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Capa Movimentos, Espíritos.

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Outros títulos de interesse: Como é que se morre em movimento? E como é que se recriam Clara Saraiva é investigadora do
lugares de pertença a partir dessa morte em movimento? Numa Centro em Rede de Investigação em
Envelhecimento em Lisboa, Antropologia (CRIA) e do
Portugal e Europa sociedade ocidental em que a morte se tornou um tabu, e que é CEC-FLUL. Pesquisa conceções da
Uma Perspectiva Comparada pensada como algo que só acontece aos outros, este morte e rituais funerários e dirigiu o
Manuel Villaverde Cabral
distanciamento face ao último rito de passagem da vida pertence

C. Saraiva/S. Frangella/I. Rodrigues (orgs.) Movimentos, Espíritos e Rituais


Pedro Alcântara da Silva projeto FCT «A invisibilidade da
Maria Toscano Batista à esfera do mito e do preconceito – a suposta invisibilidade da morte entre as populações migrantes
(organizadores) morte. Mas a morte levanta questões que se prendem com a em Portugal».

Ciências Sociais Cruzadas mobilidade dos indivíduos mas também com a criação de lugares Simone Frangella é antropóloga,
entre Portugal e o Brasil de pertença e de ligação com os espaços de origem. investigadora de pós-doutoramento
Trajetos e Investigações no ICS Num mundo globalizado, como morrem os imigrantes, sempre no Instituto de Ciências Sociais
Isabel Corrêa da Silva em movimento entre os seus países de origem e os seus destinos (ICS-ULisboa). Tem pesquisado as
Simone Frangella territorialidades urbanas, e os
Sofia Aboim migratórios? Nos vários capítulos deste livro analisam-se os níveis
fenómenos migratórios
Susana de Matos Viegas múltiplos que a morte toca, desde os mais simbólicos aos mais transnacionais.
(organizadoras) práticos. A morte é uma dimensão onde a abordagem
Tempos e Transições de Vida transnacional é obrigatória – juntamente com o debate crítico Irene Rodrigues é antropóloga,
Portugal ao Espelho da Europa sobre o sentido do «transnacional» e as suas características professora auxiliar do Instituto
José Machado Pais Superior de Ciências Sociais e
multifacetadas – já que encerra uma intensa circulação, não
Vítor Sérgilo Ferreira Políticas da Universidade de Lisboa
(organizadores) apenas de bens materiais e riqueza, mas também de universos (ISCSP-ULisboa). Tem pesquisado
significativos e simbólicos que circulam juntamente com os bens e
as pessoas: o corpo, mas também os espíritos e as relações com o
outro mundo que as pessoas trouxeram para a diáspora.
Movimentos, Espíritos sobre migração chinesa em Portugal
e na China.

Capa: Embrulhamento de corpo, Guiné-Bissau, 1998 (foto Clara Saraiva)


e Rituais
Apoio:
Gestões da Morte em Cenários
Transnacionais
Clara Saraiva
UID/SOC/50013/2013
Simone Frangella
UID/ANT/04038/2013
Irene Rodrigues
(organizadoras)

ICS ICS
www.ics.ul.pt/imprensa
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Movimentos, Espíritos
e Rituais
Gestões da Morte
em Cenários Transnacionais
Clara Saraiva
Simone Frangella
Irene Rodrigues
(organizadoras)
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Imprensa de Ciências Sociais

Instituto de Ciências Sociais


da Universidade de Lisboa

Av. Prof. Aníbal de Bettencourt, 9


1600-189 Lisboa – Portugal
Telef. 21 780 47 00 – Fax 21 794 02 74

www.ics.ulisboa.pt/imprensa
E-mail: imprensa@ics.ul.pt

Instituto de Ciências Sociais — Catalogação na Publicação


Movimentos, espíritos e rituais : gestões da morte em cenários transnacionais /
org. Clara Saraiva, Simone Frangela, Irene Rodrigues. -
Lisboa : Imprensa de Ciências Sociais, 2016. -
ISBN 978-972-671-382-1
CDU 392

© Instituto de Ciências Sociais, 2017

Capa e concepção gráfica: João Segurado


Revisão: Levi Condinho
Impressão e acabamento: Gráfica Manuel Barbosa & Filhos, Lda.
Depósito legal: 419758/16
1.ª edição: Dezembro de 2016
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Índice
Os autores . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 15

Prefácio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 23
João de Pina-Cabral

Introdução
Mobilidade e lugares da morte . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 31
Clara Saraiva, Simone Frangella e Irene Rodrigues

Parte I
Morte: teorias em movimento

Capítulo 1
A morte e o que se lhe segue: a imobilização dos mortos
e a migração . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 37
Maurice Bloch

Capítulo 2
A morte em movimento: uma abordagem teórica sobre a morte
e suas possíveis implicações em contextos transnacionais . . . . . . . 51
Anastasios Panagiotopoulos

Capítulo 3
Corpos em falta e pertença entre os Manjaco:
ou o passado e o futuro de alguns costumes funerários
no contexto do cosmopolitismo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 71
Eric Gable
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Parte II
Circulação transnacional de espíritos, corpos e rituais

Capítulo 4
«As folhas caídas regressam às raízes»: a invisibilidade da morte
e a ideia de «casa» na política de enterro da migração chinesa . . . . 87
Irene Rodrigues

Capítulo 5
Os cemitérios e a diversidade. Expressões de organização
do património religioso funerário em Espanha . . . . . . . . . . . . . . . . 105
Sol Tarrés e Jordi Moreras

Capítulo 6
Pessoa, morte e género entre Lisboa e Dhaka . . . . . . . . . . . . . . . . . 129
José Mapril

Capítulo 7
A visibilidade da morte em Portugal no quadro das migrações
transatlânticas e intraeuropeias . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 149
Maria Beatriz Rocha-Trindade

Parte III
Morte, migração e saúde

Capítulo 8
Viver a morte em Portugal: atitudes de portugueses e diferentes
grupos de imigrantes face à morte . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 173
Violeta Alarcão, Filipe Leão Miranda, Elisa Lopes e Rui Simões
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Capítulo 9
A morte em várias línguas: principais causas de morte
e procedimentos de transporte de cadáveres em Portugal –
análise focada em imigrantes do Bangladesh, Brasil, China,
Cabo Verde e Guiné-Bissau . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 207
Andreia Jorge Silva, Joana Ferreira Duarte, Violeta Alarcão e Clara Saraiva

Parte IV
O lugar e os lugares da morte

Capítulo 10
Encontros com a morte no Noroeste . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 235
António Medeiros

Capítulo 11
«Não vão lá com flores»: as mortes não-evidentes na migração . . 251
Ottavia Salvador

Capítulo 12
O lugar dos mortos: geografias móveis e os monumentos
aos mártires em Timor-Leste . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 269
Rui Graça Feijó e Susana de Matos Viegas

Posfácio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 291
Cristiana Bastos
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Índice de quadros, gráficos e figuras


Quadros
4.1 Evolução do número de óbitos de cidadãos chineses comparando
com o total da população chinesa residente em Portugal,
entre 2008 e 2014 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 91
4.2 Comparação do número de óbitos de cidadãos chineses com outros
grupos populacionais estrangeiros em Portugal no ano de 2012 . . . . 91
8.1 Características sociodemográficas dos participantes por país
de origem . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 180
8.2 Autoavaliação da qualidade de vida e da saúde mental por país
de origem . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 187
8.3 Atitudes perante a morte por país de origem . . . . . . . . . . . . . . . . . 190
8.4 Atitudes perante a morte e processo de morte por país de origem . . 192
8.5 Caracterização da Escala de Ansiedade perante a Morte (DAS)
por país de origem . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 196
8.6 Associação não-ajustada e ajustada entre a ansiedade perante
a morte e as características sociodemográficas, de saúde e atitudes
perante a morte . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 201

Gráficos
8.1 Distribuição por país de origem segundo o sexo (%) . . . . . . . . . . . . 179
8.2 Distribuição por país de origem segundo o grupo etário (%) . . . . . . . 179
8.3 Distribuição por país de origem segundo o estado civil (%) . . . . . . 184
8.4 Distribuição por país de origem segundo o grau de escolaridade (%) . 184
8.5 Distribuição por país de origem segundo o tempo de residência
em Portugal (média e desvio-padrão) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 185
8.6 Distribuição por país de origem segundo ter ou não uma religião (%) 185
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8.7 Distribuição por país de origem segundo a religião (%) . . . . . . . . . 186


8.8 Atitudes face à morte por país de origem: doação de órgãos,
eutanásia, suporte de vida (%) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 188
8.9 Em que país preferiria morrer, por país de origem (%) . . . . . . . . . . 188
8.10 Em que circunstância preferiria morrer, por país de origem (%) . . . 189
8.11 O que desejaria que acontecesse ao corpo, por país de origem (%) . . 194
8.12 Atitudes face à morte por país de origem: cerimónia de preparação
do corpo e cerimónia fúnebre (%) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 194
8.13 Distribuição por país de origem da Death Anxiety Scale
(média e desvio-padrão) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 195
9.1 População imigrante residente em Portugal por principais
nacionalidades em 2011 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 208
9.2 Distribuição do número total de óbitos em Portugal, por naturalidade,
grupo etário e ano do óbito no período de 2008-2013 . . . . . . . . . . . 220
9.3 Distribuição do número total de óbitos de cidadãos residentes
em Portugal ocorrido no país de naturalidade, por naturalidade,
grupo etário e ano do óbito no período de 2008-2013 . . . . . . . . . . 221
9.4 Distribuição do número total de óbitos em Portugal por país
de nascimento e por sexo no período de 2008 a 2013 . . . . . . . . . . . . 222
9.5 Distribuição das principais causas de morte em Portugal
de naturais do Brasil no período de 2009 a 2011 . . . . . . . . . . . . . . 223
9.6 Distribuição das principais causas de morte em Portugal de naturais
da China no período de 2009 a 2011 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 224
9.7 Distribuição das principais causas de morte em Portugal de naturais
de Cabo Verde no período de 2009 a 2011 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 225
9.8 Distribuição das principais causas de morte em Portugal de naturais
da Guiné-Bissau no período de 2009 a 2011 . . . . . . . . . . . . . . . . . . 226
9.9 Taxa de mortalidade da população imigrante residente em Portugal
por país, em 2010 e 2011 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 227
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Figuras
5.1 Igreja anglicana de Saint George, antiga capela funerária . . . . . . . . 116
5.2 Interior do cemitério inglês de Málaga . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 116
5.3 Entrada do cemitério de Barcia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 121
5.4 Turistas visitando o interior do cemitério mouro de Barcia . . . . . . 121
5.5 Nichos no sexto departamento . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 126
5.6 Lápides (matzeva) de defuntos judeus . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 126
7.1 Plano de funeral IRMAF (Rio de Janeiro, Brasil) . . . . . . . . . . . . . . . 153
7.2 Residências funerárias Alfred Dallaire (Montreal, Canadá) . . . . . . 153
7.3 Agência funerária Amadeu Andrade & Filhos, Lda.
(Castro Daire, Viseu . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 153
7.4 Agência Funerária do Terreiro, Lda. (Penacova, Coimbra) . . . . . . . 153
7.5 Pompes Funèbres, E. F. G. (Paris, França) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 153
7.6 Lápide aposta em campa do cemitério de Santa Bárbara de Nexe,
Faro. Leia-se: «Ganhei com a liberdade/Meu regresso a Portugal» . 154
7.7 Placa que refere os laços familiares e emocionais com um neto
imigrado na Argentina. Cemitério de Santa Bárbara de Nexe, Faro . . 154
7.8 Mausoléu da família Mendes de Oliveira Castro, cemitério
de Fafe, Braga . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 156
7.9 Estátua do conde de Ferreira, cemitério de Agramonte, Porto . . . . 158
7.10 Jazigo de Adriano Costa Ramalho, cemitério de Agramonte, Porto,
e detalhes das estátuas que fazem alusão ao comércio, à agricultura,
à Europa e ao Brasil . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 160
7.11 Mausoléu em estilo neoclássico, dos condes de Santiago de Lobão,
cemitério de Agramonte, Porto, e detalhe da porta de entrada . . . . 161
7.12 Campas no cemitério de Queiriga, Viseu . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 162
7.13 Estátuas do comendador Agostinho Rodrigues Valgode
e de Joaquim Sobrinho, no jardim público de Santa Cruz da Trapa,
São Pedro do Sul, Viseu . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 163
7.14 Jazigo de José d’Almeida, junto à Igreja de São Cristóvão de Lafões,
São Pedro do Sul, Viseu . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 164
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7.15 Campa de Rosa Noivo, oferecida pelo seu filho residente no Brasil,
cemitério de Mira de Aire, Porto de Mós, Leiria . . . . . . . . . . . . . . . 164
7.16 Campa no cemitério de Santa Bárbara de Nexe, Faro. Detalhes
da ligação a França. Leia-se: «Ses Amis», «Association CS Portugais
de Caen» . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 165
7.17 Jazigo de conde da Trindade, cemitério de Agramonte, Porto . . . . 168
7.18 Campa no cemitério de Santa Bárbara de Nexe, Faro . . . . . . . . . . . 168
7.19 Campa no cemitério de Santa Bárbara de Nexe, Faro . . . . . . . . . . . 168
7.20 Campa no cemitério de Santa Cruz da Trapa, São Pedro do Sul . . 168
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Os autores
Anastasios Panagiotopoulos fez a sua licenciatura no Departamento
de Sociologia na Universidade de Creta, Grécia, em 2003. Em seguida
obteve o grau de mestrado (disciplinas) em 2004, outro grau de mestrado
(Pesquisa) em 2006 e o grau de doutoramento em 2011, todos no De-
partamento de Antropologia Social da Universidade de Edimburgo.
A sua tese de doutoramento baseou-se em investigação etnográfica rea-
lizada entre 2006 e 2007 em Havana, Cuba, sobre o papel da adivinhação
nas tradições religiosas afro-cubanas. Atualmente é investigador de pós-
-doutoramento no CRIA-FCSH, Universidade Nova de Lisboa, e está a
trabalhar sobre temas relacionados ao seu doutoramento, assim como
com a relação entre religiosidade afro-cubana e política socialista cubana.

Andreia Jorge Silva é doutorada pela Universidade Católica Portu-


guesa, 2013; mestre em Saúde Pública, na especialização de Política e
Administração de Saúde, Escola Nacional de Saúde Pública da Univer-
sidade Nova de Lisboa, 2004, e licenciada em Enfermagem, pela Escola
Superior de Saúde de Portalegre do Instituto Politécnico de Portalegre,
2000. É professora adjunta da Escola Superior de Saúde de Portalegre do
Instituto Politécnico de Portalegre desde 2009, diretora de Serviços de
Prevenção da Doença e Promoção da Saúde, desde 2014 e investigadora
do Instituto de Saúde Ambiental da Faculdade de Medicina da Univer-
sidade de Lisboa.

António Medeiros, doutor em Antropologia pelo ISCTE-IUL (2003),


é professor auxiliar do Departamento de Antropologia, ISCTE-IUL. Mi-
nistrou cadeiras em História e Teoria Antropológica, Métodos Biográfi-
cos, Estudos Mediterrâneos, Património Imaterial, Antropologia Visual,
Nacionalismo e Etnicidade. Publicação recente: Two Sides of One River:
Nationalism and Ethnography in Galicia and Portugal. Nova Iorque e Ox-
ford: Berghahn Books.

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Movimentos, Espíritos e Rituais

Clara Saraiva é antropóloga, investigadora auxiliar do Centro de Es-


tudos Comparatistas (CEC) da Faculdade de Letras da Universidade de
Lisboa, colaboradora do Centro em Rede de Investigação em Antropo-
logia (CRIA-FCSH) e docente convidada no Departamento de Antro-
pologia da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade
Nova de Lisboa, onde leciona a cadeira de Antropologia da Religião. Foi
também professora convidada na Brown University (EUA), em 2001-
-2001 e 2008 e na University of California-Berkeley em 2013. Especiali-
zada na área de Antropologia da Religião e do Ritual, tem pesquisa sobre
as conceções da morte e os rituais funerários em diversos contextos cul-
turais – Estados Unidos, Portugal, Cabo Verde e Guiné-Bissau, e dirigiu
o projeto FCT «A invisibilidade da morte entre as populações migrantes
em Portugal». Desde 2004 trabalha sobre transnacionalismo religioso e a
expansão das religiões afro-brasileiras em Portugal, com trabalho de
campo em Portugal e no Brasil. Tem várias publicações em revistas na-
cionais e estrangeiras sobre a temática da morte, migrações, religiões e
terapias transnacionais. É presidente da Associação Portuguesa de An-
tropologia (APA), vice-presidente do SIEF (International Society for Eth-
nology and Folklore) e membro da Ethics Task Force of the World Coun-
cil of Anthropological Associations (WCAA).

Elisa Lopes, licenciada em Psicologia, é investigadora na Unidade de


Epidemiologia do Instituto de Medicina Preventiva e Saúde Pública da
Faculdade de Medicina em Lisboa desde 2008. Tem como principais fun-
ções a gestão de vários projetos de investigação e a coordenação de está-
gios, nomeadamente em projetos dos cuidados de saúde primários e/ou
com população migrante. Encontra-se a realizar o mestrado em Epide-
miologia e as suas áreas de interesse são a saúde mental e a psicologia da
saúde, em ligação direta com a epidemiologia.

Eric Gable, professor de Antropologia, obteve o grau de doutora-


mento em Antropologia (1990) na Universidade da Virgínia. Realizou
pesquisa de terreno na Guiné-Bissau, em Sulawesi, Indonésia, em
Williamsburg, e em Monticello, USA. É autor de Anthropology and Ega-
litarianism (2011) e co-autor de The New History in an Old Museum: Creating
the Past at Colonial Williamsburg (1997). Tem artigos publicados em várias
revistas, incluindo American Anthropology, Journal of American History,
American Ethnologist, e Cultural Anthropology. É editor parecerista da Ame-
rican Ethnologist, diretor de edição do Museum and Society, e antigo mem-
bro do conselho editorial da Cultural Anthropology. É especialista em es-

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Os autores

tudos sobre museus, património, e em religião e política da Africa Oci-


dental e das ilhas externas da Indonésia.

Filipe Leão Miranda, assistente de investigação com mestrado na área


da Psicologia Clínica. Exerce as funções de investigador da Unidade de
Epidemiologia do Instituto de Medicina Preventiva e Saúde Pública da
Faculdade de Medicina de Lisboa, onde é responsável pelo desenho e
implementação de material de recolha de dados, pelo acompanhamento
de recolha e tratamento dos mesmos, pela coordenação operacional de
ferramentas online da unidade e também pelo apoio à gestão informática
e financeira. Com formação especializada na área da psicoterapia, de-
sempenha as funções de psicólogo clínico em contexto de internamento
e consultório privado.

Irene Rodrigues é doutorada em Antropologia pelo Instituto de Ciên-


cias Sociais da Universidade de Lisboa (2013) com uma tese sobre mi-
gração chinesa em Portugal. Tem trabalhado sobre migração chinesa, fo-
cando os aspetos do género, da simbologia do dinheiro e do consumo,
e mais recentemente sobre migração chinesa e a gestão transnacional da
morte. Entre 1999 e 2001 estudou língua e cultura chinesas na Universi-
dade de Línguas e Culturas de Pequim como bolseira do Instituto Ca-
mões e do governo chinês. É coguionista do documentário sobre migra-
ção chinesa em Portugal Nós, os Chineses produzido pela Livremeio para
a RTP (2013). Atualmente é professora auxiliar do ISCSP-ULisboa, onde
lecciona desde 2001.

Joana Ferreira Duarte, nascida a 8 de março de 1992 no Hospital Gar-


cia de Orta em Almada onde atualmente exerce funções de Enfermeira
de Cuidados Gerais no Serviço de Medicina I. Licenciada em Enferma-
gem pela Escola Superior de Enfermagem de Lisboa onde ganhou duas
bolsas de mérito de segunda e primeira melhor médias referentes ao se-
gundo e quarto anos do CLE. Iniciou funções num lar geriátrico em
2014 onde permaneceu cerca de três meses, tendo posteriormente de-
senvolvido funções numa Unidade de Cuidados Continuados Integrados
de Longa e Média Duração da Liga de Amigos do Hospital Garcia de
Orta em Almada onde esteve cerca de nove meses até saída para o meio
hospitalar. Colabora com o Departamento de Prevenção da Doença
e Promoção da Saúde da Direção-Geral da Saúde desde 2014.

João de Pina-Cabral é professor de Antropologia Social, Escola de


Antropologia e Conservação, Universidade de Kent, Canterbury, Reino

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Movimentos, Espíritos e Rituais

Unido. É investigador coordenador no ICS- ULisboa. Foi professor vi-


sitante em várias universidades no Brasil, em Espanha, Moçambique,
Macau e Estados Unidos da América. Foi presidente fundador da Asso-
ciação Portuguesa de Antropologia e foi membro fundador, secretário
(1995-1997) e presidente (2003-2005) da Associação Europeia de Antro-
pólogos Sociais. Entre 1997 e 2004 foi presidente do Conselho Cientí-
fico do Instituto de Ciências Sociais, tendo dirigido a transformação do
ICS em Laboratório Associado. Foi Malinowski Memorial Lecturer
(London School of Economics and Political Science, 1992); Distinguis-
hed Speaker (Society for the Anthropology of Europe, AAA, 1992); Stir-
ling Memorial Lecturer (University of Kent, UK, 2003); Oração de Sa-
piência (Universidade de Lisboa 1999); Aula Ernesto Veiga de Oliveira
(ISCTE 2006); e proferiu as palestras inaugurais do Programa de Pós-
-Graduação em Antropologia Social da UNICAMP (Brasil, 2006) e do
Mestrado em Antropologia Social da Universidade de Barcelona (2007).
A sua vasta obra trata em particular das relações entre o pensamento
simbólico e o poder; a pessoa e o parentesco numa perspectiva compa-
rativa; e a etnicidade em contextos pós-coloniais. O seu primeiro traba-
lho etnográfico foi sobre a sociedade rural do Alto Minho. Em seguida,
desenvolveu vários projetos de estudo sobre a família no Sul da Europa
abordada de uma perspetiva comparativa. Na década de 90, prolongou
o seu interesse nestas questões para abordar a relação entre família e et-
nicidade entre os euro-asiáticos de Macau. Tendo escrito vários ensaios
sobre a transição pós-colonial em Moçambique, decidiu na década de
2000 dedicar-se ao estudo da relação entre pessoa e nomes na Bahia;
tendo realizado trabalho de campo no Baixo Sul da Bahia. É membro
honorário da Associação Europeia de Antropólogos Sociais e do Royal
Anthropological Institute e membro correspondente da Real Academia
de Ciências Morais e Politicas de Madrid e da Academia de Ciências de
Lisboa.

Jordi Moreras é professor de Antropologia Social na Faculdade de Hu-


manidades da Universidade Rovira i Virgili (Tarragona, Espanha). Os seus
tópicos de pesquisa são os imãs e a autoridade religiosa e a antropologia
dos muçulmanos em Espanha e na Europa. É autor de Musulmanes en Bar-
celona (1999), Imams de Catalunya (2007), Musulmans a Catalunya. Radiografia
d’un islam implantat (2008) e Garantes de la tradición. Expresiones de autoridad
religiosa islámica en Cataluña (2009). É coautor, com Sol Tarrés, de Guia para
la gestión de la diversidad religiosa en cementerios y servicios funerarios (2013).

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Os autores

José Mapril completou o doutoramento em Antropologia no ICS-


-ULisboa, com uma tese sobre o Transnacionalismo e o Islão entre os
bangladeshianos em Lisboa. Atualmente é professor auxiliar no Depar-
tamento de Antropologia da Universidade Nova de Lisboa e investigador
integrado no CRIA, FCSH-UNL, onde desenvolve um novo projeto
sobre remigração, percursos de vida e futuro entre bangladeshianos na
Europa. Cocoordena, com João Leal, o grupo de investigação Circulação
e Produção de Lugares no âmbito do CRIA. Das suas últimas publicações
importa destacar o volume editado na Palgrave, juntamente com Ruy
Blanes, Erin Wilson e Emerson Giumbelli, intitulado Secularisms in a Post
Secular Age? Religiosities and subjectivities in a comparative perspective, e que
se encontra no prelo.

Maria Beatriz Rocha-Trindade, socióloga, é doutorada pela Universi-


dade de Paris V (Sorbonne) e Agregada pela Universidade Nova de Lisboa
(FCSH). É professora catedrática na Universidade Aberta, onde fundou
(1994) o Centro de Estudos das Migrações e das Relações Inter-
culturais/CEMRI, Unidade de I&D da Fundação para a Ciência e a Tec-
nologia, do Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior. É con-
sultora científica do Museu da Emigração e das Comunidades de Fafe.
Introduziu em Portugal o ensino da Sociologia das Migrações (Universi-
dade Católica, no Curso de Teologia, 1994; a partir de 1996, na Univer-
sidade Aberta, a nível de licenciatura e de mestrado). É autora de uma
vasta bibliografia sobre matérias relacionadas com as migrações e é cola-
boradora habitual e parcerista de revistas científicas internacionais neste
domínio. É membro de diversas organizações científicas portuguesas e
estrangeiras, designadamente, da Comissão Científica da Cátedra
UNESCO sobre Migrações, da Universidade de Santiago de Compostela,
Galiza. Recebeu a Medalha de Mérito do Município de Fafe e foi distin-
guida pelo Comité National Français en Hommage à Aristides de Sousa
Mendes (Hendaye, 2012) pelo seu pioneirismo na investigação da emi-
gração. Ainda, pela Obra Católica Portuguesa das Migrações/OCPM (Lis-
boa, 2012) pela vida de trabalho académico sobre migrações, pelo empe-
nho na causa dos migrantes e pela colaboração voluntária e generosa com
a OCPM. É titular da Ordre National du Mérite, de França, com o grau
de Chevalier e da Grã-Cruz da Ordem da Instrução Pública, de Portugal.

Maurice Bloch obteve a sua formação na London School of Econo-


mics e na Universidade de Cambridge. Realizou investigação de terreno
entre os cultivadores de arroz e agricultores sazonais em Madagáscar, e

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Movimentos, Espíritos e Rituais

em outras partes do mundo, incluindo o Japão. Em parte devido à sua


experiência francesa, Bloch combina abordagens britânicas e francesas e
foi instrumental na introdução do renascimento da teoria marxista fran-
cesa para os antropólogos britânicos. Os seus interesses focaram-se na
noção de ideologia, e escreveu também sobre ritual e linguagem. Atual-
mente é professor emérito da LSE e trabalha na relação entre as desco-
bertas da psicologia cognitiva com a antropologia. Maurice Bloch lecio-
nou nos EUA, em França e na Suécia, e é membro da Academia
Britânica.

Ottavia Salvador é assistente de pesquisa no Laboratório para Pesquisa


Social (Ca’ Foscari University of Venice). Nos últimos dois anos, tem es-
tado envolvida no projeto de pesquisa «Reunificação familiar, género,
direitos estratificados. Práticas e estratégias de género para a reconstrução
da cidadania», financiado pelo Ministério da Educação, Universidade e
Pesquisa Italiano (PRIN 2009).

Rui Graça Feijó (D.Phil Oxon, 1984) é investigador associado do Cen-


tro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Os seus interesses
de investigação prendem-se com sistemas de governo, processos de de-
mocratização e teoria democrática, tendo usado como campo empírico
o caso de Timor-Leste, país que tem acompanhado de perto na última
década. Publicou o livro Timor-Leste: Paisagem Tropical com Gente Dentro
(Lisboa 2006), bem assim como numerosos capítulos de livros e artigos
em revistas da especialidade. Salientam-se os mais recentes: «Semi-presi-
dentialism and the consolidation of democracy» (eds. Michael Leach e
Damien Kingsbury, The Politics of Timor-Leste- Ithaca, NY, Cornell South-
east Asia Programme, 2013); «Semi-presidentialism, moderating power
and inclusive governance» (Democratization, 2013) e «Elections, Indepen-
dence, Democracy: The 2012 Timorese Electoral Cycle in Context» (Jour-
nal of Current Southeast Asian Affairs, 2013). Autor de várias entradas sobre
Timor-Leste para o Dicionário do 25 de Abril (no prelo).

Rui Simões, licenciado em Biologia e mestre em Bioestatística, tem


vindo a colaborar com a Unidade de Epidemiologia do Instituto de Me-
dicina Preventiva e Saúde Pública da Universidade de Lisboa desde 2011.
As suas principais funções são a análise estatística, revisão e validação de
bases de dados, escrita e revisão de conteúdos relacionados com a esta-
tística e o acompanhamento de alunos e estagiários. Após cerca de quatro
anos a trabalhar em institutos de investigação na área da Epidemiologia

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Os autores

e Saúde Pública, transitou há cerca de dois anos para a indústria farma-


cêutica. Atualmente desempenha funções como bioestatístico numa Con-
tract Research Organization.

Simone Frangella é antropóloga, doutorada pela Universidade de


Campinas, Brasil (2004), atualmente investigadora de pós-doutoramento
no ICS-ULisboa. Trabalha com temas relacionados ao espaço urbano,
corporalidade, percursos itinerantes e a construção de sociabilidades. In-
vestiga também as mobilidades transnacionais, os fenómenos migratórios
e suas dinâmicas sociais e simbólicas, tendo como recorte empírico a mi-
gração brasileira. A pesquisa mais recente debruça-se sobre as construções
de territorialidades urbanas, as pertenças territoriais, as relações geracio-
nais e de convivialidade. Publicou o livro Corpos Urbanos Errantes: Uma
Etnografia da Corporalidade de Moradores de Rua em São Paulo. São Paulo:
Annablume, Fapesp, 2010.

Sol Tarrés é professora de Antropologia Social na Faculdade de Hu-


manidades na Universidade de Huelva (Espanha). Os seus temas de pes-
quisa são o pluralismo religioso, com especial atenção à religiosidade is-
lâmica na Europa, a herança cultural das minorias religiosas em Espanha
e os rituais funerários. É autora de muitos trabalhos, incluindo artigos
em revistas científicas e em obras coletivas. As suas últimas contribuições
são ¿Y (tú) de quién eres? Minorías religiosas en Andalucía (coautoria, 2010),
Les cimetières islamiques en Espagne: des lieux d’altérité (coautoria, 2012) e En-
cuentros. Diversidad religiosa en Ceuta y en Melilla (2013).

Susana de Matos Viegas é antropóloga, investigadora no ICS-ULis-


boa. Fez o doutoramento (2003) em Antropologia na Universidade de
Coimbra onde foi docente entre 1989 e 2006. É membro eleito da Dire-
ção da Associação Internacional de Ciências Sociais e Humanas em Lín-
gua Portuguesa, membro do Conselho Editorial da revista Cadernos de
Ciências Humanas (Brasil), dos Conselhos Científicos da revista Educação
em Foco – Brasil (desde 2013) e da National Geographic-Portugal (desde
2001). Tem como interesses de pesquisa os estudos ameríndios (princi-
palmente Tupi), pessoa, parentesco e género, experiência vivida e suas his-
toricidades. Desde 1997 faz pesquisa entre os Tupinambá de Olivença no
Sul da Bahia, tendo coordenado o Relatório Circunstanciado de Identificação
da Terra Indígena Tupinambá de Olivença (FUNAI 2009). Atualmente desen-
volve pesquisa também entre os Fataluku em Timor-Leste, sobre reconfi-
gurações e coabitações, espaço, territorialidades e historicidades, focando-

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Movimentos, Espíritos e Rituais

se no estudo dos túmulos na região de Lautém. Entre as publicações des-


taca-se o livro Terra Calada: Os Tupinambá na Mata Atlântica do Sul da Bahia
7Letras e Almedina (2007).

Violeta Alarcão, PhD em Sociologia, ORCID é socióloga e investi-


gadora da Unidade de Epidemiologia do Instituto de Medicina Preven-
tiva e Saúde Pública da Faculdade de Medicina de Lisboa desde 2004.
Além da sua experiência em investigação clínica e epidemiológica, tem
trabalhado como socióloga da saúde, tendo concluído recentemente o
doutoramento em Sociologia pelo ISCTE-IUL, numa área particular-
mente inovadora na interligação da sociologia com a saúde. Entre os
seus interesses de investigação destacam-se, por um lado, o género e a
sexualidade, e por outro, as migrações e a saúde.

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João de Pina-Cabral

Prefácio
O livro que aqui vos apresento é um trabalho coletivo sobre um dos
grandes temas de sempre: a morte das pessoas e as reações que ela con-
voca entre os humanos. Precisamente por ser de sempre, o tema necessita
regularmente de ser atualizado, e há que louvar a Professora Clara Saraiva
e os seus coautores por o fazerem de forma tão magistral.
Sir James Frazer inicia The Golden Bough — esse livro que foi a plata-
forma de lançamento da antropologia moderna — com um relato larga-
mente ficcional sobre um rei da antiguidade que, num bosque perto do
lago Nemi, não longe de onde viria a ser Roma, sabe que quem o con-
seguir matar será o seu legítimo herdeiro. Por isso mesmo, o rei passa as
noites em vigília, contornando ansiosamente o carvalho sagrado que é o
centro do seu poder, pois está à espera da morte vinda a qualquer mo-
mento da mão de quem menos espera. O desafio para quem lê hoje o
relato de Frazer é o de entender que o que ele aí tentava identificar não
era a natureza da angústia individual ou o medo da morte que cada um
de nós sente, mas o desafio que a morte lança à vida como fenómeno
social. O potencial de vida que há na morte é o cerne do dispositivo que,
desde sempre, tanto fascinou a antropologia: o sacrifício.
Quando um ser vivo morre, não morre completamente, porque a sua
forma fica viva nos outros seres da sua espécie e porque a sua existência
fica para sempre inscrita na história dessa espécie. Uma borboleta morre
mas outras borboletas ficam, cuja forma reflete a história da espécie e,
portanto, a existência de todas as borboletas anteriores — essa a grande
descoberta de Darwin, afinal. A morte de um ser vivo é uma continui-
dade interrompida; não é um fim, é sempre só um desvio na simetria so-
cial da vida. Nesse sentido, a morte é o ritmo da vida; e a vida é ritmada
porque é inescapavelmente social; vida é uma coisa que acontece a mais
de um organismo.
Acontece que, com os seres humanos, a complexidade é ainda maior
do que com os outros animais. A morte de uma pessoa é ainda menos
morte que a de uma borboleta, porque a pessoa transcende — como teo-
riza neste livro Maurice Bloch. Isto é, quando um bebé humano se torna

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Movimentos, Espíritos e Rituais

uma pessoa com pensamento reflexivo e capacidade de falar, ela passa a


existir para si mesma fora de si mesma. Desta forma, podemos até afirmar
que as pessoas tanto «morrem mais» como «morrem menos» do que as
borboletas ou os tigres, porque são mais ricas, como dizia Heidegger.
O relato de Frazer, portanto, não descreve uma emoção individual,
porque a morte do rei é ao mesmo tempo um fim e um recomeço de
vida: le roi est mort, vive le roi!, exclamavam os franceses. Entre os Shilluk
de que nos fala outro clássico (Evans-Pritchard), o rei nunca podia morrer
e, por isso, era enterrado vivo quando outro rei mais jovem e pujante o
substituía. Muito mais a sul, na zona dos grandes lagos, entre os Nya-
kyusa de Godfrey Wilson, no momento em que o rei ficava fraco ou
doente, era discretamente abafado pelos seus conselheiros — os seus ami-
gos de toda a vida, os que sempre o tinham rodeado e em quem ele con-
fiava implicitamente.
Em suma, a questão que aqui se levanta é: quando uma pessoa morre,
precisamente o que é que está a morrer? Parece estúpido fazer esta per-
gunta mas, se pensarmos um pouco nela, vemos bem que o objeto do
qual os rituais de morte se ocupam é um objeto ambíguo: não é um or-
ganismo da espécie humana, não é uma mente, não é uma entidade so-
cial. Por relação à vida, a pessoa humana é composta indissociavelmente
por esses três aspetos. O que a morte faz é alterar a sintonia entre estes
três. Há quem insista até que essa alteração começa logo enquanto ainda
estamos tecnicamente vivos: quando ficamos muito doentes, muito de-
primidos, ou muito humilhados.
Se a morte é o tema antropológico por excelência é porque ela nos
confronta com a ambiguidade do ser pessoa. Uma pessoa é um objeto
compósito, difícil de identificar, que só parcialmente tem a ver com a
sobrevivência orgânica e que, apesar de ser eminentemente social, con-
segue ultrapassar essa inerência. Essa é talvez a maior aporia que move a
antropologia como disciplina.
Na morte de uma pessoa reúne-se toda uma série de incertezas; acon-
tecimentos que terminam só num certo sentido; toda uma série de rela-
ções que, apesar de continuarem, passam agora a ser diferentes; passam,
pela diferença relativa que convocam, a fazer mais sentido. Elas existem
na medida em que são as mesmas, mas sem ficarem iguais a si próprias.
Os companheiros do rei Nyakyusa que o abafavam, faziam-no por amor
ao rei como pessoa, tanto quanto ao rei como epítome do povo — os
dois aspetos confundiam-se na pessoa do companheiro deles. Assim, ao
matá-lo, eles queriam evitar a morte do rei e, portanto, do povo que par-
ticipava na entidade viva do rei. As relações que sobrevivem à morte são

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Prefácio

como as relações que sobrevivem a tantas outras coisas — como, por


exemplo, a separação de dois amigos quando um vai de viagem. Santo
Anselmo queixava-se de que, quando era obrigado a deixar os monges
com quem vivia no convento, sofria de uma dolorosa «cesura da alma».
A morte das pessoas é um caso mais extremo dessa cesura.
Espaço e tempo estão sempre interligados. Por isso, a morte não é só
uma questão de descontinuidade temporal, ela prende-se sempre com a
terra. A nossa vida enquanto pessoas (o que os antropólogos chamam a
ontogénese pessoal) nunca ocorre no vazio, nem poderia jamais ocorrer
no vazio: o corpo é um aspeto da pessoa. Por isso, a nossa duração ocorre
sempre por relação a um espaço. Ora, como a vida é social, esse espaço
é sempre um meio ambiente partilhado. Por isso o tema da morte em
movimento que os vários autores exploram neste livro é muito bem es-
colhido. E aí perguntamo-nos: se a morte é um movimento, em que me-
dida é que ela reflete o movimento de quem morre? Durante todo o sé-
culo XX, a propensão sociocêntrica levou-nos a valorizar a estrutura, a
estabilidade, a ordem nas nossas análises dos fenómenos socioculturais.
Queríamos que o movimento fosse movimento em ordem, fosse pro-
gresso — o chavão de Auguste Comte. Nações inteiras foram construídas
na base dessa vã esperança.
Hoje, porém, vemos bem que a propensão sociocêntrica nos toldava a
visão antropológica e nos impedia de entender que as fronteiras que os
humanos erguem entre si estão inevitavelmente em movimento. As pessoas
mexem-se e, com isso, mexem as fronteiras do mundo em que circulam.
Há portugueses enterrados por todo o mundo; há cemitérios judeus ou
arménios nos mais variados locais (onde, hoje, muitas vezes, já há poucos
judeus ou arménios); há gente morta que fez longas viagens para acabar
enterrada na terra de onde tinha partido muitos anos antes. (Haverá ainda
entre os leitores quem tenha lido em criança o brilhante livro de Jules Verne
Tribulações de um Chinês na China onde o autor brinca com esta aporia?)
Por isso, nem todos os movimentos de morte são iguais. A diáspora
arménia ou judia são movimentos de morte que produziram mortos cuja
terra já não existia; mas tal não era o caso com os portugueses. Afinal,
Fernão Mendes Pinto voltou à quinta do pai no Pragal para escrever o
seu inesquecível livro antes de morrer! Ora isso alerta-nos para o facto
de que existe uma relação inapagável entre pessoas e mundo; uma relação
entre os atos de socialidade e a terra em que se inscrevem. Não foi por
acaso que Mário de Sá-Carneiro — o poeta que melhor escreveu sobre a
ambiguidade da pessoa — escolheu um hotel em Paris para o seu famoso
suicídio. Muitos dos que emigram guardam a sua terra, mas outros per-

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Movimentos, Espíritos e Rituais

dem-na. Ele não tinha podido viver com a sua terra; tinha perdido uma
terra que tinha sido sua. Esse outro tão famoso suicida, Stefan Zweig,
também estava literalmente desterrado. Ele descobriu que, apesar de ter
sido muito bem recebido no Brasil, não podia continuar a ser quem era
numa nova terra. Quando perdemos a nossa terra, altera-se muito radi-
calmente o nosso ser enquanto pessoa. Mas será que, tal como nestes
casos, se altera sempre no sentido de promover a inviabilidade da pessoa?
Creio que não, já que houve muitos movimentos humanos (de pessoas
tanto quanto de coletivos) que acabaram por reinventar novas terras.
O movimento, contudo, é sempre um desafio à inserção social e, por
isso, um desafio à pessoa que, mudando de terra, corre o perigo de não
poder reconstruir-se.
Em 1985, uma colega minha na Universidade de Southampton foi
convocada na qualidade de tradutora a um hospital onde estava um por-
tuguês que, sofrendo de cancro terminal, não sabia falar inglês e era ne-
cessário recolher os seus últimos desejos. O homem contou à colega que
havia trinta anos que era cozinheiro de uma família rica em Jersey. Não
tinha amigos na ilha e os seus familiares em Portugal estavam todos fa-
lecidos. Não tinha desejos específicos a comunicar. No dia seguinte, a
minha colega voltou lá para o visitar, mas ele já tinha morrido. O seu
corpo terá sido usado para fins médicos? Ninguém sabe hoje traçar o
que terá acontecido a este homem sem amarras ou qual terá sido a sua
história tal como ele a contava a si mesmo nessas suas últimas horas.
O exemplo é relevante porque, contrariamente a Mário de Sá-Carneiro
ou a Stefan Zweig, ou aos judeus que eram passantes em Lisboa durante
a II Guerra Mundial e que, tendo morrido, estão enterrados no Alto de
São João, este foi um homem que morreu duplamente, não ficou sequer
memória do seu nome. Qual será a percentagem de pessoas na história
da humanidade que desaparecem assim tão totalmente, sem deixar qual-
quer marca entre os restantes? A morte das pessoas é, tal como a pessoa,
um fenómeno complexo, mas não terá ele sofrido uma morte dupla?
Lembra-me a famosa rima jocosa de Carlos Tê, esse mestre do ser por-
tuguês: «Encenei o meu enterro/Para saber quem aparecia/E só de não
te ver por lá/Julguei mesmo que morria.»
Estes são os esquecidos — e não são a maioria. Mas existem pessoas a
quem a morte é recusada, ou a quem os outros querem roubar a morte.
Portanto, no sentido em que a morte da pessoa é mais do que a simples
morte do corpo, torna-se possível cometer morticídio — isto é, matar
a morte, se me permitem o neologismo. Tal é o caso dos albinos, na África
Oriental, de quem os seus conterrâneos afirmam que «não morrem». Que

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Prefácio

quererá mesmo isto dizer? – tenho-me perguntado muitas vezes. Que in-
formação é secretamente contida numa afirmação de tal forma imprová-
vel? E, por isso até (porque não morrem), os pedaços de corpos de albinos
têm um enorme valor para a magia negra — mais uma vez a ver com a
terra, da qual estas relíquias supostamente ajudam a retirar ouro! Por isso,
ocorreu na última década um surto de ataques a crianças albinas cujos
membros são brutalmente decepados para esse fim! Recentemente, um
grupo de albinos decidiu alertar mediaticamente para esta trágica situação
na Tanzânia, no Malawi, na África do Sul e em Moçambique. Esperemos
que consigam que a sua voz se ouça no meio de uma tão ignóbil tragédia.
Os albinos são negros e são brancos e, como tal, não são nenhum
deles, e por isso não têm lugar numa terra que, para os africanos, é terra
negra: como quando o grande poeta da africanidade, Léopold Sedar
Senghor, chama à mulher negra nua a sua Terra Prometida. A morte dos
albinos é-lhes, por isso, simbolicamente roubada. Dirão: é tudo só um
jogo de símbolos. Sim é, mas é um jogo onde a vida e a morte estão tão
profundamente imiscuídas, que há quem, por ganância, roube a vida e
a morte a estes pobres seres oprimidos.
No caso dos albinos da África de Leste, este morticídio não é coletivo,
pois aplica-se a pessoas singulares. Contudo, muitos mais são os exem-
plos na história de morticídios cujo objeto foram coletividades. Por
norma (e felizmente) esse último tipo de morticídio quase sempre é frus-
trado. Senão vejamos, os Yazidis que estão a ser martirizados em massa
nos dias que passam pelos pelejantes da Síria (e é simples de mais dar
responsabilidade por isso a uma entidade mais ou menos fantasmática,
cujo nome nem sequer está estabilizado — ISI, ISIL, Daesh, ou quê?); os
judeus que os consócios de Hitler assassinaram; os mais de um milhão
de arménios que os turcos torturaram e mataram em 1915 — esses todos
continuam vivos num certo sentido, por muito que os alemães de hoje
peçam desculpas ou que os turcos recusem admitir os dados históricos
incontornáveis, ou que os governos de todo o mundo que suportam hoje
essa guerra na Síria deitem as culpas sobre o tal califado fantasma.
Não se sabe precisamente quem organizou a destruição no fim do ano
passado da imponente Igreja Memorial aos Mártires Arménios, erigida
pelos sobreviventes do genocídio em Dayr az-Zawr na Síria. Trata-se,
porém, de mais uma tentativa de morticídio coletivo que, de tão vil, saiu
frustrada. Dayr az-Zawr é o local onde as piores atrocidades foram co-
metidas em 1915 contra mulheres e crianças arménias; foi o palco dos
momentos finais desse movimento trágico e grotesco que foi a expulsão
dos arménios das suas terras ancestrais. Há uns meses, falou-se muito nos

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Movimentos, Espíritos e Rituais

média da destruição de Palmira (por causa da ganância do ouro dos tu-


ristas), mas a este outro ato de morticídio os media europeus prestaram
pouca atenção. E, no entanto, de um ponto de vista humano, é algo de
bem mais perturbante, que mostra que os ódios que causaram o primeiro
grande genocídio da modernidade continuam vivos e capazes de matar
um século depois.
Ironicamente, porém, se houve quem cometesse tal barbaridade é por-
que os mártires arménios ainda estão vivos — a terra deles ainda chora
por eles. Eles são mártires na medida em que o que revive com a morte
de cada um deles como criaturas singulares é superior a eles. Por isso
morrem mas ficam vivos, porque a memória coletiva não a deixa morrer.
Os companheiros do rei Nyakyusa conseguiam manter a vida que o rei
representava ao matar o corpo do rei. Da mesma forma, e contrariamente
ao que desejam, os pelejantes sunitas chamam para sempre à vida os que
querem destruir. Estes atos bárbaros de morticídio que estão a ser prati-
cados um pouco por todo o mundo pretendem matar a memória. Mas
é mais fácil destruir edifícios e matar pessoas do que apagar a memória
pós-traumática. Essas trágicas vítimas, tendo morrido pessoalmente, aca-
bam por encontrar a sua vida na coletividade à qual, como mártires, dão
vida. Essa, afinal, é a lógica do sacrifício — a morte que traz vida.
E assim somos alertados para a contemporaneidade do outro grande
tema deste livro: a invisibilidade da morte. Quando eu próprio, há cerca
de 35 anos, comecei a considerar a questão da morte, o tema da invisi-
bilidade impunha-se forçosamente, porque os valores civilizacionais
associados à modernidade europeia tinham deitado uma espécie de véu
sobre a morte física. Faziam-no, porque para os modernos a morte tinha-
-se tornado indecorosa.
Só que, passados todos esses anos, perguntamo-nos legitimamente:
que fez esta nossa pós-modernidade da morte? A resposta tem de ser que
a nossa morte continua a ser indecorosa, mas que voltou a ser visível.
A morte tornou-se no grande meio de teatralização da nossa insatisfação
civilizacional; um espetáculo mais contínuo e mais intenso até que o fu-
tebol. Todos os dias morrem milhares de pessoas de forma violenta nas
ruas e praças do nosso mundo, mas sobretudo tudo isso é depois espa-
lhado pelos media pelas nossas salas e pelos nossos ecrãs, nos espaços
mais privados. Ora, a julgar pelo que os poderosos do nosso mundo
dizem (Hillary Clinton, Theresa May, Angela Merkel, François Hollande,
Vladimir Putin...) vão continuar ainda a acontecer muitas dessas mortes-
-espetáculo pelos anos que aí vêm. Os mortos de Nice, Paris, Londres,
Nova Iorque, Síria, Yemen, Afeganistão... Morrem para serem vistos por

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Prefácio

nós. Não creio que haja hoje no mundo mais assassinos do que havia
antes. E a morte-espetáculo sempre existiu — não eram isso, afinal, os
auto de fé dos que eram encenados no Terreiro do Paço ou os enforca-
mentos públicos tão característicos das cidades anglo-americanas? Mas
hoje a espetacularidade dessas mortes e dos espaços destruídos que as as-
sinalam é universal (quem não sabe hoje como fica uma cidade como
Alepo quando é bombardeada pelos americanos, ingleses, russos ou fran-
ceses?).
A morte como moeda política está hoje mais visível do que jamais es-
teve. Porque não é só no mostrar de corpos mortos ou de ruínas onde
estão soterrados corpos humanos que há espetacularização da morte.
É também no convocar das imagens de quem já viu mil e uma cenas
desse género. Chegámos ao ponto de uma primeira-ministra inglesa, para
poder consolidar o lugar para o qual acabara de ser nomeada, ter de afir-
mar publicamente no Parlamento (e, portanto, em todos os milhões de
ecrãs que temos em casa) que estaria disposta a acionar uma bomba nu-
clear, caso os interesses da Grã-Bretanha o justificassem. Eu acho que ela
estava a mentir, já que ela sabe que se carregar no botão a probabilidade
de estarmos todos mortos dentro dos segundos seguintes é muito alta —
mas isso é algo que nunca poderemos confirmar.
A questão é que o espetáculo em que ela participava, o palco onde
era atriz, é um teatro mediático de viabilização e validação dos interesses
milionários que controlam o nosso mundo e que pessoas como outro fã
do nuclear, Donald Trump, representam. O espetáculo fantasmático que
ela anunciava é por nós todos conhecido. Já todos vimos fotos de como
ficou Hiroxima e o que aconteceu às pessoas que lá estavam. Ao ouvi-la,
uns, como eu, contemplavam a possibilidade de estar entre os incinera-
dos; outros, como ela, achavam que iriam escapar por uma unha negra.
Por isso, há todo um discurso sobre privilégio escondido nestes espetá-
culos pós-modernos de morte.
Em suma, numa época em que morre num ano tanto gente afogada
no Mediterrâneo à procura de emprego, como morrem infelizes apanha-
dos no meio das guerras do petróleo do Médio Oriente, a invisibilidade
da morte parece ter terminado. Se a morte normal de cada um de nós é
cada vez mais decorosamente invisível, a morte espetáculo é cada vez
mais espetacular e ocorre em cada vez maior quantidade. Vivemos no
mundo da morte hipervisível onde a lógica do sacrifício (que produz
morte para dar vida) é cada vez mais a moeda mediática deste nosso
mundo em desassossego.
Agosto de 2016

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Clara Saraiva
Simone Frangella
Irene Rodrigues

Introdução

Mobilidade e lugares da morte


Como é que se morre em movimento? E como é que se recriam luga-
res de pertença a partir dessa morte em movimento? Numa sociedade
ocidental em que a morte se tornou um tabu, e que é pensada como algo
que só acontece aos outros, este distanciamento face ao último rito de
passagem da vida pertence à esfera do mito e do preconceito – a suposta
invisibilidade da morte. Mas a morte levanta questões que se prendem
com a mobilidade dos indivíduos mas também com a criação de lugares
de pertença e de ligação com os espaços de origem.
Num mundo globalizado, como morrem os imigrantes, sempre em
movimento entre os seus países de origem e os seus destinos migratórios?
Apesar do interesse suscitado pela recente condição de Portugal e da Eu-
ropa enquanto país e continente de imigração e de toda a investigação
realizada nesse âmbito, têm sido negligenciadas algumas questões im-
portantes relacionadas com os estados de sofrimento e morte – «estados
de aflição» – dos imigrantes. A morte, em particular, é um tema difícil
mas crucial que não tem sido tocado nos estudos sobre imigração.
Como é que os imigrantes percecionam a morte e a incorporam na
conceptualização da diáspora? Como é que os diferentes grupos de imi-
grantes conceptualizam o sofrimento e a morte nos outros grupos?
Como é que os portugueses e os outros europeus olham para a morte
dos imigrantes, um assunto pouco discutido mas que gera preconceitos
e mistificações variadas?
No entanto, para os próprios imigrantes, é uma realidade com que
têm de lidar e que frequentemente determina o tão ambicionado regresso
temporário a casa. A morte é aqui vista não apenas como um momento
no tempo, mas como um processo, que envolve estados emocionais es-
pecíficos e que desencadeia o uso de rituais para lidar com a inevitável
angústia que tende a adquirir aspetos ainda mais complicados quando
se está longe de casa.

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Movimentos, Espíritos e Rituais

Nos vários capítulos deste livro analisaremos os níveis múltiplos que a


morte toca, desde os mais simbólicos aos mais práticos. A morte é uma
dimensão onde a abordagem transnacional é obrigatória – juntamente
com o debate crítico sobre o sentido do «transnacional» e as suas caracte-
rísticas multifacetadas – já que encerra uma intensa circulação, não apenas
de bens materiais e riqueza, mas também de universos significativos e sim-
bólicos que circulam juntamente com os bens e as pessoas: o corpo, mas
também os espíritos e as relações com o outro mundo que as pessoas trou-
xeram para a diáspora. Presos numa condição liminar, parte dos dois mun-
dos – o de origem, e o território novo a que se tentam adaptar –, muitas
vezes nostálgicos e desejosos de uma justificação para voltar a casa, é mui-
tas vezes a morte que desencadeia o movimento: ou a morte de alguém
deste lado, que obriga a que o corpo seja enviado de volta, ou a morte de
um ente querido no local de origem. Tal circulação representa um luxo
que se torna real através de movimentos de solidariedade baseados em as-
sociações de imigrantes ou em formas de solidariedade intergrupal.
Esta obra pretende desconstruir o que acontece aos mortos imigrantes
e olhar a «gestão da morte», incluindo representações simbólicas bem
como aspetos práticos, que incluem o que acontece aos imigrantes que
sofrem em vida e as práticas de saúde em vigor nos países de acolhi-
mento, as estatísticas nacionais sobre a morte e os processos legais para
repatriamento dos corpos. O livro salienta a heterogeneidade da emigra-
ção portuguesa e europeia, e foca grupos de imigrantes oriundos de vários
quadrantes geográficos e culturais – da Guiné-Bissau, Cabo Verde, Sene-
gal, Brasil, Bangladesh e China. Só pela confrontação e comparação entre
as várias formas de pensar a morte podemos começar a compreender as
constantes e as disparidades que caracterizam tais grupos e trazer inova-
ção para o debate sobre a condição dos imigrantes enquanto populações
vulneráveis mas também resilientes. E essa resiliência pode e deve ser
analisada do ponto de vista da forma de conceptualizar o que todos têm
de mais certo — a morte –, e a certeza de que a continuidade das relações
entre mortos e vivos engloba os que ficam em casa e os que emigram,
unindo assim migrantes e não-migrantes, separados por distâncias físicas,
mas não simbólicas.
A obra inclui igualmente textos mais reflexivos sobre a morte em es-
paços diferenciados (como Timor-Leste ou Madagáscar ) e ainda alguns
mais teóricos sobre a conceptualização humana da morte. Para além do
contexto migratório, há outros movimentos que importa pensar, envol-
vendo a relação entre a produção de lugares e a morte. Em torno do
tema, movimentam-se não apenas corpos, mas discursos, bens, sítios de

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Introdução

sepultamento, resultando na construção de lugares da morte. Estes são,


por sua vez, lugares sociais de extrema relevância para o entendimento
de processos e conflitos de ordem política e de violência social e institu-
cional. Questões relacionadas com as afirmações de identidade nacional,
à reivindicação de pertenças territoriais e do reconhecimento da pessoa
através da evidência da morte configuram movimentos e lugares cons-
truídos através e a partir dos mortos.
O livro está dividido em quatro partes: Parte I: Morte: teorias em mo-
vimento; Parte II: Circulação transnacional de espíritos, corpos e rituais;
Parte III: Morte, migração e saúde; Parte IV: O lugar e os lugares da morte.
Após uma introdução por João de Pina-Cabral, a Parte I inicia-se com
um texto de Maurice Bloch, intitulado «A morte e o que se lhe segue: a
imobilização dos mortos e a migração». É uma análise da relação entre
o orgânico, o inorgânico e os lugares da morte. A partir do seu argumento
de que a morte é um momento em que esta conexão ocorre, e de que a
migração envolve a relação do orgânico (pessoas) com o inorgânico (a
terra sobre a qual eles se movem), o autor leva-nos numa viagem através
da etnografia de Madagáscar e do que acontece com os Malagasy que
emigram e morrem fora dos seus locais de origem.
No capítulo 2, Anastasios Panagiotopoulos parte de um manifesto es-
crito por Johannes Fabian em 1973 sobre a tendência da antropologia para
«paroquializar» e «exotizar» a morte para propor um entendimento da
morte como mediador, nas suas dimensões mais dinâmicas. Este texto pre-
tende, além disso, explorar as particularidades e os desafios teóricos que a
morte nos pode proporcionar, nos chamados contextos «transnacionais».
Eric Gable, no capítulo 3, fala-nos da governabilidade e das noções
de passado e futuro de alguns costumes funerários dos Manjaco da
Guiné-Bissau, pensando nas relações entre morte, pertença e lugar da
morte. Com exemplos que nos levam do tempo da ocupação colonial
portuguesa no século XIX até à atualidade presente dos imigrantes gui-
neenses em Portugal, este texto constrói-se em torno da já conhecida teo-
ria antropológica de que o que se faz com os cadáveres, em termos rituais
e práticos, reflete e ordena a identidade e autoridade social.
Na Parte II, mergulhamos no tema da invisibilidade da morte dos imi-
grantes, onde Irene Rodrigues (capítulo 4) nos conduz numa etnografia
em busca da morte que é também um exercício de desconstrução do
mito da «não-morte» dos imigrantes chineses em Portugal. Já Sol Tarrés
e Jordi Moreras (capítulo 5) tratam a visibilidade da diversidade étnica e
religiosa nos cemitérios espanhóis dando profundidade histórica à «morte
dos outros» em Espanha.

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Movimentos, Espíritos e Rituais

Em seguida, José Mapril (capítulo 6) foca a reorganização simbólica


produzida pela morte de alguém, e a partir da história de uma família
luso-bangladeshi, analisa especificamente as mudanças decorrentes do
estatuto de viuvez e as formas de gerir essas mudanças entre migrantes
do Bangladesh.
Por último, no capítulo 7, Maria Beatriz Rocha-Trindade aborda o
modo como a concretização da vontade que expressa o desejo relativa-
mente ao regresso definitivo ao país natal se processa, no caso dos emi-
grantes portugueses. A autora analisa assim as circunstâncias em que se
processa a «última viagem», e as formas de ritualização e materialização
do regresso a casa dos corpos desses emigrantes.
A Parte III tem início com uma apresentação, da autoria de Violeta
Alarcão, Filipe Miranda, Elisa Lopes e Rui Simões (capítulo 8), dos resul-
tados do inquérito que identifica os fatores associados à ansiedade face à
morte dos portugueses e em imigrantes residentes em Portugal. Através
de modelos multivariados, cruzaram-se variáveis que permitiram demons-
trar as formas e os níveis de ansiedade perante a morte. Já no capítulo 9,
Andreia Jorge Silva, Joana Ferreira Duarte, Violeta Alarcão e Clara Saraiva
tratam das causas de morte das pessoas provenientes de Guiné-Bissau,
Bangladesh, China, Brasil e Cabo Verde com nacionalidade portuguesa.
Através de dados quantitativos, foram recolhidos e analisados dados fun-
damentais para a Saúde Pública, a fim de ajustarem o planeamento de
saúde às especificidades culturais, sociais, étnicas, genéticas ou outras.
Finalmente, na Parte IV («O lugar e os lugares da morte»), António
Medeiros aborda no capítulo 10, «Encontros com a morte no Noroeste»,
a circulação de costumes funerários e as representações folclóricas da
morte entre o Minho e a Galiza. O fluxo de bens referentes à celebração
da morte e da promoção da celtofilia nesta zona fronteiriça promove di-
ferenças e semelhanças culturais em disputa, desafiando discursos de per-
tença nacional. Ottavia Salvador analisa no capítulo 11 os diferentes lu-
gares da morte de imigrantes em Itália através da produção dos discursos
públicos e das experiências dos migrantes no processo de repatriação de
corpos, trazendo à tona os processos de silenciamento e de invisibilização
da gestão destes processos. Para encerrar esta secção, o texto de Rui Graça
Feijó e Susana de Matos Viegas examinam no capítulo 12 a relação entre
os túmulos de ancestrais e de mártires da nação e a pertença territorial
em Timor-Leste. O reenterramento de corpos para sítios que conectam
casas, ancestrais e heróis marca a construção de lugares da morte como
indicadoras da experiência vivida contemporânea em Timor-Leste.

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Parte I
Morte: teorias em movimento
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Maurice Bloch

Capítulo 1

A morte e o que se lhe segue:


a imobilização dos mortos
e a migração
O transcendental e o transacional
Os seres humanos enfrentam um dilema. Vivem em contínua trans-
formação. Tal realidade afeta os seus corpos, os seus cérebros e mentes,
as suas relações com o ambiente em que se movem e, sobretudo, as re-
lações que estabelecem com outros membros da sua própria espécie.
Claro que esta condição de ininterrupta alteração abrange todos os seres
vivos, incluindo os primatas, os nossos parentes mais próximos. De facto,
podemos mesmo dizer que é este processo de transformação que permite
às espécies persistirem ao longo do tempo.
Contudo, a transformabilidade inerente à própria vida não cria quais-
quer problemas às criaturas não-humanas, ao invés do que se passa con-
nosco. A contínua transformação é, para todas as criaturas vivas, um facto
inescapável da vida; porém, para os humanos, existe uma condicionante
social que lhes exige a negação desta fluidez permanente. Os seres hu-
manos criam sistemas sociais que parecem transcender o tempo e adqui-
rir uma aparência de estabilidade. Estas típicas negações da mudança só
podem existir numa forma obscura e a nível da imaginação, já que a rea-
lidade nua e crua é que nos é impossível negar a natureza orgânica que
é a nossa. Porém, isso não nos impede de tentar. Estes sistemas imaginá-
rios de estase de entes nem humanos nem não-humanos tornam-se mais
óbvios quando temos em conta aquilo a que os funcionalistas estruturais
chamaram grupos corporativos. Estes grupos podem ser clãs, nações, ou
outros, que mantêm existência para lá da vida orgânica e das inconstantes
ações dos seus membros. O conceito, como o termo legal «corporação»
sugere, evoca quase corpos imaginários que não podem mais do que es-
tabelecer relações indiretas com os corpos biológicos e mutáveis das pes-

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Movimentos, Espíritos e Rituais

soas envolvidas na sua constituição. E é assim que um clã pode afirmar


algo como «nós (note-se o substantivo) viemos para este vale há trezentos
anos e aqui vivemos desde essa altura, e continuaremos a fazê-lo para
sempre» (note-se o uso do verbo «viver»).
O mesmo carácter de negação do tempo fenomenológico, e portanto
da afirmação da transcendência da vida, ocorre em relação àquilo a que
os cientistas sociais chamam papéis. Vejamos um exemplo simples: a re-
ciprocidade dos papéis entre um pai e uma filha. Estas relações parecem
existir independentemente, ou mesmo apesar da constantemente alterada
relação empírica que existe entre os dois indivíduos que desempenham
esses papéis. Um pai pode nunca ver a filha, pode até nem saber se ela
está viva ou morta, mas os laços que os unem são, de alguma forma, con-
siderados como «existentes» entre os dois, e imunes a qualquer transfor-
mação.
Designei como «transacional» a nossa consciência desta transformação
contínua, desta impermanência e fluidez, e como «transcendental» o sis-
tema imaginário que nega o tempo e que engloba papéis e grupos cor-
porativos. Dado que o transcendental só pode existir na imaginação, esta
tem de ser partilhada, na medida em que organiza uma série de impor-
tantes coordenações entre os membros de um sistema social. A capaci-
dade de criar tais sistemas imaginários é, creio bem, um dado da nossa
predisposição genética herdada, embora, evidentemente, a existência
desta não seja suficiente para explicar as formas específicas que assume
neste ou naquele lugar, neste ou naquele tempo, não mais do que a nossa
predisposição específica para a linguagem é capaz de explicar porque fa-
lamos uma dada língua em particular. E sobretudo não explica de que
forma o transcendental acaba por ser partilhado.
A capacidade humana para criar sistemas com estas características tem
um enorme significado social, e explica muito provavelmente porque é
que, entre todas as espécies de animais sociais, são os humanos os únicos
capazes de estabelecer sociedades com tão vasta escala que dão, além do
mais, a ideia de que perduram no tempo. Comparemos a sociedade hu-
mana com o carácter social dos nossos primos não-humanos mais pró-
ximos: os chimpanzés. Estes possuem sistemas sociais complexos, mas
sem carácter de transcendência. A organização social dos chimpanzés é
um produto da natureza das transações que ocorrem entre indivíduos
em determinados momentos e manifesta-se apenas em termos de fatores
como alianças e estrutura de poder. Um chimpanzé dominante mantém
essa posição graças a uma permanente manipulação das relações que es-
tabelece com outros animais e à sua força física. No instante em que ele

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A morte e o que se lhe segue: a imobilização dos mortos e a migração

ou ela perdem o pé no inconstante jogo do poder, deixa de ser um animal


dominante. Assim, a sociedade dos chimpanzés reduz-se ao estado das
transações no seio do grupo em cada instante particular. Está em cons-
tante transformação, tal e qual como os corpos dos seus membros. Um
lado da sociedade humana é similar, fluindo e alterando-se, mas temos
também o transcendental, e essa fração existe, até certo ponto, para lá
dos momentos fátuos, na forma de grupos e de papéis.
Como já deixei vincado, o sistema transcendental tem de ser do do-
mínio do imaginário, já que se encontra em contradição clara com o
facto da transformação contínua, mas para que esta imaginação seja par-
tilhada e coordenada deve possuir, ao menos durante algum tempo, uma
fundação empírica que permita essa partilha. Para que essa base seja uma
realidade, o transcendental recorre a vários recursos. Dois deles salien-
tam-se. Um é o ritual, o outro, a cultura material.
Não pretendo nesta ocasião alongar-me acerca de rituais, exceto para
fazer notar que estes envolvem ações que parecem tornar irrelevante a
intencionalidade individual, na medida em que num ritual o que é fun-
damental é seguir outros em quem se confia. Criam-se assim imagens e
estados que parecem transcender o meramente transacional, o qual, para
ter significado, tem de depender das intenções individuais no momento
em que ocorre a ação.
O elemento material que oferece um apoio à imaginação de grupos e
papéis funciona de outra forma. Objetifica entidades imaginárias como
os grupos corporativos ou os papéis. Coisas materiais inanimadas, tais
como máscaras, uniformes, coroas, templos, estátuas, bandeiras, cum-
prem esse papel de forma óbvia. O carácter não transformativo dos seus
constituintes pode servir para demonstrar o carácter antiorgânico ou não-
-orgânico dos seus referentes.
A instanciação do transcendental pelo inorgânico serve bem o propó-
sito da manutenção de um sistema que é uma negação da fluidez da vida
orgânica e das relações sociais, e que transcende o tempo

O orgânico, o inorgânico e o inamovível


As práticas funerárias envolvem com grande frequência tanto rituais
como objetos materiais que conferem ao transcendental uma existência
empírica e que, de várias formas, exemplificam aquilo que o ritual ex-
prime. A morte, como foi sublinhado por autores como Hertz, é uma
espécie de desafio ao que seria a ordem do transcendental, capaz de re-
sistir ao tempo, embora eu me sinta tentado a pôr as coisas de outra

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Movimentos, Espíritos e Rituais

forma e dizer que os funerais são momentos privilegiados para a criação do


transcendental na imaginação, através da oferenda de símbolos materiais
do que a mente é capaz de imaginar (Hertz 1907). Assim, a morte é mui-
tas vezes um momento privilegiado em que a substituição do transacio-
nal pelo transcendental pode ser representada.
Esta representação da substituição ocorre em vários passos. Na maior
parte dos sistemas, o primeiro passo requer que se imagine que o corpo,
na morte, entrou num estado transacional exagerado, através de uma es-
pécie de deleite macabro que dá ênfase, pode mesmo dizer-se caricatura,
o transacional, através do foco na putrefação da carne. Depois, em mui-
tos funerais, este aspeto transacional caricatural torna-se uma base con-
trafactual para a criação do seu oposto, uma imagem da imensamente
diferente temporalidade do transcendental. Esta mudança assume muitas
formas; por exemplo nas culturas hindu e budista, o corpo tem de ser
completamente destruído, normalmente pelo fogo, de forma que possa
prevalecer uma ordem imaterial. Contudo, em muitas partes do mundo,
e na Europa em geral, a substituição do transacional pelo transcendental
é concretizada pela substituição do cadáver supraorgânico por um ma-
terial não-orgânico como a pedra ou o cimento.
Assim, as práticas funerárias dão muitas vezes um passo mais, relacio-
nando o que há de transformativo na vida com o que há de imóvel no
inorgânico. Não apenas se liga o corpo em rápida decomposição a ma-
teriais como a pedra, como esta está fundada na terra, numa geologia
particular do local.
Nos funerais, a substituição do orgânico pelo inorgânico pode ser um
assunto muito mais complexo do que a simples colocação de uma pedra
no lugar de um corpo em decomposição. Para ilustrar quão subtil e com-
plexa pode ser esta transição de que falo, deixo aqui alguns exemplos et-
nográficos com origem em Madagáscar.
Há algum tempo, num artigo para a Res, uma revista dedicada à cultura
material, a minha colega Rita Astuti voltou à discussão das esculturas
que caracterizam os túmulos dos Vezo, pescadores Malagasy da costa
ocidental do país (Astuti 1994). Estas esculturas, que já não são produzi-
das, têm sido objeto de inúmeras ideias insensatas devido à sua natureza
erótica, facto que inevitavelmente não deixou de provocar a excitação
de viajantes, turistas e colecionadores daquilo a que o museu do Quay
Branly em Paris chama Arts Premiers. O que Astuti demonstra no seu ar-
tigo é que estas esculturas eróticas só podem ser realmente compreendi-
das no contexto dos rituais para os mortos. Atrevo-me a dar outro passo
e a defender que também é necessária uma reflexão sobre a natureza do

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A morte e o que se lhe segue: a imobilização dos mortos e a migração

social, tal como aquela com que comecei este artigo. Os rituais fúnebres
que Astuti analisa envolvem momentos de festa, em que os membros
da família convidam os mortos a participar numa alegre reunião em que
tudo o que os Vezo consideram ser as coisas boas da vida é partilhado
entre mortos e vivos. Nesta lista estão incluídas a comida (sobretudo a
carne), a bebida, o tabaco e o sexo.
O que acontece, porém, não se limita a uma simples partilha. Os mor-
tos, como entidades quase orgânicas, são convidados a juntarem-se à
festa, mas esta é palco de excesso no consumo de todas as boas coisas
mencionadas. Para entender este excesso, temos de compreender que os
mortos são simultaneamente uma fonte de bênçãos, mas também de
temor, dado o seu carácter espectral. Por todo o Madagáscar, estes fan-
tasmas dos antepassados são tidos por invejosos das coisas da vida que
perderam, particularmente comida, bebida e sexo. O propósito destes
festins pode portanto ser visto como duplo. Em primeiro lugar, trata-se
de dar aos mortos aquilo que desejam como seres orgânicos, trazendo-
os para a proximidade dos vivos, e oferecendo-lhes tamanha abundância
que eles não terão motivos para assombrar os vivos; ou seja, esta partilha
exagerada tem por fim afastá-los na sua forma transacional. Espera-se que
eles apanhem uma indigestão! Por outro lado, este epílogo dos mortos
na sua forma perecível abre caminho à sua gradual passagem ao estatuto
de antepassados transcendentais, que distribuem bênçãos. É este processo
que as estátuas facilitam. De facto, apenas ajudam, não levam o processo
até à sua conclusão. O significado da madeira de que são feitas ilustra
muito bem este ponto. Trata-se de uma madeira que se degrada com re-
lativa facilidade e que acaba por ser substituída por pedra. Assim, a ma-
deira destas figuras é um agente de transformação entre uma representa-
ção caricatural do transacional que é feita pelo cadáver em putrefação e
a imobilidade final da pedra; algo a que poderíamos chamar a represen-
tação caricatural do transcendental. É de facto necessário pensar nas fi-
guras eróticas neste termos, simultaneamente como parte dos processos
do início da celebração de um antepassado e da expulsão do ser orgânico.
Assim, as figuras esculpidas na madeira oferecem um paralelo ao ritual,
como um estágio intermédio entre o orgânico e o não-orgânico, o tran-
sacional e o transcendental.
Esta utilização da madeira, um material perecível, em esculturas fune-
rárias pode ser encontrada em muitas outras paragens pelo mundo fora.
Susan Kuechler descreve um caso similar (Kuechler 2002). Um ponto
fundamental é que estas estátuas em Madagáscar e na Melanésia são feitas
de uma madeira que muito depressa se desfaz. Como madeira, são cele-

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Movimentos, Espíritos e Rituais

brações dos mortos, mas a madeira, como já discuti antes (Bloch 1998)
tem a capacidade de simbolizar uma transição do animado para o inani-
mado. Para muitos povos de Madagáscar, as árvores estão vivas e são fas-
cinantes, mas de uma forma ambígua. São grandes coisas vivas, de ma-
terial muito duro, porém nem elas conseguem escapar à transformação
do orgânico. Ou seja, as árvores são feitas de madeira, algo que é quase
inorgânico e inanimado mas que, por fim, mesmo separada da origem,
não escapa à transformação e degrada-se, desfaz-se. É isso que acontece
às estátuas funerárias. O que Astuti realça é que estas figuras evocam uma
simultaneidade ambígua entra a continuação e a expulsão. As estátuas
são feitas com o propósito último de se desfazerem e desaparecerem.
Nessa altura, tudo o que resta são as pedras do túmulo, ou talvez ci-
mento, visto como algo também completamente inanimado, totalmente
imóvel e colocado num local, potencialmente para sempre.
Este padrão de transformação relaciona a carne em putrefação e a per-
manência da pedra através de intermediários. É algo que se encontra por
todo o Madagáscar e em muitas outras áreas do mundo, onde as dife-
renças entre entidades animadas e inanimadas, orgânicas e inorgânicas,
são utilizadas numa filosofia que liga o transcendental, aparentemente
permanente, e o vivo, em contínua mudança, através de substâncias
como a madeira, capazes de estabelecer uma subtil ponte entre os dois.
Contudo, em muitos lugares pelo mundo, este processo de substitui-
ção da vida transformável pelo inorgânico imóvel obriga a um outro ele-
mento implícito. O corpo em acelerada decomposição é associado a ma-
teriais inorgânicos e portanto pleno de permanência, graças à associação
a materiais como a pedra, mas esta, não-transformável, tem também o
papel de um elo permanente à terra no qual o corpo é inumado, e por-
tanto a um local particular na geografia geológica do lugar. Estas práticas
funerárias começam portanto por substituir o corpo orgânico ainda em
transformação pela aparentemente imutável pedra inorgânica, mas depois
colocam este objeto inorgânico num lugar definido, abolindo assim e
por fim o processo transformativo da vida transacional, sobretudo um
dos seus aspetos: a capacidade dos seres vivos de se deslocarem.
Funerais deste género celebram, enfim, a interrupção definitiva do que
era o movimento do corpo no espaço. Quanto tal acontece, e ocorre
com frequência, a relação entre as práticas funerárias e as migrações hu-
manas assume realmente o carácter de um desafio.

