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JUSTIÇA RESTAURATIVA E POLÍTICAS PÚBLICAS

uma análise a partir da teoria da proteção integral


SOBRE OS AUTORES

André Viana Custódio


Doutor em Direito (CPGD/UFSC), Mestre em Direito (CPGD/UFSC), Graduado em Direito
(UFSC), Professor de Direitos Humanos no Curso de Graduação em Direito da Universidade
do Extremo Sul Catarinense (UNESC), Professor Visitante no Curso de Graduação em Direito
e no Programa de Mestrado em Direito da Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), Pes-
quisador do Núcleo de Estudos Jurídicos e Sociais da Criança e do Adolescente
(NEJUSCA/UFSC), Pesquisador do Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas de Inclusão So-
cial (UNISC), Pesquisador do Laboratório de Direito Sanitário e Saúde Coletiva (UNESC),
Pesquisador do Núcleo de Estudos em Estado, Política e Direito (NUPED/UNESC), Fellow
da Ashoka Empreendedores Sociais, Coordenador Executivo do Instituto Ócio Criativo.

Marli Marlene Moraes da Costa


Pós-Doutora em Direito pela Universidade de Burgos/Espanha Doutora em Direito pela Uni-
versidade Federal de Santa Catarina – UFSC, professora da graduação e do Programa de
Pós-Graduação em Direito – Mestrado na Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC, Coor-
denadora do Centro de Estudos e Pesquisas Jurídicas – CEPEJUR e do Grupo de Estudos
“Direito, Cidadania e Políticas Públicas” da UNISC, avaliadora do INEP. Psicóloga com Es-
pecialização em Terapia Familiar. Autora de livros e vários artigos em revistas especializa-
das. Coordenadora e pesquisadora responsável pelo projeto Justiça Restaurativa na práxis
das polícias militares: uma inter-relação necessária no atendimento às vítimas de crimes
graves no município de Santa Cruz do Sul. Integrante do projeto CNPq (PUC/RS) Relações
de Gênero e Sistema Penal: violência e conflitualidade nos Juizados Especiais de Violência
Doméstica e Familiar Contra a Mulher.

Rosane Teresinha Carvalho Porto


Mestre em Direito, área de concentração: Políticas Públicas de Inclusão Social e Especia-
lista em Direito Penal e Processual Penal pela Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC.
Integrante do Grupo de Pesquisa: Direito, Cidadania e Políticas Públicas, coordenado pela
professora Pós-Drª Marli M. M. da Costa. Professora na UNISC. Pesquisadora e integrante
do Projeto: Justiça Restaurativa na práxis das polícias militares: uma inter-relação necessá-
ria no atendimento às vítimas de crimes graves no município de Santa Cruz do Sul. Inte-
grante do projeto CNPq (PUC/RS) Relações de Gênero e Sistema Penal: violência e confli-
tualidade nos Juizados Especiais de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher.
André Viana Custódio
Marli Marlene Moraes da Costa
Rosane Teresinha Carvalho Porto

JUSTIÇA RESTAURATIVA E POLÍTICAS PÚBLICAS


uma análise a partir da teoria da proteção integral

Curitiba
Multideia
2010
Capa: Sônia Maria Borba
Projeto gráfico e revisão: Fátima Beghetto
Impressão: Nova Letra Gráfica e Editora Ltda.

CIP-Brasil. Catalogação na fonte


Custódio, André Viana

C987 Justiça Restaurativa e Políticas Públicas: uma análise a partir da


teoria da proteção integral. / André Viana Custódio, Marli Marlene Moraes da
Costa e Rosane Teresinha Carvalho Porto. – Curitiba: Multideia, 2010.
144p.

ISBN 978-85-86265-14-3

1. Justiça. 2. Políticas Públicas. I. Costa, Marli Marlene Moraes da.


II. Porto, Rosane Teresinha Carvalho. III. Título.

CDD 340(22.ed.)
CDU 340

Multideia Editora e Representações Ltda.


Alameda Princesa Izabel, 2215
80730-080 Curitiba – PR
(41) 3339-1412
APRESENTAÇÃO

Eu vinha subindo as escadas da Escola da Magistratura, quando aquela moça


me abordou dizendo que queria estudar Justiça Restaurativa conosco, com vistas a
elaborar sua tese de mestrado em Direito – linha de pesquisa Políticas Públicas de
Inclusão Social na UNISC. Embora se tratasse de uma ação eminentemente comunicativa,
eu não poderia supor quantos componentes estratégicos estariam por aflorar daquela
humilde proposição. Primeiro, a moça se revelou como Sargento Rosane, interessada
em compartilhar sua aprendizagem também com os companheiros de farda de Santa
Cruz do Sul. Aos poucos, sua participação, sempre propositiva e questionadora, foi se
desenvolvendo em mais de uma frente. Por um lado, mostrou-se uma liderança no seu
meio militar. Num movimento de baixo para cima, e que aparentava subverter a cadeia
de comando, seus superiores lhe seguiriam nos cursos e encontros do Projeto Justiça 21.
Além de colegas soldados, viriam também o Major Gedeon e, por fim, revelar-se-ia por
detrás de tudo o Coronel Werner. Por essa perspectiva, sua presença despretensiosa
anunciava o que seria, ou que se tornou, uma ação do Comando Regional. Mais uma
vez aqui possivelmente uma ação comunicativa, mas de relevância estratégica, que
culminou com a criação do GRAVIT – Grupo Restaurativo de Apoio à Vítima, iniciativa
pioneira de serviço às vítimas, numa abordagem restaurativa e fundada na comunica-
ção não violenta, surtida no seio da Brigada Militar gaúcha. Por outro lado, mostrou-se
também uma liderança também no meio acadêmico. Arrebanhou consigno não apenas
a relevante contribuição dos orientadores, a Pós-Doutora Marli da Costa e o Doutor
André Viana Custódio, com quem divide a autoria deste livro, mas da própria Faculdade
de Direito da UNISC, que se tornou sede do primeiro curso de extensão em Justiça
Restaurativa a distância do Rio Grande do Sul, possivelmente pioneiro também no País.
No meio desse processo todo, transcorrido entre 2005 e 2009, acompanhamos
a realização do mestrado, a ebulição das ideias, a pesquisa de campo no laboratório de
Apresentação de Leoberto Narciso Brancher 6

experiências restaurativas montado no Juizado de Porto Alegre e a publicação desta


obra. Literariamente, a publicação tem por foco a discussão da Justiça Restaurativa nas
políticas públicas, e sua relação com a Teoria da Proteção Integral, à luz de uma abor-
dagem teórica baseada em Habermas e Foucault. Tarefa ousada, a de analisar critica-
mente um paradigma novo e ainda pouco explorado como o da Justiça Restaurativa,
simultaneamente, à luz de três distintos referenciais teóricos de prestígio consolidado,
mas de tal refinamento e complexidade que sua compreensão costuma refugir ao
alcance do leigo. Pois aqui, novamente, com simplicidade e objetivação – e claro, com
certeza, muita disciplina – o esforço dos autores, que mais uma vez foi capaz de re-
sultados surpreendentes, permitindo não apenas uma contribuição concreta à melhor
compreensão das ideias sobre Justiça Restaurativa, mas também um reforço à sua
fundamentação no campo teórico, território que lhe é ainda movediço. Evoluindo por aí
é que a presente obra permite compreender o quanto as concepções da Justiça Res-
taurativa, iluminadas pela Teoria da Ação Comunicativa de Habermas e da Teoria de
Poder de Foucault, e, portanto, numa dimensão mais refinada e sutil, se relacionam
intrinsecamente com os postulados da Doutrina da Proteção Integral da ONU para a
Infância. Em conclusões deduzidas aí, a observação da realidade permitiu a constata-
ção de que, ainda que enfrentando as resistências inerciais de um sistema institucional
de alta densidade – como é o Sistema de Justiça Juvenil, em que a pesquisa foi aplicada
– as ideias de Justiça Restaurativa se mostram efetivamente vocacionadas a produzir
impactos culturais de grandes proporções e num sentido ético por todos desejado.
Ao compreender esse percurso e essas interações no campo teórico, será pos-
sível compreender também a trajetória dos autores e o sucesso contagiante das ideias
sobre Justiça Restaurativa, que não acontecem dissociadas da disciplina intelectual, do
esforço engajado e da subversão da hierarquia das concepções tradicionais. E mostra
que a melhor teoria é aquela que não apenas se confirma, mas, principalmente, que se
transforma numa nova prática.

Leoberto Narciso Brancher


Juiz de Direito
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 9

UNIDADE I

CAPÍTULO 01 – Aspectos históricos sobre os direitos da criança e do adolescente


no Brasil ...................................................................................... 11

CAPÍTULO 02 – Reflexões sobre a adolescência .................................................... 17

CAPÍTULO 03 – Ato infracional, medidas socioeducativas e exclusão social ............ 23

CAPÍTULO 04 – O discurso da delinqüência juvenil e o caráter instrumental do


discurso dominante ...................................................................... 27

CAPÍTULO 05 – A violência estrutural.................................................................... 37

CAPÍTULO 06 – A gestão local de rede de atendimento e as políticas públicas


socioeducativas............................................................................ 41

UNIDADE II

CAPÍTULO 01 – Justiça Restaurativa: premissas e considerações essenciais............ 51

CAPÍTULO 02 – A comunicação não violenta como procedimento da Justiça


Restaurativa ................................................................................. 73
CAPÍTULO 03 – A teoria da ação comunicativa em debate...................................... 81
André Viana Custódio – Marli Marlene Moraes da Costa – Rosane Teresinha Carvalho Porto 8

UNIDADE III

CAPÍTULO 01 – A reconstrução da solidariedade dos atores sociais a partir do


espaço local – A experiência da Justiça Restaurativa em Porto
Alegre.......................................................................................... 91

CAPÍTULO 02 – Uma breve análise de dados sobre a experiência da 3ª Vara do


Juizado da Infância e Juventude de Porto Alegre ............................ 103

CAPÍTULO 03 – O resgate da comunidade como desafio da Justiça Restaurativa ..... 111

CONSIDERAÇÕES FINAIS ....................................................................................... 129

REFERÊNCIAS ...................................................................................................... 135


INTRODUÇÃO

Este livro propõe um estudo sociojurídico e transdisciplinar sobre o recep-


cionamento da Justiça Restaurativa ao Direito da Criança e do Adolescente en-
quanto proposta de políticas públicas socioeducativas a partir da Teoria da Ação
Comunicativa de Jürgen Habermas e de uma reflexão sobre o poder do discurso
com Michel Foucault. Trata-se de uma investigação sobre a Justiça Restaurativa
como forma alternativa de solução de conflitos que possa prevenir e mitigar os
problemas decorrentes da violência estrutural e institucional, que vitimizam a
adolescência brasileira. Para tanto, transita por considerações essenciais sobre a
Justiça Restaurativa, abordando os principais conceitos e a origem histórica do
tema. Além disso, apresenta a comunicação não violenta e a mediação como seus
procedimentos nos processos restaurativos e inter-relaciona a teoria da ação
comunicativa. Ademais, contextualiza sobre o locus das práticas restaurativas nas
políticas públicas de atendimento da criança e do adolescente no Brasil, tendo
como ponto de partida a retomada histórica da institucionalização da infância. Por
fim, aborda a experiência do uso da justiça restaurativa no Brasil com base nos
estudos de campo realizados na 3ª Vara do Juizado Regional da Infância e da
Juventude de Porto Alegre, considerando-a sob o viés da reconstrução da solida-
riedade a partir do espaço local nos anos de 2005 e 2006.
Ao abordar a Justiça Restaurativa na área do Direito da Criança e do Ado-
lescente, deve-se refletir sobre a adolescência e o papel dos atores sociais na
reconstrução e gestão da rede e do sistema de garantias e atendimento aos di-
reitos da criança e do adolescente no Brasil. Frise-se que todos os interlocutores
envolvidos e ligados pelo conflito também são atores e responsáveis pela re-
construção da solidariedade social e, consequentemente da redução dos danos
ocasionados pela violência estrutural.
10 André Viana Custódio – Marli Marlene Moraes da Costa – Rosane Teresinha Carvalho Porto

A escolha do tema reflete o compromisso e a co-responsabilidade social


com as crianças e adolescentes que, na maioria das vezes, têm a sua condição de
cidadania denegada. Conhecer o adolescente enquanto sujeito em construção é
um dos desafios para avançar no tema que trata da Justiça Restaurativa como um
dos procedimentos de resolução de conflitos. Além disso, registra-se a notória
contribuição dos estudos realizados pelo Grupo de Pesquisa Direito, Cidadania e
Políticas Públicas l, da Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), que forneceu a
base teórica fundamental para o aprofundamento do tema.
Optou-se pelo uso do conceito de ação comunicativa de Habermas para
entender a funcionalidade da Justiça Restaurativa, vislumbrando perceber a distin-
ção das ações sociais predominantes nas políticas públicas voltadas ao atendi-
mento de adolescentes. A Justiça Restaurativa, ao valer-se da comunicação não
violenta e da ação comunicativa, provoca a emancipação dos sujeitos envolvidos
nas práticas restaurativas, e as práticas restaurativas podem oferecer instrumentos
para romper com as práticas históricas impostas sobre a adolescência.
Atualmente, a sociedade brasileira enfrenta um grande desafio, qual seja,
criar um sistema de real eficácia e integração, que, ao acolher as práticas restau-
rativas, seja capaz de garantir às crianças e aos adolescentes o pleno exercício da
cidadania, por meio de políticas públicas que enfatizem a união entre família,
comunidade, Estado e sociedade civil.
A Justiça Restaurativa também pode ser considerada uma política pública
de inclusão social garantidora de cidadania na execução das medidas socioedu-
cativas, por estar em consonância com as diretrizes de políticas públicas versadas
pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 e pela teoria da pro-
teção integral, bases fundantes do Direito da Criança e do Adolescente no Brasil.
A teoria de base do presente trabalho foi a de Habermas, com a teoria da
Ação Comunicativa e Michel Foucault, que propõe em suas obras uma reflexão
sobre o discurso como estratégia do poder dominante, focalizando as institui-
ções, em especial instituições prisionais e judiciárias, que refutam e despersona-
lizam o sujeito. Além desses dois autores, procurou-se estabelecer uma relação
de dialogicidade com outros autores contemporâneos, que trabalham com a área
da infância e da juventude.
UNIDADE I

Capítulo 01
ASPECTOS HISTÓRICOS SOBRE OS DIREITOS DA
CRIANÇA E DO ADOLESCENTE NO BRASIL

As transformações históricas que marcaram o direito e suas relações com a


infância no Brasil são representadas por mudanças profundas em torno da doutrina
do direito do menor e da doutrina da situação irregular, que posteriormente foram
superadas pela teoria da proteção integral. O que ficou evidenciado, nas delimita-
ções construídas historicamente, é que à infância foi negada a condição de su-
jeito de direitos, ou seja, o reconhecimento básico da cidadania. Do mesmo
modo, percebe-se a forte presença de ações não sociais e instrumentais como
estratégia de controle social e/ou subjugada pelo discurso do enfrentamento à
delinquência.
Além disso, o discurso dominante, que se iniciou no colonialismo, perpas-
sando o imperialismo, é pautado no aniquilamento, banimento e exclusão daque-
les considerados diferentes do padrão europeu idealizado. Em outras palavras, a
negação de direitos deu-se no Brasil de maneira discriminatória, seletiva e exclu-
dente, como, por exemplo, o tratamento dado aos indígenas e a violência contra a
população negra explorada pelos artifícios da escravidão até o confinamento
arbitrário de meninos e meninas ao longo de toda a história (VOLPI, 1999, p. 21).
12 André Viana Custódio – Marli Marlene Moraes da Costa – Rosane Teresinha Carvalho Porto

No Brasil, após a independência política, quando José Bonifácio apresentou


um projeto em prol do menor escravo, na Constituinte de 1823, notou-se sobre-
maneira o remoto início de uma preocupação da sociedade com a infância. Porém,
a preocupação assentava-se exclusivamente na preocupação com a exploração e
manutenção da mão de obra, jamais com uma perspectiva de direitos humanos
(VERONESE, 1997, p. 10).
Quando da promulgação da Lei do Ventre Livre, em 1871, surgiu uma mu-
dança de concepção de criança, pois os seus destinos tornaram-se preocupação
do Estado (BALCÃO, 2002, p. 64-65). De qualquer sorte, os ingênuos (filhos de
escravas) e as crianças indígenas também povoaram os internatos, mesmo que de
forma tímida (RIZZINI, RIZZINI, 2004, p. 22).
Nesse cenário de desigualdades sociais, note-se que o processo de insti-
tucionalização de crianças apresentou características de natureza caritativa,
assistencialista e filantrópica. Embora no País tenham existido mobilizações, que
se preocupavam com a criança órfã, o que mais se destacou foram políticas
repressivas com a finalidade de afastar a visibilidade das precárias condições a
que eram submetidas.
O Estado tinha o dever de cuidar da criança “moralmente abandonada”
pela família, sendo os pais ou responsáveis destituídos do poder familiar por
terem uma conduta inadequada no que tange à educação dos filhos (VERONESE;
COSTA, 2006, p. 45-46).
A ideia de menoridade surge associada a um viés altamente repressivo,
pois a intervenção estatal restringia-se a coibir a criminalidade infanto-juvenil.
Logo, com o Código Criminal de 1830, passa a haver diferenciação das penas em
função da faixa etária que se dividia da seguinte forma:

[...] a primeira estabelecia que menores de 14 anos não tinham responsa-


bilidade penal. Porém, caso fosse estabelecido que estes agissem com
discernimento, o Juiz poderia determinar que fossem recolhidos a Casas de
Correção até completarem 17 anos. A segunda se referia a maiores de 14
anos e menores de 17 anos. Estando nessa faixa, o menor julgado poderia
cumprir penas como cúmplice. A terceira impunha o limite mínimo de 21
anos para que pudessem ser impostas penas drásticas como as galés. [...]
é somente vinte anos mais tarde que as primeiras discussões para elaborar
Regulamentos para Casas de Correção surgem. Só no final do século XIX
estas entraram em funcionamento. Até que estes estabelecimentos tives-
Justiça Restaurativa e Políticas Públicas: uma análise a partir da teoria da proteção integral 13

sem sido criados, os menores condenados cumpriam suas penas em pri-


sões comuns. Foi a partir da segunda metade do século XIX que a legisla-
ção começou a refletir a preocupação com a educação das crianças.
(BALCÃO, 2002, p. 62-63)

Por conseguinte, a concepção de menoridade conduzia a infância empo-


brecida à condição de objetos de controle do sistema, pois a doutrina da menori-
dade interessou-se unicamente pelo fato constituído como ato delituoso.
Somente em 1927, com a promulgação do Código de Menores, idealizado
por Mello Mattos, a expressão “menor” seria incorporada ao vocabulário corrente
dos juristas. Nesse sentido,

[...] ao conceito de menor, é composta por crianças de famílias pobres,


que perambulavam livres pela cidade, que são abandonadas e às vezes
resvalam para a delinqüência, sendo vinculadas a instituições como cadeia,
orfanato, asilo etc. Uma outra, associada ao conceito de criança, está liga-
da a instituições como família e escola e não precisa de atenção especial.
(SILVA, 1997, p. 69)

Observe-se após um período de natureza assistencial, inaugurada com a


criação das Rodas dos Expostos para crianças consideradas em estado de aban-
dono em 1750; surge com a aprovação do Código de Menores a definição jurídica
do termo menor, com a posterior tentativa de desativações das casas dos expos-
tos e a criação do Juizado de Menores (SILVA, 1997, p. 35).

[ ...] O modelo dos tribunais para menores, criado em 1899 na cidade de


Boston (Estados Unidos) e depois aplicado em países europeus, conheceu
ampla disseminação pela América Latina. [...] O Juízo de Menores, na pes-
soa de Mello Mattos, estruturou um modelo de atuação que se manteria ao
longo da história da assistência pública no país até meados da década
de 1980, funcionado como um órgão centralizador do atendimento oficial ao
menor no Distrito Federal, fosse ele recolhido nas ruas ou levado pela fa-
mília. O Juízo tinha diversas funções relativas à vigilância, regulamentação
e intervenção direta sobre esta parcela da população, mas é a internação
de menores abandonados e delinqüentes que atraiu a atenção da imprensa
carioca, abrindo espaço para várias matérias em sua defesa, o que, sem
dúvida, contribuiu para a disseminação e aceitação do modelo. [...] Fun-
14 André Viana Custódio – Marli Marlene Moraes da Costa – Rosane Teresinha Carvalho Porto

damentadas pelas idéias de recuperação do chamado menor delinqüente,


tais instituições passam a integrar as políticas de segurança e assistência
dos Estados nacionais. (RIZZINI; RIZZINI, 2004, p. 29-30)

Em 1979, o Brasil adotou a doutrina da situação irregular através do Código de


Menores de 1979, segundo o qual o pressuposto de atuação estatal era a decla-
ração de situação irregular “ou patologia social” (VOLPI, 1999, p. 21). A ideia de
situação irregular é representativa das práticas institucionais da compaixão-
-repressão transplantadas pelos padres jesuítas para o Brasil no século XVI.
No esforço de se tentar diagnosticar as causas da delinquência, do aban-
dono de crianças e justificar a necessidade de intervenção estatal, as famílias e as
crianças foram dominadas pelas práticas discursivas das instituições. O discurso
de institucionalização materializou-se nas legislações elaboradas durante todo o
século XX, a exemplo da criação de instituições como o Serviço de Assistência a
Menores (SAM) e depois a Fundação Nacional ao Bem-Estar do Menor (Funabem)
(RIZZINI; RIZZINI, 2004, p. 32-33).

