardner (1998 e 2002) sobre viúvas bangladeshis em Londres mos-
tram como a morte de um migrante homem no Reino Unido implica
diferentes formas de viver a morte e o luto de acordo com as posições
de género. Para as viúvas, a experiência do luto em Londres implica não
apenas isolamento social, já que se encontram afastadas da família alar-
gada no Bangladesh que em circunstâncias normais seria uma fonte de
apoio, mas também uma relação complicada com o regime burocrático
britânico que torna o luto impossível de cumprir de acordo com os ideais
normativos.
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ram desde que nos conhecemos pela primeira vez. No caso da dithidar
bari estava particularmente interessado em saber o que tinha acontecido
após a morte de Jahangir, o chefe de família e o seu principal provedor,
em Lisboa em 2007. Como estava Aisha, a esposa de Jahangir? E os seus
quatro filhos – Mujib, Raju, Masud e Zubayer?
Será através desta etnografia do particular, como Lila Abu Lughod lhe
chamou, que abordarei a relação entre morte, relatedness, produção de lu-
gares e normatividades de género.
1
Estes dados foram calculados através da soma entre a população bangladeshi com
estatuto de residência em Portugal e o somatório da população bangladeshi com estatuto
de permanência desde 2001 até aos últimos dados estatísticos referentes ao ano de 2003.
134
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2
Graças à legislação Martelli (que permitia a aquisição de uma residência permanente
ou renovável), implementada no início dos anos 90, o número de imigrantes do Bangla-
desh a residir em Itália aumentou de forma espetacular rondando atualmente os 20 000
indivíduos (Knights 1996).
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nos meses seguintes, Anis preparou a chegada da sua irmã e dos seus so-
brinhos, o que apenas viria a ocorrer um ano mais tarde, o que incluiu a
compra de um apartamento em Lisboa, que permitisse fazer face às exi-
gências terapêuticas de Jahangir. O objetivo, também motivado pelas
pressões da administração hospitalar, seria tomar conta de Jahangir em
casa com a ajuda do centro de saúde. Depois de vários anos, em casa,
no sábado dia 12 de fevereiro de 2007, Jahangir faleceu após complicações
pós-cirúrgicas.
A primeira decisão que teve de ser tomada foi se o corpo deveria ou não
ser enviado para o Bangladesh? Inicialmente a ideia era precisamente re-
patriar o corpo, ainda para mais porque um Mujib, o filho mais velho de
Jahangir, estava precisamente no Bangladesh para tratar do seu casamento,
e poderia tratar de tudo daquele lado. Aisha e a sua mãe queriam que fosse
enterrado no Bangladesh, na sua aldeia de origem – Hasnabad – mas Anis
estava contra, pois era demasiado dispendioso. Para além disto, Anis argu-
mentava:
Temos de pensar no Jahangir e não na família. Ele deve ser enterrado o
mais depressa possível porque a sua pele vai secar e apodrecer e temos de
nos lembrar que os mortos serão os primeiros a ver Allah.
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que ela tem ficado progressivamente mais isolada e isso tem sido uma
fonte de sofrimento agudo.
Este exemplo da Dithidar bari revela dois aspetos relativos à gestão
transnacional da morte e do morrer em contextos migratórios que serão
explorados nas próximas secções: por um lado, permite-nos explorar a
relação entre o bom enterro e ideias sobre relatedness; por outro, revela
ideias sobre viuvez e as estratégias para restabelecer a normalidade de gé-
nero.
Trânsitos fúnebres
Desde 1986, altura em que terá chegado o primeiro bangladeshi a Por-
tugal, até ao final de 2006, morreram 13 bengalis em circunstâncias di-
versas (doenças prolongadas, acidentes de trabalho e alegados crimes) e
todos foram a enterrar no Bangladesh, exceto um, ao qual voltarei um
pouco mais adiante.
As despesas e a organização da transladação do corpo ficaram a cargo
dos pioneiros. Enquanto símbolos de sucesso e êxito assumem frequen-
temente o papel de líderes da «comunidade», e é precisamente enquanto
badralok, designação bengali para homem importante, big man, que são
chamados para resolver situações de conflito ou gerir a morte de um con-
terrâneo. São eles que, juntamente com vários outros ajudantes, se en-
carregam da preparação das cerimónias fúnebres, com a explícita cola-
boração das principais instituições islâmicas em Portugal, tais como a
mesquita central de Lisboa ou mesquita Hazrat Bilal no Porto. Ora é no
seio destas instituições que a gestão dos rituais fúnebres e da morte entre
bangladeshis é parcialmente feita. São os funcionários destas mesquitas
que habitualmente realizam as lavagens (ghosul), as abluções (wuzu) e em-
brulham o cadáver no kafan, a mortalha branca que é também usada
pelos peregrinos durante a Hajj. Esta é uma tarefa realizada por homens
ou mulheres consoante o defunto é um homem ou uma mulher. Em se-
guida, o corpo é embalsamado, como aliás a lei obriga em casos de trans-
ladação, e selado num caixão para fazer a viagem de regresso ao Bangla-
desh. Antes de selar o caixão, o corpo é transportado para a sala de
orações, ou, no caso da mesquita central de Lisboa, para o pátio interior,
onde se realiza a salat-ul-janazah, a oração fúnebre. De acordo com os
meus interlocutores, o número de crentes nesta oração deve ser signifi-
cativo, já que quanto maior for a congregação maior é o mérito, sowab,
que o falecido «receberá». Como tal, não é incaracterístico muitos ban-
gladeshis se deslocarem de todo o país para participar nestas orações,
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Viuvez e mutualidade
A história da Dithidar bari permite não apenas falar dos trânsitos fúne-
bres, relatedness e ideias sobre lugares de pertença, mas revela igualmente
noções sobre viuvez, luto, e como estas são vividas transnacionalmente.
Na literatura sobre as migrações bangladeshis, a gestão da morte, do mor-
rer e do luto têm sido analisados por Katy Gardner (1998 e 2002) ba-
seando-se na sua pesquisa sobre bangladeshis-britânicos. Gardner mostra
como a gestão da morte e do sofrimento revela não apenas noções sobre
lugares de pertença, mas também perceções de género. Ao longo dos
seus artigos, é visível como o contexto migratório, nomeadamente o ce-
nário institucional sobre a morte e as políticas imigratórias no Reino
Unido, e a condição de pobreza, têm significativas consequências para
uma gestão diferenciada da morte entre homens e mulheres. Gardner
mostra, por exemplo, como as viúvas no Reino Unido estão frequente-
mente isoladas socialmente, porque estão longe das redes de apoio com
base na família extensa que teriam na aldeia de origem no Bangladesh, e
simultaneamente se encontram numa posição socioeconómica que não
lhes permite viajar para participar no enterro dos maridos. A descrição
etnográfica apresentada anteriormente revela um processo similar ao des-
crito por Katy Gardner. Viver o luto em Portugal levanta um conjunto
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Nota conclusiva
Assim e em jeito de conclusão, a morte e o morrer entre bangladeshis
em Lisboa não apenas revela a íntima relação entre produção de lugares,
mutualidades e coparticipação mas também a produção de normativida-
des de género. Num artigo anterior (2009), procurei mostrar como os
bangladeshis em Portugal vivem a morte, o luto e o sofrimento, e como
as suas práticas e imaginários revelam ideias sobre a «boa» morte e como
isso está associado ao envio dos corpos para serem enterrados no Ban-
gladesh e, portanto, para serem velados por parentes e amigos. Simulta-
neamente, mostrei como se verifica uma crescente transformação das
geografias morais de pertença acerca do lugar correto de enterro. Neste
segundo contributo, procurei mostrar um outro lado da morte e do mor-
rer em contextos migratórios, nomeadamente a experiência de viuvez.
Ao longo deste capítulo procurei revelar a importância do grupo de pa-
rentes matrilateral, nomeadamente aqueles que coparticiparam numa re-
sidência comum e nos seus quotidianos, no apoio transnacional em mo-
mentos de crise tais como os vividos por Aisha e os filhos. Foi com o
apoio dos seus irmãos e irmãs e sobrinhos que a condição de Jahangir
foi gerida, e mais tarde o próprio estatuto ambíguo de Aisha. O recasa-
mento, vários anos após a morte de Jahangir, foi precisamente percecio-
nado por alguns como uma forma de restabelecer a «normalidade», nor-
malidade essa que implicou ir ao encontro das normatividades de género
e de sexualidade. Paradoxalmente, contudo, o seu acesso à cidadania eu-
ropeia, juntamente com o apoio dos filhos, permitiu a Aisha fazer face
a este período com uma maior autonomia, autonomia esta que foi fre-
quentemente percecionada como problemática por vários parentes no
Bangladesh.
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Capítulo 7
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1
Na obra que Pinho Neno escreve sobre «Morrer no Brasil», é explicitada a intenção
de como alguns emigrantes possidentes concretizaram, por via notarial, a realização do
que gostariam que fosse feito depois da sua morte.
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Este desejo partilhado por muitos outros imigrados é por demais co-
nhecido no contexto migratório português. De entre os vários tratamen-
tos que têm sido dados ao tema não pode deixar de ser lembrado o filme
Mortinho por Chegar a Casa, comédia que Carlos Silva e George Sluizer
realizaram em 1996. Através da história de um jovem imigrado português
nos Países Baixos, que após a morte ocorrida por acidente não consegue
gozar o descanso eterno por se encontrar enterrado fora da sua terra natal,
é equacionada a dinâmica migratória entre o local de origem e de destino,
problematizando o desejo de regresso à terra. «A geografia do lugar, en-
quanto elemento identitário, continua a ser determinante» (Castro 2013).
Este assunto tem demonstrado uma continuada importância. A ob-
servação dos factos e a documentação existente, nomeadamente a que
consta dos acervos notariais, em particular a que diz respeito aos testa-
mentos realizados em situação de migração, dá conta de quanto em vida
são feitos planos de tentar dar continuidade e concretizar vontades (Neno
1989).
Uma importante reivindicação dos delegados participantes nas reu-
niões do Conselho das Comunidades Portuguesas 2 incide sobre a pro-
blemática do repatriamento em caso de morte. Assim, foi negociado pelo
Instituto de Apoio à Emigração (uma das duas Direções-Gerais que então
integrava a Secretaria de Estado da Emigração no Ministério dos Negó-
cios Estrangeiros) um acordo com instituições seguradoras, prevendo as
modalidades de seguro voluntário para transporte de corpos de imigran-
tes para Portugal.
Não teve seguimento uma recomendação emitida pelos delegados no
II Conselho das Comunidades (Santa Maria da Feira, 1983) em que o
correspondente encargo fosse assumido pelo Estado português; mas é
significativo que um assunto dessa natureza tivesse sido inscrito na Sec-
ção «Regresso e Reinserção», o que traduz a identificação feita pelos emi-
grantes, entre o repatriamento em caso de morte e uma situação de «úl-
timo regresso» (Rocha-Trindade 1989).
Desde longa data existem empresas funerárias especializadas nesta mo-
dalidade de serviços. Hoje, totalmente clarificada a situação em termos
2
O Conselho das Comunidades criado em 1980 (Decreto-Lei n.º 373/80, de 30 de
agosto) materializa uma intenção pós-revolucionária de passar a considerar de igual modo
tanto os que residem no país como os que tendo emigrado residem fora dele. Esta nova
conceção procurava dar lugar a uma verdadeira participação de todos os portugueses nas
decisões políticas que viessem a ser tomadas, muito em especial as que respeitassem di-
retamente a estes últimos (Rocha-Trindade 2014).
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3
Um anúncio publicado no jornal Presença Portuguesa (Paris) ilustra as cláusulas destes
seguros: «Ao seu serviço Império a sua seguradora. Para resolver um problema premente
na Comunidade Portuguesa em França, a companhia de seguros Império propõe-lhe o
seguro de despesas de funeral. Por 300 Frs anuais, a Império garante-lhe: as despesas de
funeral para Portugal para toda a família, que inclui o casal e filhos com menos de 18
anos (a idade limite de adesão é de 60 anos, o seguro de grupo acaba automaticamente
aos 65 anos); em caso do corpo ser inumado em França o limite de custo é de 30 000
Frs; uma viagem de avião ida e volta para acompanhar o falecido a Portugal, ou duas
viagens de regresso; uma viagem de avião ida e volta para assistir em Portugal ao funeral
dos pais, esposa(o) ou filhos. Data do efeito do contrato: no caso de falecimento por aci-
dente, a partir de 1 do mês seguinte à adesão; no caso de falecimento por doença: a partir
do 6.º mês seguinte à adesão» (Presença Portuguesa, novembro de 1987).
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4
Já no fim do século XIX, Oliveira Martins, referia no capítulo «A emigração portu-
guesa», Buenos Aires como destino da emigração algarvia (Martins 1956).