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A morte e o que se lhe segue: a imobilização dos mortos e a migração

Corpos em decomposição
e lugares permanentes
O sucesso último da transformação do orgânico em inorgânico é a
completa e final associação das pessoas com o lugar. Assim, as pessoas
transformam-se nos lugares (Bloch 1995). Esta estabilidade localizada é
alcançada através dos funerais em muitas outras zonas do mundo além
de Madagáscar, embora numa ampla variedade de configurações. Mas
constitui também a estrutura do desafio que é criado pelas migrações.
A forma como um tal sistema se liga às migrações foi o assunto de
que tratei no meu primeiro livro, Placing the dead (Bloch 1971). Foi ba-
seado no trabalho de campo que realizei para a minha tese de doutora-
mento, desenvolvido na área central de Madagáscar, no seio dos Merina,
que vivem na região em torno da capital; na realidade, porém, a minha
pesquisa foi efetuada longe do coração do território dos Merina, numa
região fronteiriça que, há cem anos, era praticamente desabitada e que
assim se abriu à possibilidade de colonização, através da criação de novos
arrozais. Houve vários fatores que levaram as pessoas a irem viver para
este novo território: 1) escassez de terra nas áreas de origem; 2) tentativa
de escapar a várias formas de controlo governamental; 3) fuga depois de
revoltas contra o governo colonial; 4) deslocação de descendentes dos
escravos que foram libertados em 1896 mas a quem não tinham sido
dadas terras na zona onde tinham sido libertados.
Para as pessoas de ascendência livre, a situação criada pela migração
para estas novas terras era muito diferente da que se punha para os des-
cendentes de escravos. Vou começar por tratar da primeira situação.
Para os Merina, tanto no passado como na atualidade, um valor central
é o da junção, depois da morte e por vezes mesmo muito depois de esta
ter ocorrido, das ossadas dos membros de uma linhagem, em grandes
túmulos de pedra ou pedra e cimento. Esta reunião envolve uma varie-
dade de rituais nos quais os mortos são gradualmente reunidos e condu-
zidos ao túmulo da família. Tal como nos casos já mencionados, este
processo envolve a transformação do corpo. Neste caso, a alteração é so-
bretudo uma questão de eliminação da matéria húmida do corpo, man-
tendo apenas os ossos secos que se vão juntar aos outros no jazigo fami-
liar. A separação da carne putrefacta e dos ossos mais duradouros é já
vista como um passo no movimento do orgânico para o inorgânico, uma
vez que as ossadas têm associada uma ideia de durabilidade e possuem
certa afinidade com a pedra e o cimento que constituem o jazigo. Neste

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Movimentos, Espíritos e Rituais

processo existe um passo intermédio, constituído por uma série de panos


de grande resistência em que os corpos são embrulhados uma vez e outra,
quando o pano anterior tem de ser eliminado. De forma similar à da ma-
deira nos exemplos anteriores, estes panos funcionam como símbolos e,
de facto, como mediadores entre a carne e a pedra do jazigo. O tecido
resiste algum tempo mas acaba por também ele apodrecer. Via estes in-
termediários e os rituais em que são manejados estabelece-se uma relação
entre os ossos, agora já quase livres de resquícios orgânicos, podendo
mesmo dizer-se os restos quase transcendentais, e a pedra e o cimento
do jazigo ou, noutras palavras, uma forma extrema do transcendental.
Tal implica uma ligação aparentemente definitiva e imutável da linhagem
ao túmulo, mas também à terra em que ele se encontra. Esta ligação é
considerada definitiva, e torna os defuntos que ocupam o túmulo senho-
res permanentes daquela terra. Este domínio da terra não pertence evi-
dentemente aos mortos como criaturas transacionais, uma vez que eles
se degradam e apodrecem, mas sim ao grupo ancestral, transformado e
aparentemente eterno e transcendental. Desta forma, constitui uma li-
gação entre todos os antepassados da linhagem cujos restos mortais re-
pousam no túmulo, mas também – e mais importante – todos os seus
membros ainda por nascer, que um dia serão também sepultados no ja-
zigo transcendental. Os grupos estão presos à terra através do túmulo;
poder-se-ia dizer que a terra e o grupo formam uma unidade. O processo
de sepultura conduz, em termos ideais, a uma imobilidade eterna e total,
e a fixação definitiva de humanos transcendentais num local transcen-
dental de particular importância. É um sistema de completa quietude.
Mas há um problema. Ao contrário das ossadas e das supostamente
eternas pedras inorgânicas, e da localização do jazigo, as pessoas, orgâni-
cas e animadas, transacionais, no fundo aqueles que vão alimentar o tú-
mulo, deslocam-se e, no exemplo que descrevi em Placing the Dead, mi-
gram, naquele caso para novas terras. Esta deslocação cria um dilema.
Ou as pessoas tratam de fazer regressar os seus corpos, depois de mortos,
aos seus túmulos ancestrais na área de origem, de forma a serem sepul-
tadas junto de outras pessoas com quem, ao fim de tanto tempo, já
pouco têm em comum, ou dão início ao difícil processo de erigir novos
túmulos no local onde passaram a vida, depois de migrarem. Fazê-lo
equivale a quebrar as ligações ao seu grupo ancestral original e depois
criar uma nova ligação, aparentemente inquestionável, entre eles mesmos
e a terra que colonizaram, particularmente os arrozais que criaram. Exis-
tem duas razões para que este seja um processo difícil. A primeira consiste
no facto de todo o edifício simbólico se basear, como já foi dito, na

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A morte e o que se lhe segue: a imobilização dos mortos e a migração

noção de imobilidade intemporal e de permanência de um túmulo.


A ideia de que estes se podem deslocar é uma contradição em si mesma.
Em segundo lugar, a criação de um novo túmulo no novo território tem
enormes custos sociais. São quebrados os laços com os outros membros
da linhagem que ficaram na área original ou que, tendo-se deslocado
para outras regiões, mantêm presumivelmente a intenção de serem se-
pultados na terra de origem.
A razão para fazer regressar os mortos aos túmulos da área de prove-
niência, mesmo que a migração tenha ocorrido já há algumas gerações,
é que os túmulos na área original se tornam, à medida que as pessoas a
eles ligadas se deslocam para outras áreas, potenciais centros de redes
para indivíduos que vivem em áreas muito diferentes e que possuem po-
sições sociais muito divergentes, já que as pessoas partem das suas áreas
de residência original por um grande número de razões. Partilhar a in-
tenção de ser sepultado num túmulo comum na terra de origem pode
assim tornar-se até uma forma de manter uma ligação com parentes que
vivam no estrangeiro, em França, por exemplo. Estas ligações possuem
um enorme valor quando se pensa no futuro, já que poderão ser usadas
como avenidas sociais para uma futura migração em cadeia e para ter
acesso a parentes potencialmente úteis que sejam, por exemplo, funcio-
nários públicos na nova área. São assim estas as razões práticas para fazer
regressar os mortos à sua área ancestral.
Por outro lado, construir um novo túmulo e contrair matrimónio entre
os vizinhos (as duas coisas ocorrem normalmente em conjunto) possui
a distinta vantagem de fortalecer posições locais nas novas áreas. Fazê-lo
reveste-se de significado tanto em termos políticos como económicos,
pelo menos a curto prazo, em contraste com o planeamento a longo
prazo que se exige para devolver os restos mortais ao túmulo da área an-
cestral. Para aqueles cujos antepassados sempre foram livres, o aparente-
mente inquebrável laço entre túmulos e terra dá origem tanto a oportu-
nidades como a dilemas.
Para os descendentes de escravos, os problemas provocados pela mu-
dança para novas regiões são muito menores, porque para eles não existe
grande vantagem em manter, através da localização dos túmulos, uma
ligação com a área de onde se deslocaram. Estes laços a uma localização
original não envolvem de forma alguma a antiga propriedade ou domí-
nio sobre essa área; muito pelo contrário, essa associação serve apenas
para sublinhar o facto de que os seus antepassados nada controlavam
nesse local, nem sequer as suas próprias pessoas. Desta forma, os descen-
dentes de escravos têm um forte incentivo para romper os laços com a

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Movimentos, Espíritos e Rituais

sua área de origem e, assim, criarem um laço aparentemente permanente


com a terra onde acabaram por se estabelecer. Assim, os descendentes
de escravos tentam, assim que possível, construir novos túmulos nas
novas áreas de ocupação, de forma a fazerem desaparecer a sua ligação à
escravatura e se tornarem senhores das novas terras. Ao criarem novos
túmulos, os migrantes descendentes de escravos como que revertem a
básica lógica simbólica dos Merina centrada no imobilismo eterno mas,
na realidade, transformam-se, ao concluírem desta forma a sua migração,
nos senhores absolutos e livres da terra onde agora vivem. Ao criarem
novos túmulos nas novas áreas, os descendentes de escravos parecem
estar a negar a ordem social tradicional, mas de facto agem ainda dentro
da lógica partilhada do velho sistema que atribui simbolismo aos túmulos
e que é familiar aos outros migrantes que a reconhecem, em grau variável,
como legítima.

Migração para o estrangeiro


Toda esta ou estas histórias podem ser vistas como tendo aplicação
apenas a situações muito específicas, dependentes das ideias dos Mala-
gasy sobre parentesco, corpos e túmulos, mas isso seria subestimar o mais
global significado daquilo que podemos aprender a partir da situação em
que se veem os migrantes de origem Malagasy noutros países.
Nas últimas décadas, um grande número de migrantes de etnia Mala-
gasy vieram para países como a França e a Suíça, para aí viverem de forma
permanente. Entre eles, existem muitos Merina de ascendência livre.
Quando ocorre uma morte entre eles, veem-se obrigados a enfrentar o
mesmo dilema que os que apenas mudaram de região. Devem tratar do
envio dos seus corpos e dos seus parentes de volta a Madagáscar, voltando
dessa forma a selar o laço com a linhagem eterna, inorgânica e transcen-
dental constituída pela família e pelos antepassados, através do túmulo
comum? Se o fizerem, manterão as relações sociais com outros membros
do seu grupo ancestral, através da transformação e fusão dos corpos, e por
fim das ossadas, com os outros membros dispersos mas associados ao
mesmo túmulo e ligados pelo parentesco. A manutenção dessas ligações
tem a sua utilidade, já que entre esses muitos outros indivíduos que par-
tilham um túmulo em Madagáscar pode existir quem se tenha dispersado
pela geografia e pela sociologia da própria ilha (o que se pode revelar de
grande utilidade no futuro), mas pode também existir quem faça parte de
uma grande rede global de parentes que podem encontrar-se em lugares
tão díspares como Genebra, Paris, Bordéus ou a Califórnia.

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A morte e o que se lhe segue: a imobilização dos mortos e a migração

Deveriam estes migrantes no estrangeiro, por outro lado, quebrar os


laços com a tradição e serem inumados no país onde agora vivem?
Para compreender completamente a natureza deste dilema, é impor-
tante relembrar aqui um elemento fulcral dos túmulos dos Malagasy.
Não apenas juntam a pessoa cujas ossadas regressam às dos seus parentes,
mas fazem-no não só em relação aos antepassados, e sim também aos
das gerações futuras. Não enviar um cadáver de volta à terra implica por-
tanto que não apenas a pessoa emigrou mas que também os seus descen-
dentes terão os laços com Madagáscar inevitavelmente perdidos pela falta
de manutenção da ligação ao túmulo partilhado. Tornar-se-ão simboli-
camente migrantes absolutos, no seio daquilo que poderão no fundo
considerar como uma sociedade hostil. E se isso acontecer, pode bem
dar-se o caso de não encontrarem nenhuma rede social a que recorrer
em caso de necessidade.
Conheço vários descendentes de Merina em França, e para a maior
parte deles a escolha entre enviar os cadáveres de volta a Madagáscar ou
não o fazer é muito mais perturbante do que foi para os que migraram
internamente para novas terras, a que me referi acima. Isto acontece por-
que, embora a questão sobre o que fazer com os cadáveres possa à
primeira vista parecer similar para os migrantes para novas terras e para
os que vivem na Europa, essa semelhança é limitada. Ao construírem
um novo túmulo para a linhagem nas novas terras, os migrantes para
esse novo território ainda dentro de Madagáscar estão na realidade a re-
criar uma sociedade ancorada no local, basicamente do mesmo tipo da
que conheciam na área de origem. Este processo fica consumado com a
construção na área para a qual se mudaram. Ao fazê-lo, estarão a ancorar
na terra aquilo que se tornará um novo grupo familiar. Nessas circuns-
tâncias, estarão também rodeados por pessoas que compreenderão per-
feitamente o significado das suas ações. Pessoas que, muito provavel-
mente, estarão a fazer precisamente a mesma coisa. Os deslocados
esperam no fundo poder recriar no novo território uma sociedade em
tudo semelhante à que conheciam antes.
Essa é uma opção que pura e simplesmente não está disponível para
o emigrante que foi para a Europa. O imigrante Malagasy na Europa ou
na América vai-se ver englobado numa sociedade onde está em clara mi-
noria. Talvez alguns Malagasy mais abastados comprem terras para erigi-
rem um túmulo em França, mas ainda assim ele estará cercado por tú-
mulos de outra índole. O sistema não pode de todo ser recriado nessas
terras longínquas.

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Movimentos, Espíritos e Rituais

Porém, mais uma vez o dilema é de natureza muito diferente para os


Merina que descendem de escravos. Nos parágrafos acima tenho falado
dos imigrantes Malagasy em França cujos antepassados eram livres. Em-
bora não tenha conduzido nenhuma pesquisa sistemática sobre este as-
sunto entre eles, conheço alguns nesta situação, e sei bem quão pertur-
bante é para eles a necessidade de proceder a uma escolha sobre o que
fazer com os falecidos. Não sei bem o que fazem os descendentes dos
Merina escravizados numa situação de migração internacional. Isto não
é um acidente, porque como descendentes de escravos eles não criaram,
nem nunca o fizeram tradicionalmente, as transformações de aparente
desafio ao tempo que estão ligadas aos túmulos nos locais ancestrais. Os
descendentes dos escravos não possuem assim as redes elaboradas que
facilitaram a emigração. Há muito poucos a viver no estrangeiro, e estão
muito dispersos. O meu palpite relativamente informado, contudo, é
que estes descendentes de escravos Malagasy costumam, em França, casar
com gente de outra origem, muitas vezes imigrantes com origem noutras
ex-colónias francesas. Não representa grande problema para eles virem a
ser enterrados em vulgares cemitérios franceses, nem que os seus descen-
dentes tenham no futuro o mesmo destino. Tal aceitação por parte dos
descendentes dos escravos Merina não significa que a questão existencial
provocada pelo dilema sobre o que fazer com o seu próprio corpo ou os
de parentes chegados não seja perturbante. A escolha pode ser difícil em
termos pessoais, mas não é de facto tão relevante em termos sociais como
é para aqueles cujos antepassados eram livres. O que se passa é simples-
mente que a formulação do dilema que se apresenta àqueles cujos ante-
passados eram livres de forma clara é diferente e terá menos significado
em termos do social transcendental.
Assim, a situação dos imigrantes para um lugar como a França é fun-
damentalmente diferente da que enfrentam os que migram para novas
terras no interior de Madagáscar. Podemos facilmente imaginar um caso
particular, já que conhecemos vários. As redes transcendentais em que
estiveram envolvidos no passado tornam-se praticamente irrelevantes.
Mas o transcendental não pode ser alcançado quando se está só. Assim,
o migrante isolado terá de recorrer às suas capacidades de relacionamento
interpessoal. Pode assistir ao transcendental em que outros estão envol-
vidos, mas será sobretudo como espectador, ainda que possa acabar por
participar em pequena medida. A sua posição será muito parecida com
a do antropólogo envolvido numa campanha de observação a longo
termo, em que assume um papel de participante. As relações que conse-
guirá estabelecer dependerão da manutenção permanente de interações

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A morte e o que se lhe segue: a imobilização dos mortos e a migração

sociais. Portanto, para ele, a morte é um fim e nada mais. Claro que a si-
tuação do migrante isolado e só é extrema, embora longe de incomum.
Provavelmente ligar-se-á a alguns outros migrantes com passados seme-
lhantes e tentará recriar um pequeno transcendental privado, mas tal não
lhe permitirá estabelecer ligações com a sociedade em que se insere; pelo
contrário, pode bem contribuir para o isolar dela.
Esta é uma história muito específica que terá ressonâncias noutras re-
giões do mundo, mas não deixa de ser interessante considerá-la no qua-
dro dos termos muito gerais com que dei início a este texto. Uma das ra-
zões é que, no caso dos migrantes Malagasy a que aludi, é isto que eles
fazem. Desde que as deslocações sejam feitas em conjunto com outros
membros do seu grupo e que não impliquem demasiada interação com
elementos estranhos, as modificações podem ocorrer com base no sis-
tema transcendental anterior. É este o caso para os Malagasy cujos ante-
passados eram livres. No caso dos descendentes de escravos é necessária
uma regeneração mais profunda. E tal necessidade é ainda mais acen-
tuada para os emigrantes para um lugar como a França. O carácter fun-
damental da mudança é realçado pelo isolamento em que se encontram.
Este reequacionar exige um regressar às mais profundas considerações
dos princípios básicos do problema da ordem social que é criado pela
morte. Podemos imaginar o emigrante solitário a pensar na morte e a
mergulhar numa reflexão acerca da fluidez e da impermanência do or-
gânico e na possibilidade ou impossibilidade da criação de sistemas ca-
pazes de desafiarem o tempo, idealmente ancorados em rituais e objetos
materiais. O que nos leva a considerar a relação do animado com o ina-
nimado, do transacional com o transcendental. Por outras palavras, a mi-
gração conduz as considerações sobre a fundação da existência humana
e as suas contradições à filosofia ou à antropologia.

Referências bibliográficas
Astuti, Rita. 1994. «Invisible objects: mortuary rituals among the Vezo of western Mada-
gascar». Res: Anthropology and Aesthetics, 25: 111-112.
Bloch, Maurice. 1971. Placing the Dead. Londres: Seminar Press.
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Laura Rival. Londres: Berg.
Hertz, Robert. 1907. «La représention collective de la mort ». L’Année Sociologique Première
Série, t. X.
Kuechler, Susanne. 2002. Malanggan: Art, Memory and Sacrifice. Oxford: Berg.

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Anastasios Panagiotopoulos

Capítulo 2

A morte em movimento:
uma abordagem teórica sobre a morte
e suas possíveis implicações
em contextos transnacionais
Morte e antropologia
Qualquer tipo de abordagem sobre a morte que aspire a algum tipo
de engajamento frutífero com o assunto deve, de um modo ou de outro,
descartar a visão de que o fenómeno é linear, inequívoco e unidimen-
sional. Não sendo a morte o fim, torna-se, portanto, não apenas um fe-
nómeno etnográfico largamente encontrado, de crenças e práticas rela-
cionadas com a morte, o enterro, o velório e a vida após a morte, mas
também um posicionamento teórico que desacelera, por assim dizer, o
nosso ritmo interpretativo, e concede à morte a vitalidade e o fôlego que
ela merece. Partindo desta proposta, o tema abre-se para um amplo es-
pectro de visões e atitudes que apontam para as suas dimensões mais di-
nâmicas e múltiplas. O posicionamento de que a morte não é o fim abre-se,
não somente à variação intercultural, mas também à variação através do
tempo (o que Philip Ariès [1991], por exemplo, nos ofereceu como a
história social da morte no Ocidente), assim como à multiplicidade den-
tro de um contexto sociocultural (como, por exemplo, a diferença entre
a morte dos cidadãos comuns e a dos membros das elites, entre os nativos
e os estrangeiros, ou entre o que é percebido de várias formas como
morte «natural» em oposição às mortes causadas por bruxaria, violência,
acidentes ou suicídio, entre outros). No entanto, a fluidez e a multiplici-
dade da morte enquanto fenómeno social não nos pode levar a uma frag-
mentação infinita (ou como Johannes Fabian [1973] tem qualificado
como «folclorização», «paroquialização» e «exoticização»), porque desta
maneira nós analiticamente «mataríamos» o próprio conceito.

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Movimentos, Espíritos e Rituais

Todas as premissas acima que sublinham uma abordagem mais sofis-


ticada em torno da morte estão presentes desde a criação do que pode-
ríamos, tímida e retrospetivamente, chamar Antropologia da Morte. Há
um amplo e razoável consenso de que os fundamentos foram estabele-
cidos por Robert Hertz, um aluno de Émile Durkheim, que infelizmente
morreu muito jovem, com 33 anos, lutando na I Guerra Mundial. No
seu ensaio relativamente curto, intitulado «Contribuição para o estudo
da representação coletiva da morte» (2009), Hertz, de um modo verda-
deiramente durkheimiano, «batizou» a morte não como um mero facto
biológico, mas como um facto que se «junta à complexa massa de cren-
ças, emoções e atividades que lhe dão a sua característica distintiva»
(2009, 27). Por outras palavras, a morte é um fenómeno social; um facto
social total, como o seu amigo Marcel Mauss chamaria (Mauss 2009, 3);
ou «o objeto de uma representação coletiva» (Hertz 2009, 28).
Partindo de dados etnográficos, sobretudo secundários, recolhidos
sobre os Dayak de Bornéu na Indonésia, Hertz oferece-nos as seguintes
proposições fundamentais. Mais do que um simples evento orgânico
ocorrendo num instante, como é o caso «na nossa própria sociedade»
(2009, 38), a morte é um processo e é descrita como uma transição (isto
é, não como uma aniquilação completa). Isto remete para o corpo do
morto, para a sua alma e para a reação dos vivos que são, de uma maneira
ou de outra, afetados pela morte em questão. O corpo do morto está su-
jeito a dois tipos de enterro, e muitos tabus, sacrifícios, outras atividades
rituais, estados emocionais, comportamentos sociais e visões sobre a pós-
-morte são subsequentemente observados; também de acordo com o
tipo de pessoa que o morto foi ou o tipo de morte ocorrida, como men-
cionei antes. A orientação geral de tudo isso é para o tratamento ade-
quado do cadáver, enquanto a alma está ainda à sua volta e ligada ao
mundo dos vivos, e a busca ativa para fazer este espírito ou esta alma,
novamente através de um manuseio paralelo do corpo, partir e alcançar
a terra dos mortos e dos ancestrais, da maneira mais suave possível.
O carácter transitório da morte, portanto, assenta numa dimensão
dupla com a sua dinâmica particular. Uma requer uma «competência»
culturalmente mediada da persistência temporária do espírito do morto
no mundo dos vivos, e uma esforço ativo para destruir estes laços. A se-
gunda dimensão requer uma «competência» dos laços já cortados com o
mundo dos vivos, para sintetizar os laços adequados com o mundo dos
mortos e, para os vivos, seguir em frente:
Portanto, se é necessário um certo tempo para banir o morto da terra dos
vivos, é porque a sociedade, perturbada pelo choque, deve reconquistar gra-

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A morte em movimento

dualmente o seu equilíbrio: e porque o duplo processo mental de desinte-


gração e de síntese que a integração de um indivíduo num novo mundo pre-
sume é realizado de um modo molecular, por assim dizer, o que requer
tempo [2009, 80-81].

Assim, não é coincidência, argumenta Hertz, a morte ser apresentada


como um fenómeno análogo a outras transições e iniciações socialmente
significativas, como os nascimentos e os casamentos (2009, 80-81), por-
que todos estes são eventos que remetem para um tipo de «renascimento»
social ou, como Arnold van Gennep notavelmente os catalogou, «ritos
de passagem» (1960). Hertz conclui: «Na análise final, a morte como fe-
nómeno social consiste num processo duplo e doloroso de desintegração
mental e síntese. É apenas quando este processo está completo que a so-
ciedade, uma vez tendo a sua paz restaurada, pode triunfar sobre a morte»
(2009, 86).
Poder-se-ia argumentar que o cerne do que tem sido dito e escrito
sobre a morte na antropologia é essencialmente um reflexo (mesmo que
crítico) e uma elaboração adicional (mesmo que muito exagerada) sobre
pontos específicos feitos no ensaio do Hertz. Que a morte é um fenó-
meno social e não apenas biológico é um truísmo tal, hoje em dia, que
o seu poder reside exatamente na sua obviedade. No entanto, e exata-
mente por parecer muito óbvio, não é suficiente para qualquer análise
social contemporânea sofisticada. Neste artigo, não pretendo nem repli-
car fielmente os pontos de Hertz, nem tampouco oferecer uma revisão
abrangente da literatura sobre o assunto (para isso, ver Kaufman e Mor-
gan 2005; Palgi e Abramovich 1984; Robben 2004: Straight 2006). Ao
invés disso, eu gostaria de sugerir temas mais amplos que a morte, en-
quanto fenómeno social, parece inspirar e invocar continuamente. Para
tanto, evitarei deliberadamente examinar em detalhe e com uma visão
demasiadamente crítica o que tem sido dito sobre a morte; mas focar-
me-ei numa tentativa de refinar o melhor possível o que eu considero
ser positivamente interessante e de alcance teórico significativo. Há,
porém, duas posições críticas amplas que mencionarei neste artigo, pois
acredito que elas têm sido centrais na ocorrência de um tipo de mudança
paradigmática que não se pode negligenciar. A meu ver, elas referem-se
tanto aos avanços importantes ocorridos na antropologia da morte como
na disciplina em geral.
A primeira posição é uma crítica direta ao entendimento essencial-
mente durkheimiano de Hertz da morte como fenómeno social.
A importância dada à morte como expressão de necessidades e valores

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Movimentos, Espíritos e Rituais

sociais implica algo que por fim impede o reconhecimento pleno da sua
importância. O que quero dizer com isto é que há uma tendência, se se-
guirmos Durkheim através de Hertz, para tratar a morte como epifenó-
meno de uma realidade mais profunda e transcendental, a da sociedade.
A morte, desta maneira, reflete a reverência inicial da sociedade perante
os seus poderes destrutivos e, subsequentemente, reage em consonância
de modo a superá-los (ou como a última citação de Hertz diz, «triunfa
sobre estes»). Isso implica que há morte em algum lugar, fora da socie-
dade e que a própria sociedade luta incansavelmente para se representar,
por assim dizer. Este tipo de crítica foi muito eloquentemente resumido
na «Introdução» de Death and Regeneration of Life, obra editada por Mau-
rice Bloch e Jonathan Parry que constitui uma contribuição importante
para a Antropologia da Morte. Eles argumentam:
Se podemos falar de reafirmação da ordem social no momento da morte,
esta ordem social é mais um produto de rituais do tipo que consideramos do
que a sua causa. Noutras palavras, não é tanto uma questão da «sociedade»
reificada de Hertz a responder ao «sacrilégio» da morte, mas mais os rituais
mortuários sendo eles mesmos uma ocasião para criar aquela sociedade como
uma força aparentemente externa [1996, 6, itálicos no original].

O que Bloch e Parry corretamente sugerem é que reconheçamos in-


teiramente a força e a importância social da morte, e não apenas que a
tratemos como representando a sociedade, mas sim como constitutiva
desta, em certa e ampla medida. De facto, esta proposição é o que dis-
cutivelmente deu ao estudo sobre a morte mais profundidade e elabora-
ção etnográfica. Para além desta mudança, eu gostaria de argumentar que
alguns «temas» dominantes persistem e com razão. Um tema muito cen-
tral, em minha opinião, é algo que, embora seja vital no «manifesto da
morte» de Hertz, eu gostaria de tornar ainda mais central ao expandi-lo
e enriquecê-lo. Poderia chamar-se algo como a qualidade «ambivalente»
da morte. Vejamos primeiro onde o próprio Hertz alude a isso.
Etnograficamente falando, esta qualidade é mais bem exemplificada
na sua descrição completa do que ele qualifica como «duplo sepulta-
mento». A evidência que ele fornece, combinada com a afirmação de
que algo similar acontece em muitas partes do mundo, demonstra que
dois estágios distintos e claramente separados do enterro acontecem,
sendo a sucessão de um estágio a outro considerado absolutamente vital.
O primeiro estágio ou sepultamento é um intenso e temporário trata-
mento do cadáver, o qual se encontra «num tipo de provação» (Hertz
2009, 34). Isto acontece basicamente porque o espírito do morto parece

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A morte em movimento

deter-se persistentemente no mundo dos vivos, e também porque aqueles


que foram deixados para trás, especialmente os parentes próximos, estão
em estado de choque devido à perda. O que então acontece é uma des-
truição cerimonial gradual dos traços e dos laços materiais e sociais do
morto, para que o segundo e final enterro possa ter início. Com isso o
morto está salvaguardado no mundo dos mortos, ele ou ela tornou-se
um ancestral, e os vivos, como já mencionado, podem prosseguir com
as suas vidas. A qualidade do «ambivalente» aqui é a interação dinâmica
entre «desintegração» e «síntese», como Hertz os qualifica.
Uma abordagem paralela, embora com cunho muito mais funcionalista
do que estruturalista, é feita por Bronislaw Malinowski (1954), que argu-
menta que o medo universal da morte coexiste com uma tendência igual-
mente universal de negá-la. Mais do que a sucessão linear e suave de Hertz
do medo pela negação, Malinoswki não os prioriza necessariamente (nem
em sequência, nem em importância), mas demonstra como um organi-
camente alimenta o (do) outro. Esta interação criativa e regenerativa tem
sido explorada de várias maneiras por muitos outros autores (tais como
Bauman 1992; Becker 1973; Bloch e Parry 1996; Humphreys e King 1981).
Talvez se pudesse dizer que uma segunda fase crítica do estudo da
morte emerge quando ela não parece significativa para a manutenção e
preservação da ordem social. Ao superar a era estrutural-funcionalista, a
morte não aparece apenas como ordem, mas também emerge como de-
sordem. Não se trata apenas de lembrança, continuidade, unidade e con-
juntura, mas também de esquecimento, mudança, contestação e disjun-
ção (exemplos representativos que se destacam são Conklin 2001; Kalusa
e Vaughan 2013; Seremetakis 1991; Vitebsky 2008). Através desta mu-
dança paradigmática significativa, argumento que o aspeto «ambivalente»
da morte torna-se totalmente dinâmico. O esquema de transição no geral
linear e suave entre uma fase de desintegração e uma fase de síntese que
domina a teoria de Hertz sobre a morte é perturbado e torna-se apenas
uma das várias possibilidades através das quais a morte se pode revelar
como fenómeno social. Direções opostas apresentam-se como igual-
mente possíveis (por exemplo, da síntese à desintegração) ou, ainda, di-
nâmicas que não tiveram nenhuma direção linear (ver Seremetakis 1991,
48). Isso permite a alusão de que, se há algo a dizer sobre a morte em
geral, é a sua resistência poderosa precisamente à totalização e à genera-
lização (ver Schleifer 1993, 314). Pretendo argumentar aqui que, a fim
de teorizar sobre a morte, podíamos talvez beneficiar consideravelmente
se tratássemos a morte como um mediador poderoso e, ao mesmo
tempo, estarmos abertos às mediações poderosas em si mesmas. O ca-

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Movimentos, Espíritos e Rituais

rácter transicional da morte beneficia imensamente e permite ir além das


tendências estritamente lineares hertzianas, se queremos aproximá-la do
elemento da mediação.
Como uma fonte inicial de inspiração eu recorro à etnografia de Loring
M. Danforth sobre os lamentos funerários na Grécia rural (1982). Dan-
forth oferece-nos a observação, também feita por Hertz, de que morte e
casamento são dois eventos interconectados, especialmente a nível sim-
bólico e emocional. Em particular, os lamentos funerários na Grécia lem-
bram intimamente músicas de casamento, a ponto de serem as mesmas
canções com a mudança de apenas algumas palavras e o tom geral com
o qual são cantadas, para torná-las mais apropriadas para a ocasião. Afinal,
Danforth traz-nos o argumento de que o elemento essencial que é reve-
lado aqui é aquele a que ela chama «metáfora» (1982, 71-115). Em pri-
meiro lugar, o relacionamento entre casamento e morte é metafórico, no
sentido em que ambos são um tipo de partida: respetivamente, a partida
da noiva da casa da família e a do morto desta vida. A similaridade, no
entanto, é vista ao mesmo tempo à luz de diferenças. A partida da noiva,
embora seja um evento triste, não é devastadora como a morte. Isto resulta
na transformação da morte num evento menos dramático e absoluto. Ao
comparar a morte a outro tipo de partida conectada com a vida e menos
definitivo e negativo, a morte, de uma completa negação torna-se, senão
algo positivo, pelo menos mais familiar. Portanto, não é apenas a morte
que é mediada por outra coisa (canções de casamento e vida), mas a morte
em si torna-se um mediador de si mesma, por assim dizer:
A metáfora da morte como um casamento é, no limite, uma tentativa
de mediar a oposição entre vida e morte. Tenta fazê-lo ao estabelecer o ca-
samento como um termo mediador, e afirmando então que a morte é casa-
mento, que a morte não é o que realmente é, um termo polar na oposição
entre vida e morte, mas que é o termo mediador. A metáfora da morte como
casamento «move» a morte de algo oposto à vida a mediadora entre vida e
morte, da antítese da vida a uma síntese de vida e morte [1982, 84].

A secção seguinte leva mais longe essa qualidade mediadora (e neste


sentido, «metafórica») da morte, ao conceder-lhe substância etnográfica.

Os mortos em Cuba
Nesta altura, gostaria de fazer um breve relato da minha própria expe-
riência etnográfica, baseada numa pesquisa feita em Havana, Cuba. Lá,
os mortos podem ser extremamente ameaçadores e presentes nas vidas

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A morte em movimento

quotidianas de muitas pessoas. Os mortos, los muertos, são na maioria das


vezes percebidos através dos sentidos e do intelecto, na forma de ideias,
temperamentos, cochichos, imagens e sonhos, entre outros. Tudo isso
pode ser extremamente efémero, mas uma vez que são entendidos como
casos nos quais um muerto está a tentar comunicar algo, então os pedaços
são associados, para formar identidades individuais de espíritos dos mor-
tos que são considerados «ligados» (apegados) a uma pessoa e afetam di-
retamente o seu carácter, forças e fraquezas e, em geral, durante a vida,
são retratados como «caminho» (camino). Juntar os pedaços do quebra-
cabeças envolve, em primeiro lugar, o que em Cuba é chamado «reco-
nhecimento» (reconocimiento) e, subsequentemente, «desenvolvimento»
(desarollo) do morto. O que é excecional no caso dos muertos cubanos é
que a presença, na maioria das vezes, torna-se «reconhecida», não em
continuidade com as suas mortes e com os seus parentes vivos, mas
muito depois e não necessariamente ligado aos últimos. Este facto con-
tradiz a vasta maioria dos relatos etnográficos sobre os mortos, que en-
volvem pessoas já íntimas dos vivos, quase sempre implicando parentes
próximos e que adquirem o estatuto de ancestrais através de uma varie-
dade de práticas funerárias e pós-funerárias.
Aqueles que conseguem entender os muertos são comummente conhe-
cidos em Cuba como espiritistas (espíritas), um termo derivado da prática
do espiritismo introduzida inicialmente na ilha por europeus e norte-
-americanos durante o século XIX (ver Espírito Santo 2015; Román 2007).
Através deles, os não-médiuns ficam a saber dos muertos que lhes «per-
tencem» (pertenecen), suas identidades, suas biografias enquanto vivos, e
seu estado presente. A informação que os espíritas passam aos vivos não
é minuciosa num relato amplamente detalhado das identidades dos muer-
tos. O seu estado altamente temporário, envolvendo um processo
comum à la Hertz do tornar-se morto, não pode remeter para uma iden-
tidade estável e rígida. Portanto, esta transformação constante na qual
eles se encontram envolve as relações dinâmicas que eles criam com os
vivos e, mais particularmente, com os indivíduos específicos com quem
se ligam. O entendimento geral é que os muertos, através de uma força
conectora que não está estritamente racionalizada em detalhes exaustivos,
desenvolve o que em termos nativos é frequentemente chamado «afini-
dade» (afinidad) com um indivíduo vivo. Da mesma forma com que as
razões por detrás da «afinidade» não são sempre e exaustivamente claras,
os resultados finais desejados também não o são.
O termo mais amplo que poderia aludir de forma mais adequada a
este último seria o de «desenvolvimento». «Desenvolvimento», neste con-

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Movimentos, Espíritos e Rituais

texto, não deve ser entendido como um processo linear de se tornar algo
concreto e pré-ordenado. Isso é o que a linearidade de Hertz, assim como
a espírita convencional (ver Espírito Santo 2010) falha na sua compreen-
são do fenómeno, pois o modelo de Hertz é dinâmico apenas na medida
em que termina idealmente sempre com o mesmo resultado; os mortos
transformam-se em ancestrais e a sociedade segue em frente, tal como
descrito na primeira parte deste artigo.
«Desenvolvimento», seguido de «reconhecimento», refere-se mais dire-
tamente à relação específica criada entre um muerto e o seu correspondente
vivo. Portanto, ao invés de ser visto como algo em direção a um fim es-
pecífico, seria mais bem visto, afirmo, como um cultivo, um aprofunda-
mento de um estado de coisas que se abre, por sua vez, a novas potencia-
lidades. Vamos continuar com uma ilustração mais concreta disto.
O «reconhecimento» e o «desenvolvimento» dos (comunicação e re-
lações entre os vivos e os) mortos em Cuba ocorrem no interior de dois
campos mais amplos, quase sempre intimamente interconectados. Um
é um campo de ação no qual o corpo como um todo (com suas perce-
ções, pensamentos, intuições e afetos) tem um papel central. O segundo
é a materialidade, em que uma variedade de «coisas» é construída, utili-
zada e reunida. O primeiro campo refere-se mais diretamente à capaci-
dade, em vários graus e aspetos, de perceber os muertos em si. Digo «em
seus vários graus e aspetos», porque os muertos não aparecem aos vivos
de forma inequívoca e da mesma maneira ou com a mesma intensidade.
A perceção nativa é de que alguns indivíduos são mais recetivos e perce-
tivos à presença ténue dos muertos. Entende-se que todas as pessoas «têm»
um certo número de muertos «ligados» a eles num dado momento ou pe-
ríodo, o que poderia ser ao longo de uma vida inteira, embora não ne-
cessariamente. Isso significa que as «ligações», originadas da e alimentadas
pela «afinidade», criam a base da comunicação e, em geral, o relaciona-
mento entre os vivos e os mortos. Por exemplo, os meus interesses e ca-
pacidades académicos, em muitas ocasiões, foram vinculados ao meu
«ter» um muerto que costumava ser um intelectual erudito em vida. Esta
erudição é uma inclinação genérica e não uma reflexão ponto a ponto
do conteúdo exato da suposta atividade intelectual passada do meu
muerto. Espera-se que ocorra uma partilha e uma manifestação de uma
vontade e capacidade vaga, variavelmente descrita a mim pelos espíritas
como «amor pelo conhecimento», «desejo de compreender», «simpatia
por livros e pela escrita», entre outras. Este trecho de informação teve
origem nos médiuns que perceberam a presença deste muerto ao meu
redor e no seu contacto com ele, tanto visual quanto verbal, e eles jun-

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A morte em movimento

taram essa «afinidade» biográfica entre nós dois. Em suma, os muertos


aparecem como uma certa «imagem», um conjunto de características
proeminentes, que não somente se referem a eles, mas que estão vincu-
ladas às pessoas com as quais eles estão «ligados». Os médiuns são pessoas
que possuem a capacidade de perceber a «imagem», vê-la e ouvi-la e re-
latá-la aos não-médiuns.
No exemplo que acabei de relatar, através do meu corpo expressa-se
uma capacidade para a intelectualidade que pertence a ou é partilhada
com um muerto particular. Anteriormente, e de um ponto de vista não-
-espiritista, essa capacidade não estava vinculada a algum muerto mas flu-
tuava, digamos assim, num universo desprovido de muertos, ou, pelo
menos isento dele em específico. Eu, pessoalmente, posso ter explicado
as minhas capacidades através de discernimentos completamente dife-
rentes, variando de heranças genéticas, traços individuais sui generis, ta-
lentos «naturais», adquiridos após trabalho árduo, ou talvez nunca me
tenha dado ao trabalho de explicar absolutamente essas capacidades, se
é que alguma vez as considerei capacidades. O ponto é que a partir do
momento em que um médium ofereceu um pedaço das informações
acima, algo foi «reconhecido» como estando ligado ao muerto. O papel
do morto e as suas sensibilidades percetivas são centrais a tudo isso.
O segundo campo, como dito anteriormente, é o da materialidade.
O seu papel central manifesta-se sobretudo no longo processo de «de-
senvolvimento». Juntamente com a presença dos muertos, alguns objetos
também são envolvidos, especialmente aqueles tidos como os que me-
lhor satisfariam os seus desejos e necessidades. Um tipo comum e gené-
rico de «objeto» ou, melhor dizendo, uma coleção de objetos, é o «altar
espiritual» (bóveda espiritual), que consiste numa mesa coberta por uma
toalha de mesa branca longa, sobre a qual são colocados copos de água.
A função dos copos é atrair e suavizar os espíritos dos mortos que estão
«ligados» à pessoa a quem o altar pertence. Frequentemente, o copo co-
locado no meio da mesa tem um crucifixo imerso. Algumas vezes, uma
fotografia pequena pode ser colocada sobre a mesa, se um dos espíritos
foi uma pessoa conhecida do indivíduo, na maioria das vezes um mem-
bro falecido da família. As bóvedas espirituales adquirem um papel central
nas vidas dos médiuns, não somente como centro material para comu-
nicação num nível mais quotidiano e privado, mas também em consultas
e cerimónias espirituais, como as «missas espirituais» (misas espirituales,
ver Espírito Santo 2012, 255-261). Mas há outros objetos que se referem
mais particularmente a cada muerto. Um muito comum são bonecas. As
bonecas são feitas para trazer o espírito para mais perto. Através delas,

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Movimentos, Espíritos e Rituais

diz-se, os muertos tornam-se mais presentes, no sentido em que a sua co-


municação aumenta tanto em quantidade como em qualidade. Uma bo-
neca é construída de maneira a assemelhar-se às características conhecidas
de determinado muerto. As variáveis principais são as características étni-
cas e raciais (portanto, no contexto cubano, as mais comuns são negras,
brancas, mulatas, ciganas, índias nativas, árabes). Da mesma forma, ati-
tudes ou estados específicos que podem indicar a ocupação profissional
ou outra significativa (por exemplo, médicos, cartomantes, freiras, escra-
vos, entre outros).
Poder-se-ia facilmente interpretar a construção de uma boneca como
um esforço para reconstruir com fidelidade a aparência do muerto tam-
bém concatenada com aquelas características biográficas que são pro-
gressivamente conhecidas através dos diálogos criados entre um muerto
em particular e os vários médiuns. Gostaria de argumentar que isto é
apenas parte do que ocorre. Conectando a minha linha de entendi-
mento com o que previamente mencionei como a qualidade «ambiva-
lente» da morte e sua forte afinidade com a(s) mediação(ções), afirmo
que «coisas» como as bonecas funcionam como lugares simultanea-
mente de reconstrução e destruição ou, em termos teóricos, mais abran-
gentes e de maior alcance, de identificação e diferenciação, de continui-
dade e mudança.
É absolutamente válido dizer que as bonecas, até certo ponto, criam
uma certa identidade individual, parte da qual é baseada num esforço de
reconstrução, um tipo de escavação biográfica, digamos assim, que é re-
fletida na figura da boneca. Os traços étnicos e raciais da boneca, por
exemplo, são na maioria dos casos aqueles com os quais o muerto aparece,
enquanto imagem, para os médiuns. Outros traços físicos, ainda mais
personalizados, podem também aparecer. Tome-se, por exemplo, um dos
meus interlocutores frequentes, Fran, um homem de meia-idade que pos-
sui uma coleção de bonecas em sua casa, pertencentes a ele e à sua esposa.
Uma das bonecas possui, amarrada à cabeça com um cordão, um pano
preto cobrindo o olho esquerdo. Fran explica-me que é este exatamente
o modo como o morto lhe aparece, a si e a outros médiuns, durante as
misas espirituales. Portanto, para fazer com que o muerto se identifique
com a boneca, este tampão preto, semelhante ao de um pirata, foi logo
colocado na boneca já feita. Mas porque deveria um muerto identificar-
se com uma boneca?
A boneca serve como uma «materialização» (materialicazión) vital para
«desenvolver», cultivar e enriquecer a comunicação e a relação com o
correspondente vivo. Construir a boneca análoga à maneira com a qual

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A morte em movimento

o muerto aparece tem como efeito desenhar o morto mais próximo da


boneca. Este, por sua vez, tem o efeito subsequente de Fran, como mé-
dium, entrar num tipo de diálogo crescente com o seu morto, tanto em
termos quantitativos como qualitativos. De acordo com Fran, uma das
primeiras coisas que ocorreram logo após o pano preto ter sido colocado
foi a obtenção de mais informação no que se refere à biografia do muerto.
Em particular, o muerto disse a Fran que o olho tapado era resultado de
uma briga que o falecido teve enquanto era vivo. Este evento de vida
trágico foi o resultado do temperamento rebelde e conflituoso do muerto.
Fran diz que ele próprio tem também um lado rebelde e conflituoso,
que algumas vezes sai do controle e resulta em situações não desejáveis;
situações que ele relaciona com o olho tapado. A conexão não é neces-
sariamente literal, mas pode antes dizer-se simbólica ou metafórica, no
sentido em que Fran não perdeu o seu olho numa briga mas tem, não
obstante, sofrido efeitos negativos (de físicos a uma série de outros, como
perder o emprego). Mas, como ele acrescenta, é também um potencial,
no sentido em que uma perda literal de um olho poderá muito bem
acontecer no futuro, se o seu comportamento sair do controle.
Assim, inicialmente os processos de identificação são cruciais em vá-
rios níveis interconectados. Dois grandes níveis são, em primeiro lugar,
a identificação do muerto com a sua boneca, de maneira a adquirir uma
comunicação mais à vontade entre ele e Fran e, em segundo lugar, a iden-
tificação do temperamento rebelde e conflituoso de Fran com o do
muerto enquanto em vida. No entanto, os processos de diferenciação são
igualmente cruciais e complementares. Fran levanta uma questão muito
interessante a esse respeito:

Antes de fazer a boneca para meu muerto, o seu contacto comigo era
menos claro e articulado; e também mais violento. Como ele costumava ser
uma «homem da rua» (um hombre de la calle) e não era muito educado ou re-
finado, a sua abordagem inicial para comigo foi bastante bruta. Por exemplo,
quando ele vinha «montar» em mim (montar; significando possuir) ele to-
mava-me completamente. Eu começava a andar, falar e comportar-me exa-
tamente como ele fazia quando estava vivo. As pessoas presentes ficavam
temerosas das minhas reações completamente imprevisíveis e algumas vezes
ofensivas. Muito frequentemente as suas possessões eram meras exibições
do seu carácter excêntrico sem fornecer nada de positivo para o restante [aqui
Fran refere-se principalmente aos enunciados oraculares úteis que são a
norma esperada nas situações de comunicação com mortos). A feitura da
boneca foi uma parte essencial de um esforço mais geral para fazer o espírito
«desenvolver-se». Anteriormente, ele estava excessivamente colado a mim,

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Movimentos, Espíritos e Rituais

sem consciência de que o meu corpo não era seu. Ele agiu e pensou como
se estivesse vivo. A boneca criou um tipo de corpo para ele, um corpo ob-
viamente falso que lhe lembraria que ele estava morto e que teria de «desen-
volver», de seguir em frente.

As palavras de Fran indicam vivamente como um processo de dife-


renciação está simultaneamente em jogo; de novo e tal como no caso da
identificação, em vários níveis. Ao identificar-se com a boneca, o muerto
diferencia-se de uma identificação excessiva com Fran e seu corpo.
A identificação com a boneca é apenas parcial, o que Fran chama «falso»,
no sentido em que as bonecas, para a consciência dos humanos (tanto
vivos como mortos, se seguirmos a perceção indígena), são «coisas» que,
embora descrevam e lembrem um corpo, não constituem o corpo. Por-
tanto, a boneca aparece como um ponto material dinâmico de referência
com a qual o humano ex-vivente se torna um muerto, isto é, parcialmente
reconstrói e parcialmente desconstrói a sua biografia para construir o seu
estado presente, a sua «necrografia» como gosto de chamar (Espírito
Santo et al. 2013, 207; Panagiotopoulos 2016). Este estado «necrográfico»
atual, portanto, é um lugar de transformação e não apenas de reflexões
passadas e fidedignas. O muerto de Fran sujeita-se a um processo com o
qual a sua biografia é de facto reconstruída sobre o material da boneca,
não para repensá-lo inteiramente, mas sim parcialmente, e também para
se afastar dele. Não é uma reconstrução total no sentido previamente
mencionado de que o muerto começa a identificar-se com o corpo «falso»
da boneca e não com o corpo de carne e osso de Fran. Além disso, não
é uma reconstrução plena, porque a boneca, tanto quanto as informações
mais verbais e viscerais recuperadas no contacto com ele, não é um res-
surgimento biográfico completo. No caso de Fran, o que se sublinha é o
temperamento rebelde e conflituoso que é, crucialmente, partilhado com
ele e com o seu muerto; de outro modo, poder-se-ia dizer que os aspetos
e eventos biográficos foram deixados completamente fora desta intera-
ção. Uma vez que essa «afinidade» parcial é «reconhecida», inicia-se um
longo processo de «desenvolvimento» para que o feitio rebelde e confli-
tuoso não seja adotado cegamente. Aqui também a ação combinada
entre identificação e diferenciação é colocada em jogo.
De acordo com Fran, o processo de «desenvolvimento» através da
construção crucial da boneca com o tampão no olho transformou, de
certa forma, o comportamento completamente bruto e descontrolado
do seu muerto. Embora o temperamento rebelde genérico seja tido como
um elemento relacional constitutivo entre as duas entidades, viva e

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A morte em movimento

morta, ele é colocado em perspetiva, por assim dizer. Para ambos, Fran
e o seu muerto, a boneca era um catalisador, de forma que, em manifes-
tações subsequentes, a rebeldia não fosse uma situação completamente
sem controle. A rebeldia é aceite, mas também refinada, digamos, e não
se manifesta só por se manifestar. A boneca faz a mediação de forma a
transformar a comunicação, mesmo se ainda através da possessão, em
algo mais «claro e articulado» e menos violento, isto é, não apenas numa
exibição excêntrica de rebeldia (o que amedronta as pessoas e repete fiel-
mente o feitio passado do muerto), mas numa interação mais inteligível
entre o muerto e o mundo dos vivos. Fran ainda identifica a sua rebeldia
com o seu muerto particular, mas também acredita que a sua suavização
o protege dos efeitos negativos que ela gera (semanticamente condensa-
dos e exemplificados na perda de um olho). Desta maneira, a rebeldia
manifesta-se, senão nas suas dimensões positivas, pelo menos não pro-
vocando as excessivamente negativas. Além disso, Fran compreende este
processo todo como paralelo àquele no qual o seu muerto «se desen-
volve», também em termos da sua rebeldia e da sua manipulação mais
consciente dos perigos e potencialidades nela escondidos. Por outras pa-
lavras, tanto Fran como o seu muerto, embora retivessem essa alimentação
mútua de rebeldia, transformam-na num tipo diferente de rebeldia, com
efeitos idealmente diferentes-de- «perder um olho».
Concluindo, e em oposição à da convicção etnográfica que descreve
a morte e os mortos (em comparação com a vida e os vivos) como um
lugar tanto de diferença ou identidade radical (mesmo que frequente-
mente mascarada ou inconscientemente utilizada), aqui temos uma in-
teração muito mais dialética e dinâmica entre identidade e alteridade,
continuidade e mudança. Essa interação dinâmica entre vida e morte, o
mundo dos vivos e o mundo dos mortos, é o que eu teoricamente gos-
taria de sublinhar neste artigo, e associá-la à qualidade anteriormente
mencionada de «ambivalente», que está aberta e gera mediações fortes.
Mas então e a migração, o transnacionalismo e o fluxo de pessoas, e o
que seja que se segue a isso?

Morte e migração; ou «morte-e-migração»


Volto agora à minha menção anterior a Danforth, na primeira parte
do artigo. Como ele observa, a morte está não apenas metaforicamente
vinculada ao matrimónio, mas também a outras partidas socialmente im-
portantes, sendo uma delas a noção de xeinitiá, a qual implica tanto um
lugar longe de casa como o sentimento de saudade que a distância gera

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Movimentos, Espíritos e Rituais

(1982: 90-95; para uma descrição da morte como um tipo de «viagem»,


ver também Barley 1997, 160-164; Hertz 2009, 58-61; Saraiva 2008, 258-
-259; Seremetakis 1991, 85 e 197; Tsintjilonis 2007, 190-191; Vitebsky
2008: 248). Aqui pisamos precisamente o terreno sobre o qual a outra
metade desta coletânea se debruça, e que apenas referiremos esquemati-
camente neste capítulo. Este é o fenómeno da migração e de todas as
deslocações e fluxos que ela traz consigo. Um ponto importante, na
minha opinião, sugerido pelo termo xeinitiá, algo ao qual poderia dar-se
mais atenção etnográfica nos estudos da migração, é precisamente esta
conotação dupla. Por outras palavras, não se trata apenas de um fenó-
meno relacionado com os que partiram e o lugar aonde foram parar, mas
também com aquelas pessoas que ficaram para trás e, de forma muito
mais interessante, as várias interações entre eles. Poder-se-iam traçar aqui
paralelos interessantes entre esta dimensão dinâmica do xenitiá (numa
perspetiva intercultural e não apenas grega), e as interações e trocas igual-
mente dinâmicas, frequentes entre aqueles que partiram deste mundo, e
não apenas do seu país de origem, e aqueles que foram deixados para
trás, isto é, entre os mortos e os vivos (c.f. Barraud et al. 1994). Para além
disso e diretamente ligado ao núcleo deste volume, o que acontece
quando aqueles que partiram deste mundo já tinham partido do seu país
de origem? Qual é a dimensão transnacional da morte e qual é a dimen-
são de morte do transnacionalismo? Tal foi explorado por Clara Saraiva
(2008) no seu estudo entre os Pepel da Guiné-Bissau na Grande Lisboa,
Portugal. O contexto mais amplo no qual se situa o seu foco etnográfico
é um constante fluxo de pessoas, de dinheiro, e uma variedade de bens
entre Europa e África, mais particularmente entre Portugal e as suas an-
tigas colónias africanas (2008, 253-254; ver também Lima e Sarró 2006;
Quintino 2004). Exatamente porque o fluxo ocorre por e através das pes-
soas, várias ideias, práticas e «universos simbólicos» (Saraiva 2008, 254)
também circulam (para abordagens similares, ver também Mapril 2009;
Tremlett 2007). Estes universos envolvem um conjunto de práticas e cren-
ças religiosas, as quais, no contexto dos Pepel/Guiné-Bissau, incluem os
mortos, a lidar tanto com as questões do seu passado, enquanto em vida,
quanto do seu estado atual como espíritos dos mortos, e das relações
criadas entre eles e os vivos (ver também Saraiva 2004). Para começar, as
formas de lidar com a morte e os mortos dos Pepel não podem ser facil-
mente descoladas de uma visão de mundo «religiosa» mais ampla. Os
espíritos dos mortos, defuntos, adquirem idealmente o estatuto de an-
cestrais e, subsequentemente, tomam o seu lugar próximo do das divin-
dades locais, os irãs. Ambos os tipos de entidades entram numa troca

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A morte em movimento

constante com os Pepel, pelo que os indivíduos vivos devem dar oferen-
das, conduzir sacrifícios animais e até submeter-se a iniciações. Os de-
funtos e os irãs, de comum acordo, e como que em resposta aos primei-
ros, oferecerão aos vivos informação valiosa, através da consulta de
oráculos, e um papel geral protetor e orientador.
A nível material, as consultas, oferendas, sacrifícios e iniciações reque-
rem uma variedade de «objetos» muito particulares, variando, entre mui-
tos outros, de tecido (um material considerado particularmente desejado
pelos defuntos) a todos os materiais necessários para a construção de al-
tares e de animais ou partes deles (ambos para o papel do sacrifício, mas
também como ingredientes para objetos consagrados, como os amuletos
da sorte). Muitos desses materiais são essenciais para satisfazer os ances-
trais e salvaguardar o seu papel de protetor. Uma vez que tornar-se um
ancestral não é um processo automático, mas requer um esforço e alguns
passos seguidos pelos vivos, as mortes, os funerais e os cuidados após o
enterro dos Pepel são dotadas de ações ritualizadas (2008, 258-259): «Se
a realização dos rituais funerários corretos é essencial para uma pessoa
morta se tornar um ancestral, a troca de bens entre os dois mundos é
também muito importante» (2008, 259). Mas o que acontece a toda esta
troca intensa e diversa quando os indivíduos Pepel morrem longe de
casa, por exemplo, em Lisboa?
Para começar, os Pepel ocupam e reconstroem espaços Pepel/Guiné-
-Bissau/africanos dentro da cidade de Lisboa, não apenas como lugares
de socialização, mas também de circulação de uma variedade de bens,
os quais, à exceção dos bens de uso mais «secular» (tal como comida),
incluem também bens necessários para as suas cerimónias religiosas e fu-
nerárias. Muitos destes bens vêm da Guiné-Bissau. Um destes materiais
é o altamente valorizado (pelos vivos e pelos mortos) tecido feito tradi-
cionalmente à mão. A circulação, no entanto, tem dois lados, porque os
bens portugueses/europeus também chegam à Guiné-Bissau. Porque o
tecido, em geral, é de facto excecionalmente valorizado, os tecidos por-
tugueses viajam amiúde para casa e, presumivelmente, são lá usados tanto
em atividades cerimoniais como quotidianas. No contexto dos funerais,
se acaso eles acontecem em Lisboa, há algumas restrições e, portanto, al-
gumas adaptações são necessárias. Por exemplo, o envolvimento do
corpo do morto em vários tecidos não pode acontecer da mesma ma-
neira, por causa das restrições legais em Portugal. Assim, os tecidos, ao
invés de embrulharem o corpo, são apenas colocados dentro do caixão.
Além disso, o sacrifício de animais, especialmente os de grande porte
como gado, está muito limitado dentro do centro urbano. Então, o sa-

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Movimentos, Espíritos e Rituais

crifício acontece na periferia e a carne é levada para o lugar onde a ceri-


mónia acontece (2008:259). Todas essas restrições combinadas com o
forte vínculo das divindades e dos espíritos ancestrais à terra dos Pepel
frequentemente tornam à Guiné-Bissau o lugar por excelência para levar
a cabo um funeral «adequado», de forma que a morte do parente seja
considerada tão «boa» quanto possível, dando-lhe a possibilidade plena
de se tornar um ancestral adequado e benevolente. Portanto, os migrantes
Pepel podem retornar à Guiné-Bissau para realizar um funeral ou uma
cerimónia específica no que diz respeito às outras atividades religiosas.
É apenas com esta condição que os espíritos que adquiriram a ancestra-
lidade plena podem seguir os seus parentes de volta a Lisboa e, assim,
tornarem-se (também) «espíritos transnacionais» (2008, 260).
Um destes tipos de espírito é António, um espírito protetor e guia de
Celeste, uma das informantes-chave de Saraiva. Celeste migrou para Por-
tugal na década de 1980 e, num determinado momento depois de algu-
mas situações negativas que se repetiram, ela foi «diagnosticada» pelos
curandeiros espirituais Pepel como estando possuída por um espírito.
A iniciação foi considerada necessária e, desde então, António tornou-
-se o espírito mais importante que guia a vida de Celeste, que largou o
seu trabalho convencional e se tem dedicado inteiramente a atender os
seus espíritos e, através deles, tratar pessoas, a maioria de origem africana,
que procuram a sua ajuda como curandeira ritual. Através da comunica-
ção com Celeste, António tem dado algumas informações sobre a sua
condição passada enquanto em vida. O interessante é que António se
tornou um espírito protetor de Celeste, exata e especificamente porque
ela se encontrava num contexto transnacional. Como se soube através
dos vários diálogos entre ele e Celeste, António era um professor na an-
tiga capital da Guiné, Bolama. Tendo sido um guineense instruído, du-
rante a sua vida, algo não muito comum, especialmente naquele tempo,
ele escolheu Celeste para que a religião Pepel pudesse ser divulgada fora
da Guiné; num contexto que pudesse requerer um nível elevado de edu-
cação, de modo a falar numa linguagem mais familiar e refinada. É por
isso que Celeste, quando possuída por António e a consultar pessoas,
tem a propensão para escrever coisas. António também comentou que,
até certo ponto, é justificável que os guineenses procurem outras religiões,
tais como as evangélicas, bastante populares entre os africanos em Lisboa,
desde que eles não negligenciem completamente a religião Pepel.
Em suma, a etnografia de Saraiva exemplifica de forma vigorosa, não
só como as práticas mortuárias são parte de um fluxo mais geral, de pes-
soas, «coisas» e atividades, mas também como criam o seu próprio fluxo

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A morte em movimento

sui generis (também de espíritos). Neste sentido, a descrição de Saraiva


ecoa a posição crítica em torno das questões sobre a morte (e não apenas)
que «excedem o seu limite durkheimiano» (Straight 2006, 101). Esta po-
sição crítica tem pelo menos duas dimensões. A primeira, já mencionada
na primeira parte deste artigo, trata desta característica sui generis agora
mencionada. As práticas e as crenças em torno da morte não apenas re-
fletem a sociedade, mas são elas mesmas a própria sociedade que o ana-
lista social está a tentar compreender. A outra dimensão diz respeito ao
modo como se vê e se compreende a sociedade em si. Há tempos, nós
escapámos de uma visão da sociedade como algo delimitado, ordenado
constantemente em estruturas claras. Morte e migração ou, mais perti-
nentemente, morte-e-migração, são «espaços» e «momentos» por exce-
lência desta des-ordem. Morte-e-migração, porque se movem constante-
mente numa dialética de estagnação e movimento, continuidade e
mudança, identidade e alteridade, fazem mais do que perturbar a ordem
social, como se a ordem fosse algo sempre pertencente à sociedade.
Como eles são sociedade, o que fazem é mostrar as potencialidades da
ordem e da desordem no interior da sociedade.
A migração, assim como a morte, é também uma transição; não é de
estranhar assim as raízes comuns com a palavra «trans-nacional»! A mi-
gração é também uma grande mediadora, de pessoas, lugares, visões do
mundo, afetos, crenças, práticas, linguagens, corpos e materiais, transfor-
mados no processo de mediação. Isso significa que a morte em contexto
transnacional pode oferecer um terreno fértil para estudo e reflexão, exa-
tamente porque o que descrevi até então neste texto torna-se ainda mais
evidente e mostra com mais clareza o seu carácter TRANS-gressor. Ter-
mino com uma citação de Nadia Seremetakis que de um modo gráfico
e belo relaciona morte e migração como xenitiá:

A estrada é um dos sinais centrais de xenitiá. Viagem, travessia, passagem


para terra estrangeira e exílio são metáforas centrais da morte na Grécia rural.
Elas são percebidas como xenitiá, que englobam a condição de estranhamento,
do exterior, do movimento de dentro para fora, assim como o contacto e a troca entre
domínios, objetos e agentes externos. Xenitiá é uma estrutura cognitiva básica atra-
vés da qual vida e morte são pensadas. Xenitiá é situacionalmente reversível
e contingente. Inserir a lógica ou o imaginário do estranhamento em qual-
quer situação social, evento de vida ou discurso, organiza imediatamente o
contingente em relações do dentro e de fora, do mesmo e do outro. Xenitiá
é então uma taxonomia fundadora, e o seu imaginário informa os sonhos,
os rituais de morte, os sistemas de parentesco, o casamento, a geografia, a
história, a etnicidade e a política [Seremetakis 1991, 85; itálico no original].

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Movimentos, Espíritos e Rituais

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Eric Gable

Capítulo 3

Corpos em falta e pertença


entre os Manjaco:
ou o passado e o futuro de alguns
costumes funerários no contexto
do cosmopolitismo
Introdução
Há quase trinta anos, comecei a realizar trabalho de campo na Guiné-
-Bissau, entre os Manjaco, na «utchak» ou «terra», como os próprios a
designam, de Bassarel. A princípio estava interessado nas formas que os
aristocratas Manjaco empregavam para se distinguirem da gente comum,
sobretudo no que dizia respeito à distribuição da propriedade. Planeava
focar-me nos funerais, já que os relatos da época colonial davam grande
realce à troca e à destruição de panos de produção local que ocorria nas
cerimónias fúnebres, e a literatura antropológica que eu estava a ler na
altura se debruçava tanto sobre o simbolismo como sobre os custos ma-
teriais dessas trocas ritualizadas. Porém, a minha presença no terreno aca-
bou por levar a alterações dos meus planos. A produção e consumo de
tecidos tornou-se menos importante – havia já poucos tecelões em ativi-
dade nas aldeias dos Manjaco – mas os funerais e os rituais que condu-
ziam à instalação dos antepassados em santuários familiares mantiveram-
-se como tema central, em grande parte porque esses rituais pareciam
ocupar uma posição central na forma como os Manjaco se viam a si mes-
mos. Alguns anos depois resolvi dar início a um projeto de investigação
sobre os imigrantes Manjaco em Lisboa, e sobre a forma como manti-
nham ou cortavam os laços com os seus parentes nas aldeias ancestrais
na Guiné-Bissau. Mais uma vez, o meu foco seria a forma como os mi-
grantes geriam a morte – a forma como os Manjaco expatriados se sen-

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Movimentos, Espíritos e Rituais

tiam ainda ligados ou se prendiam às aldeias ancestrais através do ritual


funerário. Razões várias levaram-me a abandonar esse projeto precisa-
mente no momento em que ele começava a desenvolver-se, pelo que
este texto me dá a ocasião de, de certa forma, participar no tipo de tra-
balho a que bem gostaria de me ter dedicado seriamente. Continuo
curioso acerca da forma como os imigrantes encaram as questões ligadas
à morte – como modificam as suas práticas, as mantêm, resistem ou acei-
tam os protocolos do Estado – enquanto lutam para encontrar um lugar
próprio na metrópole e ao mesmo tempo muitas vezes tentam manter
os laços com aquilo que ainda veem como a distante terra do seu povo.
Gostaria de refletir tanto acerca dos pontos fortes como das fraquezas
da minha própria pesquisa, de forma a realçar alguns temas que se en-
globam no fascínio que os antropólogos africanistas manifestam para
com a morte, e que imagino serem também importantes no tipo de tra-
balho que conduzem. Os rituais mortuários cedo se mostraram um tó-
pico de interesse na disciplina. Recentemente, houve uma ressurgência
de interesse em todas as questões ligadas à morte em África, em parte
devido a interesses paralelos – a SIDA e as respostas à epidemia, a vio-
lência e o terror, a comemoração e o esquecimento em Estados que re-
sultaram de guerras ou que são dilacerados por guerras civis. Grande parte
desta literatura evoca temas e questões – o poder do Estado, da medicina;
da governança, do biopoder (para usar o termo de Foucault), como tan-
tos de nós fazem – das formas pelas quais grandes mas difusas forças in-
fluenciam as vidas locais – que estão de uma forma mais geral em jogo
na antropologia de hoje (para uma visão resumida desta questão, ver Lee
e Vaughan 2008; sobre os Manjaco, ver Gable 2006).
Tanto os novos estudos sobre África como os trabalhos clássicos parti-
lham um interesse naquilo que pode ser visto como axiomático em antro-
pologia: os corpos são tão importantes na morte como eram em vida.
O que as pessoas fazem com os falecidos – onde os colocam, e quem tem
o direito de lá os colocar – mapeia o espaço social e distingue aqueles que
o controlam. Consideremos por momentos a mais familiar das práticas
mortuárias: a cova escavada no terreno, o corpo que lá é depositado. Repa-
rem como a inumação reclama obviamente um pedaço de terreno, enraíza
alguém na paisagem, de alguma forma faz de uma pessoa e de uma paisa-
gem coevos. O mesmo sucede em mais larga escala, já que se o Estado tem
o poder de controlar os corpos, é também ele que se deve encarregar dos
cadáveres, de os gerir, de decidir onde e como devem ser escavadas as covas.
No que se se segue, quero esboçar os esforços que os Manjaco e os
Papel da Guiné-Bissau fizeram e continuam a fazer para manter a relação

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Corpos em falta e pertença entre os Manjaco

entre corpos e terra, já que um Manjaco que morre longe da terra é ainda
assim evocado por um relicário no seu local de origem. Ilustrarei aqueles
que acabaram por se tornar temas duradouros do meu trabalho ao longo
dos anos. Entre eles está a resiliência do ritual. E entre as questões que
coloquei, está esta: quando os rituais permanecem e na prática se tornam
ainda mais pronunciados, o que nos diz isto sobre as «crenças» ou as «tra-
dições» no contexto da modernidade? A modernidade, na forma como
a encaro, é ao mesmo tempo uma atitude – um certo cosmopolitismo –
e um entrançar – na forma de vida – o capitalismo e tudo o mais. Nesta
região da África Ocidental, os Manjaco estiveram entre os pioneiros que
migraram para se dedicarem ao cultivo de produtos que lhes podiam dar
lucro no comércio global. A migração dos Manjaco atingiu proporções
épicas por altura do fim da guerra de libertação em 1974, e tem prosse-
guido até hoje. No fim dos anos 80 do século 20, quando vivi numa al-
deia da Guiné-Bissau, só um dos homens adultos dessa aldeia é que não
tinha já vivido no estrangeiro, e bem mais de metade dos que tinham
nascido na aldeia estavam ausentes, a constituir famílias no Senegal, na
Gâmbia ou em França. Porém, mesmo esses Manjaco ausentes eram ce-
lebrados em casa quando morriam. Mais ainda, os funerais dos Manjaco
e as cerimónias subsequentes envolviam o levantamento de um pilar evo-
cando o antepassado num pátio da aldeia natal. Nessa época, quando
eu lá estava, as casas tinham praticamente o mesmo aspeto que fora des-
crito por viajantes europeus na região no século XIX, ou mesmo antes
disso. Porém, as práticas funerárias tinham-se alterado ao longo do
tempo; e as práticas dos Manjaco diferiam de formas interessantes das
dos grupos étnicos vizinhos, com os quais partilham ainda assim um
mesmo padrão geral.
Se o tempo mo permitir, nas minhas notas finais regressarei a estas va-
riações, e também ao tema da resiliência no contexto da modernidade.
Começarei, porém, por referir uma luta por cadáveres e por território
entre os portugueses e os nativos na então nascente colónia da Guiné,
de forma a deixar a audiência familiarizada com o que poderia, de outra
forma, ser visto como bizarro na preocupação que os Manjaco têm com
a repatriação dos seus cadáveres. O combate dá-se entre membros de um
grupo étnico que partilha quase tudo com os Manjaco, à exceção da lín-
gua. Os Papel e os Manjaco fazem parte de um grupo alargado de socie-
dades, divididas naquilo a que Philip Curtin chamou «microestados» –
povos que cultivavam arroz nos pântanos e mangais da região costeira
da Guiné-Bissau e do Sul do Senegal.

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Movimentos, Espíritos e Rituais

Suicídios vergonhosos
Eis o aspeto que tinha um Papel prestes a deixar este mundo, visto do
lado errado de uma arma em 1908, altura em que os portugueses tinham
montado uma nova campanha para «punir» os seus recalcitrantes súbdi-
tos nas aldeias situadas a pouco mais de três quilómetros de um pobre
entreposto em Bissau, com o seu forte quase em ruínas e o seu canhão
enferrujado. A coluna de tropas avança lentamente, numa massa com-
pacta, disparando sem cessar em todas as direções. Gastam munições aos
milhares a varrer cegamente as árvores que rodeiam as aldeias nativas, ra-
ramente descobrindo se de facto abateram o inimigo que lhes responde
com inofensivos disparos de velhos mosquetes, ou que os provoca por
trás de abrigos resistentes. Por vezes, porém, um ou dois jovens guerreiros
abandonam a cobertura, enquanto o tenente Nunes da Silva avança com
os seus homens pelo espaço aberto, dirigindo-se para uma linha de árvo-
res e mato cerrado a cerca de cem metros de distância (Ponte 1909, 66):
«Vi um preto completamente exposto, com uma espada na mão, aos sal-
tos e piruetas, escaramuçando, como eles dizem. Não podem sequer ima-
ginar quantos tiros disparámos sobre ele até o abatermos. Caiu por fim,
de cara no chão, morto antes mesmo de embater no solo. Aos seus pés
jazia outro. E alguns dos nossos dizem que no total viram oito mortos.»
Estas proezas suicidárias deixavam os portugueses irritados. Um outro
oficial, Pinheiro Chagas, fez notar nas suas memórias de campanha:
«Ainda me lembro bem de um que se pavoneava (escaramuçava) com
uma espada curva, a fazer caretas e gestos ridículos...» (Chagas 1910, 111).
Abater estes guerreiros tornou-se um macabro e frustrante exercício de
tiro ao alvo – frustrante porque os corpos desapareciam antes que os por-
tugueses os pudessem alcançar. Cada um dos guerreiros nativos tinha
uma corda comprida atada ao cinto, «graças à qual eram puxados para o
meio da floresta, um costume dos pretos que nos impedia de obter uma
contagem exata de quantos tinham sido mortos» (ibid., 112).
Os corpos desaparecidos resultavam em campanhas insatisfatórias,
embora típicas do contexto colonial (ver, para o caso dos ingleses no
Benim, Bacon 1897, 54). Tal como os portugueses queriam recuperar os
corpos dos seus próprios camaradas caídos para os enterrarem na Guiné,
de forma que «da terra que este herói irriga com o seu próprio sangue ir-
rompa a árvore da soberania e do domínio» (Ponte 1909, 95), tal como
o queriam fazer para, em parte, consolidar o seu domínio sobre uma co-
lónia cujos cemitérios se situavam para lá dos portões da praça, e portanto
em território controlado pelos «pretos», pretendiam também ter uma

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Corpos em falta e pertença entre os Manjaco

contagem precisa dos cadáveres inimigos para assim ratificar a vitória.


Mas esta precisão escapava-lhes. Ao avaliar as perdas do inimigo na cam-
panha, Chagas «ouviu dizer que tinha havido vinte e dois mortos» (Cha-
gas 1910, 113). Ponte «falou de dez» (ibid., 113). Numa batalha de cujo
teatro desapareciam os cadáveres dos pantomimeiros («alguns de nós
viram oito» guerreiros mortos, outros só se «lembravam» de um), tudo,
sobretudo a vitória, ia desembocar, de forma frustrante, no conjuntivo.
Nos relatos destes oficiais coloniais, o guerreiro saltitante, que fazia
caretas e que em breve estaria morto, representava uma frustração ainda
mais subtil, uma espécie de «vergonha» (termo que tanto Ponte como
Chagas usam com frequência) que tomava conta de toda a campanha.
Invisíveis no mato cerrado, os Papel tocavam flautas e assobios, «em sinal
de desdém» (Ponte 1909, 75). À noite gritavam insultos, tratando o go-
vernador pelo nome próprio, ou imitavam as vozes dos oficiais a darem
ordens como «disparem o canhão, disparem o canhão. Cessar-fogo!»
(ibid., 82). De forma significativa, havia também qualquer coisa nos fu-
nerais dos nativos que os oficiais achavam especialmente irritante – o ba-
tuque incessante de tambores fúnebres a soar na floresta, o desperdício
nas práticas mortuárias, as quantidades de rum emborcadas e as bebe-
deiras, a pólvora gasta e o barulho, que se misturavam com os «miasmas»
que a própria floresta «exalava» (Chagas 1910, xviii) e a «poeira inescapá-
vel que o vento nunca deixava de arrastar, e o fedor que se tornava insu-
portável» (Pontes 1909, 78).

Remessas
Gostaria agora de dar um salto em frente no tempo, para ir ao encon-
tro de alguns jovens Manjaco que encontrei quando se preparavam para
voltar a casa, para assistir a um funeral em que o cadáver não ia estar real-
mente presente. No verão de 2000, num bairro degradado de Lisboa, as-
sisti a um encontro de expatriados Manjaco que lamentavam a perda de
um camarada de meia-idade. Enquanto um dos meus jovens companhei-
ros introduzia números no telemóvel para me permitir falar com um
amigo comum na Guiné-Bissau, fazia notar que, para anunciar aquela
morte, iam tratar de enviar por mãos amigas as roupas do morto e apre-
sentá-las aos aldeãos, como sinal físico do falecimento. Seria aquele fardo
de roupas, o uyeman, ou coisa sagrada, como é conhecido, que tornaria
possível realizar um «funeral verdadeiro» – com os seus enormes excessos
de consumo – na aldeia. Este jovem era um líder do clube local da ju-
ventude Manjaco (ver Gable 2002 para uma descrição desse género de

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Movimentos, Espíritos e Rituais

clubes na Guiné-Bissau). Realizavam encontros com periodicidade apro-


ximadamente mensal numa barraca de cimento que também era usada
como dormitório temporário para recém-chegados da pátria, e em cada
uma das reuniões a que assisti o presidente começou por anunciar quanto
dinheiro tinham conseguido poupar para o fundo coletivo para os fune-
rais, a que se seguia um pedido expresso a todos os presentes para que
contribuíssem, nem que fosse com um valor mínimo, para esse fundo
comum. Em resultado de esforços deste género e do envio de somas bem
mais elevadas por outros Manjaco, tanto homens como mulheres, mais
velhos e com empregos, na região rural com que me familiarizei no fim
dos anos 80, onde, em cinquenta anos, a população das aldeias tinha de-
clinado para menos de metade, os funerais pareciam ser uma ocorrência
constante, sobretudo durante a estação seca, tempo em que se aproveita
a prosperidade e se descansa. Os santuários dedicados aos antepassados
estavam repletos. As casas dos Manjaco davam ar de mausoléus. Esva-
ziadas de gente viva, estavam pelo menos cheias de traços dos mortos.
O funeral tinha-se tornado uma espécie de repatriamento.
Muito se passou, evidentemente, nos quase cem anos que separam estes
funerais sem corpos dos funerais dos jovens guerreiros que os homens de
Chagas e Pontes abateram, mas a cujos cadáveres não conseguiram ter
acesso. Uma narrativa mais completa dos anos que compõem este inter-
valo contaria a história de uma espécie de competição onde eram dispu-
tados os corpos dos guineenses, entre a administração colonial de um
lado e povos como os Manjaco e os Papel de outro. Por um lado seria
uma história familiar, onde teriam lugar as preocupações da era colonial
com a higiene (ver, e. g., Stoler 2010), mas seria ao mesmo tempo uma
história ensombrada pelo peculiar sentimento de inferioridade que os por-
tugueses sentiam relativamente a outros europeus (ver Gable 2000). In-
cluiria as tentativas por parte dos portugueses de restringir ou mesmo abo-
lir, em nome da saúde e do bem-estar económico da população nativa,
algumas práticas mortuárias – o abate excessivo de gado e o consumo des-
regrado de rum; e, sobretudo, o transporte de cadáveres da cidade para as
aldeias, de uma colónia para outra (usando para isso transportes comuni-
tários). Esta história, contudo, não seria exata se fosse contada dentro do
habitual registo da dominação e da subversão ou resistência, uma nova
taxa sobre o abate de gado aqui, um outro caso de um cadáver passado
clandestinamente por uma fronteira além (ver, para a época colonial, Mills
1929; Bernatzik 1933; Viegas 1936; Lyall 1938; Carreira 1947; Mota 1954).
Na realidade, essa história teria de incluir e justificar os esforços que
os próprios Manjaco desenvolveram para alterar as práticas mortuárias,

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Corpos em falta e pertença entre os Manjaco

em face do fluxo crescente de emigração permanente dos seus elementos.