O Código de Menores, aprovado em 1979, Ano Internacional da Criança,


incorporou os princípios essenciais da fracassada Política Nacional do
Bem-Estar do Menor, de 1964. Já na sua aprovação, representou o último
suspiro dos princípios ideológicos da doutrina da segurança nacional,
induzindo aos mais variados questionamentos em torno de um modelo que
se demonstrou absolutamente ineficaz. (CUSTÓDIO, 2006, p. 80)

Por influência da ditadura, essas instituições empregavam a hierarquia e a


disciplina militar como estratégia de controle disciplinar sobre a infância. Portanto,
a disciplina era utilizada como técnica de controle social. Ademais, os “menores”
eram encaminhados para prestar serviço militar e trabalhar em órgãos públicos
(SILVA, 1997, p. 35). A institucionalização e o controle da administração assis-
tencial-repressiva, pelos Juízes de Menores, os afastavam do real papel na pres-
tação jurisdicional (CUSTÓDIO, 2006, p. 80).
Na década de 1980, inúmeras foram as mobilizações sociais, debates, re-
flexões e apresentação de propostas para o atendimento aos meninos e meninas
de rua, além da organização do Movimento Nacional dos Meninos e Meninas de
Rua, o Movimento Criança Constituinte, as Pastorais da Igreja Católica, organiza-
Justiça Restaurativa e Políticas Públicas: uma análise a partir da teoria da proteção integral 15

ções comunitárias, sindicais e assistenciais que contribuíram para a construção do


Direito da Criança e do Adolescente.
O que se pode chamar de movimento em defesa dos direitos da criança e
do adolescente foi constituído na década de oitenta com perspectivas comuns,
consolidadas a partir dos seguintes elementos: a crítica à doutrina do direito do
menor e do menor em situação irregular; a crítica ao modelo institucional fechado
de atendimento; a centralização autoritária do controle das políticas públicas; a
judicialização de práticas políticas administrativas; a crise da reprodução da desi-
gualdade produzida pela dicotomia menor x criança; o espanto da opinião pública
diante da maior visibilidade das condições de pobreza e desigualdade da popula-
ção e a oportunidade de construção de uma nova base jurídica (CUSTÓDIO, 2006,
p. 81).
De acordo com a Resolução L 44, a Convenção Internacional dos Direitos da
Criança, aprovada pela XLIV Assembleia Geral das Nações Unidas, em novembro
de 1989, resultou aos países signatários o primeiro instrumento jurídico de ga-
rantia aos “direitos da criança”. Emana daí a teoria da proteção integral, em
substituição à doutrina da situação irregular, devendo os demais instrumentos
jurídicos observarem tal normativa sob a égide dos direitos humanos (SALIBA,
2006, p. 15).
Sobre a Convenção, Veronese afirma:

Diversamente da Declaração Universal dos Direitos da Criança, que sugere


princípios de natureza moral, ainda que sem nenhuma obrigação, repre-
sentando basicamente sugestões de que os Estados poderiam utilizar ou
não, a Convenção tem natureza coercitiva e exige de cada Estado-Parte
que a subscreve e ratifica um determinado posicionamento. Como um con-
junto de deveres e obrigações ao que a ela formalmente aderiram, a Con-
venção tem força de lei internacional e, assim, cada Estado não poderá violar
seus preceitos, como também deverá tomar as medidas positivas para
promovê-las. Há que se colocar, ainda, que tal documento possui meca-
nismos de controle que possibilitam a verificação no que tange ao cumpri-
mento de suas disposições e obrigações, sobre cada Estado que a subs-
creve e a ratifica. (2003, p. 434)

Como se observa, o Brasil país signatário do tratado, que o ratificou em 21


de novembro de 1990, tem obrigação com a formulação e execução de políticas
16 André Viana Custódio – Marli Marlene Moraes da Costa – Rosane Teresinha Carvalho Porto

públicas direcionadas às crianças e aos adolescentes. Significa dizer que a teoria


da proteção integral inserida na Constituição da República Federativa de 1988, no
seu artigo 227 e também consolidada no Estatuto da Criança e do Adolescente,
deve ser respeitada e aplicada em sua plenitude (CUSTÓDIO, 2006, p. 127).
Nesse sentido, Chaves questiona:

[...] o que significa “proteção integral”? Quer dizer amparo completo, não
só da criança e do adolescente, sob o ponto de vista material e espiritual,
como também a sua salvaguarda desde o momento da concepção, zelando
pela assistência à saúde e bem-estar da gestante e da família, natural ou
substituta da qual irá fazer parte. Mas também outro sentido do ponto de
vista estritamente legal: é que toda a matéria passará a ficar subordinada
aos dispositivos do seu Estatuto, como de resto se deduz do último dos
seus artigos, o de n. 267. (1997, p. 51)

Portanto, a teoria da proteção integral representa a base de sustentabili-


dade do Direito da Criança e do Adolescente, pois, acima de tudo, reconhece à
infância o status de sujeitos de direitos, o que implica a universalização do con-
ceito de direitos de cidadania na operacionalização de políticas públicas, que
tenham por mote romper com os discursos do assistencialismo e da institucionali-
zação (CUSTÓDIO, 2006, p. 131).
Em outros termos:

Proteção integral não só porque tem como prioridade o interesse de crian-


ças e adolescentes, fornecendo todos os meios, as oportunidades e facili-
dades para o seu desenvolvimento pleno, mas também pelo motivo de o
Estatuto se aplicar a todos os menores de dezoito anos em qualquer situa-
ção. (VERONESE; COSTA, 2006, p. 55)

É preciso registrar que o Direito da Criança e do Adolescente foi constituído


como ramo jurídico autônomo, independentemente da aplicação da legislação
penal. A própria Constituição brasileira estabelece cláusula pétrea e reafirma em
seu artigo 228 a imputabilidade penal antes dos dezoito anos de idade. Contudo,
lamentavelmente, o discurso penalista sobre a infância ainda se faz presente e
dissemina sua linguagem rotuladora, com estereótipos, provocando a reprodução
excludente sobre aqueles que deseja controlar e aniquilar.
Capítulo 02
REFLEXÕES SOBRE A ADOLESCÊNCIA

A adolescência representa o momento de profundas mudanças no desen-


volvimento do ser humano. A dimensão de desenvolvimento social nessa etapa da
vida está vinculada à cultura de cada civilização, representada por situações pe-
culiares e por rituais distintos, que delimitam bem essa passagem na vida de cada
sujeito (VEZZULA, 2004, p. 19), repercutindo na constituição das identidades
sociais, bem como na construção simbólica do reconhecimento dos sujeitos pelo
outro.
A palavra “adolescência”, decompondo-a etimologicamente, origina-se do
latim ad (para a frente) + dolescere (crescer, com dores), refere-se ao período
de maturação, crise ou separação vivida pelo sujeito em uma determinada época
da vida. Com relação a essa transformação, pode-se dizer que essa fase da vida
abrange três níveis de maturação e desenvolvimento do ser humano em formação:
tem-se a puberdade dos 12 aos 14 anos; a adolescência propriamente dita, que
se estende dos 15 aos 17 anos, apresentando como principal característica as
mudanças psicológicas; e, por fim, a adolescência tardia dos 18 aos 21 anos que,
em especial, se caracteriza, pela busca de identidade individual, grupal e social
(ZIMERMAN; OSORIO, 1997, p. 61). Ademais:

De forma semelhante, alguns acontecimentos sociais e culturais parecem


ter propiciado a emergência da adolescência como um período distinto do
desenvolvimento humano – e como campo de estudo [...] com legitimidade
própria. Apesar de as componentes psicológicas e fisiológicas fundamentais
terem existido sempre em cada pessoa jovem, indiferentemente dos períodos
históricos, a cultura – a sociedade adulta – nem sempre reconheceu as ca-
racterísticas específicas da adolescência. (SPRINTHALL, COLLINS, 2003, p. 5)

Em estudo divulgado pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef),
a entrada na adolescência representa mais que um período cronológico, pois
18 André Viana Custódio – Marli Marlene Moraes da Costa – Rosane Teresinha Carvalho Porto

significa profundas mudanças de uma fase da vida de grandes expectativas e


diversas oportunidades, por isso considera-se este momento como “uma janela
de oportunidades”. Dentro desse cenário,

No Brasil, essa janela está aberta para 21.249.557 adolescentes que re-
presentam 12,5% da população brasileira. São garotos e garotas com ida-
de entre 12 e 18 incompletos que vivem um momento especial do seu
desenvolvimento. Um tempo de crises e conflitos próprios, mas também de
um imenso conjunto de possibilidades de mudanças e de questionamentos
fundamentais para o desenvolvimento de toda a sociedade. (SUDBRACK;
ALCÂNTARA, 2007, p. 5-6)

A elaboração do relatório como incitação para a concretude de políticas


públicas aos adolescentes não é uma tarefa fácil, pois a própria adolescência, por
ser uma fase tão peculiar na vida do ser humano, apresenta desafios, exige
disponibilidades e competências específicas já delimitadas pela Constituição
da República Federativa do Brasil de 1988 e o próprio Estatuto (SUDBRACK;
ALCÂNTARA, 2007, p. 5-6).
Nesse sentido, Calligaris diz que um dos grandes desafios é o enfrenta-
mento do que se define por adolescência, pois a adolescência também é idealiza-
da, e, dentro de uma determinada sociedade, sua construção se dá pela cultura,
tornando-a ainda um enigma. Complementa ainda como sendo uma manifestação
de mudanças hormonais, um processo natural (2000, p. 18).
Nesse caminho, a adolescência pode ser compreendida como a época de
experimentações e crítica do desenvolvimento do sujeito por pautar-se pelas
transformações emocionais e pela experimentação de novas relações sociais.
Ademais, o conceito de adolescência sofre influências dos avanços científicos,
das transformações de ordem psicológica, educacional e sociocultural, que se
deram a partir do século XIX, pois, até então, não era reconhecida como período
do desenvolvimento e nem como categoria social.
Para a Organização Mundial da Saúde (OMS), o período da adolescência
está situada entre 10 e 19 anos. Já o Estatuto da Criança e do Adolescente o
reconhece a partir dos 12 aos 18 anos. Embora o Estatuto considere adolescente
toda pessoa com idade entre 12 e 18 anos incompletos, pelas distintas realida-
des sociais que se apresentam no Brasil, também não há de descartar que exis-
tam várias adolescências (SUDBRACK; ALCÂNTARA, 2007). Tal assertiva é oriunda
Justiça Restaurativa e Políticas Públicas: uma análise a partir da teoria da proteção integral 19

da perda de rituais pelo sujeito e da complexidade da sociedade que exige um


amadurecimento mais individualizado e complexo (RANÑA, 2005, p. 42).

Nas sociedades modernas, o adolescer passou então a ser um processo


vivenciado de forma individual, de acordo com os ideais de liberdade e
singularidade reinantes. Assim, todas as dificuldades que envolvem a pas-
sagem da infância para a vida adulta terão de ser vividas pelo jovem soli-
tariamente. Com as transformações físicas e psicológicas, o adolescente e
quem compartilha de sua vida vêem-se mobilizados a criar formas de se
estabelecer na vida adulta. Sem rituais, cada um vai viver esse processo de
forma única. (RANÑA, 2005, p. 44)

Por outro lado, a adolescência jamais foi um período fácil de se compreen-


der (GUERREIRO, 2005, p. 50), pois caracteriza-se por uma tendência de levar o
jovem a querer romper limites e viver superando as regras impostas pela tradição.
Apesar de ser uma noção construída socialmente, não pode ser definida exclusi-
vamente por critérios biológicos, psicológicos, jurídicos ou sociológicos.
A adolescência distingue-se por ser um momento muito especial para a
compreensão dos limites nas relações sociais, mas igualmente de rompê-los. Ao
encontro disso, a seguinte metáfora:

“Os homens não têm asas. Mas nós as construiremos, e então poderemos
voar.” A princípio, Ícaro achou ousado o plano do pai, genial arquiteto.
Mas depois, ao seu lado, começou a procurar um meio de construir as asas
que os salvariam. O primeiro passo foi colecionar penas de aves e juntá-las
segundo os tamanhos. Em seguida, amarraram-nas com fios de linho, e
sob elas colocaram cera, para que ficassem coladas umas nas outras. Fi-
nalmente, a obra está pronta. Dois enormes pares de asas brancas espe-
ram Dédalo, o pai, e Ícaro, o filho, para levá-los, em longa viagem, pelos
céus da Grécia. Com uma tira de couro, o arquiteto amarra o belo engenho
ao corpo. Ícaro segue o exemplo. E ambos saltam para o infinito. Os pri-
meiros momentos de vôo são penosos. Os corpos não encontram o equilí-
brio exato, e tremem com o vento. Preocupado, o pai recomenda carinho-
samente ao filho que voe sempre numa altitude média: nem baixo demais
– para não mergulhar as asas no mar –, nem alto demais – para não quei-
mar as frágeis penas no calor do sol. Dédalo vai na frente, mostrando o
caminho ao filho. O vento favorável ajuda-os na difícil empresa. Mas Ícaro,
deslumbrado com a beleza do firmamento e com a música dos pássaros,
deixa-se chegar próximo demais do sol. Os raios ardentes amolecem a cera
20 André Viana Custódio – Marli Marlene Moraes da Costa – Rosane Teresinha Carvalho Porto

que ligava umas penas às outras. As asas começam a se desfazer. E o cor-


po de Ícaro mergulha no mar. Quando Dédalo olha para trás, não encontra
o filho. Na superfície mansa das águas, duas asas brancas flutuam perdi-
das, como perdido o sonho de viver em liberdade. (SIMÕES; ALVARENGA,
1976, p. 497)

Para conseguir responder às questões concernentes ao limites, observe-se


a reflexão apresentada por Losacco, que utiliza o mito de Ícaro para compreender
o tema das medidas socioeducativas. Segundo a simbologia, Dédalo significa o
pai, o educador, ou melhor, o detentor do saber, advindo do poder e dos conhe-
cimentos durante a vida. Mesmo com a vasta bagagem de conhecimentos e do
afeto paternal, sozinho, não conseguiu evitar a morte de seu único filho, que se
chamava Ícaro (2004, p. 3).
O jovem Ícaro representa a juventude, demarcada pela impulsividade, pela
inexperiência, pela necessidade de autoafirmação e pelo prazer que se sobrepõe
às regras, permitindo-se colocar a própria vida em risco. Ressalte-se, ainda, que
as asas para o seu deslocamento é o símbolo da libertação; porém, elas não são
apenas colocadas, há um preço no decorrer do processo de socialização.
No entanto, o comportamento de Ícaro, símbolo da hybris, significa uma
violência, descomedimento, uma ultrapassagem do métron, ou seja, da medida,
pois, apesar de toda a informação paterna de Dédalo, para que guardasse um
meio-termo, “voa entre ambos”, na busca do centro entre as ondas do mar e os
raios do sol o jovem insensato ultrapassou o métron, “voando alto demais”
(LOSACCO, 2004, p. 4).
Mas a ruptura dos limites não significa necessariamente algo negativo ou
uma representação de ato violento. A superação de limites faz parte do próprio
processo de desenvolvimento civilizatório. Por outro lado, situações graves, tais
como a prática do ato infracional, podem simplesmente ser sintoma de que algo
anda mal e propicia uma intervenção capaz de promover a atribuição de sentido
(ROSA, 2007, p. 3). Por isso, do ato infracional pode decorrer uma medida socioe-
ducativa que
[...] não tem, assim, segundo o entendimento assentado na Convenção,
propriedade tutelar ou protetora. A doutrina jurídica segundo à Convenção,
que explicita e se resume em uma fórmula geral, em um dizer em duas pa-
lavras (proteção integral), não consiste, ao contrário do que apregoava o
idealismo menorista, em negar a possibilidade da responsabilização do
Justiça Restaurativa e Políticas Públicas: uma análise a partir da teoria da proteção integral 21

autor de infração à lei penal, mas no instituir, como pacto entre as Nações,
a obrigatoriedade da regulamentação da possibilidade de poder resistir à
pretensão acusatória de que poderia resultar a aplicação de uma medida
ou de resistir à injustiça da medida aplicada. (KONZEN, 2007, p. 26-27)

Portanto, o que deve ser foco das preocupações em relação ao tema é qual
o sentido socioeducativo que está atrelado ao seu cumprimento e como superar
os caracteres negativos do estigma e da ausência de políticas públicas de prote-
ção, que envolvam a família, a comunidade e o Estado, pois “o importante é que
o adolescente envolvido em atos infracionais deve ser considerado como sujeito
em desenvolvimento e com autonomia, munido de garantias infracionais e pro-
cessuais. Caso contrário, perdura a concepção tutelar” (ROSA, 2007, p. 7). Isso
porque,

A todo momento, o adolescente é discriminado, contrariando o Art. 5º do


Estatuto da Criança e do Adolescente, pois desde o primeiro momento na
delegacia ele é batizado com o concludente e acusatório nome de adoles-
cente infrator, ainda que a lei não utilize nunca este nome, somente “ato
infracional praticado ou ato infracional atribuído” e até “adolescente a
quem se atribui autoria de ato infracional”. Não há consciência de que é o
sistema judicial que lhe atribui o ato infracional. Eles são adolescentes,
somente essa é sua identidade, a de infrator lhe é dada erroneamente.
(VEZZULA, 2004, p. 56)

Nesse sentido é possível contextualizar o problema do ato infracional para


rumar ao desvelamento do discurso dominante que cerca essa questão, bem
como buscar na construção da definição de políticas públicas socioeducativas
baseadas e justificadas na restauração, nesse caso, via jurisdição, moral e social
dos adolescentes, justamente no momento que se formam seus valores. Logo, a
Justiça Restaurativa é uma proposta de reconstrução das relações que são essen-
cialmente humanas.
Capítulo 03
ATO INFRACIONAL, MEDIDAS SOCIOEDUCATIVAS
E EXCLUSÃO SOCIAL

A experiência da prática de um ato infracional pode ser radicalmente


transformadora na trajetória da adolescência. Surgem novos cenários, desde a
possibilidade de responsabilização pelo ato cometido até a imposição de signos
estigmatizantes que podem marcar o sujeito por toda a sua vida.
A imposição de formas de controle e disciplinamento sobre a adolescência
pode reduzir a historicidade da vida ao momento da prática da infração, descon-
siderando a sua alteridade das relações e levando o adolescente à condição de
assujeitamento, alienação e coisificação.
A proposta apresentada pelo Direito da Criança e do Adolescente é voltada
à minimização das consequências políticas, jurídicas e sociais decorrentes do ato
infracional, daí a opção pela construção de uma responsabilização que seja social
e educativa.
Por isso, o Estatuto da Criança e do Adolescente considera como ato infra-
cional os crimes e infrações cometidos por pessoas com idades até 18 anos e
propõe a conjugação de medidas de proteção e socioeducativas como alternativa
ao fato, previstas respectivamente nos artigos 101 e 112 do Estatuto. Além disso,
possibilita, como forma de garantia da proteção integral de crianças e adoles-
centes, a aplicação de medidas aos pais ou responsáveis, sempre que se observar
ameaça ou violação dos direitos, previstas no artigo 129 do Estatuto.
O Direito da Criança e do Adolescente estabeleceu garantias para a apura-
ção do ato infracional e a aplicação das medidas socioeducativas. Nos casos de
apreensão do adolescente pela prática de ato infracional, o procedimento deverá
ser instaurado imediatamente, sempre acompanhado de seus responsáveis e
constituído de advogado pelo direito ao contraditório e à ampla defesa. Neste
aspecto é preciso registrar a precariedade do sistema de proteção, pois ainda
muitos municípios não dispõem de delegacias especializadas para o atendimento
24 André Viana Custódio – Marli Marlene Moraes da Costa – Rosane Teresinha Carvalho Porto

do adolescente e, quando existem, mantêm estrutura precária. Além disso, ainda


sobrevive nas práticas institucionais uma funcionalidade instrumental herdada da
doutrina do menor e da situação irregular, que desconsidera objetivamente a
linguagem inovadora e de amor e até o próprio reconhecimento do adolescente
enquanto sujeito de direitos. Ainda é frequente nas práticas institucionais a per-
manência dos vícios do passado, da visão punitiva, da estigmatização, da rotula-
ção e do controle. Para Rosa,

Por detrás de toda a democracia de fachada, esconde-se, na maioria das


vezes, uma postura que pode ser designada de Complexo de Big Brother,
ou seja, o adolescente precisa sofrer até aceitar a amar o Grande Irmão
que lhe oprime. Orwell, em sua obra de ficção, relata as agruras do sujeito
que é aniquilado pelo Grande Irmão, que tudo vigia, controla, indica, con-
diciona (uma liberdade assistida mal compreendida pode assumir esta
postura). (2007, p. 228)

Em outros termos, a execução de medidas socioeducativas mal aplicadas,


assentadas na antiga visão repressora, fulmina toda a capacidade emancipatória
do sistema de proteção integral. Por exemplo, a redução dos programas de liber-
dade assistida a medidas de liberdade vigiada como ainda se faz na prática pode
resultar no aniquilamento da adolescência, mascarando a reprodução das práticas
autoritárias do Estado brasileiro. Os programas de medidas socioeducativas preci-
sam superar as velhas concepções de controle e vigilância, abandonando o papel
de “instituições de sequestro”, porque retiram a condição básica de cidadania
(FOUCAULT, 1996).
Por sua vez, o estigma de “infrator” aniquila a imagem do adolescente de
tal maneira que a aplicação da medida socioeducativa sem objetivos efetivamente
educativos não possibilita o recomeçar, isto é, o ir ao encontro da sua autonomia
com responsabilidade.

Assim, perdido seu objetivo, as medidas socioeducativas transformam-se


em trabalhos de serviço à comunidade, que podem cumprir com o objetivo
de castigo reparador da culpa, ou centro de terapia ocupacional, mas sem
produzir no adolescente uma verdadeira tomada de consciência de sua si-
tuação, de sua identidade. Esta desconsideração faz com que o adoles-
cente passe a viver as medidas socioeducativas como sanções que nada
lhe acrescentam. Esta situação se agrava, e muito, nos casos de interna-
ção. (VEZZULA, 2004, p. 59-60)
Justiça Restaurativa e Políticas Públicas: uma análise a partir da teoria da proteção integral 25

Nesse cenário de desigualdades sociais, a pobreza, a exclusão social, a


violência estrutural, a violência intrafamiliar tornam-se fatores potencializadores
do ato infracional, e contribuem para a reprodução da violência sobre a juven-
tude. Neste contexto, a condição de pobreza, considerada como resultado de
um padrão de organização social, fruto da produção e da acumulação de capital
de caráter estruturalmente dependente e excludente, que acentua a concentra-
ção da riqueza e da renda nas classes dominantes, assume um papel perverso.
A expansão da condição de pobreza é um fenômeno mundial, que se agrava
com a globalização, justamente por favorecer apenas os detentores do grande
capital. Cerca de 20% da população mundial – 1,2 bilhões de pessoas – vive
com menos de um dólar por dia, acentuando a condição de exclusão social
(CARDOSO, 2001).
Sposati explica que a ideia de exclusão social se confronta diretamente
com a concepção de universalidade e com os direitos sociais e da cidadania. Dito
de outra maneira, “a exclusão é a negação da cidadania” (SPOSATI, 2007, p. 3).
Além disso, a exclusão, muito além de status da pobreza, assim o é devido à ro-
tulagem ou à própria “teoria do etiquetamento” (COSTA, 2006), já que é consi-
derada “uma forma de discriminação negativa que obedece a regras estritas de
construção” (BELFIORE, 2004, p. 42).
Nessa seara, alguns autores, como Dupas (2006), consideram a exclusão
social como fator multidimensional, isto é, vista por vários ângulos e gerada por
inúmeros fatores, porque inclui não só a falta de acesso a bens e serviços, mas
também à segurança, à justiça, à cidadania, relacionando tudo isso às desigual-
dades econômicas, políticas, culturais e étnicas. Comenta, também, o referido
autor, que ela pode ser gerada dentro do mercado de trabalho, por meio de em-
pregos com remuneração insuficiente, sem proteção dos direitos trabalhistas, que
não é capaz de garantir um padrão de vida mínimo, como o acesso aos direitos
humanos e fundamentais.
Zaluar (2006) acrescenta que, para se utilizar o conceito de exclusão,
deve-se enfrentar e diferenciar o problema teórico e o problema prático-político,
pois os mesmos já foram confundidos inúmeras vezes, o que acabou por vulgari-
zar o termo. Segundo a autora, o termo exclusão vem da Antropologia Social, e
dos estudos simbólicos desenvolvidos pelos franceses, que acabaram formando
uma cadeia de significantes, como: inclusão/exclusão; sim/não dos computadores
ou da inteligência artificial.
26 André Viana Custódio – Marli Marlene Moraes da Costa – Rosane Teresinha Carvalho Porto

A exclusão social pode ser vista como a fase extrema do processo de


“marginalização” do ser humano, em que ocorre a ruptura do sujeito pelo mercado
de trabalho (BELFIORE, 2004, p. 42).
Existem evidências que tanto a pobreza como a exclusão são condições
extremas em que vive a maioria da população. É certo que muitos pobres nunca
tiveram oportunidades e assistência necessária para sair de suas condições.
Agrega-se a isso o fato de serem vítimas de discriminação e preconceito, o que
agrava ainda mais a sua situação. É bem verdade que devido às suas privações
acabam desenvolvendo atitudes e comportamentos que dificultam o aproveita-
mento de recursos e oportunidades, quando a eles são oferecidos
(SCHWARTZMAN, 2004, p. 106). Como menciona Veronese,

A exclusão da infância e da adolescência do processo social é uma das


formas mais perversas de marginalização, pois exclui-se, a priori, aquele
que não teve sequer oportunidade e condições de escolher seu próprio
caminho, de identificar-se com um determinado projeto de vida, encon-
trando-se então forçado a buscar o seu espaço pelas ruas das cidades.
(1997, p. 179)

Nesse sentido, a pobreza, a exclusão social e as desigualdades sociais são


exemplos de desconsideração social com o outro. Sem dúvida alguma, urge a
ideia de inclusão do outro como dever moral às pessoas. Assim sendo, pelo prin-
cípio da universalização, todos precisam ser incluídos na sociedade, por isso, a
universalização não é uma máxima acabada e que deva recepcionar os “iguais”;
também é preciso respeitar e acolher os diferentes (HELFER, 2006, p. 1.630). Do
mesmo modo, entende-se que, com a universalidade, prevalece a vontade geral,
de maneira que supere o contexto particular, e as diferenças possam ser resolvi-
das pela interação e pelo acordo (HABERMAS, 2002, p. 7-8).
Capítulo 04
O DISCURSO DA DELINQUÊNCIA JUVENIL E O CARÁTER
INSTRUMENTAL DO DISCURSO DOMINANTE