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5
Recuperando o passado histórico, a dor e o sucesso da emigração de fafenses em di-
reção ao Brasil constituem uma permanência na política local desenvolvida pelo muni-
cípio. Com uma regularidade mantida desde há anos, tal facto tem vindo a ser tema de
eventos culturais de vária natureza e amplitude. Citam-se: a «Travessia» (2013) um per-
curso que mobilizou muita gente fazendo apelo à memória dos que mais recentemente
tinham emigrado clandestinamente para a Europa; o grande espetáculo «Saudades de fu-
turo» (2014) que envolveu um número significativo de atores amadores oriundos do con-
celho e a exposição «Marcas dos Brasileiros em Fafe» (2015).
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Figura 7.15 – Campa de Rosa Noivo, oferecida pelo seu filho residente
no Brasil, cemitério de Mira de Aire, Porto de Mós, Leiria
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Reflexões finais
Na tradição religiosa portuguesa, todo o ritual associado à morte é im-
portante e socialmente unificador; e o funeral de um emigrante falecido
no estrangeiro que quis vir a ser sepultado em Portugal merece especial
consideração, pelo significado simbólico do seu amor à terra e pela pena
de não ter tido, ao menos, a consolação de aí ter morrido.6
Neste sentido, considere-se o profundo significado espiritual da «úl-
tima visita» que um cortejo fúnebre proporcionou a um emigrante fale-
cido por acidente de trabalho no estrangeiro, levando o caixão à «sua»
casa, construída com o fruto do seu trabalho, antes de recolher à última
morada. «Seria muito injusto se, ao menos, ele não viesse aqui.» 7
Um tempo de permanência mais prolongada no estrangeiro e, em
muitos casos, a fixação que nele fizeram os seus descendentes, tem in-
troduzido modificações nas aspirações oportunamente expressas em
datas anteriores.
6
A necessidade de garantir o enterro do corpo na terra de origem e o papel presencial
do cadáver no rito funerário são reconhecidos em sociedades muito diversas (Thomas
1980, 259-267).
7
A. M. F. nasceu em Queiriga em 1942 e emigrou para França com a idade de 19 anos.
Casou-se na sua terra em 1966, continuando a viver sozinho no estrangeiro. Aí veio a fa-
lecer em 1977, num acidente de construção civil, profissão que sempre exerceu. Deixou
viúva e três filhos, residentes em casa própria, construída com o fruto do trabalho em
França. A sua presença continua a manter-se.
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tino – é reveladora de uma prática que se instituiu numa época bem pre-
cisa.
Embora o nível de vida dos que venceram através da emigração tenha
sido diferente em número – de forma muito mais restrita no Brasil e
muito mais alargada em França –, as capacidades económicas obtidas
pelos elementos de cada um dos dois grupos possibilitaram concretizar,
embora de forma diferente, os respetivos desígnios tanto em vida como
depois da morte.
A homenagem funerária ao «Brasileiro» coloca-o numa posição central
e circunscreve a sua figura; a do «Francês» reflete a ligação social e familiar
que teve em vida através da intenção de colegas de trabalho, de vida as-
sociativa ou de lazer que se juntam às que expressam as relações familia-
res.
A ligação identitária que se mantém manifesta-se através das marcas
exteriores que dela dão conta: monumentos de grande sumptuosidade
com assinatura de grandes arquitetos ou elementos inovadores apostos
em campas, cuja diversidade (corações, molduras, fotografias) demonstra
a criatividade individual específica.
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Grâne: Éditions Créaphis.
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Parte III
Morte, migração e saúde
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Violeta Alarcão
Filipe Leão Miranda
Elisa Lopes
Rui Simões
Capítulo 8
173
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174
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Foco e metodologia
Foi implementado um estudo transversal de base populacional com
adultos imigrantes naturais do Bangladesh, Brasil, Cabo Verde, China e
Guiné-Bissau, residentes na cidade de Lisboa. Estes grupos de imigrantes
constituem bons exemplos da heterogeneidade da imigração portuguesa.
Os portugueses, como sujeitos em interação no país de acolhimento, foram
igualmente alvo deste estudo, de modo a identificar os modos como o so-
frimento e a morte são conceptualizados em Portugal. Foram deste modo
também inquiridos nativos portugueses adultos, de ambos os sexos, com
a mesma faixa etária e residentes nas mesmas áreas geográficas.
Recorreu-se ao método de amostragem de base geográfica com utili-
zação de entrevistadores de acesso privilegiado à população-alvo (PAI –
Privileged Access Interviewer Method), mais especificamente a membros das
comunidades imigrantes em estudo (Dunn e Ferri 1999) ou falantes das
respetivas línguas e dialetos.
175
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Participantes
A dimensão total da amostra foi calculada para cerca de 500 imigrantes
(100 por comunidade) e 100 nativos portugueses, para um intervalo de
confiança de 90%, e um erro amostral de 8% por comunidade (migrante
e nativa) e de 4% para o total das comunidades.
Os indivíduos selecionados eram incluídos no estudo se preenchessem
os seguintes critérios de inclusão:
1) adultos de ambos os sexos com 18-65 anos de idade;
2) nascidos no Bangladesh, Brasil, Cabo Verde, China, Guiné-Bissau
e Portugal;
3) residentes nas freguesias da Ameixoeira, Anjos, Graça, São Jorge
de Arroios, e Socorro (escolhidas por serem as freguesias com resi-
dentes de todos os grupos em estudo) da cidade de Lisboa;
4) dessem o seu consentimento informado oralmente para participar
no estudo;
5) fossem capazes de responder às perguntas.
A participação no estudo foi voluntária, anónima e confidencial, e
todos os participantes tiveram acesso a um consentimento informado,
redigido em inglês ou em português. O estudo foi aprovado pela Comis-
são de Ética da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa e pela
Comissão Nacional de Proteção de Dados.
Procedimentos
O «Inquérito de Saúde e Perspetivas perante a Morte» foi desen-
volvido entre novembro de 2012 e fevereiro de 2013, tendo sido re-
colhido, através de entrevista presencial ao próprio, um vasto con-
junto de dados, incluindo sociodemográficos e do estado de saúde,
o Mental Health Inventory (MIH-5), atitudes face à própria morte e a
176
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177
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Resultados
Caracterização dos participantes
No total, foram entrevistados 769 indivíduos (taxa de participação:
89,5%), dos quais 99 portugueses, 262 bangladeshianos, 105 brasileiros,
102 cabo-verdianos, 97 chineses, e 104 guineenses. Verificaram-se dife-
renças estatisticamente significativas nas principais características socio-
demográficas dos participantes por país de origem (quadro 8.1).
Em todos os grupos, exceto nos bangladeshianos e nos guineenses, a
percentagem de mulheres entrevistadas foi superior à dos homens (grá-
fico 8.1).
A média de idades dos entrevistados rondava os 35 anos, sendo a idade
dos guineenses ligeiramente superior (média ± dp: 39 ± 12 anos) e a dos
bangladeshianos inferior (32 ± 7 anos). A maioria dos portugueses, ban-
gladeshianos e cabo-verdianos tinham entre 18-30 anos, e a maioria dos
brasileiros, chineses e guineenses entre 31-50 anos (gráfico 8.2).
A maioria dos entrevistados eram solteiros, com exceção dos chineses,
em que 71% eram casados.
Os bangladeshianos e os portugueses foram os que reportaram mais
anos de escolaridade (13±3 e 13±5 anos, respetivamente) e os cabo-ver-
dianos menos anos de escolaridade (9±4 anos).
Os bangladeshianos estavam havia menos anos em Portugal (3 ± 3,5 anos)
e os cabo-verdianos (11 ± 12 anos) e guineenses havia mais (11 ± 11 anos).
A pertença religiosa foi maior nos bangladeshianos (100%), guineenses
(96%), cabo-verdianos (89%) e brasileiros (85%) (gráfico 8.6). Os diferen-
tes grupos eram maioritariamente católicos, com exceção dos chineses,
em que 42% eram budistas, e dos bangladeshianos, em que 99% eram
muçulmanos (gráfico 8.7).
Pretendeu-se igualmente saber como é que os entrevistados avaliavam
a sua qualidade de vida, bem como estimar o seu «provável sofrimento
178
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80 37,5
52,0
70 61,0 58,8 60,6
60
50
40 85,5
62,5
30 48,0
39,0 39,4
41,2
20
10
0
Bangladeshianos Brasileiros Caboverdianos Chineses Guineemses Portugueses
(n = 92) (n = 105) (n = 102) (n = 97) (n = 104) (n = 99)
Mulheres Homens
Gráfico 8.2 – Distribuição por país de origem segundo o grupo etário (%)
100
1,1 10,5 16,7 10,3
90 17,3
24,2
80
49,1
70 32,4
58,1 52,6
60 31,3
52,9
50
40
0
Bangladeshianos Brasileiros Caboverdianos Chineses Guineenses Portugueses
(n = 262) (n = 105) (n = 102) (n = 97) (n = 104) (n = 99)
179
Quadro 8.1 – Características sociodemográficas dos participantes por país de origem
Sexo, n (%)
Masculino 39 (39,4) 224 (85,5) 41 (39,0) 49 (48,0) 40 (41,2) 65 (62,5)
< 0,001
Feminino 60 (60,6) 38 (14,5) 64 (61,0) 53 (52,0) 57 (58,8) 39 (37,5)
3
Idade, média ± dp 36,2 ± 14,6 32,2 ± 7,3 36,5 ± 10,4 4,3 ± 13,0 35,8 ± 10,4 39,0 ± 11,9 < 0,001
Idade, n (%)
Movimentos, Espíritos e Rituais
180
Estado civil, n (%)
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Anos de educação, média ± dp 13, 0± 4,8 13,4 ± 2,9 11,8 ± 2,8 9,6 ± 4,0 10,6 ± 3,5 10,0 ± 3,9 < 0,001
Nível educacional, n (%)
Ensino básico ou menos 25 (25,3) 42 (16,1) 30 (28,0) 50 (50,0) 45 (46,4) 51 (49,0)
Ensino secundário 16 (16,2) 88 (33,7) 57 (53,3) 32 (32,0) 34 (35,1) 34 (32,7) < 0,001
Ensino superior 58 (58,6) 131 (50,2) 20 (18,7) 18 (18,0) 18 (18,6) 19 (18,3)
Portugueses Bangladeshianos Brasileiros Cabo-verdianos Chineses Guineenses
Valor p
(n = 99) (n = 262)* (n = 105) (n = 102) (n = 97) (n = 104)
Ocupação, n (%)
Tem uma profissão 52 (52,5) 166 (63,6) 82 (78,1) 39 (38,6) 79 (81,4) 48 (46,2)
Estudante 24 (24,2) 10 (3,8) 2 (1,9) 21 (20,8) 3 (3,1) 18 (17,3)
Ocupa-se das tarefas domésticas 1 (1,0) 32 (12,2) 0 2 (2,0) 7 (7,2) 1 (1,0)
À procura do primeiro emprego 1 (1,0 3 (1,1) 0 2 (2,0) 0 1 (1,0) < 0,001b
Desempregado/a 12 (12,1) 40 (15,3) 18 (17,1) 31 (30,7) 3 (3,1) 31 (29,8)
Reformado/a 8 (8,1) 0 1 (1,0) 6 (5,9) 1 (1,0) 1 (1,0)
Outra situação 1 (1,0) 10 (3,8) 2 (1,9) 0 4 (4,1) 4 (3,8)
Profissão, n (%)
1. Quadros superiores da administração 1 (1,8) 18 (10,2) 1 (1,0) 0 0 0
181
pública, dirigentes e quadros
superiores de empresas
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NA
2. Especialistas das profissões 23 (41,8) 3 (1,7) 8 (8,2) 2 (3,0) 6 (7,8) 5 (7,1)
intelectuais e científicas
3. Técnicos e profissionais de nível 10 (18,2) 9 (5,1) 8 (8,2) 4 (6,1) 1 (1,3) 9 (12,9)
intermédio
4. Pessoal administrativo e similares 5 (9,1) 3 (1,7) 4 (4,1) 1 (1,5) 1 (1,3) 4 (5,7)
5. Pessoal dos serviços e vendedores 13 (23,6) 141 (80,1) 39 (40,2) 19 (28,8) 69 (89,6) 13 (18,6)
6. Agricultores e trabalhadores 0 0 0 0 0 0
qualificados da agricultura e pescas
7. Operários, artífices e trabalhadores 1 (1,8) 0 8 (8,2) 20 (30,3) 0 18 (25,7)
similares
▲
Viver a morte em Portugal
Portugueses Bangladeshianos Brasileiros Cabo-verdianos Chineses Guineenses
Valor p
▲
(n = 99) (n = 262)* (n = 105) (n = 102) (n = 97) (n = 104)
182
> 15 anos – 21 (20,6) 16 (16,7) 31 (30,1)
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Religião, n (%)
Não 21 (21,2) 0 16 (15,2) 11 (10,8) 41 (42,3) 4 (3,8)
Sim 78 (78,8) 262 (100) 89 (84,8) 91 (89,2) 56 (57,7) 100 (96,2)
Católica 75 (96,2) 0 53 (60,2) 87 (96,7) 6 (10,9) 53 (53,0)
Ortodoxa 0 0 1 (1,1) 0 0 0
Protestante 0 0 3 (3,4) 1 (1,1) 0 3 (3,0)
Evangélica 0 0 26 (29,5) 0 0 8 (8,0)
Outra cristã 0 0 3 (3,4) 1 (1,1) 8 (14,5) 2 (2,0) < 0,001c
Muçulmana 3 (3,8) 258 (99,2) 0 0 0 33 (33,0)
Budista 0 0 0 0 41 (74,5) 0
Hinduísta 0 2 (0,8) 0 0 0 0
Outra não-cristã 0 0 2 (2,3) 1 (1,1) 0 1 (1,0)
Portugueses Bangladeshianos Brasileiros Cabo-verdianos Chineses Guineenses
(n = 99) (n = 262)* (n = 105) (n = 102) (n = 97) (n = 104) Valor p
dp, desvio padrão; NA, não se aplica; * amostra superior com vista à articulação com o estudo «Avaliação do Acesso aos Cuidados de Saúde e Nível de Saúde dos Imi-
grantes do Subcontinente Indiano»; a juntando as categorias «divorciado/a» e «viúvo/a»; b ignorando as categorias «à procura do primeiro emprego» e «outra situação»;
c juntando as categorias «ortodoxa», «protestante» e «evangélica» à categoria «outra cristã» e a categoria «hinduísta» à categoria «outra não-cristã».