Aliás, deveria mesmo estabelecer os laços entre o desejo de emigrar e o
carácter ostensivo do próprio funeral. Enquanto os guerreiros nativos
morriam à frente das armas portuguesas, centenas dos seus pares Manjaco
trabalhavam arduamente no Senegal e na Gâmbia, a sangrar palma, a re-
colher borracha silvestre e a cultivar amendoins – quase tudo, aparente-
mente, para adquirir tecidos e pólvora a serem usados nos funerais na
terra de origem. E quanto mais estes jovens traziam para casa, maior era
o número de jovens que a eles se juntavam no estrangeiro.
Na história da migração e das práticas mortuárias ficaríamos a conhe-
cer as medidas práticas que os Manjaco tomaram para manter os seus
costumes – como acabaram a substituir um corpo real por uma réplica
na adivinhação funerária ou «interrogatório do cadáver». Também fica-
ríamos a saber das ocasiões em que conselhos de aldeia ilegalizaram o
abate de mais gado do que aquele que podia ser realisticamente des-
manchado e consumido no dia do funeral. Ou testemunharíamos dis-
cussões entre aldeãos acerca da real necessidade de continuar a pagar
às sociedades de coveiros locais o seu costumeiro quinhão de rum e
carne – uma vez que já não tinham realmente o trabalho de colocar o
cadáver no solo, e já não tinham de tocar na carne putrefacta do cadáver
(ver Gable 1995).
Tal como na história do encontro colonial em cujo contexto ocorre,
a história das alterações feitas pelos Manjaco pode ser mais facilmente
entendida como um despique em que se joga o controlo sobre os mortos.
E seria mais uma vez uma história familiar para todos os africanistas, um
despique que contrapõe os que ficaram em casa aos seus compatriotas
mais cosmopolitas, em que os primeiros impõem aquilo a que James Fer-
guson (1999) chama «obediência cultural» e os segundos demonstram
essa mesma obediência ou, em alternativa, fazem valer a sua presença na
terra ancestral através do pagamento de funerais tradicionais (ver também
Bates 1999). Seria uma história de crescente ostentação mortuária na terra
de origem, baseada numa prosperidade sempre maior dos emigrantes
que morrem em terras distantes (ver Gable 1998).

A morte como remessa


Mas que género de remessa? Aqueles que conheci entre os que ficaram
na terra, no fim dos anos 80, nunca se esqueciam de enfatizar que um
funeral ou uma cerimónia para colocar no solo um pilar em memória
de um antepassado eram «caros» (anyat), referindo as quantidades de rum

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Movimentos, Espíritos e Rituais

de cana que tinham de ser compradas, e os animais a adquirir para abate.


Porém, comparadas com um novo telhado de zinco para uma casa da
aldeia, ou cimento para fazer um chão, essas cerimónias revelavam-se
como relativamente baratas. De facto, os jovens Manjaco que encontrei
nos bairros degradados de Lisboa tendiam a menosprezar os custos que
a responsabilidade de repatriar os mortos lhes colocava às costas. Nem
sequer falavam de forma que revelasse o tipo de culpa tensa, medo ou
conflito que eu esperava encontrar em quem sentisse o peso de cumprir
as normas culturais. Por exemplo, quando fiz notar ao meu amigo, o que
nunca largava o telemóvel, que devia ser complicado suportar os custos
daquela viagem para entregar um fardo de roupas aos habitantes da terra
natal, ele desdenhou do facto. Um bilhete de avião de ida e volta, afian-
çou-me, custava menos de quinhentos dólares, era barato, e não consti-
tuía de todo um peso. A viagem a casa era encarada como uma espécie
de férias.
De facto, mesmo quando vivi em Bassarel, no fim dos anos 80, muitos
emigrantes realizavam frequentes viagens a casa para participar em ceri-
mónias fúnebres. Nos funerais, os emigrantes juntavam-se a outros mem-
bros da família em danças que acompanhavam as loas aos antepassados.
Davam também dinheiro aos tocadores de tambor enquanto estes apre-
sentavam as realizações pessoais do falecido na linguagem do batuque
ritmado, e dançavam em pantomimas que reproduziam esses feitos.
Como habitual nos ritos funerários, essas danças tendiam a privilegiar
os homens. As mulheres também dançavam, mas em grupo, indo de um
lado do terreiro – a varanda onde estavam instalados os tambores – ao
outro, o portão que dava acesso ao exterior. Esta dança é conhecida como
uma dança «corrida», e as mulheres arrastam os pés ou dão pequenas
corridas com diferentes ritmos, enquanto outras parecem vaguear preo-
cupadas; e, ainda assim, apesar do caos, conseguem não chocar enquanto
se cruzam nos dois sentidos. A dança das mulheres privilegia a coletivi-
dade.
Em contraste, a dança masculina em louvor dos antepassados tem um
carácter mais agonístico e individualizante. Esta dança, de nome fongat
ou «ira», começa quando os homens de uma dada linhagem correm para
o terreiro em grupo e o reclamam com gestos bruscos dos braços que afas-
tam todos os espectadores. O batuque é muito mais rápido e em tom ele-
vado. A maior parte dos homens fica esgotada rapidamente. Só os me-
lhores dançarinos permanecem, a rodopiar, quase a colidir. Nos anos 80,
os Manjaco dançavam com um pau para desferir golpes bruscos, mas nos
«velhos tempos» (uwal uyek) usavam espadas verdadeiras, que tornavam

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Corpos em falta e pertença entre os Manjaco

os dançarinos realmente perigosos para os espectadores desatentos. Ainda


assim, os dançarinos irrequietos que se vão aproximando do limite do es-
paço aberto obrigam a audiência a dedicar-lhes toda a atenção. Quando
fazem pausas para se refrescarem, as mães, irmãs do pai, irmãs ou esposas
avançam para eles para os abraçar, para se ajoelharem à sua frente, para
lhes cobrirem os ombros com panos, ou para usar esses panos para os re-
frescar e lhes limpar o suor das testas. Os homens dançam, ostensiva-
mente, para glorificar os nomes dos antepassados. Mas também se glori-
ficam e individualizam a si mesmos, enquanto o número de dançarinos
se reduz à medida que o tempo decorre, até ficarem muito poucos.
Os homens podem ainda individualizar-se se pagarem aos batucadores
para executarem os ritmos que os exaltam, ou se pedirem a um amigo
da mesma idade que faça soar os seus encómios na flauta, enquanto eles
próprios fazem uma pantomima que retrata a história contada pela mú-
sica. Antes de olharmos para uma qualquer atuação particular, vale a
pena abrir aqui um parêntesis para dar uma breve noção do que está en-
volvido nos nomes de louvor dos Manjaco.
Estes nomes são frases aliterativas compactas – fragmentos de uma
longa narrativa – que caracterizam uma pessoa através da alusão a um
momento particularmente dramático da sua vida ou, mais geralmente, a
uma atividade por ela executada e que a distingue ou que é digna de
nota. Em geral, este «louvor» implica uma comparação com o seu quê
de competitivo, e os nomes muitas vezes aludem ao ato de se gabar ou
proclamar os próprios feitos. Um nome de louvor comum «Parem todos
de se vangloriar, e vamos lá a ver» (Dawatan upiitch jakaten) emprega a
raiz piitch ou «vangloriar». Mas existe também uma construção paralela
que usa «brik» ou «rio» no lugar do elogio. Por exemplo parem de «riar»,
vamos cultivar» (Duwatan brik jakajar) substitui piitch por brik. De facto,
«rio» é o termo icónico para o ato de se gabar ou apregoar os seus méritos
ou até, por extensão metafórica, de se outorgar um «nome de louvor».
Assim, a forma comum de perguntar a alguém qual é o seu nome de lou-
vor é querer saber «como se diz o teu nome de ‘rio’ (katim brik jaum)».
«Rio», neste contexto, refere-se a duas atividades dignas de mérito – a
«abertura» de novos arrozais num pântano de água salobra, afetado pelas
marés, ou a «atravessar um rio» (pepat brik), ou seja, emigrar em busca da
fortuna.
Para os homens que se tornaram adultos no início do século XX, exis-
tem muitos exemplos de nomes que se referem a campos e ao trabalho
agrícola. Estes incluem «Eu sou melhor (que todos) a represar o rio»,
«Vocês gabam-se dos novos campos do rio; mas fui eu quem os abriu».

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Movimentos, Espíritos e Rituais

Nos anos 30 e 40 estes nomes, que usavam «rio» para se referir à agricul-
tura, cederam lugar a nomes que usavam «rio» para se referirem à emi-
gração. O nome de louvor mais comum nessa época era «Ele deixou a
meninice e pegou no remo» – implicando que, no início da era colonial,
a emigração se tinha tornado um verdadeiro rito de passagem para os jo-
vens Manjaco do sexo masculino. «Rio», uma palavra que remete para o
elogio, e que em tempos teve um poder conotativo tirado da criação de
diques em pântanos salobros para criar novos arrozais, tornou-se sim-
plesmente uma alusão a «atravessar o rio», ou seja, emigrar.
Os Manjaco reconhecem dois tipos de nomes de louvor. A um cha-
mam «nome de distinção» (kapitch pepiitch), ao outro «de lamento» ou
«queixoso» (kakanar). Ambos sublinham a competição e o conflito entre
pares. Ambos exaltam o antagonismo. O que é talvez mais revelador nes-
tes nomes é a estreita relação que os Manjaco estabelecem entre o elogio
e a destruição. Em geral, um nome de distinção refere-se – muitas vezes
em termos exagerados (por vezes cómicos) – a vitórias gloriosas e inimi-
gos vencidos. Assim, por exemplo, um nome popular para um caçador
de mérito é «Abate os Comedores de Erva» e existe um análogo humo-
rístico para um produtor de vinho de palma de renome que «Abate os
Anciãos» graças ao vinho forte que os faz cambalear e sucumbir ao sono.
Um nome de lamento é tipicamente um insulto ou afronta, revisto e
lançado de volta a quem o cometeu originalmente. Transforma a zom-
baria em desafio, e dá um carácter permanente ao antagonismo entre
pares. Um exemplo é «As orelhas do branco são mais brancas». Primei-
ramente utilizado nos anos 40 do século XX, tornou-se um nome de lou-
vor comum na região em que fiz trabalho de campo, referindo-se a qual-
quer Manjaco educado – um professor ou burocrata. Teve origem na
forma de um insulto – um homem que acusava outro, um funcionário
sem importância num posto do governo, de se dar ares de superioridade
ao vestir-se e agir como os portugueses. «Orelhas» pode ser uma referên-
cia à aparência, mas também indica inteligência. O funcionário, segundo
a história, respondeu ao insulto com a afirmação de que «as orelhas do
branco eram mais brancas» (significando que um branco teria sempre
uma pele mais clara que qualquer Manjaco) mas que ele, o funcionário
Manjaco, era, de facto, mais esperto e mais educado que os europeus
que ocupavam cargos superiores na hierarquia.
Os nomes de louvor são representados em pantomimas durante o fu-
neral. Mais abaixo, refiro três exemplos dessas representações e os nomes
que a elas estão associados – um para o típico camponês, outro para o
emigrante genérico – que tiveram lugar em funerais a que assisti no fim

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Corpos em falta e pertença entre os Manjaco

dos anos 80. Quero fazer notar a justaposição que os Manjaco efetuam
entre o elogio e a destruição, como se ela fosse um inevitável facto da
condição humana.
Uma pantomima popular, praticada pelos homens, é conhecida como
«a dança do camponês». O dançarino escava literalmente a terra solta do
recinto, e lança a areia pelo ar com a sua ferramenta. Começa lentamente,
fazendo uma pausa enquanto coloca a pá, realçando nesse gesto o quanto
o trabalho é «pesado». Nesse momento as mulheres podem aproximar-se
e fazer o gesto de quem planta alguma coisa, à frente da pá, como se es-
tivessem a lançar sementes ao solo. Ou podem simplesmente dobrar-se
para examinar a pá, produzindo sons de admiração. Depois de algumas
cavadelas deliberadas, o dançarino começa a mover-se de forma frenética,
escavando de forma espasmódica, atirando a areia para todos os lados,
mexendo-se cada vez mais rapidamente mas com menor precisão. En-
quanto ele labora desta forma, as mulheres aproximam-se de novo, para
o ventilar ou para o abafar com tecidos. E nesse momento ele para.
O nome de louvor que acompanha esta representação, entoado pelos
tambores, é «Todos fazem montículos; eles desfazem-se», e refere-se a um
acontecimento em particular. Um grande trabalhador do campo é aquele
que é capaz de fazer os montículos com uma pá rudimentar mais de-
pressa do que os seus pares. Quando existem grupos de trabalho organi-
zados pelos jovens solteiros de uma aldeia, estes alinham-se num campo
e competem para ver quem é melhor. Estas corridas são consideradas
«boas», porque «te fazem esquecer a dureza do trabalho». Ao mesmo
tempo, contudo, são «más», porque os mais lentos, ao tentarem recuperar
terreno, muitas vezes fazem montículos pouco cuidados, o que «arruína»
o terreno e o torna menos produtivo. A representação da pantomima
que acompanha este «Todos fazem montículos; eles desfazem-se» captura
nos gestos miméticos o momento em que um camponês vitorioso goza
com os seus pares que, na tentativa de se equiparar a ele, produzem um
trabalho medíocre.
De forma similar, as pantomimas sobre emigrantes integram este tema
da destruição social como consequência do sucesso pessoal. A «dança
do emigrante» imita aquilo que podemos considerar a exagerada lassitude
do diletante. O «dançarino» usa um fato, e passeia-se casualmente em
redor de uma garrafa de «vinho dos brancos» – brandy, whisky, ou algo
semelhante. Também neste caso as mulheres vão ao seu encontro para o
cobrir de panos ou para o abraçar. E ele paga-lhes o serviço com um copo
cheio de álcool. Neste ponto, os batedores estão normalmente a fazer
soar vários nomes de louvor aplicados a emigrantes. Um deles, por exem-

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Movimentos, Espíritos e Rituais

plo, é uma canção de louvor composta no início dos anos 60 para o filho
de um chefe que regressa da sua estadia no estrangeiro com um motoci-
clo, e o refrão é «(som de motor), e as cabras quebram as cordas», refe-
rindo-se assim à entrada triunfal do jovem na aldeia, no pino da época
das colheitas, quando toda a gente trata de prender o gado para o impedir
de ir aos arrozais e devorar os grãos maduros. Prender o gado é a perfeita
imagem da responsabilidade individual para com a comunidade. Cada
um deve refrear o que é seu para benefício dos outros. Assim, a canção
apresenta-nos de forma compacta o cerne dos paradoxos em torno do
louvor. O triunfo do emigrante acaba por ser destrutivo em termos so-
ciais: as cabras partem as cordas e correm para o campo do vizinho, onde
destroem a colheita.

Notas finais
Haverá algo para além de uma espécie de continuidade adventícia nos
dois eventos – o funeral dos emigrantes ausentes e as provocações suici-
das dos guerreiros Papel –, os dois corpos ausentes, separados por um sé-
culo, que descrevi antes? Gostaria de sugerir que sim. Quanto ao guer-
reiro Papel que salta e provoca os soldados portugueses, mal podemos
imaginar no que estaria a pensar. Estaria tão disposto a arriscar a morte
se não tivesse a certeza absoluta de que os seus amigos da mesma idade
recuperariam o seu cadáver, o levariam para a aldeia e lhe dariam um fu-
neral glorioso? No seu caso, tendemos a atribuir-lhe aquela certeza ine-
fável que também associamos à tradição, no seu sentido mais romântico.
Há uma certa nobreza na crença de que a morte é um momento apenas,
que é inevitável e que conduz a algo mais permanente e exaltante. Tor-
cemos o lábio não ao guerreiro, mas aos oficiais portugueses que consi-
deraram as suas danças provocatórias tão «ridículas». Em contraste, po-
demos tentar perceber (já que o podemos entrevistar) o que pensa o
jovem Manjaco que transporta consigo no avião de regresso à terra um
fardo de roupas. Mas neste ponto as coisas tornam-se confusas. Ao falar
com os meus jovens amigos Manjaco na sua aldeia, nunca conseguia des-
cobrir com toda a certeza até que ponto é que eles acreditavam, por
exemplo, nos antepassados, e na vida para lá da morte. Era evidente que
muitos não tinham essa crença, e não se inibiam de o proclamar (ver
Gable 2002). Porém, também eles participavam com deleite num con-
junto de práticas que, a seus olhos, não se deviam basear em mais do
que uma espécie de compromisso teatral, um prazer na performance.
A dança do guerreiro transformou-se assim numa representação.

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Corpos em falta e pertença entre os Manjaco

Duas representações, de facto. Uma na forma de tragédia, outra (quase)


como farsa. Ambas prestando-se à elaboração de um formato ritual que
lhes dá persistência e resiliência. Mas há ainda algo mais que gostaria de
sugerir sobre os jovens envolvidos em ambos os momentos. Os jovens
Manjaco que conheci eram cínicos e sempre prontos a questionar a au-
toridade. Se alguns deles tinham aprendido a executar a dança do guer-
reiro de uma forma atleticamente exemplar, muitos mais tinham conse-
guido dominar a arte da paródia precisa, da provocação cortante.
Utilizavam constantemente essa capacidade de acrobacia verbal – na crí-
tica aos mais velhos, no gozo com o governo, na crítica à ineficácia do
«desenvolvimento». Quando espreito por cima dos ombros dos soldados
e dos administradores portugueses da era colonial e leio as suas descrições
da «vergonha» que sentiam ao escutar os insultos e as provocações, reco-
nheço nesses guerreiros de antanho, mortos há tanto tempo, uma atitude
familiar, um certo ethos. E é ele que leva não apenas a que os rituais per-
sistam mas que os Manjaco, vivam eles nas aldeias natais ou no estran-
geiro, tenham este carácter resiliente.

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Parte II
Circulação transnacional
de espíritos,
corpos e rituais
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Irene Rodrigues

Capítulo 4

«As folhas caídas regressam


às raízes»: a invisibilidade da morte
e a ideia de «casa» na política
de enterro da migração chinesa
Introdução
A invisibilidade pública de eventos e cerimónias relacionadas com a
morte de migrantes chineses em Portugal, e o desconhecimento relativo
às crenças e práticas funerárias chinesas na sociedade portuguesa, tem ge-
rado mitos e preconceitos que alimentam a imaginação em blogues de
internet e conversas, algumas delas na academia, sobre o mistério da «não-
-morte» dos chineses em Portugal. A partir de trabalho de campo realizado
em Lisboa – entre 2009 e 2011, este capítulo trata o modo como os mi-
grantes chineses lidam com a morte e pretende explorar as questões em
torno da sua invisibilidade relacionando-a com as mudanças nos rituais
da morte na China e a própria ideia de «casa» na migração chinesa.1
A minha pesquisa em torno deste tema começou verdadeiramente
como uma «busca» de mortes e funerais chineses perante o desafio de
compreender o porquê da pequena dimensão do fenómeno em Portugal.
Esta procura de eventos e pessoas relacionadas com situações de morte
foi a base do trabalho de campo que resultou numa etnografia da morte
na migração chinesa composta por alguns casos de mortes e funerais, e
entrevistas com líderes religiosos, amigos e membros de famílias de mi-
grantes chineses falecidos em Portugal, bem como entrevistas conduzidas
entre membros desta comunidade migrante focando, precisamente, a

1
O trabalho de campo foi realizado no âmbito do projeto de investigação «A gestão
transnacional da morte», financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia PTDC/
CS-ANT/102862/2008.

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Movimentos, Espíritos e Rituais

alegada invisibilidade da morte dos chineses. O resultado é uma discus-


são sobre a invisibilidade da morte e os modos chineses imigrantes de
lidar com a morte, e as contradições entre um ideal de regresso do corpo
à terra natal, e um mais ou menos longo período de residência num ter-
ritório estrangeiro, mediados pelos problemas financeiros e práticos en-
contrados no tratamento de doenças no estrangeiro e a perceção das di-
ficuldades no envio dos corpos de regresso à China. Ao longo do capítulo
analiso as várias dimensões da morte entre os migrantes chineses em Por-
tugal em busca de respostas para a sua invisibilidade, e estabeleço uma
relação entre as condições da morte na migração e uma ideia de «casa»
(home em inglês), argumentando que, neste caso particular, o lugar onde
se morre e é enterrado pode ser entendido como significativo sobre o
modo como os migrantes chineses estabelecem raízes e laços com o «país
de destino», neste caso, Portugal.
A expressão «As folhas caídas regressam às raízes», que dá título a este
capítulo, é a tradução portuguesa para o provérbio chinês Luoyeguigen
que descreve este ideal chinês de ser enterrado na terra natal, cujas im-
plicações para a migração chinesa em Portugal na atualidade procurarei
explorar em seguida.2

Insignificâncias estatísticas e um mito urbano


muito collie
Em 2007, o realizador chinês Zhang Yang utilizou precisamente o pro-
vérbio Luoyeguigen para intitular o filme onde tão bem é retratado o
drama da morte chinesa fora da terra natal e o ideal do derradeiro regresso
a casa.3 O filme relata de um modo tragicómico as peripécias de um
homem que conduz o cadáver de um amigo falecido longe de casa no
regresso à terra natal. Fazer regressar o corpo do amigo à terra natal apre-
senta-se como um imperativo moral, a coisa certa a fazer, quando con-
frontado com uma situação de morte «fora de casa», cumprindo assim o
preceito do regresso às raízes.
Ouvi o provérbio pela primeira vez quando comecei a fazer trabalho
de campo sobre o tema da morte entre chineses em Lisboa. Os meus in-
terlocutores usavam recorrentemente esta expressão para iniciar uma res-
posta quando lhes perguntava onde são enterrados os mortos chineses

2
Tradução da autora.
3
Getting Home na versão inglesa e A Caminho de Casa na versão brasileira. O filme não
teve estreia em Portugal.

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«As folhas caídas regressam às raízes»

em Portugal. Mas apesar de começarem por dar conta deste ideal, todas
as situações de morte em território português que consegui identificar de
modo concreto tiveram como desfecho o enterro do corpo num cemitério
português, ainda que me tenha sido dito que os chineses «costumam»
mandar o corpo para a China ou fazem cremação, por ser mais fácil levar
as cinzas do que o cadáver. Na verdade estas possibilidades ficaram sempre
no plano teórico, não tendo sido por mim identificado nenhum caso con-
creto. Esta contradição entre um ideal de regresso à terra natal e um efetivo
enterro no «país de destino», quando a morte ocorre em situação de mi-
gração, encerra parte do drama da morte dos migrantes chineses em Por-
tugal, e contribui também para adensar a invisibilidade do fenómeno, de
um modo que mais à frente procurarei demonstrar.
Este ideal chinês de morrer e ser enterrado na sua terra natal marcou
a migração dos coolies chineses que, na segunda metade do século XIX,
deixaram as suas aldeias natais na China para irem trabalhar para as Amé-
ricas e para África através de um sistema de trabalho por contratos em
condições miseráveis. Como Lynn Pan nos descreve (1994), estes traba-
lhadores, que vieram substituir a mão de obra escrava, quase sempre fi-
cavam reféns das condições que tinham contratualizado, e que os afas-
tavam do convívio social com residentes dos locais para onde emigravam,
o que, aliado às duras condições de vida e de trabalho, concorria para
que os lugares da emigração fossem percecionados como lugares de so-
frimento (chi ku), e a aldeia natal, de onde saíram, embora o tivessem
feito por dificuldades económicas, se transformasse no paraíso para onde
todos ansiavam regressar. Este sentimento domina também a situação
dos migrantes internos na China atual, que há décadas rumam em dire-
ção às grandes cidades industriais do Sul e do Sudeste em busca de me-
lhores condições de vida e acabam a viver em zonas guetizadas e objeto
de discriminação por parte dos urbanitas locais (ver Rodrigues 2012;
Zhang 2001; Xiang Biao 1999). Imagens do local para onde se migra
como um local inóspito, cheio de perigos, e a terra natal como o local
ideal, depósito de todos os desejos e emoções positivas – o lugar onde se
deseja estar –, foi também um dos quadros da migração chinesa que en-
contrei numa investigação anterior (Rodrigues 2012). Esta imagem que
surge tanto para descrever as migrações internas como as migrações in-
ternacionais na China dá conta, particularmente, dos primeiros tempos
da migração, caracterizados por um grande sentimento de vulnerabili-
dade, não apenas devido à própria situação do migrante como também
devido às dificuldades de compreensão do contexto social, linguístico e
cultural da realidade portuguesa, e que aparece traduzido em histórias

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Movimentos, Espíritos e Rituais

fantasiosas e construção de estereótipos sobre os portugueses e a socie-


dade portuguesa.4
Esta ideia do imperioso regresso dos chineses emigrados à terra natal
para morrer permaneceu na teoria do período clássico da migração chi-
nesa, sem que tenha ainda sido questionada a propósito da nova migra-
ção chinesa (Nýiri 1999), seus contextos e condições. É verdade que Skel-
don (2007) e Thunø (2007) questionaram o retorno como objetivo final
da nova migração chinesa, porém esse questionamento foi colocado em
relação ao projeto de vida, não pondo em causa a teoria existente sobre
o lugar da morte e do corpo na migração chinesa. De facto, o destino do
corpo dos migrantes chineses falecidos fora da China, e os desafios co-
locados pela morte na migração, não estão ainda devidamente explorados
na literatura académica, contrariamente ao senso comum, onde o tópico
é alvo de intensas e apaixonadas discussões e especulações, tanto em Por-
tugal como em vários países do Sul da Europa, razões mais do que sufi-
cientes para tornar este tópico num desafiante terreno de pesquisa.5
Como acima mencionei, o meu trabalho de campo teve início com a
interrogação sobre a própria localização do terreno: Como fazer trabalho
de campo sobre uma realidade aparentemente invisível? Umas das mi-
nhas primeiras ações consistiu então em consultar as estatísticas sobre
morte e migração chinesa em 2009, momento em que fui confrontada
com um número incrivelmente baixo de cidadãos chineses falecidos em
território português. No ano de 2008, as estatísticas davam conta de seis
óbitos de cidadãos chineses em Portugal, um número que aumentou li-
geiramente desde então atingindo um máximo de 13 óbitos em 2012,
para diminuir para três óbitos apenas em 2014, como se pode ver no
quadro 4.1.
De facto, o número reduzido de mortes parece ser um elemento im-
portante que vai ao encontro do mito urbano que procura explicar a su-
posta «não-morte» dos migrantes chineses. Para melhor compreender este
número vale a pena observar as estatísticas da morte entre populações
migrantes de outras nacionalidades a residirem em Portugal, e que parti-
lham algumas características com a população chinesa.
Ainda assim, tomando o ano de 2012 como exemplo, ano que apre-
senta o maior número de mortes de cidadãos chineses em Portugal, po-

4
Sobre o sofrimento e o sentimento de vulnerabilidade dos migrantes, ver Sayad
(2004).
5
A literatura sobre o tema da morte e da imigração em geral é muito escassa, veja-se a
título de exemplo Saraiva, Mapril e Levy (2013) e Mazzucato et al. (2006). No caso espe-
cífico da migração chinesa não me foi possível identificar qualquer trabalho recente.

90
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«As folhas caídas regressam às raízes»

Quadro 4.1 – Evolução do número de óbitos de cidadãos chineses


comparando com o total da população chinesa residente
em Portugal, entre 2008 e 2014
Ano 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014
Número de óbitos 6 8 10 9 13 11 3
População chinesa
13 331 14 396 15 699 16 785 17 447 18 637 21 402
residente em Portugal
Fonte: Instituto Nacional de Estatística (INE) e Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF).

Quadro 4.2 – Comparação do número de óbitos de cidadãos chineses


com outros grupos populacionais estrangeiros em Portugal
no ano de 2012
País China Bangladesh Índia Paquistão Guiné-Bissau

Número de óbitos 13 1 9 1 47
Total populacional
residente em Portugal 17 447 1351 5657 2425 17 759
em 2012
Fonte: Instituto Nacional de Estatística (INE) e Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF).

demos verificar que o número de óbitos de cidadãos chineses continua


a ser comparativamente baixo. O número de óbitos de cidadãos estran-
geiros de outras nacionalidades, com uma população total em número
semelhante, ou com características diaspóricas semelhantes, em Portugal
é igualmente baixo. Quando comparado com populações que apresen-
tam algumas características diaspóricas semelhantes à população chinesa,
como o caso das populações oriundas do Bangladesh e do Paquistão,
cujas diásporas em Portugal datam igualmente da década de 1990, rela-
tivamente recentes portanto, e se dedicam também a atividades comer-
ciais em que o risco laboral de morte é inferior, por exemplo, às popula-
ções que encontram trabalho principalmente na construção civil,
verificamos que o número continua a ser baixo. Ainda que tenha havido
apenas um óbito registado em cada uma destas populações, Bangladesh
e Paquistão, no ano de 2012, as populações totais são muito menores
que a população chinesa. Quando comparando com uma outra popula-
ção comerciante, como a proveniente da Índia, com uma diáspora mais
antiga em Portugal devido às relações com o antigo Império Colonial
Português, o número de óbitos de chineses continua a ser proporcional-
mente inferior, dado que a população total chinesa corresponde a cerca

91
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Movimentos, Espíritos e Rituais

do dobro da população indiana. A comparação do número de óbitos


com uma população numericamente equivalente como a população com
cidadania da Guiné-Bissau, verificamos que o número de óbitos entre a
população guineense é muito superior à chinesa, verificando-se mais do
triplo do número de óbitos. Porém, tal pode ser compreendido conside-
rando os laços mais antigos da migração de população guineense para
Portugal e portanto tratar-se-á de uma população mais envelhecida do
que a chinesa. São também relevantes as diferenças nas atividades eco-
nómicas a que uma e outra população se dedicam, sendo que a popula-
ção guineense se dedica mais à construção civil e a limpezas, enquanto
a população chinesa está ligada sobretudo ao comércio. Desta compara-
ção com outras populações ressalta o número reduzido de óbitos na po-
pulação chinesa por referência a outras populações migrantes com ca-
racterísticas semelhantes. Ainda assim estes números podem também ser
elusivos, na medida em que se trata de uma população maioritariamente
jovem, e em que os membros mais antigos da comunidade, sobretudo
aqueles que acabaram por se estabelecer mais fixamente em Portugal, já
obtiveram a cidadania portuguesa e, como tal, «morrem como portugue-
ses». Os dados estatísticos disponíveis sobre óbitos não permitem aferir
o local de nascimento dos indivíduos em causa, mas apenas a sua cida-
dania no momento da morte.
Assim, se é verdade que a população chinesa em Portugal apresenta
um número de óbitos baixo, mesmo até em relação a outras populações
com características semelhantes, ainda assim, o fenómeno não está to-
talmente ausente das estatísticas e o número de óbitos apresenta uma
tendência de subida, acompanhando o crescimento e o envelhecimento
da população chinesa em Portugal. Apesar do ano de 2014 ter registado
um número anormalmente baixo de óbitos entre cidadãos chineses, em
Agosto deste ano, o Instituto Nacional de Estatística (INE) dava já conta
de oito óbitos chineses registados para o ano de 2015.
Assim, o baixo número de óbitos e o desconhecimento relativamente
aos hábitos, formas de pensar e de estar da população chinesa, criou um
terreno fértil para a imaginação mitológica sobre a morte dos migrantes
chineses em Portugal. Este mito da «não-morte dos imigrantes chineses»
apresenta diferentes versões. Numa delas, é dito que os imigrantes chi-
neses por regra se encontram numa situação de imigração irregular em
Portugal e, como tal, quando os chineses morrem, a morte não é repor-
tada para que essa pessoa possa ser substituída por outra em situação ir-
regular, tomando a identidade da pessoa falecida, e contribuindo assim
para a extensão de uma rede ilegal de imigração. Numa variante mais

92
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«As folhas caídas regressam às raízes»

elaborada, é veiculado que os compatriotas usariam os restos mortais


para servir como carne nos restaurantes chineses, explicando deste modo
a proliferação de restaurantes chineses em Portugal no início do milénio,
e o seu sucesso económico durante um determinado período de tempo.6
Enquanto mitos urbanos, em determinado momento, estas histórias tor-
naram-se tópico obrigatório em todas as conversas que abordavam a mi-
gração chinesa, e eu própria respondi (ou procurei responder) a esta ques-
tão em eventos académicos onde falei sobre migração chinesa e o tema
acabou sempre por ser levantado por alguém da audiência, académico
ou não. É minha convicção tratar-se de um mito urbano onde vários ele-
mentos – factos, lugares, pessoas e ideias são reorganizados pelo pensa-
mento coletivo num tipo de bricolagem própria do pensamento livre ou
em estado selvagem, tal como nos demonstrou Lévi-Strauss (1962). Em
seguida procuro explorar alguns dos elementos que o compõem.
Em 2006, a Autoridade para a Segurança Alimentar e Económica
(ASAE) portuguesa encerrou dezenas de restaurantes de comida chinesa
por todo o país, aquando de um endurecimento na aplicação das regras
de higiene e segurança alimentar na restauração em Portugal. Estes encer-
ramentos foram motivados pelas más (por vezes mesmo péssimas) con-
dições de armazenamento e/ou de qualidade dos produtos servidos,
porém não houve nenhuma informação relativa à descoberta de carne
humana. É um facto que as redes de imigração ilegal chinesas normal-
mente se baseiam em trocas de identidade; eu própria me deparei com
vários casos durante o trabalho de campo anterior (Rodrigues 2012), con-
tudo normalmente o procedimento de atuação por parte dos traficantes
é a confiscação dos passaportes e a sua utilização para fazer entrar outras
pessoas na Zona Schengen, bem como uma forma de manter os migrantes
num determinado posto de trabalho o tempo requerido pelo patrão ou
pelo passador. Anos mais tarde, quando finalmente recuperam os passa-
portes, muitos migrantes descobrem que, relativamente a esse período
temporal, constam várias entradas no espaço Schengen, pelo que têm pro-
cessos judiciais noutros Estados-membros, países onde, de facto, nunca
estiveram. No terreno detetei também casos de pessoas que viajaram para
a Europa com identidade de familiares que ficaram na China, por não
reunirem as condições necessárias, por exemplo, ser maior de idade.

6
Numa outra variante, que procura explicar não a «não-morte» dos migrantes chineses,
mas as razões para os baixos preços praticados pelos restaurantes chineses, a carne servida
nos restaurantes chineses em Portugal seria carne de cão e/ou de gato, animais que seriam
apanhados nas redondezas dos restaurantes.

93
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Movimentos, Espíritos e Rituais

A estranheza em relação a uma gastronomia e a uma cultura estran-


geiras, a visibilidade dada pelos media às irregularidades documentais e
fronteiriças como características da migração chinesa para a Europa, alia-
dos à quase insignificância estatística da morte na migração chinesa, fun-
cionam como elementos fundamentais na construção deste mito urbano
cujo aparecimento pode ser entendido como uma tentativa de explicação
metafórica para a aparente resiliência e para o sucesso económico dos
chineses em Portugal em face de um ambiente económico adverso.
Acima de tudo ele é resultado do enorme desconhecimento existente
sobre a população chinesa por parte da restante população, não apenas
de origem portuguesa como de outras nacionalidades, alimentando assim
a imaginação da mente humana.

Um funeral público e uma morte privada:


resistências e possibilidades
Zhang faleceu em Lisboa em abril de 2011 quase um ano depois de ter
iniciado tratamento para doença oncológica. Zhang, com cerca de 70
anos, chegou a Portugal nos primeiros anos da década de 2000, seguindo
dois dos seus filhos que vieram estudar para Lisboa. O itinerário de cura
de Zhang envolveu várias viagens intercontinentais entre Portugal e a
China. Depois de um ano de queixas sem diagnóstico conclusivo na rede
pública de hospitais de Lisboa, Zhang recorreu aos serviços de um hospital
privado da capital chinesa, em busca de uma resposta para as suas queixas
de dores abdominais fortes que se prolongavam havia já um ano. Na
China, foi-lhe então diagnosticado cancro e, em poucas semanas, foi sub-
metida a uma intervenção cirúrgica na tentativa de extração do tumor.
Algumas semanas depois da cirurgia, Zhang deixou o hospital privado da
capital chinesa, onde os cuidados médicos eram muito dispendiosos, e
rumou à sua terra natal no Norte da China onde continuou a ser acom-
panhada pelos serviços públicos de saúde locais, aos quais tinha acesso
por ter residência nessa província. Durante esses meses acompanhei e vi-
sitei Zhang nalgumas unidades de saúde em Portugal e na China. Na vés-
pera da sua cirurgia em Pequim, Zhang disse-me que, perante a situação
de morte iminente dada pelo diagnóstico (seria pouco provável consegui-
rem remover todo o tumor dado o estádio em que se encontrava) preferia
regressar à sua terra natal com o marido e aí morrer. Porém, depois de
passar todo o verão na terra natal e com o regresso do inverno e do frio
ao Norte da China, a família em Portugal convenceu-a a regressar à Eu-
ropa para passar o inverno. Foi esta a razão que me apresentou quando a

94
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«As folhas caídas regressam às raízes»

visitei em Lisboa oito meses depois de a ter visto pela última vez na China.
Na altura, já bastante combalida, dizia não saber o que iria acontecer, mas
que estava muito feliz por ali estar. Cerca de três meses depois Zhang veio
a falecer num hospital público de Lisboa para onde foi levada de urgência
pela família. A morte de Zhang ocorreu poucas semanas depois do nosso
último encontro, mas eu só tive conhecimento cerca de um mês depois
quando contactei a família para saber notícias suas.7 Quando lhes per-
guntei sobre o «funeral», responderam-me que não o houve, não houve
cerimónia pública, apenas o seu marido e os seus filhos assistiram à de-
posição do caixão com os seus restos mortais numa gaveta num cemitério
de Lisboa. O «enterro» só ocorreu cerca de uma semana depois, aguar-
dando a chegada de um dos filhos residente na América do Norte, tempo
durante o qual o corpo esteve guardado na morgue do hospital.8
A palavra «funeral» em língua chinesa é composta por dois caracteres
que em mandarim corresponde aos fonemas zang li, e que literalmente
significa ritual de enterro ou ritual da sepultura. No caso dos migrantes
chineses em Portugal, as formas rituais associadas à morte surgem con-
ceptualmente ligadas à noção chinesa de ritual (li) que envolve a ideia
de regras de comportamento adequado também no sentido ético e
moral, ou seja, o modo adequado e moralmente virtuoso de lidar com
todas as situações da vida, neste caso com a morte (Watson 1988a).
Quando questionei a família sobre as razões que os levaram a não fazer
um «funeral», um dos filhos argumentou que o pai estava muito abalado
com a morte da mãe e que não estava preparado para enfrentar a situação
publicamente; então acharam que se não tornassem a situação pública
seria «como se ela ainda estivesse entre nós», disse-me. Voltarei às razões
por detrás deste «não-funeral» um pouco mais à frente. Em seguida com-
paro a falta de cerimonial no «enterro» de Zhang com um outro funeral,
ao qual pude assistir em Lisboa em Maio de 2011, e que descrevi com
algum detalhe etnográfico num texto anterior (Rodrigues 2012).

7
A morte de Zhang ocorreu apenas duas semanas depois do nascimento do meu filho
e, acredito que por esse motivo, a família não me tenha contactado. A morte na China
está simbolicamente conotada com uma elevada carga de poluição espiritual (ver Stafford
2010, e Watson 1988b), enquanto o parto inicia um período de resguardo para a mãe e
para a criança, acreditando-se ser um período especialmente vulnerável (ver Rodrigues
2003). Já aquando da minha última visita, Zhang disse-me que no meu estado eu não
deveria estar perto de uma pessoa na situação dela.
8
As palavras «enterro» e «funeral» quando aplicadas ao caso de Zhang surgem aqui
entre aspas, na medida em que a família não considera ter-se tratado de um ritual fúnebre
e não acha que a palavra seja adequada neste caso. Conversando com conhecidos da fa-
mília confirmaram-me a ideia de que não houve «funeral».

95
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Movimentos, Espíritos e Rituais

Xia chegou a Portugal no início da década de 1990 juntamente com o


seu marido e três filhos, ainda menores na altura. A família singrou nos
negócios do comércio, sendo proprietária de várias lojas em Lisboa, o que
lhes permitiu proporcionar uma educação superior aos filhos no Reino
Unido. Xia veio a assumir uma posição de relevo no templo budista
chinês em Lisboa, e a família era bem conhecida na comunidade.9 Em
finais de 2010, Xi adoeceu gravemente com cancro, vindo a falecer em
maio de 2011. Segundo a família e os amigos próximos, quando soube
da doença Xia decidiu ser tratada em Portugal e aí morrer. O seu corpo
foi depositado num jazigo adquirido pela família num cemitério de Lis-
boa, mas ao contrário de Zhang, Xia teve um elaborado ritual funerário
levado a cabo na capela multidevocional de um dos cemitérios lisboetas,
e organizado pelo templo budista chinês local. Este evento público con-
gregou não apenas familiares e amigos, como também membros ilustres
da comunidade, que numa cerimónia organizada e altamente ritualizada
prestaram homenagem à falecida. Este ritual levou cerca de uma semana
a ser preparado, juntou cerca de 150 pessoas, e ficou conhecido como o
primeiro funeral budista chinês a ocorrer em Portugal.10
Na China, os funerais tal como os casamentos, eram tradicionalmente
ritos de passagem pronunciadamente marcados e celebrados, quais rituais
conspícuos que davam conta do sucesso económico e social das famílias.
Foi precisamente devido à carga financeira, cultural e social que associa-
vam, que os funerais chineses foram alvo de estratégias reformistas e re-
volucionárias destinadas a desencadear mudanças nos rituais fúnebres
chineses. Desde a Revolução Republicana de 1910 que – primeiro os re-
publicanos e mais tarde, depois de 1949, os comunistas – sucessivos go-
vernos chineses se dedicaram a reformar os costumes funerários chineses
ou, por outras palavras, a mudar «o modo chinês de morrer», orientando-
-se para a simplificação, ocidentalização, e secularização dos rituais fu-
nerários (Whyte 1988). O Partido Comunista Chinês (PCC) considerou
os costumes funerários chineses como supersticiosos e perigosos, e con-
trários aos valores socialistas que o partido procurava implementar na
sociedade chinesa. A partir daí, o governo promoveu a cremação ao invés
de enterros, transformou os rituais públicos em memoriais, criticou as

9
Refiro-me aqui ao único templo budista chinês existente em Lisboa, o templo da As-
sociação Internacional Buddha’s Light (BLIA) (ver Rodrigues 2012 para mais detalhes).
10
Em 2014, o jornalista João Paulo Meneses (2014) do jornal Ponto Final de Macau,
dava conta dos primeiros funerais chineses realizados na freguesia de Árvore, na Varziela
(Vila do Conde) onde se situa uma das mais importantes comunidades chinesas em Por-
tugal.

96
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«As folhas caídas regressam às raízes»

tradições do luto e retirou o papel da família do processo. Tal como


Whyte (1988) descreve, nas cidades era mais difícil escapar ao novo estilo
de funeral e muitas pessoas, quando ficavam velhas ou adoeciam, mu-
davam-se para o campo para assegurar que teriam a possibilidade de ter
uma cerimónia tradicional, especialmente que poderiam ser enterrados,
e não forçados à cremação. Alguns dos meus interlocutores confirma-
ram-me a simplicidade dos funerais na China atual, sobretudo nas cida-
des, mas quando fiz trabalho de campo em Wenzhou, na China, em
2010, fui confrontada com o aumento da sumptuosidade dos funerais
nas zonas rurais, um fenómeno já anteriormente descrito por Mayfair
Yang (2000). De acordo com os meus interlocutores locais este fenómeno
estava ligado ao aumento da riqueza em Wenzhou e ao desejo de o de-
monstrar publicamente. Contudo, este tipo de funeral, que na sua ótica
remetia mais para a «tradição», ocorria longe do olhar das autoridades
para «evitar problemas». Em conversas informais com migrantes chineses
acerca do lugar onde se deve morrer e ser enterrado apercebi-me também
de como a morte em Portugal representa uma diminuição das limitações
em relação ao desfecho dado aos corpos. Os meus interlocutores argu-
mentavam que na China só quem tem muito dinheiro pode ter acesso a
um enterro, enquanto a maioria das pessoas comuns é obrigada a fazer
cremação. Como em Portugal essa prática não é obrigatória, é possível
ser enterrado mais de acordo com o ideal chinês, não relativo ao lugar,
mas ao modo como se é «enterrado». Esta situação de não-preferência
pela cremação foi-me também confirmada pela Mestra do templo budista
chinês de Lisboa que, com algum desalento, me disse que apesar de eles
(sacerdotes budistas) aconselharem a cremação aos crentes, a maioria pre-
fere o enterro de acordo com a tradição chinesa. Tal foi o que aconteceu
no caso de Xia, que apesar de ser uma figura destacada na hierarquia da
associação do templo, teve o seu corpo depositado num jazigo e não cre-
mado de acordo com os ideais budistas.
Esta discussão sobre onde se deve morrer e o desfecho dado ao corpo
entre os migrantes chineses aponta para a importância do estado no mo-
mento da morte e remete para o debate Foucault-Agamben e as noções
de biopoder (Foucault 1994) e soberania dos corpos (Agamben 1998).
Assim, a situação de migração que num plano teórico pode ser vista
como limitativa à realização do ideal de morte descrito em Luoyeguigen,
pode na verdade constituir menos uma restrição e mais uma oportuni-
dade, se considerarmos que na própria China a possibilidade de o corpo
ser enterrado na terra natal não está assegurada. O facto dos migrantes
chineses não terem de morrer na China, e de poderem escolher morrer

97
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Movimentos, Espíritos e Rituais

noutro local, concede-lhes algum espaço para a subjetividade, escapando


assim à normatividade do Estado chinês. A situação de morte longe da
terra natal permite inovar nos rituais de morte da mesma forma como se
inova noutros rituais performativos em contexto migratório.11 Como afir-
mou Victor Turner (1969), os rituais estão em contínuo processo de trans-
formação, e no caso particular dos rituais fúnebres chineses em Portugal,
considero que se encontram mesmo em processo de redefinição; dado
o número reduzido de mortes e o número ainda mais reduzido de ceri-
mónias fúnebres que ocorre não podemos ainda falar na existência de
um padrão ritual. Esta necessidade de redefinição ocorre numa situação
de grande erosão das tradições fúnebres na origem, e uma consequente
fragmentação das formas de assinalar a morte, aliada a um recente recru-
descimento e reinterpretação dessas mesmas tradições. Em contexto mi-
gratório todos estes fatores interagem fazendo surgir várias possibilidades
rituais, tanto pela maior liberdade de escolha que é proporcionada, como
pelos novos constrangimentos que encerra. Neste ponto regresso à análise
da «não-realização» de uma cerimónia fúnebre pública, como aconteceu
no caso da morte e do «enterro» de Zhang.
A avaliar pelo número de óbitos de cidadãos chineses em Portugal e
o número de funerais que detetei no terreno, um número ainda menor,
acredito que a situação do «funeral» privado de Zhang poderá correspon-
der à maior parte dos poucos casos de morte e enterro de chineses em
Portugal. As situações de funerais «públicos» parecem estar ligadas ao re-
lativamente recente crescimento do sentimento de comunidade entre os
chineses em Portugal e à necessidade de partilhar com toda a comunidade
os momentos importantes do ciclo de vida, e portanto mais prováveis
em pessoas com papéis relevantes na vida comunitária. Se, tal como me
foi explicado pelos familiares de Zhang, o sofrimento causado pela morte
seria muito mais doloroso uma vez publicamente reconhecido, o reco-
nhecimento público que é feito através das celebrações fúnebres em Por-
tugal não está sujeito aos limites politicamente impostos aos funerais na
China. Tal significa que não existe em Portugal uma limitação política à
exibição de riqueza e de prestígio nas cerimónias fúnebres, o que vem
colocar ainda mais pressão social sobre as famílias enlutadas para des-
penderem dinheiro e demonstrarem prestígio. As «mortes privadas»

11
No caso migratório ver, a título de exemplo, Leal (2005) sobre os rituais das festas
do Divino Espírito Santo entre as comunidades açorianas em Nova Inglaterra, EUA, que
o autor caracterizou como mantendo uma ligação ao modelo da origem, mas simulta-
neamente inovando a partir de aspetos recolhidos da sociedade de acolhimento.

98
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«As folhas caídas regressam às raízes»

podem assim ser uma forma de contornar o lado potlatch do ritual fúne-
bre chinês (Yang 2000), e evitarem contrair despesas pesadas num con-
texto em que a palavra de ordem é zhuan qian ou acumular dinheiro (Ro-
drigues 2012), ao mesmo tempo que se aproveita a possibilidade de não
se estar sujeito aos constrangimentos da morte em território chinês, e
poder enterrar ou depositar o corpo numa gaveta ou jazigo ou simples-
mente numa campa rasa.
Em abril de 2012, passados poucos dias sobre um ano da morte de
Zhang, acompanhei o seu marido, filho, nora e dois dos netos, numa vi-
sita à sua sepultura no cemitério em Lisboa. O filho residente em Portu-
gal, dissera-me que iria haver uma pequena cerimónia assinalando a com-
pletação do ciclo de um ano sobre a morte da mãe. Depois de
percorrermos as ruas de jazigos de um dos cemitérios mais emblemáticos
da capital, chegámos a uma zona de gavetas, onde Zhang procurou o
número que trazia no porta-chaves. O número 420 é a única referência
existente no exterior da sepultura, lá dentro uma fotografia e alguns ob-
jetos pessoais fazem-me reconhecer que se trata efetivamente de Zhang.
Em frente ao muro de gavetas, damos as mãos e fazemos uma vénia, o
viúvo proferiu algumas palavras, dirigindo-se à defunta. Depois de Zhang
ter limpo os poucos objetos que, juntamente com a urna, se encontravam
no interior da gaveta, deixamos o local. As flores que eu havia trazido
foram depositadas numa jarra e colocadas num móvel em casa. A sim-
plicidade e a discrição desta cerimónia mimetizou o que já fora a depo-
sição do caixão no gavetão um ano antes. À invisibilidade estatística jun-
tam-se assim a invisibilidade ritual e a invisibilidade simbólica da morte
dos migrantes chineses nos cemitérios portugueses. Depois de tratar os
rituais fúnebres dos migrantes chineses em Portugal, na próxima secção
abordarei o lugar da morte, e as decisões e indecisões em torno da escolha
do sítio onde se pretende morrer e a sua relação com o «local de destino»
da migração.

A criação de raízes e a ideia de «casa»


na migração chinesa
Wu chegou a Portugal em 1980 para trabalhar como cozinheiro num
restaurante chinês em Lisboa, oriundo de Qingtian, área rural de Wen-
zhou, província de Zhejiang (China). Alguns anos depois, o homem
trouxe a sua mulher e as suas duas filhas e na década de 1990 tornou-se
um empresário bem-sucedido na restauração chinesa em Portugal.
Quando se aproximou dos 60 anos, Wu começou a passar os negócios

99
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Movimentos, Espíritos e Rituais

que acumulara em Lisboa às filhas e aos genros, mas permaneceu em


Portugal. Quando faleceu, no final da década de 1990, a sua família en-
terrou-o num cemitério nos arredores de Lisboa. Apesar disso, alguns
meses mais tarde, alguns membros da sua família foram à China para
levar a cabo alguns rituais num templo na sua terra natal. Foi a neta de
Wu, cidadã portuguesa de origem chinesa, que me relatou com orgulho
a história do seu avô e também a história da sua família em Portugal, su-
blinhando que foi a ligação do avô a Portugal e o estabelecimento da fa-
mília no país que esteve na base da decisão da família em enterrá-lo em
Portugal: «Não fazia sentido enterrá-lo na China, nós estamos aqui.» No
terreno, quando questionava os meus interlocutores chineses sobre o
local onde gostariam de morrer, os mais novos e aqueles que se encon-
travam há menos tempo em Portugal diziam gostar de voltar à China ou
simplesmente que nunca tinham pensado no assunto por serem muito
novos. Para os mais velhos a questão era mais sensível. Alguns já tinham
tomado a decisão. Nas famílias chinesas migrantes em Portugal que con-
tam com várias gerações em Portugal, é comum fazerem-se planos rela-
tivos à situação de morte dos mais velhos à medida que estes atingem os
60 anos de idade. No caso de Wu descrito acima, a ligação da família a
Portugal parecia estar bem estabelecida facilitando a decisão aquando da
morte do patriarca da família. Mais uma vez, também aqui não existe
um padrão estabelecido. Mesmo em casos de migrantes em situação se-
melhante à de Wu, conheci migrantes que, quando atingiram uma idade
mais avançada, optaram por regressar à China.
Cheng e Zhen são um casal com cerca de 65 anos que migrou para
Portugal no início da década de 1980, com os seus três filhos, dois rapazes
e uma rapariga ainda menores. Depois de terem fundado vários restau-
rantes e um armazém de importação de produtos chineses, ao chegar os
60 anos, o casal decidiu passar os negócios à geração mais nova e regressar
à terra natal. Chen, o marido decidiu não mais voltar a Portugal porque
o seu desejo é morrer na China, e espera anualmente pela visita de filhos
e netos a Qingtian; já a sua mulher regressa a Portugal todos os anos du-
rante alguns meses para estar com filhos e netos e passa o resto do tempo
junto do marido na China. Aparentemente ela não decidiu tão perento-
riamente o destino do seu corpo.
Ainda assim o regresso à China nestas condições não deve ser enten-
dido apenas como uma decisão moral para cumprimento do preceito de
Luoyeguigen, pelo contrário na justificação das suas decisões os meus in-
terlocutores apresentaram-me sobretudo razões de ordem prática. A prin-
cipal razão prende-se não com a morte propriamente dita, mas com a

100
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«As folhas caídas regressam às raízes»

doença. Chen, um velho professor reformado na China chegou a Portu-


gal em finais da década de 2000 para ajudar a educar os netos que recen-
temente se haviam mudado com os pais para Portugal. Quando confron-
tado com a pergunta sobre o lugar da morte, Chen foi bastante claro:
«Se ficar doente volto logo à China! Não quero dar trabalho aos meus
filhos, não quero ser um fardo!»
O acesso aos cuidados médicos de saúde em Portugal é percecionado
pelos migrantes chineses como uma das situações em que experimentam
mais dificuldades na sua vida em Portugal. Às dificuldades sentidas por
toda a população portuguesa que acede à rede pública de cuidados pri-
mários, aos cidadãos chineses acresce o problema da língua. De forma a
contornar este problema, é comum fazerem-se acompanhar por um tra-
dutor durante os atos médicos (ainda que esteja disponível um serviço de
tradução via telefónica) ou consultarem profissionais de saúde chineses
depois das consultas para fazer a confirmação do diagnóstico. As situações
de doença são momentos de grande vulnerabilidade e, nessa medida, de
modo a aliviar uma situação que já é, por definição, de sofrimento, muitos
chineses regressam à China para consultarem um médico, sobretudo em
casos graves (que ainda assim permitam a viagem) ou de morte iminente.
Este regresso vivo faz também diminuir drasticamente o número de pes-
soas, sobretudo idosas, que tendo vivido muitos anos em Portugal aqui
efetivamente acaba por morrer.
Zhang foi um destes casos que acabaram por manter as suas opções
de cura e de lugar de morte em aberto, deixando a decisão à família
quando o momento chegasse. A gestão das questões da morte e do lugar
da morte na migração chinesa é parte da experiência transnacional que
caracteriza a condição dos migrantes chineses em Portugal. Neste ponto,
a ideia de «casa» que decorre da migração chinesa parece especialmente
adequada para pensar a importância do lugar da morte e de deposição
do corpo, e consequentemente refletir sobre o sentimento de pertença
que estes migrantes estabelecem com Portugal.
Num texto anterior, eu argumentava que a emergência de uma noção
transnacional de «casa» entre os migrantes chineses dá conta da falta de
intenção, que encontrei entre os meus interlocutores, de regressar defi-
nitivamente à China, tal como era comum entre os migrantes chineses
antes de 1978 (ver Skeldon 2007), e que o regresso definitivo a «casa» na
China deixa de ter sentido num mundo em que estar em «casa» não é
apenas estar em Lisboa ou em Wenzhou, mas é o próprio processo de
deslocação entre os dois sítios (Rodrigues 2012). A dificuldade sentida
em se identificarem com, ou decidirem viver apenas num destes lugares,

101
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Movimentos, Espíritos e Rituais

que experimentam muitos migrantes chineses, e a própria vivência re-


partida entre os dois lugares, dá conta não de um «desenraizamento» em
consequência do processo migratório, mas pelo contrário de um processo
de criação de novas raízes. Este facto está presente no discurso dos mi-
grantes chineses quando assumem uma identificação com Portugal ou
com a China como lugares de morte, e expressam uma ideia semelhante
ainda que aparentemente pareça ser um discurso contraditório. É que
ambos os lugares expressam um «regresso às raízes». No caso da China,
as raízes de onde brotaram, e no caso de Portugal, as raízes que eles pró-
prios criarem ao terem ali estabelecido os seus negócios e as suas famílias
ao cabo de uma ou duas gerações. A família de descendência constitui-
se aqui como as próprias raízes, uma vez que é a sua estadia em Portugal
que justifica o enterro do antepassado em território português. Os mi-
grantes chineses, pelo menos os pioneiros, assumem aqui o papel de se-
mentes lançadas noutros territórios e que por esse motivo criam raízes
em todos os lugares onde se estabelecem.12 Os enterros expressam tam-
bém estes pontos de ancoragem que podem ser temporários. A migração
chinesa é caracterizada por um elevado grau de mobilidade, feita de mo-
vimentos nos quais também poderão participar os mortos. Quando ques-
tionei o filho de Zhang sobre as razões que levaram a família a decidir
depositar o corpo da mãe num cemitério em Lisboa, ele disse-me: «Esta
situação é temporária. Ela não está enterrada porque nós agora estamos
aqui, e por isso ela está cá connosco. Se nós formos para os Estados Uni-
dos ou regressarmos à China, ela vai connosco. Ela vai para onde nós
formos.» Deste modo, a condição de transnacionalidade (Ong 1999) e
de mobilidade é tal que nela participam também os corpos dos migrantes
falecidos. Deste modo é possível cumprir simbolicamente a ideia de re-
gresso às raízes, onde quer que elas sejam lançadas.
Ao longo do capítulo procurei apresentar o contexto da morte na mi-
gração chinesa em Portugal procurando compreender algumas das razões
por detrás da invisibilidade da morte dos chineses em Portugal e as suas
ligações ao contexto mais vasto da migração chinesa em contexto trans-
nacional.

12
Bloch (1971) descreveu o uso do termo «sementes» entre os Merina para designar as
saídas para territórios fora da aldeia natal.

102
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«As folhas caídas regressam às raízes»

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104
05 Movimentos Cap. 5.qxp_Layout 1 15/02/17 11:53 Page 105

Sol Tarrés
Jordi Moreras

Capítulo 5

Os cemitérios e a diversidade.
Expressões de organização
do património religioso funerário
em Espanha
Os cemitérios representam os lugares da «memória habitada» da nossa
sociedade (Rodriguez Barberán 2005). Trata-se de espaços singulares da
cidade, diferenciados e associados ao luto e à tristeza. Mas também lu-
gares de e para uma memória em permanente transformação, a partir da
qual é possível tratar a história das populações e dos indivíduos como
seres sociais e culturais. Talvez sejam um dos espaços sociais de maior
confluência simbólica. O seu valor simbólico tem uma dimensão tanto
material como imaterial, pois neles convergem diversos significados his-
tóricos, sociais, artísticos, artesanais, científicos, paisagísticos, arquitetó-
nicos, simbólicos, económicos, políticos e de relações de poder, assim
como de diversidade cultural e religiosa, de tradições, usos e costumes,
etc., de uma comunidade na relação com os seus defuntos, transformados
em antepassados, com a importante carga identitária que tal acarreta.
Os cemitérios são, também, o reflexo dos avatares políticos e religiosos
de uma sociedade. As transformações que ocorrem nestes espaços são
antes consequência direta das mudanças sociais, não de mudanças em
relação à ritualização da morte e da memória. Na atualidade, a sociedade
espanhola está a aceitar a sua transformação numa sociedade plural a
nível cultural, em parte assumindo as contribuições derivadas das migra-
ções recentes, e em parte incorporando a própria diversidade inerente à
sua história recente. Neste texto pretendemos explorar como é que esta
diversidade se situa no interior dos cemitérios espanhóis. Ainda não foi
agora que a diversidade questionou os costumes funerários da sociedade
espanhola. A separação entre tumbas, que hoje em dia se interpreta como
exemplo positivo do reconhecimento da diversidade, tem gerado debates

105
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Movimentos, Espíritos e Rituais

amargos no seio da sociedade espanhola. Analisando três casos de espa-


ços reservados aos enterros de defuntos de tradições religiosas não-cató-
licas em Espanha, demonstraremos como continuam presentes algumas
das constantes simbólicas que se relacionam com a separação de tumbas,
e como estas, ao mesmo tempo, se abrem numa dimensão de património
partilhado que deve ser recuperada.

Introdução: onde enterrar os outros mortos?


Toda a sociedade sabe como enterrar os seus mortos, assim como onde
enterrar os seus «outros mortos». Determinar o lugar onde devem ser en-
terrados os mortos que se considerava não fazerem parte da comunidade
parece ter sido muito mais relevante do que a forma como estes deveriam
ser enterrados, enquanto se entendia que tal implicava de forma privada
aqueles que partilhavam com o defunto a mesma alteridade.1 Para com-
preender melhor a relevância desta dimensão espacial é necessário ter
presente a relação ambivalente que se estabelece entre cidades e cemité-
rios, entre o lugar dos vivos e o lugar dos mortos. E essa ambiguidade
expressa-se num plano duplo: em primeiro lugar, em relação à reprodu-
ção das formas e significados sociais entre cemitério e cidade. A expressão
de Michel Ragon, «a necrópole é o reverso da metrópole, reprodução
perfeita da ordem socioeconómica dos vivos» (Ragon 1981, 51), dá a en-
tender que os cemitérios se apresentam como espaços socialmente dife-
renciados, com as suas centralidades e periferias. E, em segundo lugar,
em relação ao distanciamento físico e simbólico que sempre existiu entre
ambos os espaços. Os mortos mantêm-se separados dos vivos, em espa-
ços claramente diferenciados. E apesar de estes limites de separação não
serem apenas simbólicos como também materiais (cf. Baudry 1999, 69),
a verdade é que as topografias que os distinguem não constituem apenas
um padrão constante nem ao longo da história, nem numa perspetiva
intercultural.
Na Antiguidade Clássica as necrópoles situavam-se nos caminhos de
acesso às cidades, e apenas as classes altas tinham nelas enterros e mau-
soléus específicos. A maior parte da população rural deixava os seus fa-
lecidos em lugares diferentes (como caminhos, poços e covas), pois para
eles não era tão importante o corpo como a memória. Philippe Ariès

1
O reconhecimento da pluralidade religiosa baseia-se no princípio de que aquilo que
é particular e próprio de um coletivo já não implica apenas os seus membros, como tam-
bém as instituições públicas, que devem proporcionar os meios para que o direito de li-
berdade religiosa seja efetivo.

106
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Os cemitérios e a diversidade

(1999, 33-83) mostra como os primeiros cristãos introduzem como no-


vidade, em relação às tradições romanas e germânicas, a inumação dos
defuntos dentro dos limites das cidades, localizando os cemitérios em
lugares próximos da residência dos vivos. Esta vizinhança com os mortos
intensificou-se durante a Idade Média, a chamada inumação ad sanctos
(isto é, junto à tumba de algum santo) e muitas zonas adjacentes a basí-
licas e igrejas erguidas em seu nome acabaram convertidas em espaços
cemiteriais. Os cristãos, diferentes dos judeus, optaram pela proximidade
espacial com os mortos, como forma de assegurar a sua futura reencar-
nação.2 Ao invés, os antigos cristãos mantiveram a tradição mosaica de
veneração aos santos, o que favoreceu com o tempo as chamadas «pre-
dileções funerárias», o processo de eleição do lugar de enterro, pois en-
tendia-se que existiam localizações de maior prestígio do que outras (por
exemplo, os lugares circundantes aos muros exteriores das igrejas e, es-
pecialmente, junto à sua entrada). Embora, a legislação canónica e civil
apenas permitisse poucas exceções para se poder ser inumado no interior
de uma igreja ou nos claustros dos conventos (Bango 1992, 93-132), a
predileção por querer ser enterrado junto a estes fez com que, a partir do
século IX, se tenha estabelecido a necessidade de definir o perímetro de
doze passos em redor da igreja que deveria ser reservado como cemitério
paroquial (García de la Borbolla 2007, 213-239). Ao colocar os defuntos
num espaço cemiterial junto ao lugar de culto dos vivos, constituía-se
uma comunidade espiritual de todos os fiéis. O cemitério, agora insepa-
rável da igreja, assumia também a sua condição de espaço de sagrado e
de devoção (Lauwers 2005, 11).
Neste espaço cemiterial não se contemplava a inumação dos defuntos
de outras tradições religiosas; para além disso, a legislação canónica preo-
cupou-se em determinar quem não merecia receber a sepultura eclesiás-
tica.3 Os defuntos judeus enterravam-se de forma discreta fora dos limites
das cidades,4 o destino dos defuntos de outras tradições, mas também o

2
«O principal motivo do enterro ad sanctos era assegurar a proteção do mártir, não ape-
nas do corpo mortal do defunto, mas de todo o seu ser, para o dia do despertar e do
juízo» (Ariès 1999, 36).
3
Atualmente, o Código do Direito Canónico de 1983 (cânone 1184) indica «aqueles
a que se devem conceder ou negar as exéquias eclesiásticas». Serão negadas a «aos noto-
riamente apóstatas, hereges ou cismáticos; aos que peçam a cremação do seu cadáver por
razões contrárias à fé cristã; aos demais pecadores manifestos, a quem não possa conce-
der-se as exéquias eclesiásticas com escândalo público dos fiéis».
4
O desejo e o feito de se enterrar em terra «binesa» ou virgem, onde nunca tivesse sido
enterrado ninguém, e fora dos cemitérios e igrejas, surgem muito rapidamente como
sinal de judaizar» (Jiménez Lozano 2008, 268).

107
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Movimentos, Espíritos e Rituais

dos apóstatas ou dos executados, seria o limite externo da cidade.


O termo «muladar» foi rapidamente associado com aquele lugar na mu-
ralha exterior para onde uma população lança lixo e resíduos, assim como
inumar aqueles a quem se havia negado a sepultura eclesiástica. 5 A Igreja
Católica, que administrará durante séculos os cemitérios em Espanha,
tratará de impedir de forma ativa a inumação neles de hereges ou de con-
trários à sua doutrina, como forma de evitar o que consideraria a «polui-
ção» indesejável do espaço cemiterial.
Em finais do século XVIII, o rei Carlos III ordena a construção de ce-
mitérios fora das cidades alegando razões higiénicas e sanitárias. O de-
creto real de 1787 indicava que os cemitérios deveriam ser localizados
«em sítios ventilados e próximos das paróquias, e distantes das casas dos
vizinhos». Apesar disso, tal prática não se generalizou até à segunda me-
tade do século XIX, e inclusivamente até depois da Guerra Civil Espa-
nhola do século XX (Quirós Linares 1990; Santonja 1999).6 Do ponto de
vista urbanístico, recuperou-se toda uma série de espaços interiores, não
sem a resistência dos habitantes das cidades que continuavam a preferir
ser enterrados junto das igrejas. Do ponto de vista jurisdicional, os mu-
nicípios deveriam assumir a responsabilidade pelos serviços funerários
substituindo as paróquias, o que provocou muitos desencontros.
De certo modo, podia interpretar-se a expulsão dos cemitérios para
fora da área urbana das cidades como um primeiro passo em direção à
sua secularização. Os cemitérios continuaram a ser espaços consagrados
pela Igreja Católica, mas ao se converterem as atenções funerárias em
serviços públicos, colocava-se a questão de como proceder perante a
morte de não-católicos. Foram as pressões das missões diplomáticas, es-
pecialmente da britânica, que permitiram ativar espaços onde estes pu-
dessem receber uma sepultura digna. O rei Fernando VII ditou uma
Ordem real em 1831 onde se autorizava a criação de cemitérios segrega-
dos que «deveriam observar os impedimentos formais, a saber: fechados
com um muro, sem igreja, capela ou outro sinal de templo nem culto
público ou privado, ficando de acordo com as autoridades locais» (citado
por Jiménez Lozano 1978, 99). A acumulação de diferentes decretos e
regulamentos na segunda metade do século XIX demonstra que, exceto

5
A etimologia contemporânea deste termo, reconhecida no Dicionário da Real Aca-
demia Espanhola, é muito ilustrativa: «o que suja ou infeta material ou moralmente».
6
Os cemitérios municipais só têm início em finais do século XVIII. O mais antigo de
que temos notícia é o construído em Cartagena em 1774, destinado aos escravos mou-
ros que trabalhavam nas obras do Arsenal, seguindo-se o cemitério do Real Sitio de San
Ildefonso, de 1785» (Fernández de Velasco 1935, 134).

108
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Os cemitérios e a diversidade

em casos muito concretos, esta normativa não se converteu numa prática


generalizada. O habitual para resolver estas situações passava por habilitar
«um canto do cemitério municipal ou católico, ou se enterrava o ‘indigno
de sepultura eclesiástica’ junto ao muro do cemitério, tanto na parte in-
terna como na exterior [...] mas na prática [os cemitérios civis] conver-
teram-se em depósitos de lixo ou terrenos baldios abandonados e de as-
peto tosco e desolado devido ao seu reduzido tamanho e ao seu imenso
abandono» (Jiménez Lozano, ibid., 102-103).7
O decreto de secularização dos cemitérios, assinado a 30 de janeiro de
1932, e a sua posterior abolição a 10 de dezembro de 1938, é um exemplo
flagrante do vaivém ideológico pendular tão característico da sociedade
espanhola. A supressão dos muros que delimitavam o cemitério católico
do civil, e o seu posterior restabelecimento, seriam a representação ico-
nográfica desse curto período em que os cemitérios passaram a ser ad-
ministrados pelos municípios. Nas discussões políticas que se sucederam
à aplicação do decreto de 1932, continuavam a levantar-se questões ainda
não resolvidas sobre quem merecia uma morte digna. Citaremos três
exemplos. Primeiro: na exposição de motivos do projeto de lei (dezem-
bro de 1931) justificava-se a unificação dos enterros civis e religiosos, de
acordo com alguns argumentos um pouco paradoxais: «ser dissidente era
motivo de sanção na hora da morte, como tal tem vindo a considerar-se
a privação de enterro no sagrado... sagrados serão sempre os cemitérios,
independentemente das cerimónias religiosas que neles tenham lugar,
porque o carácter sagrado advém da terra em que se sepultam os huma-
nos devido ao halo de mistério religioso em que está envolta a morte, e
pelo respeito e veneração que desperta na alma o sentimento de separa-
ção eterna».8

7
A tese que defende este autor é que os cemitérios civis, devido ao fracasso da secula-
rização política em Espanha, se converteram num espaço onde colocar os dissidentes da
ortodoxia-espanholidade, que haviam desafiado toda uma sociedade, a sua tradição e,
inclusivamente, «o afeto dos seus». Daí que aqueles que foram inumados nele arrastavam
consigo o estigma de serem diferentes na vida e na morte: «na mente popular, ser enter-
rado ‘como um cão’ assemelha-se aos mesmos provérbios populares a ser ‘enterrado
como um judeu’, ‘como um mouro’, ‘como um herege’, e todas estas expressões eram
usadas na linguagem popular para assinalar a mesma realidade de um enterro civil, sem
a presença da liturgia católica. E apesar de não ter fé, na medida em que rompeu ou feriu
as normas sociais da tribo; há uma decastificação, uma rutura violenta com os valores
estabelecidos, até mesmo estéticos, o que torna emocionalmente intolerável essa ausência
de liturgia fúnebre» (Jiménez Lozano, ibid., 222).
8
Citado por Fernández de Velasco (1935, 285-286), que encontrava graves contradições
entre o ato de apelar a um significado sagrado, para justificar a supressão das simbologias
religiosas nos cemitérios municipais.

109
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Movimentos, Espíritos e Rituais

Segundo: no contexto da reação da hierarquia católica contra o de-


creto de secularização, o cardeal de Tarragona, Francesc Vidal i Barraquer,
redigiu um documento em que colocava em questão a necessidade de
criar cemitérios particulares: «uma vez que os católicos constituem a
imensa maioria ou a quase totalidade do país, esta separação é imprati-
cável, porque os casos excecionais em que a sepultura eclesiástica deve
ser rejeitada ou negada aos defuntos não são frequentes o bastante para
justificar a existência de outros cemitérios» (Vidal i Barraquer 1932, 26).
O prelado sugeria manter-se o que havia sido até então prática habitual,
e referendada pelo mesmo direito canónico católico: «a prática comum
até agora entre nós havia sido reservar um lugar sem abençoar a porção
do cemitério católico ou adjacente ao cemitério, com uma separação do
resto do cemitério e com uma porta independente para o exterior. Mas
convém advertir que a lei canónica não exige tanto: aquilo que é subs-
tancial e necessário é que o espaço seja distinto, que se distinga bem do
cemitério católico, e que não seja benzida, que não seja espaço sagrado.
Não é necessário que a porta deste lugar seja independente e dê para o
exterior do cemitério comum. É suficiente que esteja separado por um
muro pouco elevado, por uma cerca metálica, por uma cerca de madeira
ou de vegetação, por uma pequena vala, ou por qualquer outra maneira
de distingui-lo bem» (ibid., 27).
E por último: o novo levantamento dos muros que deveriam separar
os defuntos entre si não impediu que durante a guerra civil se tenham es-
tendido os limites da inumação para fora dos cemitérios a valas comuns
para aqueles que foram executados pelos partidários de ambos os lados
entre 1936 e 1939, assim como em anos posteriores. A atual exumação
de tumbas de desaparecidos desse período continua a mostrar, décadas
mais tarde, os significados complexos que ocorrem na hora de representar
uma morte digna (Fernández de la Mata 2011; Ferrándiz 2011 e 2013). 9
O regime franquista devolveu à Igreja parte da gestão e manutenção
dos cemitérios municipais enquanto espaços sagrados, mas não eliminou
as secções que neles tinham sido destinadas às inumações civis. Nelas
acabaram por se agrupar os defuntos de outras tradições religiosas que,

9
Muitos municípios espanhóis quiseram fazer homenagens nos seus cemitérios locais
àqueles que morreram na Guerra Civil, instalando placas ou erguendo motivos comemo-
rativos. Alguns compensaram desta maneira a existência de monólitos ou mausoléus que
haviam sido dedicados àqueles que lutaram do lado dos «vencedores». Outros optaram
por um exercício reparador de agrupamento de todos aqueles que morreram durante a
guerra, sem considerar o grupo a que pertenceram. Seja como for, é também necessária
uma análise espacial para ver que lugar ocupam esses espaços da memória nos cemitérios.

