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Littérature. et modernisation au Brésil Textes réunis par Jacqueline Penjon et José Antonio Pasta Jr. O fazendeiro do ar e o legado da culpa Vagner CAMILO (Universidade de Sao Paulo — USP) Résumé: Lindividu « gauche », loin de son milieu d'origine, constitue lune des clef dinterprétation de la poésie de Drummond, retenue par tous les critiques. Cette étude utilise & son tour mais en la replagant dans un contexte historique et social plus spécifique. Cette « gaucherie » apparait donc comme due & un senti- ment de culpabilité omniprésent. Bien que multiforme dans son expression, ce sentiment se rapporte toujours 4 une situation historique particuligre: celle de TTindividu qui passe du monde rural au monde urbain, du monde scigneurial au monde bourgeois, du monde traditionnel au monde moderne, passage accompa- ‘gné de violents changements dans les valeurs, les sentiments et le arcentes. Réalisé dansle contexte ambigu qu’est la modernisation conservacrice au Brésil,ce passage se einte d'ambivalence de sentiment de trahison, de culpabilicé et d'auto-punition. Je sie la ple ele couteau! ‘Jesis le souffle etl joue! esis es membres et la row, Ez a victie et le Bourret ‘Charles Baudelice, « ’Héautontimorouménos » presente ensaio retoma um aspecto de minha tese' dedicada guinada dlassicizante de Novos Paemas (1948) e, sobretudo, Claro Enigma (1951), exami- nada a luz de um contexto marcado, de um lado, pela especializacéo do trabalho intelectual ¢ artistico dos anos 40-50, responsével por certas tendéncias forma- listas ¢ estetizantes na lirica do periodo; de outro, pelo recrudescimento da 1. Drummond: da Rosado Poe & Reva das Tevas, Sao Paulo: Ali Eivorial Nites: Anpoll, 2001 206 Vagner Camilo politica jdanovista adotada pelo PCB no pés-guerra, que ~ somada ao que ja fora, entio, revelado pelos expurgos stalinistas e os processos de Moscou acabou por redundar na desilusio com a militancia e no pessimismo dominante nessa fase da obra de Drummond. Esse pessimismo responde nao s6 pelas imagens noturnas, como também pela cosmovisdo tndgica dominante no livro de 51, pautada pela concepgao de tempo ciclico, pela retomada do mito, pelo senso de fatalidade ou destino, pela visio da Histéria como Natureza, seguindo curso alheio & vontade do sujeito impossibilitado de agir; ¢ pelo tio decantado senti- mento de culpa cuja presenga se faz sentir desde a litica social dos anos 40. E exatamente desse sentimento que eu gostaria de me ocupar aqui, mas em linhas gerais, sem a minticia com que foi examinado na tese. A minha preocu- pagdo maior € evidenciar as determinagées dessa culpa, suas raizes hist6ricas, a ‘mudanga operada na maneita de lidar com ela na poesia dos anos 40-50 e, mais do que tudo, o modo como ela atua decisivamente no estatuto social da subjeti- vidade lisica forjada por Drummond ao longo da obra. Para isso, entretanto, necessirio, antes, precisar tal estatuto, geralmente denominado, de forma bastante indeterminada, de gauche. Um gauche em particular: 0 fizendeiro do ar ‘Como € por demais sabido, a imagem do gauche aparece entalhada jé no pértico do livro de estréia de Drummond, compondo a primeira das vétias faces de sua poesia. A. primeira e, sem diivida, a mais duradoura, como supdem alguns, ainda que poucos tenham-na examinado a fundo, com excegio, talvez, de Affonso Romano de Sant'Anna, que em conhecido estudo, ocupou-se das varias estratégias de que se vale 0 gauche para se constituir. Trata-se de uma analise precisa no sentido de estabelecer as varias articulagées da imagem em. questo com certas constantes da obra, até entio examinadas isoladamente, como é, em especial, 0 caso da ironia, das persona (Carlos, Carlito, Crusoe, K....) ¢ do jogo instavel das posicoes assumidas pelo eu litico nos versos. Todavia, sem Ihe negar 0 mérito, Sant’Anna parece passat ao largo das motiva- oes atuantes na conformacao histérica particular da condigao gauche do poera itabirano, jd pelo préprio enfoque teérico, resultante do cruzamento da andlise quantitativa (afeita aos grdficos ¢ as curvas de freqiiéncia de motives) ¢ a inspi ragao heideggeriana no trato com a questao do rempo (conceito cuja amplitude tende a perder-se na indeterminacao). bem verdade que, em dados momentos, Sant’Anna chega a acenar para essa particularizagao, ao descrever as articulagbes do gauche com a familia ou com o O facendeiro do ar eo legado da culpa 207 binémio « provincia-metrépole » *, Todavia, elas nio chegam a ser aprofunda- das no sentido de aquilatar suas especificidades hist6ricas, nem a forca com que aruam na condigio de displaced person do eu lirico drummondiano. Sao, antes, vistas como decorréncia de um modo de ser anterior a toda sorte de injungoes do meio. De modo que, abstraida das relagdes histricas sociais, essa condicéo despaisada ende a se diluir na generalidade de um tipo, que abriga uma galeria de « anti-hersis » tao dispares quanto os personagens de Kafka e Truman Capote, Beckett ¢ Miller, lonesco e Faulkner, Hesse ¢ Musil, Camus ¢ Joyce... Isso para no falar no dominio especifico da lirica, alinhando lado a lado Eliot e os beat- nicks (), entre outros. Nem pura e simples reapropriacéo de um suposto tipo literério universal, muito menos mera fatalidade de um eu posto sob a guarda azarada de um « anjo torto » — como poderia sugerir uma leitura apressada e ingénua dos versos inaugurais de Alguma Poesia ~,julgo que a devida compreensao dessa condigao gauche da persona drummondiana s6 pode ser alcangada a partir de um quadro de referencias hist6ricas e sociais muito especifico, fato que, se nao escapou 20 campo de visada de Sant’Anna, 20 menos foi subestimado em importincia frente A universalizagao de um tipo, tao abstrato quanto a concepgao heideggeriana de tempo que orienta a abordagem do critico, ‘Afora Sant’ Anna, houve ainda quem buscasse compreender a especificidade dessa condigao desajustada por referencia & posicdo marginal do poeta moderno (que, afinal, nao deixa de set historicamence determinada), abrigando, assim, 0 _gauche mineito sob as asas tronchas do albatroz baudelairiano. Nao resta diivida de que Drummond tenha sentido 0 rocar dessas asas, como alids boa parte dos liricos modernos (para nao dizer todos...), mas restringir seu estatuto gauche a isso apenas, ainda nao € escapar de todo da generalidade da indeterminacéo. Tanto mais proveitoso seria, entdo, compreender nao s6 a condigio despaisada, mas também a tio propalada heranca baudelairiana de Drummond, a patti de refetenciais hist6ricos precisos ~ entenda-se: locais ~, como quero propor aqui. ‘A articulagao entre heranga baudelairiana ¢ profunda vinculacio a realidade local, pelo que sei, s6 chegou a ser sucinta, mas, precisamente, assinalada por José Guilherme Merquior, que parte de uma « formula feliz » de Tristio de “Athayde em breve artigo de 1967, onde Drummond figura como « uma espécie de Baudelaire da nossa poesia moderna ». Glosando 0 mote de Athayde, Merquior demonstra ter sido Drummond 0 primeiro, em toda a histéria da poesia brasileira, a alcangar as duas principais conquistas da lirica baudelairiana, a saber: [1] a introducao da « sensibilidade moderna, isto ¢ da experiéncia existencial do homem da grande cidade e da sociedade de massa, na alta litera- 2. Affonso Romano de Sant’Anna, Drummond, gauche no tempo. Rio de Janeiro: Record, 1982, p. 66-76 208 Vagner Camilo tura lca »,¢ [2] a criagao de uma « escrita poética moderna, escrita de ruptura radical a0 mesmo tempo com a tradicéo cléssica € com 0 romantismo ». Sem ignorar, com isso, o fato de que o autor de Alguma Poesia nao foi o iniciador da ‘moderna lirica brasileira, nem 0 quanto cle deveu & reviravolta estética patroci- nada pelos primeiros modernistas, Merquior nao hesita em afirmar que [Lula primeita grande concribuigio do verso drummondiano consistiu em aprender o sentido profundo das evolugses sociale cultural de seu pats, [partindo da] propria situagio de filho de fazendeiro emigrado para grande cidade, justa- mente na