Fonte: Inquérito de Saúde e Perspetivas perante a Morte, 2013.
183
08 Movimentos Cap. 8.qxp_Layout 1 11/02/17 15:48 Page 183
40
66,7
30 53,4 59,6
51,9 51,4
20
25,0
10
0
Bangladeshianos Brasileiros Caboverdianos Chineses Guineenses Portugueses
(n = 262) (n = 105) (n = 102) (n = 97) (n = 104) (n = 99)
80
50,2
70 32,7 58,6
32,0
35,1
60
53,3
50
40
33,7 16,2
30 50,0 46,4 49,0
20
28,0 25,3
10 16,1
0
Bangladeshianos Brasileiros Caboverdianos Chineses Guineenses Portugueses
(n = 262) (n = 105) (n = 102) (n = 97) (n = 104) (n = 99)
184
08 Movimentos Cap. 8.qxp_Layout 1 11/02/17 15:48 Page 185
20
Anos em Portugal
15
11,0 10,9
10
9,4
7,1
5
2,7
0
Bangladeshianos Brasileiros Caboverdianos Chineses Guineenses
(n = 262) (n = 105) (n = 102) (n = 97) (n = 104)
p < 0,001
90
80
70 57,7
60 78,8
84,8 89,2
50 100 96,2
40
30
42,3
20
10 21,2
15,2 10,8 3,8
0
Bangladeshianos Brasileiros Caboverdianos Chineses Guineenses Portugueses
(n = 92) (n = 05) (n = 102) (n = 97) (n = 104) (n = 99)
185
08 Movimentos Cap. 8.qxp_Layout 1 11/02/17 15:48 Page 186
80 33,0
37,4
70
60 74,5 13,0
30 60,2 53,0
20 14,5
10
10,9
0
Bangladeshianos Brasileiros Caboverdianos Chineses Guineenses Portugueses
(n = 262) (n = 105) (n = 102) (n = 97) (n = 104) (n = 99)
186
Quadro 8.2 – Autoavaliação da qualidade de vida e da saúde mental por país de origem
Portugueses Bangladeshianos Brasileiros Cabo-verdianos Chineses Guineenses
Valor p
(n = 99) (n = 262)* (n = 105) (n = 102) (n = 97) (n = 104)
MHI, média ± dp 62,0 ± 23,2 56,9 ± 12,5 70,7 ± 18,7 66,8 ± 21,7 67,6 ± 16,3 59,2 ± 24,3 < 0,001
MHI-52, n (%)
187
Sem possível sofrimento 63 (63,6) 139 (53,5) 84 (83,2) 74 (74,0) 77 (79,4) 64 (62,1)
08 Movimentos Cap. 8.qxp_Layout 1 11/02/17 15:48 Page 187
dp, desvio padrão; NA, não se aplica; * amostra superior com vista à articulação com o estudo «Avaliação do Acesso aos Cuidados de Saúde e Nível de Saúde dos Imi-
grantes do Subcontinente Indiano».
Fonte: Inquérito de Saúde e Perspetivas perante a Morte, 2013-
Viver a morte em Portugal
08 Movimentos Cap. 8.qxp_Layout 1 11/02/17 15:48 Page 188
70
60 56,9 56,7
51,5
50
40
45,2
27,3 28,6 30,4 26,8 26,8 27,9
30 26,5 25,8
19,8 21,2
20
9,6 9,5
10
0
Portugueses Bangladeshianos Brasileiros Caboverdianos Chineses Guineenses
(n = 99) (n = 262) (n = 105) (n = 102) (n = 97) (n = 104)
Gráfico 8.9 – Em que país preferiria morrer, por país de origem (%)
100
90
80
70
60
50
40
30
20
10
0
Portugueses Bangladeshianos Brasileiros Caboverdianos Chineses Guineenses
(n = 99) (n = 262) (n = 105) (n = 102) (n = 97) (n = 104)
188
08 Movimentos Cap. 8.qxp_Layout 1 11/02/17 15:48 Page 189
90
80
70
60
50
40
30
20
10
0
Portugueses Bangladeshianos Brasileiros Caboverdianos Chineses Guineenses
(n = 99) (n = 262) (n = 105) (n = 102) (n = 97) (n = 104)
189
Quadro 8.3 – Atitudes perante a morte por país de origem
Portugueses Bangladeshianos Brasileiros Cabo-verdianos Chineses Guineenses
Valor p
(n = 99) (n = 262)* (n = 105) (n = 102) (n = 97) (n = 104)
Gostaria doar órgãos, n (%) 77 (77,8) 25 (9,6) 85 (82,5) 58 (56,9) 25 (25,8) 59 (56,7) < 0,001
Autorizaria eutanásia, n (%) 51 (51,5) 25 (9,5) 37 (35,2) 31 (30,4) 26 (26,8) 22 (21,2) < 0,001
190
País de origem – 237 (94,8) 76 (77,6) 67 (73,6) 51 (69,9) 74 (76,3) NA
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191
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dp, desvio padrão; NA, não se aplica; * amostra superior com vista à articulação com o estudo «Avaliação do Acesso aos Cuidados de Saúde e Nível de Saúde dos Imi-
grantes do Subcontinente Indiano».
Fonte: Inquérito de Saúde e Perspetivas perante a Morte, 2013-
Viver a morte em Portugal
Quadro 8.4 – Atitudes perante a morte e processo de morte por país de origem
Portugueses Bangladeshianos Brasileiros Cabo-verdianos Chineses Guineenses
(n = 99) Valor p
(n = 262)* (n = 105) (n = 102) (n = 97) (n = 104)
192
Gostaria ter cerimónia fúnebre, n (%)
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Cônjuge 7 (7,1) 137 (52,5) 4 (3,8) 11 (10,8) 15 (15,5) 16 (16,0) < 0,001
Filho/enteado 7 (7,1) 22 (8,4) 4 (3,8) 14 (13,7) 27 (27,8) 24 (24,0) < 0,001
Irmão/irmã 5 (5,1) 32 (12,3) 6 (5,7) 11 (10,8) 6 (6,2) 12 (12,0) 0,128
Outros familiares 5 (5,1) 1 (0,4) 4 (3,8) 10 (9,8) 3 (3,1) 26 (26,0) < 0,001
Amigos 0 1 (0,4) 2 (1,9) 1 (1,0) 2 (2,1) 4 (4,0) NA
Vizinhos 0 0 0 0 0 1 (1,0) NA
Elementos da comunidade religiosa 0 1 (0,4) 0 0 0 1 (1,0) NA
Outros 22 (22,2) 1 (04) 14 (13,3) 14 (13,7) 0 12 (12,0) < 0,001
dp, desvio padrão; NA, não se aplica; * amostra superior com vista à articulação com o estudo «Avaliação do Acesso aos Cuidados de Saúde e Nível de Saúde dos Imi-
grantes do Subcontinente Indiano».
Fonte: Inquérito de Saúde e Perspetivas perante a Morte, 2013-
193
08 Movimentos Cap. 8.qxp_Layout 1 11/02/17 15:48 Page 193
90
80
70
60
50
40
30
20
10
0
Portugueses Bangladeshianos Brasileiros Caboverdianos Chineses Guineenses
(n = 99) (n = 262) (n = 105) (n = 102) (n = 97) (n = 104)
Indiferente Outro processo Depósito em jazigo
Depósito em gavetão Cremado Sepultado
Fonte: Inquérito de Saúde e Perspetivas perante a Morte, 2013.
40
30
21,7
20
10
0
Portugueses Bangladeshianos Brasileiros Caboverdianos Chineses Guineenses
(n = 99) (n = 262) (n = 105) (n = 102) (n = 97) (n = 104)
Cerimónia de preparação do corpo Cerimónia fúnebre
p < 0,001
Fonte: Inquérito de Saúde e Perspetivas perante a Morte, 2013.
194
08 Movimentos Cap. 8.qxp_Layout 1 11/02/17 15:48 Page 195
55
50
46,5 47,1
45
42,3
48,6 45,5
40
39,4
35
Portugueses Bangladeshianos Brasileiros Caboverdianos Chineses Guineenses
(n = 99) (n = 262) (n = 105) (n = 102) (n = 97) (n = 104)
p < 0,001
Fonte: Inquérito de Saúde e Perspetivas perante a Morte, 2013.
a visita a casa e esmola do 7.º dia (Du'a mahfil). Nos restantes grupos, a
maioria reportou o desejo de ter uma cerimónia fúnebre, tendo este de-
sejo sido expresso pela quase totalidade dos cabo-verdianos e dos gui-
neenses (gráfico 8.12).
A maioria dos bangladeshianos indicou que quem deveria pagar as
despesas do processo da sua morte seria o cônjuge, enquanto os chineses
e os guineenses indicaram os filhos, seguidos do próprio (quadro 8.4).