110
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Os cemitérios e a diversidade

de forma discreta, seriam enterrados em recintos rodeados das simbolo-


gias católicas imperantes. A discrição – mas não o anonimato – fixava o
critério que mantinha as secções «distintas», dentro da homogeneidade
simbólica católica. 10
Depois de quatro décadas de vigência, o ordenamento jurídico dos
enterros em cemitérios municipais foi revogado pela Lei 48/1978 de
3 de novembro que, mais de acordo com o ambiente de abertura demo-
crática, instituiu a não-discriminação por razões religiosas em relação aos
rituais funerários, a possibilidade de estabelecer capelas ou lugares de
culto, e exigiu aos municípios o restabelecimento da comunicação dos
recintos civis com o resto do cemitério. A Lei 7/1980 de 5 de julho, de
liberdade religiosa, reconheceu o direito a «receber uma sepultura digna,
sem discriminação por motivos religiosos» (artigo 2b). Igualmente, há
que ter presente o disposto nos Acordos de Cooperação com o Estado
de 1992, com força de lei, com evangélicos, judeus e muçulmanos, espe-
cialmente com estes dois últimos, pois no seu articulado é feita referência
explícita a reserva de parcelas nos cemitérios municipais, assim como o
direito de possuir cemitérios próprios.11
Todo este quadro jurídico é o que inspira, hoje em dia, o desenvolvi-
mento de propostas para estabelecer a pluralidade religiosa no interior
dos cemitérios espanhóis (ver Moreras e Tarrés 2013). Como veremos a
seguir, os critérios de distinção entre sepulturas tem tido como pretensão
compatibilizar argumentos doutrinais com pressupostos de um reconhe-
cimento positivo da diversidade.

Argumentando a distinção
A salvaguarda do princípio de não-discriminação por motivos religio-
sos ou ideológicos na hora de receber atenções funerárias, na prática, não
tem sido compatível com a determinação de espaços de inumação dife-
renciada. A lei não apenas outorga às comunidades religiosas a possibi-
lidade de disporem de cemitérios próprios, como também lhes permite

10
Noutro trabalho analisámos a configuração de um património funerário das minorias
religiosas em Espanha, mostrando como a discrição de simbologias distintas das católicas
não impedia a sua presença dentro dos cemitérios públicos (Tarrés e Moreras 2013a).
11
Nas palavras de Mariano Blázquez, secretário da Federação de Entidades Religiosas
Evangélicas (FEREDE), «Se durante anos quisemos que se tirassem os muros, não vamos
agora reivindicar que se voltem a colocar os muros. Por isso não há nada relativo a cemi-
térios no Acordo de Cooperação de 1992. As parcelas evangélicas que possam existir são
iniciativa de igrejas locais, mas não é essa a nossa posição oficial como FEREDE» (en-
trevista realizada a 22 de outubro de 2011).

111
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Movimentos, Espíritos e Rituais

deter como propriedade (ou arrendamento) sepulturas, panteões e tum-


bas nas paredes, assim como dispor de parcelas reservadas em cemitérios
municipais. Assim, as diferentes comunidades têm procurado, de forma
diferente, espaços e lugares onde levar a cabo a inumação dos seus mem-
bros. A reserva discricional por parte dos municípios não tem sido a
única alternativa; muitas congregações religiosas dispõem de sepulturas
ou tumbas em parede onde são inumados os seus membros; outras ad-
quiriram ou arrendaram o uso de parcelas diferenciadas onde depositam
os seus defuntos; há famílias que há anos adquiriram panteões onde
podem enterrar os seus parentes de acordo com os seus costumes fune-
rários; também se tornaram famosas secções que pertenciam aos antigos
cemitérios civis, e onde foram colocados os defuntos evangélicos e he-
breus. Quer dizer, o critério de reserva de parcelas diferenciadas situa-se
num contexto prévio em que se desenvolveram diversas maneiras de ga-
rantir o direito a receber uma sepultura digna.12
Talvez um dos exemplos mais interessantes de promoção de salva-
guarda das condições de uma morte digna a não-católicos por parte das
instituições públicas, na Espanha contemporânea, tenha sido a abertura
de espaços para inumar os soldados marroquinos que lutaram nas fileiras
do exército insurgente durante a Guerra Civil. Pouco a pouco vão-se co-
nhecendo mais detalhes desta iniciativa, que favoreceu a criação de nu-
merosos espaços para que estes soldados pudessem ser enterrados se-
gundo o ritual islâmico (especialmente junto dos hospitais militares que
foram criados), sendo alguns deles reabertos na atualidade para servir a
população muçulmana espanhola. Trata-se de um dos paradoxos que se
sucederam ao conflito bélico: o feito de render uma última homenagem
de agradecimento a alguns soldados que deram a vida pelo triunfo de
uma revolta armada, que se autodefinia como uma «cruzada santa» que
lutava contra «o perigo dos homens sem fé», mas que como eram mu-
çulmanos não podiam ser enterrados no cemitério católico. Atendendo
à sua condição islâmica, foram colocados no seu exterior, em sítios se-
gregados, mas onde foram autorizados a realizar os seus ritos fúnebres.
As diferentes recomendações a favor da reserva como prática de gestão
pública mais adequada 13 apresentam-na como uma forma de integrar e

12
Se bem que num plano diferente do público, alguns cemitérios privados em Espanha,
têm oferecido, dentro dos seus serviços, a possibilidade de se poder ser inumado de
acordo com as tradições funerárias dos defuntos.
13
Recolhemos, em primeiro lugar, a recomendação elaborada pelo Governo da Cata-
lunha («Recomendaciones para la gestión de la diversidad religiosa en el ámbito de los
cementerios», 2009): «recomenda-se que estas parcelas sejam criadas no interior dos ce-

112
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Os cemitérios e a diversidade

normalizar a diversidade religiosa nos cemitérios. Implicitamente, todas


elas partem da aceitação de alguns critérios doutrinais religiosos, segundo
os quais é obrigatório estabelecer uma separação entre defuntos. Cita-
ram-se os exemplos das tradições judaica e muçulmana, partindo do re-
quisito de que as suas tumbas não podem intercalar-se com outros de-
funtos. A não-mistura a que se referem estas doutrinas é dada como certa,
sem considerar que, primeiro, este critério se aplica no quadro de socie-
dades em que tais tradições são maioritárias (e portanto, a não-mistura
serve para explicar a localização segregada das outras minorias religiosas,
reconhecidas e respeitadas de acordo com um estatuto concreto, mas si-
tuadas à parte) e, segundo, que se produzem adequações à doutrina para
que esta possa ser aplicada em diferentes contextos, apelando a critérios
de necessidade.14
As exigências que formulam as representações das minorias religiosas
para dispor de um espaço de inumação reservado representam um exer-
cício plausível de busca de reconhecimento da sua própria especificidade,
e que é juridicamente respaldado. Mas estas experiências administrativas
que derivam da gestão destas tumbas supõe que os direitos individuais
para se ser enterrado de acordo com as próprias convicções devam pro-
cessar-se de forma coletiva, através das interlocuções destas minorias. Se
um cidadão, a nível individual, deseja serviços funerários de acordo com
as suas convicções – não necessariamente coincidentes com as da maio-
ria –, o mais habitual é que a administração pública correspondente o
encaminhe para a entidade religiosa com a qual estabeleceu um convénio
prévio para a gestão da parcela reservada ou do serviço funerário especí-
fico. Tudo isto, que em termos de direito poderia ser definido como uma
sub-rogação, formula mais do que um ponto de interrogação perante o
facto de que pode haver situações arbitrárias que administrem a discrição

mitérios municipais existentes ou que se avalie a possibilidade de criar parcelas de âmbito


supralocal agrupadas, sob a forma de consórcio, no caso das comarcas ou zonas onde
haja uma procura crescente». E em segundo, o argumento que expõe o Manual para la
Gestión Municipal de la Diversidad Religiosa, elaborado em 2011 por iniciativa da Fundación
Pluralismo y Convivencia: «A reserva de parcelas para enterros judeus e muçulmanos
dentro dos cemitérios municipais e a gestão municipal destes espaços é a resposta que
em maior medida permite compatibilizar o exercício do direito individual de liberdade
religiosa e o princípio de igualdade e não-segregação.»
14
A doutrina islâmica proíbe enterrar um muçulmano entre sepulturas de defuntos de
outras religiões. É por isso que os juristas islâmicos recomendam aos muçulmanos que
vivem em países não-muçulmanos, que façam o possível para dispor de um espaço pró-
prio onde possam enterrar os seus defuntos. Mas apelando ao princípio da necessidade
(darura), que implica acima de tudo a obrigação de enterrar os defuntos, alguns juristas
permitem contemplar a opção de ser enterrado num cemitério não.muçulmano.

113
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Movimentos, Espíritos e Rituais

no acesso a este recinto dentro de um equipamento público. Por exem-


plo: é possível, a fim de preservar a não-mistura entre sepulturas com de-
funtos de diferentes tradições, estabelecer uma série de critérios que pos-
sam ser exigíveis para poder nele ser inumado?; se assim for, que
autoridade e com que legitimidade se pode negar a inumação neste es-
paço a um membro de tal comunidade religiosa?; ter vivido uma vida
afastado dos princípios ditados pela moralidade religiosa poderia ser mo-
tivo para não aceitar a inumação?; que fazer em caso de suicídio, ou
morte por overdose de estupefacientes?
O paradoxo para que apontam estas interrogações tem a ver com o
facto de que, aos cidadãos a quem é atribuída vinculação a uma deter-
minada comunidade religiosa, parece ser dado como adquirido que os
rituais e atenções funerárias que vão receber serão religiosos. Num mo-
mento em que aumenta o número de funerais laicos, não parece con-
templar-se a possibilidade de que esta opção também esteja ao alcance
dos membros destas comunidades religiosas minoritárias.

As experiências de ordenação
A gestão das tarefas fúnebres tem variado ao longo do tempo e dos
distintos contextos socio-históricos. Durante séculos foi a Igreja Católica
que se ocupou da gestão da morte em todos os seus aspetos, quer fosse
por meio dos sacerdotes ou através das irmandades, confrarias ou ordens
religiosas criadas para o efeito; por eles o não-católico ficava fora desta
ação. Desde o século XIX, depois de várias vicissitudes políticas, a gestão
passa a ser municipal e com ela começam a aparecer espaços funerários
e cemitérios específicos para esse «outro». Na atualidade são as grandes
empresas funerárias que progressivamente estão a encarregar-se dos ser-
viços relacionados com a morte (tanatórios, funerárias, gestão partilhada
dos cemitérios dos municípios). Empresas que não apenas estão a recrear
novos rituais funerários (por exemplo, os rituais civis) e a resignificar as
tradições da população maioritária, como também se ocupam e atuam
nos rituais funerários das minorias religiosas. Em seguida mostraremos
três exemplos de como os cemitérios ordenaram a localização dos «ou-
tros» defuntos. Neles se observará que a dimensão patrimonial surge cla-
ramente enunciada.

O cemitério inglês de Málaga


Durante séculos a morte de um não-católico em Espanha colocava um
problema para a família e parentes do defunto, uma vez que não havia

114
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Os cemitérios e a diversidade

provisão para o seu enterro ao não poder fazê-lo no «sagrado» (igrejas,


conventos e/ou cemitérios paroquiais). Os estrangeiros não-católicos,
assim como os espanhóis protestantes, os não crentes e os suicidas, eram
abandonados no campo, lançados ao mar ou aos rios, etc. Na cidade de
Málaga não podiam ser inumados durante o dia, e era necessários levá-
-los de noite à praia onde eram enterrados de pé na areia de frente para o
mar, deixando-os à mercê das ondas e dos cães (Grice-Hutchinson 2006,
10). Esta situação prolonga-se até ao século XIX quando diversas circuns-
tâncias contribuem para dar resposta às necessidades desta população: por
um lado está o desenvolvimento das teorias higienistas, no contexto socio-
histórico liberal, que proíbe os enterros no interior de igrejas e conventos,
estabelecendo cemitérios municipais fora das cidades, onde se disponibi-
lizam parcelas ou recintos civis, para os «dissidentes da religião», mais co-
nhecidos como «corralito» ou cemitério civil.15 E, por outro lado, estão
as exigências dos diplomatas britânicos para que se cumprissem os acordos
existentes já desde o século XIV, segundo as quais poderiam dispor de par-
celas onde inumar dignamente os ingleses que faleciam em Espanha, e
que eram cada vez mais numerosos devidos aos estreitos contactos co-
merciais estabelecidos entre os dois países. Será preciso esperar pelo século
XIX para que esta reivindicação comece a ter efeito.16
O cemitério inglês de Málaga surge perante a preocupação do cônsul
britânico da cidade, William Mark, sobre a situação dos súbitos britânicos
perante a sua morte. Em 1829 as autoridades malaguenhas concedem um
terreno despovoado fora da cidade, e em 1831 iniciam-se as inumações,
convertendo-se desta forma o primeiro cemitério inglês da Espanha con-
tinental (anteriormente havia sido criado um cemitério protestante na lo-
calidade canária de Puerto Cruz). O primeiro enterro foi o de Robert Boyd,
um jovem inglês fuzilado junto a Torrijos em Málaga por participar na in-
surreição fracassada dos liberais em 1831. O cemitério original situa-se no
atual recinto interior, e está rodeado de muros brancos. Posteriormente
este foi ampliado com o jardim-cemitério, onde se situava a capela do ce-
mitério. Esta capela foi reconstruída em 1891 tendo-se convertido na atual

15
É importante assinalar que estas parcelas eram consideradas civis ou seculares, e que
se destinavam aos crentes não-católicos nem adscritos à Igreja, aos não-crentes, e àqueles
que por decisão pessoal (mística, filosófica ou política) decidissem ser inumados neles,
aos suicidas e aos estrangeiros em geral. Daí que encontremos denominações singulares,
como esta, de cemitério neutro, internacional, parcela livre, etc.
16
Há algumas exceções que têm origem em conflitos armados. Assim, na cidade de
Tarragona foi criado o chamado «Fossar de Jans», na sequência do estabelecimento das
tropas britânicas na cidade a partir de 1709. Ver Adserà (2002).

115
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Movimentos, Espíritos e Rituais

Figura 5.1 – Igreja anglicana de Saint George, antiga capela funerária


© 2008 S. Tarrés

Figura 5.2 – Interior do cemitério inglês de Málaga


© 2008 S. Tarrés

116
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Os cemitérios e a diversidade

igreja anglicana de Saint George. O cemitério inglês tem uma extensão de


um hectare e meio, situado numa ladeira, acede-se-lhe por um portão de
ferro ladeado por dois leões que coroam os seus pilares, sendo as diferentes
parcelas situadas em terraços de pequenos caminhos articulados, confor-
mando um espaço dividido em sete recintos cada um com as suas próprias
características, oferecendo um interessante conjunto de monumentos se-
pulcrais e tumbas de características clássicas, neogóticas, renascentistas,
com influências orientais e modernistas (Marchant Rivera 2005).
Ao longo do tempo o cemitério incorporou as inovações e as novas
conceções da comunidade, permitindo a inumação de pessoas não-in-
glesas (em 1900 inumam-se os restos dos falecidos de um barco alemão
que naufragou nas costas malaguenhas), assim como de não-anglicanos,
como judeus, ingleses católicos, etc. No ano de 2004 o cemitério foi en-
cerrado como espaço de inumações, ainda que, graças à construção de
uma série de columbários, seja permitido o armazenamento dos restos
incinerados.
Os consulados britânicos responsabilizaram-se pelos seus cemitérios
fora da Grã-Bretanha até aos princípios do século XX, quando a manu-
tenção, cuidado e conservação dos mesmos passa a ser responsabilidade
das comunidades e colónias inglesas. Daí o sentido de pertença que os
britânicos têm em relação a estes espaços. Neste caso e «durante 175 anos
o Cemitério Inglês de Málaga foi administrado pelos sucessivos cônsules
britânicos, inicialmente graças a uma ajuda limitada do governo britâ-
nico. Esta foi retirada em 1904 e desde então o Cemitério sobreviveu ex-
clusivamente graças a enterros, a donativos privados, e a heranças»
(www.cementerioinglesmalaga.org). Depois do falecimento do último
jardineiro (os seus pais estão enterrados com ele, e tem uma placa de re-
conhecimento pelo seu trabalho), surgem problemas de manutenção de-
vido a diferenças de opinião entre os distintos atores sociais (comunidade
inglesa, consulado britânico, corporação municipal) sobre a responsabi-
lidade financeira da sua manutenção. No ano 2000 o cônsul britânico
da cidade propõe a criação de uma Fundação sem fins lucrativos que
tenha como objetivo preservar, manter e administrar o cemitério como
parte do legado histórico de Málaga. Trata-se da Fundación Cementerio
Inglés de Málaga.17 E em 2006 a propriedade do terreno passa para esta
Fundação, que a partir desse momento se encarregará tanto dos aspetos
relacionados com a sua sustentação como da valorização deste espaço.

17
«Depois de um infelizmente grande atraso a Fundación Cementerio Inglés de Málaga
nasceu a 13 de julho de 2010» (www.fundacioncementerioingles.org).

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Movimentos, Espíritos e Rituais

O cemitério inglês de Málaga constituiu um espaço vivo, habitado e


transitado habitualmente por membros da própria comunidade, assim
como por outros visitantes da cidade e turistas. A zona que rodeia o ce-
mitério inicial foi preparada como jardim botânico: «Com o consenti-
mento das autoridades locais foi destinada ao jardim botânico para que
os malaguenhos tivessem um retiro agradável quando à tarde saíssem para
tomar ar» (Grice-Hutchinson 2006, 31), de modo que desde o primeiro
momento se pensou o espaço como sendo parte do contexto da cidade:
«um refúgio de paz no meio da cidade» é um dos slogans. Todos os do-
mingos há culto anglicano na igreja de Saint George. Ainda assim neste
espaço celebram-se festas comemorativas da própria comunidade, como
o «Remembrance Day» pelos mortos nas guerras (depois do culto na igreja
há uma homenagem sobre a tumba de quatro vítimas inglesas da
II Guerra Mundial, cujos corpos foram encontrados na água, e finalmente
um «piquenique» no jardim situado em frente à igreja, e numa edificação
situada na entrada do recinto (que inicialmente estava destinada a resi-
dência do porteiro), a comunidade local oferece produtos artesanais com
o objetivo de contribuir para o financiamento do cemitério.
Desde a sua criação a Fundación Cementerio Inglés de Málaga tem
realizado a reparação geral do mesmo. Entre as ações mais significativas
cabe assinalar a inclusão desta necrópole na Rota Europeia de Cemitérios,
e a celebração de diferentes eventos no seu interior para o dar a conhecer
à cidadania malaguenha (itinerários culturais guiados, recitais e concertos
nos jardins, etc.). Também se conseguiu dar início ao processo de registo
no Catálogo General del Patrimonio Histórico Andaluz, com a tipologia
de monumento (Resolução de 20 de junho de 2011).
As comunidades anglicanas, protestantes e evangélicas estabelecidas
em Espanha (tanto as de origem espanhola como as estrangeiras) estão
conscientes do importante património funerário existente (que junta-
mente com o documental é o mais significativo), assim como do risco
que corre perante a sua escassa valorização por parte das administrações
e da maior parte da sociedade. Nos últimos anos foram numerosos os
cemitérios ingleses que desapareceram (como por exemplo o de Ares em
Pontevedra ou o de Cartagena em Múrcia), mas ao mesmo tempo co-
meça a observar-se um importante movimento para a sua preservação e
patrimonialização. Neste sentido a experiência e o trabalho realizado
para o melhoramento e a ativação do cemitério inglês de Málaga consti-
tuiu um exemplo significativo, que começa a ser seguido pelas comuni-
dades protestantes de outras cidades espanholas.

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Os cemitérios e a diversidade

O cemitério muçulmano de Barcia (Astúrias)


Os primeiros cemitérios muçulmanos criados em Espanha na época
contemporânea (à exceção do cemitério de Sidi Embarek em Ceuta) são
os que se ergueram durante a Guerra Civil Espanhola para inumação dos
soldados marroquinos, integrados nas Forças Regulares Indígenas (Fuer-
zas Regulares Indígenas) que combateram ao lado do bando de insur-
gentes durante a contenda.18 São os denominados «cemitérios mouros».
Atualmente não se dispõe do número exato de necrópoles muçulmanas
construídas, nem da sua localização, uma vez que muitas já desaparece-
ram. A existência destes espaços respondeu a uma série de fatores como
a política social e religiosa desenvolvida durante o período do Proteto-
rado Espanhol de Marrocos (1912-1956) para a denominada população
«indígena», a rede logística destinada a permitir que os contingentes co-
loniais pudessem desenvolver-se de maneira adequada às suas necessida-
des, tanto espirituais como físicas, a habilitação dos hospitais muçulma-
nos (nas proximidades de alguns deles, por exemplo em Burgos,
fizeram-se cemitérios para muçulmanos hoje desaparecidos), o agradeci-
mento pelos serviços prestados, ou o respeito pelas prescrições religioso-
funerárias islâmicas (entre elas a lavagem ritual do corpo e o enterro di-
retamente no solo, sem caixão) 19 destes soldados. Estes cemitérios
construíram-se como recintos específicos e separados dos da população
espanhola. Uma parte substancial das necrópoles muçulmanas atual-
mente em uso têm a sua origem nestes equipamentos, e os esforços para
voltar a colocá-las em funcionamento foram de novo provenientes, maio-
ritariamente, das comunidades muçulmanas formadas por, ou iniciativa
de, espanhóis convertidos ao Islão. Assim, dos sete cemitérios mouros
que se conservaram, cinco recuperaram a sua função funerária e, à exce-
ção de um (o de Grinon), estão vinculados a cemitérios municipais: Se-
vilha, Granada, Saragoça e Leão (Tarrés e Moreras 2013b).
Barcia encontra-se no limite de Luarca, onde se estabeleceu o Governo
Militar durante o avanço nacional a partir da Galiza até às Astúrias, tra-
tando-se de um território com boas comunicações com uma ampla zona
comunal suscetível de ser expropriada. O cemitério muçulmano de Bar-
cia surgiu devido à previsão de uma elevada mortandade de Regulares
na Campanha de Escamplero (abril de 1937), embora aparentemente o

18
A presença de soldados indígenas do corpo de Regulares na Península é anterior à
Guerra Civil. Assim, por exemplo, em 1934 formaram «uma parte das tropas enviadas
pela Segunda República para sufocar o levantamento de trabalhadores» nas Astúrias (Ál-
varez et al. 2006, 132).
19
Sobre os rituais funerários muçulmanos, ver Tarrés (2006).

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Movimentos, Espíritos e Rituais

número de pessoas nele inumadas seja bastante menor. Da escassa do-


cumentação existente (baseada fundamentalmente em fontes orais), con-
sidera-se que o lugar de estabelecimento foi decidido por especialistas
em jurisprudência islâmica, e a construção foi feita pela população civil
da zona.
O recinto funerário tem uma extensão de 4000 m2 aproximadamente,
e em forma quadrangular, sendo composto por dois espaços diferencia-
dos: a zona de enterros propriamente dita, e um recinto com muro e
um edifício que não está finalizado. A área de enterro tem uma planta
retangular e o seu perímetro é coberto por um muro de pedra e telha
árabe a duas águas. Cada canto apresenta uma guarita cega de planta
quadrada, com acesso mas sem brechas. O estado de conservação do
muro é aceitável, porém as guaritas estão deterioradas. O acesso ao ce-
mitério dá-se por meio de uma porta em arco em forma de ferradura,
feito em tijolos maciços, encimado por um telhado de empena de telhas
curvas, e em tempos teve uma porta de madeira. Este conjunto encon-
tra-se em muito bom estado de conservação, convertendo-se na imagem
que identifica a necrópole. Na atualidade não se distingue nenhum dos
enterros, e as placas de ardósia que assinalam as tumbas desapareceram.
A identidade dos falecidos também é desconhecida, se bem que uma
vizinha da localidade Ángeles González, depois de anos de investigação
privada, especificou que os regulares ali enterrados procediam do Tabor
de Melilla.
A segunda zona, também rodeada com um muro de alvenaria em
forma de «L» e anexa ao espaço de enterros, tem como elemento funda-
mental uma construção inacabada (ou demolida), que segundo algumas
informações teria a função de mesquita, enquanto outros afirmam que
era o espaço destinado à lavagem e preparação ritual dos corpos. Esta úl-
tima afirmação baseia-se no facto de que no passado havia uma grande
laje central nesta sala, hoje desaparecida.
Até finais da década de 1970, este espaço funerário esteve cuidado e
frequentado, ficando mais tarde ao abandono e invadido por ervas da-
ninhas. Durante mais de um quarto de século o cemitério converteu-se
num lugar marginal e de brincadeiras para as crianças da localidade. Só
em finais da década de 90 do século XX a população local de Barcia, atra-
vés da Asociación de Vecinos de Barcia-Leiján e da Asociación Green,
tomou consciência do estado de abandono do lugar, e começou a
ocupar-se da sua limpeza e conservação. Desde 2001 denunciaram reite-
radamente a situação do cemitério mouro na imprensa, desempenhando
assim um papel de difusão que, em última análise, está a permitir a sua

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Os cemitérios e a diversidade

Figura 5.3 – Entrada do cemitério de Barcia


© 2008 S. Tarrés

Figura 5.4 – Turistas visitando o interior do cemitério mouro de Barcia


© 2008 S. Tarrés

121
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Movimentos, Espíritos e Rituais

conservação e proteção. Em 2005 esta associação quis valorizar este ce-


mitério (pretendiam colocar painéis informativos com a história do ce-
mitério), e conseguiram que a corporação local limpasse e organizasse o
recinto. Posteriormente, em 2009, e para ativar economicamente a loca-
lidade a partir do turismo, o presidente do município manifestou a in-
tenção de repatriar para Marrocos os restos mortais dos muçulmanos aí
enterrados, 20 convertendo o recinto num espaço de atrativo turístico,
para o qual conseguiu o apoio do Ministério da Cultura do principado
e de diversas empresas turísticas. Esta intenção provocou a reação con-
trária dos vizinhos da localidade. «Queriam desenterrar os mouros e levá-
-los para Marrocos, mas não o desejamos, são os nossos mouros, eles
devem ficar aqui, não vamos permitir que os levem, são os nossos mou-
ros e é o nosso cemitério. Todos os vizinhos, quando crianças, ali brin-
cámos, era um dos nossos campos de jogos, é nosso, é do povo» (vizinho
de Barcia, entrevista realizada em 2011). E também houve um protesto
da comunidade muçulmana asturiana cujos responsáveis, entre os quais
se encontram espanhóis convertidos, manifestaram o seu desejo de con-
servar as sepulturas e de organizar e limpar o recinto «para realizar enter-
ros e prestar culto aos seus antepassados» (La Voz de Occidente, junho de
2009).
Neste contexto, a associação de vizinhos empreendeu uma série de
ações com vista a fortalecer a conservação do recinto, entre as quais se
destacam os contactos com o governo de Melilla (donde vieram muitos
dos muçulmanos enterrados em Barcia), para restauração do cemitério e
sua ativação como recurso turístico, que culminaram em 2011 quando a
cidade autónoma manifestou a sua disposição para investir economica-
mente no projeto de restauração e recuperação do cemitério muçulmano,
coincidindo esta decisão com a celebração do centenário da criação dos
Grupos Regulares de Melilla. Mais tarde iniciou-se o processo para a in-
clusão do cemitério mouro de Barcia no Inventário do Património Cul-
tural das Astúrias (Resolução de 10 de Maio de 2012), justificando-se
com o facto de fazer parte da história recente da comunidade.
O cemitério mouro de Barcia está, portanto, a construir-se como pa-
trimónio cultural da população barciana, convertendo-se num dos seus
elementos identitários, aplicando a este espaço uma conceção monu-

20
Este tipo de iniciativas tem sido habitual por parte das corporações locais em muitos
municípios onde há um cemitério mouro que não está em uso e que, às vezes, ocupa
um espaço necessário para a ampliação da necrópole municipal. O Reino de Marrocos,
em general, ignorou estas petições.

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Os cemitérios e a diversidade

mentalista do património. «Nós consideramos mais oportuno que se uti-


lize o cemitério como um elemento de recordação e também do desen-
volvimento da Guerra Civil no Ocidente das Astúrias. A restauração e
conservação deste espaço sagrado traria consigo a proteção e salvaguarda
das pessoas ali enterradas» (Álvarez et al. 2006, 148). Consequentemente
foi despojado do seu sentido religioso (é «mouro» e não «muçulmano»),
ao ponto de se ter descartado a sua reutilização por parte da comunidade
muçulmana asturiana produzindo-se uma apropriação do espaço pelo
«nós» perante a sua reutilização pelos «outros» (os muçulmanos cons-
truídos como estrangeiros).

As sepulturas hebraicas do cemitério de San Andrés de Palomar


(Barcelona)
A existência de um cemitério judaico é uma das necessidades religiosas
mais importantes das comunidades, já que, segundo a norma religiosa,
os judeus deveriam ser enterrados num lugar «comum» a todos eles. Os
cemitérios ou parcelas hebraicas em uso em Espanha são muito escassos.
Barcelona tem na atualidade quatro recintos para enterros segundo o ri-
tual hebraico. Historicamente, o mais antigo situa-se na montanha Mont-
juïc (cuja etimologia faz referência a «Monte Judio»), onde se situava o
cemitério da antiga comunidade judia que vivia na cidade, e data do sé-
culo XI. 21 Na atualidade existe no cemitério de Montjuïc uma série de
tumbas particulares adquiridas desde há décadas por famílias judaicas,
não constituindo propriamente um recinto judeu.
Já nos tempos modernos, a comunidade judaica em Espanha obteve
autorização por parte do rei Alfonso XIII para poder realizar enterros de
acordo com os seus ritos. Os primeiros enterros de defuntos judaicos em
Barcelona estão documentados desde 1931, em concreto no cemitério
de Les Corts, que foi o primeiro cemitério municipal que ofereceu um
espaço diferenciado para os enterros desta comunidade. 22 Mais tarde,
em 1951 a Comunidade Israelita de Barcelona negociou com a Câmara

21
As escavações arqueológicas realizadas em 1945 e 2001 localizaram mais de 700 tum-
bas que pertenciam ao antigo cemitério judaico. Em 2007, e por petição da comunidade
hebraica local, o Departamento de Cultura do Governo da Catalunha declarou este es-
paço como «Bem cultural de interesse nacional», o que supõe a sua proteção perante
qualquer tipo de intervenção urbanística. O Centro de Estudos Zakhor para a proteção
e transmissão do património judaico (www.zakhor.net) desempenhou um papel funda-
mental neste processo.
22
Sobre o processo de reconstrução das estruturas sociais da comunidade judaica em
Barcelona, baseando-se na história oral dos seus membros entre os anos 1914 e 1954,
veja-se o trabalho de Berthelot (2001).

123
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Movimentos, Espíritos e Rituais

Municipal de Barcelona a possibilidade de alojar os seus defuntos numa


área do cemitério de San Andrés de Palomar.23 O cemitério hebraico mais
recente, que é aquele que atualmente serve a comunidade judaica por se
tratar de um recinto mais amplo, encontra-se no cemitério de Collserola
(no município de Cerdanyola del Vallès, que atua como cemitério inter-
municipal, servindo a área metropolitana de Barcelona).
As sepulturas hebraicas do cemitério de San Andrés encontram-se num
espaço de 970 m2 no interior do sexto departamento do cemitério (de-
nominação em uso desde 2001, e que substitui a de recinto livre), tem
uma forma triangular, e está anexada à parede exterior da parte noroeste
do cemitério. O seu desenho e a sua ordenação foram objeto de diferen-
tes projetos entre os anos 1919 e 1951. A função original deste departa-
mento foi a de alojar os defuntos pertencentes a outras religiões não-ca-
tólicas, assim como a dos defuntos recém-nascidos. O primeiro projeto
de 1919, obra do arquiteto principal dos cemitérios de Barcelona, Agustí
Domingo Verdaguer, projetou uma das principais ampliações da super-
fície deste cemitério, onde se vão destinar 1000 m2 para o recinto livre,24
outros 1000 m2 para um recinto protestante, 25 e 232 m2 numa parcela
central diferenciada para enterrar recém-nascidos. Neste projeto contem-
plava-se o acesso a estas secções do cemitério de forma independente a
partir de uma porta exterior (essas portas foram tapadas em 1973). Só no
projeto final, em 1951, é que foram incorporados blocos de nichos que
substituem tumbas horizontais em dois lados do departamento, man-
tendo apenas uma parte do perímetro, precisamente aquela que se en-
contra contígua à parede exterior do cemitério.
Esta secção aloja um total de 469 nichos e 170 tumbas horizontais.
É significativo notar que estes nichos (onde se misturam defuntos de dis-
tintas confissões) albergam um único defunto, diferente dos católicos

23
As primeiras referências documentais do cemitério de San Andrés de Palomar re-
montam a 1834, quando esta população constituía um município independente em re-
lação a Barcelona. Foi apenas depois da sua anexação territorial em 1897 que este espaço
começou a adquirir a função de cemitério municipal, servindo a população do bairro
anexo de San Andrés, assim como dos restantes bairros de Barcelona (especialmente os
defuntos provenientes de outro antigo município que também foi anexado à cidade, San
Martín de Provençals). Para uma visão histórica do cemitério, evolução arquitetónica e
artística deste cemitério, ver Lacuesta et al. (2009).
24
Este recinto constitui o atual quarto departamento, formado por nichos de sete ní-
veis. Com o tempo converteu-se em mais uma secção do cemitério católico.
25
Na memória descritiva apresentada para o projeto de ampliação do cemitério em
1919, justificava-se o facto de dispor de uma secção para enterros protestantes, «cuja ne-
cessidade é patente por estar ocupada a do cemitério do Este [Poblenou] e próximo a
estar o do Sudoeste [Montjuïc]».

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Os cemitérios e a diversidade

que continuam a seguir o critério de tumbas familiares. Apesar de o es-


paço central deste departamento estar ocupado por tumbas pertencentes
a defuntos enterrados segundo o ritual judaico, administrativamente não
está identificado como recinto judaico, ao contrário do que acontece nos
cemitérios de Les Corts e Collserola, em que o primeiro dispõe de indi-
cadores que assinalam o carácter próprio desse recinto, e o segundo se
localiza numa zona à parte do cemitério geral.
De acordo com a condição original de recinto livre, desde os anos
40 que se edificaram nichos de defuntos judeus. Provavelmente, a exis-
tência destas tumbas, em conjunto com a necessidade de dispor de novos
locais para enterros judeus nos cemitérios de Barcelona, favoreceu a con-
cessão deste departamento à Comunidade Israelita de Barcelona em 1951.
A administração municipal concedeu-lhes a propriedade das tumbas ho-
rizontais que puderam ser localizadas nesta secção do cemitério. As pri-
meiras tumbas situaram-se correlativamente junto ao muro exterior.
O estilo das matzeva (ou lápides em memória do defunto) é geralmente
muito irregular, basicamente em mármore branco (algumas tumbas uti-
lizam mármore negro ou cinza), com inscrições em hebreu e noutros
idiomas, e com o uso de motivos iconográficos próprios do judaísmo,
como a estrela de David ou o candelabro de sete braços. Encontram-se
tumbas individuais, e outras acolhem dois membros de uma mesma fa-
mília. A diversidade de origens geográficas dos defuntos aqui enterrados
é testemunho da heterogeneidade que sempre definiu a comunidade ju-
daica na cidade de Barcelona.
Em relação à organização das tumbas, ainda que a maioria delas man-
tenha os pés dos defuntos orientados para leste, noutra secção parece que
se mantém o critério de aproveitar ao máximo o espaço disponível. No
ângulo em que se situavam as lápides que albergam os restos dos membros
da comunidade falecidos nos primeiros anos da década de 40. Tratava-se
de defuntos cujos restos haviam sido enterrados noutras secções dos ce-
mitérios de Barcelona, e que a Comunidade Israelita de Barcelona trans-
ladou para que pudessem ser enterrados segundo o ritual hebraico.
É muito significativo também o facto de haver uma pequena parcela des-
tinada à «guenizá», isto é, serve exclusivamente para depósito dos rolos
da Tora e outras escrituras sagradas que deixaram de ser utilizados e que,
de acordo com as prescrições religiosas, não podem ser destruídos.
Em 1997 a proposta de construir um tanatório no interior do cemité-
rio, feita pela empresa municipal de Serviços Funerários de Barcelona,
provocou a rejeição local. Um dos principais argumentos dos vizinhos
fundamentava-se na reivindicação do património funerário do cemitério

125
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Movimentos, Espíritos e Rituais

Figura 5.5 – Nichos no sexto Figura 5.6 – Lápides (matzeva)


departamento de defuntos judeus
Foto J. Moreras

Foto J. Moreras

como património próprio, que se estendia a todo o recinto do cemitério,


com as suas características e singularidades, citando explicitamente as
tumbas hebraicas. O movimento de vizinhos estendeu-se até 2002,
quando o projeto foi recusado pela Câmara Municipal.

Conclusões
Os exemplos anteriores permitem-nos apresentar uma reflexão sobre
a forma como construímos a nossa noção de património, mas ao mesmo
tempo como se gera esse processo de apropriação da pluralidade de for-
mas de viver e morrer. Se até ao momento se investigou e trabalhou a
partir da conceção de património cultural como construção simbólica
das identidades nacionais ou regionais, que têm expressão no Estado (e
no resto das Comunidades Autónomas), como implantar nelas o patri-
mónio funerário das minorias religiosas? Neste processo de seleção e ela-
boração sociopolítica de um património em que se apela a um «nós» co-
letivo, o encaixe dos «outros» não é um assunto das políticas de gestão
da multiculturalidade. Para além disso, este processo de repensar o patri-
mónio ocorre num momento em que a sociedade espanhola elabora um
processo de interiorização da sua própria pluralidade. É evidente que este
processo está marcado por um atenção que provoca a vontade de cons-

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Os cemitérios e a diversidade

tituir um modelo hegemónico de memória por parte do Estado, e em


que ainda está muito presente a recordação da Guerra Civil Espanhola.
A recuperação dessa memória nos espaços cemiteriais coincide temporal
e (talvez também) simbolicamente com a vontade expressada pelas mi-
norias religiosas em dispor de um lugar diferenciado neles.
É demasiado cedo para fazer o balanço de um processo que ainda está
em curso. Mas já é possível dizer que no reverso da unanimidade católica
dos nossos cemitérios, se constituíram esses espaços discretos e periféri-
cos, que hoje em dia são reivindicados por parte dos coletivos religiosos
minoritários. Em termos de património, o devido reconhecimento destas
«parcelas entre cruzes» – na expressão de um aposentado espanhol de
origem marroquina –, passaria por recuperar estas expressões de uma al-
teridade funerária que se quis invisibilizar, mas que faz parte das nossas
memórias coletivas.

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06 Movimentos Cap. 6.qxp_Layout 1 11/02/17 15:47 Page 129

José Mapril

Capítulo 6

Pessoa, morte e género entre Lisboa


e Dhaka *
No seu último livro, Marshall Sahlins sugere que a qualidade específica
do parentesco é a mutualidade do ser. Esta qualidade, segundo o autor,
assenta no princípio da pessoa distribuída, dividual, conceito que vai res-
gatar às teorizações de McKim Marriot (1976) e Marilyn Strathern (1988),
sobre a Índia e a Melanésia, respetivamente. Ser parente implica partici-
pação intersubjetiva e, portanto, participar das vidas uns dos outros, seja
através da comensalidade, da partilha de quotidianos e propriedades, de
corresidência, da participação em rituais e cerimónias, entre muitos ou-
tros exemplos. Esta qualidade do parentesco revela-se por vezes de forma
dramática e sublimada na morte de um parente quando nos deparamos
com formas de luto, em diferentes contextos, que implicam práticas pa-
ralelas de morte e a retirada, ainda que temporária, de socialidades ditas
normais dos enlutados. Assim, o parentesco não é apenas corresponsa-
bilidade ou produção de relatedness (Carsten 2000), mas antes vidas par-
tilhadas, distribuídas e vividas em conjunto. Segundo Sahlins, o paren-
tesco implica que vivemos as vidas daqueles que consideramos nossos
parentes e morremos as suas mortes.
Aprofundando a sua proposta e procurando mostrar os limites da mu-
tualidade, Sahlins (2013, 53) argumenta:

Em termos gerais, a mutualidade do ser entre parentes [kinfolk no original]


declina na proporção da distância espacial e/ou genealógica afirmada.

Em sintonia com argumentos apresentados por vários antropólogos


em diferentes períodos da disciplina, Sahlins mostra como a distância

* A pesquisa que deu origem a este capítulo foi realizada no âmbito do projeto
PTDC/CS-ANT/102862/2008, «The invisibility of death among immigrant populations in
Portugal: vulnerabilities and transnational managements», coordenado por Clara Saraiva.

129
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Movimentos, Espíritos e Rituais

genealógica é inversamente proporcional à mutualidade do ser, ou seja,


quanto maior a distância genealógica menor é a participação intersubje-
tiva. Exogamia, trocas matrimoniais, dádiva e contradádivas são alguns
dos temas abordados para mostrar como se fazem parentes e não-paren-
tes e como isso se relaciona com distâncias genealógicas, lógicas de
aliança e ausência de participação.
A proposta de Sahlins inclui também uma referência à distância espa-
cial percecionada e ao seu impacto na mutualidade. Não indo além desta
breve nota, o autor parece sugerir que quanto maior a distância espacial
menor será a participação e como tal menor será a consciência ou a ideia
de pessoa coletiva. Contudo, numa consulta à literatura sobre migrações
e transnacionalismos constatamos que, apesar da distância, o parentesco,
nessa qualidade de participação mútua, parece ter uma enorme relevância
para pensar práticas e discursos em contextos etnográficos muito dife-
rentes. Pensemos, por exemplo, no cuidado transnacional (Baldassar,
Baldock e Wilding 2006) enquanto forma de apoio financeiro, emocio-
nal, moral e prático entre locais geograficamente distantes. Este cuidar
inclui telefonemas, visitas, conselhos, apoio financeiro, redes sociais,
entre muitas outras formas de comunicação que implicam distância. Al-
gumas destas práticas podem ser ocasionais, mas são frequentemente in-
tensas, e incluem não apenas aqueles que migraram, mas também os pa-
rentes não-migrantes. Como Baldassar e Baldock mostraram (2006), estas
formas de apoio ocorrem de forma mais evidente a nível dos grupos de
parentesco e das unidades domésticas e estão frequentemente associadas
a economias da dádiva, lógicas de redistribuição, sentidos hegemónicos
de parentesco, de família e de género, noções de corresponsabilidade
moral e expetativas e esperanças face ao futuro (Werbner 2002; Fog Olwig
2007; Pine 2014). Podemos interpretar este cuidar transnacional através
da noção de mutualidade de Marshall Sahlins, pois parece ser uma forma
de participação intersubjectiva, apesar das distâncias geográficas entre
pessoas que se consideram entre si como uma só, em virtude da partilha,
presente ou passada, de ancestralidade, de residência, da comensalidade
ou do uso de uma terra em comum (e da sua memória). Dito de outra
forma, o cuidar transnacional pode ser visto como uma expressão dessa
mutualidade e, simultaneamente, de como a ideia da coparticipação se
mantém, e por vezes até se reforça, apesar da separação geográfica.
Um dos exemplos mais reveladores dessa coparticipação é visível na
realização de rituais do ciclo de vida em diversos contextos migratórios,
nos quais se articulam ideias de pessoa distribuída, espaços de pertença
e dinâmicas de género (Grillo e Gardner 2002; Fog Olwig 2002; Salih

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Pessoa, morte e género entre Lisboa e Dhaka

2002; Gardner 2002). A morte e o morrer em contextos migratórios trans-


nacionais é certamente um dos exemplos mais reveladores de tais dinâ-
micas. Entre Sylhetis em Londres, por exemplo, a morte de um londoni
deve ser acompanhada pelo repatriamento do corpo para a desh, de forma
a ser visto pelos parentes uma última vez (Gardner 1998 e 2002). Na
Guiné-Bissau, Eric Gable (2006) analisa as cerimónias fúnebres para mos-
trar como estas são uma forma de os migrantes Manjacos se produzirem
como bem-sucedidos e cosmopolitas a nível local. O paradoxo, nas pa-
lavras de Eric Gable, reside no facto de ser o seu cosmopolitismo – visível
em processos de dádiva e de contradádiva – que lhes permite produzi-
rem-se como locais e enraizados. Engseng Ho, por sua vez, no livro The
Graves of Tarim (2009), descreve a relação entre as diásporas Hadrami e o
«regresso» a Hadramwat (no Iémen), considerada por muitos como a
terra ancestral, mesmo após várias gerações no estrangeiro. Neste pro-
cesso, as campas dos antepassados assumem uma importância simbólica
central na construção de um imaginário genealógico que liga vários ter-
ritórios entre si numa cartografia de origens, viagens e regressos. Um ima-
ginário genealógico comparável é-nos apresentado no trabalho de Fran-
çoise Lestage (2008) e como o repatriamento dos corpos de migrantes
mexicanos a residir nos EUA é parte integrante da produção de uma co-
munidade imaginada (Anderson 1983), na qual nacionalismo mexicano,
culto dos antepassados e desterritorialização do Estado-nação se encai-
xam numa narrativa genealógica.
Apesar das especificidades de cada contexto, estes casos parecem re-
meter para imaginários telúricos sobre a morte e o enterro, imaginários
estes que revelam diferentes ideias de regresso e de retorno a um lugar, a
uma terra produzida como uma origem, casa, ou lugar de pertença (sobre
migrações e ideias de retorno, ver Gmelch 1980 e Anwar 1981); a um es-
paço marcado pela coparticipação. Estas ideias passam frequentemente
por uma associação entre lugar e parentesco, no qual os parentes cuidam
da existência dos antepassados, como forma de apaziguamento ou como
contributo para a sua nova condição (Bloch 1971; Sahlins 2013, inter
alia). Assim, o envio dos corpos dos migrantes aos seus familiares não-
-migrantes inclui ideias e práticas sobre o cuidar e o velar, ideias estas que
revelam uma mutualidade do ser no sentido proposto por Marshall Sah-
lins (2013).
Os vários estudos de caso realizados ao longo do projeto mostraram
como a gestão transnacional da morte e do morrer revelam discursos e
práticas sobre a «boa» e a «má» morte, sobre o «bom» e o «mau» lugar de
enterro e como estas conceções estão associadas a noções de lugar, mu-

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Movimentos, Espíritos e Rituais

tualidade e velar (Mapril 2009; Saraiva e Mapril 2015; Rodrigues, este vo-
lume, inter alia). Aqui encontramos imaginários que relacionam lugares
de pertença, religião e ritual e como estes se reconfiguram, criando novas
geografias morais.
Contudo, os rituais funerários em contextos migratórios são também
reveladores de outras dinâmicas e processos. Como Karen Fog Olwig
(2009) mostra no caso da migração caribenha para o Reino Unido, a
morte de um conterrâneo, e os respetivos rituais funerários, são uma oca-
sião de superação de tensões e divergências e de produção de um sentido
de comunidade de pertença com base em experiências comuns. Tais di-
nâmicas estão frequentemente presentes noutros contextos onde encon-
tramos, por exemplo, associações informais organizadas para o repatria-
mento dos corpos ou estratégias informais de coleta e de quotização
(Mapril e Saraiva 2014). Em todos estes casos, o que emerge é precisa-
mente a importância dos rituais fúnebres, e respetivos trânsitos, «[...] na
criação de sociedade como algo aparentemente exterior» (Bloch e Parry,
1982, 6). Assim, os rituais fúnebres reificariam uma ideia de sociedade
para além das relações sociais que a compõem através de um processo
de coparticipação.
Este capítulo pretende ser um contributo para esta literatura, mas atra-
vés de um estudo de caso sobre a vivência do luto e da viuvez num con-
texto migratório. Como Maurice Bloch e Jonathan Parry (1982) argu-
mentam, a morte é frequentemente encarada como um período perigoso
que implica a separação dos enlutados da vida quotidiana, mas também
a sua posterior reintegração. A partir desta constatação, o objetivo deste
capítulo é analisar a forma como a viuvez é experienciada e como se ar-
ticula com práticas transnacionais de cuidar. Este caso mostra a impor-
tância da unidade doméstica de origem da jovem viúva num momento
de crise.
Algumas das ideias discutidas neste capítulo apresentam um outro
lado da morte e do morrer na migração bangladeshi. Os trabalhos de
Katy Gardner (1998 e 2002) sobre viúvas bangladeshis em Londres mos-
tram como a morte de um migrante homem no Reino Unido implica
diferentes formas de viver a morte e o luto de acordo com as posições
de género. Para as viúvas, a experiência do luto em Londres implica não
apenas isolamento social, já que se encontram afastadas da família alar-
gada no Bangladesh que em circunstâncias normais seria uma fonte de
apoio, mas também uma relação complicada com o regime burocrático
britânico que torna o luto impossível de cumprir de acordo com os ideais
normativos.

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Pessoa, morte e género entre Lisboa e Dhaka

A etnografia apresentada neste capítulo corrobora parcialmente o ar-


gumento de Katy Gardner mas também complementa a análise anterior
ao revelar a importância dos parentes matrilaterais na gestão da viuvez.
De acordo com vários autores (Aziz 1979; Kotalová 1993; Gardner
1995; Rozario 2001), os modelos dominantes/hegemónicos sobre des-
cendência na sociedade bangladeshi são patrilineares; «a descendência e
a ancestralidade são ambas traçadas através da linha masculina.» (Gardner
1995, 29). A residência pós-matrimonial é frequentemente patrilocal, o
que corresponde aos modelos dominantes de organização dos regimes
de residências pós-matrimoniais. Contudo, existem vários discursos e
práticas sobre diferentes arranjos residenciais, frequentemente neolocais,
como uma forma de escapar às tensões entre afins.
Assim, apesar de a sua participação ser agora dirigida para a família do
marido, uma transferência que é marcada ritualmente nalgumas cerimó-
nias associadas ao casamento (ver infra), isto não significa que a esposa
perca o contacto com a sua unidade doméstica de origem. Pelo contrário,
esta ligação, mantida através do cuidar, apenas se torna menos visível a
nível do quotidiano, mas é frequentemente reforçada em períodos de
crise (Rozario 2001). Por exemplo, no contexto de um conflito entre o
casal, é frequente os pais da recém-esposa serem chamados a intervir em
proteção da filha. Um outro exemplo ocorre em casos de viuvez, espe-
cialmente viuvez jovem e ainda sem filhos, e onde as relações com os
parentes por afinidade são por vezes vistas como problemáticas. Nestes
casos, a unidade doméstica de origem da esposa assume amiúde um
papel fulcral na gestão deste estatuto, frequentemente com um grande
esforço, especialmente se estamos perante famílias oriundas de meios so-
ciais desfavorecidos (White 1992; Rozario 2001).
O caso que apresentarei neste capítulo revela precisamente a impor-
tância da unidade doméstica de origem da esposa na gestão transnacional
da sua viuvez. O objetivo desta etnografia do particular (Abu-Lughod
1991) é revelar a relação entre morte, luto, viuvez e normatividades de
género, e como estas são mutuamente constitutivas num espaço social
transnacional.
De forma a analisar estas dinâmicas, apresentarei um retrato longitu-
dinal de uma família, a dithidar bari ou a casa dithidar, com quem tenho
trabalhado desde 2002. A principal parte do trabalho de campo foi rea-
lizada até 2008, em Portugal e no Bangladesh, no contexto da pesquisa
que levou à realização do doutoramento. No final de 2011, contudo, co-
mecei um processo de revisitação aos meus interlocutores, incluindo esta
unidade doméstica, por forma a perceber as transformações que ocorre-

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Movimentos, Espíritos e Rituais

ram desde que nos conhecemos pela primeira vez. No caso da dithidar
bari estava particularmente interessado em saber o que tinha acontecido
após a morte de Jahangir, o chefe de família e o seu principal provedor,
em Lisboa em 2007. Como estava Aisha, a esposa de Jahangir? E os seus
quatro filhos – Mujib, Raju, Masud e Zubayer?
Será através desta etnografia do particular, como Lila Abu Lughod lhe
chamou, que abordarei a relação entre morte, relatedness, produção de lu-
gares e normatividades de género.

Uma história da migração do Bangladesh


para Portugal
Como noutros contextos, a história das migrações para Portugal esteve
essencialmente ligada ao passado colonial português, daí a presença de
guineenses, cabo-verdianos, moçambicanos e angolanos. No entanto,
com a adesão aos acordos de Schengen e as substanciais alterações so-
cioeconómicas ocorridas nos últimos 30 anos, a imigração em Portugal
tem vindo a assumir novas características. Uma das mais evidentes é a
chegada de populações oriundas de países que pouco ou nenhuma liga-
ção tinham com Portugal, como aliás o caso dos bangladeshis atesta.
Estes começaram a chegar a Portugal em 1986 e ainda hoje este fluxo
migratório se mantém ativo. Entre 1995 e 2003, passou de 47 indivíduos
para 2243,1 o número de pessoas legalmente registadas nos serviços de
imigração – apesar dos mais de 4000 registos no consulado geral do Ban-
gladesh, localizado no Porto. No início de 2009 (fevereiro), o número
de cidadãos do Bangladesh registados no consulado ultrapassava já as
4500 pessoas e segundo fontes da embaixada do Bangladesh em Portugal
esta migrações ronda atualmente as 15 mil pessoas.
Como acontece em Espanha e em Itália, a maioria é oriunda de estra-
tos sociais intermédios, aquilo que no Bangladesh tem vindo a ser clas-
sificado como a nova e afluente «classe média», urbanizada e com eleva-
dos níveis de instrução. Para estes estratos sociais, vir para a Europa não
é uma forma de escapar à pobreza mas sim uma estratégia de acesso
àquilo que no Bangladesh dá pelo nome de adhunik – o «moderno» – e,
ao mesmo tempo, de aceder ao estatuto de adulto (Mapril 2007).

1
Estes dados foram calculados através da soma entre a população bangladeshi com
estatuto de residência em Portugal e o somatório da população bangladeshi com estatuto
de permanência desde 2001 até aos últimos dados estatísticos referentes ao ano de 2003.

134
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Pessoa, morte e género entre Lisboa e Dhaka

As cadeias migratórias que serviram de esteio à formação deste sur-


preendente fluxo estão diretamente relacionadas com os processos de
regularização levados a cabo em vários contextos da Europa Meridional,
desde finais dos anos 80 até à atualidade. Muitos encontravam-se já na
Europa e chegaram a Portugal à procura de oportunidades de legaliza-
ção, impossíveis de aceder noutros contextos, que lhes permitia ultra-
passar as vulnerabilidades associadas à «ilegalidade» e à «indocumenta-
ção» (no mercado de trabalho mas também no acesso a serviços de
saúde ou de educação), mas também permitia fazer face à deportabili-
dade na Europa.
Desde o início dos anos 80, no contexto da ditadura do general Ers-
had, instaurada no Bangladesh em 1982, que os pedidos de asilo a países
como a Alemanha e a França se tornaram num lugar-comum (Knights
1996). Além disto, a substancial alteração da situação social e económica
dos países da Europa Meridional em virtude da sua pertença ao espaço
comunitário traduziu-se numa melhoria dos níveis de vida das popula-
ções e modificou a posição destes países face à divisão internacional do
trabalho (ver Malheiros 1996; Baganha, Ferrão e Malheiros 1999; King
et al. 2000). Estas mudanças abrandaram as migrações intraeuropeias e, a
curto prazo, acarretaram a chegada de novos imigrantes não-oriundos
dos antigos espaços coloniais. Perante estes «novos» fluxos migratórios,
muitos destes países desenvolveram legislações e programas especiais para
a regularização de imigrantes, que passaram a ser vistos por muitos como
oportunidades de legalização. À imagem do caso italiano,2 muitos ban-
gladeshis deslocaram-se para Portugal no âmbito dos processos de regu-
larização desenvolvidos pelas autoridades portuguesas em 1992, 1996 e
2001-2002, e/ou para se juntarem aos seus amigos e familiares. Após a
obtenção de documentos alguns regressaram ao Bangladesh onde através
de investimentos em várias áreas, angariaram o capital suficiente para fa-
zerem novos investimentos em Portugal. Outros decidiram permanecer
em Portugal, aproveitando o comércio realizado por bangladeshis para
se inserirem no mercado de trabalho ou optaram ainda pela inserção em
sectores como a construção civil. Finalmente, outros decidiram deslo-
car-se novamente para outros países europeus de forma a dar continui-
dade aos trabalhos que ali vinham a realizar ou para se juntarem aos

2
Graças à legislação Martelli (que permitia a aquisição de uma residência permanente
ou renovável), implementada no início dos anos 90, o número de imigrantes do Bangla-
desh a residir em Itália aumentou de forma espetacular rondando atualmente os 20 000
indivíduos (Knights 1996).

135
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Movimentos, Espíritos e Rituais

membros da família que ali residem. Apesar de muitos terem chegado


isolados, quando iniciei o trabalho de campo era possível observar um
crescente número de crianças e mulheres, o que revelava que muitos co-
meçavam a acionar os processos de reunificação familiar.
Estas diferenças entre bangladeshis, a nível dos processos de reunião
familiar e da propriedade de negócios revelam a segmentação existente
entre esta população. Por um lado, temos os pioneiros – chegados no
final dos anos 80 e início dos anos 90 – que começaram por trabalhar
nos sectores mais desprestigiados e que hoje são proprietários de vários
negócios. Constituíram as suas unidades domésticas e são exemplos de
sucesso e êxito; um modelo para muitos dos recém-chegados. Já os
recém-chegados, os chamados freshies – aqueles que chegaram para os
processos de regularização de 2001 –, continuam ainda hoje a chegar.
Trabalham nos sectores mais precários ou no mercado de trabalho criado
pelos pioneiros e na maior parte dos casos são solteiros. Muitos chegaram
a Lisboa isoladamente, e portanto é comum não terem família em Por-
tugal, e o seu projeto migratório é ainda incerto.

Uma unidade doméstica entre Lisboa e Dhaka


Jahangir era um professor de uma escola secundária em Comilla, no
Sul do Bangladesh, e migrou juntamente com Aisha, a sua esposa, para
o Reino Unido para se juntar aos seus cunhados (stira bhai) – Mizan e
Anis – em Londres, porém, pouco tempo depois o casal foi forçado a
regressar ao Bangladesh devido a complicações burocráticas. Em 1996,
Jahangir voltou a sair do Bangladesh, desta vez para Portugal, mas Aisha
e os seus quatro filhos acabaram por ficar em casa dos pais dela, em Mo-
hammadpur, Dhaka. Durante alguns anos, Jahangir trabalhou como ven-
dedor ambulante em diferentes mercados um pouco por todo o país, e
em 2001 sofreu um acidente de carro tendo ficado gravemente ferido.
Assim que souberam das notícias, Anis, o irmão de Aisha, veio para Por-
tugal com a intenção de tratar do seu regresso a Dhaka. Anis é arquiteto
e cresceu em Londres com o irmão mais velho, Mizan, e os pais. O pai
morreu em meados dos anos 80, e, pouco depois, a mãe regressou ao
Bangladesh, deitando fora o passaporte britânico, em sinal de protesto
pelos vários anos de sofrimento em Inglaterra.
Assim que Anis chegou a Lisboa, e depois de uma reunião inicial com a
equipa médica, percebeu que seria impossível levar Jahangir para Dhaka.
Segundo o parecer do corpo clínico, uma viagem de avião era fortemente
desaconselhada. A única solução seria trazer a família para Lisboa. Assim,

136
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Pessoa, morte e género entre Lisboa e Dhaka

nos meses seguintes, Anis preparou a chegada da sua irmã e dos seus so-
brinhos, o que apenas viria a ocorrer um ano mais tarde, o que incluiu a
compra de um apartamento em Lisboa, que permitisse fazer face às exi-
gências terapêuticas de Jahangir. O objetivo, também motivado pelas
pressões da administração hospitalar, seria tomar conta de Jahangir em
casa com a ajuda do centro de saúde. Depois de vários anos, em casa,
no sábado dia 12 de fevereiro de 2007, Jahangir faleceu após complicações
pós-cirúrgicas.
A primeira decisão que teve de ser tomada foi se o corpo deveria ou não
ser enviado para o Bangladesh? Inicialmente a ideia era precisamente re-
patriar o corpo, ainda para mais porque um Mujib, o filho mais velho de
Jahangir, estava precisamente no Bangladesh para tratar do seu casamento,
e poderia tratar de tudo daquele lado. Aisha e a sua mãe queriam que fosse
enterrado no Bangladesh, na sua aldeia de origem – Hasnabad – mas Anis
estava contra, pois era demasiado dispendioso. Para além disto, Anis argu-
mentava:
Temos de pensar no Jahangir e não na família. Ele deve ser enterrado o
mais depressa possível porque a sua pele vai secar e apodrecer e temos de
nos lembrar que os mortos serão os primeiros a ver Allah.

Por isto, deveriam enterrar Jahangir o mais depressa possível e, como


tal, em Lisboa. Isto seria o correto de um ponto de vista islâmico, argu-
mentava. Dias antes, tinha-se dirigido à mesquita central de Lisboa para
se aconselhar junto de um maulana e do imam e ambos eram da opinião
de que o enterro deveria ser feito em Lisboa, num dos cemitérios com
uma secção islâmica. Para além de tudo isto, Jahangir já não tinha pa-
rentes no Bangladesh. De facto, os seus pais tinham falecido anos antes
e o único parente com quem mantinha alguma relação era uma irmã,
que vivia em Dhaka, mas, argumentavam eles, ela não parecia muito in-
teressada em tomar conta do funeral do irmão. Durante vários anos, fui
ouvindo queixas relativamente à tia paterna porque
[...] ao longo destes anos, ela telefonou à família apenas três vezes e numa
dessas ocasiões insinuou que nós tínhamos escondido todo o dinheiro dele
do resto da família.

Quando perguntei se não deveriam enviar o corpo apesar de todas


estas complicações, a resposta que obtive foi que as pessoas enviam os
corpos porque os seus parentes os querem ver uma última vez. Ora, no
caso de Jahangir, ele já não tem família lá e, portanto, não há porque

137
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Movimentos, Espíritos e Rituais

enviá-lo. Afinal de contas, os seus parentes estão todos em Portugal.


Aisha, ainda que relutantemente, acabou por concordar com o seu irmão
e apesar de ir contra os desejos de sua mãe, ficou decidido que Jahangir
seria enterrado em Lisboa.
A limpeza ritual do corpo foi realizada na mesquita central de Lisboa
por dois bangladeshis com experiência anterior, assistidos por Anis e
Raju, um dos filhos de Jahangir, e em estreita colaboração com os res-
ponsáveis pelas limpezas rituais daquela mesquita. A salat-ul-janazah, a
oração fúnebre, foi liderada pelo imam da mesquita central e foi reali-
zada no pátio, onde se juntaram mais de sessenta bangladeshis, in-
cluindo algumas das mais importantes figuras económicas e políticas
bem como amigos e conhecidos de Jahangir e da sua família. Pouco de-
pois, o funeral seguiu para o cemitério. O caixão, transportado pelos fi-
lhos, Anis e algumas figuras proeminentes entre os bangladeshis, foi tra-
zido para junto da campa. O corpo, devidamente perfumado, foi
retirado e a sua face descoberta para ser colocado na campa, virado para
Meca. Quando a campa foi tapada, uma du’a, uma súplica, foi rezada
coletivamente.
Quando finalmente chegámos a casa, Aisha e Zubaier tinham sido vi-
sitados por várias famílias em sinal de apoio. Aisha estava muito ansiosa,
pois quando Jahangir estava em casa a situação já era complicada, mas
pelo menos ele estava em casa. Mas agora, como viúva, e ainda para mais
a precisar de uma cirurgia (à vista) com urgência, estava a ser demasiado
complicado. «Quem vai comprar a comida?» perguntava. Ela não tem
ninguém que a ajude, e os filhos estão a trabalhar durante o dia. Se ela
tivesse algum apoio poderia fazer o luto, mas assim ia ser muito difícil.
Aisha queria regressar ao Bangladesh, contudo acabou por decidir ficar
e passar o luto com a ajuda dos filhos e de uma sobrinha (filha da irmã
mais velha), que se juntou a eles mais tarde.
Em dezembro de 2012, na véspera de Natal, fui visitar esta casa mais
uma vez e Raju partilhou as últimas novidades: Aisha tinha recasado.
Casou com um primo matrilateral, Anwar, que tinha conhecido em
2004, quando foi a Dhaka pela primeira vez. Vivia na capital do Bangla-
desh, perto de Gulshan (uma zona rica da cidade), e já era casado.
O acordo foi que Aisha teria a sua própria casa e ocasionalmente ficaria
em casa do seu pai, em Tollabagh, para tomar conta da mãe, e Anwar di-
vidiria o seu tempo entre as duas casas.
Tudo terá começado uns anos atrás quando os filhos de Aisha come-
çaram a falar e a insistir nisto. Raju argumentava: «no Islão está escrito
que a viúva deve ter o direito de recasar e, para além disto, o nosso pai

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Pessoa, morte e género entre Lisboa e Dhaka

já morreu há sete anos!». Para ele o recasamento era algo permitido e


mesmo recomendado no Islão e, portanto, já tinha passado mais do que
tempo suficiente desde a morte do pai.
Inicialmente, os irmãos de Aisha opuseram-se a tal união. A mãe deles
enviuvou com a mesma idade e nunca sentiu necessidade de voltar a
casar, portanto porque haveria de ser diferente com Aisha? – questionava
um dos irmãos. Pouco depois acabaram por mudar de opinião e come-
çaram a procurar um possível esposo, mas cedo se aperceberam de que
«não seria capaz de entender a mentalidade da sua mãe». Ela estava a
viver em Portugal havia muito tempo.
Após várias conversas e visitas a potenciais pretendentes organizadas
pelas suas irmãs em Dhaka, surgiu o nome de Anwar. Aparentemente,
parecia uma boa opção – Anwar sempre foi algo apaixonado por Aisha
e teria mesmo sugerido que eles casassem bem antes de ela ter casado
com Jahangir – mas depararam-se com a oposição de Anis e Mizan.
O motivo para as suas reservas estava relacionado com as ligações de
Anwar à política, mais concretamente ao Bangladesh Nationalist Party,
e à má reputação que teria criado. Assim sendo, ele poderia vir a trazer
mais complicações para Aisha e para a família.
De qualquer forma, e depois de várias negociações, a família acabou
por aceitar tal opção. Aisha casou com Anwar em Tollabagh, numa pe-
quena cerimónia com 20 convidados, sem lugar a guy ullud (uma ceri-
mónia na qual os corpos dos noivos são decorados com turmérico), a
bou bhat (também conhecido como o arroz da noiva) ou mesmo a um
banquete. A cerimónia foi apenas o assinar dos documentos na presença
de um Kazi, perante 20 convidados das duas famílias.
Aisha tinha regressado recentemente de Lisboa, depois de uma pe-
quena lua de mel, enquanto Anwar ficou no Bangladesh. Ela é agora ci-
dadã portuguesa e prefere ficar em Portugal em vez de regressar ao Ban-
gladesh. Decidiu viver entre Lisboa e Dhaka. O objectivo não era trazer
Anwar para Portugal porque «o que é que ele vai fazer? Trabalhar numa
loja? Ele provavelmente ganha mais no Bangladesh do que alguma vez
poderia vir a ganhar em Portugal».
Raju estava muito feliz pela sua mãe. Afinal de contas ela estava muito
só em Lisboa e tinha de tomar todas as decisões isoladamente. Ela ainda
é jovem, argumentava, e tem o direito de começar de novo. Mais, ele
quer parar a maledicência sobre ela. Outras mulheres bangladeshis, aqui
em Portugal, são pouco instruídas e portanto consideram-na uma ameaça,
por ser viúva e bonita, para elas e para os seus casamentos. «Sabes», dizia
«as pessoas são ignorantes e têm medo das viúvas». A consequência é

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Movimentos, Espíritos e Rituais

que ela tem ficado progressivamente mais isolada e isso tem sido uma
fonte de sofrimento agudo.
Este exemplo da Dithidar bari revela dois aspetos relativos à gestão
transnacional da morte e do morrer em contextos migratórios que serão
explorados nas próximas secções: por um lado, permite-nos explorar a
relação entre o bom enterro e ideias sobre relatedness; por outro, revela
ideias sobre viuvez e as estratégias para restabelecer a normalidade de gé-
nero.

Trânsitos fúnebres
Desde 1986, altura em que terá chegado o primeiro bangladeshi a Por-
tugal, até ao final de 2006, morreram 13 bengalis em circunstâncias di-
versas (doenças prolongadas, acidentes de trabalho e alegados crimes) e
todos foram a enterrar no Bangladesh, exceto um, ao qual voltarei um
pouco mais adiante.
As despesas e a organização da transladação do corpo ficaram a cargo
dos pioneiros. Enquanto símbolos de sucesso e êxito assumem frequen-
temente o papel de líderes da «comunidade», e é precisamente enquanto
badralok, designação bengali para homem importante, big man, que são
chamados para resolver situações de conflito ou gerir a morte de um con-
terrâneo. São eles que, juntamente com vários outros ajudantes, se en-
carregam da preparação das cerimónias fúnebres, com a explícita cola-
boração das principais instituições islâmicas em Portugal, tais como a
mesquita central de Lisboa ou mesquita Hazrat Bilal no Porto. Ora é no
seio destas instituições que a gestão dos rituais fúnebres e da morte entre
bangladeshis é parcialmente feita. São os funcionários destas mesquitas
que habitualmente realizam as lavagens (ghosul), as abluções (wuzu) e em-
brulham o cadáver no kafan, a mortalha branca que é também usada
pelos peregrinos durante a Hajj. Esta é uma tarefa realizada por homens
ou mulheres consoante o defunto é um homem ou uma mulher. Em se-
guida, o corpo é embalsamado, como aliás a lei obriga em casos de trans-
ladação, e selado num caixão para fazer a viagem de regresso ao Bangla-
desh. Antes de selar o caixão, o corpo é transportado para a sala de
orações, ou, no caso da mesquita central de Lisboa, para o pátio interior,
onde se realiza a salat-ul-janazah, a oração fúnebre. De acordo com os
meus interlocutores, o número de crentes nesta oração deve ser signifi-
cativo, já que quanto maior for a congregação maior é o mérito, sowab,
que o falecido «receberá». Como tal, não é incaracterístico muitos ban-
gladeshis se deslocarem de todo o país para participar nestas orações,

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Pessoa, morte e género entre Lisboa e Dhaka

sendo por vezes, literalmente recrutados para participar. Segundo alguns


dos meus interlocutores, tal deve-se ao reconhecimento de que numa
ocasião como esta todos devem participar na oração, e nunca se sabe se
no futuro não serão eles também a precisar da participação e do empe-
nho de todos.
Esta é uma congregação exclusivamente masculina. A esposa do fale-
cido, quer se encontre em Portugal ou no Bangladesh, deve permanecer
em casa, e com um contacto mínimo com o exterior durante um período
alargado de tempo, que pode estender-se até 40 dias. Durante este pe-
ríodo, recebe visitas de outras mulheres, mas é comummente referen-
ciado o facto de ter de se manter afastada de homens não-pertencentes
à patrilinhagem, gushti.
Nos dias seguintes, por ocasião das orações diárias na mesquita Baitul
Mukarram, o falecido é relembrado e pede-se à congregação que reze por
ele. Assim que possível inicia-se o repatriamento do corpo, processo no
qual está envolvida uma agência funerária, que é frequentemente con-
tratada pela C. I. L. Todas as despesas são suportadas através de coletas
informalmente organizadas entre os pioneiros e no seio das várias asso-
ciações regionais informais, que se têm constituído nos últimos anos.
Não existe uma obrigatoriedade nas quantias doadas, mas normalmente
os contributos das principais figuras da «comunidade» correspondem à
fatia principal. Estas quotizações destinam-se também a recolher uma
quantia que é posteriormente entregue à família ou à viúva, no Bangla-
desh, e que num dos casos chegou aos 5000 euros.
Cabe então à família ir buscar o corpo ao aeroporto. Nalguns casos
aluga-se uma ambulância que transporta o corpo até ao cemitério e de-
pois organiza-se o cortejo fúnebre e o enterro. Outras possibilidades são:
enterrar o corpo nas terras da família, junto de outros parentes; ou nas
imediações de mazaar de famosos pirs, isto é, os lugares onde foram en-
terrados famosos homens santos (Gardner 1998 e 2002). No Nordeste
do Bangladesh, onde a importância histórica do pirismo é estruturante
para perceber as dinâmicas de islamização do golfo de Bengala (Eaton
1993), tal prática é encarada como muito auspiciosa para o defunto já
que fica protegido pelo carisma do homem santo, que por ele pode in-
terceder junto de Deus.
Mas porque não enterrar o corpo em Portugal?
A preocupação com o enterro no Bangladesh está relacionada com a
crença generalizada na obrigatoriedade de «regressar» à desh, para junto
dos seus parentes (atyio). Numa conversa sobre este facto, Ali, um dos
meus interlocutores, aprofundou esta ideia dizendo: «aqui ninguém reza

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Movimentos, Espíritos e Rituais

por ti porque ninguém te conhece. No Bangladesh, as pessoas quando


passam no cemitério lembram-se de ti e, portanto, fazem uma du’a em
teu nome».
O que Ali queria dizer era que cada oração feita em nome do falecido
reverte a seu favor no futuro, quando os seus comportamentos forem
avaliados por Deus, e nessa medida é necessário enterrar as pessoas nas
imediações das sociabilidades mais próximas. Estas redes de relações so-
ciais são indispensáveis para a derradeira viagem que a morte representa,
e quando o julgamento final chegar, todos – a começar pelos mortos –
terão de prestar contas pelas suas ações na terra. Nesta medida, ter pa-
rentes que fazem orações ou assembleias devocionais em nome ou ho-
menagem do defunto é uma forma de adquirir mérito.
Esta ideia está relacionada com as próprias conceções da morte parti-
lhadas por muitos dos meus interlocutores e que têm semelhanças com
aquilo que tem sido descrito em vários contextos no Bangladesh (Kota-
lová 1993; Gardner 1995). Para muitos, aquilo que se faz na terra tem
consequências evidentes após a morte. Este mundo e o próximo são na
realidade parte de um mesmo contínuo onde aquilo que se faz em vida
determina tanto a vida futura como a morte. As ações quotidianas são
muitas vezes medidas, em termos de significados e cargas morais, com
base nas consequências que podem ter para a vida depois da morte. As-
sociado a isto, está a noção de que as pessoas podem realizar determina-
dos atos como forma de aquisição de mérito (sowab) e de capital sagrado
que será depois da morte indispensável para entrar no paraíso (janna) e
escapar às tormentas do inferno (jahannam). Ora, depois de falecido, a
aquisição e acumulação de sowab torna-se impossível, a não ser com a
ajuda dos familiares e dos amigos que, ao fazerem orações, súplicas e as-
sembleias devocionais em nome do defunto contribuem, significativa-
mente, para o aumento do seu capital sagrado. Daí a necessidade de ser
enterrado nas imediações dos familiares, amigos e conhecidos, isto é,
aqueles que mais facilmente se poderão lembrar dele.
Esta relação entre o enterro no Bangladesh e o mérito (sowab) deve,
no entanto, ser interpretada com base numa outra ideia que Katy Gard-
ner explorou num artigo de 1993. Neste texto, Gardner mostrou como
para muitos bangladeshis, bidesh, o termo bengali para terra estrangeira,
remete para uma ideia de terra de abundância, de inimagináveis rique-
zas e êxitos. Por sua vez, o termo desh, que remete para o Bangladesh, al-
deia e região de origem, está intimamente associada à pobreza e à falta
de oportunidades. No entanto, o outro lado da moeda é que bidesh é en-
carada como uma terra pouco religiosa e moralmente ameaçadora face

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Pessoa, morte e género entre Lisboa e Dhaka

a um Bangladesh de devoção e de valores. Assim, e uma vez que a morte


não é o fim, mas antes um outro percurso conducente a Deus, percurso
esse que depende de atos religiosos praticados por outros, mais vale ser
enterrado numa terra de pessoas devotas do que numa terra onde existe
um vazio de valores e de religião, onde há poucos muçulmanos a velar
pelo defunto. Neste contexto, ser enterrado em Portugal é frequente-
mente relacionado com uma ideia de abandono. É como se a pessoa
fosse deixada à sua sorte, desprotegida e vulnerável.
Enviar o corpo para o Bangladesh é, como Maurice Bloch e Jonathan
Parry (1982) revelaram, uma forma de corresponder ao ideal, às noções
de «boa morte». Como tem sido extensamente documentado em várias
etnografias sobre o Bangladesh (Kotalová 1993; Gardner 2002; Garbin
2004), a «boa morte» é aquela que ocorre junto dos «seus», dos parentes,
dos membros da unidade doméstica e da patrilinhagem e não sozinhos
e junto de desconhecidos. O ideal, aliás, seria morrer em casa, rodeado
pelos parentes. Ora, como muitos continuam a considerar que a sua casa
se encontra no Bangladesh, a nível de instituição e relações sociais, o
ideal é ser repatriado.