época em que o Brasil comegava sua metamorfose (ainda em curso) de subcontinente agritio em sociedade urbano-industria [...] Desde ent, rornou sua excrita extaordinariamente atenta aos dois fendmenos de base desta mesma cevolusio histrica: 0 sistema patiarcal ea sociedade de massa. Sua abertura de cspiit, sua sensibilidade 3 questo socal sua consciéncia da histéria impediram- no de superestimat as formas tradicionais de existencia € de dominagdo, mas, 0 mesmo tempo, ele se serviu do « mundo de Itabira » ~ sfmbolo do universo patriarcal ~ para derecas, por contrast, 05 milkiplos ostos da alienacio e da angistia do individuo moderno, esmagado por uma estrucura social cada ver ‘menos 4 medida do homem.? Em uma sintese lapidar, portanto, Merquior atina, a um sé tempo, com 0 que de especifico define © estatuto baudelairiano da obra de Drummond no quadro da moderna rica brasileira, a forca motriz dessa obra e a peculiaridade da condigao despaisada da persona litica forjada pelo poeta itabirano. Assim, a envergadura baudelairiana do projeto poético de Drummond estaria em ter sido dle o primeiro a apreender cm profundidade o sentido de um processo muito peculiar de modernizagao como foi o brasileiro (peculiaridade essa assinalada mais a frente) ¢ fazer dele a mola propulsora de sua poesia, enquanto a condi- 40 de desplaced person de Drummond, embora nao colocada nesses termos, parece decorrer, precisamente, dessa posicao deslocada de filho de fazendeiro ‘emigrado para a grande cidade, em um momento de transigao da velha ordem patriarcal para a sociedade urbano-industrial No mais, Drummond jd havia faciltado a investigagio aos fururos intérpre- tes ao cunhar o retrato acabado desse seu ser despaizado com o rétulo do fazen- deiro do ar, imagem cliché reprisada 4 exaustio pela maioria dos incérpretes, embora sem levarem tamente remete ¢ na qual encontea sua razio de ser. Do pouco que se falow a respeito, temos a seguinte definigao de Roberto Schwarz: m conta a relagio com a ordem social a que ela imedia- 3. Joxe G. Merquior, Verso wnierso em Drummond. Rio de Janeiro: José Olympia Edicora, 1975, p. 243-244 O fazendeiro do ar ¢ 0 legado da culpa 209 [Jo homem que vem da propriedade rural para a cidade, onde recorda,analisa cectitica, em pros e verso, 0 contaco com a terra, com 2 familia, com 2 tradigio ‘ecom 0 povo, que o latifindio posibiliava Nore-se que, a despeito do rétulo drummondiano, o fazendeiro do ar nio & exclusive da obra do poeta itabirano. Trata-se, antes, como dird ainda Schwarz, de uma « figura tradicional da literatura brasileira deste século » e, portanto, presente nas obras de outros tantos nomes do perfodo, valendo destacar, no campo da ficgi0, © amigo e conterrineo do poeta, Cito dos Anjos, cujo Amanuense Belmiro, exemplo privilegiado de « romance da urbanizacéo » entre 1nés, foi brilhancemente examinado pelo mesmo critico em outro estudo que muito motivou a presente abordagem. Devido a essa motivago, julgo por bem retomar alguns pontos da andlise de Schwarz, a fim de nos acetcar mais ~ por afinidade ou contraste com o universo ficcional de Ciro dos Anjos ~ da parti- cularidade da poesia de Drummond. Comecemos pelo que 0 critico bem denomina de « mistura belmiriana », ‘composta « de perspicécia, cultura, banalidade e lirismo », que « fixa, em profun- didade, uma personagem freqiiente ¢ central na literatura brasileira » °. A perso- nagem tipica (bem entendido, o fzendeiro do ar) a mistura que a fixa remetem, em tlima instancia, ao modo muito particular por que se deu aqui o famige- ado contraponto entre o campo ¢ a cidade. Em um contexto em que nio ha mudanga radical, onde era de se esperar conflito ¢ desintegra¢ao na passagem do passado rural para o presente urbano, hé na verdade o prolongamento do tradicional ¢ 0 convivio promiscuo com o moderno, visiveis, sob a forma de privilégios e favores, na sinecura em que se instala © amanuense, no cargo (o « menos urbano da cidade ») obtido por intermédio de um deputado, ott nos intimeros « inconciliveis » elencados pelo ensaista a propésito tanto das perso- nagens secundarias, quanto, e principalmente, da figura do amanuense, em que se retinem « o democratismo ¢ o privilégio, 0 racionalismo ¢ 0 apego a tradicao, © impulso confessional, que exige veracidade e o temor & luz clara ».* Tais antagonismos, todavia, no chegam a se tornar, como era de se supor, a mola propulsora de um conflito dramdtico, incxistente no romance, 0 que s¢ justifica pelo fato do narrador evitar © confronto aberto de posigdes, encon- trando na prosa ligeira e risonha um recurso amenizador, que nao esconde seu cariter derrotista. « A prosa risonha anima, — principalmente & submissio », afirma o critico, aquilatando, mais & frente, o valor ¢ a procedéncia dessa prosa 4.R Schwary, «Cu Paz e Terra, 1978, p. 92. 5. R Schwarz, « Sobre o Amanuense Belmiro», op. cit, p. 14 6. I, ibid,p. 19. ‘politica, 1964-1969 ». O pat de familia ¢ outros emsator. Rio de Janeiro: 210 Vagner Camilo (© andamenco ingénuo da prosa nio é realist, mas ndo é, também, estilzasa0 pessoal: embora recatado ¢ apolitico, 0 fiateralismo sentimental de Belmico tem parentesco na sensibilidade populises. A presteza da prosa no reflete, compensa ‘0 peso da experignca real” Ollirismo que, para outro fino leitor de O Amanuense Belmiro, era uma forma de equilfbrio vital pela libertagao das malhas da andlise excessiva', 20 olhos de Schwarz, esti a servigo dessa « estética da acomodagio » configurada pelo romance. Onde era de se esperar a perspectiva dramatica propria & natureza do « romance da urbanizacao », em um contexto em que nao ha mudancas signifi- cativas na passagem do rural para o urbano, surge a perspectiva lirica, «a evoca~ Gao saudosa do que passou, mais que senso de conflito e de desteuigao ; e mais do que crise, decomposicao do presente. O irremediivel nao estd na perda, esté na continuidade; os tragos nao variam, varia apenas a sua acentuagio ». O. lirismo traduz. a perspectiva intermediéria do burocrata que, na passagem (Feita de prolongamentos) da velha para a nova ordem, é, a um sé tempo, vitima (pela vida urbana de aperturas econémicas ¢ de mediocre convivio social) ¢ benefi- Cidrio (pela sinecura alcangada pela mio do deputado, privilégio pequeno mas evidente), « de modo que a sua gratidio deve ser melancélica, a sua exftica amena € sua posigao incerta ». A auséncia de transformagées significativas no trnsito assinalado responde pela configuragao de um universo ficcional regido pela inagio, onde « 0 tempo nao chega a se articular, é subjetivado, governado pelo movimento atmosférico da meméria e da divagagdo ». A sua figura final € 0 imobilismo — j4 uma ver identificado por Candido — que é « a forma negativa de conciliagao ». Essa sintese empobrecedora pouco revela, é certo, do movimento dialetizante préprio ao raciocinio critico do envio « jovem Schwarz » (como diia Paulo Arantes), j4 aqui antenando-se com o descompasso de nossa cultura, cuja expres- sio mais acabada, como se sabe, estaria, anos depois, nos percucientes estudos machadianos’. No entanto, os pontos destacados da andlise servem aos prop6- sitos mais imediatos deste ensaio. Vejamos. Com Merquior, assinalou-se, atrés, a profunda vinculagio de Drummond a uum contexco de transigZo entre duas ordens sociais. Agora, com Schwarz repor- tando-se a0 mesmo horizonte hist6rico, precisou-se a peculiaridade dessa tran- sigio, marcada mais por continuidades do que por transformagoes ou rupturas, 7. Ue bibs p. 1. 