Entre as várias construções conceituais sobre o termo delinquência juvenil


está a de Winicott. A partir do julgamento de cinco meninos, com idades entre
oito e doze anos, na Inglaterra, a expressão delinquência juvenil foi empregada
pela primeira vez e, até os dias atuais, seu emprego é de maneira indiscriminada,
de acordo com as influências da opinião da mídia ou de quem queira mobilizar
negativamente a sociedade.
Ademais a utilização dessa terminologia tem ocasionado diversas críticas
pela variação de sentidos, que podem significar comportamentos antissociais
praticados por adolescentes, de caráter exclusivamente jurídico, ou, ainda, compor-
tamentos irregulares, anormais, indesejáveis, como aqueles que dizem respeito a
jovens que necessitam de proteção (SOARES, 2003, p. 95-96).
Dentro de tal conjuntura, a expressão delinquente é mais relacionada às
causas de natureza jurídicas, isto é, quando um adolescente pratica ato infracio-
nal. Ademais, conforme Rassial (1999), o estudo da origem de delinquere signifi-
ca “aquele que está fora de seu lugar”. De acordo com Muller,

A delinqüência provoca um colapso do tecido social, mas freqüentemente


ela já é uma conseqüência de tal colapso. No momento em que um indiví-
duo, em especial o jovem, deixa de encontrar um lugar onde lançar raízes
na sociedade, quando não acha meios de estruturar sua personalidade ou
dar sentido à sua existência, acontece um colapso entre a sociedade e
aquele indivíduo. Se a carreira escolar for também [mal sucedida], há
grande risco de que o desemprego some-se aos outros problemas, dando-
-se assim uma eficaz negação da cidadania. O indivíduo se vê preso nas
engrenagens e passa por uma crise de identidade. Uma conseqüência
específica da privação da cidadania é o comportamento anti-social. (2006,
p. 66)
28 André Viana Custódio – Marli Marlene Moraes da Costa – Rosane Teresinha Carvalho Porto

Para Trindade (1996, p. 67), não é possível partir de um conceito unitário,


universal, válido e aceito que aborde satisfatoriamente a delinquência juvenil,
pois são várias as acepções que se dá a esse “fenômeno de âmbito planetário”.
Segundo o autor, está-se diante de um conceito proteico. A esse respeito, assevera
que muitos autores reconhecem a limitação de tal conceito e que não pode ser
restringido aos comportamentos tipificados nas leis penais do país, por isso a
concepção mais ampla avança à medida que a dinâmica social exige. Em linhas
gerais, a delinquência juvenil não é um conceito psicopatológico, mas jurídico.
Alguns autores, destacando-se dentre eles Costa (1990), consideram que
os delinquentes juvenis são fracassados escolares. Quanto a isso, Guimarães
(2003) esclarece que o fracasso escolar poderá ser compreendido como causa da
delinquência se o ambiente escolar foi o que impulsionou tal ato, ou ainda se
ambos, delinquência e fracasso, são manifestações de um comportamento desviante
anterior.
Nesse contexto, Costa (2006, p. 10) explica a relação da escola e da de-
linquência com algumas teorias. Para a autora, a teoria da tensão e frustração de
Cloward refere-se ao papel da escola como uma instituição de classe média, em
que suas crianças e adolescentes possuem menos oportunidades de competição.
Essas crianças e adolescentes teriam disposição para delinquir devido à ausência
de autoestima. Já a teoria do etiquetado de Bernfeld diz respeito a rótulo negativo
dado ao infante. Cabe ressaltar também a teoria do desenvolvimento social, que
reconhece a importância da escola como instituição socializadora da criança e do
adolescente.
Por conta disso, para que se possa assegurar o desenvolvimento saudável
do ser humano em formação, vale também observar a teoria de Hawkins, que trata
da relevância de se desenvolver técnicas de intervenções específicas pelas políti-
cas públicas, junto à instituição (família, escola e a comunidade) que está afetada
(COSTA, 2006, p. 10).
Já para Trindade, “a conduta delinqüencial é produto de um controle social
ineficiente, de socialização frustada por pais desinteressados, fracasso escolar,
falta de perspectivas profissionais e um sistema legal duvidoso” (1996, p. 103).
Para Calligaris, a delinquência tem relação com a adolescência, muito embora
poucos sejam os adolescentes que se tornam delinquentes, pois, pelo fato de o
adolescente não “ser reconhecido dentro do pacto social, tentará ser reconhecido
fora ou contra ele”, mesmo que como um pacto alternativo do grupo (2000,
p. 41).
Justiça Restaurativa e Políticas Públicas: uma análise a partir da teoria da proteção integral 29

Além de tal observação, as ações não violentas (CLARET, 1996, p. 20)


também precisam estar norteadas por ações de não cooperação. Essa análise se
assenta da seguinte maneira:

[...] numa sociedade, aquilo que faz a força das injustiças, da desordem
estabelecida, é a cumplicidade, isto é, a cooperação voluntária ou passiva
da maioria dos cidadãos com as ideologias, instituições, estruturas, siste-
mas, regimes e leis que criam e mantêm essas injustiças. A resistência
não-violenta visa romper essa cumplicidade por meio da organização de
acções coletivas de não-cooperação. (MULLER, 1995, p. 91)

Em outros termos, é preciso não cooperar com a violência e com isso agir
de forma não violenta. Além disso, os atos comunicativos se concretizam quando
o esclarecimento dos homens se dá pela instauração da paz e da resolução de
conflitos. Logo, “a estratégia da acção não-violenta quer suplementar mecanis-
mos de regulação de conflitos susceptíveis de os neutralizar e de os fazer evoluir
para uma solução pacífica” (MULLER, 1995, p. 87).
Ao se mencionar a necessidade de resolução de conflitos e de enfrenta-
mento da delinquência juvenil com ações sociais já referidas por Habermas, loca-
liza-se no seu centro a figura de um adolescente que, pelos atos agressivos ou
violentos, quer ser reconhecido e construir uma identidade no cenário social
(FEFFERMANN, 2006, p. 184). Então, para que se possa concretizar o princípio
da não violência com relação à adolescência, deve-se buscar o fortalecimento das
relações sociais, seja na escola, seja na família, e principalmente na comunidade.
A trajetória do adolescente que esbarra na legislação quando do cometi-
mento do ato infracional está um tanto distante do paradigma emancipatório
(RAMIDOFF, 2006, p. 67). Entretanto, é preciso ter cuidado com as frequentes
justificativas da produção social de atos infracionais como fruto da delinquência
pela estrutura psíquica, pela hereditariedade ou genética e pela família em condi-
ção de vulnerabilidade social, pois pode se estar querendo ocultar as reais ori-
gens decorrentes de fatores históricos, sociais e políticos. Se assim for procedi-
do, está se legitimando a desigualdade social e a violência (FEFFERMAN, 2006,
p. 185). Para se refletir sobre o discurso de reprodução social que paira sobre os
atos violentos e infracionais, eis a seguinte reflexão:

[...] até que ponto se pode responsabilizar um ser humano por sua cons-
tituição genética, seu desenvolvimento cerebral, sua infância traumática ou
30 André Viana Custódio – Marli Marlene Moraes da Costa – Rosane Teresinha Carvalho Porto

seu ambiente social com poucas oportunidades? Não teríamos de pensar


assim também em relação à tendência à violência resultante de tais fato-
res? [...] a responsabilidade sobre os próprios atos pode ser totalmente
imputada a uma pessoa? Faz sentido conjecturar que um criminoso pode-
ria ter optado contra a violência se de fato quisesse ou se tivesse tido
oportunidades diferentes? A suposição de que ele seria capaz de tal es-
colha, apesar de todos os condicionamentos psicobiológicos e sociais,
causa grande polêmica entre psicanalistas, psicólogos, médicos, crimina-
listas e filósofos. (STRÜBER; LÜCK; ROTH, 2006, p. 45)

Contudo, o que importa de imediato para compreender a complexidade que


cerca essa seara que se desencadeia além do direito, é associar-se às áreas afins
para se propor um caminho de trajetória não delitiva. Ademais mesmo que o
adolescente incorra em erro, esse deve ter assegurada a sua condição de pessoa
em desenvolvimento, logo, também sujeito de direitos.
Para Foucault (1996), as instituições são instituições de sequestro, pois
retiram os indivíduos da família e do seu local de convívio e os internam durante
um determinado tempo, para moldar suas condutas, utilizando a disciplina para
docilizar seus corpos, de maneira que possam retornar à sociedade e se tornar
produtivos. A disciplina é um instrumento de dominação e controle destinado a
suprimir e controlar os comportamentos antagônicos.
Neste contexto, o desafio que se coloca para as medidas socioeducativas é
romper com a prática do sequestro, oferecendo condições de emancipação humana.

Os programas de execução de medidas socioeducativas deveriam ter pro-


postas de atuações claras, registradas, no sentido garantista e, se houver
demanda, da autonomia. Mas acabam funcionando conforme a compreen-
são dos dirigentes ou dos profissionais envolvidos na sua execução, na
mais ampla discricionariedade, intolerável democraticamente. (ROSA, 2007,
p. 229-230)

Por sua vez, o adolescente, quando confrontado com o sistema socioedu-


cativo, continua a ser rotulado, estigmatizado, etiquetado e despersonalizado,
sendo visto como coisa, como descartável, ou seja, recebe atendimento absolu-
tamente dissociado da previsão normativa sobre o tema, reproduzindo-se assim
novas formas de violência institucional, tendo em vista que as medidas de inter-
nação são interpretadas como novas formas de prisão.
Justiça Restaurativa e Políticas Públicas: uma análise a partir da teoria da proteção integral 31

A prisão, essa região mais sombria do aparelho de justiça, é o local onde o


poder de punir, que não ousa mais se exercer com o rosto descoberto,
organiza silenciosamente um campo de objetividade em que o castigo po-
derá funcionar em plena luz como terapêutica e a sentença se inscrever
entre os discursos do saber. Compreende-se que a justiça tenha adotado
tão facilmente uma prisão que não fora entretanto filha de seus pensa-
mentos. Ela lhe era agradecida por isso. (FOUCAULT, 2004, p. 214)

Segundo Brancher (2006a), dentro da instituição o adolescente percorre o


trajeto da ressignificação, que apresenta as seguintes fases: a negação, a rebel-
dia, a reinstalação, a depressão e a conexão. Na negação, o adolescente, tão logo
é recolhido na instituição, tende a minimizar ou a negar a realidade, desconside-
rando o ato infracional praticado e também não reconhecendo fato de estar inter-
nado. Na rebeldia, ele tenta fugir da instituição; é agressivo com os outros e con-
tra si próprio. Na reinstalação, há a busca pela associação em grupos, com o pro-
pósito de resgatar as regras da rua no ambiente interno. A depressão se dá
quando o adolescente percebe que está internado na instituição devido a uma
sentença condenatória; e a conexão se dá num momento de introspecção, em que
ele admite a realidade do fato e suas consequências sem evasivas ou negações.
Se o recurso à institucionalização for utilizado, deve, no mínimo, ter um
plano pedagógico que considere os aspectos acima descritos. Caso contrário,
continuará contribuindo para a coisificação do sujeito.

A penalidade de detenção fabricaria – daí, sem dúvida, sua longevidade –


uma ilegalidade fechada, separada e útil. O circuito da delinqüência não
seria o subproduto de uma prisão que, ao punir, não conseguisse corrigir;
seria o efeito direto de uma penalidade que, para gerir as práticas ilegais,
investiria algumas delas num mecanismo de “punição-reprodução” de que
o encarceramento seria uma das peças principais. Mas por que e como te-
ria sido a prisão chamada a funcionar na fabricação de uma delinqüência
que seria de seu dever combater? (FOUCAULT, 2004, p. 231)

O Estado utiliza-se do discurso como estratégia de dominação e controle


social, quando diz que vai “ressocializar” o adolescente dentro de uma instituição
de privação de liberdade, sendo que não existem efetivas políticas públicas que
venham a justificar o seu discurso (FOUCAULT, 1996, p. 49). Salienta-se que o
Estado ou as suas instituições violentam os direitos fundamentais mais básicos
32 André Viana Custódio – Marli Marlene Moraes da Costa – Rosane Teresinha Carvalho Porto

quando não garantem políticas públicas de atendimento integral que estejam


voltadas à superação das condições de exclusão social, tais como o enfrenta-
mento à pobreza e à violação dos direitos humanos. Como se nota, as instituições
responsáveis pelos programas de execução de medidas socioeducativas também
são “instituições de sequestro”, pois adotam como estratégia de controle disfar-
çada a educação ou a reeducação do adolescente.
A institucionalização do adolescente tem força negativa e carga violenta de
estigma, pois um ambiente que cerceia a liberdade do indivíduo sem uma pro-
posta pedagógica e planejamento de inserção após o término do cumprimento da
medida não consegue assegurar a superação das condições de exclusão social.
Dados do Estado do Rio Grande do Sul são exemplificativos da precariedade
dos programas de medidas socioeducativas em regime de internação, pois, em
média, cada adolescente internado custa para o Estado quatro mil mensais, po-
dendo chegar a sete mil. Note-se que o gasto para a manutenção dos programas
de medida socioeducativa em regime de privação de liberdade é oneroso para os
Estados. Ademais, outros problemas indicados nas 190 instituições do Brasil
demonstram o quanto está distante, ainda, da proposta de o Estatuto integrar o
adolescente que cumpriu a medida. Entre os principais problemas constatou-se
que: 71% dos locais não têm espaço adequado para a prática de esportes ou de
convívio; há falta de higiene; há escassez de água e luz natural; há infiltrações
nas edificações; faltam dormitórios adequados, existindo casos de adolescentes
que dormem no chão molhado e sujo; ainda existem alas de isolamento como
método de “castigo necessário”; há precariedade na prestação de serviços com
educação. O ensino fundamental é oferecido aos internos em 99% das unidades,
já o ensino médio fora oferecido em apenas 37% dos estabelecimentos (RIO
GRANDE DO SUL, 2003, p. 39-40).
Nesse contexto, é perfeitamente visível o descaso com os infantes e a ino-
perância do Estado, da família e da comunidade com a responsabilidade em rela-
ção ao cumprimento dos direitos assegurados na legislação brasileira. Discute-se
frequentemente a responsabilização do adolescente pela prática do ato infracio-
nal, mas se esquece de responsabilizar especialmente o Estado pela omissão de
suas responsabilidades em garantir políticas públicas de atendimento conforme
as determinações legais.
Além disso, há a fragilidade da cidadania nos dois extremos, seja do ado-
lescente que não a tem reconhecida, podendo ser denominada “cidadania dene-
gada”, seja das demais pessoas na sociedade, que não participam democratica-
Justiça Restaurativa e Políticas Públicas: uma análise a partir da teoria da proteção integral 33

mente das decisões que são de interesse coletivo, isto é, não discutem as políti-
cas públicas que priorizam as suas crianças e adolescentes.
Mesmo que se possa acreditar na proposta de democracia participativa,
apresentada por Habermas, que conclama a necessidade de os atores sociais
debaterem sobre suas prioridades sociais na esfera pública, de modo que a cida-
dania não se restrinja a um mero ato de votar, faz-se necessário, antes de coadu-
nar essa visão emancipatória, baseada na razão comunicativa, trazer também à
tona o pensamento de Michel Foucault sobre o poder que se produz com os dis-
cursos, muito embora tais construções sejam distintas da concepção dada por
Habermas.
Portanto, para Foucault, nos enunciados dos discursos, sejam eles falados
ou escritos, está no seu interior o poder, que se modifica de forma global. Além
disso, o poder não se dá exclusivamente pela repressão, pois, se assim o fosse,
tornaria tal noção inadequada, visto que a repressão não dá conta do que existe
de produtor no poder.
O que faz com que o poder se mantenha e que seja aceito é simplesmente
que ele não pesa só como uma força que diz não, mas que de fato ele
permeia, produz coisas, induz ao prazer, forma saber, produz discurso.
Deve-se considerá-lo como uma rede produtiva que atravessa todo o corpo
social muito mais do que uma instância negativa que tem por função
reprimir. (FOUCAULT, 2001, p. 8)

Assim sendo, pode-se considerar que o discurso da modernidade se


assenta em algumas invenções, como os conceitos de sujeito, de infância e de
adolescência, na tentativa de estabelecer liames e mecanismos de controle sobre
o corpo social. Ademais, oportuna os seguintes questionamentos postos:
[...] o poder está implicado no movimento e constituição dos sujeitos e das
subjetividades – que permanecem ou que se transformam. Mas o que é o
poder? Quais são os seus modos de legitimação? Que homens ele produz?
Como as instituições e os códigos sociais conseguem manter e reproduzir
a obediência? Como possibilitar a produção da autonomia e da emancipa-
ção? (BAQUERO; KEIL, 2007, p. 195)

Ademais, a luta de Foucault assenta-se nos jogos de poder e jogos de


relação com o eu, ou seja, a subjetivação, que representam lutas de possível
modificação no espaço. Porém, a inversão do poder produz “assujeitados” docili-
34 André Viana Custódio – Marli Marlene Moraes da Costa – Rosane Teresinha Carvalho Porto

zados de corpos dóceis e controlados, e que se mantêm porque permitem ser


domesticados. Logo, o indivíduo precisa compreender que o poder o constitui de
maneira periférica; que não há nenhuma possibilidade de exercício de poder sem
que se constituam discursos de verdade universalizada, e, principalmente que ele
permita-se obedecer, deixando-se dominar (BAQUERO; KEIL, 2007, p. 208-209).
Embora Habermas afirme que existam dissimulações e distorções na lin-
guagem que o poder utiliza nas relações entre as pessoas e a sociedade, ele
considera que o poder é limitado. Nesse sentido, não concorda completamente
com a visão de Foucault, pois, se assim o fosse, então tudo estaria acabado.
Portanto, por considerar a modernidade um projeto inacabado, acredita que
exista, em meio a tanta coisa negativa, uma razão que possibilite aos homens
discernimento e entendimento para a construção de uma sociedade melhor
(SIEBENEICHLER, 1989, p. 21-22). Logo,

[...] ele procura apoiar seu pensamento esclarecedor numa teoria da racio-
nalidade que abandona o purismo da razão pura, amparando-se numa ra-
zão comunicativa, situada historicamente, na praxis social, que é o lugar
onde a razão pode ser mediada concretamente como seu “outro”. O es-
clarecimento passa a ser visto como um processo de argumentação, que
tende reiteradamente à tarefa de mediação entre razão e não-razão, entre
razão e a esfera do poder, da dominação. (SIEBENEICHLER, 1989, p. 22)

Enquanto os discursos sobre as políticas públicas de atendimento voltam-se


na prática para o cunho menorista e assistencialista, denegando a cidadania das
crianças e dos adolescentes, ficará evidente que o poder empregado é eminen-
temente para o controle social. Portanto, as práticas assistencialistas e excluden-
tes precisam ser desveladas e, de vez, banidas. Do mesmo modo, pode-se dizer
que essa estratégia de discurso dissimulado caracteriza a ação não social e ins-
trumental, quando os mecanismos e políticas são direcionados para o interesse
de uma minoria, e não da coletividade.

[...] Observa-se que os próprios índices de “criminalidade violenta” de-


corrente da conduta dos jovens sequer alcançam patamares superiores a
10% (dez por cento) da violência urbana ou mesmo da criminalidade con-
siderada convencional. Os atos infracionais – ao que se tem denominado
de ação conflitante com a lei, precisamente, para não estigmatizar o ado-
lescente – praticados com violência contra a pessoa, não alcançam o índice
Justiça Restaurativa e Políticas Públicas: uma análise a partir da teoria da proteção integral 35

de 1% (um por cento), sendo certo que o índice percentual dos atos infra-
cionais assemelhados ao tipo penal visto no art. 121, do Código Penal –
homicídio – é de 0,16% daqueles referidos 1% (um por cento). Isto é,
inexiste, pois, “criminalidade juvenil”, e, muito menos, “criminalidade ju-
venil violenta”, que justifiquem a adoção de medidas legais recrudesce-
doras da repressão e punição nos moldes do Direito Penal para jovens
autores de ações conflitantes com a lei, as quais, na verdade, em sua
grande maioria, circunscrevem-se a subtrações de reduzidos valores e
bens, quando não, a atitudes – dimensão comportamental – próprias à
fase de desenvolvimento da personalidade. Até porque, não é através da
repressão-punição exercida pelo Direito Penal que se resolverá o problema
da violência social. (RAMIDOFF, 2006, p. 190-191)

No sistema de justiça encontra-se um discurso que precisa ser desvelado,


para que a ação não social instrumental existente em alguns procedimentos não
prevaleça e dê lugar a uma nova possibilidade de percepção de se resolver con-
flitos, sem diminuir o indivíduo a res, como se a sua condição de sujeito de di-
reitos e cidadão se extinguisse com o ato infracional.
Capítulo 05
A VIOLÊNCIA ESTRUTURAL

Define-se violência como sendo o “processo de aniquilamento”, ou do


desejo de eliminar o outro (MULLER, 1995, p. 30).

Ao mesmo tempo, devemos entender essa violência como provocativa, ou


apelo (a etimologia da palavra “provocação” é a forma latina do verbo
provocare, formado por pro, “antes”, e vocare, “chamar”). A violência tem
suas raízes na dor e sua função é a de um pedido de socorro. A violência é
aquilo que não consegue falar, mas consegue ao menos dar um grito. É
preciso ouvi-lo em vez de condená-lo. Se ouvíssemos de fato dificilmente
teríamos tempo para condenações. O necessário, portanto, é estarmos
prontos a responder a esse apelo, pois em última instância a violência é a
expressão do desejo de comunicar-se, da necessidade de diálogo. Os que
lançam mão da violência estão rejeitando uma sociedade que os rejeitou, e
é tarefa da sociedade ouvir seu apelo. Esforçar-se para compreender não
significa que “vale tudo”. Ao contrário, entender a violência é também
proibi-la. Essa violência é sinal de que aqueles que se entregaram a ela
não foram capazes de encontrar limites; estão simultaneamente pedindo
para que lhes sejam impostos limites. (MULLER, 1995, p. 68)

A violência como forma de imposição de vontade sobre o outro também


manifesta de maneira simbólica e representativa a tentativa de se comunicar, de
ser entendido, de ter suas necessidades humanas atendidas e de principalmente
se fazer reconhecido, mesmo que impositivamente, pelo outro. Ocorre que esse
ato instrumental também pode ser compreendido como uma distorção de comuni-
cação no mundo da vida (HABERMAS, 1988, p. 461). Significa dizer, a violência
deixa claro que o ser humano não está se comunicando na sociedade. Nesse
contexto, pode-se ainda acrescentar:
38 André Viana Custódio – Marli Marlene Moraes da Costa – Rosane Teresinha Carvalho Porto

Num país de direitos não incorporados, um ato de infração configura-se


como recusa recíproca de integração; a condição marginal que a sociedade
impõe à juventude da periferia se faz acompanhar de recusa desses jovens
aos comportamentos socialmente aceitos. (FEFFERMANN, 2006, p. 189)

Dito de outra maneira, entende-se que a violência é uma linguagem com


caráter impositivo sobre o outro, na busca de um reconhecimento simbólico no
espaço social. Portanto, a delinquência significa a zona vazia, atalho e necessidade
de pertencimento, de tal maneira que se possa ser notado, bem como usufruir
das prerrogativas da cidadania (FEFFERMANN, 2006, p. 189).
A palavra violência vem do termo latino vis, que significa força. Assim, vio-
lência é abuso da força, usar de violência é agir sobre alguém ou fazê-lo
agir contra a vontade, empregando a força ou a intimidação. É forçar, obri-
gar. É também brutalidade: força brutal para submeter alguém. É sevícia e
maus-tratos, quando se trata de violência psíquica e moral. É cólera, fúria,
irascibilidade, quando se trata de uma disposição natural à expressão
brutal dos sentimentos. É furor, quando significa o caráter daquilo que
produz efeitos brutais. Tem como seus contrários a calma, a doçura, a me-
dida, a temperança e a paz. (VERONESE; COSTA, 2006, p. 101)

Além de a violência ser identificada como a imposição de uma vontade so-


bre o outro, também é decorrente da reprodução cultural do próprio homem
(BOURDIEU; PASSERON, 1975, p. 16). Em suas mais diversas facetas, está a de
despersonalização do sujeito, tornando-o excluído e invisível. Com efeito, obser-
va-se que os fatores potencializadores da violência também são desencadeados
pela violência estrutural. Por conta disso, entende-se por violência estrutural,
expressão criada pelo norueguês Galtung nos anos 1960, como a violência que é
ocasionada pelas estruturas políticas, econômicas ou sociais que criam situações
de opressão, de exploração ou de alienação (MULLER, 1995, p. 30).
De acordo com Boulding (1991, p. 268), a violência estrutural também de-
corre da atuação das instituições, como a família, a escola e os sistemas econô-
micos, culturais e políticos, que contribuem para a sujeição, o sofrimento e a
denegação do cidadão, pois, apesar do papel social que desempenham e das
práticas de socialização, não o percebe como sujeito de direitos.
Ao abordar a violência que ocorre dentro da instituição família contra a criança
e o adolescente, mais especificadamente a violência doméstica ou intrafamiliar,
pode-se considerá-la como uma das espécies da violência estrutural. Esse desi-
Justiça Restaurativa e Políticas Públicas: uma análise a partir da teoria da proteção integral 39

derato social demonstra a fragilidade da família e sua omissão no desenvolvi-


mento físico, psicológico e social da criança e do adolescente. Relacionada a ela
também está todo o tipo de violência: a física, a sexual e a psicológica (VERONESE;
COSTA, 2006, p. 102).
Não se pode ignorar que no convívio familiar também ocorre frequente-
mente a reprodução da violência.
A vida da família, contraposta pelo imaginário à vida mundana, vem signifi-
cando ao longo dos tempos uma vida íntima, no interior de uma casa sim-
bolizada como “um templo sagrado” e de felicidade doméstica. A vida
mundana, a perdição, teria como símbolo as ruas, os cabarés, os bares, os
largos, as esquinas e as praças públicas. Estes locais, que representam o
lado público da vida, estão em oposição direta ao lado particular, privado,
ao sentido do lar e, em conseqüência, ao bem familiar. Dentro do seu pa-
pel ideal, a família imaginária seria a primeira instância de refúgio das
ameaças e perigos advindos do lado público, externo ao lar. Mas, por outro
lado, a família real e concreta, juntamente com a proteção, muitas vezes
tem representado uma instância de opressão, de dominação e de controle
de seus membros. (LEITE, 1998, p. 87)

Desse modo, o que se percebe nas sociedades contemporâneas é o espaço


familiar constituído por relações reprodutoras de violências. Essa linguagem da
violência produzida nos espaços de socialização primária vai repercutir na repro-
dução de comportamentos e relações violentas em toda a sociedade.