195
Quadro 8.5 – Caracterização da Escala de Ansiedade perante a Morte (DAS) por país de origem
1. Tenho medo 1 – Concordo plenamente 26 (26,3) 7 (2,7) 18 (17,6) 22 (21,8) 11 (11,8) 22 (21,6)
de morrer. 2 – Concordo 30 (30,3) 4 (1,5) 18 (17,6) 20 (19,8) 23 (24,7) 23 (22,5)
3 – Neutro 11 (11,1) 19 (7,3) 29 (28,4) 9 (8,9) 20 (21,5) 13 (12,7)
4 – Discordo 21 (21,2) 9 (3,5) 21 (20,6) 26 (25,7) 20 (21,5) 18 (17,6)
5 – Discordo plenamente 11 (11,1) 221 (85,0) 16 (15,7) 24 (23,8) 19 (20,4) 26 (25,5)
Movimentos, Espíritos e Rituais
2. Raramente me vem 1 – Concordo plenamente 20 (20,2) 6 (2,3) 24 (23,5) 22 (21,8) 26 (28,3) 17 (16,7)
à cabeça a ideia 2 – Concordo 25 (25,3) 5 (1,9) 32 (31,4) 30 (29,7) 33 (35,9) 21 (20,6)
de morte. 3 – Neutro 12 (12,1) 48 (18,5) 24 (23,5) 7 (6,9) 14 (15,2) 30 (29,4)
4 – Discordo 30 (30,3) 76 (29,2) 18 (17,6) 37 (36,6) 14 (15,2) 13 (12,7)
196
5 – Discordo plenamente 12 (12,1) 125 (48,1) 4 (3,9) 5 (5,0) 5 (5,4) 21 (20,6)
08 Movimentos Cap. 8.qxp_Layout 1 11/02/17 15:48 Page 196
3. Não fico nervoso 1 – Concordo plenamente 33 (33,3) 5 (1,9) 28 (27,5) 31 (30,7) 17 (18,7) 31 (30,4)
quando as pessoas 2 – Concordo 25 (25,3) 7 (2,7) 38 (37,3) 37 (36,6) 25 (27,5) 25 (24,5)
falam de morte. 3 – Neutro 11 (11,1) 80 (30,8) 19 (18,6) 6 (5,9) 21,23,1) 17 (16,7)
4 – Discordo 21 (21,2) 36 (13,8) 13 (12,7) 24 (23,8) 20 (22,0) 15 (14,7)
5 – Discordo plenamente 9 (9,1) 132 (50,8) 4 (3,9) 3 (3,0) 8 (8,8) 14 (13,7)
4. Horroriza-me pensar 1 – Concordo plenamente 14 (14,1) 7 (2,7) 13 (12,7) 18 (17,8) 4 (4,3) 23 (22,5)
que poderei vir a ser 2 – Concordo 22 (22,2) 45 (17,3) 28 (27,5) 32 (31,7) 22 (23,9) 17 (16,7)
operado. 3 – Neutro 11 (11,1) 32 (12,3) 17 (16,7) 9 (8,9) 30 (32,6) 14 (13,7)
4 – Discordo 28 (28,3) 28 (10,8) 29 (28,4) 26 (25,7) 20 (21,7) 24 (23,5)
5 – Discordo plenamente 24 (24,2) 148 (56,9) 15 (14,7) 16 (15,8) 16 (17,4) 24 (23,5)
Portugueses Bangladeshianos Brasileiros Cabo-verdianos Chineses Guineenses
(n = 99) (n = 262)* (n = 105) (n = 102) (n = 97) (n = 104)
5. Não tenho medo 1 – Concordo plenamente 20 (20,2) 45 (17,3) 18 (17,6) 27 (26,7) 11 (12,0) 30 (29,4)
nenhum de morrer. 2 – Concordo 6 (6,1) 10 (3,8) 19 (18,6) 20 (19,8) 17 (18,5) 19 (18,6)
3 – Neutro 12 (12,1) 37 (14,2) 17 (16,7) 6 (5,9) 25 (27,2) 12 (11,8)
4 – Discordo 44 (44,4) 26 (10,0) 36 (35,3) 40 (39,6) 30 (32,6) 18 (17,6)
5 – Discordo plenamente 17 (17,2) 142 (54,6) 12 (11,8) 8 (7,9) 9 (9,8) 23 (22,5)
6. Não estou particular- 1 – Concordo plenamente 6 (6,1) 7 (2,7) 8 (7,8) 8 (7,9) 12 (13,2) 13 (12,7)
mente preocupado 2 – Concordo 8 (8,1) 40 (15,4) 14 (13,7) 11 (10,9) 24 (26,4) 12 (11,8)
com o facto de vir a 3 – Neutro 9 (9,1) 35 (13,5) 7 (6,9) 5 (5,0) 32 (35,2) 12 (11,8)
ter um cancro. 4 – Discordo 34 (34,3) 19 (7,3) 48 (47,1) 55 (54,5) 20 (22,0) 23 (22,5)
5 – Discordo plenamente 42 (42,4) 159 (61,2) 25 (24,5) 22 (21,8) 3 (3,3) 42 (41,2)
197
7. A ideia de morte 1 – Concordo plenamente 9 (9,2) 3 (1,2) 19 (18,8) 15 (16,3) 29 (28,4)
08 Movimentos Cap. 8.qxp_Layout 1 11/02/17 15:48 Page 197
17 (16,7)
nunca me perturba. 2 – Concordo 10 (10,2) 15 (5,8) 19 (18,6) 20 (19,8) 26 (28,3) 15 (14,7)
3 – Neutro 10 (10,2) 66 (25,4) 32 (31,4) 13 (12,9) 25 (27,2) 27 (26,5)
4 – Discordo 44 (44,9) 30 (11,5) 29 (28,4) 42 (41,6) 19 (20,7) 19 (18,6)
5 – Discordo plenamente 25 (25,5) 146 (56,2) 5 (4,9) 7 (6,9) 7 (7,6) 12 (11,8)
8. Muitas vezes sinto-me 1 – Concordo plenamente 15 (15,2) 4 (1,5) 12 (11,9) 17 (16,8) 14 (15,2) 22 (21,6)
mal quando o tempo 2 – Concordo 41 (41,4) 12 (4,6) 29 (28,7) 36 (35,6) 16 (17,4) 27 (26,5)
passa depressa. 3 – Neutro 14 (14,1) 40 (15,4) 19 (18,8) 13 (12,9) 29 (31,5) 16 (15,7)
4 – Discordo 16 (16,2) 47 (18,1) 30 (29,7) 21 (20,8) 25 (27,2) 18 (17,6)
5 – Discordo plenamente 13 (13,1) 157 (60,4) 11 (10,9) 14 (13,9) 8 (8,7) 19 (18,6)
▲
Viver a morte em Portugal
Portugueses Bangladeshianos Brasileiros Cabo-verdianos Chineses Guineenses
▲
(n = 99) (n = 262)* (n = 105) (n = 102) (n = 97) (n = 104)
9. Tenho medo de vir 1 – Concordo plenamente 54 (55,1) 5 (1,9) 45 (44,6) 53 (52,5) 8 (8,7) 58 (56,9)
a ter uma morte 2 – Concordo 30 (30,6) 9 (3,5) 40 (39,6) 25 (24,8) 29 (31,5) 29 (28,4)
dolorosa. 3 – Neutro 6 (6,1) 28 (10,8) 7 (6,9) 7 (6,9) 27 (29,3) 8 (7,8)
4 – Discordo 4 (4,1) 21 (8,1) 7 (6,9) 14 (13,9) 17 (18,5) 3 (2,9)
5 – Discordo plenamente 4 (4,1) 197 (75,8) 2 (2,0) 2 (2,0) 11 (12,0) 4 (3,9)
10. O tema da vida para 1– Concordo plenamente 8 (8,1) 8 (3,1) 7 (6,9) 9 (8,9) 3 (3,3) 19 (18,6)
13 (13,1) 10 (3,8) 9 (8,9) 25 (24,8) 9 (9,9) 19 (18,6)
Movimentos, Espíritos e Rituais
198
11. Assusta-me vir a ter 1 – Concordo plenamente 27 (27,3) 3 (1,2) 23 (22,8) 26 (25,7) 5 (5,4) 37 (36,3)
08 Movimentos Cap. 8.qxp_Layout 1 11/02/17 15:48 Page 198
12. Frequentemente 1 – Concordo plenamente 25 (25,3) 6 (2,3) 19 (18,8) 19 (18,8) 19 (20,7) 25 (24,5)
penso que a vida é 2 – Concordo 42 (41,4) 24 (9,2) 33 (32,7) 49 (48,5) 28 (30,4) 32 (31,4)
realmente curta. 3 – Neutro 11 (11,1) 32 (12,3) 20 (19,8) 8 (7,9) 27 (29,3) 17 (16,7)
4 – Discordo 10 (10,1) 14 (5,4) 20 (19,8) 20 (19,8) 13 (14,1) 16 (15,7)
5 – Discordo plenamente 11 (11,1) 184 (70,8) 9 (8,9) 5 (5,0) 5 (5,4) 12 (11,8)
Portugueses Bangladeshianos Brasileiros Cabo-verdianos Chineses Guineenses
(n = 99) (n = 262)* (n = 105) (n = 102) (n = 97) (n = 104)
13. Fico perturbado 1 – Concordo plenamente 6 (6,1) 20 (7,7) 5 (5,0) 7 (6,9) 3 (3,3) 19 (18,6)
quando as pessoas 2 – Concordo 20 (20,2) 14 (5,4) 11 (10,9) 26 (25,7) 9 (9,8) 14 (13,7)
falam da III Guerra 3 – Neutro 30 (30,3) 20 (7,7) 51 (50,5) 26 (25,7) 31 (33,7) 26 (25,5)
Mundial. 4 – Discordo 20 (20,2) 13 (5,0) 21 (20,8) 33 (32,7) 27 (29,3) 16 (15,7)
5 – Discordo plenamente 23 (23,2) 193 (74,2) 13 (12,9) 9 (8,9) 22 (23,9) 27 (26,5)
14. Horroriza-me ver 1 – Concordo plenamente 14 (14,1) 6 (2,3) 10 (9,9) 14 (13,9) 4 (4,3) 18 (17,6)
um cadáver. 2 – Concordo 24 (24,2) 27 (10,4) 18 (17,8) 21 (20,8) 16 (17,4) 19 (18,6)
3 – Neutro 14 (14,1) 18 (6,9) 22 (21,8) 10 (9,9) 31 (33,7) 18 (17,6)
4 – Discordo 25 (25,3) 11 (4,2) 34 (33,7) 41 (40,6) 24 (26,1) 24 (23,5)
5 – Discordo plenamente 22 (22,2) 198 (76,2) 17 (16,8) 15 (14,9) 17 (18,5) 23 (22,5)
199
15. Penso que o futuro 1 – Concordo plenamente 4 (4,0) 10 (3,8) 16 (15,8) 13 (12,9) 9 (9,8) 13 (12,7)
08 Movimentos Cap. 8.qxp_Layout 1 11/02/17 15:48 Page 199
não me trará nada 2 – Concordo 21 (21,2) 10 (3,8) 19 (18,8) 25 (24,8) 13 (14,1) 21 (20,6)
que eu receie. 3 – Neutro 20 (20,2) 30 (11,5) 27 (26,7) 24 (23,8) 46 (50,0) 21 (20,6)
4 – Discordo 35 (35,4) 10 (3,8) 31 (30,7) 31 (30,7) 16 (17,4) 34 (33,3)
5 – Discordo plenamente 19 (19,2) 200 (76,9) 8 (7,9) 8 (7,9) 8 (8,7) 13 (12,7)
* amostra superior com vista à articulação com o estudo «Avaliação do Acesso aos Cuidados de Saúde e Nível de Saúde dos Imigrantes do Subcontinente Indiano».
Fonte: Inquérito de Saúde e Perspetivas perante a Morte, 2013-
Viver a morte em Portugal
08 Movimentos Cap. 8.qxp_Layout 1 11/02/17 15:48 Page 200
(quadro 8.5). Uma grande parte concordou com as afirmações «Não fico
nervoso quando as pessoas falam de morte», à exceção dos banglades-
hianos. Por outro lado, verificou-se uma maior ansiedade perante uma
morte dolorosa. A maioria concordou com a afirmação «Tenho medo
de vir a ter uma morte dolorosa», à exceção dos bangladeshianos e dos
chineses. Houve também uma grande ansiedade perante os itens que co-
locavam a hipótese de ter doenças que são vistas como uma causa de
morte iminente. A maioria discordou da afirmação «Não estou particular-
mente preocupado com o facto de vir a ter um cancro», à exceção dos
chineses, e concordou com a afirmação «Assusta-me vir a ter um ataque
cardíaco», à exceção dos bangladeshianos e dos chineses. Os participantes
demonstraram ansiedade perante o medo de que a vida chegue ao fim, à
exceção da maior parte dos bangladeshianos. A maioria concordou com
a afirmação «Muitas vezes sinto-me mal quando o tempo passa depressa»
e com a afirmação «Frequentemente penso que a vida é realmente curta».
200
Quadro 8.6 – Associação não-ajustada e ajustada entre a ansiedade perante a morte e as características sociodemográficas,
de saúde e atitudes perante a morte
Portugal, Bangladesh, Brasil, B) = A), ajustada D) = C), ajustada E) = D), ajustada
A) Análise C) = B), ajustada F) = E)
Cabo-Verde, China R2 para socio- para MHI + quali- para atitudes
simples para religião Método stepwise
e Guiné Bissau demográficas dade vida perante morte
Idade, anos 0,022 (0,545) < 0,001 0,033 (0,414) –0,046 (0,234) –0,061 (0,114) –0,068 (0,078)
Sexo masculino –0,262 (< 0,001) 0,069 –0,260 (< 0,001) –0,154 (< 0,001) –0,145 (< 0,001) –0,144 (< 0,001) –0,167 (< 0,001)
Anos de educação –0,073 (0,046) 0,005 –0,045 (0,236) –0,005 (0,895) 0,012 (0,747) 0,003 (0,946)
Casado vs. outro (ref.) –0,048 (0,193) 0,002 –0,078 (0,042) 0,042 (0,262) 0,046 (0,219) 0,035 (0,347)
Religião
Católica 0,280 (< 0,001) 0,185 -- 0,278 (< 0,001) 0,269 (< 0,001) 0,228 (< 0,001) 0,320 (< 0,001)
Outra cristã –0,044 (0,268) -- –0,047 (0,298) –0,038 (0,400) –0,056 (0,205)
Muçulmana –0,186 (< 0,001) -- –0,145 (0,019) –0,139 (0,036) –0,105 (0,142)
Budista –0,068 (0,075) -- –0,071 (0,082) –0,072 (0,076) –0,055 (0,175)
201
Outra/sem religião (ref.) 1,00 -- 1,00 1,00 1,00 1,00
08 Movimentos Cap. 8.qxp_Layout 1 11/02/17 15:48 Page 201
Grau de praticante 0,006 (0,879) <0,001 -- –0,029 (0,475) –0,024 (0,546) –0,046 (0,250) –0,091 (0,007)
Possível sofrimento
0,030 (0,419) 0,001 -- – 0,059 (0,095) 0,053 (0,126)
psicológico (MHI)
Qualidade de vida: boa/ –0,211 (< 0,001) 0,045 -- – –0,080 (0,047) –0,051 (0,202)
muito boa vs. outra (ref.)
Ter alguém presente –0,005 (0,898) < 0,001 -- -- -- 0,035 (0,335)
Ter cerimónia preparação –0,040 (0,279) 0,002 -- -- -- 0,012 (0,761)
Ter cerimónia fúnebre 0,319 (< 0,001) 0,101 -- -- -- 0,147 (< 0,001) 0,174 (< 0,001)
Doação de órgãos 0,276 (< 0,001) 0,076 -- -- – 0,053 (0,179)
R2 0,075 0,208 --0,219 0,247 0,232
Ref, categoria de referência; 1escala de 0 (sem religião) a 5 (muito praticante). *O país de origem está fortemente correlacionado com a religião e por isso não foi
incluída na análise de regressão múltipla, tal como o tempo de residência.
Fonte: Inquérito de Saúde e Perspetivas perante a Morte, 2013.