8, Antonio Candido, « Estrarégias, in Brigada ligeirae outros esrits, Sto Paulo: UNESP, 1992, pea 9. Nao por acaso 0 enssio « Sabre O amanuene Belmire » & considerado por Paulo Arantes como 4 primeira marifestasio do que viri a sero raciocinio erkico brasileiro de Roberto Schwar2 » Sentimento da dialsca’ daléicae dualidade segundo Antonio Candido e Roberto Schwarz, Rio de Janeiro: Par e Terra, 1992, p. 55 O fazendeiro do ar ¢ 0 legado da culpa an radicais. Mais ainda: como Schwarz demonstra, € luz desse teinsico peculiar que se pode aprender em profundidade o estatuto social da personagem emblemé- tica de que me ocupo aqui: o fazendeiro do ar, a um sé tempo vitima ¢ benefi- cidrio dentro desse contexto histérico, segundo a anilise do ensaista. Sendo como 6, uma personagem histérica comum ao universo ficcional de Ciro dos Anjos ¢ a0 lirico, de Drummond, o exame aprofundado da poesia deste timo devers, portanto, levar em conta esse vinculo inaliendvel com o referido contexto, ‘A abordagem de Schwarz é, nesse sentido, paradigmética da busca dessa correlagao intima entre forma literdria € processo social em curso, ao demons- trar 0 comibio mimético entre a prosa ligeira e risonha, o registro litico, a « estética da acomodagio », em suma, e um transito especifico de moderniza- do, onde o filho de fazendeiro vive entre a benesse do compadrio e 0 miseré danado da vida urbana de burocrata; entre o descontentamento e a gratidao. ‘A busca desse vinculo deve ser tentada no caso do nosso poeta maior, desde que, obviamente, tomando-se em consideracao a especificidade de seu universo lirico, que torna.a vivencia particular dessa condicao afim de fiezendeivo do ar de todo modo distinta daquela vivida pelo natrador de Ciro dos Anjos. Distingao que se evidencia jé na maneira extremamente conflituosa com que essa condi- a0 ¢ experimentada, distante, portanto, da postura conformada, alheia & contemporizagao, do amanuense. E se a amenidade desse conflito ¢ alcangada, ‘no romance, pelo registro lirico, em Drummond, o lirica abre a guarda ao dramd- tico, a fim de encenar o confronto aberto de posicdes a gue se furta Belmiro. Da extética da acomodagéo passa-se, assim, a uma estética da violencia ¢ da inguie- tude regida pelo signo de uma culpa que, em boa medida, decorre da situagio bastante conflituosa assumida pelo intelectual ¢ o artista nesse contexto todo préprio de modernizagao no Brasil pés-30. f 0 que tratarei de assinalae adiante, depois de especificar melhor essas inguietudes€ a natureza do conflito a que elas remecem. Da natureza do conflito Delineada histdrica e socialmente a feigio gauche do eu litico drummon- diano, poder-se-ia, entio, melhor compreender o conflito central por ele encenado ¢ situado por um de seus eriticos no perfodo compreendido entre 1940 e 1959, ou seja, desde Sentimento do Mundo até A Vida Passada a Limpo. Até hoje, foi Antonio Candido 0 tinico a tratar das manifestacoes diretas € indiretas desse conflito em um estudo que se prope como « voluntariamente 10, CE Antonio Candido, « Inquietudes na Poesia de Drummond », Varir ers. Sto Paulo: Duas Cidades, 1977, p. 144, 22 ‘Vagner Camilo parcial », Isso porque a bela investigacio por ele desenvolvida ¢ de natureza puramente « temética, baseada na psicologia que circula nos poemas », portanto deixando de lado « a andlise formal que a completariae & qual pretende ser uma espécie de introducio necessitia »."" que o eritico bem nomeia de « Inquietudes na poesia de Drummond », so, na verdade, variantes de um mesmo conflito, que cumpre investigar. Elas vio « desde as formas ligeiras do humor até & auto-negagéo pelo sentimento de culpa, ~ que nela [a obra] é fundamental como tipo de identificagao da perso- nalidade, manifestando-se por meio de tragos duma saligncia baudelariana... ». Para Antonio Candido, [as] manifestagdes indiretas sio alvex mais expresivas, como a freqléncia das. alusées& ndusea, &sujeita ou 0 mergulho em estados angustiosos de sonho, sufoca- io ¢, no cao extremo, sepultamento, chegando 20 sentimento da iaumasio em Vida. Este tema, que se poderia chamar de emparedamento, manifesta uma opres- so do set que chega a assumir a forma da morte antecpada [...] Em compensa io, pode dar lugar a exumagio do passado, eansformando a meméria numa forma de vida ou ressurceicio dum prevérito nela sepultado, como indica 0 ‘movimento de redengio pela poesia, assnalado em ‘Versos 4 boca da noite. E assim vemos sua obra constiuirse na medida em que opera a fusto dos moxivos de morte criagéo (negacio e afirmagio). ...] Nao, codavia, sem passa por formas ainda mais dristicas da negagio do ser, expressa pelo tema da auto-mutilagio.” Ainda em dois outros momentos, Candido tornaria a enfatizar esse derra- deiro tema presente na obra do poeta: uma vez, no ensaio dedicado 20 « Drummond prosador », onde fala das « pulses que vém nao se sabe de onde» »; oucra, em um estudo dedicado ao poeta realista Fontoura Xavier, onde descreve toda uma linhagem significativa da poesia brasileira marcadas pelos « desvios da norma » “na qual inscreve 0 poeta itabirano justamente pela incidéncia nas imagens da autocastracio punitiva. ‘A cuidadosa investigagio promovida por Antonio Candido, mais do que mera inttodugio 3 analise formal, de todo modo imprescindivel a0 exame mais completo da obra de Drummond, permite também, ¢ talvez reclame, um aprofundamento no sentido de uma maior aproximacio do conflito responsé- vel por todas essas inquietudes, a partir da definigio do que ha de comum entre las. Nesse solo comum repousa, a meu ver, o micleo gerador de toda a poesia, cabendo, assim, melhor precisé-lo. 11. fd. ibid. p. 121 12. ld bid. p. 100-101. 13, « Drummond prosador », in Recorte. Sio Paulo: Companhia das Letras, 1993, p. 19. 14, « Pome do mal », in O dicumo ea cidade, Sio Paulo: Duas Cidades, 1993, p. 256 O fezendeiro do ar 0 legado da culpa 23 Psicanaliticamente falando, € possivel reconhecer nessas inquietudes as manifestag6es do conflito do eu com um superego dos mais severos. Como bem demonstram os estudos freudianos dedicados is neuroses obsessivas, 20 masoquismo, as relagées de dependéncia do ego, & melancolia e ao luco patols- gico, € essa instancia critica ¢ judicativa que ~ enquanto representante dos valores, exigéncias e interdigoes parentais, sociais ¢ culturais ~ responde pelas exigéncias e recriminagbes enderecadas ao préprio ego, redundando no senti- mento de culpa ou « necessidade de castigo » manifesta, dentre outras tantas formas, pelas imagens de autocastragao ou de sujeira ¢ nausea, compreendidas pelo tema do emparedamento, na denominagao de Candido. O préprio humor (outra das inquietudes drummondianas) é visto por Freud como a tinica « contribuigao a0 cSmico mediada pelo superego » *. Esse contlito entre instincias psiquicas encontrara seu principal recurso de formalizagao na lirica de Drummond naquilo que Sant’Anna bem denominou de dislogo-a-um e Merquior, de personificagio do eu. Trata-se, em suma, de um recurso de « objetivagio dramética » da subjetividade lirica, que se auto-refere em uma falsa segunda (ou terceira) pessoa gramatical. Essa oscilagao entre as pessoas do verbo, muitas vezes em um mesmo poema, contribui nao sé para a dramatizagéo da subjetividade, mas também para a instabilidade de posiges assumidas pelo gauche; para os « efeitos de distanciamento » ' brechtianos, alcangados pela ironia e 0 /umour; e para a encenacao do conflito em questo. Raizes bistoricas da culpa Se a psicanilise possibilita, assim, arquitetar as manifestagoes identificadas por Antonio Candido em torno de um tinico conflito, que ¢ universal, bem como decerminar-Ihe a natureza, pelo viés da anzlise sécio-historica, é possivel aprender o contexto particular que o motiva ou desencadeia. A particularidade desse conflito, que por envolver o superego e tudo 0 que ele representa, define se como um conflito de autoridade, pode ser encarnada ora pelos valores do cla mineiro; ora pelas diversas exigéncias de insercao e participagio sociais do intelectual — experimentadas com maior ou menor intensidade no perfodo compreendido entre as décadas de 40 e 50. Daf a dupla raiz da culpa, da qual ‘cumpre agora tratar, 15. Sigmund Freud. « El humors. Obras Compleas. Madi: Nueva, 1973, vo. II, p. 2997-3000, 16, Sobre esses « efeitos de distanciamenco « brechtianos na poesia de Drummond, vero estudo de Merquiot (op. cit. p. 21 € 48) ¢0 de Iné Camargo Costa « A heranga modemista nas mos do primeiro Drummond », in Ana Pizarro (org.), América Larna: palaora,literarura e cultura. S10 Paulo: Memorial; Campinas: UNICAMP, 