Devemos lembrar que a violência não é um fenômeno isolado, uniforme,


que se abate sobre a sociedade como algo que lhe é exterior e pode ser
explicado através de relações do tipo causa/efeito como, por exemplo,
“pobreza gera violência” ou “o aumento do aparato repressivo acabará
com a violência”. Assim sendo, estamos lidando apenas com os efeitos da
violência e não com suas causas. A violência é multifacetada, encontrando-
-se diluída na sociedade sob as mais diversas formas que se interligam,
interagem, (re)alimentam-se e se fortalecem. Ao postularmos a individuali-
zação máxima e a responsabilização absoluta do criminoso, estamos sub-
sumindo todas as suas vinculações com a realidade sociogenérica em que
está inserido e, conseqüentemente, estamos ignorando a existência de
outra manifestação de violência, imposta por instituições clássicas da socie-
dade e que expressa, sobretudo, os esquemas de dominação de classes e
do Estado: a violência estrutural. (COSTA, 2005, p. 1.261-1.262)
40 André Viana Custódio – Marli Marlene Moraes da Costa – Rosane Teresinha Carvalho Porto

Nesse contexto, Dagnino (2001) entende que a violência estrutural pres-


supõe o reconhecimento prévio de sua complexidade, polissemia e controvérsia.
Para tanto, os papéis sociais exercidos e distribuídos de forma desigual na socie-
dade servem para reproduzir a cultura da dominação.
Portanto, a violência estrutural precisa ser compreendida no âmbito do
contexto social e cultural, para que se possa reconhecer que a pobreza, a exclusão
e as desigualdades sociais, inerentes da estrutura do Estado, que, pela omissão,
isto é, uma ação não social, dissemina a reprodução cultural, criando obstáculos
no acesso aos direitos fundamentais. Ademais, pode-se dizer que a violência
estrutural é histórica, pois é produzida socialmente e tem suas raízes nas rela-
ções de poder, definindo seus destinatários, afetando a capacidade de resistência
dos cidadãos, bem como fomentando a exclusão (COSTA, 2005, p. 1.261-1.262).
Ademais, a violência estrutural é responsável pela seletividade dos indiví-
duos que desfrutarão do bem-estar social e os que serão lançados às margens
sociais. Desse modo, agravam-se os problemas sociais e, consequentemente, a
violência social é potencializada. Do mesmo modo, pode-se ainda dizer que esse
tipo de violência deixa clara a ausência de políticas públicas por parte do Estado
para o enfrentamento das demandas sociais. Aliás, não se quer dizer com isso
que incumbe apenas à Administração Pública mobilizar e enfrentar os problemas
de ordem social, político e outros; ao contrário, o engajamento é de todos os
sujeitos que, conectados e preocupados com o coletivo, poderão encontrar solu-
ções para as mais diversas demandas; e não o fazendo, contribuem para a ins-
tauração da violência e da criminalidade.
Capítulo 06
A GESTÃO LOCAL DE REDE DE ATENDIMENTO E AS
POLÍTICAS PÚBLICAS SOCIOEDUCATIVAS

Ao se falar em política de atendimento, além da compreensão de que todas


as ações governamentais da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Muni-
cípios, bem como as não governamentais, tenham por premissa proteger e asse-
gurar direitos das crianças e adolescentes, elas devem ser construídas em rede
(MARTINS, 2003, p. 51).
Compreender uma política de atendimento também envolve definir e esta-
belecer uma inter-relação com as políticas públicas em geral. Nesse aspecto,
definem-se políticas públicas como a associação de respostas dadas pelo sistema
político às necessidades públicas e sociais, que são apresentadas pelos diversos
atores políticos e sociais na esfera pública (FREY, 2007). No que versa a imple-
mentação de determinada política pública, três dimensões merecem ser observa-
das. A primeira delas perpassa a necessidade e o valor dado pelos atores envol-
vidos; a segunda centra-se no poder do processo de decisão política, sua forma
de distribuição como fator também determinante no processo de decisão. E, por
último, o grau de pressão, a cobrança e a fiscalização, a que estão sujeitos
aqueles que deverão tomar a decisão pública.
Nessa dimensão, a política, é a policy: a política analisada no seu aspecto
material. Peculiarmente diz respeito aos resultados das decisões políticas sobre
as políticas públicas estabelecidas (FREY, 2007). Além disso, a policy também
tem dimensão institucional, por referir-se ao sistema político, e o politics tem
estrutura institucional e processual, porque define e analisa a política. Nesse
aspecto, torna-se conflituoso, pois não é nada tranquilo e fácil, com tantas de-
mandas sociais, estabelecer quais merecem prioridade e de quais pressupostos
se deve partir para a sua elaboração (FREY, 2007).
Por conseguinte, “implementação” é a realização das propostas das políti-
cas públicas pelos mais influentes atores sociais, definidas e tidas como prioritá-
42 André Viana Custódio – Marli Marlene Moraes da Costa – Rosane Teresinha Carvalho Porto

rias, pois é necessário estabelecer prioridade diante de recursos públicos cada


vez mais mal utilizados (FREY, 2007). Do mesmo modo, a formação das propostas
se dá pela participação dos cidadãos, que possuem diversos interesses e lutam
pelo seu reconhecimento e inclusão na agenda pública (CARVALHO, 2003).
Políticas públicas são respostas criadas pelo Estado às demandas sociais,
que emergem da sociedade e do seu interior, além de expressarem o compromisso
público de atuação em uma área específica a longo prazo (CUNHA; CUNHA, 2003,
p. 12). Na mesma linha,

As políticas públicas funcionam como instrumentos de aglutinação de


interesses em torno de objetivos comuns, que passam a estruturar uma
coletividade de interesses. Segundo uma definição estipulativa: toda política
pública é um instrumento de planejamento, racionalização e participação
popular. Os elementos das políticas públicas são o fim da ação governa-
mental, as metas nas quais se desdobra esse fim, os meios alocados para
realização das metas e, finalmente, os processos de sua realização.
(BUCCI, 2001)

Note-se que os estudos sobre políticas públicas são bastante recentes,


existindo apenas abordagens contextualizadas e geralmente limitadas a um de-
terminado período, assim como carecem de embasamento teórico para se chegar
a um ponto específico e resultados estudados e adquiridos (FREY, 2007). Outro
aspecto perceptível no Brasil é a falta de planejamento das políticas públicas,
acompanhado de pesquisas sérias que apontem como se deve investir os recursos
públicos. Geralmente tais avaliações são feitas nos finais dos programas, apenas
observando as metas e os resultados atingidos. Logo, as dimensões e as fases de
uma política pública precisam estar bem organizadas ou planejadas, de maneira
que não deixem de incluir a responsabilidade pela aplicabilidade do recurso pú-
blico gerenciado pela administração pública (FREY, 2007).
O somatório decorrente do princípio da proteção integral, relacionado à
implementação de políticas públicas, deve assegurar a efetivação de direitos aos
adolescentes enquanto sujeitos e agentes de direitos. Significa dizer que o reco-
nhecimento da peculiar condição de desenvolvimento dos infantes, bem como de
que são destinatários dos direitos humanos e fundamentais, derivam e condicio-
nam a elaboração das políticas públicas (MACHADO, 2003, p. 139).
Em prol do interesse social na efetivação dos direitos da criança e do ado-
lescente é que a Constituição da República Federativa de 1988 impôs ao Estado,
Justiça Restaurativa e Políticas Públicas: uma análise a partir da teoria da proteção integral 43

à sociedade e à família os deveres de proteção e garantia de tais direitos; por


isso o seu chamamento a participar das políticas públicas, expressa no parágrafo
7º do artigo 227 ao artigo 204 do mencionado diploma legal (MACHADO, 2003,
p. 140). Saliente-se aqui a relação imediata com o artigo 3º da Carta Política, pelo
fato de se exercer a cidadania participativa no enfrentamento das demandas sociais,
para que se consiga assegurar o princípio da dignidade da pessoa humana
(BASTOS, 2001, p. 166).
A sistematização das políticas públicas destinadas ao atendimento de crian-
ças e adolescentes passou por mudanças conceituais correlatas, que descreveram
e ainda descrevem o sistema e a gestão de rede dos serviços de atendimento.
Com as mudanças de paradigma é possível observar tais rupturas de natureza
conceitual. Na Doutrina da Situação Irregular, o caráter era filantrópico, o funda-
mento assistencialista, a centralidade local pautava-se no Judiciário, a competên-
cia executória cabia à União e aos Estados, o aspecto decisório era centralizador,
o aspecto institucional de ordem estatal e a organização eram piramidais hierar-
quicamente (BRANCHER, 2006b).
Na Teoria da Proteção Integral, o caráter é de política pública, o funda-
mento deixa de se pautar no assistencialista indo para o reconhecimento de di-
reitos fundamentais, a gestão local passa a ser do município, o aspecto decisório
é o participativo; quanto ao institucional, deixa de ser apenas estatal em cogestão
com a sociedade civil. E, por fim, a organização é em rede (BRANCHER, 2006b).
O Estatuto da Criança e do Adolescente traz no seu bojo a preocupação e a
exigência de um atendimento inicial célere ao adolescente nos casos de ato infra-
cional. Conforme o artigo 88, inciso V, do referido diploma legal, esse atendi-
mento deve se dar pela integração operacional de órgãos do Judiciário, Ministério
Público, Defensoria, Segurança Pública e Assistência Social, de preferência em um
mesmo local (CRAIDY, 2005, p. 37).
Na Teoria da Proteção Integral, a gestão é local e em rede, possibilitando a
adoção do princípio da participação popular nas políticas públicas junto aos
membros da comunidade.

O princípio da participação popular visa estabelecer formas de participação


ativa e crítica na formulação das políticas públicas, garantindo instrumentos
de fiscalização e controle, bem como amparar as exigências da sociedade
quanto à efetivação das políticas com qualidade e em quantidade adequa-
das, bem como garantir espaços para denúncia nos casos de não ofereci-
44 André Viana Custódio – Marli Marlene Moraes da Costa – Rosane Teresinha Carvalho Porto

mento dos serviços ou oferecimento irregular. O princípio da participação


popular tem suas origens no próprio processo de formulação do Direito da
Criança e do Adolescente. (CUSTÓDIO, 2006, p. 145)

Pode-se ainda considerar que a Teoria da Proteção Integral também en-


contra respaldo no princípio da subsidiariedade. Mesmo que esse princípio não
esteja explícito na Carta Política, há quem considere o seu recepcionamento implí-
cito no rol de competências mencionado no artigo 30 do mesmo diploma legal,
reconhecendo a importância do município enquanto espaço local, e assim ampliando
suas potencialidades de gestão de interesse público para aquela comunidade
próxima (HERMANY, 2005, p. 1.406-1.407).
Desse modo, poderá o município se articular adequadamente com a parti-
cipação popular direcionada ao melhor interesse da criança e do adolescente,
para a inserção de políticas públicas.

A subsidiariedade concretiza-se no Município, desde que o indivíduo não é


um ser abstrato, mas concreto, onde aparece como cidadão, usuário,
vizinho, contribuinte, consorciado e participante direto na condução e fis-
calização das atividades do corpo político, administrativo e prestacional.
Considerando o Município como uma forma da democracia local, convém
destacar que uma das aplicações práticas e prioritárias do princípio de
subsidiariedade tem como finalidade afiançar e fortalecer o regime munici-
pal. (BARACHO, 1996, p. 51)

A noção de subsidiariedade serve como critério definidor das competências


no interior do próprio Estado e também serve para ampliar as relações dos atores
sociais no espaço local, pois eles também são responsáveis pelas decisões públi-
cas (BARACHO, 1996, p. 5).

Deve-se aproveitar a esfera local como estratégia capaz de manter canais


permanentes e simplificados de discussão sobre políticas públicas, defi-
nindo-as e, principalmente, possibilitando o controle de sua execução. É o
espaço local que permite uma discussão mais pormenorizada, com critérios
factíveis para que o cidadão realmente seja inserido no processo de demo-
cratização da gestão financeira. Mas, para tanto, é preciso implementar
algumas modificações no atual processo de realização de audiências públi-
cas, inserindo regulamentos específicos capazes de aproximar de forma
permanente e efetiva a sociedade do espaço público. Trata-se de uma re-
Justiça Restaurativa e Políticas Públicas: uma análise a partir da teoria da proteção integral 45

dução de distância entre Estado e sociedade, sem que isto signifique uma
cooptação dos atores sociais às políticas governamentais, razão pela qual
se justifica ainda mais a construção de espaços de autonomização e mani-
festação espontânea da cidadania, que passa a adquirir um viés gover-
nante. (HERMANY, 2007, p. 308)

Por isso, a implementação de políticas públicas de atendimento baseia-se


na observância do princípio da descentralização político-administrativa, pois as
mesmas políticas devem ser controladas pela comunidade local. O Estatuto da
Criança e do Adolescente determina que: “Art. 86. A política de atendimento dos
direitos da criança e do adolescente far-se-á através de um conjunto articulado de
ações governamentais e não-governamentais, da União, dos Estados, do Distrito
Federal e dos Municípios”. Especificamente, em relação às políticas de assistên-
cia social, a própria Constituição Federal é clara e determina no artigo 204:
“I - descentralização político-administrativa, cabendo a coordenação e as normas
gerais à esfera federal, e a coordenação e a execução dos respectivos programas
às esferas estadual e municipal, bem como a entidades beneficentes e de assis-
tência social”. A descentralização deve estar acompanhada de canais democráti-
cos de participação popular, capazes de reivindicar a continuidade e a permanên-
cia das ações neste campo (CUSTÓDIO, 2006, p. 144).
A organização do sistema de políticas públicas parte de três eixos. O pri-
meiro diz respeito às políticas básicas, que são mencionadas no artigo 227 da
Carta Política e reproduzidas pelo artigo 4º do Estatuto. Nesse eixo, estão conso-
lidados os direitos fundamentais da criança e do adolescente (PEREIRA, 1999,
p. 14). O segundo eixo é o das políticas públicas de proteção especial, preconi-
zada pelos artigos 101, c.c. o artigo 129, parágrafo único, e 34, do mesmo
diploma legal. E o terceiro, refere-se a políticas socioeducativas, conforme o arti-
go 112 c.c. o artigo 129 do referido Estatuto (BRANCHER, 2006b).
Nesse cenário, quando ocorre uma omissão estatal nos primeiros eixos de
políticas públicas, que são concomitantemente de proteção e prevenção, ainda
resta a tentativa de se fazer algo no terceiro eixo: o das políticas públicas socioe-
ducativas que são ações sociais direcionadas ao atendimento do adolescente nos
casos de ato infracional.

A maior vantagem da municipalização das ações do Estado seria a adequa-


ção das políticas de atendimento preconizadas pelo Estatuto da Criança e
do Adolescente à realidade local. As relações entre o Estado e o cidadão,
46 André Viana Custódio – Marli Marlene Moraes da Costa – Rosane Teresinha Carvalho Porto

quando mantidas no âmbito municipal, são mais transparentes e permeá-


veis, ensejando uma mútua cooperação para a solução dos problemas.
Para a implementar novas regras de proteção integral à criança, ao adoles-
cente e à família, os setores conscientes e atuantes da sociedade em geral
e das comunidades em particular precisam construir, junto ao poder públi-
co, regras e práticas objetivas que sirvam para orientar as mudanças ne-
cessárias. E quando os direitos fundamentais da família, da criança ou do
adolescente estiverem ameaçados, devem movimentar o Estado para ga-
ranti-los. (VERONESE; COSTA, 2006, p. 186)

No entanto, o discurso precisa ser desvelado e as políticas públicas de


atendimento, destacando as políticas públicas socioeducativas, precisam ser efe-
tivamente implementadas. Para que isso ocorra, o sistema de garantias de direi-
tos tem de funcionar na sua plenitude. Tal enfrentamento envolve o engajamento
de todos os atores sociais e a comunicação em rede.
Portanto, a redefinição de atribuições governamentais e não governamen-
tais previstas no Estatuto criou uma articulação em rede dos atores sociais para
lidar com a organização dos serviços públicos de atendimento à infância e à ado-
lescência, tanto na seara do município, do Estado como da União (GIRADE;
DIDONET, 2005, p. 12). Portanto, a cogestão dos atores sociais, para que se
assegure o que está previsto no sistema, deve se dar no espaço local, ou seja, no
Município.

A municipalização do atendimento foi a principal alteração desse processo


e vinculou-se à idéia de se buscar soluções dentro da própria comunidade
com a participação de pessoas que participam da mesma realidade no co-
tidiano. Regeu-se, pois, sob os princípios da participação do cidadão e da
exigibilidade pelas vias administrativas ou jurisdicionais de que as políticas
públicas cumpram com o seu dever. (MARTINS, 2003, p. 55)

Sob esse viés, o Governo Federal elaborou em 2006 o Sistema Nacional de


Atendimento Socioeducativo (Sinase) com o objetivo de inseri-lo como núcleo do
sistema de garantias de direitos. Logo,

Constitui-se de uma política pública destinada à inclusão do adolescente


em conflito com a lei que correlaciona e demanda iniciativas dos diferentes
campos das políticas públicas e sociais. Essa política tem interfaces com
diferentes sistemas e políticas e exige a atuação diferenciada que coadune
Justiça Restaurativa e Políticas Públicas: uma análise a partir da teoria da proteção integral 47

com a responsabilização (com a necessária limitação de direitos determi-


nada por lei e aplicada por sentença) e satisfação de direitos. (BRASIL,
2006, p. 23)

O Sinase aponta para mudanças estruturais importantes, tais como o deslo-


camento das políticas de atendimento para os programas que executem medidas
em meio aberto, evitando-se assim a desnecessária institucionalização em regime
de internação, pois, além de reduzir custos, são maiores as possibilidades de
retorno para a sociedade, no sentido de o adolescente estar próximo de sua
família e conseguir inserção na comunidade (BRASIL, 2006, p. 23).
Embora estejam surgindo algumas mudanças significativas, há de se ter re-
servas quanto às propostas institucionais que se propõem enfrentar as situações
problemáticas que envolvem adolescentes. Nos tempos atuais, os discursos são
restaurativos, de percepção do outro, de escuta; no entanto, na prática social,
ainda se presenciam as ideias retributivas, de isolamento do problema, de bani-
mento, de aniquilamento e, consequentemente, de castigo.

Chamar um fato de “crime” significa excluir de antemão todas estas outras


linhas; significa se limitar ao estilo punitivo – e ao estilo punitivo da linha
sócio-estatal, ou seja, um estilo punitivo dominado pelo pensamento jurí-
dico, exercido como uma distância enorme da realidade por uma rígida
estrutura burocrática. Chamar um fato de “crime” significa se fechar de
antemão nesta opção infecunda. Para mim, “não existem nem crimes nem
delitos, mas apenas situações problemáticas. E sem a participação das
pessoas diretamente envolvidas nestas situações, é impossível resolvê-las
de uma forma humana. (HULSMAN; BERNAT, 1993, p. 99-100)

Sob essa ótica é que se trouxe à tona o outro modelo de justiça, a Justiça
Restaurativa, que tem sido defendida e aplicada aqui no Brasil na execução de
medidas socioeducativas. A proposta ressalta a relevância do princípio da prote-
ção integral, como também quer banir das práticas institucionais a retributividade
e diminuir os danos ocasionados também pela violência institucional e estrutural
em relação aos atores envolvidos: adolescente, vítima e comunidade. Porém, há
de se atentar pela prática de linguagem não punitiva, caso contrário, tal modelo
será uma falácia.
A gestão local de rede prevê espaço para o compartilhamento de experiên-
cias e políticas. Igualmente, o Direito da Criança e do Adolescente também
48 André Viana Custódio – Marli Marlene Moraes da Costa – Rosane Teresinha Carvalho Porto

ampara a justiça restaurativa como estratégia de inclusão social, mesmo correndo


o risco de ser uma política compensatória. Significa dizer que se esse tipo de política
for aplicado isoladamente, sem conexão com as outras políticas que integram o
Sistema de Garantia de Direitos, será apenas uma política compensatória, com
resultados parciais (CUSTÓDIO, 2006, p. 142).