Viver a morte em Portugal
08 Movimentos Cap. 8.qxp_Layout 1 11/02/17 15:48 Page 202
Discussão
O medo da morte e de morrer pode ser universal, mas os indivíduos
diferem nas suas reações emocionais à morte e ao morrer. Esta pesquisa
teve como principais objetivos identificar os fatores associados às atitudes
face à morte em portugueses e imigrantes adultos naturais do Bangladesh,
Brasil, Cabo-Verde, China e Guiné-Bissau, residentes na cidade de Lisboa.
Os principais resultados evidenciaram uma variação entre os grupos no
que concerne às atitudes perante a própria morte e aos níveis de ansie-
dade perante a morte no geral.
Em Portugal, desde 1993, é necessário deixar por escrito a vontade in-
dividual de não doar órgãos após a morte. Este estudo mostrou que os
brasileiros e os portugueses eram os mais favoráveis à doação de órgãos,
e, os bangladeshianos e os chineses, os menos favoráveis. A opinião fa-
vorável da população portuguesa já tinha sido verificada num estudo
prévio (DECO 2009). Outros estudos indicam que a doação de órgãos
permanece um tema controverso no Islão. Sharif e colaboradores (2011),
num inquérito internacional realizado junto de muçulmanos residentes
em países ocidentais, identificaram como principais fatores associados
negativamente à doação de órgãos a interpretação das escrituras religiosas
(o Alcorão e o Hadith) e os conselhos da mesquita local. Para uma me-
lhor compreensão das incertezas relacionadas com religião/fé e sua va-
riação inter e intragrupos étnicos, o tradicional foco nas barreiras asso-
ciadas ao conhecimento e atitudes necessita de ser complementado com
variáveis associadas aos serviços de saúde (Morgan et al. 2013). Já a ideia
tradicional na China de que o corpo pertence à família tem sido descrita
como uma forte resistência à doação de órgãos (Wu e Tang 2009).
Os portugueses, seguidos dos brasileiros, foram os que tiveram uma
posição mais favorável à eutanásia, e, os bangladeshianos, os menos.
Num inquérito realizado em 1998 pelo Instituto de Ciências Sociais, os
dados apontavam também para uma maioria da população portuguesa
ser favorável à eutanásia (Garcia 2001).
202
08 Movimentos Cap. 8.qxp_Layout 1 11/02/17 15:48 Page 203
A ansiedade perante a morte foi mais elevada nos portugueses, nos cabo-
-verdianos, nos guineenses e nos brasileiros, do que nos chineses e bangla-
deshianos. Em geral, as mulheres e indivíduos católicos apresentaram ní-
veis mais elevados de ansiedade perante a morte, assim como indivíduos
que manifestaram o desejo de ter uma cerimónia fúnebre. Um maior grau
de religiosidade foi um fator protetor da ansiedade perante a morte. Os
resultados de pesquisas anteriores indicam que os preditores comuns da
ansiedade perante a morte – sexo, idade e religiosidade – verificados em
sociedades ocidentais com amostras predominantemente cristãs se man-
têm em sociedades orientais com amostras muçulmanas (Suhail e Akram
2002). Apesar de vários estudos referirem que a religião ajuda a reduzir a
ansiedade perante a morte, a associação entre religiosidade e ansiedade
perante a morte permanece inconclusiva (Ka-Ying Hui e Fung 2008).
As principais vantagens a mencionar encontram-se na metodologia
do estudo e na amostra daí resultante. O facto de o questionário ter sido
aplicado através de inquiridores de acesso privilegiado à população-alvo
facilitou o acesso à população em estudo, assim como a identificação
linguística e cultural. A taxa de participação obtida foi bastante elevada,
o que permitiu assegurar a heterogeneidade da população entrevistada.
No entanto, o tamanho amostral por comunidade foi reduzido, à exce-
ção dos bangladeshianos, não permitindo a representatividade da amos-
tra, nem análises por subgrupos para explorar diferenças de género e
idade. A variância total explicada para o fenómeno da ansiedade perante
a morte foi aproximadamente 25%, sugerindo que existem outros predi-
tores a avaliar no futuro.
Conclusão
O conhecimento sobre as atitudes perante a morte e o processo de
morte em imigrantes em Portugal é escasso. Este estudo adicionou co-
nhecimento previamente inexistente e permitiu identificar lacunas no
conhecimento que implicarão um esforço por parte de investigadores,
profissionais de saúde e policy-makers para preencher. Um maior enten-
dimento das variações culturais e religiosas possibilita o desenvolvimento
de programas de promoção de saúde adaptados às populações. Foram
por isso identificadas como áreas futuras de investigação: 1) Identificar e
compreender as diferenças culturais e religiosas; 2) Analisar as diferentes
formas de gestão das emoções e da morte; 3) Explorar o peso dos fatores
étnicos e religiosos, por um lado, e sociais, por outro, relativamente a
procedimentos médicos como doação de órgãos, eutanásia e suporte de
203
08 Movimentos Cap. 8.qxp_Layout 1 11/02/17 15:48 Page 204
Agradecimentos
Este estudo foi desenvolvido no âmbito do projeto «A Invisibilidade
da Morte nas Populações Migrantes em Portugal: Vulnerabilidades e Ges-
tões Transnacionais», financiado pela Fundação para a Ciência e a Tec-
nologia (PTDC/CS-ANT/102862/2008), em articulação com o projeto
«Avaliação do Acesso aos Cuidados de Saúde e Nível de Saúde dos Imi-
grantes do Subcontinente Indiano» financiado pela Direção-Geral de
Saúde. Os autores gostariam de agradecer a toda a equipa de investigação
e especialmente a Andreia Silva Costa, Clara Saraiva, Irene Rodrigues,
José Mapril, Mário Carreira, Max Ruben Ramos e Simone Frangella. Os
autores estão gratos a todos os participantes pela colaboração no estudo
e às associações de imigrantes pela facilitação das instalações para a rea-
lização dos inquéritos. Por fim, gostariam de agradecer à equipa de in-
quiridores e colaboradores, nomeadamente à doutora Marta Godinho
pela colaboração no desenvolvimento do questionário e à doutora Ce-
cília Coccola no apoio à validação da base de dados.
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Capítulo 9
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Brasil
20%
Ucrânia
11%
Outros
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Cabo Verde
São Tomé 10%
e Príncipe
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9%
Moldávia
3% China
4%
Reino Unido Guiné-Bissau Angola
4% 4% 5%
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Foco e metodologia
A morte é uma dimensão onde a abordagem transnacional é obriga-
tória, em articulação com o debate crítico sobre o sentido do «transna-
cional», dado que contempla uma intensa circulação, não apenas de bens
materiais e riqueza, mas também de universos significativos e simbólicos
que circulam juntamente com os bens e as pessoas: o corpo, os espíritos
e as relações com o outro mundo que as pessoas trouxeram para a diás-
pora.
A metodologia utilizada no presente estudo consistiu, em primeiro
lugar, na pesquisa bibliográfica em bases de dados certificadas de publi-
cações científicas como EBSCO Host, Google Académico, Science Di-
rect, Scopus, Springer Link, ISI Web of Knowledge, entre outras, bem
como em sítios da internet que regularmente publicam informação rela-
cionada com as causas de morte em Portugal, como são os casos do INE
e do SEF. Uma vez verificado que os dados relativos às principais causas
de morte de pessoas com naturalidade nos países em estudo não se en-
contravam publicados, foi solicitada a informação pretendida ao INE,
uma vez que apesar de não se encontrar divulgada, a informação referida
teria decerto sido recolhida, já que consta no certificado de óbito (CO)
com vista ao seu preenchimento. Os dados estatísticos utilizados repor-
tam-se aos óbitos de imigrantes oriundos do Bangladesh, Brasil, China,
Cabo Verde e Guiné-Bissau, residentes em Portugal num período situado
entre 2008 e 2013, período de cinco anos, para análise do número de
óbitos e causas principais.
Foi ainda efetuado o contacto telefónico com o Gabinete de Relações
Internacionais, que compila e divulga informação relativa a acordos e
tratados de vários âmbitos – incluindo o que concerne ao transporte de
cadáveres – e com as Embaixadas em Portugal dos países envolvidos no
estudo. Foi posteriormente realizada uma análise documental de con-
teúdo da documentação recolhida.
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Bangladesh Brasil Cabo Verde China Guiné-Bissau
Homens Mulheres
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Os dados em análise nos gráficos 9.5 a 9.8 são apenas referentes aos
anos de 2009 a 2011, uma vez que foram apenas estes os dados disponi-
bilizados pelo INE com referência às causas de morte. Não se registaram
valores reportados referentes a residentes em Portugal naturais do Ban-
gladesh, que morreram em território português, daí não constarem na
análise que se segue.
Como se pode verificar na distribuição das principais causas de morte
em Portugal de pessoas naturais do Brasil, estas mantiveram-se relativa-
mente homogéneas no período de 2009 a 2011, mantendo-se em todos
os anos as duas principais causas de morte: tumores e doenças do apare-
lho circulatório. No ano de 2010, verificou-se uma maior expressão da
maioria das causas em análise, quando comparado com os anos de 2009
e 2011. No ano de 2011, as duas principais causas foram, respetivamente,
as doenças do aparelho circulatório (103 óbitos) e os tumores (74 óbitos),
bastante semelhante ao cenário vivido em Portugal. A destacar ainda a
grande expressão dos acidentes externos em todos os anos em análise,
assumindo o 4.º lugar.
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Brasil Cabo Verde China Guiné-Bissau
2011 2010
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Discussão
Tal como o uso de serviços de saúde por imigrantes tem vindo a re-
presentar um desafio internacional de saúde pública e política (Hargrea-
ves et al. 2006; Ku e Matani 2001; Carballo, Divino e Zeric 1998), mais
especificamente em matéria de acesso aos mesmos (Hjern et al. 2001; Po-
litzer et al. 2001; Sundquist 2001; Stronks et al. 2001; Goddard e Smith
2001), o aumento da população imigrante em Portugal tem vindo a cons-
tituir um desafio ao Sistema Nacional de Saúde (SNS) Português (Dias,
Severo e Barros 2008; WHO 2010). Urge deste modo a necessidade de
compreender a melhor forma de garantir o acesso aos serviços de saúde
e de como prestar assistência adequada aos imigrantes, particularmente
aos mais recentes que ainda se encontram sem documentação (DuBard
e Massing 2007; Wolff et al. 2005; Leduc e Proulx 2004). Para estes, o de-
safio adicional é o de garantir que compreendem o SNS Português (Har-
greaves et al. 2006).
Compreender as questões relacionadas com a saúde dos imigrantes e
a sua utilização dos serviços de saúde é um desafio constante devido a
falhas em bases de dados, heterogeneidade das populações imigrantes e
incerteza acerca de como a migração afeta a saúde. Embora as pessoas
que migram sejam muitas vezes mais saudáveis do que os residentes de-
vido aos vários processos de seleção que enfrentam (Llacer et al. 2007;
Razum, Zeeb e Rohrman 2000), os migrantes são normalmente expostos
a vários riscos no que se refere à sua saúde. A vulnerabilidade associada
a mudar-se para um ambiente desconhecido fundamenta o acesso fulcral
a serviços de prevenção e de cuidados de saúde como uma resposta de
saúde das sociedades de acolhimento (Politzer et al. 2001; Lenz, Bauer-
-Dubau e Jelinek 2006; Kandula, Kersey e Lurie 2004).
A interpretação que decorre da análise efetuada com os dados existen-
tes nas estatísticas nacionais deve ser acautelada, na medida em que a
análise da variável naturalidade pode agrupar pessoas cujos pais foram
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Conclusão
Os resultados apresentados sugerem a necessidade de uma abordagem
específica à comunidade natural da Guiné-Bissau, na medida em que a
sua principal causa de morte consiste nas doenças infecciosas. Este facto
reveste-se de importância, na medida em que Portugal realizou nas últi-
mas décadas um caminho evolutivo no domínio da saúde em que os ga-
nhos alcançados se traduziram em indicadores de saúde notórios, como
o facto de as causas de morte por doenças infeciosas se encontrarem em
sexto lugar (INE 2011). A situação descrita é reveladora de que Portugal
detém no SNS a capacidade de evitar mortes por doenças infecciosas,
pelo que assim poderá equacionar-se que as mortes registadas por doen-
ças infecciosas poderão beneficiar da prestação de cuidados do SNS, su-
gerindo a necessidade de ajustar a abordagem dos profissionais de saúde
a esta comunidade.
Sugere-se a realização de outros estudos direcionados para a análise de
cada comunidade de forma isolada a nível das suas diferentes caracterís-
ticas, que permitam conhecer o estado de saúde da população imigrante
em conjunto com outros estudos que proponham modelos de interven-
ção ajustados às necessidades das diferentes comunidades.