1988, 5: 3, p. 307s. 214 Vagner Camilo Sérgio Buarque, no belo ensaio escrito sobre 0 estimulo da publicagao de Claro Enigma, afirma que « a presenca de um passado continuamente vivo ¢ atuante, experimentado como inclutivel predestinagéo », constitui a « trama essencial » da obra drummondiana. « Essa esséncia >, diz ainda, « que nao é fabri- civel, que certamente nao depende do puro arbftrio, que traca, em verdade, os limites derradeiros de qualquer elucidagio critica, invade e impregna toda a poesia de Drummond como um travo ancestral vindo do fundo dos séculos (« Toda a histéria € remorso ») ». Embora condenando ao fracasso toda tenta- tiva de elucidagio critica, Sérgio Buarque acaba por oferecer, ele prdprio, a ponta do fio que entretece essa « trama essencial, ao destringar a forca atuante de um passado que — longe de ser positivamente vivenciado como uma meméria mais, grata ou um lugar de refigio ~, vem regido pelos signos da negatividade, como « inelutével predestinagio », « travo ancestral » e, sobretudo, « remorso ». Ou ainda como « implacdvel », « obstinada fidelidade aos velhos ritos », que tem «0 feito de uma tara congénita, de um pecado original irremisstvel » ”. Se a forca dessa heranga ancestral 6 assim experimentada de maneira tio inrevogivel a ponto de se nacuralizar em tara congénita, é porque houve ~ pressu- pée-se ~ algum esforco, ainda que baldado, de romper com a « acéo em cadeia » do passado. Esse esforgo € facilmente verificivel na poesia de Drummond ¢ decorre, sem diivida, de sua condicao amb{gua, a um s6 tempo, de filho fazen- deiro, formado nos valores ieremissiveis do cla mineito, e de poeta ou intelec- tual, que deles se afasta pela cultura livresca; pelo desejo de insercio participagéo no « tempo presente », nesse « formidavel periodo que lhe foi dado viver », como diria 0 « poctacpiblico » dos anos 40; pela critica acetba ¢ 0 combate, enfim, &s estruturas esclerosadas e persistentes da velha ordem oligét- quica, mas onde, por contradiczo, se instala 0 cla dos Andrade, do qual ele é 0 rebento prédigo ¢ ao mesmo tempo o herdeito fiel. Da contrariedade dessa posigio (que é, em suma, a do fazendeiro do ar), decorte um sensimento de culpa que caminha, assim, por uma via de mio dupla: pela consciéncia critica do intelectual participante que condena sua reincidéncia nos ritos ¢ valores do cli dos Andrade, com tudo 0 que ele representa; pelo sentimento de traigao dos valorcs familiares decorrente da propria condicao de poeta ¢ do desejo de parti- ipagio e combate ~ sentimento tanto mais dolorosamente vivide quando se considera que, nos idos de 30 e 40, a« idéia do intelectual burgués como traidor de sua classe de origem » era « uma das palavras de ordem »."" 17, Séigio B. de Holanda. « Rebelifo e convengio ». Cobra de Vidro. Sio Paulo: Perspectiva SCCT, 1978, p. 158-159. 18. A observagio & de Willi Bolle, a propésito de alguns ensaios da década de 30, de Walter Benjamin, nos quai repercute uma dscussio sobre o papel social dos itelectuis, esencadead pela publicagio, em 27, do conhecido lio de Benda, La mahiton de clers. Ver: Will Balle Fisiognomia da merrdpole moderna. Sio Paulo: FAPESP/EDUSP, 1994, p. 175. O fiezendeiro do ar eo legado da culpa 21s Essa culpa contaré ainda com mais um agravance: a contribuigao valiosfssima da inteligencia mineira para o governo getulista ¢ & posigio nele legada aos intelectuais e artistas do periodo. A referéncia obrigacéria aqui é, sem diivida, 0 comhecido estudo de Sérgio Miceli", dedicado & cooptagio do intelectual pelo Estado Novo, fenémeno que ainda ressuma o ranco dos mecanismos de prote- sao e favor tpicos da velha ordem patriarcal, configurando aquele contexto peculiar de modernizacao e arcaismo, referido por Schwarz na andlise de O amanuense Belmiro. Tal estudo é, sem diivida, um verdadeiro divisor de 4guas na compreensio do real, complexo ou mesmo contraditério papel desempe- ado pelo modernistas. Isso ndo o exime de criticas ou reparos, como os de Antonio Candido, a0 advertir sobre 0 perigo de misturar a instincia de verifi- cagio com a de avaliagao, de modo a nio discernir entre os intelectuais que « servem » € os que « se vendem », citando justamente 0 caso ilustrativo de Drummond que, na qualidade de membro de destaque do gabinete Capanema, « serviu » ao Estado Novo, sem por isso « alienar a menor parcela de sua digni- dade ou auronomia mental». Além de Candido, outros como Carlos Nelson Coutinho ¢ Daniel Pécaut criticam a idéia de que a integragao do intelectual a0 aparelho do Estado implique, por si s6, a « supressio da autonomia ideol6gica » ou a adogio de posicées politicas reaciondrias", valendo ainda lembrar José Paulo Paes, para quem as limicagées de intelectuais e classes dirigentes no Brasil se devem & natureza « sociolégica » de uma anélise « que se interessa quase exclusivamente pela biografia real do escritor, ficando fora do alcance de sua visada o imagind- rio da literatura propriamente dito », sendo justamente neste « que se tracam os nnexos mais sutis, mais ricos de significado (bem mais ricos, em todo caso, do que as fontes autobiogréficas privilegiadas no livro de Miceli) da obra de imagi- nagio com a sua circunstancia histérica ».”” Muito embora concorde plenamente com tais criticos a0 afirmarem que a cooptagao nao implica de per si a supressio da autonomia ideoldgica, nao posso deixar de reconhecer que isso nao torna mais simples ¢ trangiiila a posigao do 19, Inter eclaes rgents no Bail (1920-1945). So Palo: Dif, 1979 20, Antonio Candido, Intodusio a Sergio Miceli, op. ct px 21, Daniel Pécat, Or intelecracis ea politica no rail ~ ene o pow ea Nao, So Palo: Avice, 1950, p. 20.21 22, José Paulo Paes, «O pobre abo no romance brasileiro» in Neer Exudo Cebp 2-20, Sio Palo, ma 1988: 51-52: Para uma interpretagio divers de Pe, ver ihvano Santiago para quem o werd de Miceli no dena .] de ser uma espéce de avai dos castes pelics que oprojete artsico modemistaaarteo: porno tera arti (€o texto) nvestidocorjosiieteem outta Fone de tends como, porexemplo, 0 mercado consumidor»- comentirio que surpreende asim dire sem mas, por apatenar cere cuca em laa realidad histrca do mercado Iteritio brasileiro. « O fneectal modernist revstado ». Nas malas dale. So Paulo: Companhia dis Lets, 1989, p 167 216 ‘Vagner Camilo intelectual « integrado » as hostes getulistas. Muito pelo contrétio. Como bem ‘observou Luciano Martins, tal integragio levou a intelectualidade brasileira a uma « quase-esquizofrenia politica », assim que se viram sitiados dentro de um. Estado cujo autoritarismo condenavam:. Por mais que Liicia Lippi de Oliveira vveja « sem surpresa » essa participagio — principalmente no caso de um segmento sem « posigfo clara » na estructura social, em uma época em que a sociedade de alto a baixo era arrafda por um movimento geral e centripeto em relagio 20 Estado™ —, € certo que mesmo a época ela nio era aceita com muita naturali- dade. Ainda mais por se tratar de um perfodo em que, nacional ¢ internacio- nalmente, se exigia cada ver mais do intelectual, a arregimentagao politica ow ‘um posicionamento ideoldgico claro”. A cobranca podia partir, muitas vezes de forma veemente, do préprio meio intelectual e 0 exemplo mais acabado disso é Mario de Andrade que, para muitos, inclusive, ecoava a prépria voz da conscién- cia, julgando ¢ condenando toda espécie de condescendéncia e sujeicio, como se vé na famosa « Elegia de Abril ». Era o caso de Drummond que, sempre muito atento as « ligées do amigo » da Lopes Chaves, deve ter sentido agugar ainda mais 0 « incémodo » da posigao de intelectual integrado ao regime de Estado. Incdmodo esse traduzido na reconhecida « violencia » auto-infringida & subjeti- vvidade lirica na poesia de Drummond, sob a forma de autopunicio, inumacio em vida, culpa ¢ demais « inquictudes », que 0 resgatam do absentefsmo ¢ do conformismo. Nesse embate com uma culpa internalizada através de um super- ego dos mais severos, Drummond assumiré a um s6 tempo o papel de juize réu, vitima € carrasco, tal como o « Héautontimorouménos » (« O Carrasco de Si Mesmo ») de Baudelaire, que para alguns intérpretes traduz muito da frustracio com os sucessos da revolugio de 48". O que, alids, revela mais um angulo por onde flagrar a heranga baudelairiana de Drummond. 