Inconteste o fato de que as políticas sociais compensatórias recaem sobre


os efeitos, ou seja, sobre certos “desajustes” sociais como falta de mora-
dia, de emprego, de alimentação, de vestuário e outros, de sorte que as
ações por ela realizadas desencadeiam produtos que acabam se diluindo
no momento em que são acionados socialmente. Isso não significa que tais
programas sociais sejam totalmente ineficazes e desnecessários. Diante da
esmagadora realidade sócio-econômica em que vive a maioria da socieda-
de brasileira, as ações sociais são necessárias, mas é preciso admitir que
tais políticas setoriais são limitadas, pois não conseguem atingir os ele-
mentos mais complexos da estrutura social que reproduzem e possibilitam
o fluxo da marginalização. (VERONESE, 1997, p. 185)

As políticas sociais compensatórias e as políticas como medidas de conten-


ção e controle, além dos elevados custos, são limitadas ao atendimento de situa-
ções emergenciais e os seus esforços acabam sendo concentrados nos resultados
de desigualdades (CUSTÓDIO, 2006, p. 142). O locus da Justiça Restaurativa está
no instituto da remissão e nas políticas públicas socioeducativas que ensejam o
desencadeamento da rede no espaço local, pois também podem considerar as
práticas restaurativas como uma reafirmação da teoria da proteção integral e do
princípio do melhor interesse da infância.
O Estatuto da Criança e do Adolescente também contém dispositivos que
possibilitam juridicamente a recepção, pelo ordenamento jurídico, do modelo da
Justiça Restaurativa, cabendo destacar o instituto da remissão e a criação de cen-
tros de atendimento inicial integrado ao adolescente, previsto no seu artigo 88,
inciso V, com o instituto da remissão. A tramitação do processo pode ser judicial-
mente dispensada, havendo acordo em que as partes – adolescentes, vítima e fami-
liares – dispensem a culpabilização formal, mesmo que o adolescente receba uma
advertência formal, reparação de dano ou uma das medidas socioeducativas em
meio aberto, podendo uma destas ser combinadas ainda com medidas protetivas.
O ciclo do modelo se completa com a possibilidade de os pais e/ou res-
ponsáveis pelo adolescente assumirem formalmente compromissos de se subme-
Justiça Restaurativa e Políticas Públicas: uma análise a partir da teoria da proteção integral 49

terem a qualquer uma das medidas do artigo 129 do Estatuto. E tal acordo pode
ocorrer antes ou durante o processo, com o Ministério Público de um lado e as
partes envolvidas de outro, devendo ser levada à homologação judicial ou não,
que só então valerá como sentença, formando título executivo para cumprimento
na execução das medidas.
Quanto às medidas socioeducativas, essas podem recepcionar as práticas
restaurativas, pois, além de se propor um espaço de diálogo e escuta para os
atores sociais, tendo por premissa o distanciamento do discurso punitivo, tal
procedimento auxilia o magistrado a uma melhor leitura da realidade ou do caso
concreto que envolve o adolescente, para fins, por exemplo, de progressão de
medida. Pela particularidade de as medidas serem indeterminadas no tempo, o
sistema carece de interpretação não punitiva; logo, as concepções de Justiça
Restaurativa vêm proporcionando relevantes “subsídios na depuração das convic-
ções a respeito dos objetivos e abordagens a serem priorizadas durante o aten-
dimento socioeducativo” (BRANCHER, 2006a, p. 688), que anteriormente era
obscuro e distanciavam-se do caráter sociopedagógico.
No entanto, vale lembrar que a postura do Juiz da Infância e da Juventude
com a inserção da teoria da proteção integral deve se ater a defender os interes-
ses e direitos das crianças e dos adolescentes. Além disso, pode participar de
práticas que o aproximem mais da realidade do infante, porém a sua função social
deve ser bem distinta da “figura do bom pai”.
A Justiça da Infância e da Juventude pode ser propulsora de política de jus-
tiça e instrumento de expansão da cidadania (VERONESE, 2003, p. 442), como as
práticas restaurativas, desde que sob a égide da proteção integral, e de que o
espaço público seja devidamente ocupado pelos demais atores sociais, pelo fato
de serem corresponsáveis pelas crianças e pelos adolescentes.
UNIDADE II

Capítulo 01
JUSTIÇA RESTAURATIVA: PREMISSAS E
CONSIDERAÇÕES ESSENCIAIS

Se afasto do meu jardim os obstáculos que impedem o sol e a água de


fertilizar a terra, logo surgirão plantas de cuja existência eu sequer sus-
peitava. Da mesma forma, o desaparecimento do sistema penal punitivo
estatal abrirá, num convívio mais sadio e mais dinâmico, os caminhos de
uma nova justiça. (HULSMAN; BERNAT, 1993)

À medida que nossos desejos são os mesmos que os dos outros, gerando
rivalidade e disputa pelo domínio de um território, nasce o conflito, que provém
da incapacidade do sujeito de perceber que há “lugar para dois” (MULLER, 2006,
p. 22-23).
O direito existe também para mediar esses conflitos; logo, quando o Judiciá-
rio se propõe a aplicar outras alternativas de resolução de conflitos, como a Justiça
Restaurativa, é possível notar a inter-relação com a teoria da ação comunicativa
de Habermas, mais especificamente o que ela quer ensinar. Porém, aplicar uma
outra modalidade na área do Direito da Criança e do Adolescente representa en-
frentar discursos fundados nos valores antigos do menorismo e da situação irre-
gular, abrindo espaço para o paradigma restaurativo enquanto afirmação da teoria
da proteção integral.
52 André Viana Custódio – Marli Marlene Moraes da Costa – Rosane Teresinha Carvalho Porto

A Justiça Restaurativa pode ser considerada como um paradigma se o falar


e o agir transformarem a cultura. Significa dizer que é possível pensar em novos
paradigmas se essas mudanças se derem na linguagem e no comportamento, em
atitudes e valores. Ocorre que o projeto de Habermas torna-se relevante no con-
texto no qual se encontram inseridas as práticas restaurativas voltadas aos ado-
lescentes por representar uma teoria crítica da sociedade e que, principalmente,
propõe a ruptura de antigos princípios baseados no conhecimento de objetos em
prol do paradigma do entendimento que se dá entre os sujeitos capazes de falar
e agir. Além disso, ele “descobre que o interesse em emancipação está inserido
na própria estrutura da linguagem, em especial nos atos de fala voltados ao en-
tendimento e ao consenso” (SIEBENEICHLER, 1989, p. 87).
Logo, relacionar a Justiça Restaurativa com os preceitos da Ação Comunica-
tiva implica o pressuposto de que o espaço público ocupado pelos atores sociais
é constituído de uma rede comunicacional (HABERMAS, 2003, p. 90), pois cada
um desses sujeitos tentará externar os atos de fala, o que está no ímpeto dos
seus “mundos”: o subjetivo, o social e o objetivo1. Cada participante tem seu
momento de verbalização ou externalização dos seus sentimentos e principal-
mente oportunidade de relatar sua versão sobre os fatos presentes. Essa passa-
gem implica, portanto, uma reapropriação ou empoderamento do conflito pelos
principais envolvidos. Em síntese, a relação centra-se no agir comunicativo dos
atores sociais.
Dentro de tal contexto, a teoria da ação comunicativa abre possibilidades
de se construir novas percepções e compreender a sociedade, que tem caracte-
rísticas distintas, inclusive desiguais, com relação ao ser humano. Evidencia-se
aqui, num primeiro momento, a importância dos atos comunicativos entre os se-
res no subestabelecimento das relações interpessoais e sociais, que também
envolvem o direito como elo de conexão e interação na sociedade. Em outros
termos, a ação comunicativa diz respeito aos atos comunicativos, que podem ser
expressos tanto pela linguagem falada, escrita, como a corporal. Tudo leva a crer

1 “As competências comunicativas podem se vincular ao mundo objetivo (pretensão de verda-


de), ao mundo social (pretensão de justiça), ao mundo subjetivo (pretensão de veracidade).
Enquanto as pretensões de veracidade são estabelecidas apenas numa seqüência comporta-
mental, as pretensões de verdade e justiça são estabelecidas através do discurso, teórico e
prático, respectivamente. Dessa forma, o jogo argumentativo adquire força e vigor, onde a lin-
guagem ganha capacidade de gerar o entendimento.” (GUIMARÃES, 2005, p. 261)
Justiça Restaurativa e Políticas Públicas: uma análise a partir da teoria da proteção integral 53

que as relações entre os homens são movidas por ações que têm por finalidade
precípua a comunicação, ou seja, o entendimento mútuo. Desse modo, entende-
-se também que “a linguagem é o meio da ação comunicativa” (SIEBENEICHLER,
1989, p. 79).
Por conseguinte, os dois tipos de ações sociais desenvolvidos por Habermas
são: a ação não social instrumental e a ação social comunicativa. A primeira diz
respeito ao agir estratégico do sujeito, e a segunda refere-se ao agir comunicativo
direcionado ao interesse mútuo (HABERMAS, 1987).
No entanto, quando o tema envolve os adolescentes e o modelo de siste-
ma de Justiça, são nítidas as distorções sociais oriundas da falta de entendimento
na comunicação entre os atores sociais, que integram e constituem a sociedade
compartilhada. Do mesmo modo, percebe-se que as distorções nos atos comuni-
cativos entre esses sujeitos prejudicam o processo emancipatório individual e
também social (GUIMARÃES, 2005, p. 303). Assim, tornam-se imprescindíveis as
considerações gerais sobre a Justiça Restaurativa a partir de uma abordagem
conceitual e histórica, perpassando sobre sua origem e existência em vários paí-
ses, incluindo o Brasil, e após seus valores fundamentais, princípios e procedi-
mentos, adotando como referencial teórico autores como Jürgen Habermas e
Michel Foucault.
Abordar um sistema de justiça que atenda satisfatoriamente com seus ser-
viços aos interesses da sociedade é tarefa desafiadora, principalmente quando se
verifica a dicotomia existente entre o modelo retributivo e o restaurativo. Observe
que este está sendo incorporado em algumas práticas jurídicas brasileiras, com a
finalidade de melhorar o atendimento e construir um espaço propício que possi-
bilite o diálogo pacífico entre as partes envolvidas no conflito (HABERMAS, 1989).
A Justiça Restaurativa tem origem nos modelos de organização social das
comunidades pré-estatais, europeias e nas coletividades nativas, que privilegia-
vam as práticas de regulamentação social voltadas aos interesses coletivos sobre
os interesses individuais (JACCOUD, 2005, p. 163). Dito de outra maneira, a Justi-
ça Restaurativa é implementada nas sociedades ocidentais, baseando-se nas
tradições indígenas do Canadá, dos Estados Unidos e da Nova Zelândia. Além
disso, destaca-se que a Irlanda é o país pioneiro no emprego dos procedimentos
restaurativos, especificadamente no que versa à resolução de conflitos juvenis.
A implementação das práticas restaurativas na Nova Zelândia deu-se pela
reivindicação da população maior, pois seus membros eram discriminados em
54 André Viana Custódio – Marli Marlene Moraes da Costa – Rosane Teresinha Carvalho Porto

relação aos brancos de origem europeia. O índice de adolescentes nativos em


regime de internamento era maior que os de origem europeia. Entre tantos pro-
blemas que envolviam essa comunidade, o Sistema de Justiça da Infância e da
Juventude editou, em 1989, o Children, Young Persons and Their Families Act,
com o objetivo de melhor se compatibilizar com as tradições do povo maori (SICA,
2007, p. 83).
A proposta reconhecia a família como corresponsável para tomada de deci-
sões sobre os seus jovens que se envolviam em ato infracional. Além disso, os
objetivos priorizavam estimular a utilização de outras alternativas ao procedi-
mento criminal, que não comprometessem os vínculos familiares e comunitários
do infante, aplicar em última instância as medidas privativas de liberdade e
observar os interesses da vítima (SICA, 2007, p. 83).
Conforme o Children, Young Persons and Their Families Act, a autoridade
policial pode escolher quatro alternativas de encaminhamento quando apreende
um jovem a quem é atribuído o ato infracional. Primeiramente, pode se valer
simplesmente da advertência, seja oral ou escrita. Na segunda alternativa, deno-
minado “encaminhamento alternativo”, após o recebimento do relatório de
investigação sobre o ato infracional, um policial do Youth Aid (Departamento de
Auxílio à Juventude) reúne-se com o jovem e sua família para a elaboração de um
plano de trabalho (SICA, 2007, p. 83). Nesse plano poderá ser inserido um pedido
de desculpas, a reparação do dano, doações a instituições de caridade, presta-
ções de serviços à comunidade, inclusão escolar ou treinamento profissional,
entre outras, de acordo com o caso concreto. A terceira alternativa diz respeito à
realização de uma Family Group Conferences (FGC), que é organizada por um
Youth Justice Coordinator, funcionário do Departamento de Bem-Estar Social do
Child, Youth and Family Services (CYFS), que atua como facilitador (SICA, 2007,
p. 83). Participam do encontro, o adolescente, a vítima e seus familiares além de
seus apoiadores, e um representante da polícia. E a quarta alternativa é o enca-
minhamento do caso ao Tribunal de Jovens, que tem como atribuição decidir pelo
julgamento do caso ou a realização das Family Group Conferences. Se necessário,
poderão ser nomeados um advogado e assistentes sociais para participarem do
encontro do adolescente, da família e da vítima mais os seus apoiadores. Do
mesmo modo, quando os acordos não são cumpridos pelo adolescente, o caso é
encaminhado para a Corte Juvenil e os crimes contra a vida são julgados pelo
Tribunal de Jovens. Baseadas nas experiências juvenis, também foram adotadas
práticas restaurativas para o sistema de justiça adulto (SICA, 2007, p. 83).
Justiça Restaurativa e Políticas Públicas: uma análise a partir da teoria da proteção integral 55

Nas sociedades contemporâneas ocidentais, o ressurgimento da Justiça


Restaurativa e dos processos que a ela estão ligados, como a mediação2, sofreu
influência dos movimentos de contestação das instituições repressivas, da viti-
mologia e do papel da comunidade. No que trata ao primeiro movimento, ele
surgiu nas universidades americanas, destacando-se a escola de Chicago e a cri-
minologia radical. O segundo movimento caracterizou a descoberta da vítima, na
abordagem pela criminologia sobre os fatores que contribuíam para o sujeito
tornar-se vítima. Entretanto, a sensibilização dos críticos teóricos do modelo
retributivo voltou-se para as necessidades e, principalmente, para a ausência da
vítima no processo penal (JACCOUD, 2005, p. 163). Por isso, no início do século
XX, a participação da vítima em cada um dos passos do processo judicial tornou-
-se fundamental para a recuperação e a responsabilização do infrator (FUNES,
1995, p. 28). No entanto,

O movimento vitimista inspirou a formalização dos princípios da justiça


restaurativa, mas não endossou seus princípios nem participou direta-
mente de seu advento. É necessário, então, manter prudência na análise
das relações que o movimento vitimista mantém com a justiça restaurativa.
(JACCOUD, 2005, p. 163)

O terceiro movimento ressalta a comunidade como o lugar que deve ser


valorizado, pois nela os conflitos são menos numerosos e podem ser mais bem
administrados, assim como era nas sociedades tradicionais (JACCOUD, 2005,
p. 163). Diferentes sistemas e formas de mediação como técnicas próximas das
restaurativas expandiram-se pela Europa nas décadas de 1970 e 1980, mas foi,
em especial, no âmbito do Direito Juvenil que se encontraram as condições mais
favoráveis e propícias para a aplicação dos planos de conciliação infrator e vítima,
devido ao caráter especial das normas aplicáveis à população juvenil. Ademais, o
desenvolvimento desses programas deu-se tanto pela possibilidade de ser recep-
cionado pela legislação especial, que tem um caráter amplo, como pelo caráter

2 “A mediação é a intervenção de um terceiro que se coloca entre os protagonistas de um con-


flito, entre dois adversários (do latim adversus: alguém que se virou contra, que está em opo-
sição), que podem ser dois indivíduos, duas comunidades ou duas nações que se enfrentam e
se opõem uma à outra. O objetivo da mediação é trazer os protagonistas da adversidade à
conversação (do latim conversari: voltar-se em direção a, convergir), ou seja, levá-los a se
voltarem um para o outro, a fim de dialogar, entender-se mutuamente e, se possível, encon-
trar um acordo capaz de abrir caminho para a reconciliação.” (MULLER, 2006, p. 56)
56 André Viana Custódio – Marli Marlene Moraes da Costa – Rosane Teresinha Carvalho Porto

inovador, característico dos profissionais vinculados ao campo da justiça juvenil


(FUNES, 1995, p. 29).
Na Itália, destacando-se o trabalho realizado no Tribunal de Milão e Turim,
a mediação tem ocupado seu espaço na Justiça de Menores. Note-se que todos os
países que implementaram a mediação iniciaram por esta área, pelo maior reco-
nhecimento e vigor (SICA, 2007, p. 84).
As diversas noções e técnicas de natureza inter-relacional, pela proximidade
comum com a Justiça Restaurativa, também se desenvolveram na Alemanha, no
início da década de 1980, quando do surgimento e incorporação de métodos de
conciliação entre vítima e ofensor na resolução de conflitos penais, na justiça
criminal de adultos e na Justiça da Infância e da Juventude (SICA, 2007, p. 87).
Por outro lado, na França, a origem das experiências atualmente identifica-
das como restaurativas não teve por base uma fase de aprofundamento teórico,
optando pelo caminho pragmático. Desde a década de 1980, a mediação era
utilizada para resolução de conflitos, porém, mais tarde, as técnicas de mediação
foram reunidas e denominadas de “justiça de proximidade”, com a finalidade de
romper com o distanciamento do sistema de justiça dos locais considerados pro-
blemáticos. Dos programas desenvolvidos nesse país, destacam-se as Casas de
Justiça e do Direito (Maisons de Justice et du Droit), surgidas da iniciativa da
Procuradoria de Pontoise, na região de Paris, em 1990, e regulamentadas pela
Lei 98-1163 de 1998. Eram instaladas em bairros carentes, onde em um espaço
físico diversos serviços de acesso à justiça eram oferecidos à comunidade, aliás,
empregavam a mediação penal para pequenos delitos, principalmente contra o
patrimônio (SICA, 2007)3.

3 “Na região de Nova Gales do Sul, inspirados no chamado modelo Wagga Wagga de justiça,
membros da polícia local implementaram, em 1991, as Community Youth Conferences, criando
um programa gerido conjuntamente pela polícia, pelo Department of Juvenile Justice, pela New
South Wales Childrens´s Court e pelos Community Justice Centres. Como produto dessa expe-
riência, foi promulgado, com validade para todo o Estado de Nova Gales do Sul, o Young
Offenders Act, de 1997, pelo qual regulamentaram as sanções aplicáveis a jovens infratores,
dispondo-as em uma hierarquia de opções que passou a incluir conferências restaurativas.
Podem participar das conferências, além do jovem, a família, o advogado, policiais, a vítima e
seus apoiadores. Se optar por não participar, a vítima pode enviar representantes e, uma vez
presente, tem poder de veto sobre a solução deliberada. Eventualmente, podem participar
também membros mais velhos de comunidades indígenas, oficiais de probation e assistentes
sociais. O encaminhamento dos casos é feito pela polícia e, mais raramente, pela corte, quan-
do o magistrado inclui entre as disposições constantes da sentença a realização de uma con-
Justiça Restaurativa e Políticas Públicas: uma análise a partir da teoria da proteção integral 57

De acordo com a experiência da Nova Zelândia, a Austrália escolheu a Jus-


tiça da Infância e da Juventude como instância privilegiada para a implementação
de mecanismos restaurativos de justiça. Há programas de justiça restaurativa, no
âmbito juvenil, dispersos em todas as regiões do país, a citar a região de Nova
Gales do Sul, que se vale das conferências restaurativas (STRANG, 2001).
Nesse contexto, várias são as normativas internacionais, como a Recomen-
dação número 87 do Conselho da Europa sobre as reações sociais ante a delin-
quência juvenil, as Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração da
Justiça de menores (regras de Beijing), inclusive, a Convenção Sobre os Direitos
das Crianças estabelece procedimentos judiciais e apropriados para o tratamento
das crianças e dos adolescentes, chamando a comunidade para a participação na
atenção aos seus adolescentes, propondo medidas e procedimentos de reconcilia-
ção, como a desjudicialização ou mediação, e sempre respeitando os direitos
humanos e as garantias legais (FUNES, 1995, p. 34-37).
Nos últimos anos, na América Latina, as práticas alternativas de resolução
de conflitos têm sido implementadas e regulamentadas nos respectivos ordena-
mentos jurídicos. Isso pode ser devido ao descrédito do Poder Judiciário para o
enfrentamento e solução eficaz de conflitos em relação às legislações específicas
da Argentina sobre mediação (Lei 24.573) e conciliação (Lei 24.635), bem como
leis sobre arbitragem, conforme a matéria abordada. Além disso, desde 1998 está
sendo desenvolvido um projeto-piloto de Justiça Restaurativa denominado
Proyecto RAC, uma parceria entre a Faculdade de Direito de Buenos Aires e o
Ministério Nacional de Justiça (SICA, 2007, p. 99).
No Brasil, estão sendo desenvolvidos três projetos sobre a Justiça Restau-
rativa: em Brasília (DF), outro em São Caetano (SP) e em Porto Alegre (RS), no
Rio Grande do Sul. Inclusive, o projeto da 3ª Vara do Juizado da Infância e Juven-
tude de Porto Alegre é referência mundial, citado no livro publicado pelas Nações
Unidas de Viena, no ano de 2006, assim:

ferência. É preciso, para que haja encaminhamento, que se cuide de [sic] do jovem entre 10 e
17 anos que tenha cometido infração sujeita ao procedimento sumário, entre as quais estão o
roubo, o furto, o dano e as chamadas condutas desordeiras. São excluídas de plano ofensas
sexuais, ofensas que tenham resultado em morte e algumas ofensas relacionadas a drogas.
Uma vez indicado pela polícia, o caso é encaminhado ao Departament of Juvenile Justice (DJ J),
no qual ele é recebido por um administrador de conferências, que nomeia um facilitador
(chamado de conference convenor). Se houver conflito sobre a conveniência ou não de reali-
zação da conferência entre o DJJ e o órgão que houver encaminhado o caso, a decisão cabe ao
Director of Public Prosecutions (DPP).” (SICA, 2007, p. 93-94)
58 André Viana Custódio – Marli Marlene Moraes da Costa – Rosane Teresinha Carvalho Porto

Este projeto está sendo apresentado em uma conferência para jovens


infratores. O Estatuto da Criança e do Adolescente de 1990 permite que o
juiz da Vara da Infância e Juventude suspenda os processos legais para a
primeira vez em que o delinqüente se envolva em crimes de menor gravi-
dade, fazendo o uso de sanções como serviços comunitários e reabilitação.
O sistema de justiça da Vara da Infância e Juventude de Porto Alegre reali-
za testes piloto com o uso de câmaras restaurativas para estes delinqüen-
tes. (Tradução livre.) (AERTSEN; HAZEM; CARRANZA, 2006, p. 27)

Poder-se-ia citar outras experiências de países como Chile, Guatemala,


Nicarágua, Uruguai, Peru e a Colômbia, no entanto, cabe ressaltar, novamente,
que em cada país estão sendo disseminadas aos poucos as políticas de resolução
de conflitos, como conciliação, mediação, arbitragem e práticas restaurativas4.
Pode-se considerar uma inter-relação entre as essas políticas, principalmente no
aspecto de se propor alternativas não punitivas e sim consensuais que dissociem
o castigo da Justiça.
A terminologia Justiça Restaurativa é atribuída a Albert Eglash que, em
1977, escreveu um artigo intitulado Beyond Restitution: Creative Restitution. No
referido trabalho, denotou três respostas ao crime, que são: a retributiva, basea-
da na punição; a distributiva, voltada para a reeducação; e a restaurativa, tendo
como fundamento a reparação (GALLI, 2007).
A expressão Justiça Restaurativa foi impulsionada pelo Congresso Internacio-
nal de Criminologia de Budapeste de 1993, e conquistou novos adeptos mediante as
conferências internacionais de vitimologia de Adelaide (Austrália), em 1994,
Amsterdã, em 1997, e Montreal, em 2000 (MARTÍN, 2006b, p. 302. Tradução livre).

El grupo de expertos de la Comisión de Prevención del Delito y Justicia


Penal de las Naciones Unidas lleva desde 2002 trabajando para intentar
definir unas bases generales de la justicia restaurativa. Por Justicia
restaurativa entienden todo proceso en que la víctima, el delincuente y,

4 Ver a distinção em: (VEZZULA, 2004, p. 63) [...] temos apontado as características diferenciais
da mediação de conflitos a respeito do processo judicial (formal, adversarial e impositivo), da
negociação cooperativa (diálogo com objetivo resolutivo, autocompositivo), da conciliação
(procedimento rápido que inclui um terceiro que orienta e até pressiona na obtenção de um
acordo que, ainda que não satisfaça totalmente, consegue encerrar o assunto) e da arbitra-
gem (procedimento privado e misto: negocial e impositivo, que parte da escolha livre de um
terceiro para decidir sobre uma questão de sua competência). (VEZZULA, 2004, p. 63)
Justiça Restaurativa e Políticas Públicas: uma análise a partir da teoria da proteção integral 59

cuando proceda, cualquier otra persona o miembro de la comunidad


afectados por el delito, participen conjuntamente y de forma activa en la
resolución de cuestiones derivadas del delito, con la ayuda de un
mediador o facilitador5. (MARTÍN, 2006b, p. 301)

A Comissão de Prevenção do Delito e Justiça Penal das Nações Unidas, ao


definir de maneira geral a Justiça Restaurativa, reconhece a sua importância para
a resolução dos conflitos. A Resolução 2002/12 aborda a definição da Justiça
Restaurativa como:

[…] un nuevo movimiento en el campo de la victimología y criminología.