230
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10 Movimentos Cap. 10.qxp_Layout 1 11/02/17 15:49 Page 233
Parte IV
O lugar e os lugares da morte
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10 Movimentos Cap. 10.qxp_Layout 1 11/02/17 15:49 Page 235
António Medeiros
Capítulo 10
235
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Conversas «retranqueiras»
Na ida a Ribadavia, antes referida, falei com colegas do colóquio a
propósito de alguns dos temas que toco neste artigo. Ribadavia é uma
pequena vila situada junto do rio Minho e uma das cabeças de concelho
da província de Ourense, sendo famosa pelos vinhos de denominação
«Ribeiro» produzidos no seu termo. Até poucos anos antes, para além
da viticultura, muitos dos seus habitantes encontravam trabalho nas fá-
bricas de ataúdes, numerosas no concelho, e que chegaram a abasteceram
o mercado espanhol de uma forma destacada durante a maior parte do
século XX.1 À volta da mesa, na esplanada onde nos reunimos ao fim da
tarde, todos tínhamos referências nítidas de um tipo de humor e deter-
1
Ver, por exemplo http://www.farodevigo.es/portada-ourense/2014/01/03/vieja-fa-
brica-ataudes-ribadavia-reabre/941494.html,; conferir também http://ccaa.elpais.com/
ccaa/2012/10/16/galicia/1350411395_273940.html (acedidos em 3-3-2015).
236
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2
Conferir http://ccaa.elpais.com/ccaa/2012/10/16/galicia/1350411395_ 273940.html
(acedido a 11-3-2015).
237
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3
Ver http://www.funergal.com/not.php?id=95, (acedido a 6/03/2015). A designação
deste evento empresarial é «Funergal – Feria Internacional de Productos y Servicios Fu-
nerarios». Ver uma crónica curiosa de Anxel Vence, feita a propósito da realização da
6.ª edição desta feira http://www.farodevigo.es/opinion/2010/01/21/galicia-da-color-di-
funto/404609.html (acedido a 10/03/2015).
238
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Com alguma ironia poderíamos dizer que a par com esta comparação
com o Antigo Egito, outros casos poderiam ter sido invocados... Assim,
por exemplo, os Merina de Madagáscar poderiam aparecer como com-
petidores sérios dos galegos (ver Bloch 1982). Mas também a Argentina
e o México – contextos a vários títulos mais afins da Galiza – poderiam
ser chamados a capítulo na singular disputa de proeminência que Fran-
cisco Narla propõe (cf. Lomnitz 2005 ou Eloy Martínez 1995).5 As rela-
ções da Galiza com o México e com a Argentina são desde há muito
tempo intensas, nomeadamente nos séculos XIX e XX, tempo em se cu-
nharam as referências que ainda hoje servem para fazer a representação
da cultura nacional galega.
Na verdade, foram discretos os contributos vindos do México, onde
a presença de galegos nunca foi massiva ao contrário do que aconteceu
em Cuba ou na Argentina.6 Já no caso da Argentina, tantas vezes dita a
«5.ª província galega», os fluxos da emigração galega ali dirigida foram
muito intensos em diferentes períodos. Também sobremaneira impor-
tante foi o papel de Buenos Aires na história das reivindicações galeguis-
tas, desde datas precoces, sob os avatares mais diversos (cf., generica-
mente, Nuñez Seixas 1995). Nestes trânsitos, a Argentina e a Galiza
sequer estão ausentes passes muito expressivos do que, noutro contexto,
4
O título da entrevista conduzida por Patricia Hermida é o seguinte «Francisco Narla:
Sólo Galicia tiene este culto a la muerte: la vive com naturalidad» (El Correo Gallego,
2-8-2009).
5
Sugerirei mais adiante que práticas e crenças respeitantes similares às da Galiza são
afinal registáveis no Norte de Portugal (ver Saraiva 1994, por exemplo); aqui, porém, não
sofreram os destinos «objectivados» – cf. Handler 1988 – à escala nacional que lhes foram
vinculados na Galiza.
6
Ainda que ali no México se tivessem, por exemplo, publicado importantes revistas
galeguistas como Saudade (1942-1953) ou Vieiros (1955-1968) ou o assertivo volume Pre-
sencia de Galicia en Mexico (1954)
239
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7
Conferir, a propósito da «vida política» do cadáver de Castelao, um conjunto de do-
cumentos expressivos reunidos numa peça do jornal Faro de Vigo http://www. farode-
vigo.es/sociedad-cultura/2014/06/24/pedradas-lagrimas/1047259.html (acedido a 13-3-
-2015). Notaríamos os importantes investimentos que foram feitos com o seu funeral em
Buenos Aires, as disputas ferozes e as manifestações que o traslado dos seus restos acen-
deu, em 1984. Ver o impressivo «Traslado do Cadaleito de Castelao à Galiza» https:/
/www.youtube.com/watch?v=LX6RGc9PtBA (acedido a 31/03/2016), ou o modo como
a sua tumba no Panteón Galego continua a ser um lugar central da vida política na Galiza
contemporânea, ainda hoje (cf. Medeiros 2013).
8
Porém, aquilo que quero destacar é a semelhança essencial que os processos de na-
cionalização da cultura observam no seu desdobramento.
240
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9
Algo que foi proposto com mais intencionalidade e clareza de propósitos a partir
dos anos 1920, sendo contributos destacáveis as propostas etnográficas de Vicente Risco
(1884-1963) e a obra gráfica genial de A. R. Castelao. A propósito de Castelao diz o já ci-
tado Paz Gago «Na sua estância em Paris em começos dos anos vinte, idealiza Castelao
um Teatro de Arte para a Galiza, fundamentado nos complexos elementos para-teatrais
que encerra a tradição folclórica galega: o Carnaval ou Entrudo, as lendas sobre o mundo
do além e os complexos rituais e crenças com ele relacionados, prantos e velórios, a bru-
xaria...» (Paz Gago 2000, 166; comparar com Eksteins 1989). Foram truncados estes pla-
nos de Castelao, nomeadamente pela Guerra Civil, mas eles são especialmente curiosos
como planos de difusão de cultura galega de massas onde os motivos necrófilos do fol-
clore galego têm tão grandes incidências.
10
Com contributos já muito nítidos, entre os quais se destacam os do historiador Ma-
nuel Múrguia (1833-1923).
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podem ser particularmente fascinantes. Isto foi algo com que me con-
frontei por diversas vezes em Compostela, onde muita da gente com
quem podia falar tinha opiniões aparentemente esclarecidas sobre o as-
sunto. A prazo fui percebendo estarem aquelas opiniões informadas mui-
tas vezes por referências eruditas, com as quais só mais tarde me cheguei
a familiarizar.
A propósito da morte e das crenças com ela correlacionadas podem
ser encontradas intervenções de antropólogos na imprensa galega, e tam-
bém programas de televisão e abundantes aproximações cinematográficas
da Santa Companhas, etc. Não faltam tão-pouco entradas específicas na
Wikipedia, muito bem desenvolvidas e ilustradas, desenvolvimentos que
aparentemente não têm par noutras línguas, como «A morte na cultura
popular galega» ou «A morte na literatura popular galega». Estas apro-
priações eruditas tão frequentes darão conta de como na Galiza se vão
difundindo referências de nacionalização, que também são, afinal, como
sugeria Claudio Lomnitz a propósito do México, propostas que «nacio-
nalizam» a morte (cf. Lomnitz, op. cit.).
Nestas várias referências encontramos proposto no fim de contas um
contraponto das pertenças localistas que as velhas crenças na procissão
imaginária dos coparoquianos mortos sublinhavam. Este entendimento
de base localista fora muito enfatizado por Lisón Tolosana, ainda em
1998, quando já duas décadas de um vigoroso processo autonómico ti-
nham decorrido, vinculando representações da cultura nacional galega
através do da Galiza toda. Então, de facto, havia muito tempo que uma
Santa Compaña galega fora definida e podia ser reconhecida por gente
de todas as províncias: aprendida de novo por uns e, eventualmente, de-
nominada desta maneira por outros pela primeira vez. Este processo, afi-
nal, bem poderia ser descrito como dimensão do entretecimento de uma
«teia sentidos» à escala da Galiza – isto se quisermos usar a imagem que
Clifford Geertz escolheu para definir o que entendia por cultura (cf.
Geertz 1973, 5).
Outras políticas
Em 1992, na primeira das freguesias onde fiz trabalho de campo no
Minho, ofereceram-me uma assinatura perene de um pequeno jornal e
também a coleção dos números até então saídos. Era um mensário de
poucas páginas, editado por uma das muitas associações culturais locais
que surgiram em Portugal depois do 25 de Abril. A associação em causa
reunira a maior parte dos poucos jovens da terra que faziam estudos mé-
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Que é escassa no caso do Minho (Pereira 1965; Saraiva 1994); pelo menos é posta
a par da enorme abundância de aproximações disponíveis na Galiza (ver Mariño Ferro
s. d.; Lema Bendaña 1990-1991) .
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Um regresso
No dia 31 de maio de 2014, recebi uma chamada de telemóvel numa
rua de Lisboa, quando ia abrir a porta do carro à minha filha mais nova.
Estávamos ao sol, fora da sombra dos prédios, e o diálogo foi curto; eu
só tartamudeei fórmulas e fiz uma pergunta. Ao acabar a chamada o meu
interlocutor disse: «ó António, já não temos cá o Manuel do Crespo!».
Fiquei em lágrimas e correram-me na cabeça muitas imagens de há mais
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Nos finais dos anos 90, fizera aquela pergunta ingrata a Manuel depois
de ouvi-lo polemizar sobre os planos vagos do pároco local de construir
uma capela mortuária na freguesia, uma obra de facto concretizada pou-
cos anos depois, como referi. No nosso encontro recente, acontecido no
início de 2015, face à minha surpresa por o velório não ter sido feito em
casa, Manuel obrigou-se a discorrer acerca dos vários motivos que tinham
arrastado a mudança de opiniões tão patente. Essa foi uma longa con-
versa, em que eu também falei muito, justificando a Manuel os meus in-
teresses com minúcia. Tentei dar-lhe conta do que tinha visto e lido sobre
a Galiza, onde mudanças similares tinham acontecido havia mais tempo,
e onde capelas mortuárias paroquiais ou tanatórios públicos e privados
eram comuns. Disse-me, então, Manuel que, curiosamente, sabia que o
padre da sua terra tinha ido viajar pela Galiza para encontrar inspiração
para a construção da «Casa da Paz»...
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Ottavia Salvador
Capítulo 11
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I
O título «Não vão lá com flores» remete para uma expressão de Ma-
nash, um homem de 43 anos, nascido no distrito de Barisal no Bangla-
desh e emigrado para a Europa em 1986. Depois de viver na Alemanha
e na Suíça, mudou-se para Itália em 1989, onde se casou com uma mu-
lher italiana em 2003, e com quem teve três filhos. Atualmente vivem
todos na zona de terra firme de Veneza. O diálogo com ele começou em
2012 através de uma pesquisa sobre as migrações familiares.
Entrevistei Manash na qualidade de presidente de uma associação so-
ciocultural para entender se esta era ativa nas práticas necessárias para o
reagrupamento familiar. Não o era, mas a unidade familiar e a sua di-
mensão legislativa, o facto de ser um direito, durante aquela primeira
conversa, provocaram nele muitas perguntas sobre a sua própria história
migratória e familiar, marcando inesperadamente as suas palavras com
uma grande emoção.
«Quem sou eu?», «Onde é que me sinto em casa?», perguntou-se na-
quele dia, chegando lentamente a uma resposta sobre a sua sedentariza-
ção, evocada pela pergunta seguinte: «Quando eu morrer, onde serei en-
terrado?» O lugar do «sentir-se em casa» e o lugar onde imaginava ser
enterrado estavam, nas suas palavras, intimamente correlacionados.1
Pensar no seu Estado-nação de origem foi a primeira forma de buscar
uma resposta, distinguindo-se dos seus filhos que, nascidos em Itália, na
sua opinião, podiam afirmar ser italianos com mais segurança, e de outros
que podiam dizer com convicção: «Eu sou bangladeshiano.» O que
podia dizer ele, com 43 anos, após ter vivido vinte e sete anos na Europa,
a maior parte da sua vida, e casado com uma mulher italiana?
Pensar no seu status de «imigrado», «estrangeiro», foi a segunda forma
de buscar uma resposta, sugerida por aquele «dizem-me [que]...» já não
sou bangladeshiano no Bangladesh porque agora sou italiano, ainda não
1
Fragmentos extensos das entrevistas no apêndice deste texto.
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sou italiano em Itália, mesmo se for cidadão, porque serei sempre ban-
gladeshiano. «E então quem és tu?» relançou a si mesmo, sugerindo que
atrás do espelho do «quem sou eu?» também estivessem os outros a in-
terrogá-lo sobre a sua «identidade». Continuou resignado a que não hou-
vesse resposta, aceitando o destino de quem «vive fora de casa» como
ele e que se pode sentir «presente» apenas num nómada «onde», em
lugar nenhum, porque nem aqui nem lá, ou talvez no meio, entre estes
dois pontos cardeais.