23, Apud Randal Jobnson. « A dindenia do campo literirio brasileiro (1930-1945) ». Revista USP (26). Sto Paulo, jun-ago 1995, p. 176 ss. 24, Lica Lippi de Oliveira, « As raizes da ordem: os intelecruas, a cultura co Estado » in VVAA. A Revolucio de 30: Seminirio Ineracional. Brasilia: Eaicora da Universidade de Brasa, 1983, p. 507. 25, Sobre «surpreendente omada de conscignca ideoldgica dos intlectais artistas [nos anos 30), en) uma radicalzagio que antes era quase inexistente», ver Antonio Candido, «A revolugio de 30. 2 cultura», nA educa pela noite ¢ outros emis. io Paulo: Atica, 1987, . 182 s, 26. Cf. Dolf Oehiler: Quadros Parisinses (Sao Paulo: Companhia das Letras, 1997) e 0 Velho Mundo Desc aos Infornes (Sao Paulo: Companhia das Letras, 1999). O fazendeiro do ar eo legado da culpa 27 Drummond Héautontimorouménos ‘Uma ver determinadas as raizes histéricase sociais da culpa, cumpre lembrar mais uma vez com Candido que ela s6 comega a despontar na lirica drummon- diana a partit do livro de 40. Nem poderia ser de outro modo, pois é s6 com a transferéncia definitiva de Drummond para o Rio, 0 ingtesso no funcionalismo piiblico, as exigncias de participacao ¢ posicionamento politico-ideol6gico do artista ¢ intelectual motivadas pela hora presente ¢ a opcio por uma poesia de inspiragéo social, que se pode dar 0 confronto aberto das posigoes contradit6- ras de que redunda a culpa em questio. Para acompanhé-la, muito superficialmente, em algumas de suas manifesta- ‘gees mais evidentes, comego por lembrar Merquior, quando observa, a propésito do primeito livro participante de Drummond, que 0 sentimento do mundo é, também, sentimento de culpa, respondendo pela autocritica impiedosa marcante ‘em varios poemas da colecinea. © endosso dessa afirmagio pode ser encontrado no poema de abertura, que dé titulo ao livro ¢ trata de precisar, a de saida, a posicao e impressio dominante da subjetividade lirica no confronto como espago da grande cidade, fazendo avultar af a condigao geral de alienago.” A propria idéia de alienagao, inclusive, também se encontra anunciada no titulo, se consi derarmos que « sentimento » figura af no sentido de indicar algo que é incuido ‘ou pressentido, mas nio apreendido em profundidade; algo, em suma, sobre 0 {qual no se rem uma consciéncia totalmente clara. Dai o porqué de todo 0 poema parecer se construir em torno da idéia do despertar da consciéncia em relagio & nova realidade social com que o eu se defronta e que ¢ experienciado como algo tardio, por isso, com uma boa dose de remorso, exposta abertamente nos vers0s, mento em que ele proprio tematiza abertamente sua alienacao, dispersi dade e condigio de quem se reconhece aquém das fronteiras: (Os camaradas no dsseram ‘que havia uma guera era necessitio trazetfogo eal humildemente vos peso que me perdocis™ 27. Lembre-se aqui que Sensimenso do mundo & 0 liveo que registra o impacto da transeréncia defintiva de Drummond para o Rio de Jncito, Sobre aalienagdo como conceito centtl do livto. ver Gledson (op. ct) e Merquior (op. ci) 28. Na impossbilidade de reproduzir na integra (ou mesmo parcialmente) os poemas comenta- ddos aqui, recomenda-se a0 eitor que fecorra diretamente ao volume das poesias de Drummond. ‘Valho-me aqui da seguinte edisio: Poesia ¢ Prose. Rio de Jane: Nova Aguilar, 1992. x8 Vagner Camilo ‘Temos, assim, através do pedido de perdio, a primeira retratagio da culpa (social) de alguém que por tanto tempo permaneceu alheio a tudo e despertou tarde demais para a luta, o que responde pela condigao de isolamento a que se cencontra relegado por fim. Essa condigio de dispersio, de quem se sente « anterior as fronteitas », encontrara (ndo por acaso) sua justificativa histérica € social no poema imediatamente seguinte (« Confidéncia do Itabirano »), onde a alienacio, tomada em sentido amplo (« o alheamento de tudo o que na vida € porosidade e comunicacio »), € vista como decorréncia da origem geogrifica e social de uma subjetividade lirica cuja trajctéria € marcada pela experiencia da perda de status social que, todavia, nao abole a lembranga e a forca atuante de tum passado que o atordoa sob a forma de um retrato ¢ que determina indele- velmente o seu modo de ser tive Fazenda, tive our, tive gade hoje sou funcionétio piblico Teabiea € apenas um recato na parede ‘mas como déi. Mas veja que essa perda de status, se implica depauperizago, ndo chega a igualar o filho de fazendeiro ao nivel daqueles a quem dirige seu apelo solidirio em varios momentos do livro de 40, seja 0 operdrio, o habitante do morto ou do subtrbio. A distancia social persiste e € da consciéncia de sua insuperabili- dade — portanto da impossibilidade de identificagao integral ~ que redunda a culpa social. A grandeza e permanéncia da poesia social de Drummond reside justamente no empenho solidario, sem contudo ofuscar a consciéncia dessa distancia social em favor da atitude paternalista ou populista, como se vé no poema em prosa dedicado a « O Operirio no Mar », onde essa distancia chega a ser materializada espacialmente pela demarcagio dos lugares de onde fala o eu lirico ¢ onde se localiza 0 operério: 0 primeiro posto ao abrigo do tempo, confor- tavelmente instalado em um interior de onde observa, através da janela, 0 segundo, que passa pela rua em ditegio a0 mar, exposto obviamente as intem- ‘¢ ameagas do mundo exterior”. Fa consciéncia dessa distancia social, pontuada de desconfianca, que impediré o cu, a dada altura do poema, de conter ‘© impulso de se irmanar do operario, de saltar pela janela ¢ deter-lhe © passo, fazendo aflorar a culpa sob a forma de vergonha e de um suposto desprezo que ‘eu reconhece parti talvez mais dele em relagdo a ele proprio do que, efetiva- mente, do operitio. 29. A. dialtica do exterior e do interior »~ para empregar com outta intengio uma expressio cats a Bachelard ~¢,alds, uma constante no listo de 40, como forma de demarcagao da dist cia social ~ basta pensar em « Privilégio do Mar ». A importineia conferda ao espago nessa fase 4a obra examinada em outta perspectiva por John Gledson, op. ct O faxendeiro do ar € 0 legado da culpa 219 Que esse desprezo seja uma projegdo sua, na verdade um auco-deprezo motivado pela culpa, parece comprové-lo o fato de que operdtio, longe de qualquer gesto inamistoso ou hostil, dirige-lhe, a0 contrério, um « sorriso timido », no momento em que segue milagrosamente caminhando (qual santo, embora destituido de qualquer santidade) no mar (simbolo de instabilidade, relativa talvez ao destino incerto do operirio) « que se acovardou ¢ 0 deixou passar ». Serd esse sortiso, aliés, o « tinico e precério agente de ligagio » entre ambos com a chegada da noite, vista pelo seu potencial de isolamento ¢ separa- 40. Atravessando todos os obstéculos que os separa (formacées salinas, fortale- zas da costa, medusas), esse sorriso, diz o eu lirico, por fim, « vem beijar-me 0 rosto, trazet-me uma esperanga de compreensio. Sim, quem sabe um dia 0 compreenderei? » E possivel que esse sorriso seja ainda a projegio de um senti- mento, de um desejo do eu, que se manifesta, quem sabe, oniricamente. E, de fato,a partir do momento em que o operério ingressa no mar, o poema em prosa adquire uma feicao fantéstica, surreal, on{rica, pelos prodigios que descreve. Mas ainda que assim seja, esse sorriso de esperanga ¢ compreensio assinala que Drummond nao desacreditava de todo na possibilidade furura de suplantar a distancia que o separa do operitio. A crenga ird se intensificar no livro seguinte, José (1944), em um dos poemas em que a culpa social ou de classe ganharé uma de suas expressoes mais carac- teristicas, com a « autocastragio punitiva » de « Mao suja ». « Mio-conscién- cia », como diria Antonio Candido, « suja ha muitos anos », 0 que vale dizer que a culpa é um scntimento