Viuvez e mutualidade
A história da Dithidar bari permite não apenas falar dos trânsitos fúne-
bres, relatedness e ideias sobre lugares de pertença, mas revela igualmente
noções sobre viuvez, luto, e como estas são vividas transnacionalmente.
Na literatura sobre as migrações bangladeshis, a gestão da morte, do mor-
rer e do luto têm sido analisados por Katy Gardner (1998 e 2002) ba-
seando-se na sua pesquisa sobre bangladeshis-britânicos. Gardner mostra
como a gestão da morte e do sofrimento revela não apenas noções sobre
lugares de pertença, mas também perceções de género. Ao longo dos
seus artigos, é visível como o contexto migratório, nomeadamente o ce-
nário institucional sobre a morte e as políticas imigratórias no Reino
Unido, e a condição de pobreza, têm significativas consequências para
uma gestão diferenciada da morte entre homens e mulheres. Gardner
mostra, por exemplo, como as viúvas no Reino Unido estão frequente-
mente isoladas socialmente, porque estão longe das redes de apoio com
base na família extensa que teriam na aldeia de origem no Bangladesh, e
simultaneamente se encontram numa posição socioeconómica que não
lhes permite viajar para participar no enterro dos maridos. A descrição
etnográfica apresentada anteriormente revela um processo similar ao des-
crito por Katy Gardner. Viver o luto em Portugal levanta um conjunto

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Movimentos, Espíritos e Rituais

significativo de problemas que não podiam ser imediatamente resolvidos


por Aisha, e isto era uma fonte de grande sofrimento. Aisha sentia-se
crescentemente isolada, sensação essa agravada pela necessidade de uma
cirurgia. Ao mesmo tempo, os três filhos estavam todos a trabalhar du-
rante o dia, e o filho mais novo, Zubair, era ainda demasiado criança
para poder ajudar nas tarefas domésticas. A sua distância da família ex-
tensa no Bangladesh, bem como a sua condição de saúde, tornava difícil
cumprir o luto, nomeadamente os 40 dias de reclusão. Esta tensão foi
parcialmente resolvida quando a sua sobrinha – Rozina – passou uma
temporada em Lisboa, para apoiar a irmã da mãe neste período.
Mas a Dithidar bari revela um outro lado da experiência da viuvez.
Aisha, era frequentemente percecionada como uma ameaça não apenas
para o estatuto de pessoas diretamente envolvidas na morte e no luto,
mas também de outros ao seu redor. Os rumores revelavam que ela era
vista como inauspiciosa e uma fonte de alarmes morais, parcialmente
por ser vista como uma fonte de sexualidade fora do controlo. Estes ar-
gumentos acerca dos potenciais perigos sexuais de viúvas estão implici-
tamente baseados na ideia de que as viúvas, especialmente jovens, dei-
xaram de ocupar uma posição claramente definida dentro de um grupo
de parentesco e, portanto, a sua sexualidade não se encontra normalizada
ou controlada. E isto é especialmente verdade para jovens viúvas. Ou
seja, numa sociedade onde os modelos dominantes de descendência são
patrilineares e a residência é frequentemente patrilocal (o homem que
aceita viver na casa dos seus sogros após o casamento é frequentemente
estigmatizado através da categoria ghor zamai, uma categoria que é usada
para diminuir a sua masculinidade, ver Gardner 1995 e Garbin 2004), o
casamento, enquanto processo e cerimónia, é um ritual de passagem que
marca a transferência da recém-esposa para o grupo de parentes do ma-
rido. Isto é marcado simbolicamente através de cerimónias como o tule
ana, a viagem da noiva até à casa da família do marido que marca a sua
entrada num novo grupo de relações sociais, e o bou bhat, também co-
nhecido como o arroz da noiva, onde, após alguns dias na nova residên-
cia, a noiva cozinha para a sua nova família e, portanto, saindo da posi-
ção liminar anterior em que se encontrava (Kotalová 1993).
Tal não significa, porém, que após o casamento a relação com a uni-
dade doméstica de origem se perca. Apenas significa que esta ligação se
torna mais esporádica e contextual (quando existe um problema entre o
marido e a esposa não é incaracterístico ver a intervenção dos pais dela)
(ver também Rozario 2001). Portanto, o casamento relocaliza social-
mente a mulher e ela passa a fazer parte da gushti do marido (ver também

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Pessoa, morte e género entre Lisboa e Dhaka

Rozario 2001). Assim, a morte prematura do marido, especialmente se o


casal for jovem e sem filhos, fica numa posição ambígua em relação aos
parentes por afinidade. No caso apresentado, Aisha estava parcialmente
protegida porque tinha quatro filhos, mas, simultaneamente, as suas re-
lações com os restantes membros da família de Jahangir – a sua irmã em
Dhaka – era tensa e cheia de desconfiança. A irmã de Jahangir acreditava
que Aisha escondia o dinheiro que Jahangir teria ganho na Europa ao
longo de tantos anos. Por causa desta relação, a ligação entre as duas de-
pressa se tornou demasiado tensa, e mesmo antes da morte de Jahangir
as relações foram cortadas. Assim, as fracas ligações que mantinha com
a gushti de Jahangir, juntamente com o facto de viver em Lisboa, refor-
çaram a separação em relação à família do marido.
Num outro nível, Aisha era ainda jovem e, portanto, para muito ban-
gladeshis em Lisboa, ela representava uma ameaça aos seus casamentos
pois não se encontrava localizada dentro de categorias «normais» de pa-
rentesco. A consequência é que após a morte de Jahangir ela foi sendo
progressivamente isolada, sendo frequentemente deixada de fora de redes
femininas de solidariedade, mas também de outros eventos e ocasiões
sociais tais como rituais familiares, aniversários, orações coletivas, etc.)
organizadas por famílias bangladeshis em Lisboa. Estes eventos são parte
integrante da criação de campos sociais e sociabilidades entre famílias de
probashis e criam e reforçam redes de apoio e solidariedade a vários níveis,
que vão desde a simples companhia no quotidiano à organização diária
da recolha das crianças nas escolas. Num certo sentido, e como Lamb
(1999, 2000) e Chakravarti (1995) mostraram em relação à viuvez noutros
contextos da Ásia do Sul, é como se o seu estatuto de viúva levasse Aisha
a uma experiência comparável a uma «morte social». Ela não era uma
pessoa social já que se encontrava numa posição liminar/marginal e, por-
tanto, era frequentemente excluída de várias ocasiões sociais. Este isola-
mento era obviamente uma fonte de ansiedade, stresse e sofrimento não
apenas para Aisha mas para toda a unidade doméstica. A viuvez de Aisha
era frequentemente percecionada como uma ameaça à honra da família
e uma fonte de vergonha (sharam).
Perante uma tal condição, o seu filho mais velho tornou-se um muçul-
mano devoto. Começou a ensinar português a bangladeshis recém-che-
gados e a jovens numa mesquita bangladeshi no centro de Lisboa e mais
tarde juntou-se a um grupo político conservador. O seu tio materno en-
corajou-o, e o objetivo era fazer com que o filho mais velho fosse respon-
sável pela honra da família num contexto tão complexo. Na ausência do
pai, cabia ao filho mais velho a responsabilidade de ser o provedor, mas

145
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Movimentos, Espíritos e Rituais

também uma fonte de honra para a família. De forma a escapar a este


lugar simbolicamente ambíguo, uma possível solução seria uma nova
aliança matrimonial. Após várias negociações, foram os membros da sua
unidade doméstica de origem, nomeadamente, a sua mãe, as irmãs e os
seus irmãos, que organizaram o casamento com Anwar. De certo modo,
este recasamento era, em certa medida, uma forma de produzir «norma-
lidade». Uma diferença significativa é que Aisha é agora cidadã europeia,
os seus filhos estão todos em Lisboa, e, portanto, ela pode gerir transna-
cionalmente o seu novo laço matrimonial.

Nota conclusiva
Assim e em jeito de conclusão, a morte e o morrer entre bangladeshis
em Lisboa não apenas revela a íntima relação entre produção de lugares,
mutualidades e coparticipação mas também a produção de normativida-
des de género. Num artigo anterior (2009), procurei mostrar como os
bangladeshis em Portugal vivem a morte, o luto e o sofrimento, e como
as suas práticas e imaginários revelam ideias sobre a «boa» morte e como
isso está associado ao envio dos corpos para serem enterrados no Ban-
gladesh e, portanto, para serem velados por parentes e amigos. Simulta-
neamente, mostrei como se verifica uma crescente transformação das
geografias morais de pertença acerca do lugar correto de enterro. Neste
segundo contributo, procurei mostrar um outro lado da morte e do mor-
rer em contextos migratórios, nomeadamente a experiência de viuvez.
Ao longo deste capítulo procurei revelar a importância do grupo de pa-
rentes matrilateral, nomeadamente aqueles que coparticiparam numa re-
sidência comum e nos seus quotidianos, no apoio transnacional em mo-
mentos de crise tais como os vividos por Aisha e os filhos. Foi com o
apoio dos seus irmãos e irmãs e sobrinhos que a condição de Jahangir
foi gerida, e mais tarde o próprio estatuto ambíguo de Aisha. O recasa-
mento, vários anos após a morte de Jahangir, foi precisamente percecio-
nado por alguns como uma forma de restabelecer a «normalidade», nor-
malidade essa que implicou ir ao encontro das normatividades de género
e de sexualidade. Paradoxalmente, contudo, o seu acesso à cidadania eu-
ropeia, juntamente com o apoio dos filhos, permitiu a Aisha fazer face
a este período com uma maior autonomia, autonomia esta que foi fre-
quentemente percecionada como problemática por vários parentes no
Bangladesh.

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Pessoa, morte e género entre Lisboa e Dhaka

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07 Movimentos Cap. 7.qxp_Layout 1 11/02/17 15:47 Page 149

Maria Beatriz Rocha-Trindade

Capítulo 7

A visibilidade da morte em Portugal


no quadro das migrações
transatlânticas e intraeuropeias
Apresentação
Ao longo do ciclo de vida, a morte tem sido, até agora, dentro das eta-
pas que o integram, um dos temas menos tratados. A intenção que subjaz
à comunicação agora apresentada visa abordá-la no âmbito do contexto
migratório. No caso presente será encarada no amplo espaço das migra-
ções portuguesas, constituindo a sua visibilidade diferenciada no quadro
dos percursos transatlânticos e intraeuropeus o seu principal enfoque.
Sendo as migrações, como se sabe, uma permanência que acompanha
toda a história do país torna-se, por isso, indispensável antes de realizar
qualquer análise conhecer as características que constituem o pano de
fundo no qual se apoia o texto que se segue. Com um carácter estrutural,
a origem e o encaminhamento geográfico dos que partiram direcionados
para diferentes destinos e o volume e composição de cada uma das cor-
rentes que integram depende da articulação das situações de conjuntura
existentes em qualquer dos países que se encontram envolvidos.
Assim e numa abordagem alargada que procura encontrar um enqua-
dramento temporal sistemático diríamos, para melhor compreender a si-
tuação, que devem ser contempladas duas das três grandes etapas tem-
porais que cronologicamente se sucedem, correspondendo cada uma
delas a um dado ciclo pela proeminência e identidade das características
que individualizam cada um deles.
Os fluxos organizam-se fazendo retrair ou avolumar os caudais que
lhes correspondem, conforme é mais fácil ou mais difícil percorrer os
itinerários: as dificuldades sentidas ao longo do percurso realizado e,
muito em especial, as que são encontradas após a chegada, podem de-
sencorajar o migrante. Quando as distâncias se encurtam e os destinos

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Movimentos, Espíritos e Rituais

estão mais próximos é mais rápida a tomada de uma decisão, qualquer


que ela seja.
É por demais conhecido que o desenvolvimento, o estado e avanço
do saber, o progresso e o domínio das técnicas, a aplicação das tecnolo-
gias da comunicação condicionam sem qualquer dúvida o ritmo da sua
evolução. O correr do tempo dá conta disso.
No presente são considerados, grosso modo, três ciclos no panorama
migratório português: Ciclo Atlântico, Ciclo Intraeuropeu, Ciclo Pluri-
continental (Rocha-Trindade 2014). E embora possa qualquer deles ser
tratado em separado e integre vários países recetores da emigração por-
tuguesa, dois grandes destinos se recortam pelo número de pessoas que
os têm selecionado e neles passaram a residir.
Ao longo do caminho percorrido pelos emigrantes, em que o afasta-
mento físico e a distância os poderiam separar cada vez mais da origem,
desenvolvem-se formas diferentes de conservar o sentimento de pertença.
A sua manutenção manifesta-se através de contributos coletivos que se
diferenciam das manifestações individuais. São disso exemplo benfeito-
rias sociais, entre as quais se destacam, por exemplo, as realizadas na área
da saúde: hospitais, asilos e ambulâncias; das obras públicas: pontes, cha-
farizes, jardins, habitação social; ou da educação: creches, escolas, ensino
profissional e alfabetização de adultos.
A construção de habitação própria – desejo que se tem mantido ao
longo dos tempos – assumiu várias formas que se traduzem de modo di-
ferente consoante o espaço onde se encontra edificada. Os palacetes e as
casas que foram erguidos pelos «Brasileiros de Torna-Viagem» distinguem-
-se no espaço rural e urbano onde se inserem. Concretizando em vida
os propósitos dos proprietários, afirmam publicamente o resultado de
uma emigração bem-sucedida.
A visibilidade que assumiram num período que se estendeu desde a
segunda metade do século XIX às primeiras décadas do século XX dava
conta da abastança dos seus proprietários. Sem que eles próprios o dis-
sessem de forma direta, viriam a mostrar, por intermédio dessas constru-
ções, o resultado atingido na luta travada em vida e o sucesso que tinham
sido capazes de atingir.
Foram sem razão muito criticadas sob o ponto de vista arquitetónico
mas hoje são justamente assinaladas – muitas delas têm vindo mesmo a
ser integradas no património nacional. Grandes arquitetos responsáveis
pelo seu projeto, muitos deles estrangeiros, considerados profissionais de
excelência, têm vindo a ser reconhecidos e o seu nome em muito con-
tribui para que a apreciação atual seja feita de forma mais objetiva.

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A visibilidade da morte em Portugal

Estudos realizados a este propósito ilustram a importância do fenó-


meno. Veja-se a recolha de imagens realizada por Júlio de Matos (2008)
e por Paula Torres Peixoto (2013).
Da mesma forma, a construção de casas feitas pelos emigrantes euro-
peus, que quase renovaram vilas e aldeias, onde assumem grande desta-
que, contribuem para assegurar a «presença dos ausentes» (Rocha-Trin-
dade et al. 1987; Villanova, Leite e Raposo 1994).
Como é natural as marcas exteriores, que também asseguram a sua
existência em espaço migratório depois da morte, revestem características
próprias em cada espaço e em cada tempo, assegurando a presença indi-
vidual do migrante depois da sua partida definitiva. Muitos dos elemen-
tos decorativos de tumbas e jazigos construídos no século XIX e princípio
do século XX como algumas das inscrições existentes nas lápides em época
mais recente mostram a diversidade que resulta da conceção da morte
em cada microssociedade.
Constitui um facto adquirido que a intenção de regresso, objetivo prio-
ritário para um grande número migrantes residentes no estrangeiro – nuns
casos programado com precisão, noutros, expresso como desejo e apenas
apontado para um futuro indefinido – nem sempre se concretiza da forma
anteriormente imaginada.
É difícil conhecer quantos foram capazes de realizar essa intenção,
sempre sujeita a uma avaliação imprecisa; por isso, os números lançados
pelas informações dadas sobre os que voltam definitivamente, devem ser
tomados apenas como um indicador e nunca tomados como valor ab-
soluto.
Perante esta posição, muito frequente, de um desejado retorno a Por-
tugal, não é de estranhar que morrer no estrangeiro constitua um pro-
blema que aflige muitos dos migrantes portugueses. A questão assume
em certos casos particular relevo, tendo maior significado para os homens
que partiram sós, deixando a família em Portugal. Para os que continuam
a estar ligados ao país, a estadia no estrangeiro é considerada transitória;
a terra onde passaram a residir e a trabalhar não passou a ser para eles
uma segunda pátria.
Não é por isso de estranhar que, nestas circunstâncias, tenha sido en-
carada a possibilidade de voltar tanto em visitas regulares como de forma
definitiva: em vida ou depois da morte.1

1
Na obra que Pinho Neno escreve sobre «Morrer no Brasil», é explicitada a intenção
de como alguns emigrantes possidentes concretizaram, por via notarial, a realização do
que gostariam que fosse feito depois da sua morte.

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Movimentos, Espíritos e Rituais

Este desejo partilhado por muitos outros imigrados é por demais co-
nhecido no contexto migratório português. De entre os vários tratamen-
tos que têm sido dados ao tema não pode deixar de ser lembrado o filme
Mortinho por Chegar a Casa, comédia que Carlos Silva e George Sluizer
realizaram em 1996. Através da história de um jovem imigrado português
nos Países Baixos, que após a morte ocorrida por acidente não consegue
gozar o descanso eterno por se encontrar enterrado fora da sua terra natal,
é equacionada a dinâmica migratória entre o local de origem e de destino,
problematizando o desejo de regresso à terra. «A geografia do lugar, en-
quanto elemento identitário, continua a ser determinante» (Castro 2013).
Este assunto tem demonstrado uma continuada importância. A ob-
servação dos factos e a documentação existente, nomeadamente a que
consta dos acervos notariais, em particular a que diz respeito aos testa-
mentos realizados em situação de migração, dá conta de quanto em vida
são feitos planos de tentar dar continuidade e concretizar vontades (Neno
1989).
Uma importante reivindicação dos delegados participantes nas reu-
niões do Conselho das Comunidades Portuguesas 2 incide sobre a pro-
blemática do repatriamento em caso de morte. Assim, foi negociado pelo
Instituto de Apoio à Emigração (uma das duas Direções-Gerais que então
integrava a Secretaria de Estado da Emigração no Ministério dos Negó-
cios Estrangeiros) um acordo com instituições seguradoras, prevendo as
modalidades de seguro voluntário para transporte de corpos de imigran-
tes para Portugal.
Não teve seguimento uma recomendação emitida pelos delegados no
II Conselho das Comunidades (Santa Maria da Feira, 1983) em que o
correspondente encargo fosse assumido pelo Estado português; mas é
significativo que um assunto dessa natureza tivesse sido inscrito na Sec-
ção «Regresso e Reinserção», o que traduz a identificação feita pelos emi-
grantes, entre o repatriamento em caso de morte e uma situação de «úl-
timo regresso» (Rocha-Trindade 1989).
Desde longa data existem empresas funerárias especializadas nesta mo-
dalidade de serviços. Hoje, totalmente clarificada a situação em termos

2
O Conselho das Comunidades criado em 1980 (Decreto-Lei n.º 373/80, de 30 de
agosto) materializa uma intenção pós-revolucionária de passar a considerar de igual modo
tanto os que residem no país como os que tendo emigrado residem fora dele. Esta nova
conceção procurava dar lugar a uma verdadeira participação de todos os portugueses nas
decisões políticas que viessem a ser tomadas, muito em especial as que respeitassem di-
retamente a estes últimos (Rocha-Trindade 2014).

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A visibilidade da morte em Portugal

Figura 7.1 – Plano de funeral IRMAF Figura 7.3 – Agência funerária


(Rio de Janeiro, Brasil) Amadeu Andrade
& Filhos, Lda.
(Castro Daire, Viseu)

Figura 7.4 – Agência Funerária


do Terreiro, Lda.
(Penacova, Coimbra)

Figura 7.2 – Residências funerárias


Alfred Dallaire
(Montreal, Canadá)

Figura 7.5 – Pompes Funèbres, E. F. G.


(Paris, França)

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Movimentos, Espíritos e Rituais

Figura 7.6 – Lápide aposta em Figura 7.7 – Placa que refere os


campa do cemitério de laços familiares e
Santa Bárbara de Nexe, emocionais com um neto
Faro. Leia-se: «Ganhei imigrado na Argentina.
com a liberdade/Meu Cemitério de Santa
regresso a Portugal» Bárbara de Nexe, Faro

das responsabilidades seguradoras,3 cujas cláusulas são difundidas pelos


media tanto nas comunidades portuguesas como em regiões do país com
fortes taxas de emigração, os potenciais utilizadores a elas podem facil-
mente recorrer, se necessário. A publicidade das agências que se ocupam
das muitas etapas que integram o ritual funerário dá conta da sua exis-
tência, procurando atrair os que necessitam de utilizá-las.
Existe uma predisposição emocional para que, prematuramente, sejam
assumidos os encargos relativos ao transporte dos migrantes falecidos no

3
Um anúncio publicado no jornal Presença Portuguesa (Paris) ilustra as cláusulas destes
seguros: «Ao seu serviço Império a sua seguradora. Para resolver um problema premente
na Comunidade Portuguesa em França, a companhia de seguros Império propõe-lhe o
seguro de despesas de funeral. Por 300 Frs anuais, a Império garante-lhe: as despesas de
funeral para Portugal para toda a família, que inclui o casal e filhos com menos de 18
anos (a idade limite de adesão é de 60 anos, o seguro de grupo acaba automaticamente
aos 65 anos); em caso do corpo ser inumado em França o limite de custo é de 30 000
Frs; uma viagem de avião ida e volta para acompanhar o falecido a Portugal, ou duas
viagens de regresso; uma viagem de avião ida e volta para assistir em Portugal ao funeral
dos pais, esposa(o) ou filhos. Data do efeito do contrato: no caso de falecimento por aci-
dente, a partir de 1 do mês seguinte à adesão; no caso de falecimento por doença: a partir
do 6.º mês seguinte à adesão» (Presença Portuguesa, novembro de 1987).

154
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A visibilidade da morte em Portugal

estrangeiro de forma a assegurar a sua última morada em Portugal; da


mesma forma, não se estranhará que a um qualquer indicador relacio-
nado com a emigração apareça visivelmente aposto em muitos cemité-
rios.
As visitas que a eles possam ser feitas em qualquer região do país,
muito em especial na zona centro e na zona norte, tanto em espaço ur-
bano de média e grande dimensão como numa pequena aldeia, podem
revelar a presença do fator migratório no âmbito da realidade social e
cultural onde se encontram inseridos.
As diferentes formas por intermédio das quais tal facto se apresenta,
desde os talhões de ocupação mais antiga aos mais recentes, ilustram de-
cénios de partidas e de regressos de portugueses e evocam destinos dife-
renciados.4
A correspondência que existe entre as origens de onde partiram emi-
grantes e os destinos para onde posteriormente se dirigiram desenha nos
cemitérios uma geografia de diversas «pertenças bipolares». São disso
exemplo o Brasil e a França, que asseguram uma presença visível em mui-
tos deles. A referência a outros é quase inexistente.
Recorrendo à localização de espaços anteriormente visitados em «tra-
balho de campo» serão em seguida assinalados casos que ilustram o que
tem vindo a ser dito e que, embora sem enumerar a totalidade das situa-
ções existentes, pelo menos ajudam a melhor compreender o tema abor-
dado. Seria impossível fazê-lo de outro modo por falta de registos nacio-
nais, regionais ou locais, que permitissem obter um conhecimento prévio
desta realidade antes de procurar conhecê-la no terreno.
Em consequência tornou-se necessário realizar uma continuada pes-
quisa que permitisse através de indagações sistemáticas esclarecer o as-
sunto – assunto que não é em regra nem do interesse geral nem do dos
residentes. «Informadores especializados» ajudaram a encontrar o que
era procurado: autarcas, agentes funerários, residentes que tendo perdido
um familiar próximo ou um conterrâneo amigo no estrangeiro conhe-
ciam, por experiência própria, a situação acima equacionada.
Correspondendo a regiões já delimitadas (Norte e Centro-Norte)
foram escolhidos intencionalmente cemitérios que integravam marcas
exteriores de pertença de alguns dos que tinham emigrado tanto para o
Brasil como para França, cobrindo um período que se estende desde o
século XIX à atualidade.

4
Já no fim do século XIX, Oliveira Martins, referia no capítulo «A emigração portu-
guesa», Buenos Aires como destino da emigração algarvia (Martins 1956).

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Movimentos, Espíritos e Rituais

Figura 7.8 –Mausoléu da família Mendes de Oliveira


Castro, cemitério de Fafe, Braga

A forma assumida individualmente nos locais onde se encontram os


restos mortais de antigos emigrantes revela de imediato o ideal de uma
época tanto no sentir como no concretizar. A arquitetura de alguns jazi-
gos revela o maior sucesso obtido em vida pelos seus proprietários; a
tumba ou a lápide correspondem à prática geral que não evidencia uma
posição social distinta.
Os exemplos que se seguem situam-se na Região Entre Douro e
Minho. Fafe (Braga), considerada capital da emigração para o Brasil,5 re-

5
Recuperando o passado histórico, a dor e o sucesso da emigração de fafenses em di-
reção ao Brasil constituem uma permanência na política local desenvolvida pelo muni-
cípio. Com uma regularidade mantida desde há anos, tal facto tem vindo a ser tema de
eventos culturais de vária natureza e amplitude. Citam-se: a «Travessia» (2013) um per-
curso que mobilizou muita gente fazendo apelo à memória dos que mais recentemente
tinham emigrado clandestinamente para a Europa; o grande espetáculo «Saudades de fu-
turo» (2014) que envolveu um número significativo de atores amadores oriundos do con-
celho e a exposição «Marcas dos Brasileiros em Fafe» (2015).

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A visibilidade da morte em Portugal

velam significativas marcas da presença dos que tendo para lá emigrado


mantiveram um forte laço com a origem. De forma visível contribuíram
para o engrandecimento e progresso da arquitetura local (moradias apa-
laçadas, jardim público, polos industriais e teatro-cinema) e ainda hoje
lembrá-los se reveste de grande relevo e causa profunda emoção. No Ce-
mitério Municipal de Fafe, assume particular destaque o Mausoléu dos
Mendes de Oliveira Castro, «Brasileiros de Torna-Viagem», naturais da-
quela cidade que, residindo então no Rio de Janeiro, o mandaram cons-
truir para ali sepultar sua mãe. É proeminente a inserção naquele espaço
e como curiosidade assinale-se a evidência dos símbolos maçónicos en-
quanto elementos decorativos.
Em Santo Tirso (Porto) destaca-se a majestade do jazigo do conde de
São Bento (1807-1893), colocado ao meio do claustro da igreja, mandado
erigir por seu sobrinho e herdeiro José Luís de Andrade. Natural dessa
cidade tinha partido para o Brasil apenas com 11 anos e aí desenvolveu
intensa atividade comercial, que o fez granjear grande fortuna. Com 67
anos, regressou definitivamente à origem, onde se dedicou à atividade
industrial e comercial.
Os seus sentimentos filantrópicos conduziram-no a realizar benefícios
significativos no âmbito da cidade que o viu nascer, entre os quais se des-
tacam duas escolas, um hospital, a cedência de terrenos que possibilita-
ram a abertura de novas ruas e o restauro da Capela do Senhor dos Pas-
sos. O título de visconde foi-lhe concedido em 1881 por D. Luís, que o
elevou a conde cinco anos depois. Deixou expressa em testamento a von-
tade de construir um estabelecimento fabril na própria vila. No decorrer
do século XX a empresa cresceu e em 1919 já empregava perto de 2000
trabalhadores, tendo tido início nos anos 40 o apoio social (construção
de um bairro operário) que os viria a contemplar.
O cemitério de Agramonte (1855), situado na cidade do Porto, no
Bairro de Cedofeita, revela uma ocupação de prestígio que atraiu o inte-
resse de personalidades que pela sua posição e capacidade económica aí
desejavam permanecer ad eternum. Dividido em quatro partes, só uma
era de natureza civil porque as outras pertenciam a três grandes Ordens
religiosas (Ordens Terceiras do Carmo, de São Francisco, e da Trindade).
Tendo como propósito a organização da cidade no que respeita ao de-
senvolvimento de ações caritativas, eram por elas priorizadas a manuten-
ção da saúde pública e o enquadramento post mortem proporcionando a
quem não tivesse possibilidades económicas um enterro digno. A im-
portância da obra acima referida, era possibilitada não só pela regular
contribuição que os associados prestavam como também por contribui-

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Movimentos, Espíritos e Rituais

Figura 7.9 – Estátua do conde de Ferreira, cemitério de Agramonte, Porto

ções monetárias esporádicas, algumas de grande vulto. De entre os mui-


tos que se encontram nesta última categoria aparecem os «Brasileiros de
Torna-Viagem», que através da ligação estabelecida com as Ordens ace-
diam a meios sociais prestigiados que lhes possibilitavam um espaço de
afirmação.
Várias famílias ilustres do Porto possuem aqui capelas tumulares com
esculturas de reconhecidos artistas.
O jazigo do conde de Ferreira, tomado como referência, constitui um
paradigma da arquitetura funerária da época. A estátua deste filantropo,
da autoria do grande escultor Soares dos Reis, ocupa uma posição central
na área de terreno que a envolve.
Joaquim Ferreira dos Santos (conde de Ferreira) nasceu em 1782 e veio
a morrer em 1866 no Porto. Filho de pequenos lavradores da região do
Douro, parte para o Brasil ainda jovem, como o fizeram muitos outros no
seu tempo. Dedicou-se à atividade comercial e obteve grande sucesso. De-
votado apoiante de D. Maria II, regressa à pátria e fixa residência no Porto.
A sua nobilitação decorre em várias etapas, tendo-lhe sido concedido pri-
meiro o título de barão (1842); no ano seguinte a mesma rainha eleva-o
a visconde, a que se segue em 1850 a atribuição do título de conde.
À sua figura estão associadas as 120 escolas e respetivas residências para
os professores que nelas lecionavam – ação de importância ímpar no do-

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A visibilidade da morte em Portugal

mínio da instrução pública. É-lhe ainda devida a construção do Hospital


dos Alienados e interessante será conhecer as determinações que constam
do seu testamento.
José António de Sousa Basto (1805-1890), conde da Trindade, partiu
para o Brasil onde se dedicou à vida mercantil na firma Amorim & C.ª,
que aí criou com outros sócios em 1823 (e que duraria até 1846). Depois
de ter obtido uma rápida e crescente prosperidade regressou a Portugal,
em 1850. Os vinte e sete anos de trabalho naquele país permitiram-lhe
amealhar uma considerável fortuna. Tendo vindo a fixar residência no
Porto, comprou na Praça Carlos Alberto o palacete dos viscondes de Bal-
semão. Ainda emigrante no Brasil, já se afirmava como benfeitor da
Ordem da Trindade. Por decreto de 24 de julho de 1840 foi feito cavaleiro
da Ordem de Cristo em atenção à sua filantrópica proteção aos emigra-
dos, e sete anos depois nomeado comendador e mais tarde feito prior
efetivo, por unanimidade – tudo devido à sua rasgada iniciativa em prol
da construção do Hospital da Trindade (1852). Foi agraciado, pela rainha
D. Maria II, com o título de visconde da Trindade e, pelo rei D. Luís,
com o título de conde da Trindade.
Sobre Adriano da Costa Ramalho (1836-1912), pouca informação foi
obtida e apenas é conhecida a referência à atividade que exerceu – co-
merciante – tudo levando a deduzir que dela tirou grande proveito.
O oferecimento da sua própria casa para instalar no Porto o Consulado
do Brasil revela a ligação emocional que com ele mantinha.
O jazigo onde o seu corpo repousa, também em Agramonte, constitui
uma peça arquitetónica de grande valor, e a decoração espelha algumas
etapas de vida que certamente considerou importantes: quatro esculturas
dão corpo ao comércio, à agricultura, à Europa e ao Brasil, representado
por um índio. O monumento é da autoria de António Almeida da Costa
(canteiro ornatista) que com o pai José Joaquim Teixeira Lopes (estatuário
e ceramista) fundou a Fábrica das Devesas.
Lino Henriques Bento de Sousa (1857-1921), conde de São Tiago de
Lobão, foi um emigrante de origens humildes que tendo-se fixado em
Santos, no Sul do Estado de São Paulo (Brasil), alcançou fortuna na ges-
tão de uma grande casa comercial. São de assinalar as suas obras de be-
nemerência deixadas tanto no país de origem como no país para onde
emigrou. Construiu a suas expensas um edifício escolar em Lobão, res-
taurou a igreja matriz de Oliveira de Azeméis, num projeto liderado pelo
grande Bento Carqueja (professor, jornalista e benemérito). A sua ação
estendeu-se a outras terras de que são exemplo o abastecimento de água
à população e o restauro da igreja matriz em Oliveira de Azeméis.

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Movimentos, Espíritos e Rituais

Figura 7.10 – Jazigo de Adriano Costa Ramalho, cemitério de Agramonte,


Porto, e detalhes das estátuas que fazem alusão ao comércio,
à agricultura, à Europa e ao Brasil

A Ordem Terceira do Carmo e a Santa Casa da Misericórdia do Porto


por ele contempladas beneficiaram as áreas da saúde, assistência social e
ensino. O seu monumental mausoléu, em estilo neoclássico, situa-se no
cemitério de Agramonte. Foi construído com pedras importadas de Itália
e levou vários anos a ser erguido, sendo considerado uma referência nos
estudos sobre arte fúnebre (Sousa 2000).
Queiriga (Vila Nova de Paiva, Viseu), localidade mineira da Beira In-
terior, veio a transformar-se por completo com a emigração, que ocorreu
a partir da segunda metade do século XX, passando por essa razão s ser
conhecida localmente como «vila francesa» dado o tão elevado número
de residentes que a trocaram por aquele país. O elevado volume dos que
se dirigiram maioritariamente para regiões bem delimitadas apresentam
uma fixação multissituada. A primeira, na Vallée de Chevreuse no Su-
doeste do país (Île-de-France), onde em Limours e Orsay reside o maior
aglomerado; a segunda a sul, Pau (departamento dos Pirenéus Atlânticos,

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A visibilidade da morte em Portugal

Figura 7.11 – Mausoléu em estilo neoclássico, dos condes de Santiago de Lobão,


cemitério de Agramonte, Porto, e detalhe da porta de entrada

na região da Aquitânia); por último, em Annecy (Rhône-Alpes) um novo


polo de fixação, situado a leste do país.
Uma nova realidade em que os espaços se tornaram mais curtos pos-
sibilitou a regularidade das relações entre os que estão dentro e os que
estão fora. As visitas anuais realimentam a interação que desde sempre

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Movimentos, Espíritos e Rituais

Figura 7.12 – Campas no cemitério de Queiriga, Viseu

existiu e possibilitam concretizar, ainda que temporariamente, a intenção


de um regresso imaginado – são prova disso as muitas construções que
renovaram totalmente a freguesia e são múltiplos os falecidos no estran-
geiro, cujos restos mortais repousam no seu cemitério. Neste espaço apa-
recem inscrições escritas em francês que denotam de imediato uma prévia
ligação àquele país. Em campas e gavetões é possível encontrar em pedra
negra polida modestas inscrições como as que se seguem: «À mon père»;
«À mon parrain regretté»; «Souvenir. La C. R. Française de Tyrosse»; «Pela
sua coragem e nossa amizade. A Sociedade R. Soliman e seus colegas de
trabalho».
A pouca distância no sentido sudoeste, Santa Cruz da Trapa (São
Pedro do Sul, Viseu), também terra de «Brasileiros», aloja no seu cemité-
rio alguns dos que continuam a estar bem vivos na memória coletiva
local. São referidos como ilustres, não só pelo muito que realizaram em
prol da localidade que os viu nascer, mas também porque as mansões

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A visibilidade da morte em Portugal

Figura 7.13 – Estátuas do comendador Agostinho Rodrigues Valgode


e de Joaquim Sobrinho, no jardim público de Santa Cruz
da Trapa, São Pedro do Sul, Viseu

que nela edificaram e o lugar mantido no cemitério mostra a força dos


laços emocionais estabelecidos.
Destacam-se os nomes do comendador Agostinho R. Valgode (1878-
-1945) e de J. Almeida Sobrinho (1903-1948) a quem também foram
construídas estátuas no jardim público.
Ainda na mesma região, em São Cristóvão de Lafões, que também se
situa no distrito de Viseu, encontram-se dois volumosos jazigos, estando
num deles escrito o nome de quem ali repousa (José Fernandes d’Al-
meida) que emigrou para o Rio de Janeiro em 1863, de onde regressou
em 1899. No outro, as inscrições são praticamente ilegíveis.
A inserção espacial dos monumentos fúnebres mesmo ao lado direito
da entrada principal que dá acesso à igreja do convento de São Cristóvão
de Lafões (São Pedro do Sul, Viseu) torna-os muito destacados.
Mais a sul, situada na Beira Litoral, centro do país, Mira de Aire (Porto
de Mós, Leiria), constituiu desde sempre um lugar de migrações tanto
internas como internacionais. A inserção geográfica no Maciço Calcário
Estremenho não oferecia grandes recursos naturais, pelo que a pastorícia
constituiu a base da atividade económica desenvolvida: a comercializa-

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Movimentos, Espíritos e Rituais

Figura 7.14 – Jazigo de José d’Almeida, junto à Igreja de São Cristóvão


de Lafões, São Pedro do Sul, Viseu

Figura 7.15 – Campa de Rosa Noivo, oferecida pelo seu filho residente
no Brasil, cemitério de Mira de Aire, Porto de Mós, Leiria

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A visibilidade da morte em Portugal

Figura 7.16 – Campa no cemitério de Santa Bárbara de Nexe, Faro.


Detalhes da ligação a França. Leia-se: «Ses Amis»,
«Association CS Portugais de Caen»

ção de mantas e tapetes só posteriormente transformada na grande in-


dústria de tapeçaria, que deu visibilidade a esta localidade.
Os seus naturais partiram para todo o mundo, muito especialmente
para as Américas em que Hartford (Connecticut, EUA) constituiu o prin-
cipal atrativo. Todos são recordados através do monumento erguido em
sua homenagem na entrada do cemitério. As quatro colunas de mármore
branco, evocando os continentes que os acolheram, procuram integrar
todos eles.
Para além disso, um familiar do Brasil inscreveu o seu nome na ho-
menagem que quis publicamente prestar à falecida mãe: «Repousam aqui
os restos mortais de Rosa Noivo. Oferecido pelo seu filho António
Amado Noivo, residente no Brasil.»

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Movimentos, Espíritos e Rituais

Mais a sul, no centro da região do Algarve, um dos lugares em que a


emigração assume um particular volume, Santa Bárbara de Nexe (Faro),
situada entre a serra e o mar em pleno Barrocal, foi intencionalmente es-
colhida como uma terra que viu partir muitos dos seus habitantes. As
numerosas lápides que os referem, no seu cemitério, dão conta da per-
centagem elevada que ocupam entre os que ali se encontram sepultados.
O cuidado revelado pela decoração do local dá conta da ligação existente
entre as famílias que continuam a residir na freguesia e os que tendo par-
tido regressaram definitivamente. Em todas as ruas deste espaço poderão
ler-se inscrições relacionadas com os países para onde emigraram, entre
os quais França tem um particular destaque.
E os visitantes que ali se deslocam referem entre eles a localização de
muitos dos que estão fora e a ligação parental com os que ali se encon-
tram sepultados.

Reflexões finais
Na tradição religiosa portuguesa, todo o ritual associado à morte é im-
portante e socialmente unificador; e o funeral de um emigrante falecido
no estrangeiro que quis vir a ser sepultado em Portugal merece especial
consideração, pelo significado simbólico do seu amor à terra e pela pena
de não ter tido, ao menos, a consolação de aí ter morrido.6
Neste sentido, considere-se o profundo significado espiritual da «úl-
tima visita» que um cortejo fúnebre proporcionou a um emigrante fale-
cido por acidente de trabalho no estrangeiro, levando o caixão à «sua»
casa, construída com o fruto do seu trabalho, antes de recolher à última
morada. «Seria muito injusto se, ao menos, ele não viesse aqui.» 7
Um tempo de permanência mais prolongada no estrangeiro e, em
muitos casos, a fixação que nele fizeram os seus descendentes, tem in-
troduzido modificações nas aspirações oportunamente expressas em
datas anteriores.

6
A necessidade de garantir o enterro do corpo na terra de origem e o papel presencial
do cadáver no rito funerário são reconhecidos em sociedades muito diversas (Thomas
1980, 259-267).
7
A. M. F. nasceu em Queiriga em 1942 e emigrou para França com a idade de 19 anos.
Casou-se na sua terra em 1966, continuando a viver sozinho no estrangeiro. Aí veio a fa-
lecer em 1977, num acidente de construção civil, profissão que sempre exerceu. Deixou
viúva e três filhos, residentes em casa própria, construída com o fruto do trabalho em
França. A sua presença continua a manter-se.

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A visibilidade da morte em Portugal

A visita ao país totalmente ocasional no quadro da migração transo-


ceânica, na qual o Brasil foi destacado, tomou forma regular no quadro
da migração europeia. Ao regresso pontual dos primeiros seguiu-se a per-
manência dos segundos e França constitui, mais uma vez, paradigma do
que vem sendo registado. No entanto vem perdendo a regularidade que
assumia, tornando mais espaçadas as deslocações familiares e, por con-
sequência, a visita aos cemitérios que por essa altura era realizada.
A aceitação da cremação pela Igreja Católica, que muitas vezes consti-
tuiu razão maior para que tal opção não fosse tomada, alterou o compor-
tamento que os vivos têm desenvolvido relativamente à morte. Uma outra
forma de transporte possível – o transporte das cinzas – poderia vir a ser
tomada, embora tal não aconteça, por enquanto, com frequência.
A emigração que teve o Brasil como principal destino ocorreu numa
época em que o Romantismo se estendia a ideologias e a práticas de vida
diária e se projetava para além da morte, o que é visível através da arte
funerária ainda hoje bem patente em muitos cemitérios.
A capacidade económica de muitos «Brasileiros de Torna-Viagem» pos-
sibilitou a sua lembrança através de magníficas peças de arte funerária
produzidas por grandes canteiros e exímios escultores.
O elevado custo que representava ficar depositado em espaços de pres-
tígio e o dar relevo ao local ocupado só se tornavam possíveis a quem
para tal tivesse capacidade económica e foram relativamente poucos os
que conseguiram fazê-lo. A inserção de motivos ornamentais traduzia a
opulência do projeto fúnebre.
A atividade profissional que mais fez enriquecer os imigrantes portu-
gueses no Brasil foi, como se sabe, o comércio e talvez por isso mesmo
tivessem sido os comerciantes regressados os que maior visibilidade im-
primiram tanto em vida como após a morte.
As suas disposições testamentárias dão conta das respetivas referências
éticas e as vontades que expressaram por escrito traduzem os compro-
missos ditados pela sua consciência. Tais disposições, que assumiram um
carácter restrito, quase não encontram paralelo no âmbito da migração
intraeuropeia, em que a transmissão de vontades tem vindo a fazer-se
em regra de modo direto.
França que, como tem sido dito, proporcionou uma nova articulação
geográfica entre a partida e a chegada conduzindo a uma frequência de
deslocações que permitiram não só a permanência como em muitos casos
intensificaram os contactos. A acentuada presença que agora ocupam os
mortos que a ela estiveram ligados nos cemitérios portugueses – os que
morreram naquele país ou no decurso da viagem entre a origem e o des-

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Movimentos, Espíritos e Rituais

Figura 7.17 – Jazigo de conde Figura 7.19 – Campa no cemitério


da Trindade, cemitério de Santa Bárbara
de Agramonte, Porto de Nexe, Faro

Figura 7.18 – Campa no cemitério


de Santa Bárbara
de Nexe, Faro

Figura 7.20 – Campa no cemitério


de Santa Cruz da Trapa,
São Pedro do Sul

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A visibilidade da morte em Portugal

tino – é reveladora de uma prática que se instituiu numa época bem pre-
cisa.
Embora o nível de vida dos que venceram através da emigração tenha
sido diferente em número – de forma muito mais restrita no Brasil e
muito mais alargada em França –, as capacidades económicas obtidas
pelos elementos de cada um dos dois grupos possibilitaram concretizar,
embora de forma diferente, os respetivos desígnios tanto em vida como
depois da morte.
A homenagem funerária ao «Brasileiro» coloca-o numa posição central
e circunscreve a sua figura; a do «Francês» reflete a ligação social e familiar
que teve em vida através da intenção de colegas de trabalho, de vida as-
sociativa ou de lazer que se juntam às que expressam as relações familia-
res.
A ligação identitária que se mantém manifesta-se através das marcas
exteriores que dela dão conta: monumentos de grande sumptuosidade
com assinatura de grandes arquitetos ou elementos inovadores apostos
em campas, cuja diversidade (corações, molduras, fotografias) demonstra
a criatividade individual específica.

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Movimentos, Espíritos e Rituais

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Parte III
Morte, migração e saúde
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Violeta Alarcão
Filipe Leão Miranda
Elisa Lopes
Rui Simões

Capítulo 8

Viver a morte em Portugal:


atitudes de portugueses e diferentes
grupos de imigrantes face à morte
Introdução
Nas últimas décadas, Portugal consolidou-se como um país de destino
para pessoas de diversas origens – entre 2001 e 2011 o número de estran-
geiros em Portugal duplicou (Instituto Nacional de Estatística 2012). No
entanto, e apesar do interesse suscitado pela recente condição de Portugal
enquanto país de imigração e de toda a investigação realizada nesse âm-
bito (Bastos e Bastos 2006; Machado 2002; Malheiros 1996), têm sido
negligenciadas algumas questões importantes relacionadas com os esta-
dos de sofrimento e morte – «estados de aflição» – dos imigrantes.
A morte, em particular, é um tema difícil mas crucial que permanece
pouco explorado nos estudos sobre imigração.
Como é que os imigrantes percecionam a morte e a incorporam na con-
ceptualização da diáspora? Existirá uma forma específica de morrer para
os diferentes grupos de imigrantes? E os portugueses, como olham para a
morte e como esta perceção se diferencia da dos imigrantes?
Numa sociedade ocidental em que a morte se tornou um tabu (Ariès
1989), este distanciamento face ao último rito de passagem da vida per-
tence à esfera do mito e do preconceito – a invisibilidade da morte. No
entanto, para os próprios imigrantes, é uma realidade com que têm de
lidar e que frequentemente se interliga com o ambicionado regresso a
casa e levanta questões como: Enterrar o corpo no país de acolhimento?
Transladar o corpo para o país de origem? Cremar o corpo e enviar as
cinzas para o país de origem? Cremar o corpo e dividir as cinzas pelos
dois lugares? As decisões, apesar de individuais, são tomadas no seio de
tradições culturais. A morte, como fenómeno social, deve por isso ser
encarada não apenas como um momento no tempo, mas como um pro-

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Movimentos, Espíritos e Rituais

cesso, que envolve estados emocionais específicos e que desencadeia o


uso de rituais para lidar com a inevitável angústia.
Ainda que a morte seja um problema que todos os seres humanos
devem enfrentar, existe uma grande variedade de culturas (e variações ao
longo do tempo) nas perceções acerca da «boa» e da «má morte» e de
quais os procedimentos esperados de luto. Algumas destas diferenças
podem inclusive ocorrer não entre culturas e períodos históricos, mas
entre grupos de pessoas dentro de uma mesma cultura. Esta variabilidade
acarreta ainda uma série de implicações para os envolvidos no planea-
mento e prestação de serviços de saúde para as pessoas em final da vida.
Como tal, devem ser entendidas num contexto estrutural, político e eco-
nómico (Seale e Van der Geest 2004).
No âmbito do projeto «A Invisibilidade da Morte nas Populações
Migrantes em Portugal: Vulnerabilidades e Gestões Transnacionais»
(PTDC/CS-ANT/102862/2008), dedicado à investigação dos níveis
múltiplos que a morte toca, desde os mais simbólicos aos mais práticos,
em imigrantes do Bangladesh, Brasil, China, Cabo Verde e Guiné-Bis-
sau residentes em Portugal, um dos objetivos estabelecidos visava ex-
plorar as atitudes perante a morte destas populações. Para além de uma
vasta recolha de material etnográfico, inexistente sobre este tema, foi
desenvolvido um inquérito-piloto de pequena escala, cujos resultados
exploratórios relativos à ansiedade perante a morte serão aqui apresen-
tados.

A morte nas sociedades contemporâneas


A experiência contemporânea da morte é fortemente influenciada pelo
aumento da esperança de vida e simultaneamente pela transformação no
padrão de mortalidade e morbilidade das sociedades modernas (Seale
2000). Por outro lado, a gestão da morte profissionalizou-se e institucio-
nalizou-se, como se pode observar nomeadamente pela crescente pro-
porção de mortes que ocorrem nos hospitais (Seale 2010). Nas últimas
décadas, a institucionalização do processo de morrer tem sido contestada
por movimentos sociais, ao mesmo tempo que a medicina forense tem
lutado pela legitimidade profissional na fronteira entre a medicina con-
vencional e o sistema jurídico. Os médicos oferecem scripts culturais cada
vez mais flexíveis tornando o fim de vida socialmente significativo e acen-
tuando a ambiguidade existencial da morte. Ao invés da crença na vida
depois da morte, a tendência é para uma crença centrada em intervenções
médicas que salvem vidas, opções de tratamento para dor, e a morte em
unidades especializadas (Timmermans 2005).

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Viver a morte em Portugal

Em Portugal, os dados do Instituto Nacional de Estatística fornecem


indicadores sobre o local da morte e a sua evolução ao longo dos anos,
permitindo concluir que atualmente mais de 60% dos óbitos ocorrem
em ambiente hospitalar, uma tendência que se acentuou nos últimos de-
cénios (Osswald, 2013), e que tem sido alvo de investigações científicas
(Feijó et al. 1985; Machado et al. 2011; Ferreira da Silva 2012).

A ansiedade perante a morte


As práticas e as representações contemporâneas da morte são influen-
ciadas por uma série de fatores, tais como a divisão do trabalho, as mi-
grações, a racionalidade, a desigualdade, as tecnologias da informação, a
religião e fluxos globais. Estes fatores ajudam a explicar as variações re-
gionais, de classe ou étnicas, numa dada sociedade, como também as se-
melhanças e diferenças entre sociedades. Na morte, como na vida, veri-
ficam-se padrões globais e variações persistentes e emergentes de género,
classe, etnia e religião (Walter 2012).
A investigação conduzida acerca da ansiedade perante a morte não tem
apresentado resultados consistentes. Os fatores tendencialmente associa-
dos ao fenómeno da ansiedade perante a morte são o género (maior an-
siedade nas mulheres), a idade (menor ansiedade nos idosos), a educação
(relação negativa) e a religião (relação negativa). Num estudo conduzido
em Portugal, verificou-se uma maior ansiedade perante a morte em mu-
lheres, e uma tendência para uma maior ansiedade nos indivíduos casados
e menor ansiedade naqueles com um curso superior (Santos 1999).

Foco e metodologia
Foi implementado um estudo transversal de base populacional com
adultos imigrantes naturais do Bangladesh, Brasil, Cabo Verde, China e
Guiné-Bissau, residentes na cidade de Lisboa. Estes grupos de imigrantes
constituem bons exemplos da heterogeneidade da imigração portuguesa.
Os portugueses, como sujeitos em interação no país de acolhimento, foram
igualmente alvo deste estudo, de modo a identificar os modos como o so-
frimento e a morte são conceptualizados em Portugal. Foram deste modo
também inquiridos nativos portugueses adultos, de ambos os sexos, com
a mesma faixa etária e residentes nas mesmas áreas geográficas.
Recorreu-se ao método de amostragem de base geográfica com utili-
zação de entrevistadores de acesso privilegiado à população-alvo (PAI –
Privileged Access Interviewer Method), mais especificamente a membros das
comunidades imigrantes em estudo (Dunn e Ferri 1999) ou falantes das
respetivas línguas e dialetos.

175
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Movimentos, Espíritos e Rituais

Através de entrevistas realizadas a adultos imigrantes e portugueses re-


sidentes na cidade de Lisboa, pretendeu-se identificar fatores associados
à ansiedade perante a morte, tais como sociodemográficos (idade, sexo,
nível educacional, estado civil), culturais (religião, país de origem e tempo
de residência), de saúde (autoavaliação da qualidade de vida e da saúde
mental) e atitudes perante a morte (o desejo de ter alguém presente no
momento da sua morte, de ter uma cerimónia de preparação do corpo,
de ter uma cerimónia fúnebre, e aceitar a doação dos seus órgãos), e ana-
lisar mais concretamente a relação entre país de origem, religião e a an-
siedade face à morte.

Participantes
A dimensão total da amostra foi calculada para cerca de 500 imigrantes
(100 por comunidade) e 100 nativos portugueses, para um intervalo de
confiança de 90%, e um erro amostral de 8% por comunidade (migrante
e nativa) e de 4% para o total das comunidades.
Os indivíduos selecionados eram incluídos no estudo se preenchessem
os seguintes critérios de inclusão:
1) adultos de ambos os sexos com 18-65 anos de idade;
2) nascidos no Bangladesh, Brasil, Cabo Verde, China, Guiné-Bissau
e Portugal;
3) residentes nas freguesias da Ameixoeira, Anjos, Graça, São Jorge
de Arroios, e Socorro (escolhidas por serem as freguesias com resi-
dentes de todos os grupos em estudo) da cidade de Lisboa;
4) dessem o seu consentimento informado oralmente para participar
no estudo;
5) fossem capazes de responder às perguntas.
A participação no estudo foi voluntária, anónima e confidencial, e
todos os participantes tiveram acesso a um consentimento informado,
redigido em inglês ou em português. O estudo foi aprovado pela Comis-
são de Ética da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa e pela
Comissão Nacional de Proteção de Dados.

Procedimentos
O «Inquérito de Saúde e Perspetivas perante a Morte» foi desen-
volvido entre novembro de 2012 e fevereiro de 2013, tendo sido re-
colhido, através de entrevista presencial ao próprio, um vasto con-
junto de dados, incluindo sociodemográficos e do estado de saúde,
o Mental Health Inventory (MIH-5), atitudes face à própria morte e a

176
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Viver a morte em Portugal

Death Anxiety Scale (DAS). As variáveis sociodemográficas incluíram,


entre outras, o sexo, a idade, os anos de escolaridade, o estado civil, a re-
ligião e o grau de praticante, o país de origem e os anos de residência em
Portugal. O estado de saúde foi obtido pelo número de doenças crónicas
reportadas (diabetes, hipertensão arterial, colesterol e insuficiência car-
díaca), pelo índice de massa corporal (IMC) obtido através do autorrelato
do peso e da altura, e o consumo de tabaco. Foi ainda pedido aos parti-
cipantes que classificassem a sua qualidade de vida, através de uma escala
que variava entre «muito má» e «muito boa», para a obtenção da sua au-
toperceção da qualidade de vida.
O Inventário de Saúde Mental (MHI-5) – versão portuguesa (Pais Ri-
beiro 2001) é composto por cinco questões que avaliam a ansiedade, a
depressão, a perda de controlo emocional/comportamental, o afeto po-
sitivo e os laços emocionais. A resposta a cada item é dada numa escala
ordinal com 6 valores entre «sempre» e «nunca». Scores mais elevados, ob-
tidos através da soma, que varia entre 0 e 100, indicam melhor saúde men-
tal. A escala indica a ocorrência de «provável sofrimento psicológico» nas
quatro semanas que precederam a entrevista, em que um score de MHI
≤ 52 indica indivíduos com «provável sofrimento psicológico» e um score
de MHI > 52 indivíduos «sem provável sofrimento psicológico». Note-
-se que o MHI-5 é uma medida que resulta da utilização de uma compo-
nente de escala desenvolvida especificamente para estudos de base popu-
lacional (SF-36) e não para diagnóstico clínico (WHO 2003).
As atitudes face à «própria morte» incluíram o desejo de ter alguém
presente no momento da sua morte, de ter uma cerimónia de preparação
do corpo, de ter uma cerimónia fúnebre, de aceitar a doação dos seus
órgãos, da utilização de meios para apressar a sua morte (eutanásia), e da
utilização prolongada de meios de suporte de vida. As práticas e repre-
sentações face à «morte do outro», ou seja, à experiencia da perda de uma
pessoa querida (Ariès 1989), ainda que também tenham sido recolhidas,
não foram aqui abordadas.
A ansiedade perante a morte foi obtida através da Escala de Ansiedade
perante a Morte (DAS) – versão inglesa para os imigrantes do Bangladesh
(McMordie 1979; Templer 1970), Portuguesa para os restantes grupos
(Donovan 1993; Santos 1999), escala de tipo Likert com 5 valores, que
variam entre «discordo completamente» e «concordo completamente».
Os quinze itens avaliam a ansiedade cognitiva perante a morte, a an-
siedade perante a fatalidade da doença, a ansiedade temporal e a intrusão
da morte, e a sua soma varia entre 15-75. Scores mais elevados indicam
maior ansiedade perante a morte.

177
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Movimentos, Espíritos e Rituais

Análise dos dados


Após a análise descritiva da amostra, identificaram-se os fatores asso-
ciados à ansiedade perante a morte através de modelos lineares simples
e múltiplos (α = 0,05, software estatístico SPSSv21). Os modelos múlti-
plos foram sequencialmente ajustados às variáveis sociodemográficas, re-
ligião, MHI-5 e qualidade de vida, e atitudes perante a morte. Por fim,
realizou-se o modelo múltiplo incluindo todas as variáveis, recorrendo
ao método stepwise. Para todos os modelos (simples e múltiplos) foram
calculados os coeficientes da regressão linear, os valores p a 95% e o R2.

Resultados
Caracterização dos participantes
No total, foram entrevistados 769 indivíduos (taxa de participação:
89,5%), dos quais 99 portugueses, 262 bangladeshianos, 105 brasileiros,
102 cabo-verdianos, 97 chineses, e 104 guineenses. Verificaram-se dife-
renças estatisticamente significativas nas principais características socio-
demográficas dos participantes por país de origem (quadro 8.1).
Em todos os grupos, exceto nos bangladeshianos e nos guineenses, a
percentagem de mulheres entrevistadas foi superior à dos homens (grá-
fico 8.1).
A média de idades dos entrevistados rondava os 35 anos, sendo a idade
dos guineenses ligeiramente superior (média ± dp: 39 ± 12 anos) e a dos
bangladeshianos inferior (32 ± 7 anos). A maioria dos portugueses, ban-
gladeshianos e cabo-verdianos tinham entre 18-30 anos, e a maioria dos
brasileiros, chineses e guineenses entre 31-50 anos (gráfico 8.2).
A maioria dos entrevistados eram solteiros, com exceção dos chineses,
em que 71% eram casados.
Os bangladeshianos e os portugueses foram os que reportaram mais
anos de escolaridade (13±3 e 13±5 anos, respetivamente) e os cabo-ver-
dianos menos anos de escolaridade (9±4 anos).
Os bangladeshianos estavam havia menos anos em Portugal (3 ± 3,5 anos)
e os cabo-verdianos (11 ± 12 anos) e guineenses havia mais (11 ± 11 anos).
A pertença religiosa foi maior nos bangladeshianos (100%), guineenses
(96%), cabo-verdianos (89%) e brasileiros (85%) (gráfico 8.6). Os diferen-
tes grupos eram maioritariamente católicos, com exceção dos chineses,
em que 42% eram budistas, e dos bangladeshianos, em que 99% eram
muçulmanos (gráfico 8.7).
Pretendeu-se igualmente saber como é que os entrevistados avaliavam
a sua qualidade de vida, bem como estimar o seu «provável sofrimento

178
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Viver a morte em Portugal

Gráfico 8.1 – Distribuição por país de origem segundo o sexo (%)


100
14,5
90

80 37,5
52,0
70 61,0 58,8 60,6

60

50

40 85,5
62,5
30 48,0
39,0 39,4
41,2
20

10

0
Bangladeshianos Brasileiros Caboverdianos Chineses Guineemses Portugueses
(n = 92) (n = 105) (n = 102) (n = 97) (n = 104) (n = 99)

Mulheres Homens

Fonte: Inquérito de Saúde e Perspetivas perante a Morte, 2013.

Gráfico 8.2 – Distribuição por país de origem segundo o grupo etário (%)
100
1,1 10,5 16,7 10,3
90 17,3
24,2
80
49,1
70 32,4
58,1 52,6
60 31,3
52,9
50

40

30 49,8 51,0 44,4


20 37,1
31,4 29,8
10

0
Bangladeshianos Brasileiros Caboverdianos Chineses Guineenses Portugueses
(n = 262) (n = 105) (n = 102) (n = 97) (n = 104) (n = 99)

51-65 anos 31-50 anos 18-30 anos


p < 0,001
Fonte: Inquérito de Saúde e Perspetivas perante a Morte, 2013.

179
Quadro 8.1 – Características sociodemográficas dos participantes por país de origem

Portugueses Bangladeshianos Brasileiros Cabo-verdianos Chineses Guineenses Valor p


(n = 99) (n = 262)* (n = 105) (n = 102) (n = 97) (n = 104)

Sexo, n (%)
Masculino 39 (39,4) 224 (85,5) 41 (39,0) 49 (48,0) 40 (41,2) 65 (62,5)
< 0,001
Feminino 60 (60,6) 38 (14,5) 64 (61,0) 53 (52,0) 57 (58,8) 39 (37,5)
3
Idade, média ± dp 36,2 ± 14,6 32,2 ± 7,3 36,5 ± 10,4 4,3 ± 13,0 35,8 ± 10,4 39,0 ± 11,9 < 0,001
Idade, n (%)
Movimentos, Espíritos e Rituais

18-30 anos 44 (44,4) 130 (49,8) 33 (31,4) 52 (51,0) 36 (37,1) 31 (29,8)


31-50 anos 31 (31,3) 128 (49,1) 61 (58,1) 33 (32,4) 51 (52,6) 55 (52,9) < 0,001
51-65 anos 24 (24,2) 3 (1,1) 11 (10,5) 17 (16,7) 10 (10,3) 18 (17,3)

180
Estado civil, n (%)
08 Movimentos Cap. 8.qxp_Layout 1 11/02/17 15:48 Page 180

Solteiro/a 59 (59,6) 135 (51,9) 54 (51,4) 68 (66,7) 24 (25,0) 55 (53,4)


Casado/a 32 (32,3) 125 (48,1) 37 (35,2) 30 (29,4) 68 (70,8) 44 (42,7) < 0,001a
Divorciado/a 7 (7,1) 0 11 (10,5) 1 (1,0) 4 (4,2) 3 (2,9)
Viúvo/a 1 (1,0) 0 3 (2,9) 1 (1,0) 0 1 (1,0)

Anos de educação, média ± dp 13, 0± 4,8 13,4 ± 2,9 11,8 ± 2,8 9,6 ± 4,0 10,6 ± 3,5 10,0 ± 3,9 < 0,001
Nível educacional, n (%)
Ensino básico ou menos 25 (25,3) 42 (16,1) 30 (28,0) 50 (50,0) 45 (46,4) 51 (49,0)
Ensino secundário 16 (16,2) 88 (33,7) 57 (53,3) 32 (32,0) 34 (35,1) 34 (32,7) < 0,001
Ensino superior 58 (58,6) 131 (50,2) 20 (18,7) 18 (18,0) 18 (18,6) 19 (18,3)
Portugueses Bangladeshianos Brasileiros Cabo-verdianos Chineses Guineenses
Valor p
(n = 99) (n = 262)* (n = 105) (n = 102) (n = 97) (n = 104)

Ocupação, n (%)
Tem uma profissão 52 (52,5) 166 (63,6) 82 (78,1) 39 (38,6) 79 (81,4) 48 (46,2)
Estudante 24 (24,2) 10 (3,8) 2 (1,9) 21 (20,8) 3 (3,1) 18 (17,3)
Ocupa-se das tarefas domésticas 1 (1,0) 32 (12,2) 0 2 (2,0) 7 (7,2) 1 (1,0)
À procura do primeiro emprego 1 (1,0 3 (1,1) 0 2 (2,0) 0 1 (1,0) < 0,001b
Desempregado/a 12 (12,1) 40 (15,3) 18 (17,1) 31 (30,7) 3 (3,1) 31 (29,8)
Reformado/a 8 (8,1) 0 1 (1,0) 6 (5,9) 1 (1,0) 1 (1,0)
Outra situação 1 (1,0) 10 (3,8) 2 (1,9) 0 4 (4,1) 4 (3,8)

Profissão, n (%)
1. Quadros superiores da administração 1 (1,8) 18 (10,2) 1 (1,0) 0 0 0

181
pública, dirigentes e quadros
superiores de empresas
08 Movimentos Cap. 8.qxp_Layout 1 11/02/17 15:48 Page 181

NA
2. Especialistas das profissões 23 (41,8) 3 (1,7) 8 (8,2) 2 (3,0) 6 (7,8) 5 (7,1)
intelectuais e científicas
3. Técnicos e profissionais de nível 10 (18,2) 9 (5,1) 8 (8,2) 4 (6,1) 1 (1,3) 9 (12,9)
intermédio
4. Pessoal administrativo e similares 5 (9,1) 3 (1,7) 4 (4,1) 1 (1,5) 1 (1,3) 4 (5,7)
5. Pessoal dos serviços e vendedores 13 (23,6) 141 (80,1) 39 (40,2) 19 (28,8) 69 (89,6) 13 (18,6)
6. Agricultores e trabalhadores 0 0 0 0 0 0
qualificados da agricultura e pescas
7. Operários, artífices e trabalhadores 1 (1,8) 0 8 (8,2) 20 (30,3) 0 18 (25,7)
similares

Viver a morte em Portugal
Portugueses Bangladeshianos Brasileiros Cabo-verdianos Chineses Guineenses
Valor p


(n = 99) (n = 262)* (n = 105) (n = 102) (n = 97) (n = 104)

8. Operadores de instalações e 0 2 (1,1) 1 (1,0) 1 (1,5) 0 1 (1,4)


máquinas e trabalhadores
da montagem
9. Trabalhadores não-qualificados 2 (3,6) 0 28 (28,9) 19 (28,8) 0 20 (28,6)

Tempo de residência em Portugal,


média ± dp – 2,7±3,5 7,1 ± 4,6 11,0 ± 11,7 9,4 ± 6,6 10,9 ± 10,6 < 0,001
Movimentos, Espíritos e Rituais

Tempo de residência em Portugal, n (%)


≤ 1 ano – 140 (55,8) 6 (5,8) 13 (12,7) 14 (14,6) 21 (20,4)
2-5 anos – 74 (29,5) 40 (38,8) 29 (28,4) 19 (19,8) 21 (20,4)
< 0,001
6-15 anos – 33 (13,1) 53 (52,5) 39 (38,2) 47 (49,0) 30 (29,1)
4 (1,6) 4 (3,9)

182
> 15 anos – 21 (20,6) 16 (16,7) 31 (30,1)
08 Movimentos Cap. 8.qxp_Layout 1 11/02/17 15:48 Page 182

Religião, n (%)
Não 21 (21,2) 0 16 (15,2) 11 (10,8) 41 (42,3) 4 (3,8)
Sim 78 (78,8) 262 (100) 89 (84,8) 91 (89,2) 56 (57,7) 100 (96,2)
Católica 75 (96,2) 0 53 (60,2) 87 (96,7) 6 (10,9) 53 (53,0)
Ortodoxa 0 0 1 (1,1) 0 0 0
Protestante 0 0 3 (3,4) 1 (1,1) 0 3 (3,0)
Evangélica 0 0 26 (29,5) 0 0 8 (8,0)
Outra cristã 0 0 3 (3,4) 1 (1,1) 8 (14,5) 2 (2,0) < 0,001c
Muçulmana 3 (3,8) 258 (99,2) 0 0 0 33 (33,0)
Budista 0 0 0 0 41 (74,5) 0
Hinduísta 0 2 (0,8) 0 0 0 0
Outra não-cristã 0 0 2 (2,3) 1 (1,1) 0 1 (1,0)
Portugueses Bangladeshianos Brasileiros Cabo-verdianos Chineses Guineenses
(n = 99) (n = 262)* (n = 105) (n = 102) (n = 97) (n = 104) Valor p

Grau de praticante, n (%)


1. Muito pouco 32 (41,0) 166 (64,6) 28 (32,9) 22 (24,7) 3 (5,6) 13 (13,0)
2. Pouco 14 (17,9) 0 15 (17,6) 12 (12,0) 9 (16,7) 12 (12,0)
3. Nem pouco nem muito 15 (19,2) 4 (1,6) 25 (29,4) 29 (32,6) 23 (42,6) 24 (24,0) < 0,001
4. Muito 10 (12,8) 0 6 (7,1) 14 (15,7) 2 (3,7) 19 (19,0)
5. Muitíssimo 7 (9,0) 87 (33,9) 11 (12,9) 12 (13,5) 17 (31,5) 32 (32,0)

dp, desvio padrão; NA, não se aplica; * amostra superior com vista à articulação com o estudo «Avaliação do Acesso aos Cuidados de Saúde e Nível de Saúde dos Imi-
grantes do Subcontinente Indiano»; a juntando as categorias «divorciado/a» e «viúvo/a»; b ignorando as categorias «à procura do primeiro emprego» e «outra situação»;
c juntando as categorias «ortodoxa», «protestante» e «evangélica» à categoria «outra cristã» e a categoria «hinduísta» à categoria «outra não-cristã».
Fonte: Inquérito de Saúde e Perspetivas perante a Morte, 2013.

183
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Viver a morte em Portugal


08 Movimentos Cap. 8.qxp_Layout 1 11/02/17 15:48 Page 184

Movimentos, Espíritos e Rituais

Gráfico 8.3 – Distribuição por país de origem segundo o estado


civil (%)
2,9 1,0 4,2 1,0 1,0
100

90 10,5 16,7 10,3 17,3


24,2
80
29,4
48,1 35,2
70 32,3
42,7
60
70,8
50

40
66,7
30 53,4 59,6
51,9 51,4
20
25,0
10

0
Bangladeshianos Brasileiros Caboverdianos Chineses Guineenses Portugueses
(n = 262) (n = 105) (n = 102) (n = 97) (n = 104) (n = 99)

Viúvo/a Divorciado/a Casado/a Solteiro/a


Fonte: Inquérito de Saúde e Perspetivas perante a Morte, 2013.

Gráfico 8.4 – Distribuição por país de origem segundo o grau


de escolaridade (%)
100
8,3
90 18,7 18,0 18,6

80
50,2
70 32,7 58,6
32,0
35,1
60
53,3
50

40
33,7 16,2
30 50,0 46,4 49,0
20
28,0 25,3
10 16,1

0
Bangladeshianos Brasileiros Caboverdianos Chineses Guineenses Portugueses
(n = 262) (n = 105) (n = 102) (n = 97) (n = 104) (n = 99)

Ensino superior Ensino secundário Até ensino básico


p < 0,001
Fonte: Inquérito de Saúde e Perspetivas perante a Morte, 2013.

184
08 Movimentos Cap. 8.qxp_Layout 1 11/02/17 15:48 Page 185

Viver a morte em Portugal

Gráfico 8.5 – Distribuição por país de origem segundo o tempo


de residência em Portugal (média e desvio-padrão)
25

20
Anos em Portugal

15

11,0 10,9
10
9,4
7,1
5
2,7

0
Bangladeshianos Brasileiros Caboverdianos Chineses Guineenses
(n = 262) (n = 105) (n = 102) (n = 97) (n = 104)

p < 0,001

Fonte: Inquérito de Saúde e Perspetivas perante a Morte, 2013.

Gráfico 8.6 – Distribuição por país de origem segundo ter


ou não uma religião (%)
100

90

80

70 57,7

60 78,8
84,8 89,2
50 100 96,2
40

30
42,3
20

10 21,2
15,2 10,8 3,8
0
Bangladeshianos Brasileiros Caboverdianos Chineses Guineenses Portugueses
(n = 92) (n = 05) (n = 102) (n = 97) (n = 104) (n = 99)

Tem uma religião Sem religião


p < 0,001
Fonte: Inquérito de Saúde e Perspetivas perante a Morte, 2013.

185
08 Movimentos Cap. 8.qxp_Layout 1 11/02/17 15:48 Page 186

Movimentos, Espíritos e Rituais

Gráfico 8.7 – Distribuição por país de origem segundo a religião (%)


0,8 2,3 1,1 1,0 3,8
100
2,2
90 16,7

80 33,0
37,4
70

60 74,5 13,0

50 99,2 96,7 96,2


40

30 60,2 53,0
20 14,5
10
10,9
0
Bangladeshianos Brasileiros Caboverdianos Chineses Guineenses Portugueses
(n = 262) (n = 105) (n = 102) (n = 97) (n = 104) (n = 99)

Outra não-cristã Budista Muçulmana Outra cristã Católica


p < 0,001
Fonte: Inquérito de Saúde e Perspetivas perante a Morte, 2013.

psicológico» através da aplicação da escala Mental Health Inventory (MHI)


(quadro 8.2). A maioria dos bangladeshianos (71%), brasileiros (59%) e por-
tugueses (49%) qualificou a sua qualidade de vida como «Boa», enquanto
a maioria dos cabo-verdianos (60%), chineses (58%) e guineenses (62%)
como «Nem boa nem má». Estimou-se que 47% dos bangladeshianos, 38%
dos guineenses, 36% dos portugueses, 26% dos cabo-verdianos, 21% dos
chineses e 17% dos brasileiros viviam com «provável sofrimento psicoló-
gico», tendo como referência as quatro semanas antecedentes à entrevista.

Atitudes perante a morte e o morrer


Os grupos diferiram no que concerne às atitudes perante a própria
morte e relativas a procedimentos com o corpo. Os brasileiros e os por-
tugueses foram os mais favoráveis à doação de órgãos e à eutanásia, e, os
bangladeshianos, os menos favoráveis. Quanto à utilização prolongada
de meios de suporte de vida, em geral cerca de 1/4 dos participantes re-
portaram serem favoráveis, sem diferenças significativas entre os grupos
(gráfico 8.8).
Se pudessem escolher o local e a circunstância de morte, a maioria dos
entrevistados prefeririam morrer no país de nascimento (gráfico 8.9) e de

186
Quadro 8.2 – Autoavaliação da qualidade de vida e da saúde mental por país de origem
Portugueses Bangladeshianos Brasileiros Cabo-verdianos Chineses Guineenses
Valor p
(n = 99) (n = 262)* (n = 105) (n = 102) (n = 97) (n = 104)

Qualidade de vida, n (%)


1 – Muito má 1 (1,0) 1 (0,4) 1 (1,0) 6 (6,0) 0 4 (3,9)
2 – Má 4 (4,0) 1 (0,4) 3 (2,9) 7 (7,0) 8 (8,2) 12 (11,7) NA
3 – Nem boa nem má 32 (32,3) 7 (2,7) 30 (28,6) 60 (60,0) 56 (57,7) 64 (62,1)
4 – Boa 48 (48,5) 184 (70,5) 62 (59,0) 24 (24,0) 28 (28,9) 22 (21,4)
5 – Muito boa 14 (14,1) 68 (26,1) 9 (8,6) 3 (3,0) 5 (5,2) 1 (1,0)

MHI, média ± dp 62,0 ± 23,2 56,9 ± 12,5 70,7 ± 18,7 66,8 ± 21,7 67,6 ± 16,3 59,2 ± 24,3 < 0,001

MHI-52, n (%)

187
Sem possível sofrimento 63 (63,6) 139 (53,5) 84 (83,2) 74 (74,0) 77 (79,4) 64 (62,1)
08 Movimentos Cap. 8.qxp_Layout 1 11/02/17 15:48 Page 187

psicológico < 0,001


Possível sofrimento 36 (36,4) 121 (46,5) 17 (16,8) 26 (26,0) 20 (20,6) 39 (37,9)
psicológico

dp, desvio padrão; NA, não se aplica; * amostra superior com vista à articulação com o estudo «Avaliação do Acesso aos Cuidados de Saúde e Nível de Saúde dos Imi-
grantes do Subcontinente Indiano».
Fonte: Inquérito de Saúde e Perspetivas perante a Morte, 2013-
Viver a morte em Portugal
08 Movimentos Cap. 8.qxp_Layout 1 11/02/17 15:48 Page 188

Movimentos, Espíritos e Rituais

Gráfico 8.8 – Atitudes face à morte por país de origem: doação


de órgãos, eutanásia, suporte de vida (%)
90
77,8 82,5
80

70

60 56,9 56,7
51,5
50

40
45,2
27,3 28,6 30,4 26,8 26,8 27,9
30 26,5 25,8
19,8 21,2
20
9,6 9,5
10

0
Portugueses Bangladeshianos Brasileiros Caboverdianos Chineses Guineenses
(n = 99) (n = 262) (n = 105) (n = 102) (n = 97) (n = 104)

Doação de orgãos Eutanásia Suporte de vida

Fonte: Inquérito de Saúde e Perspetivas perante a Morte, 2013.

Gráfico 8.9 – Em que país preferiria morrer, por país de origem (%)
100

90

80

70

60

50

40

30

20

10

0
Portugueses Bangladeshianos Brasileiros Caboverdianos Chineses Guineenses
(n = 99) (n = 262) (n = 105) (n = 102) (n = 97) (n = 104)

Indiferente Outro No país de origem Em Portugal

Fonte: Inquérito de Saúde e Perspetivas perante a Morte, 2013.