Só uns minutos depois chegou a uma resposta, na forma de uma de-
cisão pensada já há algum tempo sobre viver e ficar em Itália, uma esco-
lha profundamente ligada à filiação. A última vez que voltou ao Bangla-
desh logo avisou todos, os seus pais e os parentes, que não ia voltar a
viver lá, que tinha decidido ficar no seu país de imigração, porque se lhe
acontecesse algo, se morresse em Itália, os seus filhos não poderiam ir ao
Bangladesh com flores, à sua tumba, talvez conseguissem ir uma vez na
vida e nada mais. Se tivessem de lhe dizer algo, confiar-lhe um momento
difícil da vida, como iam fazer, tão longe? Ficar em Itália tornava-lhes
possível ir ao cemitério «dizer que...».
Os seus olhos naquele momento tinham-se enchido de silêncio e co-
moção; mostrava-os e escondia-os porque incorporavam a intimidade
de um monólogo demasiado intenso. O «onde serei enterrado» revelava-
-se uma questão privada e ao mesmo tempo pública, penetrava a sua voz,
tornando-a vibrante, quase como se fosse ao centro dela mesma, de ou-
tras vozes, da terra, e petrificada na imagem da sua tumba; via-se trans-
cendido num dia qualquer dos anos futuros, num cemitério italiano, pe-
rante os seus filhos que vinham trazer-lhe flores.
Retomou a voz concluindo a sua reflexão com uma metáfora que na-
turalizava e apaziguava, de alguma forma, a sua experiência migratória e
a sua futura escolha de enterro: «Há tantas árvores, algumas folhas caem
antes, outras folhas caem depois, é uma coisa natural, algumas árvores
deslocam-se, outras ficam na mesma terra, então, se calhar eu sou uma
destas árvores.»
Um dia, dois anos depois, encontrámo-nos outra vez e ele continuou
o diálogo interrompido, juntando mais sugestões e disse, quase perentó-
rio: «Quero que, comigo, se acabe a imigração.» Os seus filhos não ti-
nham de ser «estrangeiros», ele ter-lhes-ia deixado algo [um nome, um
apelido] e eles não teriam de viver a imigração como ele a viveu, atraves-
sando também momentos de discriminação, a tal ponto que chegou a
pensar que seria melhor «enterrar a sua história já», não «a tirar» da me-
mória e contá-la.
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II
Há também os corpos das pessoas que procuraram um «onde» para a
sua vida e finalmente não o encontraram, morrendo no anonimato, de-
saparecendo do olhar de todos, e sendo depois enterrados à espera de
uma reivindicação da sua existência. A sua morte, frequentemente só in-
dividual e não coletiva porque privada de uma dimensão familiar, co-
munitária ou de grupo, teve lugar «fora», «que não pode ser seja onde
for. [...] É o ângulo morto da liberal inclusão democrática», uma exclusão
na qual tem lugar «a inversão do fazer viver biopolítico num discreto
deixar morrer, social ou real, e porque não, um dia, num fazer morrer
igualmente discreto» (Razac 2005, 67).
«Negro, achado num canal de escoamento numa zona agrícola»: é
uma das muitas notas nas margens do registo geral dos corpos não-iden-
tificados do Estado italiano, e há centenas, e muitas são relativas a emi-
grados-imigrados. «Morte por afogamento presumivelmente após o nau-
frágio de imigrantes clandestinos acontecido em Roccella Jonica.»
«Branco, caucasiano presumivelmente imigrante do Norte de África,
morte por afogamento.» «Estatura mediana, bolsa de cintura cor ama-
ranto com três notas e duas moedas, uma do Chipre, outra grega. Colete
salva-vidas cor de laranja.» «Mulher da Europa de Leste achada num
canal, vestia calças pretas.» «Corpo achado dentro de uma casa abando-
nada, sujeito negro.» «Provável imigrada, conhecida com o nome de
Khira.» «Cadáver de origem africana.» «Raça negra, H 170, 61 kg.» «Pro-
vável indiano.» «Negro, verosimilmente África centro-meridional.» «Sui-
cídio por enforcamento, provável estrangeiro.» «Estrangeiro.» «Náufragos,
negros.» «Náufrago.» «Fenómeno imigratório, morte 24/48 horas antes.»
A falta dos seus nomes e dos seus status, envolve-os numa dimensão
sagrada «no sentido que este termo [sagrado] tem no direito romano ar-
caico: [ou seja] votado à morte» (Agamben 1996, 26). Ficam as palavras
dos resíduos dos seus corpos nus, submetidos a um último poder de no-
meação: negro, raça negra, imigrante, imigrante clandestino, etc. Fica o
silêncio dos corpos falados destas mortes desintegradas.
Continua aquela longa lista estatal de existências não-identificadas
com uma nota, idêntica, repetida: «Fenómeno imigratório, cidadãos ex-
tracomunitários, após o naufrágio de 3 de outubro de 2013, achados 366
corpos.» Este naufrágio aconteceu ao largo da ilha de Lampedusa e teve
uma ressonância mediática e um impacto tão fortes que levaram o pri-
meiro-ministro de então, Enrico Letta, a anunciar que para aqueles mor-
tos se iriam celebrar funerais de Estado, após lhes ter sido concedida uma
cidadania italiana post-mortem.
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Disse: «A decisão que posso anunciar aqui [é] que haverá um funeral
de Estado para as vítimas do que aconteceu, são todas escolhas e decisões
que cabem numa lógica de coparticipação de um sofrimento dramático,
de uma tragédia enorme que, nestas dimensões, nunca teve lugar no Me-
diterrâneo.» 2 A mesma declaração foi repetida a 9 de outubro, no comu-
nicado final da sessão do Conselho de Ministros, onde os funerais de
Estado foram rebaixados a funerais solenes: «O Conselho de Ministros
empenhou-se em honrar as vítimas do naufrágio de imigrantes ao largo
da costa de Lampedusa com funerais solenes.» Passaram os dias, e a data
dos funerais não foi estabelecida, acompanhada pelas primeiras dúvidas
das instituições. No entanto, vários media transmitiam as imagens de cen-
tenas de corpos colocados no cais, depois dos caixões transportados para
o hangar do aeroporto de Lampedusa, mais tarde, a bordo do navio Li-
bera e depois em Porto Empedocle acolhidos pelos lamentos de alguns
parentes e por um dístico que dizia «sangue nostrum»; finalmente, foram
filmados a serem carregados nos camiões para serem levados aos dife-
rentes cemitérios sicilianos nos espaços disponíveis para o enterro. De-
pois, saíram quase definitivamente da visibilidade mainstream.
Os funerais de Estado e os funerais solenes nunca foram celebrados,
foram substituídos por uma cerimónia pública programada no cais de Agri-
gento, longe do lugar da tragédia e dos cemitérios sicilianos onde os corpos
tinham sido enterrados; sem os sobreviventes, não-convidados por «razões
de segurança», e no entanto indiciados pelo crime de imigração clandestina.
A cerimónia foi acompanhada por polémicas e gritos de protesto que
pediam uma cerimónia mais digna. Os mortos ausentes tornaram-se, de
algum modo, numa plataforma política onde falaram também políticos,
ministros e embaixadores, entre os quais o embaixador eritreu que, à per-
gunta de um jornalista sobre o que ia acontecer aos mortos eritreus já
enterrados, declarou que o governo ia desenterrá-los e enviá-los à sua
custa para a Eritreia. Nunca aconteceu.
Na cerimónia de Agrigento não participou a presidente da Câmara de
Lampedusa, Giusi Nicoloni, que declarou: «Soube por acaso que os cor-
pos procedentes de Lampedusa estavam a ser enterrados. Sem funerais
nem de Estado, nem do País. [...] Fiquei muito amargurada pelo facto de
esta comemoração, mesmo que tardia e com os corpos já enterrados, não
ter tido lugar em Lampedusa. A comunidade da minha ilha não merece
não ser envolvida e apenas ser convocada quando já tudo se decidiu.» 3
2
Agenzia Televisiva Parlamentare (9-10-2013).
3
Agrigento Notizie (21-10-2013).
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4
Corriere della Sera TV (17-10-2013).
5
Antenna Sicilia (18-10-2013).
6
Repubblica TV (20-10-2013).
7
Repubblica TV (20-10-2013).
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8
AMnotizie (24-10-2013).
9
Castello Incantato (30-10-2013).
10
Agrigento Notizie (15-10-2013).
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Apêndice
Três fragmentos de entrevistas a Manash
«Não vão lá com flores»
«Eu agora tenho muitas dificuldades, a dificuldade é essa, a pergunta
que eu me ponho: quem sou eu? É esse o ponto, eles, os meus filhos,
dizem ‘que sou italiano’, outros dizem ‘que sou bangladeshiano’. Mas eu,
o que digo eu? Quem sou eu? Agora tenho 43 anos, moro na Europa há
27 anos, vivi a maioria da minha vida na Europa, nasci no Bangladesh e
moro na Europa. Após todos estes anos ainda me dizem ‘és estrangeiro’,
‘és um imigrado’, ‘tu não és italiano, tu és bangladeshiano’. Se eu for ao
Bangladesh, dir-me-ão ‘tu és italiano, não és bangladeshiano porque vives
lá’ e então a minha pergunta para mim é ‘Quem sou eu?’ [...] Não há res-
posta, não há. Pode-se dizer imediatamente que sou um cigano, como
dizem... mas no final é assim, vais lá e dizem-te ‘não és bangladeshiano’,
vens aqui e dizem-te ‘não és italiano’ e então ‘Quem és tu?’. Não há res-
posta, aqueles como eu que moram ‘fora de casa, fora do país’, para eles
a resposta é a mesma, a mesma dificuldade que eu tive. Àquela pergunta,
àquela pergunta eu não posso responder, não há resposta, porque não há
nada cumprido, não há, estar uma parte aqui e uma parte ali não te deixa
em lugar nenhum, não escolhi nenhum lugar, nem aqui nem ali, então
talvez esteja no meio. [...] Se calhar decidi que fico aqui, já não volto para
lá, porque os meus filhos estão aqui, então em 2007 quando voltei ao
Bangladesh avisei os meus pais, os meus parentes, todos, disse: ‘Olhem
que eu não vou voltar, voltarei para visitar-vos, para ver-vos, para comu-
nicar convosco, para ver os parentes, para falar com os parentes, mas já
não para viver, porque eu vivo lá’. Agora aquilo de que mais preciso são
os meus filhos, quando não estás casado os pais são as pessoas mais pró-
ximas, quando estás casado a tua mulher é a pessoa mais próxima, quando
tens filhos, eles são as pessoas mais próximas e para mim também é assim,
é natural. Pensei isto: se me acontecer algo ou se eu morrer aqui, se
os meus filhos ou os meus parentes me enviarem para o Bangladesh, os
meus filhos não vão ir para lá com flores, não vão, porque fica longe, é
caro e então talvez lá vão uma vez na vida, duas vezes na vida e depois
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não. Pode ser que se o meu corpo estiver aqui e eles tenham momentos
difíceis, quando sentem um entrave ou algum choque, na vida, talvez vão
ao cemitério dizer que... [comoção]. E assim... pelo que eu pensei, decidi
que já não me irei embora, não. Os meus amigos mais íntimos sabem-
-no, os que me conhecem há muito tempo, todos sabem, já decidi. Há
tantas árvores, algumas folhas caem antes, outras folhas caem depois, é
algo natural, algumas árvores deslocam-se, outras árvores ficam na mesma
terra, então, se calhar eu sou uma destas árvores» (2012).
«É culpa da terra...»
«Acho que os [migrantes] da primeira geração querem sempre voltar
ao seu país quando morrem, enquanto os da segunda geração ficam
todos aqui, quando morrem, tenho a certeza disso, a primeira geração
não, a primeira geração enviam-na para o país de origem. As novas gera-
ções ficam aqui, vejo a mudança de mentalidade, vejo a mudança de
terra. Se eu nasci no Bangladesh, então o meu coração bate ainda pelo
Bangladesh, os que nasceram aqui ou que têm pais bangladeshianos,
aqueles meninos falam de Itália, não falam do Bangladesh, eles falam
desta terra porque nasceram aqui, quando morrerem com certeza ficarão
aqui. O seu pensamento também é diferente, é culpa da terra com cer-
teza, é culpa da terra, de onde se nasce, é a terra que te faz nascer, é ela
que faz pensar em todas estas coisas, tudo, tudo nasce da terra. Durante
todos estes anos aqui, eu vi a mudança, a mudança de terra, é a terra que
faz pensar nestas coisas. Se fazes um fato ou sapatos aqui em Itália, pões
made in Italy, então made in Italy sempre é made in Italy, os sapatos que fi-
zeste na Alemanha ou na Tailândia ou na China, se pões made in Italy
não vão durar como estes, é impossível. Quem nasce aqui na Itália é ita-
liano, se um menino nasce no Bangladesh então é bangladeshiano e os
dois têm pensamentos diferentes, mentalidades diferentes, uma cultura
diferente, tudo é diferente, mas nós queremos juntar tudo, fazer algo
‘combinado’. Se eu for a um jardim de rosas, onde só há rosas, há uma
rosa vermelha, se eu colocar tudo num jardim só, digamos um jardim
de flores, já não será um jardim de rosas, será um jardim de flores onde
há todas as flores, flores vivas, flores mortas, flores lindas e feias, flores
perfumadas e não-perfumadas no mesmo jardim» (2014).