antigo, ligado & sua origem social, adensado com ‘0 tempo a ponto de se tornar irremovivel (« nao adianta lavar »), pois chegou a contaminar até mesmo aquilo que deveria servir para remové-la (a « Agua est podre » € 0 + sabdo é ruim »). Tomada em sentido literal, a sujeira nao é algo de que se envergonhar. Ao contritio, o « sujo de terra,! sujo de carvao,/ casca de ferida,/ suor na camisa » é antes dignificante, porque signo « de quem trabalhou ». Em contraponto, a sujeira irremovivel do cu lirico cvidencia-se cm scu sentido moral, porque « vil », «triste », feita « de doenca ¢ de mortal desgosto na pele enfarada ». Se ele buscou, principio, oculté-la e, em seguida, lavé-la as escondidas, é porque ele se furtou durante um bom tempo a encarar de frente o conflito decorrente de sua posicao social, embora jd demonstrasse ter conscigncia dele. Com sua tomada de posigio nos anos 40, hd de se haver explicitamente com essa situagao, com a sujeira incrente 4 prépria pele, para a qual s6 resta mesmo a solugao dristica e sacrifi- cial, descrita nos derradeiros versos, de corti-la depressa e langé-la ao mar, na esperanga de que, com o tempo, venha colar-se 20 corpo uma nova mio, mais limpa e digna de ser ofertada ao outro em um gesto solidario, Ora, o que garante essa esperanga (e seus maquinismos) € 0 ideal social acalentado nos anos 40, que ameniza e justifica 0 sacrficio impingido com a autocastragéo punitiva da main 220 ‘Vagner Camilo sale. Para comprové-lo, basta recordar que essa mesma forca apaziguadora da culpa através da castragdo punitiva reapareceré em A Rosa do Povo com « Movimento de espada » do irmao vingador a Ihe decepar 0 brago, que jaz por fim molhado em rubro. Na segunda dissertagao sobre a Genealogia da Moral, Nietzsche trata de observar « que 0 grande conceito moral de culpateve origem no conceito muito ‘material de divida’» ~ lembrando-se aqui que, em alemio, a palavra é a mesma (Schuld). Observa ainda, com relagao 3 idéia de castigo, que a equivaléncia — vigente durante o mais largo periodo da existéncia humana ~ entre dano ¢ dor (sendo esta impingida a0 causador daquele, como forma de compensagio) encontra seu fundamento « na relagio concratual encre credor e devedor, que € tao velha quanto a existéncia de pessoas juridicas’, e que por sua vez remete as formas bisicas de compra, venda, troca e tréfico » ®. Tais observagées encontram plena vigéncia nos versos acima, dado © modo como Drummond, primeira- ‘mente, enfatiza a relagio de culpa com o iemio vingador em teemos de divida ‘Ou melhor, em termos de cumprimento da divida (« estamos quites »; « minha divida est paga »; « fizemos as contas ») visto que o castigo jé foi impingido ¢ justamente através do sofrimento causado pela decepacao do braco. Mas a perda se faz ganho, como revelam varios versos que assinalam a idéia de compensagio « Déi o ombro, mas sobre o ombro/tua justica resplandece ». « A lamina corta, ‘mas € doce,/a carne sente, mas limpa-se ». « © que perdi se mulkiplica/e uma pobreza feita de pérolas/salva o tempo, resgata a noite ». « Obrigado, irmao, pelo sol que me deste,/na aparéncia roubando-o. » Por forca da mutilagao justiceira, a desconfianga que impedia « O operirio no Mar » de ver e ser visto pelo poeta como um « irmio » é agora suplantada: © poeta pode, assim, referir-se reiteradas vezes a0 outro, vingador, na qualidade de irmao. A boca do « Operério no mar », que ao final do poema esbogava um leve sortiso de esperanca; pode agora abrir-se em riso largo e até moldar um beijo de amor. O prdprio mar, que era, no poema em prosa, o dominio instével em que se instalava, isoladamente, o operitio, enquanto 0 poeta permanecia em terra firme, é agora o dominio onde se da o congragamento do eu e de seu « irmao vingador », rolando, ambos, em suas éguas. A mutilagio justiceira garante, assim, a amenizagio do sentimento de culpa, cevidenciada ainda mais pelo « tranqiilo », que gana, inclusive, posigio de destaque no final do poema, isolado em um sé verso, com a analogia estabele- ida com 0 olhos guardados nas pdlpebras, indicando sono ou morte: “Tudo ¢ precios. e eanghito como olhos guardados nas palpebeas. 30. Friedrich Nietasche. Genealogia dls Mona. So Paulo: Brasiliense, 1988, p. 64-65. O ffecendeiro do ar eo legado da culpa 2a Ora é justamente ese poder de amenizagio ou apaziguamento da culpa que se ‘perde na passagem para Claro Enigma. O poema que melhor sinaliza essa ‘mudanga é, sem divida, « Confissio », onde o eu penitente declara sua infragio ao segundo grande mandamento sagrado, de acordo com Matheus 22: 39 (« Amards 0 teu préximo como a ti mesmo »), a0 que segue, ¢ se relaciona, sua omissio diante do mais prosaico sofrimento alhcio: « nao catei o verme nem curei a sarna ». © sentimento de culpa que motiva a confissio decorre justa~ mente do contraste entte a eficicia e o beneficio imediatos de gestos solidérios como esses a que se furta 0 eu litico e o que ele praticou de efetivo: 6 proferi algumas palavras, melodioss, tarde, ao sait da festa, A « festa », com tudo 0 que sugere em cermos de alegria € diversio, visa assinalar a condigio de descompromisso ¢ alheamento em que vivia 0 eu lirico «em relagio ao softimento do proximo. E s6 « a0 voltar da festa » que ele chegard a1« proferir » — lembrando que o verbo significa tanto dizer em vor alta quanto publicar — « algumas palavras », referéncia segura 4 prépria poesia, tanto mais por serem qualificadas como « melodiosas » (termo que nao esconde, por outro Jado, certa conotacio pejorativa ligada ao desmerecimento da arte litica). Além do que, clas parecem ser pronunciadas fora de hora, dada a ambigtiidade do advérbio « tarde » isolado entre virgulas, que tanto pode indicar 0 avangado da hora em que o eu sai da festa, quanto a demora ou atraso de seu pronuncia- ‘mento, reforcando ainda mais a inutilidade das mesmas. Ora, uma constante da lirica social de Drummond é 0 sentimento de quem chegou fora de hora ou tarde demais, como se viu a propésito de « Sentimento do Mundo », 0 que tora a hipdtese ainda mais vidvel. Obviamente, Drummond sabe que a poesia nunca poderd interceder de forma direta na realidade. Se ele busca contrasté-la aqui com agoes efetivas € justamente para assinalar a consciéncia do « carer de culpabilidade » irrepara- velmente ligado a toda atividade artistica, nos termos em que a define Adorno, « como luo e privilégio de classe ». Cabe as obras individuais, no processo a tico, « engajar essa sensagio universal de culpa, enftenté-la com acuidade dilace- radora, trazé-la & consciéncia na forma de uma contradicéo insohivel. As obras individuais de arte néo podem jamais resolver essa contradig0; mas podem recobrit-se de uma certa autenticidade incluindo-a como contetido ¢ matéria- prima, como aquilo que a obra de arte individual precisa estar sempre enfren- tando de novo, em toda sua viruléncia. Nesse sentido, a culpa da qual todas as obras de arte estio impregnadas seri uma das mediacées por meio das quais a obra que de outro modo seria monddica se relaciona de maneira profunda e 222 Vagner Camilo interna com a ordem social que de outro modo seria externa [...] » ®. Drum- mond atinou profundamente com a verdade dessas palavras, pois como temos acompanhado aqui, desde a fase social de sua poesia, pelo menos, a culpa torna- se matéria recorrente como forga propulsora das inquietudes denunciadas por Candido. Forga da qual s6 acompanhamos as manifestagdes mais evidentes, desconsiderando a sua presenca mais sorrateira em outros momentos. Tal como na estética adorniana, segundo Jameson, a culpa é também um « baixo conti- ‘nuo que ressoa incessantemente » na obra de Drummond, « mesmo onde suas vibrag6es tornaram-se uma virtual segunda natureza de nossos sentidos, de modo que, vez por outra, ndo mais o ouvimos conscientemente » ”. Ela € também, de acordo com a concep¢ao adorniana, uma forma de mediagao por meio da qual a obra internaliza 0 conflito decorrence da posigio social do artista, cuja particularidade, no caso do nosso fazendeito do ar, ficou