188
08 Movimentos Cap. 8.qxp_Layout 1 11/02/17 15:48 Page 189

Viver a morte em Portugal

Gráfico 8.10 – Em que circunstância preferiria morrer, por país


de origem (%)
100

90

80

70

60

50

40

30

20

10

0
Portugueses Bangladeshianos Brasileiros Caboverdianos Chineses Guineenses
(n = 99) (n = 262) (n = 105) (n = 102) (n = 97) (n = 104)

Indiferente Outra Acidente


Doença prolongada Doença inesperada Velhice
Fonte: Inquérito de Saúde e Perspetivas perante a Morte, 2013.

velhice (gráfico 8.10). No caso de a morte ocorrer em Portugal, a grande


maioria dos bangladeshianos e dos brasileiros, e a maioria dos cabo-ver-
dianos, guineenses e chineses, gostariam que o corpo fosse transladado
para o país de origem (quadro 8.3).
A quase totalidade dos bangladeshianos, e a maioria dos guineenses,
cabo-verdianos e brasileiros indicaram que desejariam ser sepultados, ape-
sar de neste último grupo vários terem reportado o desejo de serem cre-
mados. A maioria dos chineses indicaram o desejo de serem cremados,
e os portugueses dividem-se entre o serem sepultados e o serem cremados
(gráfico 8.11).
A maioria dos bangladeshianos reportaram o desejo de serem sepulta-
dos num cemitério privado (por exemplo, num jardim da família), en-
quanto os restantes indicaram na sua maioria um cemitério público, em-
bora cerca de um terço dos portugueses e dos chineses tenham referido
o desejo de que a «morada final» do corpo fosse num sítio público (por
exemplo, cinzas deitadas ao mar) (quadro 8.4).
A quase totalidade dos bangladeshianos indicaram o desejo de ter uma
cerimónia de preparação do corpo, e somente uma minoria o desejo de
ter uma cerimónia fúnebre, tendo indicado o desejo de que se realizasse

189
Quadro 8.3 – Atitudes perante a morte por país de origem
Portugueses Bangladeshianos Brasileiros Cabo-verdianos Chineses Guineenses
Valor p
(n = 99) (n = 262)* (n = 105) (n = 102) (n = 97) (n = 104)

Gostaria doar órgãos, n (%) 77 (77,8) 25 (9,6) 85 (82,5) 58 (56,9) 25 (25,8) 59 (56,7) < 0,001

Autorizaria eutanásia, n (%) 51 (51,5) 25 (9,5) 37 (35,2) 31 (30,4) 26 (26,8) 22 (21,2) < 0,001

Autorizaria utilização 27 (27,3) 52 (19,8) 30 (28,6) 27 (26,5) 26 (26,8) 29 (27,9) 0,363


prolongada de meios
Movimentos, Espíritos e Rituais

de suporte de vida, n (%)

Em que país preferia morrer, n (%)


Portugal 69 (90,8) 9 (3,6) 4 (4,1) 8 (8,8) 8 (11,0) 12 (12,4)

190
País de origem – 237 (94,8) 76 (77,6) 67 (73,6) 51 (69,9) 74 (76,3) NA
08 Movimentos Cap. 8.qxp_Layout 1 11/02/17 15:48 Page 190

Outro 1 (1,3) 1 (0,4) 0 1 (1,1) 2 (2,7) 0


Indiferente 6 (7,9) 3 (1,2) 18 (18,4) 15 (16,5) 12 (16,4) 11 (11,3)

No caso de ser Portugal, gostaria


que o corpo fosse transladado, n (%)
Sim 3 (20,0) 240 (94,1) 58 (84,1) 42 (63,6) 30 (58,8) 51 (61,4)
< 0,001
Não 12 (80,0) 15 (5,9) 11 (15,9) 24 (36,4) 21 (41,2) 32 (38,6)

Em que circunstância preferiria


morrer, n (%)
Doença prolongada 1 (1,1) 2 (1,0) 0 0 1 (2,9) 1 (1,0)
Doença inesperada 10 (11,0) 0 12 (12,2) 1 (1,1) 0 5 (5,2) NA
Portugueses Bangladeshianos Brasileiros Cabo-verdianos Chineses Guineenses
Valor p
(n = 99) (n = 262)* (n = 105) (n = 102) (n = 97) (n = 104)

Velhice 66 (72,5) 195 (93,3) 71 (72,4) 65 (74,7) 23 (67,6) 75 (78,1)


Acidente 2 (2,2) 6 (2,9) 1 (1,0) 0 1 (2,9) 3 (3,1)
Outra 3 (3,3) 2 (1,0) 2 (2,0) 3 (3,4) 0 0
Indiferente 9 (9,9) 4 (1,9) 12 (12,2) 18 (20,7) 9 (26,5) 12 (12,5)

O que aconteceria ao corpo, n (%)


Sepultado 35 (39,3) 249 (98,8) 47 (47,9) 65 (76,5) 9 (13,2) 82 (85,4)
Depósito em gavetão 0 2 (0,8) 1 (1,0) 0 1 (1,5) 0
Depósito em jazigo 5 (5,6) 0 0 0 3 (4,4) 0
Cremado 34 (38,2) 1 (0,4) 26 (26,0) 13 (15,3) 46 (67,6) 7 (7,3) NA
Outro processo 3 (3,4) 0 1 (1,0) 0 1 (1,5) 0
Indiferente 12 (13,5) 0 23 (24,0) 7 (8,2) 8 (11,8) 7 (7,3)

191
08 Movimentos Cap. 8.qxp_Layout 1 11/02/17 15:48 Page 191

Morada final do corpo, n (%)


Cemitério público 44 (51,8) 26 (10,3) 45 (46,9) 66 (75,9) 25 (42,4) 79 (80,6)
Cemitério privado (ex., jardim 1 (1,2) 138 (54,5) 3 (3,1) 1 (1,1) 4 (6,8) 2 (2,0)
da família)
Local público (ex., cinzas deitadas 29 (34,1) 13 (5,1) 18 (18,8) 8 (9,2) 18 (30,5) 2 (2,0) < 0,001
ao mar)
Domicílio 2 (2,4) 74 (29,2) 2 (2,1) 2 (2,3) 2 (3,4) 6 (6,1)
Outro 1 (1,2) 1 (0,4) 0 0 0 1 (1,0)
Indiferente 8 (9,4) 1 (0,4) 28 (29,2) 10 (11,5) 10 (16,9) 8 (8,2)

dp, desvio padrão; NA, não se aplica; * amostra superior com vista à articulação com o estudo «Avaliação do Acesso aos Cuidados de Saúde e Nível de Saúde dos Imi-
grantes do Subcontinente Indiano».
Fonte: Inquérito de Saúde e Perspetivas perante a Morte, 2013-
Viver a morte em Portugal
Quadro 8.4 – Atitudes perante a morte e processo de morte por país de origem
Portugueses Bangladeshianos Brasileiros Cabo-verdianos Chineses Guineenses
(n = 99) Valor p
(n = 262)* (n = 105) (n = 102) (n = 97) (n = 104)

Gostaria ter cerimónia de preparação


do corpo, n (%)
Não 38 (40,9) 17 (6,6) 24 (24,5) 8 (9,0) 11 (18,6) 15 (15,5)
Indiferente 9 (9,7) 0 22 (22,4) 14 (15,7) 11 (18,6) 6 (6,2) < 0,001
Sim 46 (49,5) 240 (93,4) 52 (53,1) 67 (75,3) 37 (62,7) 76 (78,4)
Profissionais da agência funerária 28 (28,3) 0 37 (35,2) 19 (18,6) 15 (15,5) 12 (12,0) < 0,001
Movimentos, Espíritos e Rituais

Elementos da comunidade religiosa 4 (4,0) 3 (1,3) 1 (1,0) 5 (4,9) 2 (2,1) 9 (9,0) NA


Familiares 17 (17,2) 230 (95,8) 12 (11,4) 46 (45,1) 11 (11,3) 55 (55,0) < 0,001
Amigos 3 (3,0) 3 (1,3) 2 (1,9) 3 (2,9) 0 7 (7,0) NA

192
Gostaria ter cerimónia fúnebre, n (%)
08 Movimentos Cap. 8.qxp_Layout 1 11/02/17 15:48 Page 192

Não 13 (14,0) 195 (77,1) 10 (10,2) 3 (3,3) 10 (15,6) 4 (4,2)


Indiferente 10 (10,8) 3 (1,2) 25 (25,5) 1 (1,2) 9 (14,1) 4 (4,2) <0,001
Sim 70 (75,3) 55 (21,7) 63 (64,3) 86 (95,6) 45 (70,3) 88 (91,7)
Velório 52 (52,5) 0 46 (43,8) 63 (61,8) 15 (15,5) 64 (64,0) <0,001
Funeral 61 (61,6) 4 (7,3) 47 (44,8) 79 (77,5) 26 (26,8) 78 (78,0) < 0,001
Cerimónia após o funeral 20 (20,2) 3 (5,5) 8 (7,6) 14 (13,7) 14 (14,4) 25 (25,0) 0,002
Outra 6 (6,1) 32 (58,2) 0 3 (2,9) 0 5 (5,0) < 0,001

Quem deveria pagar as despesas, n (%)


Próprio 28 (28,3) 9 (3,4) 16 (15,2) 15 (14,7) 17 (17,5) 19 (19,0) < 0,001
Avô/avó 0 0 1 (1,0) 1 (1,0) 1 (1,0) 0 NA
Pai/mãe 16 (16,2) 61 (23,4) 17 (16,2) 21 (20,6) 2 (2,1) 9 (9,0) < 0,001
Portugueses Bangladeshianos Brasileiros Cabo-verdianos Chineses Guineenses
Valor p
(n = 99) (n = 262)* (n = 105) (n = 102) (n = 97) (n = 104)

Cônjuge 7 (7,1) 137 (52,5) 4 (3,8) 11 (10,8) 15 (15,5) 16 (16,0) < 0,001
Filho/enteado 7 (7,1) 22 (8,4) 4 (3,8) 14 (13,7) 27 (27,8) 24 (24,0) < 0,001
Irmão/irmã 5 (5,1) 32 (12,3) 6 (5,7) 11 (10,8) 6 (6,2) 12 (12,0) 0,128
Outros familiares 5 (5,1) 1 (0,4) 4 (3,8) 10 (9,8) 3 (3,1) 26 (26,0) < 0,001
Amigos 0 1 (0,4) 2 (1,9) 1 (1,0) 2 (2,1) 4 (4,0) NA
Vizinhos 0 0 0 0 0 1 (1,0) NA
Elementos da comunidade religiosa 0 1 (0,4) 0 0 0 1 (1,0) NA
Outros 22 (22,2) 1 (04) 14 (13,3) 14 (13,7) 0 12 (12,0) < 0,001

dp, desvio padrão; NA, não se aplica; * amostra superior com vista à articulação com o estudo «Avaliação do Acesso aos Cuidados de Saúde e Nível de Saúde dos Imi-
grantes do Subcontinente Indiano».
Fonte: Inquérito de Saúde e Perspetivas perante a Morte, 2013-

193
08 Movimentos Cap. 8.qxp_Layout 1 11/02/17 15:48 Page 193

Viver a morte em Portugal


08 Movimentos Cap. 8.qxp_Layout 1 11/02/17 15:48 Page 194

Movimentos, Espíritos e Rituais

Gráfico 8.11 – O que desejaria que acontecesse ao corpo,


por país de origem (%)
100

90

80

70

60

50

40

30

20

10

0
Portugueses Bangladeshianos Brasileiros Caboverdianos Chineses Guineenses
(n = 99) (n = 262) (n = 105) (n = 102) (n = 97) (n = 104)
Indiferente Outro processo Depósito em jazigo
Depósito em gavetão Cremado Sepultado
Fonte: Inquérito de Saúde e Perspetivas perante a Morte, 2013.

Gráfico 8.12 – Atitudes face à morte por país de origem: cerimónia


de preparação do corpo e cerimónia fúnebre (%)
100
93,4 95,6 91,7
90
78,4
80
75,3 75,1
70,3
70
64,3 62,7
60
53,1
49,5
50

40

30
21,7
20

10

0
Portugueses Bangladeshianos Brasileiros Caboverdianos Chineses Guineenses
(n = 99) (n = 262) (n = 105) (n = 102) (n = 97) (n = 104)
Cerimónia de preparação do corpo Cerimónia fúnebre
p < 0,001
Fonte: Inquérito de Saúde e Perspetivas perante a Morte, 2013.

194
08 Movimentos Cap. 8.qxp_Layout 1 11/02/17 15:48 Page 195

Viver a morte em Portugal

Gráfico 8.13 – Distribuição por país de origem da Death Anxiety


Scale (média e desvio-padrão)
60

55

50

46,5 47,1
45
42,3

48,6 45,5
40
39,4

35
Portugueses Bangladeshianos Brasileiros Caboverdianos Chineses Guineenses
(n = 99) (n = 262) (n = 105) (n = 102) (n = 97) (n = 104)

p < 0,001
Fonte: Inquérito de Saúde e Perspetivas perante a Morte, 2013.

a visita a casa e esmola do 7.º dia (Du'a mahfil). Nos restantes grupos, a
maioria reportou o desejo de ter uma cerimónia fúnebre, tendo este de-
sejo sido expresso pela quase totalidade dos cabo-verdianos e dos gui-
neenses (gráfico 8.12).
A maioria dos bangladeshianos indicou que quem deveria pagar as
despesas do processo da sua morte seria o cônjuge, enquanto os chineses
e os guineenses indicaram os filhos, seguidos do próprio (quadro 8.4).

A ansiedade perante a morte


A ansiedade perante a morte foi avaliada através da Death Anxiety Scale
(DAS). A média do score total da DAS foi mais elevada nos portugueses,
nos cabo-verdianos, nos guineenses e nos brasileiros, do que nos chineses
e nos bangladeshianos (gráfico 8.13), indicando por isso a existência de
maior ansiedade perante a morte nos primeiros.
A escala DAS composta por 15 questões não é unidimensional, abarca
antes diferentes dimensões, tais como a preocupação com a morte e o
morrer, a antecipação e o medo das alterações físicas que a morte e o
morrer implicam, a consciência da limitação do tempo, a preocupação
com o stresse e a dor que acompanham a doença e a morte. A maioria
dos participantes demonstrou pouca ansiedade perante o tema da morte

195
Quadro 8.5 – Caracterização da Escala de Ansiedade perante a Morte (DAS) por país de origem

Portugueses Bangladeshianos Brasileiros Cabo-verdianos Chineses Guineenses


(n = 99) (n = 262)* (n = 105) (n = 102) (n = 97) (n = 104)

1. Tenho medo 1 – Concordo plenamente 26 (26,3) 7 (2,7) 18 (17,6) 22 (21,8) 11 (11,8) 22 (21,6)
de morrer. 2 – Concordo 30 (30,3) 4 (1,5) 18 (17,6) 20 (19,8) 23 (24,7) 23 (22,5)
3 – Neutro 11 (11,1) 19 (7,3) 29 (28,4) 9 (8,9) 20 (21,5) 13 (12,7)
4 – Discordo 21 (21,2) 9 (3,5) 21 (20,6) 26 (25,7) 20 (21,5) 18 (17,6)
5 – Discordo plenamente 11 (11,1) 221 (85,0) 16 (15,7) 24 (23,8) 19 (20,4) 26 (25,5)
Movimentos, Espíritos e Rituais

2. Raramente me vem 1 – Concordo plenamente 20 (20,2) 6 (2,3) 24 (23,5) 22 (21,8) 26 (28,3) 17 (16,7)
à cabeça a ideia 2 – Concordo 25 (25,3) 5 (1,9) 32 (31,4) 30 (29,7) 33 (35,9) 21 (20,6)
de morte. 3 – Neutro 12 (12,1) 48 (18,5) 24 (23,5) 7 (6,9) 14 (15,2) 30 (29,4)
4 – Discordo 30 (30,3) 76 (29,2) 18 (17,6) 37 (36,6) 14 (15,2) 13 (12,7)

196
5 – Discordo plenamente 12 (12,1) 125 (48,1) 4 (3,9) 5 (5,0) 5 (5,4) 21 (20,6)
08 Movimentos Cap. 8.qxp_Layout 1 11/02/17 15:48 Page 196

3. Não fico nervoso 1 – Concordo plenamente 33 (33,3) 5 (1,9) 28 (27,5) 31 (30,7) 17 (18,7) 31 (30,4)
quando as pessoas 2 – Concordo 25 (25,3) 7 (2,7) 38 (37,3) 37 (36,6) 25 (27,5) 25 (24,5)
falam de morte. 3 – Neutro 11 (11,1) 80 (30,8) 19 (18,6) 6 (5,9) 21,23,1) 17 (16,7)
4 – Discordo 21 (21,2) 36 (13,8) 13 (12,7) 24 (23,8) 20 (22,0) 15 (14,7)
5 – Discordo plenamente 9 (9,1) 132 (50,8) 4 (3,9) 3 (3,0) 8 (8,8) 14 (13,7)

4. Horroriza-me pensar 1 – Concordo plenamente 14 (14,1) 7 (2,7) 13 (12,7) 18 (17,8) 4 (4,3) 23 (22,5)
que poderei vir a ser 2 – Concordo 22 (22,2) 45 (17,3) 28 (27,5) 32 (31,7) 22 (23,9) 17 (16,7)
operado. 3 – Neutro 11 (11,1) 32 (12,3) 17 (16,7) 9 (8,9) 30 (32,6) 14 (13,7)
4 – Discordo 28 (28,3) 28 (10,8) 29 (28,4) 26 (25,7) 20 (21,7) 24 (23,5)
5 – Discordo plenamente 24 (24,2) 148 (56,9) 15 (14,7) 16 (15,8) 16 (17,4) 24 (23,5)
Portugueses Bangladeshianos Brasileiros Cabo-verdianos Chineses Guineenses
(n = 99) (n = 262)* (n = 105) (n = 102) (n = 97) (n = 104)

5. Não tenho medo 1 – Concordo plenamente 20 (20,2) 45 (17,3) 18 (17,6) 27 (26,7) 11 (12,0) 30 (29,4)
nenhum de morrer. 2 – Concordo 6 (6,1) 10 (3,8) 19 (18,6) 20 (19,8) 17 (18,5) 19 (18,6)
3 – Neutro 12 (12,1) 37 (14,2) 17 (16,7) 6 (5,9) 25 (27,2) 12 (11,8)
4 – Discordo 44 (44,4) 26 (10,0) 36 (35,3) 40 (39,6) 30 (32,6) 18 (17,6)
5 – Discordo plenamente 17 (17,2) 142 (54,6) 12 (11,8) 8 (7,9) 9 (9,8) 23 (22,5)

6. Não estou particular- 1 – Concordo plenamente 6 (6,1) 7 (2,7) 8 (7,8) 8 (7,9) 12 (13,2) 13 (12,7)
mente preocupado 2 – Concordo 8 (8,1) 40 (15,4) 14 (13,7) 11 (10,9) 24 (26,4) 12 (11,8)
com o facto de vir a 3 – Neutro 9 (9,1) 35 (13,5) 7 (6,9) 5 (5,0) 32 (35,2) 12 (11,8)
ter um cancro. 4 – Discordo 34 (34,3) 19 (7,3) 48 (47,1) 55 (54,5) 20 (22,0) 23 (22,5)
5 – Discordo plenamente 42 (42,4) 159 (61,2) 25 (24,5) 22 (21,8) 3 (3,3) 42 (41,2)

197
7. A ideia de morte 1 – Concordo plenamente 9 (9,2) 3 (1,2) 19 (18,8) 15 (16,3) 29 (28,4)
08 Movimentos Cap. 8.qxp_Layout 1 11/02/17 15:48 Page 197

17 (16,7)
nunca me perturba. 2 – Concordo 10 (10,2) 15 (5,8) 19 (18,6) 20 (19,8) 26 (28,3) 15 (14,7)
3 – Neutro 10 (10,2) 66 (25,4) 32 (31,4) 13 (12,9) 25 (27,2) 27 (26,5)
4 – Discordo 44 (44,9) 30 (11,5) 29 (28,4) 42 (41,6) 19 (20,7) 19 (18,6)
5 – Discordo plenamente 25 (25,5) 146 (56,2) 5 (4,9) 7 (6,9) 7 (7,6) 12 (11,8)

8. Muitas vezes sinto-me 1 – Concordo plenamente 15 (15,2) 4 (1,5) 12 (11,9) 17 (16,8) 14 (15,2) 22 (21,6)
mal quando o tempo 2 – Concordo 41 (41,4) 12 (4,6) 29 (28,7) 36 (35,6) 16 (17,4) 27 (26,5)
passa depressa. 3 – Neutro 14 (14,1) 40 (15,4) 19 (18,8) 13 (12,9) 29 (31,5) 16 (15,7)
4 – Discordo 16 (16,2) 47 (18,1) 30 (29,7) 21 (20,8) 25 (27,2) 18 (17,6)
5 – Discordo plenamente 13 (13,1) 157 (60,4) 11 (10,9) 14 (13,9) 8 (8,7) 19 (18,6)

Viver a morte em Portugal
Portugueses Bangladeshianos Brasileiros Cabo-verdianos Chineses Guineenses


(n = 99) (n = 262)* (n = 105) (n = 102) (n = 97) (n = 104)

9. Tenho medo de vir 1 – Concordo plenamente 54 (55,1) 5 (1,9) 45 (44,6) 53 (52,5) 8 (8,7) 58 (56,9)
a ter uma morte 2 – Concordo 30 (30,6) 9 (3,5) 40 (39,6) 25 (24,8) 29 (31,5) 29 (28,4)
dolorosa. 3 – Neutro 6 (6,1) 28 (10,8) 7 (6,9) 7 (6,9) 27 (29,3) 8 (7,8)
4 – Discordo 4 (4,1) 21 (8,1) 7 (6,9) 14 (13,9) 17 (18,5) 3 (2,9)
5 – Discordo plenamente 4 (4,1) 197 (75,8) 2 (2,0) 2 (2,0) 11 (12,0) 4 (3,9)

10. O tema da vida para 1– Concordo plenamente 8 (8,1) 8 (3,1) 7 (6,9) 9 (8,9) 3 (3,3) 19 (18,6)
13 (13,1) 10 (3,8) 9 (8,9) 25 (24,8) 9 (9,9) 19 (18,6)
Movimentos, Espíritos e Rituais

além da morte 2 – Concordo


preocupa-me muito. 3 – Neutro 25 (25,3) 35 (13,5) 41 (40,6) 18 (17,8) 36 (39,6) 24 (23,5)
4 – Discordo 16 (16,2)) 28 (10,8) 25 (24,8) 36 (35,6) 29 (31,9) 13 (12,7)
5 – Discordo plenamente 37 (37,4) 179 (68,8) 19 (18,8) 13 (12,9) 14 (15,4) 27 (26,5)

198
11. Assusta-me vir a ter 1 – Concordo plenamente 27 (27,3) 3 (1,2) 23 (22,8) 26 (25,7) 5 (5,4) 37 (36,3)
08 Movimentos Cap. 8.qxp_Layout 1 11/02/17 15:48 Page 198

um ataque cardíaco. 2 – Concordo 32 (32,3) 11 (4,2) 46 (45,5) 43 (42,6) 24 (26,1) 38 (37,3)


3 – Neutro 14 (14,1) 33 (12,7) 11 (10,9) 9 (8,9) 31 (33,7) 8 (7,8)
4 – Discordo 17 (17,2) 27 (10,4) 15 (14,9) 15 (14,9) 24 (26,1) 8 (7,8)
5 – Discordo plenamente 9 (9,1) 186 (71,5) 6 (5,9) 8 (7,9) 8 (8,7) 11 (10,8)

12. Frequentemente 1 – Concordo plenamente 25 (25,3) 6 (2,3) 19 (18,8) 19 (18,8) 19 (20,7) 25 (24,5)
penso que a vida é 2 – Concordo 42 (41,4) 24 (9,2) 33 (32,7) 49 (48,5) 28 (30,4) 32 (31,4)
realmente curta. 3 – Neutro 11 (11,1) 32 (12,3) 20 (19,8) 8 (7,9) 27 (29,3) 17 (16,7)
4 – Discordo 10 (10,1) 14 (5,4) 20 (19,8) 20 (19,8) 13 (14,1) 16 (15,7)
5 – Discordo plenamente 11 (11,1) 184 (70,8) 9 (8,9) 5 (5,0) 5 (5,4) 12 (11,8)
Portugueses Bangladeshianos Brasileiros Cabo-verdianos Chineses Guineenses
(n = 99) (n = 262)* (n = 105) (n = 102) (n = 97) (n = 104)

13. Fico perturbado 1 – Concordo plenamente 6 (6,1) 20 (7,7) 5 (5,0) 7 (6,9) 3 (3,3) 19 (18,6)
quando as pessoas 2 – Concordo 20 (20,2) 14 (5,4) 11 (10,9) 26 (25,7) 9 (9,8) 14 (13,7)
falam da III Guerra 3 – Neutro 30 (30,3) 20 (7,7) 51 (50,5) 26 (25,7) 31 (33,7) 26 (25,5)
Mundial. 4 – Discordo 20 (20,2) 13 (5,0) 21 (20,8) 33 (32,7) 27 (29,3) 16 (15,7)
5 – Discordo plenamente 23 (23,2) 193 (74,2) 13 (12,9) 9 (8,9) 22 (23,9) 27 (26,5)

14. Horroriza-me ver 1 – Concordo plenamente 14 (14,1) 6 (2,3) 10 (9,9) 14 (13,9) 4 (4,3) 18 (17,6)
um cadáver. 2 – Concordo 24 (24,2) 27 (10,4) 18 (17,8) 21 (20,8) 16 (17,4) 19 (18,6)
3 – Neutro 14 (14,1) 18 (6,9) 22 (21,8) 10 (9,9) 31 (33,7) 18 (17,6)
4 – Discordo 25 (25,3) 11 (4,2) 34 (33,7) 41 (40,6) 24 (26,1) 24 (23,5)
5 – Discordo plenamente 22 (22,2) 198 (76,2) 17 (16,8) 15 (14,9) 17 (18,5) 23 (22,5)

199
15. Penso que o futuro 1 – Concordo plenamente 4 (4,0) 10 (3,8) 16 (15,8) 13 (12,9) 9 (9,8) 13 (12,7)
08 Movimentos Cap. 8.qxp_Layout 1 11/02/17 15:48 Page 199

não me trará nada 2 – Concordo 21 (21,2) 10 (3,8) 19 (18,8) 25 (24,8) 13 (14,1) 21 (20,6)
que eu receie. 3 – Neutro 20 (20,2) 30 (11,5) 27 (26,7) 24 (23,8) 46 (50,0) 21 (20,6)
4 – Discordo 35 (35,4) 10 (3,8) 31 (30,7) 31 (30,7) 16 (17,4) 34 (33,3)
5 – Discordo plenamente 19 (19,2) 200 (76,9) 8 (7,9) 8 (7,9) 8 (8,7) 13 (12,7)

* amostra superior com vista à articulação com o estudo «Avaliação do Acesso aos Cuidados de Saúde e Nível de Saúde dos Imigrantes do Subcontinente Indiano».
Fonte: Inquérito de Saúde e Perspetivas perante a Morte, 2013-
Viver a morte em Portugal
08 Movimentos Cap. 8.qxp_Layout 1 11/02/17 15:48 Page 200

Movimentos, Espíritos e Rituais

(quadro 8.5). Uma grande parte concordou com as afirmações «Não fico
nervoso quando as pessoas falam de morte», à exceção dos banglades-
hianos. Por outro lado, verificou-se uma maior ansiedade perante uma
morte dolorosa. A maioria concordou com a afirmação «Tenho medo
de vir a ter uma morte dolorosa», à exceção dos bangladeshianos e dos
chineses. Houve também uma grande ansiedade perante os itens que co-
locavam a hipótese de ter doenças que são vistas como uma causa de
morte iminente. A maioria discordou da afirmação «Não estou particular-
mente preocupado com o facto de vir a ter um cancro», à exceção dos
chineses, e concordou com a afirmação «Assusta-me vir a ter um ataque
cardíaco», à exceção dos bangladeshianos e dos chineses. Os participantes
demonstraram ansiedade perante o medo de que a vida chegue ao fim, à
exceção da maior parte dos bangladeshianos. A maioria concordou com
a afirmação «Muitas vezes sinto-me mal quando o tempo passa depressa»
e com a afirmação «Frequentemente penso que a vida é realmente curta».

Ansiedade perante a morte em diferentes culturas


A análise da regressão univariada com todos os grupos (quadro 8.6)
mostrou uma maior ansiedade perante a morte no sexo feminino e em
quem tem menos anos de educação, por um lado; naqueles com religião
católica, naqueles que desejam ter uma cerimónia fúnebre e/ou doar os
órgãos, por outro. Os indivíduos muçulmanos e os que consideraram
ter boa ou muito boa qualidade de vida foram os que demonstraram
uma menor ansiedade perante a morte. A religião foi a variável que mais
explicou o fenómeno da ansiedade perante a morte (R2 = 0,185), seguida
da vontade de ter uma cerimónia fúnebre (R2 = 0,101).
A análise de regressão múltipla permite identificar o conjunto de fatores
associados à ansiedade perante a morte nos diferentes grupos de imigran-
tes (quadro 8.6), tendo-se verificado que, quando ajustado para as variáveis
sociodemográficas (modelo b), ser do sexo feminino manteve-se associado
a uma maior ansiedade perante a morte, a educação deixou de estar asso-
ciada, e ser casado passou a estar associado a uma menor ansiedade pe-
rante a morte; quando ajustado para a religião (modelo c), o estado civil
perdeu a associação, a religião católica manteve-se associada a uma maior
e a muçulmana a uma menor ansiedade perante a morte. Ao ajustar para
o sofrimento psicológico (MHI) e a qualidade de vida (modelo d), a au-
toperceção de boa ou muito boa qualidade de vida manteve-se associada
a uma menor ansiedade perante a morte; e ao ajustar para as atitudes face
à morte (modelo e), desejar ter cerimónia fúnebre manteve a sua associa-
ção, mas a doação de órgãos, a religião muçulmana e a qualidade de vida

200
Quadro 8.6 – Associação não-ajustada e ajustada entre a ansiedade perante a morte e as características sociodemográficas,
de saúde e atitudes perante a morte
Portugal, Bangladesh, Brasil, B) = A), ajustada D) = C), ajustada E) = D), ajustada
A) Análise C) = B), ajustada F) = E)
Cabo-Verde, China R2 para socio- para MHI + quali- para atitudes
simples para religião Método stepwise
e Guiné Bissau demográficas dade vida perante morte
Idade, anos 0,022 (0,545) < 0,001 0,033 (0,414) –0,046 (0,234) –0,061 (0,114) –0,068 (0,078)
Sexo masculino –0,262 (< 0,001) 0,069 –0,260 (< 0,001) –0,154 (< 0,001) –0,145 (< 0,001) –0,144 (< 0,001) –0,167 (< 0,001)
Anos de educação –0,073 (0,046) 0,005 –0,045 (0,236) –0,005 (0,895) 0,012 (0,747) 0,003 (0,946)
Casado vs. outro (ref.) –0,048 (0,193) 0,002 –0,078 (0,042) 0,042 (0,262) 0,046 (0,219) 0,035 (0,347)
Religião
Católica 0,280 (< 0,001) 0,185 -- 0,278 (< 0,001) 0,269 (< 0,001) 0,228 (< 0,001) 0,320 (< 0,001)
Outra cristã –0,044 (0,268) -- –0,047 (0,298) –0,038 (0,400) –0,056 (0,205)
Muçulmana –0,186 (< 0,001) -- –0,145 (0,019) –0,139 (0,036) –0,105 (0,142)
Budista –0,068 (0,075) -- –0,071 (0,082) –0,072 (0,076) –0,055 (0,175)

201
Outra/sem religião (ref.) 1,00 -- 1,00 1,00 1,00 1,00
08 Movimentos Cap. 8.qxp_Layout 1 11/02/17 15:48 Page 201

Grau de praticante 0,006 (0,879) <0,001 -- –0,029 (0,475) –0,024 (0,546) –0,046 (0,250) –0,091 (0,007)
Possível sofrimento
0,030 (0,419) 0,001 -- – 0,059 (0,095) 0,053 (0,126)
psicológico (MHI)
Qualidade de vida: boa/ –0,211 (< 0,001) 0,045 -- – –0,080 (0,047) –0,051 (0,202)
muito boa vs. outra (ref.)
Ter alguém presente –0,005 (0,898) < 0,001 -- -- -- 0,035 (0,335)
Ter cerimónia preparação –0,040 (0,279) 0,002 -- -- -- 0,012 (0,761)
Ter cerimónia fúnebre 0,319 (< 0,001) 0,101 -- -- -- 0,147 (< 0,001) 0,174 (< 0,001)
Doação de órgãos 0,276 (< 0,001) 0,076 -- -- – 0,053 (0,179)
R2 0,075 0,208 --0,219 0,247 0,232
Ref, categoria de referência; 1escala de 0 (sem religião) a 5 (muito praticante). *O país de origem está fortemente correlacionado com a religião e por isso não foi
incluída na análise de regressão múltipla, tal como o tempo de residência.
Fonte: Inquérito de Saúde e Perspetivas perante a Morte, 2013.
Viver a morte em Portugal
08 Movimentos Cap. 8.qxp_Layout 1 11/02/17 15:48 Page 202

Movimentos, Espíritos e Rituais

deixaram de estar associadas à ansiedade perante a morte. A regressão com


o método stepwise (modelo f) sugere que uma maior ansiedade perante a
morte está associada ao sexo feminino, à religião católica, a menor grau
de praticante e ao desejo de ter cerimónia fúnebre. Os fatores demográfi-
cos e a religião (modelo c) explicaram 21% da variância do fenómeno;
com a inclusão das atitudes perante a morte no modelo final (modelo e),
a percentagem de explicação aumentou para 25%.

Discussão
O medo da morte e de morrer pode ser universal, mas os indivíduos
diferem nas suas reações emocionais à morte e ao morrer. Esta pesquisa
teve como principais objetivos identificar os fatores associados às atitudes
face à morte em portugueses e imigrantes adultos naturais do Bangladesh,
Brasil, Cabo-Verde, China e Guiné-Bissau, residentes na cidade de Lisboa.
Os principais resultados evidenciaram uma variação entre os grupos no
que concerne às atitudes perante a própria morte e aos níveis de ansie-
dade perante a morte no geral.
Em Portugal, desde 1993, é necessário deixar por escrito a vontade in-
dividual de não doar órgãos após a morte. Este estudo mostrou que os
brasileiros e os portugueses eram os mais favoráveis à doação de órgãos,
e, os bangladeshianos e os chineses, os menos favoráveis. A opinião fa-
vorável da população portuguesa já tinha sido verificada num estudo
prévio (DECO 2009). Outros estudos indicam que a doação de órgãos
permanece um tema controverso no Islão. Sharif e colaboradores (2011),
num inquérito internacional realizado junto de muçulmanos residentes
em países ocidentais, identificaram como principais fatores associados
negativamente à doação de órgãos a interpretação das escrituras religiosas
(o Alcorão e o Hadith) e os conselhos da mesquita local. Para uma me-
lhor compreensão das incertezas relacionadas com religião/fé e sua va-
riação inter e intragrupos étnicos, o tradicional foco nas barreiras asso-
ciadas ao conhecimento e atitudes necessita de ser complementado com
variáveis associadas aos serviços de saúde (Morgan et al. 2013). Já a ideia
tradicional na China de que o corpo pertence à família tem sido descrita
como uma forte resistência à doação de órgãos (Wu e Tang 2009).
Os portugueses, seguidos dos brasileiros, foram os que tiveram uma
posição mais favorável à eutanásia, e, os bangladeshianos, os menos.
Num inquérito realizado em 1998 pelo Instituto de Ciências Sociais, os
dados apontavam também para uma maioria da população portuguesa
ser favorável à eutanásia (Garcia 2001).

202
08 Movimentos Cap. 8.qxp_Layout 1 11/02/17 15:48 Page 203

Viver a morte em Portugal

A ansiedade perante a morte foi mais elevada nos portugueses, nos cabo-
-verdianos, nos guineenses e nos brasileiros, do que nos chineses e bangla-
deshianos. Em geral, as mulheres e indivíduos católicos apresentaram ní-
veis mais elevados de ansiedade perante a morte, assim como indivíduos
que manifestaram o desejo de ter uma cerimónia fúnebre. Um maior grau
de religiosidade foi um fator protetor da ansiedade perante a morte. Os
resultados de pesquisas anteriores indicam que os preditores comuns da
ansiedade perante a morte – sexo, idade e religiosidade – verificados em
sociedades ocidentais com amostras predominantemente cristãs se man-
têm em sociedades orientais com amostras muçulmanas (Suhail e Akram
2002). Apesar de vários estudos referirem que a religião ajuda a reduzir a
ansiedade perante a morte, a associação entre religiosidade e ansiedade
perante a morte permanece inconclusiva (Ka-Ying Hui e Fung 2008).
As principais vantagens a mencionar encontram-se na metodologia
do estudo e na amostra daí resultante. O facto de o questionário ter sido
aplicado através de inquiridores de acesso privilegiado à população-alvo
facilitou o acesso à população em estudo, assim como a identificação
linguística e cultural. A taxa de participação obtida foi bastante elevada,
o que permitiu assegurar a heterogeneidade da população entrevistada.
No entanto, o tamanho amostral por comunidade foi reduzido, à exce-
ção dos bangladeshianos, não permitindo a representatividade da amos-
tra, nem análises por subgrupos para explorar diferenças de género e
idade. A variância total explicada para o fenómeno da ansiedade perante
a morte foi aproximadamente 25%, sugerindo que existem outros predi-
tores a avaliar no futuro.

Conclusão
O conhecimento sobre as atitudes perante a morte e o processo de
morte em imigrantes em Portugal é escasso. Este estudo adicionou co-
nhecimento previamente inexistente e permitiu identificar lacunas no
conhecimento que implicarão um esforço por parte de investigadores,
profissionais de saúde e policy-makers para preencher. Um maior enten-
dimento das variações culturais e religiosas possibilita o desenvolvimento
de programas de promoção de saúde adaptados às populações. Foram
por isso identificadas como áreas futuras de investigação: 1) Identificar e
compreender as diferenças culturais e religiosas; 2) Analisar as diferentes
formas de gestão das emoções e da morte; 3) Explorar o peso dos fatores
étnicos e religiosos, por um lado, e sociais, por outro, relativamente a
procedimentos médicos como doação de órgãos, eutanásia e suporte de

203
08 Movimentos Cap. 8.qxp_Layout 1 11/02/17 15:48 Page 204

Movimentos, Espíritos e Rituais

vida; 4) Estudar os scripts culturais da morte com um enfoque no género


e na geração.

Agradecimentos
Este estudo foi desenvolvido no âmbito do projeto «A Invisibilidade
da Morte nas Populações Migrantes em Portugal: Vulnerabilidades e Ges-
tões Transnacionais», financiado pela Fundação para a Ciência e a Tec-
nologia (PTDC/CS-ANT/102862/2008), em articulação com o projeto
«Avaliação do Acesso aos Cuidados de Saúde e Nível de Saúde dos Imi-
grantes do Subcontinente Indiano» financiado pela Direção-Geral de
Saúde. Os autores gostariam de agradecer a toda a equipa de investigação
e especialmente a Andreia Silva Costa, Clara Saraiva, Irene Rodrigues,
José Mapril, Mário Carreira, Max Ruben Ramos e Simone Frangella. Os
autores estão gratos a todos os participantes pela colaboração no estudo
e às associações de imigrantes pela facilitação das instalações para a rea-
lização dos inquéritos. Por fim, gostariam de agradecer à equipa de in-
quiridores e colaboradores, nomeadamente à doutora Marta Godinho
pela colaboração no desenvolvimento do questionário e à doutora Ce-
cília Coccola no apoio à validação da base de dados.

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09 Movimentos Cap. 9.qxp_Layout 1 11/02/17 15:48 Page 207

Andreia Jorge Silva


Joana Ferreira Duarte
Violeta Alarcão
Clara Saraiva

Capítulo 9

A morte em várias línguas: principais


causas de morte e procedimentos
de transporte de cadáveres
em Portugal – análise focada
em imigrantes do Bangladesh, Brasil,
China, Cabo Verde e Guiné-Bissau
Introdução
No âmbito do projeto «A Invisibilidade da Morte nas Populações Mi-
grantes em Portugal: Vulnerabilidades e Gestões Transnacionais»
(PTDC/CS-ANT/102862/2008), dedicado à investigação dos níveis múl-
tiplos que a morte toca, desde os mais simbólicos aos mais práticos, em
imigrantes do Bangladesh, Brasil, China, Cabo Verde e Guiné-Bissau re-
sidentes em Portugal, um dos objetivos estabelecidos visava analisar as
principais causas de morte nestas populações.
Reconheceu-se que o conhecimento da informação relativa às causas
de morte em Portugal se revestia de uma necessidade emergente para a
Saúde Pública, tendo como premissa a importância do conhecimento
das causas de morte para o planeamento em saúde e para adequação das
intervenções de saúde à população em geral, e não descurando os grupos
que, pelas suas especificidades culturais, sociais, étnicas, genéticas ou ou-
tras, possam conferir estados de saúde que suscitem intervenções ajusta-
das às suas necessidades. É reconhecido o facto de os imigrantes trazerem
com eles os seus perfis de saúde, conhecimentos relacionados com a
saúde, valores, crenças e perceções que refletem o contexto cultural das
suas comunidades de origem – esses fatores culturais moldam os seus
comportamentos de saúde, influenciando, em última análise, riscos em
saúde e o próprio estado de saúde em si (Benisovich e King 2003).

207
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Movimentos, Espíritos e Rituais

Gráfico 9.1 – População imigrante residente em Portugal por principais


nacionalidades em 2011

Brasil
20%
Ucrânia
11%
Outros
22%
Cabo Verde
São Tomé 10%
e Príncipe
2% Roménia
9%
Moldávia
3% China
4%
Reino Unido Guiné-Bissau Angola
4% 4% 5%

Fonte: SEF 2011.

Portugal tem conhecido desde a década de 60 do século passado um


grande aumento da população estrangeira, especialmente na pós-revolu-
ção do 25 de Abril de 1974, passando de um país de emigração para um
país de imigração (Ferreira e Ramos 2012). Segundo as estatísticas oficiais
do Instituto Nacional de Estatística (INE) – que contabilizam a totali-
dade dos estrangeiros a residir em Portugal independentemente do seu
estatuto de residência –, a percentagem da população total de estrangeiros
em Portugal evoluiu de 1,1% em 1991 (INE 1991) para 2,2% em 2001
(INE 2001). Considerando as estatísticas apresentadas pelos últimos Cen-
sos, é possível verificar que em 2011, 8,25% da população residente em
Portugal era estrangeira (INE 2011), sendo que, desta percentagem,
4,61% eram de Comunidades de Países de Língua Portuguesa (CPLP) e
os outros 3,64% estrangeiros que não de CPLP (INE 2014).
De acordo com os dados do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF)
– que contemplam apenas os imigrantes em situação regular em Portu-
gal – no ano de 2011, de entre as diversas nacionalidades presentes, do-
minavam as de língua oficial portuguesa, como o Brasil (26%), Cabo
Verde (10%), Angola (5%) e Guiné-Bissau (4%), que juntamente com a
Ucrânia (11%) e a Roménia (9%) representavam mais de metade do total
da população estrangeira em Portugal. Numa análise evolutiva do nú-

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A morte em várias línguas

mero de residentes estrangeiros em Portugal entre 2010 e 2011 registou-


-se uma diminuição, ainda que ligeira, do número de estrangeiros prove-
nientes dos países em estudo, à exceção da China e do Bangladesh em
que existiu um aumento. Cabo Verde era representado em 2010 por
43 979 residentes, passando para 43 920 residentes em 2011; Guiné-Bis-
sau em 2010 com 19 813 residentes, passando em 2011 para 18 497 re-
sidentes; e o Brasil representado em 2010 por 119 363 residentes, pas-
sando a ser representado por 111 445 em 2011. A população estrangeira
proveniente da China aumentou de 15 699 em 2010 para 16 785 em
2011, bem como do Bangladesh, que aumentou para 1149 residentes.
No que se refere ao fluxo migratório registado em 2011, apesar da quebra
referida, verificou-se aumento no número de novos residentes do Ban-
gladesh (187 em 2010 para 332 em 2011) e de Cabo Verde (4223 em 2010
para 4610 em 2011). Nos restantes países em estudo confirmou-se a ten-
dência decrescente global: do Brasil registou-se uma diminuição de
16 165 novos residentes em 2010 para 12 899 em 2011, bem como da
China, em que se observou uma diminuição de 1653 para 1507 e da
Guiné-Bissau em que diminuiu de 1714 para 1564 novos residentes.
O presente estudo, apesar de não incidir em todas as populações mais
representadas em Portugal, visou abarcar a heterogeneidade da imigração
portuguesa, tendo por isso sido selecionados vários grupos de imigrantes
– do Bangladesh, Brasil, Cabo Verde, China e Guiné-Bissau –, por serem
bons exemplos desta diversidade, representando os principais grupos de
imigrantes. Só pela confrontação e comparação entre as várias formas de
conceptualizar a morte podemos começar a compreender as constantes e
as disparidades que caracterizam tais grupos e trazer inovação para o de-
bate sobre a condição dos imigrantes enquanto populações vulneráveis.
Ao longo do estudo, a morte foi encarada não apenas como um mo-
mento no tempo, mas como um processo, que envolve para além de es-
tados emocionais específicos e o uso de rituais para lidar com a inevitável
angústia, questões legais e de gestão transnacional. Deste modo, na pri-
meira parte, são analisados os procedimentos de transporte de cadáveres
e ossadas, em contexto nacional e internacional, à luz da legislação exis-
tente. Numa segunda parte, descrevem-se as principais causas de morte
em Portugal de pessoas com nacionalidade portuguesa e imigrantes
oriundos do Bangladesh, Brasil, China, Cabo Verde e Guiné-Bissau. Por
fim, discutem-se algumas implicações desta realidade para o Sistema Na-
cional de Saúde (SNS) e é apontada a necessidade de abordagens espe-
cíficas para cada comunidade de imigrantes a residir em Portugal.

209
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Movimentos, Espíritos e Rituais

Foco e metodologia
A morte é uma dimensão onde a abordagem transnacional é obriga-
tória, em articulação com o debate crítico sobre o sentido do «transna-
cional», dado que contempla uma intensa circulação, não apenas de bens
materiais e riqueza, mas também de universos significativos e simbólicos
que circulam juntamente com os bens e as pessoas: o corpo, os espíritos
e as relações com o outro mundo que as pessoas trouxeram para a diás-
pora.
A metodologia utilizada no presente estudo consistiu, em primeiro
lugar, na pesquisa bibliográfica em bases de dados certificadas de publi-
cações científicas como EBSCO Host, Google Académico, Science Di-
rect, Scopus, Springer Link, ISI Web of Knowledge, entre outras, bem
como em sítios da internet que regularmente publicam informação rela-
cionada com as causas de morte em Portugal, como são os casos do INE
e do SEF. Uma vez verificado que os dados relativos às principais causas
de morte de pessoas com naturalidade nos países em estudo não se en-
contravam publicados, foi solicitada a informação pretendida ao INE,
uma vez que apesar de não se encontrar divulgada, a informação referida
teria decerto sido recolhida, já que consta no certificado de óbito (CO)
com vista ao seu preenchimento. Os dados estatísticos utilizados repor-
tam-se aos óbitos de imigrantes oriundos do Bangladesh, Brasil, China,
Cabo Verde e Guiné-Bissau, residentes em Portugal num período situado
entre 2008 e 2013, período de cinco anos, para análise do número de
óbitos e causas principais.
Foi ainda efetuado o contacto telefónico com o Gabinete de Relações
Internacionais, que compila e divulga informação relativa a acordos e
tratados de vários âmbitos – incluindo o que concerne ao transporte de
cadáveres – e com as Embaixadas em Portugal dos países envolvidos no
estudo. Foi posteriormente realizada uma análise documental de con-
teúdo da documentação recolhida.

Procedimentos associados ao transporte de cadáveres entre Portugal


e os países em análise: Bangladesh, Brasil, China, Cabo Verde
e Guiné-Bissau
Perante a intenção de transportar um corpo, cujo óbito ocorreu em
Portugal, para o país de que era natural, verificaram-se diversas aborda-
gens nos procedimentos considerados necessários.
Na perspetiva legal, Portugal, desde 18 de agosto de 1970, integra a lista
de países que aderiram ao «Acordo Relativo à Trasladação de Corpos de

210
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A morte em várias línguas

Pessoas Falecidas» (Decreto-Lei [DL] n.º 417/70 do Diário do Governo


n.º 201 de 1 de setembro de 1970 e Diário do Governo n.º 220 de 22 de se-
tembro de 1970), cujas condições elegíveis, já retificadas, constam no DL
n.º 31/79 do Diário da República n.º 88 de 16 de abril de 1979. O referido
acordo é mencionado por diversas entidades internacionais como as Re-
gulações Internacionais para o Transporte de Cadáveres, nomeadamente
pela Interpol, reportando-se ao «Acordo Relativo à Trasladação de Corpos
de Pessoas Falecidas», assinado em Berlim, a 10 de fevereiro de 1937. No
entanto, poderá colocar-se a questão da aplicabilidade do mesmo, ou seja,
se as normas expostas serão válidas apenas para o transporte efetuado entre
os países assinantes do referido Acordo. Perante esta questão, iniciou-se a
pesquisa relativa às redações legais que envolvessem o transporte de ca-
dáveres entre outros países, nomeadamente os que constituem objeto de
estudo para a presente investigação.
Considerando a situação descrita anteriormente, foram consultados
artigos e documentação disponível em sítios da internet pertencentes ao
governo de outros países (como, por exemplo, o site «LegisPalop»
– www.legis-palop.org/bd – que permite aceder a toda a legislação dos
Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa), realizado o contacto te-
lefónico com as Embaixadas dos mesmos e com o Gabinete Português
das Relações Internacionais, tendo sido possível constatar que não existe
uma abordagem linear relativa à trasladação de corpos de pessoas faleci-
das. Mais especificamente, e considerando os países que não assinaram
o «Acordo Relativo à Trasladação de Corpos de Pessoas Falecidas», per-
cebe-se que alguns referem na sua legislação específica o Acordo supra-
mencionado, ainda assim não o tendo assinado; outros têm legislação
específica diferente da constante no Acordo; e outros não têm legislação
de todo. Por exemplo, no Brasil, a Lei n.º 10 095 de 3 de maio de 1968
«Dispõe sobre o Serviço de Verificação de Óbitos do Município de São
Paulo e dá outras providências» (Lei n.º 10 095 1968), alegando ao nível
do artigo 10.º, ponto V «sempre que se tratar de remoção para o Exterior,
exigir-se-á embalsamamento completo, adotadas as convenções, lei e re-
gulamentos sanitários estabelecido pelo Acordo Internacional relativo
ao transporte de corpos, assinado em Berlim em 10 de fevereiro de 1937
e publicado no Office Internacional d’Higiene Publique, 1.º semestre de 1937»
(Lei n.º 10 095 1968) – ou seja, o Brasil tem legislação específica no que
se refere ao «Acordo Relativo à Trasladação de Corpos de Pessoas Faleci-
das», no entanto sem estar abrangida pelo mesmo. Na China, existe o
DL n.º 47/85/M (1997) referente à remoção, transporte, inumação, exu-
mação, trasladação e cremação de cadáveres no território de Macau, fa-

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Movimentos, Espíritos e Rituais

zendo referência à trasladação de corpos dentro do país, mas não se re-


ferindo ao transporte dos mesmos para o exterior. Relativamente aos ou-
tros países em estudo, toda a pesquisa sugeriu ausência de legislação.
No entanto, outros países contactados referiram que, para o transporte
de cadáveres entre países, o procedimento a adotar deveria ser o proce-
dimento vigente no país onde se encontrava o corpo. Deste modo, no
caso específico do presente estudo, independentemente do país do qual
a pessoa falecida era natural e para onde o corpo iria ser transportado, os
procedimentos a adotar são os regidos pelo «Acordo Relativo à Traslada-
ção de Corpos de Pessoas Falecidas», uma vez que são os procedimentos
adotados por Portugal.
Procedimentos de Trasladação segundo o «Acordo Relativo
à Trasladação de Corpos de Pessoas Falecidas» (DL 31/79 1979)
As condições específicas para o transporte de corpos de pessoas fale-
cidas constantes no «Acordo Relativo à Trasladação de Corpos de Pessoas
Falecidas» são as seguintes:
Artigo 3.º
«1. O corpo de pessoa falecida deve ser acompanhado, durante a tras-
ladação, de um documento especial denominado ‘livre-trânsito
mortuário’, emitido pela autoridade competente do Estado de
partida;»
«2. O livre-trânsito deve reproduzir pelo menos os elementos cons-
tantes do modelo anexo ao presente Acordo; deve ser redigido
na língua oficial ou numa das línguas oficiais do Estado no qual
é emitido e numa das línguas oficiais do Conselho da Europa.»
Artigo 4.º
«Excetuados os documentos previstos nas convenções e acor-
dos internacionais relativos ao transporte em geral, ou em con-
venções ou disposições futuras relativas à trasladação de corpos
de pessoas falecidas, não são exigíveis pelo Estado de destino nem
pelo Estado de trânsito outros documentos senão o livre-trânsito
mortuário.»
Artigo 5.º
«O livre-trânsito é emitido pela autoridade competente prevista
no artigo 8.º do presente Acordo após se ter assegurado de que:
● a) Foram cumpridas as formalidades médicas, sanitárias, ad-
ministrativas e legais exigidas para a trasladação de corpos de
pessoas falecidas, e, sendo caso disso, para inumação e exu-
mação, em vigor no Estado de partida;

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A morte em várias línguas

● b) O corpo foi colocado em caixão cujas características


sejam conformes às definidas nos artigos 6.º e 7.º do presente
Acordo;
● c) O caixão não contém senão o corpo da pessoa mencio-
nada no livre-trânsito e os objetos pessoais destinados a ser
inumados ou incinerados com o corpo.»
Artigo 6.º
«1. O caixão deve ser estanque; deve igualmente conter um produto
absorvente. Quando as autoridades competentes do Estado de
partida entenderem necessário, o caixão deve estar munido de um
aparelho depurador destinado a nivelar a pressão interior e exte-
rior. O caixão deve ser constituído:
● i) Ou por um caixão exterior de madeira cujas paredes terão
espessura não inferior a 20 mm e por um caixão interior de
zinco cuidadosamente soldado ou de outro qualquer material
autodestrutível;
● ii) Ou por um só caixão de madeira cujas paredes serão de
espessura não inferior a 30 mm, reforçado interiormente por
uma folha de zinco ou por outro qualquer material autodes-
trutível.
2. Quando a morte for devida a doença contagiosa, o corpo será en-
volvido numa mortalha embebida numa solução antissética.
3. Sem prejuízo das disposições constantes dos parágrafos 1 e 2 do
presente artigo, o caixão deve estar munido, quando a trasladação
se faça por via aérea, de um aparelho depurador ou, na sua falta,
apresentar garantias de resistência reconhecidas como suficientes
pela autoridade competente do Estado de partida.»
Artigo 7.º
«Quando o caixão for transportado como frete normal, deve
ser colocado numa embalagem sem aparência de caixão sobre a
qual se indicará que deve ser manipulada com precaução.»

Evolução da legislação portuguesa relativa


aos procedimentos pós-morte
As questões relativas à remoção, transporte, inumação, exumação, tras-
ladação e cremação de cadáveres e ossadas em Portugal têm sido alvo de
constantes revisões e atualizações ao longo dos anos, espelhando-se atual-
mente no DL n.º 109/2010 de 14 de outubro de 2010. Este DL resultou
da atualização de anteriores como: Lei n.º 30/2006 de 11 de julho de
2006; DL n.º 138/2000 de 13 de julho de 2000; DL n.º 5/2000 de 29 de

213
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Movimentos, Espíritos e Rituais

janeiro de 2000; e DL n.º 411/98 de 30 de dezembro de 1998 (Procura-


doria-Geral Distrital de Lisboa – Ministério Público: www.pgdlisboa.pt/
leis/lei_mostra_articulado.php?nid=246&tabela=leis).
O DL n.º 109/2010, atualmente em vigor, estabelece assim o regime
jurídico português relativo à remoção, transporte, inumação, exumação,
trasladação e cremação de cadáveres. Para além disto, estabelece os mes-
mos relativos a ossadas, cinzas, fetos mortos e peças anatómicas e ainda
a mudança de localização de um cemitério.
Atentando às principais revisões sofridas pelos DL supramencionados,
o DL n.º 5/2000 veio atualizar o DL n.º 411/98 ao nível dos artigos 2.º,
4.º, 5.º, 6.º, 8.º, 9.º e 25.º Mais especificamente, verificam-se as seguintes
alterações:

● Artigo 2.º «Definições legais» do Capítulo I – Disposições Le-


gais, passa a incluir na alínea «a» a autoridade da Polícia Marítima,
para além da Guarda Nacional Republicana (GNR) e Polícia de
Segurança Pública (PSP);
● Artigo 4.º «Competência» do Capítulo I – Disposições Legais,
passa a incluir nos pontos 1 e 2, a necessidade de requisição rela-
tivamente à inumação, cremação e trasladação em modelos pró-
prios, bem como é alterado o n.º referente ao artigo 8.º – de 3.º
para 4.º, referindo-se à inumação de cadáver;
● Artigo 5.º «Regime legal» do Capítulo II – Remoção, passa a
considerar ao nível da alínea «c» as zonas sob jurisdição do Sis-
tema de Autoridade Marítima;
● Artigo 6.º «Regime geral» do Capítulo III – Transporte, acresce
o ponto 9 que se refere à atribuição de competência à GNR e PSP
para passagem de livre-trânsito necessário ao transporte de cadá-
veres para países estrangeiros, cujo óbito tenha sido verificado em
Portugal;
● Artigo 8.º «Prazos» do Capítulo IV – Inumação e cremação, adi-
ciona o limite temporal para encerramento em câmara frigorífica;
● Artigo 9.º «Assento, auto de declaração de óbito ou boletim de
óbito» do Capítulo IV – Inumação e cremação, altera o ponto 2
referente à responsabilidade de emissão do boletim de óbito fora
do período de funcionamento das conservatórias de registo civil
(incluindo sábados, domingos e feriados), que recai sobre a «au-
toridade de polícia com jurisdição na freguesia em cuja área o
óbito ocorreu ou desconhecida aquela, onde o mesmo foi verifi-
cado» (DL n.º 5/2000 2000);

214
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A morte em várias línguas

● Artigo 25.º «Contraordenações e Coimas» do Capítulo VIII –


Sanções e disposições processuais, que acresce à alínea «d» a pu-
nição relativa ao «transporte de cadáver ou de ossadas, fora de ce-
mitério, por estrada ou por via-férrea, marítima ou aérea, desa-
companhado de certificado de óbito (CO) ou de fotocópia
simples de um dos documentos previstos no n.º 1 do artigo 9.º»
(DL n.º 5/2000 2000), contemplando o anterior DL apenas a fo-
tocópia simples de um dos documentos previstos no n.º 1 do ar-
tigo 9.º

Posteriormente, o DL n.º 138/2000 vem atualizar o DL n.º 5/2000 ape-


nas ao nível do artigo 8.º «Prazos» do Capítulo IV – Inumação e cremação,
acrescentando ao ponto 1 a condição relativa ao caixão de zinco; e ao nível
do ponto 5 a condição de «Quando haja lugar à realização da autópsia
médico-legal» (DL n.º 5/2000 2000) para a condição de «Quando não haja
lugar à realização da autópsia médico-legal» e «houver perigo para a saúde
pública, a autoridade de saúde pode ordenar, por escrito, que se proceda
à inumação, cremação ou encerramento em caixão de zinco antes de de-
corrido o prazo previsto no n.º 1» (DL n.º 138/2000 2000).
Em seguida, a Lei n.º 30/2006 vem atualizar o DL n.º 138/2000 ao
nível dos artigos 25.º, 27.º e 29.º do Capítulo VIII – Sanções e disposições
processuais, nomeadamente no:

● Artigo 25.º «Contraordenações e Coimas», nos pontos 1 e 2,


os valores monetários são alterados de escudos para euros e são
atribuídas coimas diferentes consoante o agente seja pessoa sin-
gular ou pessoa coletiva, situação não contemplada no anterior
DL; e é adicionada no ponto 2 a alínea «e» referente à infração
de disposições imperativas de natureza administrativa constantes
de regulamento de cemitério municipal ou paroquial;
● Artigo 27.º «Competência», são alteradas as especificidades de
competência de atribuição de coima para o «presidente da respe-
tiva junta de freguesia e, nos restantes casos, ao presidente da câ-
mara do município em cuja área tenha sido praticada a infração,
podendo tal competência ser delegada, respetivamente, em qual-
quer dos membros da junta de freguesia ou da câmara municipal»
(Lei n.º 30/2006 2006), referindo-se o anterior DL apenas ao «pre-
sidente da câmara do município em cuja área tenha sido praticada
a infração, podendo ser delegada em qualquer dos restantes mem-
bros desse órgão» (DL n.º 138/2000 2000);

215
09 Movimentos Cap. 9.qxp_Layout 1 11/02/17 15:48 Page 216

Movimentos, Espíritos e Rituais

● Artigo 29.º «Destino do produto das coimas», considerando as


alterações realizadas no artigo 27.º, são modificadas as condições
relativas ao destino do produto das coimas para o município, pas-
sando a considerar-se também a freguesia.

O DL 109/2010 atualmente em vigor veio alterar os artigos 2.º,


4.º, 9.º, 18.º, 20.º, 23.º, 25.º, 29.º e 31.º Mais especificamente no:

● Artigo 2.º «Definições legais» do Capítulo I – Disposições Le-


gais, é acrescentado ao nível da alínea «m», referente às entidades
responsáveis pela administração de um cemitério, para além da
câmara municipal ou a junta de freguesia, «as entidades a quem
seja atribuída a administração do mesmo, por concessão de ser-
viço público» (DL 109/2010 2010) e aditada a alínea «n» com a
definição de Centro funerário;
● Artigo 4.º «Competência» do Capítulo I – Disposições Legais,
passa a incluir o centro funerário ao nível do ponto 1 e remete
para o modelo constante em Anexo I, os requerimentos referentes
à inumação, cremação, exumação e transladação, anteriormente
divididos em Anexo I e II;
● Artigo 9.º «Assento, auto de declaração de óbito ou boletim de
óbito» e o artigo 18.º «Locais de cremação», ambos do Capítulo IV –
Inumação e cremação, passam a considerar os centros funerários;
● Artigo 20.º «Comunicação da cremação» do Capítulo IV e o artigo
23.º «Comunicação da trasladação» do Capítulo V – Trasladação,
foram revogados pelo DL 109/2010, deixando de constar no mesmo;
● Artigo 25.º «Contraordenações e Coimas» do Capítulo VIII –
Sanções e disposições processuais, passa a incluir um novo ponto 3
onde consta que a prática de atividades de cremação fora dos lo-
cais previstos para o efeito ou em incumprimento das regras esta-
belecidas no artigo 18.º constituem uma contraordenação am-
biental grave, passando o antigo ponto 3 a constituir o ponto 4;
● Artigo 29.º «Destino do produto das coimas» do mesmo Capí-
tulo VIII, acresce o ponto 4 onde consta que «a afetação do pro-
duto das coimas resultante da aplicação das contraordenações am-
bientais previstas no n.º 3 do artigo 25.º é feita nos termos do
artigo 73.º da Lei n.º 50/2006, de 29 de agosto, alterada pela Lei
n.º 89/2009, de 31 de agosto» (DL 109/2010 2010);
● Artigo 31.º «Modelos» do Capítulo IX – Considerações Finais,
altera-se no sentido da indicação da existência atual de um mo-

216
09 Movimentos Cap. 9.qxp_Layout 1 11/02/17 15:48 Page 217

A morte em várias línguas

delo único para inumação, cremação, exumação e trasladação


constante em Anexo I, ao invés da Lei n.º 30/2006 onde existiria
Anexo I (Requerimento para transladação de cadáveres e ossadas)
e Anexo II (Requerimento para inumação ou cremação).

Procedimentos de transladação de cadáveres


e ossadas em Portugal (DL 109/2010)
Explorando o DL n.º 109/2010, relativamente ao transporte de cadá-
ver para país estrangeiro, este refere-se no artigo 1.º do Capítulo I (Dis-
posições Gerais) ao transporte de cadáver para país estrangeiro cujo óbito
se tenha sido verificado em Portugal e cujo óbito tenha sido verificado
em país estrangeiro, aplicando-se no presente caso as disposições contidas
no Acordo Internacional relativo ao Transporte de Cadáveres (DL n.º
109/2010 2010). O presente DL especifica assim atualmente os critérios
e condições para a transladação em contexto nacional que irão ser iden-
tificados em seguida.
Relativamente ao processo de requerimento da trasladação, este en-
contra-se especificado ao nível do artigo 4.º que estabelece que:

«2. A exumação e a trasladação devem ser requeridas à entidade res-


ponsável pela administração do cemitério onde o cadáver ou as
ossadas estiverem inumadas, em modelo constante do anexo i do
presente decreto-lei.»
«3. No caso previsto no número anterior, o deferimento do requeri-
mento é da competência da entidade responsável pela adminis-
tração do cemitério para o qual vão ser trasladados o cadáver ou
as ossadas, mediante solicitação da entidade à qual o mesmo foi
apresentado.»
As especificidades referentes ao processo de transporte encontram-se
presentes no artigo 6º:
«1. O transporte de cadáver fora de cemitério, por estrada, é efetuado
em viatura apropriada e exclusivamente destinada a esse fim, per-
tencente à entidade responsável pela administração de um cemi-
tério ou a outra entidade, pública ou privada, dentro de:
● caixão de madeira – para inumação em sepultura ou em
local de consumpção aeróbia;
● caixão de zinco com a espessura mínima de 0,4 mm – para
inumação em jazigo;
● caixão de madeira facilmente destrutível por ação do calor –
para cremação.

217
09 Movimentos Cap. 9.qxp_Layout 1 11/02/17 15:48 Page 218

Movimentos, Espíritos e Rituais

2. O transporte de ossadas fora de cemitério, por estrada, é efetuado


em viatura apropriada e exclusivamente destinada a esse fim, per-
tencente à entidade responsável pela administração de um cemi-
tério ou a outra entidade, pública ou privada, dentro de:
● caixa de zinco com a espessura mínima de 0,4 mm ou de
madeira – para inumação em jazigo ou em ossário;
● caixa de madeira facilmente destrutível por ação do calor –
para cremação.
3. Se o caixão ou a caixa contendo o cadáver ou as ossadas forem
transportados como frete normal por via férrea, marítima ou
aérea, devem ser introduzidos numa embalagem de material só-
lido que dissimule a sua aparência, sobre a qual deve ser aposta,
de forma bem visível, a seguinte indicação: ‘MANUSEAR COM
PRECAUÇÃO’.
4. O transporte de cinzas resultantes da cremação de cadáver, ossadas
ou peças anatómicas, fora de cemitério, é livre desde que efetuado
em recipiente apropriado.
5. O transporte de cadáver, ossadas ou cinzas dentro de cemitério é
efetuado da forma que for determinada pela entidade responsável
pela respetiva administração, ouvida, se tal for considerado ne-
cessário, a autoridade de saúde.
6. A viatura que for apropriada e exclusivamente destinada ao trans-
porte de cadáveres fora de cemitério, por estrada, é igualmente
apropriada para o transporte de ossadas.
7. Nos casos previstos nos números 1 a 3, a entidade responsável
pelo transporte do caixão ou da caixa deve ser portadora do CO
ou da fotocópia simples de um dos documentos previstos no
n.º 1 do artigo 9.º – assento ou auto de declaração de óbito.
8. O disposto nos números 1 e 7 não se aplica à remoção de cadáver
prevista nos números 1 e 2 do artigo 5.º
9. Compete à GNR e à PSP a passagem dos livre-trânsitos, previstos
nos acordos referidos no n.º 2 do artigo 1.º, necessários ao trans-
porte para países estrangeiros de cadáveres, cujo óbito tenha sido
verificado em Portugal.»

Posteriormente, o artigo 22.º – Efetuação da trasladação, especifica:

«1. A trasladação de cadáver é efetuada em caixão de zinco, devendo


a folha empregada no seu fabrico ter a espessura mínima de 0,4
mm;

218
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A morte em várias línguas

2. Pode também ser efetuada a trasladação de cadáver ou ossadas


que tenham sido inumados em caixão de chumbo antes da en-
trada em vigor do presente diploma;
3. A trasladação de ossadas é efetuada em caixa de zinco com a es-
pessura mínima de 0,4 mm ou de madeira.

Por fim, o artigo 24.º – Regime Legal estabelece que ‘A mudança de


um cemitério para terreno diferente daquele onde está instalado que im-
plique a transferência, total ou parcial, dos cadáveres, ossadas, fetos mor-
tos e peças anatómicas que aí estejam inumados e das cinzas que aí este-
jam guardadas é da competência da respetiva câmara municipal’.»

Causas de morte de pessoas com nacionalidade portuguesa


e com naturalidade num dos países em estudo – Bangladesh,
Brasil, China, Cabo Verde e Guiné-Bissau
Em Portugal, a cada pessoa que morre é emitido um CO, caso contrá-
rio, esta não pode ser transportada e consequentemente enterrada ou cre-
mada, tão-pouco é declarada a morte (as estatísticas das causas de morte
nacionais são baseado no conteúdo do CO). Até 2012 em Portugal, o
CO era um documento em papel, preenchido à mão pelos médicos, que
era entregue em mão à família da pessoa ou outra (como o agente fune-
rário, por exemplo) no registo civil (conservatória), após a confirmação
dos dados (dados de identificação e de morte natural com pelo menos
uma causa de morte enunciada). Se não existisse qualquer declaração que
sugerisse suspeita de homicídio, o funcionário da conservatória transcrevia
o que entendia em relação ao que estava redigido para uma declaração
de óbito. Na situação em que a causa estivesse relacionada com o que se
denominam causas externas, devia ser considerada a hipótese de autópsia
ou a respetiva indicação de dispensa do Ministério Publico. Este cenário
em algumas famílias gerava um problema, originando uma luta contra os
procedimentos da autópsia, uma vez que a consideravam como uma ação
violenta ao corpo que deveria permanecer intacto. A partir de 2012, os
CO passaram a ser emitidos eletronicamente pelo médico que teve o úl-
timo contacto com a pessoa falecida ou médico responsável por essa
mesma pessoa, através do Sistema de Informação dos Certificados de
Óbito (SICO) que funciona numa plataforma na internet à qual todos
os médicos têm acesso através de uma palavra-passe de elevada segurança.
Este sistema permite a emissão do CO, que segue eletronicamente para a
conservatória do Instituto de Registos e Notariado, sendo apenas neces-
sário imprimir a Guia de Transporte.

219
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Movimentos, Espíritos e Rituais

Gráfico 9.2 – Distribuição do número total de óbitos em Portugal,


por naturalidade, grupo etário e ano do óbito no período
de 2008-2013
350

300

250

200

150

100

50

0
0-19 anos
20-64 anos
> de 65 anos
Total
0-19 anos
20-64 anos
> de 65 anos
Total
0-19 anos
20-64 anos
> de 65 anos
Total
0-19 anos
20-64 anos
> de 65 anos
Total
0-19 anos
20-64 anos
> de 65 anos
Total
0-19 anos
20-64 anos
> de 65 anos
Total
2008 2009 2010 2011 2012 2013

Bangladesh Brasil Cabo Verde China Guiné-Bissau

Fonte: INE 2014.

Prevalência da mortalidade e principais


causas de morte
Da análise dos óbitos de pessoas residentes em Portugal naturais dos
países em estudo, verificou-se uma distribuição relativamente homogénea
dentro de cada país de naturalidade, apesar de algumas flutuações ao longo
dos anos, com alguns aumentos e diminuições que acompanhavam a ten-
dência migratória em Portugal. O primeiro grupo etário considerado dos
0-19 anos, quando comparado com os restantes, apresentou o número
mais baixo de óbitos em qualquer um dos países de naturalidade em es-
tudo, sendo de 16 o valor mais elevado referente a indivíduos de naturali-

220
09 Movimentos Cap. 9.qxp_Layout 1 11/02/17 15:48 Page 221

A morte em várias línguas

Gráfico 9.3 – Distribuição do número total de óbitos de cidadãos residentes


em Portugal ocorrido no país de naturalidade, por naturalidade,
grupo etário e ano do óbito no período de 2008-2013
20

18

16

14

12

10

0
0-19 anos
20-64 anos
> de 65 anos
Total
0-19 anos
20-64 anos
> de 65 anos
Total
0-19 anos
20-64 anos
> de 65 anos
Total
0-19 anos
20-64 anos
> de 65 anos
Total
0-19 anos
20-64 anos
> de 65 anos
Total
0-19 anos
20-64 anos
> de 65 anos
Total
2008 2009 2010 2011 2012 2013

Bangladesh Brasil Cabo Verde China Guiné-Bissau

Fonte: INE 2014.

dade cabo-verdiana no ano de 2009. O segundo grupo etário de idade ativa


dos 20-64 anos apresentou o número mais elevado de óbitos nos anos con-
siderados, sendo de 170 o valor mais elevado também referente a pessoas
de nacionalidade cabo-verdiana nos anos de 2008 e 2009. O último grupo
etário de mais de 65 anos apresentou também um número elevado, ainda
que mais reduzido quando comparado com os anteriormente referidos,
sendo de 121 o valor mais elevado, também referente a pessoas de nacio-
nalidade cabo-verdiana no ano de 2010. Globalmente, verificou-se nos va-
lores totais referentes a cada um dos anos em estudo que o número de óbi-
tos mais alto foi o de pessoas de naturalidade cabo-verdiana.
Da análise dos óbitos de pessoas residentes em Portugal naturais dos
países em estudo que foram falecer aos países dos quais eram naturais,

221
09 Movimentos Cap. 9.qxp_Layout 1 11/02/17 15:48 Page 222

Movimentos, Espíritos e Rituais

Gráfico 9.4 – Distribuição do número total de óbitos em Portugal por país


de nascimento e por sexo no período de 2008 a 2013

% 100
8
90
29 30
38
80 48
70

60

50
92
40
71 70
30 62
52
20

10

0
Bangladesh Brasil Cabo Verde China Guiné-Bissau

Homens Mulheres

Fonte: INE 2014.

não se verificou uma homogeneidade ao longo dos anos. No entanto ve-


rificou-se a partir do ano 2010 um decréscimo significativo comparado
com os anos anteriores. Segundo os dados disponibilizados pelo INE,
não houve registo de óbitos de pessoas naturais do Bangladesh que re-
gressaram aos países de origem e aí faleceram, bem como na China apenas
houve registo de um óbito em 2013. Relativamente aos restantes países
em estudo, Cabo Verde apresentou o maior número comparativamente
ao Brasil e à Guiné-Bissau, apresentando o valor mais elevado de 13 no
grupo etário dos 20-64 anos no ano 2008. Observaram-se óbitos em todos
os grupos etários ao longo dos anos em estudo, com exceção do grupo
etário dos 0-19 anos no ano de 2010. Na China, ocorreram óbitos em
todos os anos apenas nos grupos etários dos 20-64 anos e com mais de
65 anos, sendo o maior valor apresentado de 6 no grupo etário dos 20-64
anos em 2008.
Na Guiné-Bissau apenas foram registados valores a partir de 2009, não
havendo uma linearidade em termos dos grupos etários abrangidos ao
longo dos anos. O valor mais alto foi de 2 óbitos no ano de 2011 (grupo
etário dos 20-64 anos) e ano de 2012 (grupo etário dos 0-19 anos).
De um modo global, verificou-se que são as pessoas com nacionali-
dade portuguesa com naturalidade de Cabo Verde que apresentaram

222
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A morte em várias línguas

Gráfico 9.5 – Distribuição das principais causas de morte em Portugal


de naturais do Brasil no período de 2009 a 2011

120

100

80

60

40

20

0
I

II

III

IV
V

VI

IX

XI

XIV

XV

XVI

XVII

XVIII

XX
2009 2011 2010

Fonte: INE 2012.

maior número de óbitos no país de naturalidade, seguindo-se o Brasil, a


Guiné-Bissau e por fim, a China.
Os dados estatísticos utilizados para esta análise incluíram o número
total de mortes no período dos 5 anos em análise, portanto, não se refe-
riam a um único ano de referência, mas a um período situado entre 2008
e 2013.
A história da imigração portuguesa foi marcada por diferenças de sexo
acentuadas, com uma prevalência continuada do sexo masculino. Os va-
lores têm vindo a aproximar-se ao longo dos anos, sendo que segundo
dados do SEF, em 2011 registaram-se 50,17% de homens e 49,35% de
mulheres estrangeiras em Portugal (SEF 2011). A diferença registada em
termos globais entre homens e mulheres não foi a mesma para os diver-
sos países, acontecendo o mesmo em relação às taxas de mortalidade.
Nos países em análise, as taxas de mortalidade masculina foram sempre
superiores às taxas de mortalidade feminina, registando-se no entanto
um valor muito próximo nas pessoas residentes em Portugal de natura-
lidade brasileira, registando-se 52% de mortes masculinas e 48% de mor-
tes femininas.