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Capítulo 12
1
O presente capítulo insere-se no projeto de investigação que ambos temos desen-
volvido intitulado «Co-habitações: dinâmicas de poder em Lautém (Timor-Leste)», fi-
nanciado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT PTDC/CS-ANT/118150/
2010). O trabalho de campo beneficiou igualmente de apoios da Fundação Oriente em
Díli e da Secretaria de Estado da Cultura da República Democrática de Timor-Leste. Ao
longo destes anos contámos com a colaboração de Abílio do Santos Tilman (primeiro
nas funções de delegado local da Secretaria de Estado da Cultura e depois como nosso
assistente de campo) e, após o seu triste falecimento em 2013, de Mestre Justino Valentim
e de Gil dos Santos. O nosso ensaio é dedicado à saudosa memória de Mestre Justino
Valentim que faleceu tragicamente em 2014.
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Entre elas, refira-se a Secretaria de Estado para os Assuntos dos Combatentes da Li-
bertação Nacional e o seu Departamento de Pensões. Em Portugal pudemos contar tam-
bém com a colaboração de um antigo oficial português (Manuel Luís Real) que prestou
serviço em Timor nos idos de 1974-1975, e que lidou de perto com indivíduos a que nos
iremos referir.
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No distrito de Lautém, por exemplo, existe um memorial semelhante junto à estrada
que conduz a Díli, num local sobranceiro ao mar, que recorda o massacre, já depois do
Referendo de 30 de Agosto de 1999, de um grupo de madres católicas e seus acompa-
nhantes, todos ligados à Caritas Diocesana de Baucau.
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cebera no pescoço e no tórax não haviam sido fatais, e mesmo nessa con-
dição foi enterrado por exigência dos indonésios. O facto de terem sido
as próprias famílias a fazer os enterramentos em 1983 parece explicar que
em Muapitine se acredite que os mesmos foram realizados de acordo
com os rituais mínimos necessários para garantir a paz aos defuntos.
Um segundo monumento evocativo de um massacre e que originou
a morte de nove homens diz respeito ao memorial em Caivaca – locali-
dade próxima a Lospalos. Em 21 de julho de 1985, o comandante Falu
Cai e oito dos seus homens morreram num massacre nessa localidade.
Na ocasião morreu também Luís Monteiro Leite, figura grada do regime.
Este episódio aparece narrado nas memórias de Mário Carrascalão (2006,
256-259), amigo chegado de Monteiro Leite. Inserido numa tentativa de
capturar o líder nacionalista, Monteiro Leite marcou um encontro com
representantes da Resistência – esperando que nela comparecesse o pró-
prio Xanana, que mantinha uma relação romântica com uma irmã sua.
O que sucedeu a seguir é controverso. Os militares indonésios informa-
ram o governador de que o encontro teve lugar, que os guerrilheiros abri-
ram fogo e na troca de tiros que se seguiu haviam perecido vários deles,
bem como Monteiro Leite e os seus assessores. Carrascalão não acredita
nessa versão, e com base nos testemunhos da viúva e do motorista do
seu amigo inclina-se para considerar que os indonésios traíram o seu pró-
prio aliado e abriram fogo sobre a casa onde decorria o encontro, ma-
tando todos os que lá se encontravam – esperando ter a cabeça de Xanana
como troféu.
O insucesso da missão traduzido pela morte do grupo de guerrilheiros
conduziu a ter circulado a ideia de que a iniciativa do encontro partira
de Falu Cai, e nalguns casos afirmou-se mesmo que o fizera em con-
tradição com ordens recebidas. Na sequência da morte do marido, a
Sr.ª Albina Marçal Freitas, que vivera até ali no mato onde se casou com
Falu Cai, voltou a Lospalos, onde foi de imediato detida pelos indoné-
sios, tendo passado quatro anos na prisão. Haveria de sofrer por esse afas-
tamento que perdurou até 1996, altura em que voltou à Frente Clandes-
tina, tendo a partir de então um lugar de destaque na Organização das
Mulheres de Timor.
Em finais dos anos 2000 a Sr.ª Albina entendeu proceder à reabilitação
da memória do marido (e dos seus homens). Para tal, meteu mãos à obra
de construir, no local onde eles foram mortos e singelamente sepultados
em valas comuns sem identificação, grandiosos memoriais – usando para
tal os apoios financeiros que o reconhecimento oficial do estatuto de ve-
terano (tanto dele como dela própria) lhe proporcionava. A sua iniciativa
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A legislação sobre a propriedade da terra ainda não foi aprovada em Timor-Leste.
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foi consumida na «festa» que então se organizou. Para cada um deles er-
gueu-se um túmulo de dimensões semelhantes, que foi depois pintado
em cores garridas, exibindo bandeiras da FRETILIN, das FALINTIL e
de Timor-Leste, bem como, em vários casos, as armas com que comba-
teram. Os enterros foram todos realizados no mesmo dia.
Nas conversas que tivemos com estes familiares dos tombados de Nua-
lata,eles mostraram-nos o seu ressentimento pelo facto de as autoridades
nacionais não terem comparecido a estas cerimónias (apesar de se atribuir
a Xanana a decisão de comparticipar generosamente nos custos da em-
preitada). O investimento financeiro ascendeu a várias dezenas de mi-
lhares de dólares. Trata-se de um impressionante cemitério aberto, ao
lado da estrada, com 40 sepulturas, localizado bem junto da residência
de alguns membros dessa família. Em todos estes casos, tratou-se de fazer
um segundo enterro, fazendo transportar, por vezes de terras longínquas,
os despojos destes mártires num processo semelhante ao que em 2012
vimos iniciar-se em Chai/Loré.
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Conclusão
A reconquista da independência em 2002 foi acompanhada de uma
grande abertura de Timor-Leste a modelos culturais modernistas, seja
pela via da diáspora que regressou imbuída de valores das sociedades de
acolhimento, seja pela presença no território de uma vasta quantidade
de expats que, provenientes das quatro partidas do mundo, tinham em
comum o propósito de «ajudar» Timor a emergir como uma «nação mo-
derna» – o ambicioso programa que justificou a presença em Timor-Leste
de uma missão das Nações Unidas ao longo de vários anos, primeiro
com poderes absolutos, depois numa situação de acompanhamento e
aconselhamento. Nestes modelos modernistas, assume particular relevo
o discurso tecido em torno do conceito de «construção da nação». Esse
processo envolve explicitamente a constituição de uma identidade nacio-
nal (que em grande parte existia antes do Referendo de 1999 e contribui
fortemente para explicar o seu resultado), e exige uma grande capacidade
de diálogo com as formas «culturais» – o que localmente se designa por
lisan, cuja resiliência tem sido posta em evidência. Andrew McWilliam
descreve o lisan como «as diversas formas de práticas e convenções cul-
turais historicamente situadas que evoluíram ao longo de gerações e que
oferecem instrumentos legitimados para intervir nos assuntos da comu-
nidade» (McWilliam 2008, 129). Para David Hicks, tratar-se-ia de «repre-
sentações coletivas» num sentido durkheimiano, ou seja, «o corpo de
ideias, noções, conceitos, valores e instituições que são tidos em comum
pelos membros de uma dada sociedade» (Hicks 2013, 27). James Fox foi
dos primeiros a chamar a atenção para a persistência desse tipo de práticas
que permitem ao mesmo tempo resistir a desafios provindos do exterior
e entreter com eles um diálogo importante (Fox 2000, 4; e 2011, 255).
Entre essas práticas e convenções contam-se aquelas que se prendem com
o culto dos mortos (McWilliam 2011). Por outro lado, esse processo exige
um programa de ações concretas destinadas a dar forma visível aos ele-
mentos estruturantes de um projeto de modernidade.
Este texto é um contributo para uma compreensão etnográfica de
como esse processo está a ocorrer. Diferentemente de pensarmos em
processos de construção nacional a partir de programas governamentais
ou de imposição por instâncias internacionais – seguindo uma lógica
de «choque de paradigmas» (Hohe 2002) – ou de postularmos a emer-
gência de uma forma cristalizada que eliminasse os pontos de tensão,
neste artigo seguimos uma compreensão das coexistências suscitadas
pela condição inevitável de coabitação entre formas familiares e nacio-
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Referimo-nos aqui a uma perspetiva teórica que propõe ver os processos de intercul-
turalidade, mesmo os que implicam forte hostilidade, como processos de inevitável coa-
bitação, aproximando-nos da reflexão que tem sido desenvolvida, por exemplo, por Ju-
dith Butler (2012), e que temos vindo a desenvolver para a análise de Timor (cf. Viegas
e Feijó, no prelo, 2017).
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Referências bibliográficas
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Cristiana Bastos
Posfácio
Parabéns ao leitor que chegou até aqui: terá passado por um efeito de
transformação, mas está ainda inteiro, e certamente mais completo de-
pois de ter percorrido este notável conjunto de ensaios sobre a morte.
Ou melhor: não são exatamente ensaios, mas artigos ancorados em pes-
quisa empírica e referências teóricas; nem se trata de um simples con-
junto, mas de um todo estruturado, organizado com coerência, desen-
volvido no contexto de um projeto coletivo com objetivos partilhados;
nem tratam de uma morte qualquer, ou da morte em geral, mas como o
título do volume indica, da sua interseção com o movimento. Está em
causa a morte em trânsito, na condição migrante, na vulnerabilidade
acrescida da distância física entre o quotidiano imediato e os locais de
referência onde se materializam os rituais que dão significado ao mo-
mento de separação entre os que continuam vivos e os que deixaram de
o estar. O título do volume inclui já uma resolução cognitiva para essa
tensão, anunciando a invisibilidade da morte nos grupos migrantes, re-
correndo a uma metáfora visualista para tornar inteligível uma não-pre-
sença, não-pertença, não-inscrição.
De facto, foi a constatação de uma suposta invisibilidade da morte
nos grupos migrantes em Portugal – fenómeno que redundara em nada
menos que rumores tétricos raiando fantasias canibalescas a respeito de
alguns grupos – que deu origem ao projeto de que resulta este livro. Con-
gregando vários antropólogos ativamente envolvidos com grupos mi-
grantes no nosso país e ganhando com a longa experiência da antropó-
loga Clara Saraiva sobre rituais de morte em diversas culturas, o projeto
foi em boa hora apoiado pela FCT, o que permitiu aos investigadores
aprofundar sincronizadamente uma questão comum, debater periodica-
mente o estado da arte e da inquirição, confrontar os respetivos dados,
partilhar a análise, sintonizar trabalho conceptual, aferir a pesquisa em-
pírica, apresentar em público as conclusões, e discutir com os consultores
provenientes de diversas latitudes, experiências etnográficas e filiações
teóricas. Desse processo todos saíram mais enriquecidos, mais consoli-
dadas as suas análises individuais, e abertas novas questões em subse-
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Capa Movimentos, Espíritos.qxp_Layout 1 15/02/17 11:57 Page 1
Outros títulos de interesse: Como é que se morre em movimento? E como é que se recriam Clara Saraiva é investigadora do
lugares de pertença a partir dessa morte em movimento? Numa Centro em Rede de Investigação em
Envelhecimento em Lisboa, Antropologia (CRIA) e do
Portugal e Europa sociedade ocidental em que a morte se tornou um tabu, e que é CEC-FLUL. Pesquisa conceções da
Uma Perspectiva Comparada pensada como algo que só acontece aos outros, este morte e rituais funerários e dirigiu o
Manuel Villaverde Cabral
distanciamento face ao último rito de passagem da vida pertence
Ciências Sociais Cruzadas mobilidade dos indivíduos mas também com a criação de lugares Simone Frangella é antropóloga,
entre Portugal e o Brasil de pertença e de ligação com os espaços de origem. investigadora de pós-doutoramento
Trajetos e Investigações no ICS Num mundo globalizado, como morrem os imigrantes, sempre no Instituto de Ciências Sociais
Isabel Corrêa da Silva em movimento entre os seus países de origem e os seus destinos (ICS-ULisboa). Tem pesquisado as
Simone Frangella territorialidades urbanas, e os
Sofia Aboim migratórios? Nos vários capítulos deste livro analisam-se os níveis
fenómenos migratórios
Susana de Matos Viegas múltiplos que a morte toca, desde os mais simbólicos aos mais transnacionais.
(organizadoras) práticos. A morte é uma dimensão onde a abordagem
Tempos e Transições de Vida transnacional é obrigatória – juntamente com o debate crítico Irene Rodrigues é antropóloga,
Portugal ao Espelho da Europa sobre o sentido do «transnacional» e as suas características professora auxiliar do Instituto
José Machado Pais Superior de Ciências Sociais e
multifacetadas – já que encerra uma intensa circulação, não
Vítor Sérgilo Ferreira Políticas da Universidade de Lisboa
(organizadores) apenas de bens materiais e riqueza, mas também de universos (ISCSP-ULisboa). Tem pesquisado
significativos e simbólicos que circulam juntamente com os bens e
as pessoas: o corpo, mas também os espíritos e as relações com o
outro mundo que as pessoas trouxeram para a diáspora.
Movimentos, Espíritos sobre migração chinesa em Portugal
e na China.
ICS ICS
www.ics.ul.pt/imprensa