assinalada atris, ao tratar das raizes histéticas da culpa. Se, na fase social de sua litica, a culpa, embora exposta em toda sua virulénciae dilaceramento, ainda podia contar com algum conforto advindo do proprio engajamento — conforme vimos através da auto-castragio redentora de « Mio suja » ¢ « Movimento de Espada » -, na fase de « Confissio », obviamente em decorréncia da frustragao do empenho part: cipante, 0 que se perde € justamente esse poder de redengio pela poesia. Mais do que nunca, a culpa aflora aqui como uma contradigao insohivel, ligada 20 desmerecimento da prépria poesia. Embora 0 poeta tivesse sempre nutrido uma grande desconfianga com relagio ao alcance de participagao social da palavra poética ~ inclusive na fase engajamento, como bem demonstrou Iumna Simon em Drummond: Uma Poética do Risco —, esse total desmerecimento para com a poesia s6 se justifica em um momento de frustragio absoluta para com 0 empenho participante. ‘Mas o desmerecimento nio se limita apenas 3 poesia, ou melhor, is « palavras melodiosas » proferidas pelo eu ao sair da festa. Ele se estende a todo e qualquer gesto que dele parte em direcao ao outro. E 0 que se vé na 2* estrofe, que denun- ia o vazio de intengbes ou a falta de convicsao nos gestos de entrega e afeto do cu dirigidos ao outro: « dei sem dar e beijei sem beijo ». O paradoxo diz. assim do gesto que ¢ pura aparéncia, convensao em que 0 eu nao se coloca ou se doa por inteiro. © penicente, como sé, nao busca poupar-se um minimo que seja. Confessar- se abertamente nesses termos jé € uma forma de punigao, para a qual, entretanto, no ha perdao. E se assim ocorre, é porque o desamor nao se refere apenas 20 outro 31. CE Jameson, O Marsieme Tardio: Adorno, ow a Persstincia da Dialética, Sio Paulo: Fundagio Faieora da UNESP: Editora Boitempo, 1997, p. 173 (ver todo cap. 2, «A culpa da are», da pare 1), 32 Id, ibid, p. 173 O fazendeiro do ar eo legado da culpa 233 ‘mas, antes de tudo, a si préprio. O confidente levou ao limite a desobediéncia 20 ‘mandamento em questio, 20 afirmar, na derradeira estrofe: « Nao amei sequer mim mesmo, contudo préximo. Nio amei ninguém ». As implicagoes desses versos podem ser encontradas em um poeta bem caro ao Drummond dos anos 50: Valéry, que em um dos aforismos de Chases Tues (Tel Quel I), lanca esta tirada ‘mortal (fazendo jus a0 titulo), que muito se aplica a « Confissio »: Pois se o eu resulta odioso, amar a0 préximo como a si mesmo se converte em Incapaz de amar 0 « préximo », sé um coisa escapou de seu total desamor: © « pissaro azul e doido », flagrado em pleno v6o, como simbolo do ideal «distante ». Ideal de liberdade (como 0 acalentado outrora, nos idos de 40), que entretanto se choca e se esfalega contra a realidade (realidade da técnica, encar- nada pelo péssaro mecinico), encerrando, assim, a confissdo em clave de amarga, de atroz ironia, Da culpa social passo & familiar, que jé despontava na lirica dos anos 40 de forma mais ou menos explicita, como, por exemplo, em « um certo remorso de Goids » a assolar o eu lirico no espago claustrofébico do « Edificio Esplendor », fazendo evocat, por contraste, a amplidio dos cmodos da casa paterna. Ou ainda, como no hamletiano « Viagem na familia», onde a culpa parece respon- der pelo siléncio ressentido do fantasma paterno diante dos insistentes apelos ¢ indagagées do filho que, ao fim c ao cabo, sente-se, entrctanto, perdoado por cle. Essa possibilidade de perdio seria impensivel em Claro Enigma, onde a culpa familiar recrudesce a ponto de se afigurar, tal como a social, irremissivel A culpa experimentada como produto do afistamento ou da negagao dos designios e valores do cla mineiro, soma-se agora a consciéncia de que é ilusdria toda tentativa de se desvencilhar deles, visto agirem em cadeia, naturalizados em. tara congénita. Nao € apenas a idéia de que os antepassados, embora mortos, vivem em nés, independente de nossa vontade, como atestam os versos de abertura da segio dedicada ao tema (« Labios Cerrados »), mas também a de que nossas agGes e nosso destino sao tragados por eles, mesmo quando nos acreditamos o mais afastados deles. Os versos que melhor traduzem esse sentimento em Claro Enigma sio 0s do excepcional « Os Bens ¢ 0 Sangue », definido, certa vez, por Liicio Cardoso, como 0 maior poema jé lido em sua vida « desse raro exemplar de falta de calor humano que se chama Carlos Drummond de Andrade » *. 233. Paul Valery. « Cosas Calladas » in Tel Quel I: Cosas Calladas: Moralidades: Literatura CCuaderno B 1910. (rad, Nicanor Ancochea). Barcelona: Editorial Labor. 1977, p. 33. 34. CE. C. Drummond de Andrade. O Ohtersador no Eccritéria. Rio de Janeito: Record, 1985. op. cit, p. 40. 24 ‘Vagner Camilo © poema ~ que ja traz no titulo um indice significative de naturalizagao associado & ago do passado familiar: o sangue ~ & uma espécie de condensagao das tendéncias trdgicas disseminadas na obra de Drummond. E onde elas se mostram em toda sua evidéncia. Dai a importincia que assume no conjunto. Sant’ Anna jd o havia nomeado como o « Auto do Gauche», atentando assim para suas virtualidades draméticas, mas foi Marlene de Castro Correia quem exami- nou detidamente os vinculos existentes entre 0 poema e a estilizacao do género trigico. Diante dessa anilise, pouco haveria a se acrescentar a respeito de ais vinculos, como chave de interpretacao do poema. Hi, todavia, um aspecto no abordado que cu gostaria de enfatizar, que se prende & origem mesma da tragé- dia, sendo, deliberadamente ou nfo, como que reatualizado nos versos de Drummond. Refiro-me ao vinculo original existence entte a tragédia e o direito ou os autos processuais, definido por Vernant e Vidal-Naquet nos seguintes termos"., Fazendo ecoar esse vinculo original, « Os Bens ¢ 0 Sangue », sem deixar de ser um tragédia em versos, é também um julgamento promovido no tribu- nal interior da consciéncia culpada de nosso fazendeiro do ar, que se debate entre os valores, as exigéncias ea die do cla mineiro em que nasceu e foi criado, € 0 sentimento de traicio dos mesmos, seja pela inaptiddo para 0 trato com 0 gado, « para as cavalhadas e os trabalhos brutais com a faca, 0 forméo ¢ 0 couro... »; seja pela opgao por uma atividade poética por uma conscigncia social e politica que nao s6 0 afastava dos valores ancesttais, mas também os tomava como alvo de critica, conforme vimos a0 tratar da dupla motivagio da culpa. Nesse processo movido contra si préprio, 0 éautontimorouménas chega ao limite da perversidade, na medida em que attibui 0 préprio impeto de se afastar e negar os valores do cla ~ através da condicio de poeta e intelectual e da consciéncia social e politica que os condena ~ a um designio de seus antepassa- dos, como se vé na parte III (« Num magoado alvorogo/o queremos marcado/a nos negar; depois de sua negagao nos buscard. ») ¢ na parte final (VIII). Na medida em que tudo foi tal como quiseram os antepassados; em que a recusa acabou sendo um modo de melhor servi-los, anula-se por completo toda ¢ qualquer tentativa de afirmagio de independéncia, de auronomia e de poder de decisio do fazendeiro do ar em relagio ao cla e seus valores, mesmo quando se acreditava o mais afastado deles, a0 conceber a utopia de uma nova ordem social que era justamente a oposigio ¢ a negacao da encarnada por eles. Ora, é 36 no momento em que fracassa a utopia dessa nova ordem social, que se pode compreender o desmerecimento ¢ a nulidade de toda tentativa de afirmagao de independéncia do eu drummondiano! Dai o sentimento de retrocesso ¢ sujei- 35, J-P Vernant e P Vidal-Naquet. Mito ¢ Tiagédia na Grvia Antiga. Sio Paulo: Duas Cidades, 1977, p. 13. CE também Walter Benjamin. A Origem do Drama Barraco. Sao Paulo: Brasliense, 1984, p. 138-139. O fazendeiro do ar eo legado da culpa 225 fo ao passado vivenciada como fatalidade, naturalizada em destino, maldigio, tara congénica ‘A teafirmacio final dos designios dos antepassados contra a suposta autono- mia, independéncia ou negacao dos mesmos por seu descendente gauche também mais um traco de