223
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Movimentos, Espíritos e Rituais

Gráfico 9.6 – Distribuição das principais causas de morte em Portugal


de naturais da China no período de 2009 a 2011

10

0
I

II

III

IV

VI

IX

XI

XIV

XV

XVI

XVII

XVIII

2009 2011 2010 XX

Fonte: INE 2012.

Os dados em análise nos gráficos 9.5 a 9.8 são apenas referentes aos
anos de 2009 a 2011, uma vez que foram apenas estes os dados disponi-
bilizados pelo INE com referência às causas de morte. Não se registaram
valores reportados referentes a residentes em Portugal naturais do Ban-
gladesh, que morreram em território português, daí não constarem na
análise que se segue.
Como se pode verificar na distribuição das principais causas de morte
em Portugal de pessoas naturais do Brasil, estas mantiveram-se relativa-
mente homogéneas no período de 2009 a 2011, mantendo-se em todos
os anos as duas principais causas de morte: tumores e doenças do apare-
lho circulatório. No ano de 2010, verificou-se uma maior expressão da
maioria das causas em análise, quando comparado com os anos de 2009
e 2011. No ano de 2011, as duas principais causas foram, respetivamente,
as doenças do aparelho circulatório (103 óbitos) e os tumores (74 óbitos),
bastante semelhante ao cenário vivido em Portugal. A destacar ainda a
grande expressão dos acidentes externos em todos os anos em análise,
assumindo o 4.º lugar.

224
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A morte em várias línguas

Gráfico 9.7 – Distribuição das principais causas de morte em Portugal


de naturais de Cabo Verde no período de 2009 a 2011

140

120

100

80

60

40

20

0
I

II

III

IV

VI

IX

XI

XIV

XV

XVI

XVII

XVIII

XX
2009 2011 2010

Fonte: INE 2012.

Na distribuição das principais causas de morte em Portugal de pessoas


naturais da China, verificou-se uma tendência mantida ao longo dos anos
de 2009 e 2010 nos tumores, doenças do aparelho circulatório e causas
externas, sendo que em 2011 apenas as duas primeiras apresentaram ex-
pressão, desaparecendo a última (fatores externos). No último ano em
análise, a principal causa de morte foram os tumores com 8 óbitos, se-
guindo-se as doenças do aparelho circulatório com 7 óbitos, também
muito semelhante ao cenário vivido por pessoas de nacionalidade por-
tuguesa. Relativamente à distribuição das principais causas de morte em
Portugal de pessoas naturais de Cabo Verde, verificou-se uma tendência
relativamente homogénea ao longo dos anos de 2009 e 2010 das princi-
pais causas de morte: tumores e doenças do aparelho circulatório. No
ano de 2011, as duas principais causas foram os tumores (118 óbitos) e
as doenças do aparelho circulatório (103 óbitos), bastante semelhante ao
cenário vivido em Portugal. Importa ainda mencionar que a quarta prin-
cipal causa de morte foram as causas externas (geralmente relacionadas
com acidentes, acidentes profissionais, acidentes de carro ou suicídio).

225
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Movimentos, Espíritos e Rituais

Gráfico 9.8 – Distribuição das principais causas de morte em Portugal


de naturais da Guiné-Bissau no período de 2009 a 2011
35

30

25

20

15

10

0
I

II

III

IV
V

VI

IX

XI

XIV

XV

XVI

XVII

XVIII

XX
2009 2011 2010

Fonte: INE 2012.

Legenda dos gráficos 9.5 a 9.8


I Algumas doenças infecciosas e parasitárias
II Tumores (neoplasmas)
III Doenças do sangue e dos órgãos hematopoéticos e alguns transtornos imunitários
IV Doenças endócrinas, nutricionais e metabólicas
V Transtornos mentais e comportamentais
VI Doenças do sistema nervoso
IX Doenças do aparelho circulatório
X Doenças do aparelho respiratório
XI Doenças do aparelho digestivo
XIV Doenças do aparelho geniturinário
XV Complicações da gravidez, parto e puerpério
XVI Algumas afeções originadas no período perinatal
XVII Malformações congénitas, deformidades e anomalias cromossómicas
XVIII Sintomas, sinais e achados anormais de exames clínicos e de laboratório
não-classificados em outra parte
XX Causas externas de morbilidade e de mortalidade

226
09 Movimentos Cap. 9.qxp_Layout 1 11/02/17 15:48 Page 227

A morte em várias línguas

Gráfico 9.9 – Taxa de mortalidade da população imigrante residente


em Portugal por país, em 2010 e 2011

% 0,70

0,60

0,50

0,40

0,30

0,20

0,10

0,00
Brasil Cabo Verde China Guiné-Bissau
2011 2010

Fonte: INE 2011; SEF 2011.

Na presente distribuição das principais causas de morte em Portugal


de pessoas naturais da Guiné-Bissau, foi possível verificar que ao longo
dos anos de 2009 a 2011 as três principais causas de morte se mantiveram.
Em 2011, as três principais causas de morte foram as doenças infeciosas
e parasitárias (25 óbitos), os tumores (24 óbitos) e as doenças do aparelho
circulatório (16 óbitos).
A taxa de mortalidade foi calculada considerando o número de óbitos
em Portugal por naturalidade em função dos residentes com a mesma
naturalidade em 2010 e 2011.
O número reduzido de óbitos pode ser explicado pela idade dos imi-
grantes, tendo-se verificado que aproximadamente cerca de três quartos
da população estrangeira residente em Portugal tem idade inferior a 65
anos, sendo que o grupo com mais de 65 anos é muito inferior quando
comparado com os grupos etários anteriores já considerados anterior-
mente (SEF 2011). Este cenário poderá modificar-se nos próximos anos,
havendo já dados que indicam que dos países da Europa do Sul, que só

227
09 Movimentos Cap. 9.qxp_Layout 1 11/02/17 15:48 Page 228

Movimentos, Espíritos e Rituais

mais tarde se tornaram recetores de migrantes, Portugal é o primeiro a


assistir à formação de uma categoria de migrantes que envelheceram no
país (Machado 2012).
As taxas de mortalidade mais elevadas encontradas referem-se às pes-
soas naturais de Cabo Verde, seguindo-se as da Guiné-Bissau, do Brasil
e, por fim, da China em ambos aos anos de 2010 e 2011. O maior nú-
mero de residentes destes países em análise diz respeito ao Brasil; no en-
tanto as taxas de mortalidade são mais elevadas nos residentes naturais
de Cabo-Verde e da Guiné-Bissau.

Discussão
Tal como o uso de serviços de saúde por imigrantes tem vindo a re-
presentar um desafio internacional de saúde pública e política (Hargrea-
ves et al. 2006; Ku e Matani 2001; Carballo, Divino e Zeric 1998), mais
especificamente em matéria de acesso aos mesmos (Hjern et al. 2001; Po-
litzer et al. 2001; Sundquist 2001; Stronks et al. 2001; Goddard e Smith
2001), o aumento da população imigrante em Portugal tem vindo a cons-
tituir um desafio ao Sistema Nacional de Saúde (SNS) Português (Dias,
Severo e Barros 2008; WHO 2010). Urge deste modo a necessidade de
compreender a melhor forma de garantir o acesso aos serviços de saúde
e de como prestar assistência adequada aos imigrantes, particularmente
aos mais recentes que ainda se encontram sem documentação (DuBard
e Massing 2007; Wolff et al. 2005; Leduc e Proulx 2004). Para estes, o de-
safio adicional é o de garantir que compreendem o SNS Português (Har-
greaves et al. 2006).
Compreender as questões relacionadas com a saúde dos imigrantes e
a sua utilização dos serviços de saúde é um desafio constante devido a
falhas em bases de dados, heterogeneidade das populações imigrantes e
incerteza acerca de como a migração afeta a saúde. Embora as pessoas
que migram sejam muitas vezes mais saudáveis do que os residentes de-
vido aos vários processos de seleção que enfrentam (Llacer et al. 2007;
Razum, Zeeb e Rohrman 2000), os migrantes são normalmente expostos
a vários riscos no que se refere à sua saúde. A vulnerabilidade associada
a mudar-se para um ambiente desconhecido fundamenta o acesso fulcral
a serviços de prevenção e de cuidados de saúde como uma resposta de
saúde das sociedades de acolhimento (Politzer et al. 2001; Lenz, Bauer-
-Dubau e Jelinek 2006; Kandula, Kersey e Lurie 2004).
A interpretação que decorre da análise efetuada com os dados existen-
tes nas estatísticas nacionais deve ser acautelada, na medida em que a
análise da variável naturalidade pode agrupar pessoas cujos pais foram

228
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A morte em várias línguas

emigrantes em determinado país, tendo registo de nascimento ocorrido


nesse país com posterior regresso a Portugal, o que na perspetiva do com-
portamento se reveste de diferenças na cultura e na integração. Ainda
assim, perante a ausência de uma classificação do imigrante no CO, ou
da impossibilidade de ligar a informação constante no CO com a infor-
mação registada no SEF ou nas Embaixadas de cada país, considerou-se
útil analisar a informação disponível nesta matéria. Por outro lado, a dis-
tribuição do número de óbitos por grupo etário é consistente com o facto
de se tratar de poucos imigrantes, relacionado com a diminuição do nú-
mero de óbitos nos grupos etários mais avançados, quando o índice de
mortalidade é superior à medida que a idade avança.
Os resultados obtidos permitiram identificar desigualdades no padrão
de mortalidade da população com naturalidade nos países em estudo,
mas residente em Portugal, com especial destaque nas pessoas naturais da
Guiné-Bissau, cuja principal causa de morte são as doenças infecciosas –
este facto vem confirmar a especificidade das necessidades de cuidados
de saúde da população com naturalidade estrangeira residente em Por-
tugal. Segundo a Constituição Portuguesa, todos os cidadãos (incluindo
os imigrantes) têm o direito a ser atendidos no SNS, razão pela qual os
cuidados em saúde devem ser acessíveis a todas as pessoas de acordo com
a sua necessidade, independentemente da sua nacionalidade, estatuto
económico ou qualquer outro critério (Dias, Severo e Barros 2008) – pro-
mover a inclusão e considerar os valores e experiências dos imigrantes
pode tomar um papel importante para garantir que a migração continua
a ser um processo saudável e socialmente produtivo (WHO 2003; Wolf-
fers, Verghis e Marin 2003). Neste sentido, têm sido promovidos esforços
a nível nacional para melhorar o acesso e a utilização dos serviços de
saúde pelos imigrantes em Portugal (Dias et al. 2012). Por outro lado, os
resultados podem sugerir alguma relação com o acesso aos cuidados de
saúde que a literatura refere como sendo objeto de preocupação na po-
pulação imigrante. Mesmo em países onde o acesso aos cuidados de
saúde é garantido, os imigrantes não usufruem regularmente dos serviços
disponíveis. Um crescente corpo de literatura indica que os imigrantes
enfrentam barreiras individuais, socioculturais, económicas, administra-
tivas e políticas ao usar os serviços de saúde (Goddard e Smith 2001;
Scheppers et al. 2006; Fennely 2004). Num estudo realizado por Dias,
Severo e Barros (2008) que incluía 1513 imigrantes principalmente da
América do Sul (50,5%), a maioria (99,3%) do Brasil, África (34,8%, es-
sencialmente de Cabo Verde, Angola e Guiné-Bissau), Europa e uma mi-
noria da Ásia, aproximadamente um quinto dos entrevistados indicaram

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09 Movimentos Cap. 9.qxp_Layout 1 11/02/17 15:48 Page 230

Movimentos, Espíritos e Rituais

nunca ter utilizado o SNS, estando também demonstrado que os ho-


mens são os que menos o utilizam. Deste modo, uma pequena propor-
ção demonstrou falta de consciência relativa aos serviços de saúde dis-
poníveis (Hargreaves et al. 2006) – o que pode atuar como uma barreira
para o uso dos mesmos (Scheppers et al. 2006; Fennely 2004; WHO
2003). No estudo mencionado, os obstáculos ao acesso adequado e opor-
tuno foram identificados como os tempos de espera (50,2%), as atitudes
dos prestadores de cuidados (17,9%), o custo (3,4%), a distância e meios
de transporte (2,2%) e a língua (1,3%). Ter nascido em países da Europa
Oriental, em comparação com os países africanos, também foi significa-
tivamente associado a uma menor probabilidade de utilização de serviços
de saúde (Dias, Severo e Barros 2008). Este estudo suporta a tese de que
as características específicas de cada comunidade de imigrantes suportam
dificuldades próprias no acesso aos cuidados de saúde, bem como a
forma como percecionam o SNS está relacionada com as características
dos cuidados de saúde do seu país de origem. A situação exposta sugere
a necessidade de abordagens específicas para cada comunidade de imi-
grantes.

Conclusão
Os resultados apresentados sugerem a necessidade de uma abordagem
específica à comunidade natural da Guiné-Bissau, na medida em que a
sua principal causa de morte consiste nas doenças infecciosas. Este facto
reveste-se de importância, na medida em que Portugal realizou nas últi-
mas décadas um caminho evolutivo no domínio da saúde em que os ga-
nhos alcançados se traduziram em indicadores de saúde notórios, como
o facto de as causas de morte por doenças infeciosas se encontrarem em
sexto lugar (INE 2011). A situação descrita é reveladora de que Portugal
detém no SNS a capacidade de evitar mortes por doenças infecciosas,
pelo que assim poderá equacionar-se que as mortes registadas por doen-
ças infecciosas poderão beneficiar da prestação de cuidados do SNS, su-
gerindo a necessidade de ajustar a abordagem dos profissionais de saúde
a esta comunidade.
Sugere-se a realização de outros estudos direcionados para a análise de
cada comunidade de forma isolada a nível das suas diferentes caracterís-
ticas, que permitam conhecer o estado de saúde da população imigrante
em conjunto com outros estudos que proponham modelos de interven-
ção ajustados às necessidades das diferentes comunidades.

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A morte em várias línguas

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Parte IV
O lugar e os lugares da morte
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10 Movimentos Cap. 10.qxp_Layout 1 11/02/17 15:49 Page 235

António Medeiros

Capítulo 10

Encontros com a morte no Noroeste


No outono de 1992, fiz trabalho de campo pela primeira vez numa
freguesia litoral no Minho. Ali, um casal de comerciantes reformados
acolheu-me até que encontrasse uma casa para arrendar, o que depois
cheguei a fazer noutra freguesia adjacente, já com ajuda de Manuel Aze-
vedo, alguém que depois chegou a ser um grande amigo. A 2 de novem-
bro desse ano, acompanhei um outro dos meus informantes, José Silves-
tre – um homem de uns 70 anos que fora muito solícito nos primeiros
contactos e com quem já então conversara muitas horas – na romagem
ao cemitério do dia dos Fiéis Defuntos.
O cemitério situava-se junto à igreja paroquial, a meia-encosta, num
sítio de onde o mar se vê com um horizonte largo nos dias claros. Porém,
naquela manhã de outono, caiu um nevoeiro denso à hora das cerimó-
nias e depressa se tornou impossível ver sequer a multidão que então se
reunira dentro do cemitério. O nosso grupo, reunido junto de uma
campa em mármore soerguida do chão, foi crescendo com a chegada de
mais familiares do meu informante, e fui apresentado a vários parentes
e amigos que então vieram ao nosso encontro.
Depois, o nevoeiro começou a vir do mar cada vez mais intenso e a
visibilidade já estava cerrada quase por completo quando a missa campal
corria. Houve momentos em que as outras famílias perfiladas junto às
sepulturas próximas se distinguiam com dificuldade; mesmo as palavras
do pároco chegavam-nos distorcidas por aquela névoa tão espessa. Im-
pressionou-me aquele ambiente espectral, feito de cruzes e vultos huma-
nos mal distintos entre o nevoeiro; de facto, não o esqueci até agora,
quando já passaram quase vinte e cinco anos... Porém, foi só mais tarde
que voltei a pensar naquelas imagens, já com outras referências, aquelas
com que me cruzei durante o trabalho de campo que fiz em 1997 e 1998
(cf. Medeiros 2013).
Anos depois, já no século corrente, numa ocasião em que regressava
da vila galega de Ribadavia para Lisboa depois de participar num coló-
quio, foi a custo que evitei ter um acidente na autoestrada, logo a sul do

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Movimentos, Espíritos e Rituais

Porto. Aconteceu à saída da portagem dos Carvalhos, quando retomava


velocidade de cruzeiro e tive de desviar-me de um vulto de cor malva,
com cerca de dois metros de comprimento, que estava caído no carril
direito. Alarmado, desacelerei e pouco depois cruzei-me com mais três
objetos semelhantes, que apareceram caídos nos dois quilómetros se-
guintes. Só percebi a sua origem ao ultrapassar uma pequena camioneta
parada fora da faixa de rodagem. Tinha em cima ainda um resto daqueles
volumes coloridos e junto dela o motorista falava ao telemóvel com um
ar muito agitado.
Toda a surpresa daqueles momentos não me permite garantir se aquela
camioneta vinha da Galiza. Na verdade, o veículo pequeno e a sua carga
mal acondicionada sugeriam um percurso de entrega mais curto; tão-
-pouco, sequer, posso garantir que fossem caixões aqueles objetos alon-
gados malva, apesar de serem tão sugestivas a forma e a cor que tinham.
De um modo ou de outro, porém, aqueles vultos caídos na autoestrada
na direção sul propunham uma metáfora apta do processo de europei-
zação em curso nas últimas décadas, que pode ser definível pelo trânsito
de bens em primeiro lugar, como argumentaram John Borneman e Nick
Fowler (1997). Mas também permitiam falar da circulação de fluxos de
cultura que a expansão dos mercados sempre suporta, como propunha
Ulf Hannerz já há bastante tempo, num argumento articulado e muito
sugestivo que aqui me serve de referência, de forma genérica (cf. Hannerz
1992, 40 e segs).

Conversas «retranqueiras»
Na ida a Ribadavia, antes referida, falei com colegas do colóquio a
propósito de alguns dos temas que toco neste artigo. Ribadavia é uma
pequena vila situada junto do rio Minho e uma das cabeças de concelho
da província de Ourense, sendo famosa pelos vinhos de denominação
«Ribeiro» produzidos no seu termo. Até poucos anos antes, para além
da viticultura, muitos dos seus habitantes encontravam trabalho nas fá-
bricas de ataúdes, numerosas no concelho, e que chegaram a abasteceram
o mercado espanhol de uma forma destacada durante a maior parte do
século XX.1 À volta da mesa, na esplanada onde nos reunimos ao fim da
tarde, todos tínhamos referências nítidas de um tipo de humor e deter-

1
Ver, por exemplo http://www.farodevigo.es/portada-ourense/2014/01/03/vieja-fa-
brica-ataudes-ribadavia-reabre/941494.html,; conferir também http://ccaa.elpais.com/
ccaa/2012/10/16/galicia/1350411395_273940.html (acedidos em 3-3-2015).

236
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Encontros com a morte no Noroeste

minadas formas de lidar com a morte idiossincráticas, que são muito


amiúde referidos quando se fala da Galiza e dos galegos. Estes modos de
perceber a cultura galega estão desde há muito articulados por contribu-
tos de intelectuais locais e forâneos e hoje popularizam-se naquela região
autónoma de maneiras muito variadas, como quero demonstrar na con-
tinuação. Seleciono agora uma colagem bastante explícita destes lugares-
-comuns, encontrada num artigo académico de um historiador do teatro
galego e poeta, José María Paz Gago. É curiosa a citação por concentrar
estereótipos muito recorrentes na descrição da cultura galega e das atitu-
des perante a morte mantidas pelos galegos. Aqui o autor, que falava de
Ramón del Valle-Inclán e dos seus famosos «esperpentos», logo diz:
O humor negro de Valle procede em linha direta do perfil psicológico e
sociológico do homem galego, a sua peculiar «retranca», a ambiguidade do
seu comportamento e do seu pensamento, que produz irremediavelmente
uma situação cómica. Ao mesmo tempo, a idiossincrasia do Noroeste espa-
nhol, intimamente ligada à civilização celta anterior à romanização, tem
como nota característica a familiaridade com o mundo do além, as relações
quotidianas com as almas dos mortos, tema que se trata com uma naturali-
dade e um sentido de humor pouco habituais noutros contextos culturais
[Paz Gago 2000, 163].

De passagem, sempre com bastante humor, os colegas de esplanada


em Ribadavia também me falaram da vitalidade que as indústrias fune-
rárias tinham na Galiza, mas sobretudo naquele concelho e na província
de Ourense, em geral. De facto, o concelho de Ribadavia chegou a ter a
maior concentração de indústrias funerárias de toda a Espanha, e teriam
sido ali introduzidas, ainda no início do século XX, algumas técnicas que
eram novidade no mercado espanhol, por exemplo, os primeiros caixões
pré-fabricados ou o seu envernizamento. Hoje, quando escrevo, as fábri-
cas de caixões já estão mais dispersas na província de Ourense. Também
se fortaleceu noutras parte do Estado espanhol a concorrência, nomea-
damente no País Valenciano, e os produtos vindos da China a preços
muito baixos têm trazido dificuldades à indústria em Ribadavia.
Nos anos recentes aqueles tornaram-se problemas que os industriais
locais têm tentado controlar, lançando novos produtos por vezes sur-
preendentes ou estabelecendo um selo de qualidade, por exemplo. Ape-
sar de tudo, esta indústria tão peculiar ainda continua a ser um dos gran-
des empregadores do concelho.2 Consulto a documentação recente

2
Conferir http://ccaa.elpais.com/ccaa/2012/10/16/galicia/1350411395_ 273940.html
(acedido a 11-3-2015).

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Movimentos, Espíritos e Rituais

respeitante à 8.ª edição da Funergal, de 2014, a feira de produtos e serviços


funerários – única na Península Ibérica –, que se realiza em Ourense de
dois em dois anos. Noto que na respetiva página web Portugal aparece
retratado como um mercado familiar e acessível, onde, nomeadamente,
se diz ser fácil encontrar parceiros de negócios.3
Na mesma «página» indiciam-se oportunidades para a expansão de ne-
gócios à escala global, de maneira mais prometedora em direção à Amé-
rica Latina, nomeadamente ao México. Ora, num livro importante, ainda
recente, Cláudio Lomnitz argumentou que no México aconteceu uma
«nacionalização da morte» (cf. Lomnitz 2005, 26 e segs), sublinhando
que os resultados deste processo tão bem-sucedido hoje centram muitas
das possibilidades de representar a cultura nacional mexicana. Pois eu
creio ser possível argumentar que algo de semelhante aconteceu na Ga-
liza, porém com expressões menos exuberantes, e também menos reco-
nhecidas no mundo, seguramente...
Por outro lado, porém, como Lomnitz mantinha a propósito do Mé-
xico, seria frívolo dizer que está em causa nesta galeguização da morte
uma mera «invenção da tradição» proposta pela mão de intelectuais dos
séculos XIX e XX. Na Galiza confrontamos igualmente um tipo de «cons-
trução densa», que tem muitos pontos de contacto com a assinalada pelo
antropólogo mexicano. Como no México, também na Galiza se torna
hoje difícil destrinçar o fundo anónimo de crenças e práticas necrófilas
– com expressões contemporâneas muito nítidas – dos usos e estilizações
que a sua representação sofreu desde o século XIX. Afinal, é já longo o
processo de «nacionalização da cultura» – (cf. Lofgren 1989) – na Galiza.
As suas expressões tardo-oitocentistas já foram bastante nítidas, muito
favorecidas depois nos primeiros anos do século XX e até 1936, truncadas
sob o regime ditatorial de Franco, reinvestidas depois pouco a pouco e
logo depressa muito alargadas com as novas garantias constitucionais de
1978 (ver Medeiros 2013).
Um trecho de uma entrevista a um autor galego de «livros de mistério»,
muito vendidos em Espanha ultimamente, Francisco Narla, poderá ilus-
trar a medida da aceitação hoje alargada na Galiza de que o «culto da
morte» distingue a cultura própria. O trecho selecionado mostrará como

3
Ver http://www.funergal.com/not.php?id=95, (acedido a 6/03/2015). A designação
deste evento empresarial é «Funergal – Feria Internacional de Productos y Servicios Fu-
nerarios». Ver uma crónica curiosa de Anxel Vence, feita a propósito da realização da
6.ª edição desta feira http://www.farodevigo.es/opinion/2010/01/21/galicia-da-color-di-
funto/404609.html (acedido a 10/03/2015).

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Encontros com a morte no Noroeste

a entrevistadora (Patrícia Hermida) e o entrevistado tomam esta suposta


evidência com entusiasmo notório:

P – A personalidade galega não se entende sem o «lobisomem» ou a «Santa


Companha»? Ambos os mistérios estão enraizados na nossa cultura?
R – Apenas a Galiza tem este culto da morte, apenas ultrapassada pelo
Egito. Aqui vivemo-la com naturalidade. Existem procissões de caixões,
onde as pessoas são fechadas para celebrar a vida. Temos uma particular oro-
grafia de incomunicação. Em conjunto com outros académicos, agora pre-
paro o projeto Lendaria para propagar a tradição oral através de simpósios
itinerantes.4

Com alguma ironia poderíamos dizer que a par com esta comparação
com o Antigo Egito, outros casos poderiam ter sido invocados... Assim,
por exemplo, os Merina de Madagáscar poderiam aparecer como com-
petidores sérios dos galegos (ver Bloch 1982). Mas também a Argentina
e o México – contextos a vários títulos mais afins da Galiza – poderiam
ser chamados a capítulo na singular disputa de proeminência que Fran-
cisco Narla propõe (cf. Lomnitz 2005 ou Eloy Martínez 1995).5 As rela-
ções da Galiza com o México e com a Argentina são desde há muito
tempo intensas, nomeadamente nos séculos XIX e XX, tempo em se cu-
nharam as referências que ainda hoje servem para fazer a representação
da cultura nacional galega.
Na verdade, foram discretos os contributos vindos do México, onde
a presença de galegos nunca foi massiva ao contrário do que aconteceu
em Cuba ou na Argentina.6 Já no caso da Argentina, tantas vezes dita a
«5.ª província galega», os fluxos da emigração galega ali dirigida foram
muito intensos em diferentes períodos. Também sobremaneira impor-
tante foi o papel de Buenos Aires na história das reivindicações galeguis-
tas, desde datas precoces, sob os avatares mais diversos (cf., generica-
mente, Nuñez Seixas 1995). Nestes trânsitos, a Argentina e a Galiza
sequer estão ausentes passes muito expressivos do que, noutro contexto,

4
O título da entrevista conduzida por Patricia Hermida é o seguinte «Francisco Narla:
Sólo Galicia tiene este culto a la muerte: la vive com naturalidad» (El Correo Gallego,
2-8-2009).
5
Sugerirei mais adiante que práticas e crenças respeitantes similares às da Galiza são
afinal registáveis no Norte de Portugal (ver Saraiva 1994, por exemplo); aqui, porém, não
sofreram os destinos «objectivados» – cf. Handler 1988 – à escala nacional que lhes foram
vinculados na Galiza.
6
Ainda que ali no México se tivessem, por exemplo, publicado importantes revistas
galeguistas como Saudade (1942-1953) ou Vieiros (1955-1968) ou o assertivo volume Pre-
sencia de Galicia en Mexico (1954)

239
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Movimentos, Espíritos e Rituais

Katherine Verdery chamou, muito inspiradamente, a «vida política dos


cadáveres» (Verdery 2000). Poderíamos tomar como exemplo ótimo de
formas de fazer política análogas àquelas que K. Verdery levantou em
anos recentes no Leste da Europa, os destinos conhecidos pelo cadáver
do grande dirigente nacionalista galego (Alfonso Daniel Rodríguez) Cas-
telao (1886-1950) nos últimos 60 anos.7
É com facilidade, também, que se podem relacionar os trechos da en-
trevista mais acima transcrita com argumentos proeminentes presentes
nas teorias do nacionalismo mais conhecidas. Assim, é quase de forma
automática que a menção feita à «personalidade» galega pela entrevista-
dora lembra argumentos desenvolvidos por Richard Handler (cf. Handler
1988). As palavras de Francisco Narla também podem deixar evocar as
propostas de entendimento das dinâmicas do nacionalismo de Ernest
Gellner (e, de passagem, algumas das anedotas ásperas que este contava
para as ilustrar, cf. Gellner 1993). Já a menção da «particular orografia de
confinamento» e as promessas do projeto Lendaria pode tornar comum
com simpósios itinerantes uma mesma tradición oral na Galiza, lembra-
-nos ainda, com facilidade, Gellner, as suas ironias mas também outros
processos de nation building, mais ou menos distantes.8
Penso, por exemplo, em alguns documentários destacados feitos na
Papua Nova Guiné por vários cineastas australianos ao tempo da inde-
pendência, e que depois foram historiados noutro filme – também notá-
vel – Making Pictures, de Les Mclaren (2001). Parecerá o caso da Nova
Guiné demasiado distante e é, na maioria das medidas, incomparável, no-
meadamente pelo dramatismo e rapidez com que o processo de constru-
ção da nação ali se desdobrou, que contrasta com o processo de longo
curso na Galiza registado. Mas também é verdade que existe uma certa
coincidência no tempo, dado que na Galiza foi também nos anos de 1970
que a produção de uma cultura comum conheceu avanços decisivos. Por
outro lado, também poderíamos dizer, pensando com os argumentos de

7
Conferir, a propósito da «vida política» do cadáver de Castelao, um conjunto de do-
cumentos expressivos reunidos numa peça do jornal Faro de Vigo http://www. farode-
vigo.es/sociedad-cultura/2014/06/24/pedradas-lagrimas/1047259.html (acedido a 13-3-
-2015). Notaríamos os importantes investimentos que foram feitos com o seu funeral em
Buenos Aires, as disputas ferozes e as manifestações que o traslado dos seus restos acen-
deu, em 1984. Ver o impressivo «Traslado do Cadaleito de Castelao à Galiza» https:/
/www.youtube.com/watch?v=LX6RGc9PtBA (acedido a 31/03/2016), ou o modo como
a sua tumba no Panteón Galego continua a ser um lugar central da vida política na Galiza
contemporânea, ainda hoje (cf. Medeiros 2013).
8
Porém, aquilo que quero destacar é a semelhança essencial que os processos de na-
cionalização da cultura observam no seu desdobramento.

240
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Encontros com a morte no Noroeste

Francisco Narla e com os documentos produzidos pelos cineastas austra-


lianos referidos, que de algum modo são comuns à Galiza e à Nova Guiné
algumas dificuldades postas por uma «orografia» exigente à difusão e à
partilha das respetivas culturas nacionais.

A grande procissão «galega»


As afamadas investigações de Carmelo Lisón Tolosana na Galiza dei-
xam-nos falar da morte e das crenças que a rodeiam no Noroeste ibérico.
Também nos permitirão pensar nos destinos impostos a estas crenças
pelos processos de nacionalização da cultura na atual Comunidade Au-
tónoma da Galiza.
No livro La Santa Compaña (1998), Lisón Tolosana mostra vários
mapas, o mais elaborado dos quais levanta as muitas denominações que
a Santa Companha – uma imaginária procissão de mortos – recebe ao
longo da geografia regional (p. 56; ver também Mariño Ferro 1995; Risco
1946). Sugestivo no mapa referido é um amplo espaço em branco – que
sobretudo incide na província de Lugo, mas não só... –, que corresponde
a uma ausência de registos da dita crença num número importante dos
concelhos galegos. Lisón explica estas ausências taxativas insistindo nas
grandes variações que estas denominações – e as próprias representa-
ções – podem sofrer, dada a base local muito limitada, concelhia ou pa-
roquial da sua circulação mais efetiva (cf. op. cit., 55-67). Olhando para o
mapa e com os termos do autor, podemos assinalar que existe um maior
«bulício da crença» (p. 61) vincado na maioria concelhos do Sul das pro-
víncias de Pontevedra e Ourense, exatamente aqueles que lindam com a
fronteira portuguesa, no Minho e em Trás-os-Montes.
Em 1881, Consiglieri Pedroso referenciava a existência de crenças
numa «procissão dos defuntos» no Minho, baseando-se em notas que
Martins Sarmento lhe enviara de Guimarães (cf. Consiglieri Pedroso
1988). Nesta sua aproximação, Pedroso vai fazendo menções vagas à Ga-
liza, antes de sugerir que se localizaria só no Minho a incidência em Por-
tugal destas crenças (cujo desvanecimento, aliás, acreditava que já tivesse
acontecido). Ora, este motivo folclórico manteve grande vivacidade em
vários contextos rurais minhotos que conheço bem... Por exemplo, no
terreno que frequentei nos anos 90 – nas duas freguesias mencionadas
inicialmente, tendiam os meus informantes a ter pouco à-vontade para
falar deste tipo de temas. Ali, disseram-me várias vezes, com bastante iro-
nia, que a chegada da «eletricidade» às duas freguesias tinha acabado com
os encontros com a «procissão dos defuntos» na década de 1960.

241
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Movimentos, Espíritos e Rituais

Um caminho inverso, bem menos discreto, tiveram na Galiza as alu-


sões destas crenças e os seus usos sociais, desde os finais do século XIX.
Em 1885, a importante escritora Emilia Pardo Bazán descrevia como o
«país das almas abençoadas» os arredores do Grande Hotel das Termas
de Mondariz, na Galiza (Pardo Bazán 1984, 219), usando a aceção mais
restrita de pays na língua francesa. Deste modo, a autora queria assinalar
a profusão de pequenos nichos votivos dedicados às «almas de Purgató-
rio» naquela zona muito próxima da fronteira portuguesa. Era esta pro-
ximidade que permitia a D. Emília explicar a quantidade de tais nichos
nas vizinhanças do hotel, porque os sabia também comuns nas terras
portuguesas do outro lado do rio Minho.
Têm pouco relevo as valorizações etnográficas – ou literárias ou gráfi-
cas – dos temas necrófilos nas descrições do campesinato feitas em Por-
tugal e nomeadamente no Minho (cf. Pereira 1965; ver também Feijó et
al. 1985). Creio que isto aconteceu porque ali foram desdobradas aten-
ções etnográficas sobre outros motivos e, a prazo, diferentes as objetiva-
ções feitas a partir do Minho que serviram a nacionalização da cultura
portuguesa (cf. Medeiros 2003). A presença discreta destes temas nas
aproximações etnográficas do Minho contrasta muito com a profusão
de formas que ganharam na Galiza os ditos temas. Ali, marcam a litera-
tura e a etnografia, mas também outros vários produtos culturais que ser-
vem a representação cultura nacional galega.9 Um processo denso de
construção cultural que tem estado em jogo na Galiza das últimas déca-
das, o qual herda e dá sentido às objetivações da cultura camponesa pro-
postas logo desde os finais do século XIX,10 compaginada ainda hoje com
uma proximidade com os contextos rurais que por várias razões é muito
acentuada para a maioria dos galegos. As dimensões reflexivas acerca da
notoriedade da presença dos temas necrófilos na cultura nacional galega

9
Algo que foi proposto com mais intencionalidade e clareza de propósitos a partir
dos anos 1920, sendo contributos destacáveis as propostas etnográficas de Vicente Risco
(1884-1963) e a obra gráfica genial de A. R. Castelao. A propósito de Castelao diz o já ci-
tado Paz Gago «Na sua estância em Paris em começos dos anos vinte, idealiza Castelao
um Teatro de Arte para a Galiza, fundamentado nos complexos elementos para-teatrais
que encerra a tradição folclórica galega: o Carnaval ou Entrudo, as lendas sobre o mundo
do além e os complexos rituais e crenças com ele relacionados, prantos e velórios, a bru-
xaria...» (Paz Gago 2000, 166; comparar com Eksteins 1989). Foram truncados estes pla-
nos de Castelao, nomeadamente pela Guerra Civil, mas eles são especialmente curiosos
como planos de difusão de cultura galega de massas onde os motivos necrófilos do fol-
clore galego têm tão grandes incidências.
10
Com contributos já muito nítidos, entre os quais se destacam os do historiador Ma-
nuel Múrguia (1833-1923).

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Encontros com a morte no Noroeste

podem ser particularmente fascinantes. Isto foi algo com que me con-
frontei por diversas vezes em Compostela, onde muita da gente com
quem podia falar tinha opiniões aparentemente esclarecidas sobre o as-
sunto. A prazo fui percebendo estarem aquelas opiniões informadas mui-
tas vezes por referências eruditas, com as quais só mais tarde me cheguei
a familiarizar.
A propósito da morte e das crenças com ela correlacionadas podem
ser encontradas intervenções de antropólogos na imprensa galega, e tam-
bém programas de televisão e abundantes aproximações cinematográficas
da Santa Companhas, etc. Não faltam tão-pouco entradas específicas na
Wikipedia, muito bem desenvolvidas e ilustradas, desenvolvimentos que
aparentemente não têm par noutras línguas, como «A morte na cultura
popular galega» ou «A morte na literatura popular galega». Estas apro-
priações eruditas tão frequentes darão conta de como na Galiza se vão
difundindo referências de nacionalização, que também são, afinal, como
sugeria Claudio Lomnitz a propósito do México, propostas que «nacio-
nalizam» a morte (cf. Lomnitz, op. cit.).
Nestas várias referências encontramos proposto no fim de contas um
contraponto das pertenças localistas que as velhas crenças na procissão
imaginária dos coparoquianos mortos sublinhavam. Este entendimento
de base localista fora muito enfatizado por Lisón Tolosana, ainda em
1998, quando já duas décadas de um vigoroso processo autonómico ti-
nham decorrido, vinculando representações da cultura nacional galega
através do da Galiza toda. Então, de facto, havia muito tempo que uma
Santa Compaña galega fora definida e podia ser reconhecida por gente
de todas as províncias: aprendida de novo por uns e, eventualmente, de-
nominada desta maneira por outros pela primeira vez. Este processo, afi-
nal, bem poderia ser descrito como dimensão do entretecimento de uma
«teia sentidos» à escala da Galiza – isto se quisermos usar a imagem que
Clifford Geertz escolheu para definir o que entendia por cultura (cf.
Geertz 1973, 5).

Outras políticas
Em 1992, na primeira das freguesias onde fiz trabalho de campo no
Minho, ofereceram-me uma assinatura perene de um pequeno jornal e
também a coleção dos números até então saídos. Era um mensário de
poucas páginas, editado por uma das muitas associações culturais locais
que surgiram em Portugal depois do 25 de Abril. A associação em causa
reunira a maior parte dos poucos jovens da terra que faziam estudos mé-

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Movimentos, Espíritos e Rituais

dios ou superiores, cujos nomes se mantiveram na redação do jornal por


muito tempo. Ali, ao longo dos anos os politicamente mais ativos man-
tiveram uma oposição constante às políticas implementadas pela junta
de freguesia, que com regularidade era eleita pelos partidos de direita.
A pouca atenção com as questões «culturais» era um dos motivos mais
frequentados das críticas que o jornal dirigia aos autarcas locais. Aliás,
isto passou a acontecer com uma frequência crescente ao longo dos anos,
surgindo os usos da palavra «cultura» propostos de uma forma cada vez
mais nítida e segura. Na freguesia, o grupo que dirigia a associação e re-
digia o jornal foi o principal promotor dos processos locais de «objetiva-
ção da cultura», se quisermos usar a esta escala os termos que Richard
Handler propôs em 1988 (cf. Handler, op. cit.). No início dos anos 1990,
tinham fundado o primeiro grupo folclórico e mais tarde organizaram
uma pequena coleção de objetos etnográficos e arqueológicos, exposta
numa escola primária desativada. Mais tarde ainda, chegaram a organizar
com muito sucesso as primeiras edições de um cortejo etnográfico, que
logo se tornou «tradicional».
Quem consulte a dita coleção de jornais lá dará conta da presença
muito frequente de notícias, de comentários políticos ou do rasto de po-
lémicas que, de um modo ou de outro, se ligam com o cemitério local
ou com práticas funerárias. Importa dizer, porém, que a referência àque-
les temas sempre surgirá ali como um registo de disputa política estreme,
isto é: surgirá como crítica de empreendimentos dos adversários políticos,
situados à direita no caso, e como elogio da bondade de soluções alter-
nativas ou, ainda, como nota na urgência de certas iniciativas, etc. O que
quero dizer é que estas referências estavam desfasadas das objetivações
da cultura local que ali estavam a ser feitas noutros registos, mormente
os assinalados no parágrafo anterior.
A comparação da etnografia disponível que respeita às práticas e cren-
ças que rodeiam a morte 11 permite reconhecer similitudes genéricas do
conjunto de práticas e crenças que rodeiam o culto dos mortos no No-
roeste de Península Ibérica com grande facilidade. Porém, a verdade é
que nunca no Minho dei conta do tipo de apropriações reflexivas que
aquelas amiúde sofrem na Galiza contemporânea. Como sugeri anterior-
mente, ainda que nos lugares no Minho que conheço melhor sempre
tenham importância política os investimentos autárquicos nos cemité-

11
Que é escassa no caso do Minho (Pereira 1965; Saraiva 1994); pelo menos é posta
a par da enorme abundância de aproximações disponíveis na Galiza (ver Mariño Ferro
s. d.; Lema Bendaña 1990-1991) .

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Encontros com a morte no Noroeste

rios, nunca percebi, porém, que os seus promotores os justificassem por


razões «culturais», como é tão frequente acontecer na Galiza.
Numa visita em 2012 a uma das freguesias, onde tinha feito trabalho
de campo no início da década de 1990, dei conta de como ali se mantinha
com vivacidade a prática de «compor» as sepulturas no cemitério. Lem-
brava-me de que essa era uma incumbência das duas filhas que estavam
na «casa», e que se cumpria sem quebras ao sábado, ao tempo da minha
estadia em 1993. Já na visita referida, foi também num sábado, depois da
hora do almoço, que chegaram de automóvel duas das irmãs casadas a
recolher a única celibatária ainda residente na casa dos pais. Pouco depois,
seguiram todas juntas para o cemitério paroquial, levando consigo uma
grande quantidade de flores e todos os apetrechos necessários à tarefa de
«compor» as sepulturas, o que as ocuparia por um par de horas.
Como me explicaram os seus pais, por via de heranças tinha crescido
o número das campas de que «a casa» era responsável, por via de heran-
ças, e também por causa de um compromisso piedoso com uma família
sem descendência que tinham assumido. Por isso agora era necessário o
trabalho alongado das três mulheres, quando bastava o das duas solteiras
ao tempo da minha estada. Toda a situação pode propiciar comentários,
nomeadamente assinalar a importância de mudanças sobre um pano de
fundo de permanências também muito nítidas de algumas práticas.
Assim, são recentes as possibilidades de mobilidade destas mulheres
naquele contexto rural, por serem parte de uma primeira geração com
alguns estudos e carreiras profissionais, já desfasados do trabalho do
campo. Também recente é a quantidade e a variedade de flores que usa-
vam na tarefa de compor as campas familiares e também os dispendiosos
arranjos em mármore, presentes na maioria das sepulturas dos cemitérios
minhotos nos últimos 40 anos. Hoje podem encontrar-se mármores nos
cemitérios de toda a área, por terem sido investidos na monumentaliza-
ção dos túmulos do Minho rural alguns dos primeiros ganhos consegui-
dos no grande surto de emigração dos anos 1960-1970, ou auferidos com
o trabalho na indústria ou nos serviços, cuja oferta na região se alargou
muito logo nas décadas seguintes.
Para além de ter transformado o aspeto dos cemitérios, o uso genera-
lizado de mármores é curioso por falar do assentamento em Portugal de
um mercado de distribuição inter-regional de bens que, em grande me-
dida, só naqueles anos ainda recentes se desdobrou. Entre muitas outras
coisas, o assentamento destes novos circuitos de distribuição tornou pos-
sível o uso vulgarizado dos mármores vindos do Centro e do Sul do país
por parte de pessoas com posses medianas. Isto era algo dificilmente ima-

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Movimentos, Espíritos e Rituais

ginável em décadas mais recuadas, como sugerirão as referências crono-


lógicas recentes inscritas na maioria das sepulturas que são feitas de már-
more. Mas coexiste também esta instância do assentamento ainda muito
recente de um mercado nacional com outras que aludem ao trânsito glo-
balizado de produtos, muito acelerado nos anos mais recentes. Hoje, por
exemplo, os caixões podem chegar da China a preços irrisórios e, a par,
o granito «rosa Porriño» virá da Galiza. Esta é a mais afamada das pedras
galegas e poderá aparecer oferecida como «rosa porrinho» pela mão de
pequenas empresas que em Portugal fazem arte funerária.
Reconheceremos também noutro a presença do mercado global no
uso de flores dispendiosas – como orquídeas ou estrelícias, eventual-
mente importadas da Colômbia – hoje é frequente nos cemitérios mi-
nhotos (e da Galiza). Pese a sua novidade, também falarão estas despesas
do modo como resiste arreigado o culto dos mortos neste contexto... Já
outras flores que surgem nos cemitérios são produto local resultado de
técnicas modernas de produção aplicadas em explorações pequenas,
onde a pequena pecuária e o cultivo do milho se fazia ainda no início
dos anos 1990 com poucos proveitos, e que hoje, nalguns casos, já ex-
portam flores para destinos situados no Norte da Europa.
Porém há outros trânsitos entre o Minho e a Galiza hoje em dia fluidi-
ficados desde que a adesão de Portugal e de Espanha ao Mercado Comum
Europeu aconteceu. Nos anos recentes, transformam-se nos contextos ru-
rais galego e minhoto as práticas funerárias de maneiras surpreendentes,
com expressões novas que têm possibilidades de explicação divergentes.
Morre-se cada vez mais nos hospitais em ambos os contextos, e estas trans-
formações podem ser tomadas como ilustrações das teses de Phillipe Ariés,
como crescimentos imparável da «morte selvagem» (cf. Ariès 1974). Mas
torna-se evidente, tanto no Minho como na Galiza, que há práticas loca-
listas que resistem e que se reinventam para manter a morte «domesti-
cada», como sugeri com as notas feitas nos parágrafos anteriores, em que
quis falar de culturas e de novos registos de fluxos de cultura.

Um regresso
No dia 31 de maio de 2014, recebi uma chamada de telemóvel numa
rua de Lisboa, quando ia abrir a porta do carro à minha filha mais nova.
Estávamos ao sol, fora da sombra dos prédios, e o diálogo foi curto; eu
só tartamudeei fórmulas e fiz uma pergunta. Ao acabar a chamada o meu
interlocutor disse: «ó António, já não temos cá o Manuel do Crespo!».
Fiquei em lágrimas e correram-me na cabeça muitas imagens de há mais

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Encontros com a morte no Noroeste

de 20 anos, dos meses que tinha passado na companhia de Manuel Cruz


Azevedo. O seu filho mais velho agora anunciava-me a sua morte. O ex-
cesso de luz do fim da manhã de Maio fundiu-se nas recordações do an-
fitrião do meu primeiro trabalho de campo, logo tornado um grande
amigo, e senti-me nauseado. Fiquei incapaz de me mexer por instantes,
até que a minha filha, desconcertada, me puxou o braço para que lhe
abrisse a porta do carro e fôssemos para casa.
Porque se fazia o enterro do meu amigo cedo na manhã seguinte numa
aldeia do Noroeste de Portugal, comecei uma viagem longa de autocarro
poucas horas depois de receber a notícia do falecimento de Manuel Aze-
vedo. Cheguei de noite a casa de familiares meus e ainda pensei pedir
um carro emprestado para andar uns 15 quilómetros na direção sul e
participar no velório, que julgava estar a acontecer na «casa dos do
Crespo». Porém, por ser tarde, decidi dormir de seguida e comparecer
na missa de corpo presente, que estava marcada para as 9 horas da
manhã. No dia seguinte, cheguei à igreja ainda antes da hora e, sem dar
conta, sentei-me num dos renques de bancos vazios, os que estavam re-
servados para a família enlutada. Esperei ali, afetado e com pouca von-
tade de ter as conversas de circunstância que seriam inevitáveis no adro.
A igreja depressa se encheu, com pessoas da terra e das freguesias mais
vizinhas; depois, passou algum tempo até que o féretro chegasse seguido
pela família, muito numerosa. Aquele foi um momento de grande emo-
ção, outros cresceram depois, ainda na missa e no cemitério... Foi ali que
me despedi da família enlutada e poucas horas depois voltei para Lisboa.
Só recentemente, numa conversa com um dos filhos do meu amigo
falecido – hoje igualmente um grande amigo, como seu pai também cha-
mado Manuel –, é que vim a saber que o velório de Manuel Azevedo
não se fizera na casa da família, mas sim na capela mortuária da paróquia.
Esta, localmente dita «Casa da Paz», foi concluída em 2003 e é parte de
um arranjo urbanístico amplo que foi sendo feito em torno da igreja pa-
roquial em anos recentes, já muito depois da minha estada na freguesia,
que aconteceu no início dos anos 1990 como já disse. Lembrei a Manuel
uma nossa conversa antiga, que teria acontecido pelos finais do século
passado, numa visita pontual que fiz à família, onde lhe perguntara onde
se faria o velório se algum dia alguém da casa morresse. Respondera-me
que em casa, sem dúvida nenhuma, salientando a importância que ao
velório em casa se atribuía no processo funerário, e as resistências de
todos os familiares a que assim não fosse. De facto, anos atrás, tinha po-
dido acompanhar o seu pai a alguns velórios em casa de conterrâneos e
perceber a sua centralidade na vida comunitária.

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Movimentos, Espíritos e Rituais

Nos finais dos anos 90, fizera aquela pergunta ingrata a Manuel depois
de ouvi-lo polemizar sobre os planos vagos do pároco local de construir
uma capela mortuária na freguesia, uma obra de facto concretizada pou-
cos anos depois, como referi. No nosso encontro recente, acontecido no
início de 2015, face à minha surpresa por o velório não ter sido feito em
casa, Manuel obrigou-se a discorrer acerca dos vários motivos que tinham
arrastado a mudança de opiniões tão patente. Essa foi uma longa con-
versa, em que eu também falei muito, justificando a Manuel os meus in-
teresses com minúcia. Tentei dar-lhe conta do que tinha visto e lido sobre
a Galiza, onde mudanças similares tinham acontecido havia mais tempo,
e onde capelas mortuárias paroquiais ou tanatórios públicos e privados
eram comuns. Disse-me, então, Manuel que, curiosamente, sabia que o
padre da sua terra tinha ido viajar pela Galiza para encontrar inspiração
para a construção da «Casa da Paz»...

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Ottavia Salvador

Capítulo 11

«Não vão lá com flores». As mortes


não-evidentes na migração *
Introdução
Hoje na Europa, em Itália, em contextos migratórios, ocorrem as mortes
de pessoas que nascem cidadãos de um Estado e morrem em outro Estado
onde se tornaram (ou não se tornaram) cidadãos. Há também as mortes
daqueles que morrem migrando para um Estado de que não são cidadãos.
Todas estas mortes são não-evidentes porque os processos de significação
que veiculam e o tratamento social que ativam não são claros de imediato
ao olhar, transgridem a repetição/reprodução da «tradição», tornam-se em
singularidade, descontinuidade, impermanência, o que faz com que ne-
cessitem de ser vistas duas ou mais vezes para serem entendidas. Estas mor-
tes distinguem-se das mortes dos que não são emigrantes-imigrantes porque
revelam mais a sua dimensão política, são marcadas por diferentes inten-
sidades de pertença aos Estados, são não-evidentes também num outro
sentido: não-evidentes porque são tornadas não-evidentes.
Ao partir para o Estado de imigração, escrevia Sayad, o emigrante sen-
tia-se «como se fosse (ali) morrer» (Sayad 2002, 54); similarmente no re-
gresso para o Estado de emigração, sugeria o mesmo autor referindo as
palavras de um entrevistado: «De França [os emigrantes] só trazem de
volta as suas carcaças. É tudo o que lhes resta. Conservaram um monte
de ossos. Fica-lhes só isso, mas o essencial, o vivo, deixaram-no em
França» (Sayad 2002, 26).
Não escrevia sobre todos os emigrantes-imigrantes, escrevia sobre
aquelas mortes simbólicas que dizem respeito ao «não-ser» cívica, social
e politicamente determinado, pelo que muitos são (e foram) submersos
ou salvos, do que pode sobreviver um resíduo na linguagem ou não; um

* Tradução de Francesca Andolfo.

251
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Movimentos, Espíritos e Rituais

«não-ser» ao qual é possível adaptar-se, mas só adaptando a individuali-


dade à morte (quando esta chega da exploração, da escravidão, da invi-
sibilidade jurídica, da discriminação, do desaparecimento social e muito
mais). Também estas mortes acontecem, hoje, na Europa, em Itália.
Mas, voltando às mortes individuais-coletivas, no sentido literal, que
ocorrem em contextos migratórios, este texto propõe-se explorar duas
distintas modalidades de acontecimento, considerando e preferindo sem-
pre o pensamento de Estado refletido no corpo humano na migração,
porque, se «a migração é um fenómeno universal» – escrevia Sayad –,
«deve ser pensada sempre no quadro do estado-nação» (Sayad 2002, 367).
A primeira perspetiva diz respeito à dimensão privada-pública e à nar-
rativa das mortes não-evidentes, ocorridas em contextos migratórios: Por
quem são contadas? Como seguir o rasto das suas ausências? Como se
tornam histórias contadas e recontadas? O que é que dizem, não tanto
sobre a morte, mas sobretudo sobre a vida, sobre o que foi a «presença»
na migração? Como se interrogam os próprios emigrantes-imigrantes
sobre a sua própria história (e memória)?
A segunda perspetiva ocupa-se daquelas mortes individuais-coletivas
que acontecem no espaço suspenso entre emigração e imigração, durante
a travessia de fronteiras entre Estados. Em Itália acontece principalmente
no mar, há décadas, de forma excecional, trágica e incrivelmente evi-
dente, mas ao mesmo tempo, pelas razões mencionadas no começo, e
por outras ainda a explorar, de forma não-evidente. Os corpos nomeados
(de vivos) tornam-se em corpos anónimos (de mortos), os corpos que
comunicam em corpos silenciosos que são comunicados pelos outros,
pelo discurso público, pelo Estado. E no que se tornam ainda depois,
quando são enterrados e outra vez vocalizados por outros? O que é que
contam ali onde são enterrados, numerados, porque anónimos ou cha-
mados «imigrantes», «extracomunitários» como status definitivo da sua
existência, a giz no cimento?
Abriu-se com estas perguntas o campo de pesquisa, o contexto ita-
liano, para uma investigação que está só no começo e só pode propor
então as sugestões de um trabalho ainda em curso. A lógica do texto que
se segue desenvolve-se deste modo: no começo a pergunta que um
homem, Manash, fez a si mesmo um dia: «Sou um imigrante, onde serei
enterrado?»; depois a representação da morte individual-coletiva num
contexto migratório, por ele sugerida e concretamente vivenciada através
do seu envolvimento ativo no seu tratamento social. Em seguida, a di-
mensão privada de uma destas mortes, a história de alguns familiares left
behind sobre os últimos anos de vida de Ahmed, um jovem adulto que

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«Não vão lá com flores»

se encontrava numa condição de visibilidade/invisibilidade no Estado


de imigração. Na segunda parte, as mortes individuais-coletivas, no que
diz respeito aos corpos não-identificados, anónimos, entre os quais os
dos imigrados mortos nos naufrágios ocorridos ao largo da ilha de Lam-
pedusa, na Sicília, em outubro de 2013; finalmente, os seus enterros nos
cemitérios sicilianos, que se tornaram parte do pensamento de Estado,
do discurso público e, de alguma maneira, de participação social.

I
O título «Não vão lá com flores» remete para uma expressão de Ma-
nash, um homem de 43 anos, nascido no distrito de Barisal no Bangla-
desh e emigrado para a Europa em 1986. Depois de viver na Alemanha
e na Suíça, mudou-se para Itália em 1989, onde se casou com uma mu-
lher italiana em 2003, e com quem teve três filhos. Atualmente vivem
todos na zona de terra firme de Veneza. O diálogo com ele começou em
2012 através de uma pesquisa sobre as migrações familiares.
Entrevistei Manash na qualidade de presidente de uma associação so-
ciocultural para entender se esta era ativa nas práticas necessárias para o
reagrupamento familiar. Não o era, mas a unidade familiar e a sua di-
mensão legislativa, o facto de ser um direito, durante aquela primeira
conversa, provocaram nele muitas perguntas sobre a sua própria história
migratória e familiar, marcando inesperadamente as suas palavras com
uma grande emoção.
«Quem sou eu?», «Onde é que me sinto em casa?», perguntou-se na-
quele dia, chegando lentamente a uma resposta sobre a sua sedentariza-
ção, evocada pela pergunta seguinte: «Quando eu morrer, onde serei en-
terrado?» O lugar do «sentir-se em casa» e o lugar onde imaginava ser
enterrado estavam, nas suas palavras, intimamente correlacionados.1
Pensar no seu Estado-nação de origem foi a primeira forma de buscar
uma resposta, distinguindo-se dos seus filhos que, nascidos em Itália, na
sua opinião, podiam afirmar ser italianos com mais segurança, e de outros
que podiam dizer com convicção: «Eu sou bangladeshiano.» O que
podia dizer ele, com 43 anos, após ter vivido vinte e sete anos na Europa,
a maior parte da sua vida, e casado com uma mulher italiana?
Pensar no seu status de «imigrado», «estrangeiro», foi a segunda forma
de buscar uma resposta, sugerida por aquele «dizem-me [que]...» já não
sou bangladeshiano no Bangladesh porque agora sou italiano, ainda não

1
Fragmentos extensos das entrevistas no apêndice deste texto.

253
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Movimentos, Espíritos e Rituais

sou italiano em Itália, mesmo se for cidadão, porque serei sempre ban-
gladeshiano. «E então quem és tu?» relançou a si mesmo, sugerindo que
atrás do espelho do «quem sou eu?» também estivessem os outros a in-
terrogá-lo sobre a sua «identidade». Continuou resignado a que não hou-
vesse resposta, aceitando o destino de quem «vive fora de casa» como
ele e que se pode sentir «presente» apenas num nómada «onde», em
lugar nenhum, porque nem aqui nem lá, ou talvez no meio, entre estes
dois pontos cardeais.
Só uns minutos depois chegou a uma resposta, na forma de uma de-
cisão pensada já há algum tempo sobre viver e ficar em Itália, uma esco-
lha profundamente ligada à filiação. A última vez que voltou ao Bangla-
desh logo avisou todos, os seus pais e os parentes, que não ia voltar a
viver lá, que tinha decidido ficar no seu país de imigração, porque se lhe
acontecesse algo, se morresse em Itália, os seus filhos não poderiam ir ao
Bangladesh com flores, à sua tumba, talvez conseguissem ir uma vez na
vida e nada mais. Se tivessem de lhe dizer algo, confiar-lhe um momento
difícil da vida, como iam fazer, tão longe? Ficar em Itália tornava-lhes
possível ir ao cemitério «dizer que...».
Os seus olhos naquele momento tinham-se enchido de silêncio e co-
moção; mostrava-os e escondia-os porque incorporavam a intimidade
de um monólogo demasiado intenso. O «onde serei enterrado» revelava-
-se uma questão privada e ao mesmo tempo pública, penetrava a sua voz,
tornando-a vibrante, quase como se fosse ao centro dela mesma, de ou-
tras vozes, da terra, e petrificada na imagem da sua tumba; via-se trans-
cendido num dia qualquer dos anos futuros, num cemitério italiano, pe-
rante os seus filhos que vinham trazer-lhe flores.
Retomou a voz concluindo a sua reflexão com uma metáfora que na-
turalizava e apaziguava, de alguma forma, a sua experiência migratória e
a sua futura escolha de enterro: «Há tantas árvores, algumas folhas caem
antes, outras folhas caem depois, é uma coisa natural, algumas árvores
deslocam-se, outras ficam na mesma terra, então, se calhar eu sou uma
destas árvores.»
Um dia, dois anos depois, encontrámo-nos outra vez e ele continuou
o diálogo interrompido, juntando mais sugestões e disse, quase perentó-
rio: «Quero que, comigo, se acabe a imigração.» Os seus filhos não ti-
nham de ser «estrangeiros», ele ter-lhes-ia deixado algo [um nome, um
apelido] e eles não teriam de viver a imigração como ele a viveu, atraves-
sando também momentos de discriminação, a tal ponto que chegou a
pensar que seria melhor «enterrar a sua história já», não «a tirar» da me-
mória e contá-la.

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«Não vão lá com flores»

Se o seu cadáver não for repatriado para o Bangladesh, é porque essa


seria uma decisão sua «sobre a imigração», porque só se lhe fosse dado
«fixar-se» a si mesmo em Itália poderia a sua família não viver a imigração
como ele a viveu. Diferentemente dos outros emigrantes-imigrantes da
«primeira geração», que quando morrem preferem quase sempre voltar
ao seu país de origem, Manash sentia-se mais próximo das gerações se-
guintes que, na sua opinião, decidirão ficar aqui.
Continuou a descrever a terra de imigração como um jardim de flores
«mistas», como a sua família; uma natureza que se torna em jardim cul-
tivado, onde nascem muitas flores que ali vivem e morrem. Assim deve-
riam ser, sugere, também os cemitérios no Estado de imigração: a terra é
semeada, as árvores crescem e delas nasce a fruta, a fruta que não será
comida por quem semeou a semente, que morreu antes. As árvores foram
semeadas pelos primeiros que emigraram para aqui, que construíram o
cemitério, que pediram às autoridades que criassem um espaço reservado
ao enterro muçulmano. Suceder-se-ão as gerações e os nascidos mais re-
centemente talvez decidam plantar outros tipos de árvores que produzi-
rão outros tipos de fruta, que serão comidos por outros e, outra vez, os
que geram tudo morrerão antes de poder comer a nova fruta.
Ao descrever esta sucessão quase mítica de semeadores, Manash sen-
tia-se um deles. Ele também participou na recente criação do espaço ce-
miterial para enterros muçulmanos promovido pelas autoridades locais
num cemitério perto de Veneza. Eis a resposta, pública também, às suas
perguntas íntimas que requerem uma tomada de responsabilidade indi-
vidual/coletiva que se transformou, há uma década, também em envol-
vimento ativo quando há mortes de pessoas emigrantes-imigrantes de
origem bangladeshiana. Manash ocupa-se há tempo da lavagem ritual
dos corpos das pessoas falecidas antes da sua repatriação para o Bangla-
desh ou do seu enterro em Itália; contacta a agência funerária de refe-
rência e gere os contactos entre esta e os familiares dos falecidos; também
gere a recolha de doações para as despesas necessárias para a repatriação
dos corpos e o apoio económico aos familiares left behind.
É com esta experiência que Manash desafia o Estado italiano para uma
ajuda económica, até hoje nunca recebida, para as repatriações dos cor-
pos para os países de origem, mas também para os familiares left behind
(frequentemente mulheres viúvas com menores a cargo), e que talvez
fosse, aos seus olhos, uma forma de reconhecimento post-mortem na imi-
gração, de serem considerados uma parte fundamental do «corpo social»
também quando «já não há uma palavra [dos migrantes] que volta» [pa-
lavras suas].

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Movimentos, Espíritos e Rituais

Esta sua «reivindicação» lembra aquela contada por Maurizio Catani,


embora diferente porque dirigida ao Estado de emigração, apresentada
por uma associação de imigrados portugueses ao Presidente de Portugal
durante uma visita oficial a França nos anos 80. Em sua opinião, o Estado
português devia encarregar-se das despesas que as famílias emigradas de-
viam enfrentar no caso de repatriação de um corpo de França para Por-
tugal. «Este pedido», comenta, «está provavelmente, nos limites impostos
pela imanência ao nosso sistema de valores e às suas configurações na-
cionais, a forma extrema da vontade de dar um tratamento social aos
mortos» (Catani 1988, 728).
As repatriações de corpos de emigrados-imigrados bangladeshianos na
terra firme de Veneza são numerosas. Nenhum deles ainda escolheu ser
enterrado em Itália, os únicos enterrados num cemitério italiano foram
recém-nascidos. Muitos falecimentos foram violentos (homicídio, suicí-
dio) e Manash recorda-se daqueles corpos que viu durante o ritual da la-
vagem, corpos que podem espantar as pessoas, diz, pelas cicatrizes, pelas
marcas de cirurgias, pelas deformações, tal como se fossem o resultado
simbólico de um crash social que deve ser escondido ao olhar. «As pessoas
têm medo, não querem ver o corpo, mas alguém tem de fazê-lo, senão
estes [corpos] ficarão na rua ou no congelador ou num lugar qualquer.»
Nos primeiros anos não foi possível realizar os rituais antes da repatria-
ção para o Bangladesh. Manash e os demais tentaram pedir a autorização
municipal para efetuá-los num parque público, mas não foi possível devido
aos tempos da burocracia. Depois de alguns anos, uma agência funerária
começou a ocupar-se do transporte funerário internacional. O dono, Paolo,
após os pedidos de Manash, contribuiu para tornar burocraticamente pos-
sível a celebração do funeral, agora pública e visível nos anos seguintes:
«Não havia espaço para eles, eu criei-o sugerindo-lhes a ida para o cemitério
onde há um espaço fora ou se chover é possível fazê-lo dentro [na sala].»
«Inicialmente [o funeral] fazia-se com eles e mais ninguém, agora nos ce-
mitérios e nos necrotérios é impossível não os ver.»
É Paolo a única e última pessoa que acompanha os falecidos ao aero-
porto, onde a suspeita volta a surgir, a ser eliminada com uma verificação
eletromagnética antes e depois das passagens de fronteira na sua dimen-
são desmaterializada e aérea. «Ninguém dos parentes vem ao aeroporto,
não, porque vamos ao serviço cargo, entregamos os documentos, con-
trolam os documentos, depois [o caixão] passa pelo detetor de metais
porque controlam a existência de armas, [substâncias] estupefacientes, e
uma vez passados por ali, podem seguir.» Muitas outras agências funerá-
rias recusam contribuir para a gestão dos rituais, oferecendo só o serviço

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«Não vão lá com flores»

de repatriação do corpo como se fosse uma expedição de correio; os cor-


pos invisivelmente transportados do Estado de emigração, entre as mer-
cadorias de um avião de carga.
***
Ahmed era um destes corpos. Vi só a sua cara numa fotografia tipo
passe no anúncio da sua morte, escrito em língua bangladeshiana. A ce-
rimónia fúnebre foi muito breve, mas muito sentida, depois tudo acabou;
no dia seguinte o seu corpo partiria para Dhaka chegando de noite ao dis-
trito de Kishoreganj, onde tinha nascido havia trinta e oito anos. Emigrou
para a Itália sozinho em 1996 e depois juntou-se à mulher, com a qual
teve dois filhos. Trabalhou dez anos como camareiro num restaurante e
depois como operário numa empresa subcontratada de um estaleiro
naval; a oferta de trabalho diminuiu, ele perdeu o posto de trabalho en-
trando num longo período de desemprego, tentando um difícil regresso
ao mercado de trabalho que se tornou inútil na dura crise económica.
Ahmed descobriu estar gravemente doente e morreu em poucos meses.
Os familiares na Itália pensaram repatriar o corpo para a aldeia natal,
onde se celebrou o segundo funeral: «Também a sua família [no Bangla-
desh] queria ver o seu rosto e ‘deixá-lo descansar’ perto de casa.» «Ali todos
o esperavam para o ver [...] acho que a sua mãe viu o seu rosto, e a sua
mulher, e depois enterraram-no.» «Os seus dois filhos não acreditavam
que o pai estivesse morto.» «Enterraram-no perto de casa, pelo que a a sua
mãe chora ao vê-lo, da janela, chora assim que olha para o cemitério.
A sua mulher e a sua mãe desmaiavam frequentemente e por isso não qui-
seram aproximá-las demasiado dele, durante o enterro ficaram dentro de
casa, não as deixaram sair, pois caso contrário iriam desmaiar ao vê-lo.»
Os parentes residentes na terra firme de Veneza descrevem assim aque-
les momentos em que Ahmed é mostrado e escondido, é visto e não-
-visto. Ele, contam, nem queria que eles «vissem» a sua doença, tranqui-
lizava-os dizendo que depressa melhoraria e voltaria para o Bangladesh.
Pedia aos médicos do hospital italiano onde estava hospitalizado que
não dessem qualquer informação; nem os seus familiares no Bangladesh
«viam» a sua doença porque os tranquilizava por telefone. Dizia à mãe:
«Não chores, porque se choras, quando deixas o telefone o meu coração
queima, e posso morrer.»
Os anos de desemprego obrigaram-no a mudar de casa e ser hóspede
do irmão mais novo, «mandou embora a família [para o Bangladesh] por-
que tinha perdido o trabalho, mas de repente também perdeu qualquer
sentido, já não conseguia raciocinar. [...] Perdeu muitas das suas emoções».

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Movimentos, Espíritos e Rituais

Na casa do irmão só tinha as suas roupas e uns objetos pessoais, o resto


já o tinha enviado para o Bangladesh à mulher e aos filhos, pensando,
mesmo que apenas temporariamente, voltar lá. Nos últimos anos, talvez
pela «vergonha» de não ter trabalho, «escondia-se», dizem os parentes,
que o viam andar só e silencioso na terra firme de Veneza, invisível, na
ausência da mulher e dos filhos regressados ao Bangladesh sem ele, que
tinha perdido o trabalho e, imediatamente depois, «qualquer sentido».
Um dia, fora de casa, começou a sentir uma forte dor no peito, não se
sentia bem e pensou que se ele mesmo tivesse chamado a ambulância
não lhe «dariam importância» – contam os familiares –, se ele mesmo ti-
vesse chamado [a ambulância] não iam acreditar nele, então apanhou o
autocarro e foi ao hospital; foi hospitalizado imediatamente. «A doutora,
quando falei com ela, perguntou só se ele queria ir, voltar [para o Ban-
gladesh] para ver a sua família, a sua mãe, e depois voltar às terapias, mas
ele não nos queria dizer a verdadeira razão [pela qual não queria voltar
ao Bangladesh], dizia ‘vou ficar bem, não é necessário ir, vou depois...’
[...]. Estava como que encerrado dentro de algo e não conseguia sair [por-
que] pensava merecer [a doença].»
Nunca será possível saber se esta última frase é o reflexo verosímil de
uma pergunta que atravessou os últimos anos e dias da vida de Ahmed,
se verdadeiramente o silêncio premente entre ele e a sua necessidade de
cura se incorporou na voluntária aceitação de uma suspeita a dissipar
(não merecer a cura) e uma pena a cumprir (merecer a doença). É só uma
intuição de interrogação e imaginação, mas a história contada pelos fa-
miliares lembra, por semelhança, a do jovem de 28 anos entrevistado por
Sayad que disse: «Tens de demonstrar que trabalhaste, que morreste a
trabalhar. Se não morreres por uma desgraça, devem encontrar-se os re-
cibos dos teus salários. Não tens direito de morrer de outra forma. Então,
o que és aqui?» (Sayad 2002, 65). Esta pergunta ressoa nas palavras do
irmão mais novo quando, ao falar da morte de Ahmed, pensou em si
mesmo num futuro ainda longínquo, e disse: «Quando for velho em Itá-
lia, com 50 ou 60 anos, será demasiado difícil encontrar trabalho porque
nós estrangeiros... agora somos jovens e vamos trabalhar com um coração
[são], mas quando o coração já não estiver [bem], já não podemos ficar
em Itália. [...] Muitas vezes digo ao meu patrão que, quando eu morrer,
deverá dar o dinheiro da indemnização para a repatriação do meu corpo
para o meu país.»

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«Não vão lá com flores»

II
Há também os corpos das pessoas que procuraram um «onde» para a
sua vida e finalmente não o encontraram, morrendo no anonimato, de-
saparecendo do olhar de todos, e sendo depois enterrados à espera de
uma reivindicação da sua existência. A sua morte, frequentemente só in-
dividual e não coletiva porque privada de uma dimensão familiar, co-
munitária ou de grupo, teve lugar «fora», «que não pode ser seja onde
for. [...] É o ângulo morto da liberal inclusão democrática», uma exclusão
na qual tem lugar «a inversão do fazer viver biopolítico num discreto
deixar morrer, social ou real, e porque não, um dia, num fazer morrer
igualmente discreto» (Razac 2005, 67).
«Negro, achado num canal de escoamento numa zona agrícola»: é
uma das muitas notas nas margens do registo geral dos corpos não-iden-
tificados do Estado italiano, e há centenas, e muitas são relativas a emi-
grados-imigrados. «Morte por afogamento presumivelmente após o nau-
frágio de imigrantes clandestinos acontecido em Roccella Jonica.»
«Branco, caucasiano presumivelmente imigrante do Norte de África,
morte por afogamento.» «Estatura mediana, bolsa de cintura cor ama-
ranto com três notas e duas moedas, uma do Chipre, outra grega. Colete
salva-vidas cor de laranja.» «Mulher da Europa de Leste achada num
canal, vestia calças pretas.» «Corpo achado dentro de uma casa abando-
nada, sujeito negro.» «Provável imigrada, conhecida com o nome de
Khira.» «Cadáver de origem africana.» «Raça negra, H 170, 61 kg.» «Pro-
vável indiano.» «Negro, verosimilmente África centro-meridional.» «Sui-
cídio por enforcamento, provável estrangeiro.» «Estrangeiro.» «Náufragos,
negros.» «Náufrago.» «Fenómeno imigratório, morte 24/48 horas antes.»
A falta dos seus nomes e dos seus status, envolve-os numa dimensão
sagrada «no sentido que este termo [sagrado] tem no direito romano ar-
caico: [ou seja] votado à morte» (Agamben 1996, 26). Ficam as palavras
dos resíduos dos seus corpos nus, submetidos a um último poder de no-
meação: negro, raça negra, imigrante, imigrante clandestino, etc. Fica o
silêncio dos corpos falados destas mortes desintegradas.
Continua aquela longa lista estatal de existências não-identificadas
com uma nota, idêntica, repetida: «Fenómeno imigratório, cidadãos ex-
tracomunitários, após o naufrágio de 3 de outubro de 2013, achados 366
corpos.» Este naufrágio aconteceu ao largo da ilha de Lampedusa e teve
uma ressonância mediática e um impacto tão fortes que levaram o pri-
meiro-ministro de então, Enrico Letta, a anunciar que para aqueles mor-
tos se iriam celebrar funerais de Estado, após lhes ter sido concedida uma
cidadania italiana post-mortem.