Reconociendo que el crimen causa daños a las personas y comunidades,
se insiste en que la justicia repara esos daños y que a las partes se les
permita participar en ese proceso. Los programas de justicia restaurativa,
por consiguiente, habilitan a la víctima, al infractor y a los miembros
afectados de la comunidad para que estén directamente involucrados en
dar una respuesta al crimen. Ellos llegan a ser el centro del proceso de
justicia penal, con profesionales del Gobierno y del Derecho que sirven
como facilitadores de un sistema que apunta a la responsabilidad del
infractor, la reparación a la víctima, y la total participación de esta, el
infractor y la comunidad6. (CENTRO PARA LA JUSTICIA Y LA RECONCI-
LIACIÓN, 2007)

Diversas são as construções apresentadas ao conceito de Justiça Restaura-


tiva, porém, pode-se afirmar inicialmente que a proposta é inacabada, pois é

5 “O grupo de estudiosos da Comissão de Prevenção do Crime e Justiça Penal das Nações Uni-
das está desde 2002 trabalhando para tentar definir algumas bases gerais da justiça restau-
rativa. Por Justiça restaurativa eles entendem todo o processo em que a vítima, o criminoso e,
quando for o caso, qualquer outra pessoa ou membro da comunidade afetado pelo crime par-
ticipe juntamente e de um modo ativo na resolução das questões derivadas do crime, com
ajuda de um mediador ou facilitador.” (Tradução livre.)
6 “[...] um novo movimento no campo da vitimologia e da criminologia. Reconhecendo que o
crime causa danos às pessoas e comunidades, insiste-se que a justiça repare esses danos e
que seja permitido às partes participar de todo processo. Os programas de justiça restaurativa,
por conseguinte, habilitam à vítima, ao ofensor e aos membros da comunidade diretamente
afetados de forma que lhes é dada uma resposta ao crime. Eles acabam sendo o centro do
processo de justiça penal, com profissionais do Governo e do Direito que servem como facili-
tadores de um sistema que aponta a responsabilidade do ofensor, a reparação para a vítima, e
permite a participação de todos os envolvidos na resolução do caso.” (Tradução livre.)
60 André Viana Custódio – Marli Marlene Moraes da Costa – Rosane Teresinha Carvalho Porto

“mais que uma teoria em formação, é um conjunto de práticas em busca de uma


teoria” (SICA, 2007, p. 10).
Para os autores McCold e Wacthel (2007), a proposta de teoria de Justiça
Restaurativa é composta de três estruturas conceituais distintas e que se relacio-
nam: a janela de disciplina social, o papel das partes interessadas e a tipologia
das práticas restaurativas.
A janela de disciplina social combina um “nível alto ou baixo de controle
com um nível baixo de apoio” (MCCOLD; WACTHEL, 2007); define quatro aborda-
gens de regulação do comportamento: punitiva, permissiva, negligente e restau-
rativa. Com relação à abordagem punitiva, também denominada de retributiva, as
pessoas são rotuladas e estigmatizadas. Na permissiva ou reabilitadora, há prote-
ção aos indivíduos das consequências e das ações erradas. Decorre o baixo con-
trole e o baixo apoio, que caracterizam ações negligentes, indiferentes e passi-
vas. E na perspectiva restaurativa prevalece o alto controle e o alto apoio social,
que possibilita ao transgressor, à vítima e à comunidade a elaboração de um
acordo mútuo para melhor viabilizar a reparação do dano.
É importante destacar que a segunda estrutura, denominada “o papel das
partes interessadas”, relaciona o dano causado pela transgressão às necessida-
des peculiares de cada parte envolvida e às respostas necessárias para o devido
atendimento dessas. Consequente a isso, faz uma distinção dos interesses das
partes interessadas principais e das partes interessadas secundárias. Nas princi-
pais, envolve as vítimas e os transgressores que mais diretamente foram afetados
pelo dano. Considera também os familiares ou os que têm relação direta, por
estarem ligados emocionalmente com a vítima ou com o transgressor. Observe-se
que essas partes constituem as comunidades de assistência a vítimas e ofenso-
res. A comunidade tem um papel de destaque para se alcançar a reparação máxi-
ma entre os seus envolvidos (MCCOLD; WACTHEL, 2007).
De sorte, as partes interessadas secundárias ou indiretas incluem “os vizi-
nhos e aqueles que pertencem a organizações religiosas, educacionais, sociais ou
empresas, em cujas áreas de responsabilidade se inserem os lugares ou as pes-
soas afetadas pela transgressão”. Ademais, a sociedade representada pelo Poder
Público é considerada parte secundária e as necessidades que deverão ser aten-
didas são de interesse coletivo, e não específico. Portanto, a resposta máxima é
apoiar e facilitar os processos restaurativos, de maneira imparcial, cabendo às
partes principais estipular o que deve ser feito (MCCOLD; WACTHEL, 2007).
Justiça Restaurativa e Políticas Públicas: uma análise a partir da teoria da proteção integral 61

Resta, assim, a última estrutura, intitulada “tipologia das práticas restaura-


tivas”. Nela reafirma-se que o processo restaurativo envolve as partes interessa-
das principais para decidir sobre a reparação do dano. Nesse espaço de interlo-
cuções, reconhecem-se as vítimas, os transgressores e as suas comunidades,
cujas necessidades são: “obter a reparação, assumir a responsabilidade e conse-
guir a reconciliação” (MCCOLD; WACTHEL, 2007).
É importante salientar que o envolvimento desses três atores sociais é que
determina o grau de restauratividade. Em outras palavras, se somente a vítima e o
ofensor participarem de um círculo restaurativo, o processo é considerado “na
maior parte restaurativo”. Se, por exemplo, houver “compensação financeira do
governo às vítimas”, o processo é considerado “parcialmente restaurativo”. Por
fim, se todos os atores sociais participarem ativamente do processo restaurativo,
ele é considerado “totalmente restaurativo”. Portanto, conforme o envolvimento e
o compartilhamento de experiências no círculo ou em conferências restaurativas,
maior o grau de empoderamento e restauratividade (MCCOLD; WACTHEL, 2007).
Entre os conceitos mais relevantes de Justiça Restaurativa no mundo está o
do advogado norte-americano Howard Zehr, considerado um dos fundadores e
principais teóricos sobre Justiça Restaurativa, tendo como destaque a obra
Changing Lenses (Trocando as Lentes). Ele desenvolveu uma concepção detalhada
das concepções fundamentais da Justiça Restaurativa, merecendo ênfase os se-
guintes pontos: o crime é fundamentalmente uma violação de pessoas e relações
interpessoais; as violações criam obrigações e responsabilidades; e a Justiça
Restaurativa busca corrigir injustiças (ZEHR, [s.d.]).
Toda e qualquer ação realizada pelos protagonistas envolvidos com o con-
flito, que tenham por finalidade a justiça por meio da reparação do dano causado
pelo ato criminoso, pode ser compreendida como prática restaurativa. Desse
modo, quanto mais se buscar a solução dos conflitos pelas práticas restaurativas
mais se aproxima da elaboração e construção da teoria e do conceito da Justiça
Restaurativa (SICA, 2007, p. 10).
Em outros termos:

La justicia restaurativa es diferente de la justicia penal contemporánea en


muchas maneras. Primero, ve los actos criminales en forma más amplia –
en vez de defender el crimen como simple transgresión de las leyes,
reconoce que los infractores dañan a las víctimas, comunidades y aun a
ellos mismos. Segundo, involucra más partes en repuesta al crimen – en
62 André Viana Custódio – Marli Marlene Moraes da Costa – Rosane Teresinha Carvalho Porto

vez de dar papeles clave solamente al gobierno y al infractor, incluye


también víctimas y comunidades. Finalmente, mide en forma diferente el
éxito – en vez de medir cuanto castigo fue infringido, mide cuánto daño es
reparado o prevenido7. (CENTRO PARA LA JUSTICIA Y LA RECONCILIACIÓN,
2005)

Nesse cenário, a Justiça Restaurativa baseia-se num procedimento de con-


senso, em que a vítima, o infrator e, quando apropriado, outras pessoas ou mem-
bros da comunidade afetados pelo crime, são considerados como sujeitos cen-
trais, participando coletiva e ativamente na construção de soluções dos traumas
causados pelo crime (PINTO, 2005, p. 20-21).
No mesmo sentido, Jaccoud (2005, p. 169) define Justiça Restaurativa
como sendo uma aproximação que privilegia toda forma de ação, individual ou
coletiva, visando corrigir as consequências vivenciadas por ocasião de uma infração,
a resolução de um conflito ou a reconciliação das partes ligadas a um conflito.
Para Walgrave, “a Justiça Restaurativa caracteriza-se pela tentativa de fazer
justiça por meio da reparação do dano” (2006, p. 443).
Com relação à natureza conceitual do significado e alcance de comunidade
(accountability) e alcance de potencialização do papel da vítima, em que pese em
um primeiro momento, para os programas de Justiça Restaurativa mais antigos,
entende-se por comunidade a de relação (community of concern) da vítima e do
autor, como também o lugar em que se deu o crime (SICA, 2007, p. 14).
Nesse aspecto, o valor e a retomada do papel social da comunidade têm
por premissa maior preencher a lacuna deixada pelo Estado (JACCOUD, 2005,
p. 170). Além disso, a comunidade pode ser destinatária das políticas de repara-
ção e fortalecimento do sentimento de segurança coletiva, como também pode
ser ator social sobre ações reparadoras concretas das consequências da infração
(SICA, 2007, p. 13).

7 “A Justiça Restaurativa é diferente da justiça penal contemporânea em muitos aspectos.


Primeiro, ela vê os atos criminosos de forma mais ampla – em vez de defender o crime como
simples transgressão à lei, reconhece que os infratores prejudicam as vítimas, as comunidades
e até a eles mesmos. Segundo, envolve mais partes em resposta ao crime – ao invés de dar
papéis-chave somente ao governo e ao infrator, inclui também vítimas e comunidades.
Finalmente, avalia de forma difrente o êxito – ao invés de medir quanto castigo foi infringido,
mede quanto do dano foi reparado ou prevenido.” (Tradução livre.)
Justiça Restaurativa e Políticas Públicas: uma análise a partir da teoria da proteção integral 63

[...] A justiça restaurativa é uma abordagem colaborativa e pacificadora


para a resolução de conflitos e pode ser empregada em uma variedade de
situações (familiar, profissional, escolar, no sistema judicial, etc.). Ela
pode também usar diferentes formatos para alcançar suas metas, incluindo
diálogos entre a vítima e o infrator, “conferências” de grupo de comunida-
des e familiares, círculos de sentenças, painéis comunitários, e assim por
diante.(MARSHALL; BOWEN, 2005, p. 270)

Ademais, considera-se a Justiça Restaurativa como o procedimento adotado


entre os interlocutores ou partes envolvidas e unidas pelo conflito ocasionado em
decorrência da infração que, ao exporem seus sentimentos, emoções e principal-
mente suas necessidades básicas humanas, se predispõem a legitimar um acordo
e a validá-lo entre si.

Se a lei é pai e limite, a justiça deveria ser mãe, acolhimento e escuta. Os


olhos vendados da deusa lembram a importância do ouvir, antes de pen-
sar, pesar, julgar; antes que os ouvidos sintam, antes que os olhos concluam.
Ouvir antes: antes que os pré-conceitos julguem. Uma justiça isenta, aco-
lhedora e dialógica – equivalente a uma justiça que não parta dos pressu-
postos da imputação, investigação, culpa e castigo – haveria de ser capaz
de escutar a cada um e dar voz e vazão a suas dores, dramas e tragédias.
Andar sete dias e sete noites nas sandálias do pecador. Nem tanto: sete
minutos para ouvir cada pessoa na inteireza da sua humanidade, respeita-
do o limite das próprias circunstâncias, talvez bastassem. Meninos de rua,
policiais, taxistas, vítimas de assaltos, viúvas do latrocínio, adolescentes
infratores ou suas mães: que qualquer um enfim pudesse comparecer a
uma sala de audiências – ou a qualquer outro espaço mais adequado, mas
não menos simbólico, dedicado à escuta do conflito – para expressar o
turbilhão de sentimentos e emoções subjacentes às causas e aos efeitos
da infração. Livres para não terem de proteger-se das terríveis ameaças da
deusa enfurecida e livres para transparecerem aquilo que, pelas vias tor-
mentosas da violência, fizeram ouvir sob a forma de uma impronunciada
demanda: a demanda pela satisfação de suas necessidades – as quais, por
se reduzirem em regra à satisfação de valores, quando não de direitos, no
mais das vezes ecoarão um grito universal, quase sempre trazendo um
fundo humano legítimo por mais que inadmissível seja sua estratégia de
reivindicação. (BRANCHER, 2006a, p. 671)
64 André Viana Custódio – Marli Marlene Moraes da Costa – Rosane Teresinha Carvalho Porto

Melo (2005) define a Justiça Restaurativa partindo do pressuposto que


este modelo apresenta soluções alternativas ou complementares ao sistema tradi-
cional de justiça, especialmente ao retributivo.
Além da responsabilização do autor do dano, esse modelo disponibiliza um
espaço de discussões entre os interlocutores envolvidos e ligados pelo ato infra-
cional, que neutraliza estigmas e rotulações. Logo, o que se espera é uma mínima
possibilidade de restauração das relações.
Do mesmo modo, a aplicação prática desse modelo é o que mais se apro-
xima do que se deve esperar da intervenção do Estado em reação ao fenômeno
delitivo: uma tentativa de conciliar as justas expectativas da vítima, do autor e da
sociedade (DE VITTO, 2005).
Por outro lado, não se sabe ao certo o que se pode precisar ou esperar
que a Justiça Restaurativa “restaure” efetivamente, embora Morris afirme que a
restauração significa, para as vítimas, a recomposição da segurança, da dignida-
de, do autorrespeito e do senso de controle (2005, p. 449-450). Mesmo que não
se tenha a exatidão do que seja restaurar, uma interessante pesquisa sinaliza e
otimiza a implementação da Justiça Restaurativa:

Dados mais recentes (MAXWELL et al., 2001), sobre 300 jovens que parti-
ciparam dessas reuniões restaurativas em 1998 na Nova Zelândia, mos-
tram, após uma análise preliminar, que mais da metade deles disseram que
se sentiam envolvidos no processo decisório; mais de dois terços, que ti-
veram oportunidade de dizer o que queriam; mais de 80%, que entendiam
a decisão; e mais de dois terços disseram que concordavam com a decisão.
Da mesma forma, pesquisas recentes na Austrália mostram que os jovens
infratores vêem as reuniões restaurativas como justas e estão satisfeitos
com seus processos e resultados (PALK et al., 1998; CANT e DOWNIE,
1998; STRANG et al., 1999; TRIMBOLI, 2000; DALY, 2001). No entanto, eu
também entendo que “restaurar” significa a compensação dos males cau-
sados tanto pela vítima como aqueles por ela sofridos. Isto significa que
nossas atitudes devem não somente ter como objeto as conseqüências do
crime, mas também os fatores que a ela estão subjacentes. Nenhum pro-
cesso, não importa o quão inclusivo, e nenhum resultado, não importa o
quão reparador, poderão magicamente desfazer os anos de marginalização
e exclusão social experimentados por tantos infratores (ver também POLK,
2001), muito menos poderão suprir a necessidade que têm as vítimas de
ajuda e aconselhamento terapêutico no longo prazo. [...] (MORRIS, 2005,
p. 449-450)
Justiça Restaurativa e Políticas Públicas: uma análise a partir da teoria da proteção integral 65

Logo, o autor não tem precisão do que se entenda por restaurar danos
ocasionados pelo ato infracional, pois é notório no atual cenário de desigualda-
des sociais que certos atos violentos ocasionam feridas traumáticas, podendo ser
irrestauráveis (MORRIS, 2005, p. 449-450). Contudo, o espaço dialógico e inter-
subjetivo criado pela Justiça Restaurativa é a possibilidade de os sujeitos exter-
narem suas emoções e razões a respeito do fato e, diante disso, aprenderem a
conviver com o trauma, de tal forma que possam seguir adiante suas vidas.
De acordo com a rede de procedimentos restaurativos da Nova Zelândia, a
visão e a prática da Justiça Restaurativa são formadas por vários valores funda-
mentais que a distinguem de outras abordagens e estratégias de justiça para se
resolver conflitos. Os valores das práticas restaurativas são aqueles considerados
essenciais aos relacionamentos saudáveis, equitativos e justos, que são: partici-
pação, respeito, honestidade, humildade, interconexão, responsabilidade, empo-
deramento e esperança (MARSHAL; BOWEN, 2005).
A participação diz respeito aos mais afetados pela transgressão (vítimas,
ofensores e suas comunidades de interesses). Os atores sociais devem erguer
seus atos de fala e serem responsáveis pela coordenação das respectivas ações,
cabendo somente a eles a tomada de decisões, o que contribuirá para o acordo.
Quanto ao respeito, este deve ser mútuo e gerador de confiança e boa-fé entre
os atores sociais envolvidos no processo restaurativo. Por sua vez, nos atos de
fala faz-se necessária a honestidade, pois a verdade esclarece melhor os fatos e
a culpa dentro dos parâmetros legais.
Note-se, também, a relevância de os participantes do processo restaurativo
(que poderá se dar nos círculos restaurativos, nos encontros, nas conferências)
terem humildade, pois esta é uma condição humana que capacita a todos desco-
brirem o que há em comum. Além disso, a empatia e os cuidados mútuos são
manifestações de humildade.
Com isso, reforça-se ainda mais a interconexão entre os atores sociais,
bem como a Justiça Restaurativa reconhece que todos, independentemente de
serem vítimas ou infratores, estão interligados e fazem parte de uma sociedade
compartilhada. Portanto, as infrações ocorridas no meio social também são de
responsabilidade da sociedade, que pode contribuir na restauração da vítima e na
inclusão do ofensor. Não raro, constata-se que a própria sociedade, pela estru-
tura que a constitui, exerce um papel excludente; consequentemente, as desi-
gualdades sociais, os estereótipos e a forma de normatização das suas institui-
ções contribuem para o desenvolvimento de seres humanos evasivos e sem sen-
timento de pertencimento, o que pode levar à violência.
66 André Viana Custódio – Marli Marlene Moraes da Costa – Rosane Teresinha Carvalho Porto

Ao abordar a responsabilidade, o ofensor, se desejar participar das práti-


cas restaurativas, precisa admitir a autoria do ato infracional cometido. Por isso,
quando um adolescente a quem é atribuído o ato infracional aceita participar de
um círculo restaurativo, ele precisa ter assumido a autoria do ato. Aliás, esta é
uma das condições exigidas na experiência da 3ª Vara do Juizado Regional da
Infância e Juventude de Porto Alegre. No círculo, o autor do ato infracional pode
demonstrar a aceitação dessa obrigação, buscando a reparação do dano causado.
Sob essa ótica, o caminho torna-se viabilizador para a reconciliação.

No que interessa à gestão do processo político, insere-se a garantia de


direitos através da prestação jurisdicional. No campo dos interesses indivi-
duais, responsabilidade é o atributo indispensável ao exercício do valor
máximo representado pela liberdade. Não se pode exercer liberdade sem
limite, sem respeito: responsabilidade perante o outro. No campo dos in-
teresses coletivos, responsabilidade é o atributo indispensável ao exercício
do valor máximo representado pela democracia. Não se pode exercer de-
mocracia sem que cada cidadão tenha presente as conseqüências de suas
escolhas e o peso da sua participação: responsabilidade perante todos.
Somente relações pautadas pela responsabilidade perante o outro e pela
responsabilidade para com todos pode instalar um ambiente de confiança.
A confiança, pressuposto da coesão, é a contrapartida (perante o outro) e
o dividendo (para todos) da responsabilidade. A responsabilidade é o tri-
buto da confiança. E assim como sem responsabilidade não há confiança,
sem confiança não há restauração, nem justiça, e sem justiça não há coe-
são social. Em cada fissura da sociedade que esquecida dessa fórmula se
desagrega, o gérmen oportunista da violência instala a dor e a destruição.
Sendo as instituições da justiça investidas da função de garantidoras, em
última instância, dos princípios regentes do Estado representados pela li-
berdade e pela democracia, a proposta de promover responsabilização não
se justifica apenas como foco central da administração da justiça, mas passa
a constituir-se numa contribuição à efetividade do próprio Estado Demo-
crático de Direito. Uma justiça que promova autonomia e responsabilidade
promove coesão, garante direitos e estabiliza relações sociais, fundamen-
tando a constituição de um “Estado de Responsabilidade Social”.
(BRANCHER, 2006a, p. 673)

Sobre a reparação, Scuro Neto (2006b) dispõe seus quatro elementos: as


desculpas, a mudança de comportamento, a restituição e a generosidade. Dentro
Justiça Restaurativa e Políticas Públicas: uma análise a partir da teoria da proteção integral 67

desse enfoque, destaca-se que a reparação deve ser decidida pelo próprio infra-
tor e pela própria vítima, e não por terceiros, como o juiz ou a sociedade.
Não importa o tipo de infração com o qual a pessoa se depare; o fato é que
este rouba a autonomia do sujeito, pois no exercício desse ato de violência um
indivíduo exerce o controle sobre o outro sem o seu consentimento. Porém,
quando esses indivíduos, na condição de vítima e ofensor, participam do processo
restaurativo são devolvidos à vítima os seus poderes. A vítima retoma seu papel
ativo para determinar quais são as suas necessidades humanas e como devem ser
satisfeitas (MARSHALL; BOWEN, 2005, p. 273). Por conta disso, também dá po-
der aos ofensores de responsabilizarem-se por seus atos e fazerem o possível
para remediar o dano causado, buscando a reabilitação e a integração. Em outras
palavras, o que ocorre nesse compartilhamento de mundos distintos, mas aproxi-
mados pela dor da violência, é uma espécie de empoderamento (SICA, 2007, p. 19).
Sica define o empowerment como: “a recuperação do poder de diálogo en-
tre as partes, suprimido pelo processo penal, assim como o poder de evitar o
processo e definir outras formas de regulação social distintas daquela única ofe-
recida pelas agências judiciais tradicionais” (2007, p. 19).
Ademais, a esperança deve nortear sempre as relações dos atores sociais,
sobretudo no restabelecimento das vítimas e principalmente no aspecto emocio-
nal e na mudança do ofensor de não delinquir novamente. As abordagens res-
taurativas visarão às necessidades presentes e futuras; por isso a esperança é
prioridade para aqueles que acreditam na possibilidade de construir uma socie-
dade melhor.
A Justiça Restaurativa recepciona inúmeras práticas, dentre elas, como
mencionado anteriormente, está a mediação, mas, por ser um modelo em cons-
trução e em transformação, não é possível delimitá-la a um tipo específico de
procedimento ou considerá-la sinônimo de mediação (SICA, 2007, p. 72). Enten-
de-se que a mediação

[…] es un proceso que provee una oportunidad a la víctima interesada de


reunirse con el infractor en un escenario seguro y estructurado,
enfrentándose en una discusión del delito con la asistencia de un
mediador entrenado. Los objetivos de la mediación de víctima y infractor
incluyen: permitir a la víctima reunirse con el infractor sobre la base de
propia voluntad, animando al infractor a comprender sobre el impacto del
crimen y tomar responsabilidad del daño resultante, y proporcionando a la
68 André Viana Custódio – Marli Marlene Moraes da Costa – Rosane Teresinha Carvalho Porto

víctima y al infractor la oportunidad de desarrollar un plan para tratar el


daño8. (CENTRO DE LA JUSTICIA Y LA RECONCILIACIÓN, 2005)

Na Justiça Restaurativa, os atores sociais (autor, vítima e comunidade) ao


se reunirem em um espaço para dialogarem, não deverão levar seus papéis sociais
para dentro do círculo, ou seja, a identificação dos integrantes é apenas de
ordem didática, pois, na realidade, o poder de autoridade, a disputa por um bem
e a presença de um mediador não existe. Significa dizer que não há um único
responsável pelo conflito, todos são corresponsáveis, e a presença dos coorde-
nadores no processo é preliminar, pois o empoderamento no local deve se dar
exclusivamente pelos interlocutores envolvidos no fato, em especial, pela comu-
nidade. Em linhas gerais, a mediação pode ser considerada um dos processos
restaurativos.
Decorre que o programa de Justiça Restaurativa será aquele que utiliza
processos restaurativos e busca resultados restaurativos. Para compreender esse
conceito e notar a tênue distinção com a mediação, convém realizar algumas dis-
tinções terminológicas, entre processo e resultados restaurativos (MARTÍN,
2006b, p. 309. Tradução livre).