afinidade com a tragédia, que se define justamente pelo jogo entre liberdade ¢ compulsio, entre a decisio pessoal no agir ea neces- sidade (andnke) imposta de fora, pelos deuses. Criticos da tragédia, como B. Snell, deram maior énfase 4 « decisio do sujeito, com seus cortelatos mais ou menos explicitos de autonomia, de responsabilidade, de liberdade », levando, assim, « a obscurecer o papel, decisivo entretanto, das forcas supra-humanas que agem no drama ¢ que lhe dao sua dimensio propriamente trdgica. Essas potén- cias religiosas nao esto presentes apenas no exterior do sujeito; clas intervém no intimo de sua decisio para coagi-lo até na sua pretensa escolha’[...] Afinal, 6 que engendra a decisao € sempre uma andnke imposta pelos deuses, a neces- sidade’, que, em um momento do drama, fizendo pressio sobre um s6 lado, poe fim & situagio inicial de equilfbrio, como jé antes a fizera nascer. O homem trigico jé nao tem que escolher entre duas possibilidades; ele verifica que s6 uma via se abre diante dele. O comprometimento traduz nio a livre escolha do sujeito, mas reconhecimento dessa necessidade de ordem religiosa 4 qual a personagem ndo pode subtrair-se ¢ que faz dela um ser forcado’ interiormente, biasthets, no proprio seio de sua deciséo’, Portanto, se & que ha vontade, ela nao seria uma vontade aucénoma no sentido kantiano ou mesmo simplesmente tomista do termo, mas uma vontade amarrada pelo temor que o divino inspira, se nao constrangida por poténcias sagradas que assediam 0 homem no seu préprio intimo » “, Sem desconsiderar 0 quanto a decisio é « necesséria », forcada pela ancnke, A. Lesky tende, apesar disso, a preservar certa margem de livre escolha (sem a qual no poderia haver responsabilidade pelos atos) por parte do herdi trigico que, « por um movimento préprio de seu cardter », apropria-se dessa necessi- dade, cornando-a sua « a ponto de querer, até desejar apaixonadamente aquilo que, em um outro sentido, é constrangido a fazer » ". Na mesma linha, para 0 jovem Lukécs da « Merafisica da Tragedia » ~ ¢, na esteira dele, para Benjamin —,0 que caracteriza o decurso da ago trdgica ¢ justamente o modo como o heréi toma consciéncia e internaliza a culpa que, « segundo os antigos estatutos, € imposta aos homens de fora », portanto independendo de suas agdes ou vontade. Isso é que o torna propriamente her6i ¢ 0 faz sobressair-se aos demais homens 36, J-P. Vernant eB. Vidal-Naquer. « Esbogos da Vontade na Teagédia Grega», op. cit p. 37. 37. Id, ibid, Vernante Vidal-Naquet recoram a ese da « dupla motivago » de Lesky, mas sem concordat integralmente com ela. Paclham as resalvas fits aela por A. Rvier,fundadas em uma concepgio particular de vontade entre os gregos. que no se canfunde com a acepgio moderns, 226 ‘Vagner Camilo assumindo a culpa que the é imputada, ele rompe o destino mitico, como se fosse de fato sua vontade e, com isso, a maldigéo de que é vitima acaba por se extin- guir. Ele deixa, assim, de se sujeitar, passiva e inconscientemente como os demais homens, a0 que Ihe ¢ imposto de fora, como produto de uma Necessidade divina, para afirmar orgulhosamente a culpa como decorréncia de um ato humano ~ ¢ como diria Hegel, « ser culpado é a honra do grande caréter » *. Seem « Os Bens ¢ o Sangue » o destino mitico do poeta gauche encara-o como um estranho, desvelando-se como uma maldi¢éo imposta pelos seus antepassa- dos (em vez dos deuses), sua extinggo, através da admissio explicita da culpa, s6 vird ocorrer em outro poema dramético incluido na coletinea seguinte, cujoriculo ‘cunha em trago preciso 0 retrato acabado da subjetividade lirica forjada por Drummond ao longo da obra: Fazendeiro do Ar (1954). Nela, inclui-se « Morte de Neco Andrade », uma « pequena tragédia agréria » ocorrida na familia do poeta, que, como norou Joaquim-Francisco Coolho, « de certo modo mancém com a tragédia clissica algumas analogias dignas de reparo » ”, € na qual se dé, a ‘meu ver, 0 acerto de contas definitivo do fazendeiro do ar com o legado da culpa. © poema em prosa evoca a lembranca do assassinato do primo fazendeiro, no mesmo instante em que 0 nosso fazendeiro do ar tinha pela frente a tarefa de « representar no teatrinho de amadores, ¢ essa responsabilidade comprimia tudo » Em virtude disso, nao péde « sentir muito » a morte do primeiro. Ao longo dos versos, os dois fatos acabam por se interpenetrar fantasticamente na lembranga, com 0 cadaver do primo atravessando o palco a montaria amcacando pisar 0 «mau amador » que « vive roido de diividas » ¢ que se vé, assim, impossibilitado de desempenhar o papel. Diante dessa lembranga alucinada, ele indaga se no « seria remorso por me consagrar ao espetéculo quando jé 0 sabia morto », mas acaba negando a hipétese, alegando « que o especiculo é grande, ¢ seduzia para além da ordem moral », Além do que, diz cle, « nossos ramos de familia nem se davam ». O fato € que, apesar de descartar ssa (¢ outras) hipétese(s), 0 eu acaba por concluir © poema com uma confissio de culpa integral erudo se desvenda: sou responsivel pela morte de Neco e pelo crime de Augusto, pelo cavalo que foge ¢ pelo coro de vitivas pranteando. Nio posso representar mais: por todo 0 sempre ¢ antes do nunca sou responsive, responsivel, responsivel, responsivel, Como as peda sto responsive, e 0s anjos,principalmente os anjs, so responsiveis, 38. G, Lukics, « Métaphysique dela Tagédie », Lime et ler Forms (trad. Guy Haarscher), Paris Gallimard, 1974 op. cit. Ver ainda os comentiris de Benjamin (que cita Hepel) a respeito da cragédiae da tee de Lukics, no capitulo 2 do estudo sobre 0 drama barroco, 39. JF. Coelho, Terma ¢ Familia ma Poesia de CDA. Belém: Universidade Federal do Pari, 1973, p. 195; O faxendeiro do ar eo legado da culpa 227 © poema nao diz mas permite inferir que a razo da culpa reside no contraste entre 0 destino dos dois rebentos dos Andrade: apesar do fim trigico, Neco morreu como fazendeito, seguiu 2 risca o oficio que Ihe fora destinado pela tradigéo familias, a0 passo que o primo ~ fazendeito do ar ~ acabou por negi- Ja, desempenhando um papel que nio era o seu de origem (por isso « mau amador ») ¢ que era condendvel aos olhos do cli. Mais do que a razio, entretanto, interessa aqui observar como apés essa enfatica admisséo de culpa, cla parece curiosamente se extinguir, respondendo pela relacéo menos conflituosa ¢ mais distanciada com o passado familias, que praticamente deixa de ser tematizado no livro subseqiiente (A Vida Passada a impo), pata reaparecer depois, noutto registo, liberto e gaio, em Liga de Coisas «, mais ainda, nos livios memorialisticos da série Boitempo. Neles, como notou Antonio Candido, a divida, a inquiecude, a auto-anslise eo sentimento de culpa cedem a ver ao sentimento do mundo do espetéculo, enquanto o héautontimo- rouménos assume 0 papel do espectador distanciado”. 40, A. Candido, « Poesia e Figo na Autobiografa ». A Educapdo pele Noite ¢ Ousnos Ensatos. S30 Paulo: Acica, 1987. Littérature et modernisation au Brésil La modemisation au Brésil se confond avec la constitution du pays. La forme qu'elle y assume se dessine de facon déckive au moment méme de Tindépendance en 1822 et se reproduit en temps que modemisation conser- vatrice tout au long des deux siécles suivants. C'est ainsi qu'elle donne le sentiment d'osciller entre un changement qui ne respecte que peu de limites et la persistance du passé, Cette modernisation & la fois vertigineuse et toujours incompléte a souvent €é dramatique, fant parfois disparate les marques qui auraient permis de T'évaluer. La conscience culturelle perd alors pied lorsque l'on envisage la portée et le sens des transformations qui affectent. La meilleure littérature brésilienne n‘a jamais de travailler ces formes contradiatires. ‘Cest sous cet angle que les examinent deunc quips francaise et brésienne, dans le cadre d'un accord Usp-Cofecub, en essayant de mete en lumire les Tapports qui s'établissent entre la forme littéraire et le processus social. Elles se sont

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