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Movimentos, Espíritos e Rituais

Disse: «A decisão que posso anunciar aqui [é] que haverá um funeral
de Estado para as vítimas do que aconteceu, são todas escolhas e decisões
que cabem numa lógica de coparticipação de um sofrimento dramático,
de uma tragédia enorme que, nestas dimensões, nunca teve lugar no Me-
diterrâneo.» 2 A mesma declaração foi repetida a 9 de outubro, no comu-
nicado final da sessão do Conselho de Ministros, onde os funerais de
Estado foram rebaixados a funerais solenes: «O Conselho de Ministros
empenhou-se em honrar as vítimas do naufrágio de imigrantes ao largo
da costa de Lampedusa com funerais solenes.» Passaram os dias, e a data
dos funerais não foi estabelecida, acompanhada pelas primeiras dúvidas
das instituições. No entanto, vários media transmitiam as imagens de cen-
tenas de corpos colocados no cais, depois dos caixões transportados para
o hangar do aeroporto de Lampedusa, mais tarde, a bordo do navio Li-
bera e depois em Porto Empedocle acolhidos pelos lamentos de alguns
parentes e por um dístico que dizia «sangue nostrum»; finalmente, foram
filmados a serem carregados nos camiões para serem levados aos dife-
rentes cemitérios sicilianos nos espaços disponíveis para o enterro. De-
pois, saíram quase definitivamente da visibilidade mainstream.
Os funerais de Estado e os funerais solenes nunca foram celebrados,
foram substituídos por uma cerimónia pública programada no cais de Agri-
gento, longe do lugar da tragédia e dos cemitérios sicilianos onde os corpos
tinham sido enterrados; sem os sobreviventes, não-convidados por «razões
de segurança», e no entanto indiciados pelo crime de imigração clandestina.
A cerimónia foi acompanhada por polémicas e gritos de protesto que
pediam uma cerimónia mais digna. Os mortos ausentes tornaram-se, de
algum modo, numa plataforma política onde falaram também políticos,
ministros e embaixadores, entre os quais o embaixador eritreu que, à per-
gunta de um jornalista sobre o que ia acontecer aos mortos eritreus já
enterrados, declarou que o governo ia desenterrá-los e enviá-los à sua
custa para a Eritreia. Nunca aconteceu.
Na cerimónia de Agrigento não participou a presidente da Câmara de
Lampedusa, Giusi Nicoloni, que declarou: «Soube por acaso que os cor-
pos procedentes de Lampedusa estavam a ser enterrados. Sem funerais
nem de Estado, nem do País. [...] Fiquei muito amargurada pelo facto de
esta comemoração, mesmo que tardia e com os corpos já enterrados, não
ter tido lugar em Lampedusa. A comunidade da minha ilha não merece
não ser envolvida e apenas ser convocada quando já tudo se decidiu.» 3

2
Agenzia Televisiva Parlamentare (9-10-2013).
3
Agrigento Notizie (21-10-2013).

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«Não vão lá com flores»

Alguns dias antes, ao cemitério Piano Gatta de Agrigento, tinham che-


gado cento e cinquenta corpos. O responsável do cemitério declarou:
«Segunda-feira sepultámos oitenta deles em cinco jazigos, enquanto os
outros setenta foram enviados para outros municípios que tinham dis-
ponibilidade, na província de Agrigento e fora.» 4 Uma fundação local
doou oitenta e seis placas comemorativas para permitir afixar as fotos e
escrever os nomes quando, e se, os corpos fossem reconhecidos pelos fa-
miliares através da análise do ADN.
«Vinte e nove anos, eritreu», o seu é o único caixão dos trinta chegados
de Lampedusa a Castellamare del Golfo com um nome e um apelido
gravado; hoje no cemitério de Castellamare celebrou-se uma rápida ce-
rimónia religiosa e civil para uma última saudação às vítimas, trinta das
trezentos e oitenta e cinco vítimas do naufrágio de Lampedusa do pas-
sado dia 3 de outubro. As palavras do presidente da Câmara e de um ce-
lebrante tunisino foram pronunciadas perante as tumbas, depois dos en-
terros de ontem. Os outros vinte e nove caixões, infelizmente, como
muitos outros, foram identificados só por números.» 5 O presidente da
Câmara de Castellamare del Golfo declarou: «Esqueci-me de dizer, mas
agradeço a todas as pessoas que puseram à disposição os seus jazigos [de
família}, pois julgámos que seria mais oportuno pô-los todos juntos e
não dividi-los pelos vários jazigos, pelo que lhes digo obrigado.»
Em San Giorgio Platani, depois de ter rezado sobre as tumbas com
nomes ou números, uma freira disse: «Agradeço a este país porque o que
fizeram foi um enterro, uma celebração digna.» 6 Cantos cristãos e mu-
çulmanos entrelaçaram-se durante a celebração, com grande participação
dos habitantes. «O gerente do posto de gasolina colocou um garrafão de
vidro sobre a mesa, que dizia destinar-se a uma colheita de fundos para
dar uma sepultura digna a estes nossos irmãos.» «As pessoas colaboram,
com 50, 10 ou 20 [euros], para nós é a mesma coisa, o importante é ter
humanidade.» 7 Uma mulher que participou na cerimónia pensou na frase
a ser inscrita em cada tumba em árabe: «Com a alma voltará à morte.»
O presidente da Câmara ia apresentar uma moção ao conselho para con-
ceder aos cinco mortos a cidadania honorária.
O presidente da Câmara de Sant’Angelo di Brolo emanou uma dis-
posição para substituir os números que indicavam os corpos enterrados
no cemitério da cidade por nomes, mesmo que fictícios: «Por respeito à

4
Corriere della Sera TV (17-10-2013).
5
Antenna Sicilia (18-10-2013).
6
Repubblica TV (20-10-2013).
7
Repubblica TV (20-10-2013).

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Movimentos, Espíritos e Rituais

dignidade humana também depois da morte – lê-se na disposição – a


cada lápide deverá corresponder pelo menos um nome, evitando que até
mortos estes pobres desventurados tenham de manter uma condição de
diversidade para com a generalidade dos falecidos do nosso cemitério.» 8
Em Mussomeli foram enterrados vinte e quatro caixões identificados
todos por números, alguns em nichos de irmandades e associações, ou-
tros em tumbas de família. O hospital de Mussomeli promoveu uma co-
lheita de fundos para o enterro, e o responsável sanitário declarou: «Re-
conhecemos a disponibilidade da administração municipal nestes dias
para o enterro aqui na cidade de Mussomeli e nós, como hospital, não
podíamos não colaborar. [...] Decidimos aceitar este convite à solidarie-
dade, este convite a sermos cidadãos ativos.» 9
No cemitério de Bonamorone, algumas famílias ofereceram o seu ja-
zigo de família para o enterro de algumas vítimas do naufrágio de Lam-
pedusa. Um homem declarou: «Decidi trazê-los para o nosso jazigo para
que não se sintam esquecidos, para levar-lhes uma flor, como levo aos
meus queridos. As suas famílias provavelmente não sabem o que acon-
teceu, provavelmente não têm os meios para entrarem em contacto e
levá-los para casa. Eu quero agir como se fossem dois membros da minha
família. E como não há nada mais que eu possa fazer, pelo menos vou
dar-lhes um enterro digno. Não sei quem são. Não há nomes, naciona-
lidades. Só tenho dois números.» 10
Depois de um ano passado sobre o naufrágio, o governo italiano no-
meou um comissário extraordinário para «as pessoas desaparecidas», foram
acelerados os procedimentos de reconhecimento por comparação do ADN
e reconhecimento fotográfico, permitindo a identificação de uma parte
dos corpos enterrados. Um porta-voz do departamento declarou: «Dar um
nome a estes corpos não é só um dever jurídico, mas também moral.»
Levantam-se questões, que deveriam ser mais exploradas na sua génese,
manifestação e significado, como as tentativas não-evidentes, documenta-
das por distintos media locais sicilianos, de dar um tratamento especial a
estes enterros, de voltar a dar às mortes e às vidas, embora anónimas, o re-
conhecimento de uma dimensão coletiva: incorporando-as nos jazigos de
família, recolhendo fundos para torná-las mais semelhantes às outras, ri-
tualizando-as, tornando possível a «vocalização» das tumbas às vozes, para
quem um dia possa vir buscá-las.

8
AMnotizie (24-10-2013).
9
Castello Incantato (30-10-2013).
10
Agrigento Notizie (15-10-2013).

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«Não vão lá com flores»

Levantam-se outras questões, e deveria ser explorada a dissociação, o


pânico do Estado perante si mesmo, os anúncios desmentidos de funerais
solenes e de cidadanias post-mortem para os mortos, as revelações das con-
tradições do pensamento do Estado sobre si mesmo, os simbólicos equi-
líbrios de poder que geram e incorporam, tornando-se em ações, atos,
palavras (antes, durante e depois destas morte não-evidentes). O Estado
entendido também na sua dimensão teatralizada, teológica (Bourdieu
2013, 14), a encenação do cais de Agrigento, à espera de «uma nova ce-
rimónia oferecida por outro morto, cuja vida mereça uma representação
dramática, não-trágica» (Genet 1997, 23). Aos socorristas, aos sepultado-
res, às vanguardas sem nome do Estado, às pessoas que aí estavam, ao
contrário, o ónus inevitável da tragédia: tocar a morte, ver a colisão, re-
conhecê-la e desaliená-la, espelhar a sua cara na de um morto e pergun-
tar-lhe: «Quem sou eu?»

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«Não vão lá com flores»

Apêndice
Três fragmentos de entrevistas a Manash
«Não vão lá com flores»
«Eu agora tenho muitas dificuldades, a dificuldade é essa, a pergunta
que eu me ponho: quem sou eu? É esse o ponto, eles, os meus filhos,
dizem ‘que sou italiano’, outros dizem ‘que sou bangladeshiano’. Mas eu,
o que digo eu? Quem sou eu? Agora tenho 43 anos, moro na Europa há
27 anos, vivi a maioria da minha vida na Europa, nasci no Bangladesh e
moro na Europa. Após todos estes anos ainda me dizem ‘és estrangeiro’,
‘és um imigrado’, ‘tu não és italiano, tu és bangladeshiano’. Se eu for ao
Bangladesh, dir-me-ão ‘tu és italiano, não és bangladeshiano porque vives
lá’ e então a minha pergunta para mim é ‘Quem sou eu?’ [...] Não há res-
posta, não há. Pode-se dizer imediatamente que sou um cigano, como
dizem... mas no final é assim, vais lá e dizem-te ‘não és bangladeshiano’,
vens aqui e dizem-te ‘não és italiano’ e então ‘Quem és tu?’. Não há res-
posta, aqueles como eu que moram ‘fora de casa, fora do país’, para eles
a resposta é a mesma, a mesma dificuldade que eu tive. Àquela pergunta,
àquela pergunta eu não posso responder, não há resposta, porque não há
nada cumprido, não há, estar uma parte aqui e uma parte ali não te deixa
em lugar nenhum, não escolhi nenhum lugar, nem aqui nem ali, então
talvez esteja no meio. [...] Se calhar decidi que fico aqui, já não volto para
lá, porque os meus filhos estão aqui, então em 2007 quando voltei ao
Bangladesh avisei os meus pais, os meus parentes, todos, disse: ‘Olhem
que eu não vou voltar, voltarei para visitar-vos, para ver-vos, para comu-
nicar convosco, para ver os parentes, para falar com os parentes, mas já
não para viver, porque eu vivo lá’. Agora aquilo de que mais preciso são
os meus filhos, quando não estás casado os pais são as pessoas mais pró-
ximas, quando estás casado a tua mulher é a pessoa mais próxima, quando
tens filhos, eles são as pessoas mais próximas e para mim também é assim,
é natural. Pensei isto: se me acontecer algo ou se eu morrer aqui, se
os meus filhos ou os meus parentes me enviarem para o Bangladesh, os
meus filhos não vão ir para lá com flores, não vão, porque fica longe, é
caro e então talvez lá vão uma vez na vida, duas vezes na vida e depois

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Movimentos, Espíritos e Rituais

não. Pode ser que se o meu corpo estiver aqui e eles tenham momentos
difíceis, quando sentem um entrave ou algum choque, na vida, talvez vão
ao cemitério dizer que... [comoção]. E assim... pelo que eu pensei, decidi
que já não me irei embora, não. Os meus amigos mais íntimos sabem-
-no, os que me conhecem há muito tempo, todos sabem, já decidi. Há
tantas árvores, algumas folhas caem antes, outras folhas caem depois, é
algo natural, algumas árvores deslocam-se, outras árvores ficam na mesma
terra, então, se calhar eu sou uma destas árvores» (2012).

«É culpa da terra...»
«Acho que os [migrantes] da primeira geração querem sempre voltar
ao seu país quando morrem, enquanto os da segunda geração ficam
todos aqui, quando morrem, tenho a certeza disso, a primeira geração
não, a primeira geração enviam-na para o país de origem. As novas gera-
ções ficam aqui, vejo a mudança de mentalidade, vejo a mudança de
terra. Se eu nasci no Bangladesh, então o meu coração bate ainda pelo
Bangladesh, os que nasceram aqui ou que têm pais bangladeshianos,
aqueles meninos falam de Itália, não falam do Bangladesh, eles falam
desta terra porque nasceram aqui, quando morrerem com certeza ficarão
aqui. O seu pensamento também é diferente, é culpa da terra com cer-
teza, é culpa da terra, de onde se nasce, é a terra que te faz nascer, é ela
que faz pensar em todas estas coisas, tudo, tudo nasce da terra. Durante
todos estes anos aqui, eu vi a mudança, a mudança de terra, é a terra que
faz pensar nestas coisas. Se fazes um fato ou sapatos aqui em Itália, pões
made in Italy, então made in Italy sempre é made in Italy, os sapatos que fi-
zeste na Alemanha ou na Tailândia ou na China, se pões made in Italy
não vão durar como estes, é impossível. Quem nasce aqui na Itália é ita-
liano, se um menino nasce no Bangladesh então é bangladeshiano e os
dois têm pensamentos diferentes, mentalidades diferentes, uma cultura
diferente, tudo é diferente, mas nós queremos juntar tudo, fazer algo
‘combinado’. Se eu for a um jardim de rosas, onde só há rosas, há uma
rosa vermelha, se eu colocar tudo num jardim só, digamos um jardim
de flores, já não será um jardim de rosas, será um jardim de flores onde
há todas as flores, flores vivas, flores mortas, flores lindas e feias, flores
perfumadas e não-perfumadas no mesmo jardim» (2014).

«Se nós vivemos aqui, trabalhamos aqui, comemos aqui,


fazemos tudo aqui…»
«Tu semeias a terra, as árvores crescem e delas a fruta, mas aquela fruta
não a comes tu, tu cria-la, mas não podes comê-la porque morres antes.

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«Não vão lá com flores»

Então os que criaram [o cemitério] aqui, aqueles que migraram primeiro


aqui, todos eles juntos pediram à Câmara Municipal [que criasse um es-
paço cemiterial reservado aos enterros segundo o rito muçulmano]. Eles
plantaram as árvores, mas os frutos comê-los-ão os outros, e sempre assim
foi, se pões uma semente de fruta sabes que daquela árvore vem a fruta
e tu não a podes comer porque não é para ti, para ti é o ato da criação,
pois quando os outros comeram a fruta talvez digam ‘esta fruta já não
está boa, quero outro tipo’ e começarão a semear outras sementes, co-
meçarão outra coisa. Por sua vez, não poderão comer essa fruta, essa fruta
será comida por outras pessoas, sempre foi assim. Se nós [emigrantes e
imigrantes] vivemos aqui, trabalhamos aqui, comemos aqui, fazemos
tudo aqui, então podemos estar aí todos juntos [no cemitério] é justo,
eu acho, é justo o que a Câmara Municipal fez, chamar todos, juntar
todos, falarmos todos juntos, isto é ‘integração’» (2014).

«Quero que comigo se acabe a imigração...»


«Quero que comigo se acabe a imigração, tudo. Depois começará um
outro apelido, uma outra família que nasce do meu apelido, nasce aqui
em Itália, os meus filhos tornaram-se italianos com o mesmo apelido.
Não estrangeiros. Se eu me mudar outra vez, para um lugar novo, até
pode ser que depois de dez anos os meus filhos decidam voltar à Itália,
mas ser-lhes ia muito difícil porque perderiam a língua italiana. Se viessem
comigo [para lá, para onde eu tivesse emigrado, outra vez] ficariam como
eu que me sinto bangladeshiano e [outras vezes] não me sinto banglades-
hiano, então ser-lhes-ia muito difícil. Estes são os problemas que tenho
com a imigração, não quero que os meus filhos também os tenham. Por
isso fiquei aqui, se houver problemas [económicos] e não conseguir re-
solvê-los, se tiver muitas dificuldades, ainda ficarei aqui. É assim. Só fi-
cando aqui [em Itália] conseguirei fazer algo para o futuro, no futuro a
minha economia não vai melhorar, mas o meu nome vai ficar. Deixo algo
ao mundo para quando eu já não estiver aqui. Isso fica, criei-o há anos,
pelo menos algo fica. [...] Se eu morrer aqui em Veneza, na Itália, o meu
corpo não irá para o Bangladesh, e esta é uma decisão sobre a imigração.
Se eu morrer aqui e for enviado para o Bangladesh, talvez os meus filhos
não vão lá porque se forem, serão «migrantes» lá. Então se eu «me» fixar
aqui, depois disso já não haverá imigração na minha família, não haverá,
eles não deverão mudar-se, se calhar irão para o estrangeiro estudar ou
trabalhar mas não será imigração, o imigrante como eu me senti, eles não
se virão a sentir depois de mim, porque se eu morrer aqui e eles mantive-
rem o meu corpo aqui, poderão pôr flores na minha tumba. Se pelo con-

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Movimentos, Espíritos e Rituais

trário me levarem para o Bangladesh, como o farão? Não é a mesma coisa,


por isso decidi, decidi que o meu corpo ficará aqui, em Itália, onde con-
seguimos um lugar para muçulmanos em Marghera, então já disse aos
meus familiares também no Bangladesh que o meu corpo não voltará
para lá. Enfim, a minha família está aqui, os meus familiares não são a
minha família, a minha família está aqui. Os meus familiares, o meu ape-
lido são outra coisa, os meus familiares moram na Europa, no Bangladesh,
a minha família mora em Itália, em Veneza. Esta é a diferença, família e
familiares. [...] O que eu sempre ouvi sobre a imigração, sobre mim como
imigrante, prefiro que os meus filhos não o ouçam, esta é a minha decisão,
eles poderão decidir por eles mesmos [se emigrar ou ficar]. Se calhar eles
não sentem esta coisa como eu, como eu senti, há muitas coisas que eu
senti e que eles já não sentirão ou sentirão muito menos. Se eles ficarem
na terra onde nasceram, sentirão ainda menos a imigração. Eu morei em
tantos países da Europa, em tantas cidades de Itália e senti coisas que eles
nem conseguem imaginar, por isso eu quero que a imigração se acabe co-
migo. O que eu senti e vi [episódios de discriminação] se o explicar às
pessoas, não conseguirão entender, quanto mais explicas mais complicada
se torna esta história, então é melhor sepultá-la já e não falar dela. O que
eu experimentei e vivi como imigrante, não quero contá-lo aos meus fi-
lhos porque se sentiriam mal» (2014).

Obrigada Giuliana Chiaretti, Iside Gjergji e Samuele Livornese pelos


diálogos e sugestões sobre este texto.

Referências bibliográficas
Agamben, Giorgio. 1996. Mezzi senza fine. Note sulla politica. Turim: Bollati Boringhieri.
Bourdieu, Pierre. 2013. Sullo Stato. Corso al Collège de France Vol. I (1989-1990). Milão: Fel-
trinelli.
Catani, Maurizio. 1988. «Je suis émigré, où doit-il être inhumé mon corps? Des individus
qui entendent fonder une transcendance». In Le lien social: identités personnelles et soli-
darités collectives dans le monde contemporain: 13ème colloque de l’A ISLF, Genebra,
1988/08-09/29-02, 718-734.
Chaïb, Yassine. 2009. «La morte nell’immigrazione. La sepoltura come riferimento mi-
gratorio». In aut aut 341, 65-77.
Genet, Jean. 1997. Il funambolo. Milão: Adelphi.
Razac, Olivier. 2005. Storia politica del filo spinato. Verona: Ombre Corte.
Sayad, Abdelmalek. 2002. La doppia assenza. Dalle illusioni dell’emigrato alle sofferenze dell’im-
migrato. Milão: Cortina Raffaello.

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Rui Graça Feijó


Susana de Matos Viegas

Capítulo 12

O lugar dos mortos: geografias


móveis e os monumentos
aos mártires em Timor-Leste
Em 2012, quando iniciámos o trabalho de campo em Timor-Leste,
presenciámos o início de uma expedição em busca dos restos mortais de
parentes enterrados nas montanhas do Matebian. Vários homens de ca-
tana na mão e uma atitude corporal de distanciamento e até belicosidade
juntavam-se na povoação de Chai na região de Loré, onde habitantes de
aldeias inteiras se refugiaram fora dos povoados, nas montanhas, no pe-
ríodo da ocupação indonésia. A imagem desta expedição nunca mais
nos deixou, marcando a tensão e a ambivalência da paz e da guerra que
a presença dos mortos pode causar na vida timorense.1
O nosso primeiro assistente de campo, Abílio, que estava connosco
quando passámos em Chai em 2012, comentou nessa altura que a dis-
persão dos restos mortais dos parentes mortos não viabilizaria a paz entre
os timorenses:

Muitos regressaram do Matebian para cá, mas os guerrilheiros ficaram lá


na mesma, no mesmo sítio e abandonados em todo o Timor-Leste. Depois,
alguns morreram lá, porque eles acompanharam os seus companheiros. Mor-
reram. Alguns enterraram, alguns puseram nas cavernas. Depois no mo-

1
O presente capítulo insere-se no projeto de investigação que ambos temos desen-
volvido intitulado «Co-habitações: dinâmicas de poder em Lautém (Timor-Leste)», fi-
nanciado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT PTDC/CS-ANT/118150/
2010). O trabalho de campo beneficiou igualmente de apoios da Fundação Oriente em
Díli e da Secretaria de Estado da Cultura da República Democrática de Timor-Leste. Ao
longo destes anos contámos com a colaboração de Abílio do Santos Tilman (primeiro
nas funções de delegado local da Secretaria de Estado da Cultura e depois como nosso
assistente de campo) e, após o seu triste falecimento em 2013, de Mestre Justino Valentim
e de Gil dos Santos. O nosso ensaio é dedicado à saudosa memória de Mestre Justino
Valentim que faleceu tragicamente em 2014.

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Movimentos, Espíritos e Rituais

mento da independência total – como na cultura de Timor não pode deixar


os ossos dos parentes em todo o lado – então tiveram que procurar os seus...
Os ossos da sua família. E vão enterrar lá perto da casa ou lá no cemitério
[Abílio, julho 2012].

A opção entre enterrar «lá perto de casa ou lá no cemitério» envolve


uma decisão sobre a fixação dos mortos que em nada é simples para os
timorenses. O próprio Abílio tinha um filho que morrera no período da
ocupação indonésia e fora enterrado exatamente à porta de sua casa, en-
quanto outros membros da família ficaram num cemitério usado por vá-
rias povoações contíguas, entre elas aquela de onde a sua família se ori-
gina e onde tem proeminência política e direitos reconhecidos de
ocupação e usufruto de terra. Foi nesse cemitério que a família o sepultou
quando faleceu em 2013. A necessidade de fixar numa cartografia de
mártires os túmulos dos que morreram e foram enterrados ou simples-
mente desapareceram tem sido tida sucessivamente como mais e mais
urgente para os timorenses, englobando dimensões múltiplas das suas
vidas presentes e futuras.
A dispersão pelo território dos parentes falecidos, por vezes em locais
inviáveis de serem determinados, foi sentida como um mal-estar a resol-
ver logo após a saída dos indonésios do território. Após a independência
em 2002, ao realojamento dos cerca de 150 000 timorenses vivos que se
estima terem sido deslocados durante o período da ocupação indonésia,
foi-se somando o «realojamento» dos mortos e o arranjo e rearranjo dos
seus túmulos. De facto, os trabalhos mais consistentes sobre os processos
timorenses de lidar com a situação pós-conflito têm mostrado que a re-
cuperação da paz implica garantir que a relação dos que sobreviveram
com os que morreram esteja apaziguada, e tal atinge-se, em primeiro
lugar, encontrando o lugar certo e a forma adequada de enterrar um
morto (Loch e Prueller 2011, 320).
Assim, por um lado, como disse um timorense em conversa com a an-
tropóloga Janet Gunter (2016), «sem paz não se pode fazer o enterro» –
assim verbalizando o sentimento de que não foi possível fazer as devidas
cerimónias mortuárias durante o período da vigência da ocupação indo-
nésia e menos ainda aos que haviam sido abatidos e enterrados nas mon-
tanhas. Por outro lado, no entanto, poderemos parafrasear esse timorense
anónimo e afirmar que, em Timor-Leste, sem um enterro digno não pode
haver paz e que, portanto, os esforços para construir uma paz duradoura
passam necessariamente pelo culto prestado aos que tombaram na luta,
a quem deve ser dada a morada definitiva, ou tratar de novo aquelas se-

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O lugar dos mortos: geografias móveis e os monumentos aos mártires em Timor-Leste

pulturas que devido aos constrangimentos políticos do tempo da ocu-


pação não faziam jus aos feitos valorosos dos que partiram.
A partir de 2007 o próprio governo timorense passou a tomar como
prioritária essa relação entre paz e homenagem aos tombados na luta
pela independência. A crise política de 2006 que parecia fazer mergulhar
o país em conflito aberto desencadeou uma consciência forte de que era
necessário dar maior atenção à homenagem aos heróis da resistência (cf.
Loch e Prueller 2011, 321). Com a eleição de Xanana Gusmão como pri-
meiro-ministro, um programa diversificado de atendimento e homena-
gem aos mártires veio a desenvolver-se. Emergiram opções de enterro
dos mártires que marcaram formas de pertença não apenas a um território
familiar, mas também a um território nacional, como sejam os cemitérios
para os heróis nacionais. Xanana foi responsável até pelo desenho do ce-
mitério nacional dos mártires chamado «Jardim dos Heróis», construído
em Metinaro, junto da principal base militar das FALINTIL – Forças de
Defesa de Timor-Leste, F-FDTL – local portanto associado ao espírito
de unidade nacional. De seguida foi implementada uma réplica arquite-
tónica desse cemitério em cada um dos distritos do país. Segundo as in-
formações que obtivemos, na inauguração do cemitério nacional em Me-
tinaro em 2009 sepultaram-se cerca de 400 cadáveres, maioritariamente
localizados através do Programa de Recolha de Restos Mortais levado a
cabo pelas F-FDTL. Inicialmente previsto para acolher a sepultura de
mártires tombados pela pátria nos anos de conflito, este cemitério na-
cional tem vindo a acolher igualmente os restos mortais de outros cida-
dãos que participaram na resistência e morreram já depois da indepen-
dência, consagrando assim uma espécie de panteão nacional.
A investigação de campo que realizámos entre 2012 e 2014 no total
de oito meses na região de Lautém, entre os timorenses falantes da língua
Fataluku, em parte dedicou-se à reflexão sobre a variedade de formas de
conexão entre a territorialidade dos mortos e dos vivos, implicando uma
historicidade que integra a experiência da luta pela independência na-
cional. Integrámos como parte da observação participante múltiplos en-
foques dirigidos ao tema, sendo de salientar entre o que mais se refletem
no material apresentado neste artigo conversas em cemitérios sobre as
pessoas identificadas em cada túmulo, entrevistas com familiares dos
mártires, bem como com elementos de relevo nas estruturas clandestinas
da Resistência, conversas com antigos combatentes que em alguns casos
foram seguidas de visitas a monumentos que se tornaram em estudos de
caso. A nossa participação em vários tipos de cerimónias fúnebres ou de
comunicação com antepassados serve igualmente de pano de fundo ao

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Movimentos, Espíritos e Rituais

que aqui apresentamos. Finalmente, a recolha de dados junto das estru-


turas do governo que se ocupam das várias dimensões associadas as «Ve-
teranos» – vivos ou mortos – foi igualmente também sistemática e da
maior importância para este tema.2
Neste capítulo propomo-nos apresentar uma identificação empírica
da diversidade de soluções de fixação dos mortos em locais determina-
dos, revertendo a geografia móvel dos que tombaram e ficaram «aban-
donados em todo o Timor-Leste» numa cartografia dos mártires. Para
cada caso apontamos os dilemas e as tensões tantas vezes vividos pelos
familiares dos mortos quanto à escolha do local de fixação. O nosso ob-
jetivo é o de refletir sobre a diversidade de soluções e o seu papel na cons-
trução de geografias de pertença e de reconhecimento que se vão defi-
nindo conjunturalmente. Como veremos na secção conclusiva,
comparado com outros casos como o da vizinha Indonésia, esta diversi-
dade de processos de fixação e a forma como eles têm partido mais de
dinâmicas interpessoais e familiares, reservando ao Estado um papel de
intervenção não-autoritária, ajuda a compreender dinâmicas de cruza-
mento entre várias tensões de escala e pertença, sendo, para o efeito, con-
duzidos analiticamente por uma etnografia dos processos de construção
pelos timorenses das suas próprias geografias dos túmulos.

Os túmulos entre os Fataluku


Entre os Fataluku os túmulos são tradicionalmente construções de
pedra que no caso de alguns dos «grupos de origens» (ratu em Fataluku)
chegam a atingir dois metros de altura. No conjunto do território habi-
tado pelos falantes de Fataluku é notória a dispersão de túmulos pela pai-
sagem. Uns estão agrupados em pequenos núcleos, outros estão isolados,
outros localizados à porta de casa e outros ainda mais concentrados em
áreas a que poderemos chamar propriamente «cemitérios» no sentido
moderno. Quando uma conversa se trava em Fataluku e se referem a
estes últimos locais usa-se a palavra portuguesa «cemitério», enquanto
uma cerimónia ou um enterro que implique ir a outro dos espaços de
enterro é descrita como «ir ao túmulo» (lutur mara).

2
Entre elas, refira-se a Secretaria de Estado para os Assuntos dos Combatentes da Li-
bertação Nacional e o seu Departamento de Pensões. Em Portugal pudemos contar tam-
bém com a colaboração de um antigo oficial português (Manuel Luís Real) que prestou
serviço em Timor nos idos de 1974-1975, e que lidou de perto com indivíduos a que nos
iremos referir.

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O lugar dos mortos: geografias móveis e os monumentos aos mártires em Timor-Leste

A proximidade do túmulo em relação à área de residência ou de ori-


gem é também recorrente em várias partes de Timor, fazendo parte da
história de longo termo em múltiplos contextos do Sudeste Asiático onde
a proximidade de um túmulo em relação à área de habitação é não ape-
nas tolerado como em alguns casos altamente desejado. Sabemos da sua
dimensão histórica: na primeira metade do século XX, o governador Teó-
filo Duarte (1927-1928), que viria a ser ministro das Colónias de Salazar
(1947-1950) e o seu ajudante, o capitão Armando Pinto Corrêa (depois
administrador de Baucau entre 1928 e 1934) deixaram-nos comentários
ao programa de construção de aldeamentos levado a cabo pelo famoso
governador Celestino da Silva (1894-1908), que ambos achavam ter sido
um enorme fracasso. Os putativos benefícios materiais objetivos que de-
correriam desse programa «não chegam para os fazer aceitar de bom
grado tais resoluções, na medida em que implicam uma separação da po-
pulação em relação às sepulturas dos seus antepassados, normalmente
localizadas na vizinhança das suas casas». A intensidade desse sentimento
seria tal que, «apesar do espírito de obediência que caracteriza este povo
e a boa vontade dos seus chefes», o governador considerava o programa
de aldeamentos como «uma operação perigosa» (Duarte 1943, 18). Já
para Pinto Corrêa, essas políticas de antigos governadores não obtiveram
resultados positivos porque «depararam com a oposição passiva mas in-
tensa dos povos indígenas, acorrentados aos seus pedaços de terra, que
procuram na proximidade dos túmulos dos seus antepassados o mesmo
tipo de consolo que os europeus encontram nos seus oratórios familiares»
(Corrêa 1944: 349). Hoje em dia abre-se uma exceção nos casos em que
alguém tenha sido morto por bala ou catana (ula ucano) – um «tipo» de
morte específica para os Fataluku e muitos outros timorenses (e. g., Sousa
2010, 80) – e não tenha sido sujeito a preceitos destinados a «fechar o
corpo», situação essa em que se desenha uma vontade expressa de o en-
terrar num local isolado e distante dos túmulos dos familiares. Nos res-
tantes casos, a proximidade entre áreas de habitação e túmulos é pro-
curada. Entre outros aspetos que não tem cabimento aqui desenvolver,
a ligação constante entre os vivos e os mortos implica cuidar, zelar, fazer
ofertas aos mortos nos seus túmulos.
Na região de Lautém, entre os Fataluku, a localização de um túmulo
determina vários parâmetros de relacionamento com os vivos. Por um
lado, a frequência com que se visitam os túmulos e a informalidade des-
sas visitas é uma parte importante da forma como os túmulos são inte-
grados nos espaços de vivência diária. Os locais com túmulos são com
frequência locais de passagem de crianças, jovens, ou adultos, por exem-

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Movimentos, Espíritos e Rituais

plo nos périplos de cada entardecer, quando crianças e mulheres se diri-


gem a áreas com mata para apanhar lenha para o fogo doméstico. Por
outro lado, nas cerimónias realizadas em torno dos túmulos, raramente
se desperdiça a ocasião para alastrar a outros túmulos a benfeitoria de
uma interpelação, ainda que esta seja dirigida apenas a um dos anteces-
sores por meio do seu túmulo particular. De facto, a possibilidade de um
ato dirigido a um túmulo se «contagiar» a muitos outros túmulos foi por
nós observada várias vezes. Numa ocasião em que se tratou da homena-
gem a um homem que havia falecido havia quinze anos, a qual foi orga-
nizada pela sua viúva e filhos, não só vários túmulos em seu redor foram
embelezados, como se agregou ao evento uma visita ao túmulo da mãe
desta viúva que se localizava noutra área, mas próxima. A identificação
do local onde alguém está enterrado e a geografia dos túmulos é então
entre os Fataluku parte integrante da sua territorialidade.
No caso dos mártires a fixação dos seus túmulos implica entrelaça-
mentos ambivalentes. Por um lado, as memórias existentes são contro-
versas e justificam esforços contemporâneos dos familiares em afirmar
uma versão «oficial» dos acontecimentos históricos, que contribua para
os fixar no panteão dos heróis seja a nível regional, seja a nível nacional.
Optar por esta última hipótese implica enterrar em lugares novos, sepa-
rados e longínquos dos espaços familiares.
A proximidade aos túmulos prende-se também com o quadro histó-
rico-cultural mais vasto da vida social timorense e seu enquadramento
no Sudeste Asiático. Encontramos aqui inúmeros casos em que os ante-
passados fazem parte integrante do conjunto de atividades dos vivos. De
facto, logo nas primeiras monografias sobre Timor-Leste, David Hicks
mostrou como entre os timorenses da região de Viqueque múltiplos as-
petos da vida social estavam dependentes das relações entre os vivos e o
mundo dos seus antepassados, afirmando mesmo que «o ritual funerário
é o mais complexo entre todos os rituais Tétum» (Hicks 2004, 132). Eli-
zabeth Traube (1980 e 1986) tem o trabalho mais significativo sobre o
enterro dos mortos como um processo prolongado e reiterado no tempo
entre os Mambai, que nos mostra a sequência de cerimónias realizadas
ao longo de anos, destinadas ao intuito final de transportar o espírito dos
mortos para o mar. Também Shepard Forman (1980), que trabalhou
entre os Makassae na década de 1970, e mais recentemente Andrew
McWilliam (2006 e 2011), que tem desenvolvido a sua pesquisa sobre-
tudo sobre os Fataluku em Lautém, ou ainda Damian Grenfell (2012),
apontam para a centralidade dos rituais funerários e das relações com os
antepassados na vida dos timorenses.

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O lugar dos mortos: geografias móveis e os monumentos aos mártires em Timor-Leste

O caso dos Fataluku dialoga de várias formas com a etnografia de


Shepard Forman sobre os vizinhos Makassai, para quem o infortúnio e
a concomitante necessidade de tudo fazer para o evitar aparece como es-
truturante das relações entre vivos e mortos (Forman 1980, 153). É igual-
mente o caso dos funerais em vários contextos socioculturais na ilha de
Sumba (Indonésia) onde, como afirma Geirnaert, «cuidar dos mortos e
a preparação do nosso próprio funeral são preocupações centrais dos
vivos» (Geirnaert 2002, 32). Ainda que haja diferenças significativas entre
o tipo de antepassados marapu na ilha de Sumba, fundados em estatuto
de nobreza, e o complexo Fataluku de antepassados, a magnitude de al-
guns funerais com sacrifício de búfalos com chifres de grandes dimensões
destinados de forma particular a homens idosos aproxima-se em vários
aspetos do tipo de dignificação de alguns mortos que encontramos des-
critas pela antropologia para outros contextos do complexo das ilhas
Sundas (e. g., Hoskins 1993; Geirnaert 2002, 33; Conville 2002; Viegas
2016; no prelo 2017). O que Forman não endereça e a nossa investigação
tem vindo a trabalhar de forma particularmente direcionada é a forma
como os túmulos integram a territorialidade dos vivos tanto na atuali-
dade quanto historicamente (cf. Viegas 2016; no prelo 2017; Viegas e
Feijó [no prelo]).
Entre os Fataluku, os túmulos de parentes falecidos de duas até quatro
gerações ascendentes são efetivamente visitados com frequência, inte-
grando o quadro ritual de conexão com os antepassados. O papel de
cada um dos parentes falecidos na vida presente e futura dos seus parentes
está dependente de um conjunto vasto e não-linear de circunstâncias,
entre as quais tem lugar o respeito que os parentes vivos e particular-
mente os de descendência patrilinear lhe atribuem. Quando se trata dos
mártires, esse respeito, ou dignidade, é mais complexo. Se um homem
que morre velho está em boas condições para se tornar um importante
comunicador entre vivos e antepassados, o seu túmulo pode merecer
logo de raiz materiais mais nobres, uma maior dimensão, e ter postes fu-
nerários particularmente pujantes com grandes cabeças de búfalo. Muitos
outros imponderáveis irão igualmente intervir nesse seu eventual futuro
papel. O tipo de relação dos Fataluku com os seus antepassados está
muito longe de se aproximar das atitudes de veneração (worship) que têm
sido assinaladas por exemplo para Java, onde massas populacionais se
deslocam em peregrinação religiosa para visitarem túmulos que ganham
uma notoriedade fixa e de certa forma atemporal (cf. Chambert-Loir e
Reid 2002, XVII). Não havendo aqui lugar para maior desenvolvimento
deste tema, importa deixar esta nota sobre o carácter mais familiar da re-

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Movimentos, Espíritos e Rituais

lação dos falecidos com os seus antepassados entre os Fataluku. A sua


presença e a sua intervenção no bem-estar dos vivos são uma marca da
vida secular e portanto ela integra a própria trajetória da modernidade
em Timor-Leste. Como bem notam Henri Chambert-Loir e Anthony
Reid em vários contextos do Sudeste Asiático onde historicamente é cen-
tral a continuidade entre vivos e antepassados, a intervenção dos ante-
passados no bem-estar dos vivos é parte integrante do «enquadramento
conceptual no âmbito do qual a sociedade moderna tem de ser interpre-
tada» (Chambert-Loir e Reid 2002, XXVI).
Os casos que apresentamos de seguida vão tecendo etnograficamente
a diversidade de soluções encontradas depois da independência para a
fixação dos que morreram durante o período de ocupação indonésia. Por
um lado, sublinhamos aspetos que envolvem diferentes escalas de dig-
nificação dos mártires e, por outro, diferentes tipos de morte. Como ve-
remos já na próxima secção, um massacre onde homens foram mortos
à catana, em público, por outros timorenses sob coação – o que apren-
demos através de testemunho direto –, apesar dessas circunstâncias de
violência extrema as vítimas foram enterradas longe da povoação. O mo-
numento que mais tarde veio a ser erigido fez-se, no entanto, no exato
lugar onde ocorreu o massacre. Cada um dos casos que iremos apresentar
corresponde, assim, à complexidade destes processos de relocalização
que marca as tensões vividas sobre a determinação do apropriado lugar
dos mortos.

Geografias imóveis: os monumentos


de Muapitine e de Caivaca
No dia 8 de dezembro de 1983, na aldeia de Pehefitu, suku Muapitine
no distrito de Lautém, teve lugar um massacre de um cinismo parti-
cularmente macabro e hediondo que ouvimos descrito por uma teste-
munha ocular. Cinco timorenses envolvidos na Resistência tinham sido
presos em finais de novembro. Os militares indonésios fizeram saber que
gostariam que se organizasse uma festa com tebe-tebe para os receber de
volta. A festa juntou uma grande multidão e também as mais altas auto-
ridades do distrito e alguns líderes comunitários.
Horácio dos Santos tinha na altura 9 anos de idade e quis falar-nos do
seu testemunho face a uma solicitação do nosso companheiro Justino
Valentim. Segundo Horácio, depois de terem autorizado a confraterni-
zação dos presos com os seus familiares, a quem pediram tabaco e mor-
talhas para fazerem cigarros, dando inicialmente a ideia de que os vinham

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O lugar dos mortos: geografias móveis e os monumentos aos mártires em Timor-Leste

libertar, os responsáveis indonésios chamaram a família dos presos. Man-


daram parar a festa e em público fizeram um discurso explicando que
esta festa se destinava a matar esses cinco presos políticos. «Terminado o
esclarecimento os cabecilhas militares e civis mandaram[-nos] matar um
por um, e publicamente.» Para isso recorreram (sob ameaça) a xefes suku
e xefes aldeia, que utilizaram armas brancas para matarem os seus próprios
conterrâneos. Acompanhados de militares indonésios exibindo as suas
armas de fogo, as famílias pouca margem tinham para desobedecer, e o
mais que tentaram foi realizar os enterros de acordo com um mínimo
de preceitos costumeiros.
Em 2005, antes que a situação de desafogo financeiro derivada da ex-
ploração do petróleo no mar de Timor tivesse começado a surtir efeitos,
e numa altura em que Xanana Gusmão assumia a Presidência da Repú-
blica, sem poderes executivos para desenvolver as ações em relação aos
«Veteranos» que mais tarde viria a desenvolver, as autoridades locais mo-
bilizaram-se e, com uma verba modesta – poucos milhares de dólares –
recolhida com grande esforço, erigiram um monumento: uma coluna
encimada por uma estrela e o mapa de Timor-Leste, tendo na base quatro
faces nas quais se pode ver uma placa alusiva à sua inauguração por Xa-
nana, uma pintura representando a cena do massacre, uma narração do
mesmo (da qual usamos acima alguns excertos), e uma lista que engloba
todos os habitantes da aldeia que integraram a Frente Armada e a Frente
Clandestina da Resistência e que morreram no mato entre 1977 e 1999 –
num total de 74 nomes. Monumentos deste tipo, a que Michael Leach
chamou «memórias difíceis» (Leach 2009), podem ser vistos um pouco
por toda a parte em Timor-Leste.3
Este monumento não contém nenhuma sepultura, mas os cinco mas-
sacrados permanecem até hoje no mesmo local em que foram original-
mente sepultados. No caso de um deles, Ângelo da Costa, logo que a
viúva teve acesso à pensão de veterano do marido em 2011, a campa sin-
gela que existia foi alvo de obras de melhoramento. Nela se pode ler:
«Massacrado e tombado pelo assassinado Forças militar da Indonésia
numa cerimónia oficial de massa e foi sepultado com a condição vivo
[sic]» – uma alusão clara a um aspeto macabro deste massacre, repetido
por todos os que falaram connosco acerca do mesmo: os golpes que re-

3
No distrito de Lautém, por exemplo, existe um memorial semelhante junto à estrada
que conduz a Díli, num local sobranceiro ao mar, que recorda o massacre, já depois do
Referendo de 30 de Agosto de 1999, de um grupo de madres católicas e seus acompa-
nhantes, todos ligados à Caritas Diocesana de Baucau.

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cebera no pescoço e no tórax não haviam sido fatais, e mesmo nessa con-
dição foi enterrado por exigência dos indonésios. O facto de terem sido
as próprias famílias a fazer os enterramentos em 1983 parece explicar que
em Muapitine se acredite que os mesmos foram realizados de acordo
com os rituais mínimos necessários para garantir a paz aos defuntos.
Um segundo monumento evocativo de um massacre e que originou
a morte de nove homens diz respeito ao memorial em Caivaca – locali-
dade próxima a Lospalos. Em 21 de julho de 1985, o comandante Falu
Cai e oito dos seus homens morreram num massacre nessa localidade.
Na ocasião morreu também Luís Monteiro Leite, figura grada do regime.
Este episódio aparece narrado nas memórias de Mário Carrascalão (2006,
256-259), amigo chegado de Monteiro Leite. Inserido numa tentativa de
capturar o líder nacionalista, Monteiro Leite marcou um encontro com
representantes da Resistência – esperando que nela comparecesse o pró-
prio Xanana, que mantinha uma relação romântica com uma irmã sua.
O que sucedeu a seguir é controverso. Os militares indonésios informa-
ram o governador de que o encontro teve lugar, que os guerrilheiros abri-
ram fogo e na troca de tiros que se seguiu haviam perecido vários deles,
bem como Monteiro Leite e os seus assessores. Carrascalão não acredita
nessa versão, e com base nos testemunhos da viúva e do motorista do
seu amigo inclina-se para considerar que os indonésios traíram o seu pró-
prio aliado e abriram fogo sobre a casa onde decorria o encontro, ma-
tando todos os que lá se encontravam – esperando ter a cabeça de Xanana
como troféu.
O insucesso da missão traduzido pela morte do grupo de guerrilheiros
conduziu a ter circulado a ideia de que a iniciativa do encontro partira
de Falu Cai, e nalguns casos afirmou-se mesmo que o fizera em con-
tradição com ordens recebidas. Na sequência da morte do marido, a
Sr.ª Albina Marçal Freitas, que vivera até ali no mato onde se casou com
Falu Cai, voltou a Lospalos, onde foi de imediato detida pelos indoné-
sios, tendo passado quatro anos na prisão. Haveria de sofrer por esse afas-
tamento que perdurou até 1996, altura em que voltou à Frente Clandes-
tina, tendo a partir de então um lugar de destaque na Organização das
Mulheres de Timor.
Em finais dos anos 2000 a Sr.ª Albina entendeu proceder à reabilitação
da memória do marido (e dos seus homens). Para tal, meteu mãos à obra
de construir, no local onde eles foram mortos e singelamente sepultados
em valas comuns sem identificação, grandiosos memoriais – usando para
tal os apoios financeiros que o reconhecimento oficial do estatuto de ve-
terano (tanto dele como dela própria) lhe proporcionava. A sua iniciativa

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O lugar dos mortos: geografias móveis e os monumentos aos mártires em Timor-Leste

teve respaldo na Associação das Vitimas do Conflito. As obras viriam


mais tarde a receber apoios especiais por parte de entidades públicas
– nomeadamente do Parlamento Nacional, com $50 000 votados por
todas as bancadas, e pelo Ministério da Solidariedade, a quem está in-
cumbida a tarefa de gerir os fundos destinados aos Veteranos –, ascen-
dendo o seu custo total em 2014 a mais de $100 000. Em paralelo com
a construção dos memoriais, as famílias dos mártires de Caivaca realiza-
ram rituais «culturais».
Como nos explicou a Sr.ª Albina logo na nossa primeira conversa em
2012, as decisões que tomaram sobre o local de fundação do memorial
tiveram em conta a importância de o fixar no local onde se deu o en-
contro fatal. «A família decidiu que não era preciso transportar [os restos
mortais], transferir para outro sítio. É um local original. Então os restos
mortais repousaram no mesmo sítio onde eles mataram.» A decisão de
fazerem o monumento no exato local da ocorrência comporta várias
consequências. Por um lado, a sua localização é periférica, situando-se
numa espécie de encruzilhada entre povoações fora da vila de Lospalos.
Por outro lado, fica longe dos locais aos quais os familiares de todos os
mortos têm reconhecidos direitos de habitação e portanto de sepulta-
mento e de ocupação da terra. Assim, por exemplo, em 2013 foi preciso
dar 3000 dólares a um alegado proprietário da terra.4
Para a Sra. Albina cada edifício do memorial especifica uma fase da
tragédia:
O sítio acima é o local onde eles mataram. Porque eles tinham-se sentado
num local e conversavam sobre como acertar e concordar para organizar as
forças dentro da vila. [...] Há o outro sítio mais abaixo, onde há três ou qua-
tro mortos que estão enterrados num buraco e não podemos identificar quais
são. É para representar o local de derramamento do sangue entre ambas as
partes: parte inimiga e FALINTIL. E mais acima na mesma estrada, con-
forme informações, contaram que aquele buraco tinha seis pessoas, mas não
se sabe. Fizemos aproximações com pessoas que tinham ligação direta com
os indonésios, mas não há ninguém que tenha aquela coragem de dizer: «é
assim e assim... Então é difícil [Sr.ª Albina, Lospalos 2012].

Soluções como esta, que comportam um tratamento mais personifi-


cado ou singularizado dos eventos, são vistas pela Sr.ª Albina e por mui-
tos outros timorenses como mais bem dirigidas aos destinatários da luta
armada. A dignificação dos mortos exige este tipo de trato mais persona-

4
A legislação sobre a propriedade da terra ainda não foi aprovada em Timor-Leste.

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Movimentos, Espíritos e Rituais

lizado e não o tipo de massificação dos ossuários e cemitérios nacionais


e distritais dos Jardins dos Heróis. Assim nos disse quando conversámos
sobre o facto de o ossuário de Lospalos estar vazio:

Construíram uns monumentos que são de uma má qualidade. Os mortos


não exigiram ao Secretário de Estado ou ao governo para construírem mo-
numentos para eles. Antes de morrer nunca disseram isso. Mas como a lei
garante e também como cidadãos que somos, vimos de uma luta armada,
de uma luta sangrenta... Então temos que reconhecer os heróis, os nossos
mortos. Então fizemos isso para eles, mas pelo menos uma boa condição
para eles. Construíram um ossuário tão pequeno... E sem esclarecimento,
sem clarificação... [Sr.ª Albina, Lospalos 2012].

O ossuário e as ambivalências da luta armada:


o caso de Afonso Sávio
Afonso Sávio, natural de Ira-ara, estudou na missão de Fuiloro e foi
militar do exército português. Em 1974 emergiu como líder em Lospalos
da ASDT/FRETILIN, sendo visto pelo alferes português Manuel Luís
Real como um quadro dedicado, provindo de uma forma de naciona-
lismo associada a Francisco Xavier do Amaral, algo distante do radica-
lismo político que esta força viria a abraçar em 1975. Com a tomada de
Lospalos pelos paraquedistas indonésios em Fevereiro de 1976, Sávio
passa a comandar uma base na montanha Paicao, sendo então secretário
da região.
Em 1977 desencadeia-se um conflito no seio da FRETILIN, que cul-
mina na destituição de Xavier do Amaral. Este reclama o apoio de
Afonso Sávio, que terá então sido preso e, segundo o testemunho de
Konis Santana (cit. in Jolliffe 2010, 86-87), maltratado pelos seus compa-
nheiros. Começava aí um percurso bem mais controvertido. O seu irmão
Horácio informou-nos que, antes ainda da rutura do Matebian em finais
de 1978, Xanana terá ordenado a sua libertação, permitindo que regres-
sasse a Lospalos onde terá trocado mensagens com outros líderes da guer-
rilha com vista a reintegrar essa força. A incapacidade da liderança em
esclarecer a seu contento as razões do castigo que sofrera leva-o a recu-
sar-se a regressar ao mato. Entretanto, em Lospalos, ter-se-ia aproximado
do seu sogro, Tomé Cristóvão, antigo membro da Apodeti que integrava
a Assembleia Distrital, e travado amizade com Cláudio Vieira, então ad-
ministrador do Distrito (Bupati). Desconfiado, terá confidenciado a um
irmão que os indonésios o iriam matar. A 17 de abril de 1979 foi visto

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pela última vez em Lospalos, presumindo-se que na condição de prisio-


neiro dos indonésios. O seu corpo nunca foi encontrado, nem os indo-
nésios alguma vez deram informações sobre o que lhe sucedera.
O irmão de Afonso, Horácio, logo que recebeu do Estado o reconhe-
cimento do papel de Afonso na Resistência (o que foi feito através de
uma resolução do Parlamento Nacional em 2012, a qual abrangeu igual-
mente outros combatentes cuja história mais dúvidas suscitava), e os con-
sequentes benefícios financeiros enquanto «Combatente da Libertação
Nacional – Grau 1», tratou de realizar um funeral condigno para o seu
irmão. Essas cerimónias assumiram uma dupla face. Por um lado, proce-
deu-se de acordo com a «cultura» Fataluku: organizou-se uma cerimónia
para chamar o seu espírito, recolheu-se um sinal da sua presença (um ga-
fanhoto que foi embrulhado no tais em que pousou) que foi guardado
numa urna do tamanho de um corpo adulto. Também se celebrou um
ritual fúnebre no qual foram investidos perto de $13 000 (sendo que Xa-
nana mandou $ 4000, Horácio entrou com $ 3000, um outro irmão deu
10 cabeças de gado entre búfalos, porcos e cabritos). Um professor por-
tuguês que foi convidado admite terem estado cerca de duas mil pessoas
nessa festa que durou vários dias.
Por outro lado, Horácio Sávio tomou uma iniciativa inédita em Los-
palos: solicitou autorização ao secretário de Estado para os Assuntos dos
Veteranos para guardar os restos mortais do irmão no Ossuário que se
encontra no ainda inacabado Jardim dos Heróis distrital. Esta decisão
não terá agradado a toda a família, mas encontrou respaldo político: a
FRETILIN deu grande apoio às cerimónias, e estas contaram com a pre-
sença do secretário de Estado, Vítor da Costa. Havia uma justificação:
«Eles é que lutaram. Quando o Estado reconhece e dá os meios, deve-se
seguir o que o Estado diz.» Afonso está hoje simbolicamente depositado
no Ossuário, aguardando que a sua campa definitiva seja construída.
Junto a ele, uma grande fotografia, uma bandeira da FRETILIN, e um
cartaz em que se enaltece a sua contribuição para a luta. Está entronizado
como um verdadeiro herói.

Escalas opostas: a saga de heróis nacionais


e a volta à terra de origem
(Konis-Santana e Nualata)
Em março de 1998, o chefe do Conselho Executivo da Luta/Frente
Armada, Nino Konis Santana, faleceu no seu esconderijo no suku Mir-

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Movimentos, Espíritos e Rituais

tutu, distrito de Ermera. Nascido em 1957 em Tutuala (Lautém), chegara


à chefia da guerrilha após a prisão de Mau Huno em 1993. Era um com-
batente lendário, e a sua morte, objeto de algumas versões contraditórias,
parece ter-se devido a um problema de saúde (Mattoso 2005). De qual-
quer forma, o seu corpo foi encontrado no esconderijo pelo seu secretá-
rio, Somotxo, que, com a ajuda da família que tinha a seu cargo a assis-
tência regular ao guerrilheiro, o sepultou de forma muito discreta.
Logo após a independência, o túmulo de Konis Santana foi objeto de
grandes melhoramentos, por forma a marcar que aquele era o local de
repouso de um grande chefe da Resistência. No entanto, em 2012, Xa-
nana entendeu que era oportuno trasladar os restos mortais de Konis
para o Jardim dos Heróis em Metinaro. Na verdade, e de acordo com
esta posição, sendo essa estrutura destinada a prestar a mais alta home-
nagem aos principais vultos da Resistência e da construção nacional, faria
pouco sentido que um dos nomes de maior relevo e já falecido não fosse
contemplado com tal honraria. A sua falta contribuiria para alimentar a
ideia de que o cemitério nacional não seria, afinal de contas, um lugar
indiscutível, e que outras formas de homenagear os mártires poderiam
dispor de uma legitimidade semelhante.
A decisão de Xanana, porém, desencadeou uma acesa discussão sobre
o destino a dar aos restos mortais de Konis Santana. Somotxo diz-nos
que alinhou nesse debate com aqueles que entendiam que a melhor
forma de prestar homenagem consistiria em preservar a sua sepultura ori-
ginal, podendo esta ser objeto de melhoramentos. Um dos nomes im-
portantes que exprimiram esta mesma ideia foi Taur Matan Ruak, o
homem que sucedeu a Konis na liderança da guerrilha, e atualmente Pre-
sidente da República. Por seu lado, Mau Nana, um outro guerrilheiro
conterrâneo de Konis em Lautém, alinhou pela posição assumida pela
mãe de Konis, a Sr.ª Poko Tana, que desejava o regresso do filho à terra
de origem, para poder estar mais perto dele e prestar-lhe a atenção ne-
cessária.
Em finais de 2012, por decisão governamental, os restos mortais de
Konis Santana foram resgatados de Mirtutu, onde permanece um me-
morial erigido em sua honra. Foram transportados até Tutuala, onde a
família organizou uma «cerimónia cultural», no dizer de Justino Valen-
tim, membro ativo da Resistência que havia sido amigo e companheiro
de escola de Konis em Fuiloro, e que nela participou. Também Xanana
fez a viagem até à Ponta Leste para participar ativamente nessa «grande
festa». Só depois dessa cerimónia pôde Konis rumar enfim a Metinaro,
onde repousa num talhão destinado a altos quadros da Resistência, mas

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O lugar dos mortos: geografias móveis e os monumentos aos mártires em Timor-Leste

sem nenhuma posição de destaque no seu seio. Esta trajetória de Konis


Santana é particularmente marcada pela tensão entre o herói nacional,
regional e familiar.
No caso da região de Loré que referimos na abertura deste texto a
opção de fazer os mortos retornar à sua terra de origem foi a única equa-
cionada até ao momento. A fuga massiva da população de Loré para as
montanhas começou no início de fevereiro de 1976. Numa das aldeias,
Nualata, situada na estrada que liga Lospalos a Loré e à costa sul, uma
família inteira partiu para o mato para escapar aos militares indonésios
que tratavam de impor a sua presença na Ponta Leste. Desta família, que
usava os apelidos Gonzaga e Gonçalves, quarenta pessoas morreram
entre 1979 e finais de 1986. «Estavam todos no mato. Nunca se rende-
ram», diz-nos Faustino dos Santos, casado com Arminda Gonçalves, um
dos poucos elementos dessa família que lograram escapar com vida, e
recebe agora pensão como Veterana de 3.º Grau. Faustino também co-
nheceu a vida no mato, onde terá permanecido até outubro de 1999,
sendo hoje Veterano de 1.º Grau. Quadro intermédio, foi secretário da
Região 1 e 2.º comandante de uma companhia. Entre 2007 e 2012 foi
deputado no Parlamento Nacional (pelo partido UNDERTIM).
Logo após ter sido resolvido atribuir a esses mártires o estatuto que
lhes permite receber uma pensão, a família Gonzaga e Gonçalves decidiu
meter ombros à tarefa de recuperar os restos mortais dos seus familiares.
Para tal, realizaram duas campanhas distintas, uma em 2008 (da qual re-
sultou a recolha de oito ossadas) e outra no ano seguinte (tendo sido re-
colhidos mais 32 «restos mortais»). Nessa ação de busca desenvolvida so-
bretudo na zona do Matebian, alguns antigos guerrilheiros que tinham
conhecimento dos locais onde se poderiam encontrar as ossadas foram
chamados a participar ao longo de mais de um mês – mas não beneficia-
ram do apoio oficial do exército ou das F-FDTL, que dispõe de um ser-
viço especializado.
Apesar dos enormes esforços destas duas campanhas nem todos os
membros da família puderam ser localizados. Além do conhecimento
que alguns poderiam ter dos locais das sepulturas originais, também
foram utilizadas práticas divinatórias para «chamar os mortos» e obter
qualquer indicação que pudesse ajudar na procura. Mas «se não se en-
contram os ossos, pode-se trazer um punhado de terra» – e assim sucedeu
em pelo menos dez casos. A par de verdadeiras ossadas, há sepulturas
que contêm elementos simbólicos que substituem a falta de restos mor-
tais. Porém, todos foram tratados de igual modo: por cada membro da
família fez-se o abate ritual de um certo número de animais, cuja carne

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Movimentos, Espíritos e Rituais

foi consumida na «festa» que então se organizou. Para cada um deles er-
gueu-se um túmulo de dimensões semelhantes, que foi depois pintado
em cores garridas, exibindo bandeiras da FRETILIN, das FALINTIL e
de Timor-Leste, bem como, em vários casos, as armas com que comba-
teram. Os enterros foram todos realizados no mesmo dia.
Nas conversas que tivemos com estes familiares dos tombados de Nua-
lata,eles mostraram-nos o seu ressentimento pelo facto de as autoridades
nacionais não terem comparecido a estas cerimónias (apesar de se atribuir
a Xanana a decisão de comparticipar generosamente nos custos da em-
preitada). O investimento financeiro ascendeu a várias dezenas de mi-
lhares de dólares. Trata-se de um impressionante cemitério aberto, ao
lado da estrada, com 40 sepulturas, localizado bem junto da residência
de alguns membros dessa família. Em todos estes casos, tratou-se de fazer
um segundo enterro, fazendo transportar, por vezes de terras longínquas,
os despojos destes mártires num processo semelhante ao que em 2012
vimos iniciar-se em Chai/Loré.

O cemitério nacional de Metinaro:


unidade da nação?
O caso que apresentámos do cemitério de Nualata na secção anterior
ilustra bem o princípio da vicinalidade das sepulturas em relação ao local
de residência. O exemplo da sepultura de Ângelo da Costa isolada do
povoado de Muapitine onde foi massacrado, ou o do monumento de
Caivaca em torno do local onde o comandante Falu Cai e os seus ho-
mens tombaram, exprimem a vitória de uma outra visão, que a Sr.ª Al-
bina verbalizou do seguinte modo: «Quando se faz uma sepultura, seja
ela qual for, é difícil vir depois mexer nela.» Quer dizer: a ideia de um
enterro secundário encontra resistência. Apesar de se considerar que as
sepulturas originais não correspondem ao que «deveria ser», a opção de
manter nelas os restos mortais dos heróis e as redesenhar ostensivamente
e com plena liberdade criativa tem também adeptos em Timor-Leste, os
quais justificam tal prática exatamente nos mesmos termos daqueles que
optam pela solução contrária.
A par das restantes iniciativas, em 2009, como já referimos, inaugu-
rou-se o cemitério nacional do Jardim dos Heróis em Metinaro – uma
nova estrutura especificamente desenhada para acolher, em lugar rigida-
mente demarcado e isolado de todo o contacto com habitações, os restos
mortais dos timorenses caídos na luta. É possível olhar para o Jardim dos
Heróis de âmbito nacional e ver nele sinais de rutura com elementos im-

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O lugar dos mortos: geografias móveis e os monumentos aos mártires em Timor-Leste

portantes que até aqui sublinhámos. Desde logo, a sua localização e a


conceção de um espaço fechado dedicado em exclusivo ao culto dos
mortos, em vivo contraste com a proximidade dos túmulos em relação
às habitações, e com o carácter aberto e não exclusivo dos locais tradi-
cionais de enterramento, onde é frequente verem-se crianças a brincar
ou gado a pastar.
Além disso, o desenho ortogonal da sua planta, povoada por túmulos
perfeitamente iguais quer nos materiais usados na sua elaboração quer
na cor que ostentam – diz-se que Xanana Gusmão, indicado por muitas
fontes como o autor da ideia, terá indicado explicitamente que queria
replicar os cemitérios de guerra dos filmes americanos – contrapõe-se à
ocupação caótica do espaço na maior parte dos cemitérios timorenses.
O cemitério de Santa Cruz em Díli pode ser referido como exemplo do
contraste a nível da profusão quase infinita de forma, da cor e dos mate-
riais das campas, evidenciando um individualismo na abordagem deste
tema que foi radicalmente substituído por uma linguagem uniforme no
Jardim dos Heróis. A grande maioria dos que lá se encontram sepultados
morreram durante o período da luta, sendo poucos os heróis nacionais
com direito a esta honra que morreram mais tarde e puderam ser sepul-
tados diretamente – como é o caso de Francisco Xavier do Amaral, o
homem que fez a proclamação da independência em 28 de novembro
de 1975 e foi o primeiro Presidente da República, e que faleceu em 2012.
A esmagadora maioria dos que se encontram sepultados neste cemitério
foram sujeitos a um segundo enterro (reburial) resultante da movimenta-
ção através do território dos respetivos restos mortais.
A necessidade de proceder à remoção de ossadas do seu local original,
para serem novamente sepultadas de acordo com preceitos adequados,
tanto pode levar, então, a enterrar na proximidade dos túmulos em rela-
ção à habitação de quem tem o dever de lhes prestar assistência perma-
nente, com a opção do cemitério nacional. Este cemitério é apenas uma
de entre várias formas de consagrar os mártires. O caso de Konis Santana,
que passou por várias fases e acabou por responder, pelo menos parcial-
mente, a uma variedade de requisitos contraditórios, exemplifica bem
que tudo nestes processos é fruto de uma relação de forças que a cada
momento respondem às exigências de diversas circunstâncias sociopolí-
ticas e se enquadram ao mesmo tempo que transformam processos so-
ciais.

285
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Movimentos, Espíritos e Rituais

Conclusão
A reconquista da independência em 2002 foi acompanhada de uma
grande abertura de Timor-Leste a modelos culturais modernistas, seja
pela via da diáspora que regressou imbuída de valores das sociedades de
acolhimento, seja pela presença no território de uma vasta quantidade
de expats que, provenientes das quatro partidas do mundo, tinham em
comum o propósito de «ajudar» Timor a emergir como uma «nação mo-
derna» – o ambicioso programa que justificou a presença em Timor-Leste
de uma missão das Nações Unidas ao longo de vários anos, primeiro
com poderes absolutos, depois numa situação de acompanhamento e
aconselhamento. Nestes modelos modernistas, assume particular relevo
o discurso tecido em torno do conceito de «construção da nação». Esse
processo envolve explicitamente a constituição de uma identidade nacio-
nal (que em grande parte existia antes do Referendo de 1999 e contribui
fortemente para explicar o seu resultado), e exige uma grande capacidade
de diálogo com as formas «culturais» – o que localmente se designa por
lisan, cuja resiliência tem sido posta em evidência. Andrew McWilliam
descreve o lisan como «as diversas formas de práticas e convenções cul-
turais historicamente situadas que evoluíram ao longo de gerações e que
oferecem instrumentos legitimados para intervir nos assuntos da comu-
nidade» (McWilliam 2008, 129). Para David Hicks, tratar-se-ia de «repre-
sentações coletivas» num sentido durkheimiano, ou seja, «o corpo de
ideias, noções, conceitos, valores e instituições que são tidos em comum
pelos membros de uma dada sociedade» (Hicks 2013, 27). James Fox foi
dos primeiros a chamar a atenção para a persistência desse tipo de práticas
que permitem ao mesmo tempo resistir a desafios provindos do exterior
e entreter com eles um diálogo importante (Fox 2000, 4; e 2011, 255).
Entre essas práticas e convenções contam-se aquelas que se prendem com
o culto dos mortos (McWilliam 2011). Por outro lado, esse processo exige
um programa de ações concretas destinadas a dar forma visível aos ele-
mentos estruturantes de um projeto de modernidade.
Este texto é um contributo para uma compreensão etnográfica de
como esse processo está a ocorrer. Diferentemente de pensarmos em
processos de construção nacional a partir de programas governamentais
ou de imposição por instâncias internacionais – seguindo uma lógica
de «choque de paradigmas» (Hohe 2002) – ou de postularmos a emer-
gência de uma forma cristalizada que eliminasse os pontos de tensão,
neste artigo seguimos uma compreensão das coexistências suscitadas
pela condição inevitável de coabitação entre formas familiares e nacio-

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O lugar dos mortos: geografias móveis e os monumentos aos mártires em Timor-Leste

nais.5 Assim chegámos à descrição das geografias de fixação dos que


tombaram na luta pela independência. Atendendo à complexidade de
soluções encontradas pelos timorenses e à sua flutuação conjuntural,
mostrámos as diversas formas de apoio do governo a uma multiplici-
dade de iniciativas que nem sempre o próprio Estado controla.
Assim, numa abordagem antropológica e por isso comparativa, o con-
traste entre este processo e a edificação de monumentos nacionalistas na
vizinha Indonésia não poderia ser maior. Como mostram Chambert-
-Loir e Reid o programa indonésio implicou consagrar como heróis na-
cionais «um grupo coletivo de mortos cuja potência/poder foi criada
pelo próprio Estado» (Chambert-Loir e Reid 2002, XXIII). O conceito de
«mortos potentes» (potent dead) que estes autores operacionalizam para
conjugar o poder dos mortos como antepassados e como heróis nacio-
nais é útil para a análise destes processos em Timor-Leste. Mas as abor-
dagens que entretanto nos apresentam sobre a Indonésia mostram um
outro tipo de nacionalismo onde os monumentos e os cemitérios aos que
tombaram na luta pela independência – uma luta particularmente san-
grenta – são icónicos, ao ponto de haver para cada distrito personalidades
de heróis a quem consagraram monumentos e cemitérios (cf. Schreiner
2002, 184, 190). Os cemitérios foram integralmente organizados pelo go-
verno central que desde 1974 tem em Jakarta o «Cemitério dos Heróis» –
o maior da Indonésia que conta com espaço para 15 000 túmulos (Schrei-
ner 2002, 183). A diversidade de situações em Timor-Leste que apresen-
tamos neste artigo confirma que a urgência de fixar os seus mortos numa
cartografia de mártires não deixou espaço ao Estado para se antecipar.
Assim, se a nacionalidade se está a construir por meio do processo de
criação de heróis da luta pela independência em Timor-Leste, ela está a
surgir a partir de uma confluência de soluções – de uma «co-habitação»
entre modos distintos de conceber o culto dos mortos – e não de um
programa propriamente nacional (cf. Viegas e Feijó, no prelo, 2017).
Em Timor-Leste, como noutras partes das ilhas Sundas, os processos
de realojamento ou reenterrar (reburial) implicam «o fortalecimento da
posição ritual de um falecido pela transferência dos seus restos mortais
para um lugar de maior e mais apropriada dignidade» (Schreiner 2002,

5
Referimo-nos aqui a uma perspetiva teórica que propõe ver os processos de intercul-
turalidade, mesmo os que implicam forte hostilidade, como processos de inevitável coa-
bitação, aproximando-nos da reflexão que tem sido desenvolvida, por exemplo, por Ju-
dith Butler (2012), e que temos vindo a desenvolver para a análise de Timor (cf. Viegas
e Feijó, no prelo, 2017).

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Movimentos, Espíritos e Rituais

193). O que os casos que aqui apresentamos nos permitem verificar é


que essa dignificação começa por significar gestos tão simples quanto os
de fixar geograficamente os mortos, contrariando a perturbação gerada
por os mortos não terem lugar, estarem espalhados, perdidos no territó-
rio. Fixar os mortos é em si um primeiro ato de dignificação. A possibi-
lidade de eles voltarem à sua terra de origem pode oferecer-lhes «potên-
cia», mesmo que conflituando com outras opções da sua integração
como mártires nacionais que implicariam o seu isolamento em relação
à rede familiar dos antecessores. Em suma e terminando, se a nova car-
tografia dos mártires puder ser vista como a territorialidade timorense
em construção, ela será rizomática, estendendo os sentidos de nação a
nichos territoriais marginais, ao mesmo tempo que constrói o sentido
dos chefes de Estado do panteão nacional no cemitério nacional em Me-
tinaro – afinal o único que chefes de Estado estrangeiros são levados a
visitar quando fazem as honras aos seus anfitriões, desta forma apresen-
tando a unidade nacional como uma de entre várias formas de identifi-
cação da territorialidade do recente país de Timor-Leste.

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O lugar dos mortos: geografias móveis e os monumentos aos mártires em Timor-Leste

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290
13 Movimentos Posfacio.qxp_Layout 1 15/02/17 11:48 Page 291

Cristiana Bastos

Posfácio
Parabéns ao leitor que chegou até aqui: terá passado por um efeito de
transformação, mas está ainda inteiro, e certamente mais completo de-
pois de ter percorrido este notável conjunto de ensaios sobre a morte.
Ou melhor: não são exatamente ensaios, mas artigos ancorados em pes-
quisa empírica e referências teóricas; nem se trata de um simples con-
junto, mas de um todo estruturado, organizado com coerência, desen-
volvido no contexto de um projeto coletivo com objetivos partilhados;
nem tratam de uma morte qualquer, ou da morte em geral, mas como o
título do volume indica, da sua interseção com o movimento. Está em
causa a morte em trânsito, na condição migrante, na vulnerabilidade
acrescida da distância física entre o quotidiano imediato e os locais de
referência onde se materializam os rituais que dão significado ao mo-
mento de separação entre os que continuam vivos e os que deixaram de
o estar. O título do volume inclui já uma resolução cognitiva para essa
tensão, anunciando a invisibilidade da morte nos grupos migrantes, re-
correndo a uma metáfora visualista para tornar inteligível uma não-pre-
sença, não-pertença, não-inscrição.
De facto, foi a constatação de uma suposta invisibilidade da morte
nos grupos migrantes em Portugal – fenómeno que redundara em nada
menos que rumores tétricos raiando fantasias canibalescas a respeito de
alguns grupos – que deu origem ao projeto de que resulta este livro. Con-
gregando vários antropólogos ativamente envolvidos com grupos mi-
grantes no nosso país e ganhando com a longa experiência da antropó-
loga Clara Saraiva sobre rituais de morte em diversas culturas, o projeto
foi em boa hora apoiado pela FCT, o que permitiu aos investigadores
aprofundar sincronizadamente uma questão comum, debater periodica-
mente o estado da arte e da inquirição, confrontar os respetivos dados,
partilhar a análise, sintonizar trabalho conceptual, aferir a pesquisa em-
pírica, apresentar em público as conclusões, e discutir com os consultores
provenientes de diversas latitudes, experiências etnográficas e filiações
teóricas. Desse processo todos saíram mais enriquecidos, mais consoli-
dadas as suas análises individuais, e abertas novas questões em subse-

291
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Movimentos, Espíritos e Rituais

quentes patamares de indagação. Saiu também este livro e o possível de-


bate que vai gerar.
Para além dos resultados concretos, a que regressaremos, note-se o
quanto este livro e o projeto de que resulta sinalizam a maturidade da
antropologia em Portugal, pelo que combinam de abordagens individuais
em torno de questões comuns, e no que essa individualidade, mais que
de idiossincrasias ensaísticas, é feita do denso, longo e ponderado traba-
lho de relacionamento entre antropólogos e grupos. E do percurso que
cada um destes autores desenvolveu, já na nova antropologia portuguesa
se gerou a intimidade, proximidade e conhecimento que permitiu ela-
borar o núcleo central do livro, composto de etnografias da experiência
e perceção da morte entre grupos migrantes, seja nos aspetos mais mate-
riais sobre o processamento do corpo morto, seja nas dimensões materiais
e cognitivas dos rituais mobilizados.
Mas o livro não se fica pelas etnografias da experiência de morte em
situação migrante, estendendo-se em secções autónomas em que nos é
dada uma panorâmica quantificada das atitudes e dos indicadores de
saúde, morbilidade e mortalidade em vários grupos migrantes que atual-
mente vivem em Portugal; em que são exploradas as dimensões espaciais
dos lugares de culto aos mortos em diferentes contextos culturais; e em
que são debatidos os conceitos clássicos da antropologia em confronto
com os materiais apresentados no livro. De sublinhar, ainda, a nota de
abertura de João de Pina-Cabral, que, com Rui Feijó e Hermínio Martins,
publicou um trabalho pioneiro sobre a morte em Portugal. Trinta anos
depois, o antropólogo articula a sua reflexão com as questões desenvol-
vidas por cada um dos autores deste volume. Se o leitor aqui chegou
tendo deixado de lado alguma destas secções, pode agora voltar a ela:
este é um livro completo, e a cada capítulo uma nova aprendizagem.

292
Capa Movimentos, Espíritos.qxp_Layout 1 15/02/17 11:57 Page 1

Outros títulos de interesse: Como é que se morre em movimento? E como é que se recriam Clara Saraiva é investigadora do
lugares de pertença a partir dessa morte em movimento? Numa Centro em Rede de Investigação em
Envelhecimento em Lisboa, Antropologia (CRIA) e do
Portugal e Europa sociedade ocidental em que a morte se tornou um tabu, e que é CEC-FLUL. Pesquisa conceções da
Uma Perspectiva Comparada pensada como algo que só acontece aos outros, este morte e rituais funerários e dirigiu o
Manuel Villaverde Cabral
distanciamento face ao último rito de passagem da vida pertence

C. Saraiva/S. Frangella/I. Rodrigues (orgs.) Movimentos, Espíritos e Rituais


Pedro Alcântara da Silva projeto FCT «A invisibilidade da
Maria Toscano Batista à esfera do mito e do preconceito – a suposta invisibilidade da morte entre as populações migrantes
(organizadores) morte. Mas a morte levanta questões que se prendem com a em Portugal».

Ciências Sociais Cruzadas mobilidade dos indivíduos mas também com a criação de lugares Simone Frangella é antropóloga,
entre Portugal e o Brasil de pertença e de ligação com os espaços de origem. investigadora de pós-doutoramento
Trajetos e Investigações no ICS Num mundo globalizado, como morrem os imigrantes, sempre no Instituto de Ciências Sociais
Isabel Corrêa da Silva em movimento entre os seus países de origem e os seus destinos (ICS-ULisboa). Tem pesquisado as
Simone Frangella territorialidades urbanas, e os
Sofia Aboim migratórios? Nos vários capítulos deste livro analisam-se os níveis
fenómenos migratórios
Susana de Matos Viegas múltiplos que a morte toca, desde os mais simbólicos aos mais transnacionais.
(organizadoras) práticos. A morte é uma dimensão onde a abordagem
Tempos e Transições de Vida transnacional é obrigatória – juntamente com o debate crítico Irene Rodrigues é antropóloga,
Portugal ao Espelho da Europa sobre o sentido do «transnacional» e as suas características professora auxiliar do Instituto
José Machado Pais Superior de Ciências Sociais e
multifacetadas – já que encerra uma intensa circulação, não
Vítor Sérgilo Ferreira Políticas da Universidade de Lisboa
(organizadores) apenas de bens materiais e riqueza, mas também de universos (ISCSP-ULisboa). Tem pesquisado
significativos e simbólicos que circulam juntamente com os bens e
as pessoas: o corpo, mas também os espíritos e as relações com o
outro mundo que as pessoas trouxeram para a diáspora.
Movimentos, Espíritos sobre migração chinesa em Portugal
e na China.

Capa: Embrulhamento de corpo, Guiné-Bissau, 1998 (foto Clara Saraiva)


e Rituais
Apoio:
Gestões da Morte em Cenários
Transnacionais
Clara Saraiva
UID/SOC/50013/2013
Simone Frangella
UID/ANT/04038/2013
Irene Rodrigues
(organizadoras)

ICS ICS
www.ics.ul.pt/imprensa

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