El “proceso restaurativo” es todo proceso en que la víctima, el delincuente


y cuando proceda, cualesquiera otras personas o miembros de la comuni-
dad afectados por un delito, participan conjuntamente de forma activa en
la resolución de cuestiones derivadas del delito, por lo general con la ayu-
da de un facilitador. Entre los procesos restaurativos se puede incluir la
mediación, la conciliación, la celebración de conversaciones y las reunio-
nes para decidir sentencias. El “resultado restaurativo” será un acuerdo
logrado como consecuencia de un proceso restaurativo. Entre los resulta-
dos restaurativos se pueden incluir respuestas y programas como la repa-
ración, la restitución y el servivio a la comunidad, encaminados a atender
las necesidades y responsabilidades individuales y colectivas de las partes

8 “é um processo que prevê a oportunidae de a vítuma interessada em reunir-se com o infrator


em um local seguro e estruturado, enfrentando-se em uma discussão sobre o delito, com a
assistência de um mediador competente para tal. Os objetivos da mediação entre vítima e
infrator incluem: permitir à vítima reunir-se com o infrator por sua própria vontade,
estimulando o infrator a compreender o impacto de seu ato criminoso e responsabilizar-se
pelo dano resultante; e proporcionar à vítima e ao infrator a oportunidade de desenvolverem
uma forma de tratar sobre o dano.” (Tradução livre.)
Justiça Restaurativa e Políticas Públicas: uma análise a partir da teoria da proteção integral 69

y a lograr la reintegración de la víctima y del delincuente. Las “partes”


serán la víctima, el delincuente y cualesquiera otras personas o miembros
de la comunidad afectados por un delito que participen en un proceso
restaurativo. El “facilitador” será una persona cuya función es promover,
de manera justa e imparcial, la participación de las partes en un proceso
restaurativo9. (MARTÍN, 2006b, p. 309)

Uma das questões que permeia o tema é quando se pode utilizar os pro-
gramas de Justiça Restaurativa. Para Martín, poderão ser utilizados em qualquer
etapa do sistema de justiça penal da Espanha, por exemplo, desde que respeita-
da a legislação nacional. Os processos restaurativos poderão ser utilizados sem-
pre que existirem provas suficientes de autoria do delito contra o ofensor e o livre
consentimento da vítima em qualquer momento do processo. Os acordos deverão
ser construídos espontaneamente, nos quais os envolvidos (ofensor e vítima)
participam voluntariamente. Quando os processos restaurativos não são um re-
curso apropriado e possível, o caso deverá ser remetido para a justiça penal, que
decidirá sobre a forma de atuação (MARTÍN, 2006b, p. 158). Ressalte-se que,

Para que los programas de justicia restaurativa puedan funcionar, los


Estados deben considerar la posibilidad de establecer directrices y
normas, com base legislativa cuando sea precisa, que rijan su utilización.
Esas directrices y normas versarán, entre otras cosas, sobre: a) Las
condiciones para la remisión de casos a los programas de justicia
restaurativa; b) La gestión de los casos después de un proceso
restaurativo; c) Las calificaciones, la capacitación y la evaluación de los
facilitadores; d) La administración de los programas de justicia
restaurativa; e) Las normas de competencia y las reglas de conducta que

9 “O ‘processo restaurativo’ é todo processo em que a vítima, o delinquente e, quando proce-


dente, quaisquer outras pessoas ou membros da comunidade afetados por um delito partici-
pam conjuntamente de forma ativa para a resolução de questões derivadas de um delito, ge-
ralmente assistidas por um facilitador. Entre os processos restaurativos pode-se incluir a me-
diação, a conciliação, a celebração de diálogos e reuniões para decidir sentenças. O ‘resultado
restaurativo’ será um acordo firmado como consequência de um processo restaurativo. Entre
os resultados restaurativos pode-se incluir respostas e programas para atender as necessida-
des e responsabilidade individuais e coletivas das partes e conseguir a reintegração da vítima
e do delinquente. As ‘partes’ serão a vítima, o delinquente e quaisquer outras pessoas ou
membros da comunidade afetados por um delito que participem de um processo restaurativo.
O ‘facilitador’ será uma pessoa com função de promover, de maneira justa e imparcial, a parti-
cipação das partes em um processo restaurativo.” (Tradução livre.)
70 André Viana Custódio – Marli Marlene Moraes da Costa – Rosane Teresinha Carvalho Porto

regirán el funcionamiento de los programas de justicia restaurativa.


Asimismo, en los programas de justicia restaurativa, y en particular en los
procesos restaurativos, deben aplicarse salvaguardas básicas en materia
de procedimiento que garanticen la equidad con el delincuente y la
víctima: a) A reserva de lo dispuesto en la legislación nacional, la víctima y
el delincuente deben tener derecho a consultar a un asesor letrado en
relación ao proceso restaurativo, y en caso necesario a servicios de
traducción e interpretación. Los menores además tendrán derecho a la
asistencia de los padres e del tutor; b) Antes de dar su acuerdo para
participar en procesos restaurativos, las partes deben ser plenamente
informadas de sus derechos, de la natureza del proceso y de las posibles
consecuencias de su decisión; c) No se debe coaccionar a la víctima ni al
delincuente para que participen en procesos restaurativos o acepten
resultados restaurativos, ni se les debe inducir a hacerlo por tales
medios10. (MARTÍN, 2006b, p. 158)

Embora as práticas restaurativas sejam incipientes e o seu emprego em


alguns lugares do mundo não apresente resultados quantitativos de grande
monta, que demonstrem a sua efetividade como mudança de atitude em relação
às práticas atuais do sistema de justiça, a sua implementação é necessária e re-
quer uma jornada de trabalho gradativa. Alguns insucessos ocorreram e poderão
ainda ocorrer, mas existem mais aspectos positivos que reafirmam a sua instaura-

10 “Para que os programas de justiça restaurativa possam funcionar, os Estados devem


considerar a possibilidade de estabelecer diretrizes e normas, com base legislativa quando for
preciso, que rejam a sua utilização. Essas diretrizes e normas versarão, entre outras coisas,
sobre: a) as condições para a remissão de casos aos programas de justiça restaurativa; b) a
gestão dos casos depois de um processo restaurativo; c) as qualificações, a capacitação e a
avaliação dos facilitadores; d) a administração dos programas de justiça restaurativa; e) as
normas de competêcia e as regras de conduta que regerão o funcionamento dos programas
de jutiça restaurativa. Assim mesmo, aos programas de justiça restaurativa, e em particular aos
processos restaurativos, deve-se aplicar salvaguardas básicas em matéria de procedimentos
que garantam a equidade com o deliquente e a vítima: a) a reserva do disposto na legislação
nacional, a vítima e o delinquente devem ter direito a consultar um especialista em processo
restaurativo, e, caso seja necessário, ter à disposição tradutor e intérprete. Crianças e
adolescentes menores de 18 anos têm direito de serem assistidos por seus pais ou tutores;
b) antes de concordarem com a participação em processos restaurativos, as partes devem ser
plenamente informadas dos seus direitos, da natureza do processo e das possíveis
consequências de sua decisão; c) não se deve forçar a vítima nem o deliquente a participarem
de processos restaurativos ou coagi-los a aceitarem resultados restaurativos, nem se deve
induzi-los a fazê-lo por tal meio.” (Tradução livre.)
Justiça Restaurativa e Políticas Públicas: uma análise a partir da teoria da proteção integral 71

ção que o contrário. Vale mencionar que a justiça restaurativa não é um mero
instrumento de desafogamento de trabalho dos tribunais, pois entre os seus
objetivos está a qualidade na prestação dos serviços institucionais. É importante
salientar que, como se trata de experiências recentes, torna-se difícil obter con-
clusões seguras em relação à diminuição da reincidência e do número de crimes
praticados devido à sua aplicação. No entanto, há pesquisas que indicam bons
resultados (SICA, 2007, p. 141).

Na Nova Zelândia, pesquisa sobre os resultados do Rotorua Second Chance


Community – Managed Restorative Justice Program e do Wanganui Community
– Managed Restorative Justice Program indicaram, no mesmo sentido, duas
conclusões importantes, uma objetiva: os programas restaurativos não
aumentaram as taxas de reincidência; e outra subjetiva: os níveis de satis-
fação dos participantes com o resultado dos programas é muito alto,
aumentando a percepção de justiça naquelas comunidades (no programa
Rotorua, 83% das vítimas ficaram satisfeitas com o acordo e 95% satis-
feitas com a oportunidade do encontro e 90% dos ofensores cumpriram o
acordo satisfatoriamente; no programa Wanganui, 90% das vítimas ficaram
satisfeitas com sua participação no encontro restaurativo). (SICA, 2007,
p. 141)

Em relação ao impacto da Justiça Restaurativa na reincidência criminal, o


estudo elaborado na Austrália, denominado RISE (Recidivism patterns in the
Canberra Reintegrative) apresenta dados interessantes:
Jovens envolvidos apenas em crimes violentos, e cujos casos foram enca-
minhados ao projeto RISE, reincidiram 38% menos que o grupo de con-
trole que praticou os mesmos crimes e foi submetido à justiça penal. O
dado mais interessante da pesquisa foi que essa alta queda de reincidên-
cia só ocorreu especificadamente nos crimes violentos, não sendo aferi-
dos, por exemplo, crimes de trânsito e outros. (SICA, 2007, p. 141)

Todavia, a observação sobre a importância das práticas restaurativas não


devem estar centrada na reincidência. De acordo com pesquisadores da Inglaterra,
não há qualquer evidência de que a Justiça Restaurativa diminua a reincidência.
Nessa dimensão também se inserem os resultados positivos proporcionados pe-
las práticas restaurativas aos interlocutores envolvidos no ato infracional, pois se
sentem escutados e corresponsáveis pela solução do conflito (SICA, 2007).
Capítulo 02
A COMUNICAÇÃO NÃO VIOLENTA COMO
PROCEDIMENTO DA JUSTIÇA RESTAURATIVA

À medida que o ser humano começa a relacionar-se com o outro e deseja o


poder como um instrumento de domínio nessa relação, ele começa a conscienti-
zar-se da violência e também descobre que para contrapô-la deve recusar a reco-
nhecer a sua legitimidade. Quando consegue isso, funda-se então o conceito da
não violência (MULLER, 1995, p. 53).
A ação não-violenta é exatamente aquilo que está dizendo: ação que é não
violenta, e não inércia. Essa técnica consiste não apenas em palavras, mas
em protesto, não-cooperação e intervenção ativos. É mais do que claro que
se trata de uma ação a nível de grupo ou de massa. Certas formas de ação
não-violenta podem ser consideradas como tentativas de convencer mediante
ação; outras, tendo participação suficiente, podem conter elementos de
coerção. (MULLER, 1995, p. 12-13)

De outro modo, quando o ser humano sofre a violência e a ocasiona no


outro descobre o requisito da não violência no seu eu, pois a sua conclusão sobre
a não violência decorre depois de esbarrar na realidade violenta à sua volta.
Assim sendo, pode-se concordar com Muller quando ele enfatiza: “A não-
-violência não é conclusão de um raciocínio, não é uma dedução, mas, sim, uma
opção da razão” (1995, p. 58). Com efeito, a Comunicação Não Violenta é um
processo de linguagem que vem ao encontro do despertar do ser humano sobre
suas necessidades no mundo compartilhado, que pode ser acolhido pela matriz
habermasiana, isto é, pautada no agir comunicativo.
Ao tratar das necessidades humanas básicas, também é necessário com-
preender os conflitos.
Conflitos não são de nível superior ou inferior. Todos os conflitos são
iguais ao nascer e têm o mesmo direito de ser processados, com transcen-
74 André Viana Custódio – Marli Marlene Moraes da Costa – Rosane Teresinha Carvalho Porto

dência (“o ato de ultrapassar”) e transformação, para que as partes pos-


sam viver com eles. O fato de estadistas e políticos desfrutarem de uma
classificação social mais elevada não significa que conflitos geopolíticos
estejam em um “plano mais elevado”. Todos os conflitos são iguais: são
profundamente sérios para todos os envolvidos. Conflitos não são um
jogo, que se ganha ou se perde, mas sim, freqüentemente, combates para
sobreviver – pelo bem-estar, pela liberdade, por identidade; pelas neces-
sidades humanas básicas. (GALTUNG, 2006, p. 5. Destaques do original.)

Os conflitos são inerentes à natureza humana; no entanto, há de se refletir


sobre sua existência e aprender a lidar com eles. Observe-se que os conflitos são
disputas pelas necessidades humanas básicas. Dentro dessa perspectiva, o con-
ceito de necessidades humanas constitui um campo de batalhas entre os especia-
listas que debatem sobre esse ponto.
Las necesidades no son uma subclase de los deseos, sino que informan
sobre estados reales en los que viven los seres humanos, sobre
situaciones, peores o mejores, en las que los hombres tienen que realizar
sus planes de vida, tienen que tomar importantes decisiones, si es que
pueden realmente11. (PISÓN, 1998, p. 163)

Muito embora existam divergências e ponderações diferentes sobre a va-


loração e o tipo de necessidade básica, elas podem ser consideradas universais,
pois estão presentes em todos os seres humanos, independentemente do tempo
e do lugar onde os eles vivam. Todos os seres têm as mesmas necessidades hu-
manas básicas, pois necessitam de certos bens, como alimento, saúde e moradia
para garantir o seu básico existencial. Vale lembrar que, a despeito de os sujeitos
terem cultura, tradições e estarem inseridos em sociedades complexas, apresen-
tam algo em comum: são integrantes da espécie humana (PISÓN, 1998, p. 177).
Algumas metas têm prioridade sobre outras porque constituem condições
absolutamente necessárias para a continuação da vida dos organismos in-
dividuais. Se elas não forem satisfeitas, a vida e a dignidade humana não
mais serão possíveis. Sobrevivência – bem-estar – liberdade – identidade
– são necessidades básicas. São mais profundas que valores. Estão acima

11 “As necessidades não são uma subclasse dos desejos, mas elas informam sobre os estados
reais em que vivem os seres humanos, sobre situações, piores ou melhores, em que os
homens têm que realizar seus planos de vida, tendo que tomar importantes decisões, se é
que podem realmente.” (Tradução livre.)
Justiça Restaurativa e Políticas Públicas: uma análise a partir da teoria da proteção integral 75

dos valores. Os valores podem ser escolhidos por nós e a escolha de


valores faz parte de nossa liberdade. Os valores tornam-se parte das
nossas identidades; possuir exatamente esses valores é, em si mesmo,
valorizado. Porém, as necessidades básicas são diferentes. Você não
escolhe suas necessidades básicas; as necessidades básicas escolhem
você. É a satisfação delas que torna você possível. Se você descarta suas
próprias necessidades básicas, ou de outros, está se condenando, ou a
outros, a uma vida não digna dos seres humanos. Está praticando a violên-
cia. A negociação é possível quando se trata de objetivos e valores, mas
não quando se trata de necessidades básicas. Necessidades básicas têm
de ser respeitadas. Elas não são negociáveis. (GALTUNG, 2006, p. 11)

Ademais, o elemento polêmico, que parece chocar o critério da universali-


dade, é o reconhecimento do caráter histórico das necessidades. Significa dizer
que as necessidades surgem em um momento determinado e em uma época de-
limitada, conforme o espaço em que se situa a sociedade (PISÓN, 1998, p. 177.
Tradução livre.). Por conseguinte, o problema maior que enfrentam os defensores
das necessidades humanas básicas como critério relevante moral é o de funda-
mentar o seu caráter normativo de tal forma que obrigue o Estado a cumpri-las.
Alguns críticos entendem que as necessidades não têm força normativa, que a
provisão do bem-estar social é uma maneira própria da caridade, da benevolên-
cia, da generosidade e humanidade. Já para outros é uma obrigação dos poderes
públicos que devem promover a melhora da sociedade e de seus cidadãos.
(PISÓN, 1998, p. 178-179. Tradução livre.).

Outros “interesses” como poder e tamanho não são, necessariamente,


meios de satisfazer necessidades básicas. O que podemos requerer deles,
entretanto, é que não insultem as necessidades básicas, pois se o fizerem,
então as coisas começam a tornar-se sérias. Insultar necessidades básicas,
isto é violência. (GALTUNG, 2006, p. 11-12)

Nesse aspecto, considera-se que o Poder Público tem obrigação com seus
cidadãos, no atendimento às necessidades humanas básicas, que lhes assegurem
um mínimo existencial, pois estas fazem parte do núcleo central dos direitos fun-
damentais. Assim, reconhece-se que o seu atendimento possibilitará que as pes-
soas se entendam pela linguagem de maneira não violenta.
Entende-se por Comunicação Não Violenta (CNV) como um processo de
linguagem que capacita o sujeito a ouvir e a conectar-se com os sentimentos e as
76 André Viana Custódio – Marli Marlene Moraes da Costa – Rosane Teresinha Carvalho Porto

necessidades ante os próprios julgamentos e também com relação ao outro. Nada


mais que falar e ouvir com compaixão, utilizando a linguagem não violenta para
se comunicar com o outro. Nas palavras de Rosenberg, “uma forma de comunica-
ção que nos leva a nos entregarmos de coração” (2006, p. 21). Em outros ter-
mos, auxilia a conexão do sujeito com os outros e consigo mesmo, possibilitando
o florescimento natural da compaixão. Por conseguinte, guia os participantes do
diálogo no processo de reformulação sobre a forma utilizada para a expressão e a
escuta, mediante a concentração em quatro componentes: observação, senti-
mento, necessidade e pedido (ROSENBERG, 2006, p. 25).
Logo, o processo da Comunicação Não Violenta, ao se valer da observação,
deixa claro que o participante do ato da fala coordena seu plano de ação, de for-
ma a verificar se o que o outro está dizendo ou fazendo é enriquecedor ou não
para sua vida. Por conta disso, o sujeito tem de ser capaz de articular essa obser-
vação sem fazer nenhum julgamento ou avaliação, ou seja, dizer apenas o que
agrada ou não em relação ao que o outro ator do diálogo está fazendo. Em ato
contínuo, o segundo componente do processo é o sentimento, que diz respeito
ao sentimento do participante ao observar a referida ação, podendo estar magoa-
do, assustado, alegre, irritado, etc. Após a identificação do sentimento, é possível
reconhecer o terceiro componente, que sinaliza a qual das suas necessidades
estão ligados os sentimentos apontados. E, por último, o pedido, que deve ser
bem específico (ROSEMBERG, 2006, p. 25).
Em geral, as pessoas não expressam claramente seus sentimentos quando
se comunicam, na maioria das vezes, pelo simples fato de não terem uma educa-
ção emocional e os sentimentos não serem considerados importantes no sistema
imposto pela sociedade, isto é, deixados de lado em detrimento do uso da razão
e da lógica. Aprende-se mais palavras de rotulação, etiquetamento, estigmatiza-
ção e maneiras corretas de pensar definidas pelos que detêm poder de autorida-
de. Em outros termos, as instituições do Estado, por sua vez, que fazem parte da
sociedade, exercem um poder disciplinador, preparando os indivíduos para a
relação poder-dever (FOUCAULT, 2004). Consequentemente, não interessa, e por
isso os sujeitos não conseguem expressar claramente seus sentimentos. Devido a
isso, fica-se sempre imaginando o que os outros pensam ou acham que é certo
dizer ou fazer; por sua vez, há um esquecimento de se olhar para dentro do
“eu”12.

12 “Sobre como achamos que os outros estão se comportando do que realmente estamos sen-
tindo: A. “Sinto-me insignificante para as pessoas com quem trabalho”. A palavra insignifi-
Justiça Restaurativa e Políticas Públicas: uma análise a partir da teoria da proteção integral 77

Sabe-se que o poder exerce uma atração sobre os seres humanos; por
isso, é denotado como uma das mais legítimas emoções, suas motivações são os
resultados, pois sempre se age para ser mais. A terminologia poder deriva do
latim potere, “ser capaz” (é energia). Portanto, sem poder não há ação ou movi-
mento. Logo, ele pode ser utilizado como um instrumento negativo para a satisfa-
ção do ego ou a serviço da vida, como energia de compartilhamento e não de
imposição. Assim, também pode-se entender por poder “a capacidade e habilida-
de de mudar nossas vidas”. “É a habilidade de definir as necessidades humanas
e resolvê-las.” “Poder é energia” (CLARET, 1996, p. 6).
As necessidades humanas básicas são compartilhadas por todos os sujei-
tos, independentemente da condição e da posição social que cada um detém.
Para a Comunicação Não Violenta, as pessoas geralmente confundem estratégias
com necessidades13. Um exemplo bem simples e claro é quando afirmam “ter
necessidade do dinheiro”. O dinheiro não é uma necessidade, é uma estratégia
de que se vale o ser humano para satisfazer uma necessidade, podendo ser a
autonomia, a autoafirmação, o amor, o calor humano, a comunhão espiritual (be-
leza, harmonia, ordem, paz), as necessidades físicas (abrigo, água, alimento,
expressão sexual), entre outras (ROSEMBERG, 2006, p. 86-87). Além do dinheiro,
o poder também não é uma necessidade básica do ser humano, embora ele seja

cante descreve como acho que os outros estão me avaliando, e não um sentimento real, que,
nessa situação, poderia ser “Sinto-me triste” ou “Sinto-me desestimulado.” B. “Sinto-me
incompreendido.” Aqui, a palavra incompreendido indica minha avaliação do nível de com-
preensão de outra pessoa, em vez de um sentimento real. Nessa situação, posso estar me
sentindo ansioso, ou aborrecido, ou estar sentindo alguma outra emoção. C. “Sinto-me igno-
rado”. Mais uma vez, isso é mais uma interpretação das ações dos outros do que uma descri-
ção clara de como estou me sentindo. Sem dúvida, terá havido momentos em que pensamos
estar sendo ignorados e nosso sentimento terá sido de alívio, porque queríamos ser deixados
sozinhos. Da mesma forma, terá havido outros momentos em que nos sentimos magoados por
estar sendo ignorados, porque queríamos participar.” (ROSEMBERG, 2006, p. 70-71)
13 “As necessidades básicas (de vida, de segurança, de filiação e de afeição, de respeito e de
dignidade pessoal, e de individuação ou autonomia), as emoções humanas básicas e as capa-
cidades humanas básicas são, ao que parece, neutras, pré-morais ou positivamente ‘boas’. A
destrutividade, o sadismo, a crueldade, a premeditação malévola etc. parecem não ser intrín-
secos, mas, antes, constituiriam reações violentas contra a frustração das nossas necessida-
des, emoções e capacidades intrínsecas. A cólera, em si mesma, não é má, nem o medo, a in-
dolência ou até a ignorância. É claro, podem levar (e levam) a um comportamento maligno,
mas não forçosamente. Esse resultado não é intrinsecamente necessário. A natureza humana
está muito longe de ser tão má quanto se pensava. De fato, pode-se dizer que as possibilida-
des da natureza humana têm sido, habitualmente, depreciadas”. (MASLOW, [s.d.], p. 27-28)
78 André Viana Custódio – Marli Marlene Moraes da Costa – Rosane Teresinha Carvalho Porto

empregado como instrumento negativo para alimentar o ego, e utilizado como


estratégia representando um ato a serviço da vida, não como mecanismo de ma-
nipulação e, sim, como compartilhamento sem imposição. De certo, o poder (latim
potere, “ser capaz”) pode ser compreendido como a habilidade de definir as
necessidades humanas e resolvê-las, isto é, como energia vital (MULLER, 1995,
p. 6).
No exemplo trazido por Marshall, é possível visualizar os quatro compo-
nentes do processo da Comunicação Não Violenta. Trata-se de uma mãe dialo-
gando com o seu filho adolescente. “Roberto, quando eu vejo duas bolas de
meias sujas debaixo da mesinha e mais três perto da TV, fico irritada, porque
preciso de mais ordem no espaço usado em comum”. De imediato, a mãe conti-
nuaria o diálogo, utilizando do quarto componente, ou seja, fazendo um pedido
específico ao filho, desta forma: “Você poderia colocar suas meias no seu quarto
ou na lavadora?” (MULLER, 1995, p. 25).
De outro modo, com esses quatro componentes do processo da Comunica-
ção Não Violenta, os sujeitos do diálogo, à medida que tiverem suas atenções
voltadas para o processo, estabelecerão um fluxo de comunicação que venha
resultar na compaixão. Por sua vez, a utilização da expressão “Não Violenta” é a
mesma atribuição dada por Gandhi, referindo-se à compaixão que o ser humano
expressa naturalmente quando abdica da violência (MULLER, 1995, p. 21). Em-
bora algumas pessoas possam não se considerar violentas, não são raras as oca-
siões em que as palavras induzem à mágoa e à dor de si próprio ou do outro.
Nesse contexto é que a não violência torna-se, então, o fundamento e o
objetivo da filosofia (MULLER, 1995, p. 21). Ademais:
A origem do termo não-violência é o termo sânscrito abimsa empregue nos
textos da literatura búdica e hinduísta e de que é a tradução literal. É for-
mado pelo prefixo negativo a e por bimsa é, assim, a ausência de qualquer
desejo de violência, isto é, o respeito, em pensamento, palavra e acção, da
vida de qualquer ser vivo. Se nos cingíssemos à etimologia, uma tradução
possível de a-bimsa seria i-nocência. As etimologias destas duas palavras
são com efeito análogas: i-nocente vem do latim in-nocens e o verbo no-
cere (fazer mal, prejudicar) provém de nex, necis, que significa morte vio-
lenta, homicídio. Assim, a inocência é a virtude daquele que não é culpado
de nenhuma violência homicida para com o outrem. Contudo, nos nossos
dias, a palavra inocência evoca antes a pureza suspeita daquele que não
comete o mal, mais por ignorância e por incapacidade do que por virtude.
A não-violência não poderia ser confundida com essa inocência, mas esta
Justiça Restaurativa e Políticas Públicas: uma análise a partir da teoria da proteção integral 79

distorção do sentido da palavra é significativa: como se o facto de não co-


meter o mal revelasse uma espécie de impotência... A não-violência reabi-
lita a inocência como a virtude do homem forte e como a sabedoria do ho-
mem justo. (MULLER, 1995, p. 57)

Nessa perspectiva é que as ações sociais do Estado, da sociedade e dos


atores sociais que se preocupam com o interesse público devem voltar-se, pro-
pondo um redirecionamento das energias como sinônimo de poder compartilhado
para a consolidação do princípio da não violência. A aplicabilidade desse princípio
pelos atores sociais nas demandas sociais ligadas à área da infância e juventude
é um ato comunicativo, pois, diante da violência, é preciso constituir um modelo
de justiça não retributivo, pois o que representa a Justiça Restaurativa é agir pela
não violência (MULLER, 1995, p. 12-13). Quanto a esse aspecto, esse princípio
também se resume no procedimento da Comunicação Não Violenta (CNV) adotada
pelos atores sociais que, ao se disporem a estabelecer um diálogo para o melhor
enfrentamento da violência ou daquilo que ela possa gerar, procurarão observar
as necessidades básicas e humanas do outro (ROSENBERG, 2006, p. 86-87).
Da mesma maneira que a compaixão significa colocar-se no lugar do outro,
sentimento que retoma o grau de pertencimento do sujeito com relação ao grupo
e principalmente ao outro, em especial nos momentos de dor e desgraça, também
leva a abordar o mais puro sentimento que está presente nas relações sociais: o
amor14.
Portanto, a Comunicação Não Violenta também facilita nas interações sociais
e possibilita a conservação do amor nas relações sociais. Além disso, ao se pre-
tender a socialização, é preciso praticar a compaixão conforme o processo da CNV

14 “O amor é a condição dinâmica espontânea de aceitação, por um sistema vivo, de sua coexis-
tência com outro (ou outros) sistema(s) vivo(s), e que tal amor é um fenômeno biológico que
não requer justificação: o amor é um encaixe dinâmico recíproco espontâneo, um aconteci-
mento que acontece ou não acontece. Como um encaixe dinâmico recíproco espontâneo, o
amor ocorre ou não ocorre. Se o amor ocorre, há socialização; se não ocorre, não há socializa-
ção. Além disso, eu também estou dizendo que como tal, o amor é a expressão de uma con-
gruência estrutural espontânea que constitui um começo que pode ser expandido ou restrin-
gido, ou pode mesmo desaparecer na deriva estrutural co-ontogênica que começa a acontecer
quando ele acontece. E, uma vez que eu digo que os fenômenos sociais são fenômenos que
se dão na deriva estrutural espontânea co-ontogênica, eu também estou dizendo que o amor
é o fundamento do fenômeno social e não uma conseqüência dele, e que os fenômenos sociais,
em um domínio qualquer de interações, duram somente enquanto o amor persistir nesse
domínio.” (MATURANA, 1997, p. 184)
80 André Viana Custódio – Marli Marlene Moraes da Costa – Rosane Teresinha Carvalho Porto

e, acima de tudo, o amor. Sem o amor, não ocorre a socialização (MATURANA,


1997, p. 184).
De outro modo, ao aplicar os quatro componentes da CNV, resta prestar
atenção no que os outros estão observando, sentindo, precisando e pedindo;
aliás, essa parte da comunicação denomina-se “receber com empatia”. Como bem
demonstra Marshall, “a empatia é a compreensão respeitosa do que os outros
estão vivendo”. Para tanto, ela perpassa os sentidos, para que se consiga efeti-
vamente escutar com o coração, de forma a agir com compaixão e amor (MULLER,
1995, p. 133).
As emoções são as forças motoras e a intelectualidade é o instrumento.
Esta aparente contradição é transcendida, em trabalho de conflito, por um
arraigamento apaixonado a valores como a empatia, para conhecer real-
mente as partes, a criatividade, para poder ser de alguma ajuda real, e a
não-violência, que promove – nunca insulta – as necessidades básicas.
(GALTUNG, 2006, p. 209)

O sujeito que se interessa em trabalhar com adolescentes no processo


restaurativo precisa desenvolver sua empatia, bem como a capacidade de externar
o amor; caso contrário, sem sentir tais sentimentos, não terá condições de estar
inteiro com o outro. Ademais, quando o adolescente, que aceita participar de um
círculo restaurativo, ficando frente a frente com a sua vítima e com a comunidade
em que convive, ele (não esquecendo também a vítima) necessita ser ouvido e
escutado (MULLER, 1995, p. 159).
Aliás, a escuta é o ponto de partida de todo processo restaurativo, pois re-
quer ouvir de modo ativo e sem a disponibilidade de julgar. Por isso, tanto juízes,
coordenadores dos círculos restaurativos ou qualquer pessoa que esteja na con-
dição de ouvinte e tenha a pretensão de se comunicar de maneira não violenta,
valendo-se do poder da empatia, precisa observar alguns aspectos: ouvir com
atenção e receptividade, antes de expressar seu posicionamento mesmo que
contrário; explicar que tipo de conversa pretende ter, com o objetivo de ajudar o
interlocutor a cooperar, bem como evitar desentendimentos; procurar apresentar
os fatos, expressando-se com clareza, falando devagar, passando ao outro todas
as informações acerca do que está sentindo e pensando; traduzir e explicar as
críticas e reclamações (e a dos outros) em termos de reivindicação; elaborar per-
guntas abertas e criativas; expressar consideração, gratidão e encorajamento
(SCURO NETO, 2006b).
Capítulo 03
A TEORIA DA AÇÃO COMUNICATIVA EM DEBATE

A Justiça Restaurativa pauta-se na promoção de um espaço propício para o


diálogo entre os atores sociais dispostos a cooperarem e entenderem-se mutua-
mente sobre o conflito. Nesse aspecto, a Teoria de Ação Comunicativa de Habermas
demonstra relação com os seus princípios e valores, por assentar-se também no
diálogo e, por sua vez, com a disposição dos sujeitos em desenvolverem propos-
tas de entendimento pela comunicação. Cabe ainda assinalar aqui que o direito
também existe para resolução de conflitos, meio pelo qual se valem os interlocu-
tores na construção de um acordo. A condição primordial do diálogo é a abertura:
Se não existe esta mútua abertura, tampouco existe este verdadeiro vín-
culo humano. Pertencer-se uns aos outros. Quando dois se compreendem,
isto não quer dizer que um compreenda o outro, isto é, que o olhe de cima
para baixo. E igualmente, escutar o outro não significa simplesmente reali-
zar às cegas o que o outro quer. A que é assim se chama submisso. A
abertura para o outro implica, pois, o reconhecimento de que devo estar
disposto a deixar valer em mim algo contra mim, ainda que não haja ne-
nhum outro que o vá fazer valer contra mim. (GADAMER, 1997, p. 532)

Reconhece-se ainda que o direito seja um paradigma procedimentalista,


pois as práticas restaurativas representam uma alternativa de resolução de con-
flitos que se valem do procedimento do discurso interrelacionados com o princí-
pio da democracia e da solidariedade sob a perspectiva de Habermas. Em síntese,
os atores sociais ou as partes interessadas no conflito reúnem-se e abordam de
maneira argumentativa sobre as necessidades e consequências ocasionadas pelo
dano. Cada sujeito tem seu momento de fala e exposição de seus sentimentos e
argumentos sobre o fato (HABERMAS, 2003, p. 55).
Ocorre que, com a guinada linguística, o discurso é o eixo central, de ma-
neira que seus participantes ao argumentarem, por exemplo, sobre alternativas
82 André Viana Custódio – Marli Marlene Moraes da Costa – Rosane Teresinha Carvalho Porto

de reparação do dano como: trabalhos voluntários em uma creche do município,


precisam seguir regras no discurso, de tal forma que valide e legitime as preten-
sões de verdade na própria linguagem, por meio do plano de trabalho acordado.
Segundo Ludwig, devem ser observadas as seguintes regras: todos os partici-
pantes do discurso, em princípio, são iguais e não devem ser excluídos de qual-
quer argumento. Além disso, a obrigação de argumentar é sem violência, pois
pode eliminar o falante (2006, p. 50-51).
Logo, o discurso nada mais representa que o direito ao consenso. A pro-
cura pelo consenso não afasta a existência de conflitos; pelo contrário, os confli-
tos são importantes para a instauração do consenso.
Nesse contexto o Estado democrático de direito deve ser compreendido
como uma associação de cidadãos livres e iguais, e que o sentimento de pertença
a um Estado esteja ligado ao princípio da voluntariedade (HABERMAS, 2003,
p. 285). Do mesmo modo, não há de se falar em Estado democrático de direito,
sem relacioná-lo ou identificá-lo como um espaço público constituído por cida-
dãos que têm condições de exercer tal pleito por estarem vivendo em uma demo-
cracia. Não basta para um determinado Estado o sentimento de pertença entre os
atores sociais, eles precisam ter condições de exercer sua cidadania, caracterizada
pela busca incessante de reconhecimento de direitos e também de responsabili-
dades em um espaço democrático. Além disso, também na rede comunicacional
que esses atores sociais formam, precisam do direito para mediar suas relações
interpessoais e de interesse coletivo.
Entende-se que, na esfera pública, os atores sociais se predispõem a agir
orientados para o entendimento, de forma que os conflitos emanados e discuti-
dos pelos atos de fala sejam superados pelos argumentos reconhecidos e valida-
dos. Por vezes, a institucionalização do sujeito amarrado à burocracia, ao poder e
ao dinheiro tem por objetivo dissolver, fragmentar e esfacelar a esfera pública15
(HABERMAS, 2003, p. 92).
O diálogo representa, nas práticas restaurativas, a principal ferramenta na
solução do conflito pelos interlocutores, os quais deverão restar conscientizados

15 “A esfera pública pode ser descrita como uma rede adequada para a comunicação de conteú-
dos, tomadas de posição e opiniões; nela os fluxos comunicacionais são filtrados e sintetiza-
dos, a ponto de se condensarem em opiniões públicas enfeixadas em temas específicos. [...]
A esfera pública constitui principalmente uma estrutura comunicacional do agir orientado pelo
entendimento, a qual tem a ver com o espaço social gerado no agir comunicativo, não com as
funções nem com os conteúdos da comunicação cotidiana.” (HABERMAS, 2003, p. 92)
Justiça Restaurativa e Políticas Públicas: uma análise a partir da teoria da proteção integral 83

de seus direitos da corresponsabilidade que os une, para que se consiga maior


eficácia do acordo.
Portanto, dirimir conflitos pressupõe a obtenção de um ambiente de comuni-
cação pacífica e a igualdade de condições de diálogo entre os atores sociais. O êxito
da tarefa do coordenador das práticas restaurativas está condicionado à sua aptidão
de auxiliar imparcialmente o diálogo entre os envolvidos de forma a diminuir a hosti-
lidade16 e conduzi-los ao encontro das suas próprias soluções de conflito.
Embora não haja uma forma predeterminada de procedimento para a Justi-
ça Restaurativa, a Comunicação Não Violenta e a mediação têm sido empregadas
no Brasil como método no processo restaurativo. O que se mostra conveniente é
que, desde o início dos círculos restaurativos, o facilitador utilize uma linguagem
simples e direta, esclarecendo aos interessados principais e secundários que
nesse espaço de agir comunicativo deverá ser realizado um trabalho cooperativo,
no qual o respeito mútuo e a escuta são fundamentais quanto ao que cada um
pretende externar sobre o conflito.
Nesse contexto, a Teoria da Ação Comunicativa de Habermas constitui um
instrumento adequado para a Justiça Restaurativa, pois propõe um novo meca-
nismo para a aquisição da verdade, no qual os atores sociais são protagonistas
de um processo comunicativo baseado na melhor argumentação racional, e tendo
por objetivo obter o entendimento por meio da cooperação, com a exclusão de
métodos coercitivos e manipulatórios.
Na Teoria da Ação Comunicativa, a ação instrumental distingue-se da ação
comunicativa. A ação instrumental como modalidade técnica é orientada ao êxito
de fins, independentemente dos meios empregados. Na ação comunicativa, pre-
valecem a comunicação e a interação voltadas para a promoção do entendimento
entre os membros da comunidade (HABERMAS, 1987, p. 27).
Evidencia-se aqui que Habermas ao desenvolver essa teoria propôs ampliar
o conceito de razão, enfatizando a importância da linguagem na relação inter-
subjetiva. Nesse aspecto, pode-se afirmar que, para o autor, a razão é comunica-

16 “Os seres humanos não devem se deixar levar para um relacionamento de “hostilidade” com
aqueles que encontram, em que todos sejam inimigos de todos; devem antes buscar estabele-
cer um relacionamento de “hospitalidade”, onde cada um é anfitrião do outro. É significativo
que as palavras hostilidade e hospitalidade derivem da mesma raiz etimológica: as palavras
hostes e hospes referem-se ambas ao estrangeiro ou forasteiro, que pode ser excluído como
inimigo ou acolhido como hóspede.” (MULLER, 2006, p. 28)
84 André Viana Custódio – Marli Marlene Moraes da Costa – Rosane Teresinha Carvalho Porto

tiva, devendo ser observado o melhor argumento (IAROZINSKI, 2000, p. 19).


Quanto à racionalidade, em síntese, refere-se à “disposição por parte do sujeito
falante e atuante de adquirir e utilizar um saber falível” (HABERMAS, 1990a,
p. 291).
Nesse ínterim, também se distingue o agir e o falar como ações. Quando
um adolescente, exercendo certas atividades corporais no seu cotidiano, como
correr, fazer entregas e explicita falar quando se vale de atos de fala, como or-
dens, confissões, constatações. Em ambos os casos caracterizam-se em sentido
amplo: ações17.
Relevante, ainda, a distinção do agir estratégico e do agir comunicativo. No
primeiro, existe uma atuação sobre o outro que pode ensejar continuação desejada
de uma interação; já no outro, ocorre a motivação racional pelo outro para uma
adesão, por causa do comprometimento que a oferta de fala suscita.
Sobre a estrutura de perspectivas do agir orientado para o entendimento
mútuo, algumas distinções devem ser observadas: tem-se a orientação para o
entendimento mútuo e a orientação para o sucesso. Ambos dizem respeito às
consequências do agir dos atores envolvidos que possuem planos de ação. Na
orientação para o sucesso, os atores para alcançarem seus objetivos procuram
influenciar externamente, por meio de armas, bens, ameaças sobre a definição da
situação ou sobre as decisões ou os motivos de seus adversários, ou seja, a
coordenação de ação e relação desses sujeitos é estratégica ou egocêntrica.
Quanto ao grau de cooperação e estabilidade, dependerá das faixas de interesses
dos participantes (HABERMAS, 1989, p. 163-164).

17 “Ações em sentido estrito, ou seja, atividades não lingüísticas do tipo citado como exemplo,
são descritas por mim como atividades orientadas para um fim (Zwecktätigkeiten) através das
quais um ator (Aktor) intervém no mundo, a fim de realizar fins propostos, empregando meios
adequados. Eu descrevo os proferimentos lingüísticos como atos através dos quais um falante
gostaria de chegar a um entendimento com um outro falante sobre algo no mundo. Eu posso
levar a cabo essas descrições assumindo a perspectiva do agente, portanto, da primeira pes-
soa. Contrastam com esta perspectiva as descrições feitas na perspectiva de uma terceira pes-
soa, que observa o modo como um ator atinge um objetivo através de uma atividade orientada
para um fim, ou como ele, através de um ato de fala, chega a um entendimento com alguém
sobre algo. Descrições na perspectiva da segunda pessoa são sempre possíveis quando se
trata de ações de fala (‘Você me ordena, (ele ordena) que eu deixe cair a arma’); no caso de
atividades orientadas para um fim, essas mesmas descrições somente são possíveis quando
introduzidas em contextos cooperativos (‘Você me entrega (ele entrega) a arma’).”
(HABERMAS, 1990b, p. 65)
Justiça Restaurativa e Políticas Públicas: uma análise a partir da teoria da proteção integral 85

Os atores da fala, isto é, os participantes do círculo restaurativo, denomi-


nação dada ao espaço simbolicamente construído para as práticas restaurativas,
ao refletirem sobre uma norma ou ao expressarem sentimento, fazem uso de um
“mundo da vida” que lhes está implícito e que funciona como um pano de fundo,
pois fornece sustentabilidade para que se chegue ao entendimento na ação
comunicativa (IAROZINSKI, 2000, p. 27). Cada participante retira desse lugar suas
interpretações que possibilitarão uma ação no mundo, bem como interações sociais,
em cuja relação de indivíduos e sociedade18 ocorre um compartilhamento que
está em constante transformação.

O conceito “razão comunicativa” ou “racionalidade comunicativa” pode,


pois, ser tomado como sinônimo de agir comunicativo, porque ela constitui
o entendimento racional a ser estabelecido entre os participantes de um
processo de comunicação que se dá sempre através da linguagem, os
quais podem estar voltados, de modo geral, para a compreensão de fatos
do mundo objetivo, de normas e de instituições sociais ou da própria no-
ção de subjetividade. (SIEBENEICHLER, 1989, p. 66)

Desse modo, entende-se que as palavras razão e racionalidade podem ser


consideradas como sinônimos de agir comunicativo, pois os participantes de um
determinado processo de comunicação irão expor pela linguagem os seus argu-
mentos sobre os fatos de maneira racional. Dito de outro modo, pode-se dizer
que os seres humanos são racionais, mas com os seus atos ou com a sua maneira
de agir; se afastados do interesse mútuo e não se desprendendo de interesses
que alimentam exclusivamente os seus “egos”, estarão sendo irracionais
(IAROZINSKI, 2006, p. 20).
Nesse contexto, pode-se perceber ainda que a razão comunicativa faz
parte do mundo da vida, o qual é constituído por símbolos que se originam das
interações e vivências entre os sujeitos e que são transmitidos de uma geração a
outra pela comunicação. Quanto a esse aspecto, note-se a possibilidade de auto-

18 “O conceito de sociedade como um todo, como uma combinação de reprodução material


(sistema) e reprodução simbólica (mundo da vida), também é interpretado por Habermas
como uma conquista em relação a outros reducionismos que tomam parte pelo todo, como no
exemplo de Parsons – reducionismo sistêmico – ou Mead – reducionismo pelo aspecto de
mundo vivido. Essa concepção dual implica também a adoção das perspectivas internas do
sujeito-ator (mundo vivido) e externa não-participante e observacional (sistema), cada uma
delas preservando sua legitimidade regional.” (SOUZA, 1997, p. 43)
86 André Viana Custódio – Marli Marlene Moraes da Costa – Rosane Teresinha Carvalho Porto

conhecimento e emancipação pela liberdade que se poderá alcançar na rede de


socialização comunicativa entre os indivíduos (IAROZINSKI, 2006, p. 26).
O mundo vivido, além de criticável e instável, é um elo de conexão para
conceitos fundamentais como a cultura, a sociedade19, a reprodução material, a
reprodução cultural, a integração social e a socialização que tem relação com os
seus componentes estruturais. Denota-se que a cultura é o acervo de saber, em
que os participantes na comunicação se abastecem de entendimento sobre algo
no mundo (HABERMAS, 1999, p. 196).
Quanto ao conceito de sociedade, Habermas define-a como sendo as orde-
nações legítimas, das quais os participantes pelo processo da interação regulam e
se identificam como pertencentes a grupos sociais, ligados pelo elo da solidarie-
dade (HABERMAS, 1999, p. 196). Dentro desses grupos sociais estão localizados
os sujeitos, e estes são constituídos de personalidade. Por sua vez, a personali-
dade é entendida como as competências de linguagem e ação do sujeito, para
tomar parte no processo de entendimento e para afirmar sua própria identidade
(HABERMAS, 1999, p. 196). Logo,

El campo semántico de los contenidos simbólicos, el espacio social y el


tiempo histórico constituyen las dimensiones que las acciones
comunicativas comprenden. El entretenimiento de interacciones de que
resulta la red de la práctica comunicativa cotidiana constituye el medio a
través del que se reproducen la cultura, la sociedad y la persona. Tales
procesos de reproducción sólo se refieren a las estructuras simbólicas del
mundo de la vida. De ellos hemos de distinguir el mantenimiento del
substrato material del mundo de la vida. La reproducción material se
cumple através del medio de la actividad teleológica con que los individuos
socializados intervienen en el mundo para realizar sus fines20. (HABERMAS,
1999, p. 196-197)

19 “Em sociedades complexas, as pretensões a uma participação justa nos casos recursos da
sociedade, isto é, os direitos positivos ao bem-estar (à alimentação e à habitação, à saúde,
educação e oportunidades de trabalho) só podem ser efectivamente satisfeitas através da
mediação de organizações. Assim sendo, os direitos e os deveres individuais transformam-se
em direitos e deveres institucionais: quem tem obrigações é a sociedade organizada como um
todo – é perante ela que são defendidos os direitos positivos.” (HABERMAS, 1991, p. 170)
20 “O campo semântico de conteúdos simbólicos, o espaço social e o tempo histórico constituem
as dimensões que as ações comunicativas compreendem. O entretenimento de interações de
que resulta a rede da prática comunicativa cotidiana constitui o meio através do qual se
reproduzem a cultura, a sociedade e a pessoa. Tais processos de reprodução somente se
Justiça Restaurativa e Políticas Públicas: uma análise a partir da teoria da proteção integral 87

Percebe-se que a sociedade é complexa por ser um espaço constituído de


vários grupos sociais formados por pessoas que apresentam distintas personali-
dades e que, por sua vez, identificam-se num determinado grupo, caracterizando
o nível de pertencimento e interação social entre os demais. Do mesmo modo,
dispõe de cultura como uma das estruturas que os aproxima. Mas o que reza
dentro dessa sociedade não se encerra por aí, pois no cenário complexo há ainda
de se falar da reprodução material (intervenção dos indivíduos socializados no
mundo para realizar seus objetivos) e da reprodução cultural21, que, pelo próprio
nome, refere-se à cultura predominante no meio, que é reproduzida para as de-
mais gerações ou pessoas integrantes desse grupo ou comunidade. No que tange
à socialização, refere-se, em síntese, a capacidades interativas dos sujeitos em
responderem de maneira independente suas ações22.

referem às estruturas simbólicas do mundo da vida. Deles há de se distinguir a manutenção


do substrato material do mundo da vida. A reprodução material é completada por meio da
atividade teleológica com que os indivíduos socializados intervêm no mundo para realizar seus
fins.” (Tradução livre.)
21 “La integración social del mundo de la vida se encarga de que las situaciones nuevas que se
presenten en la dimensión del espacio social queden conectadas con los estados del mundo
ya existentes: cuida de que las acciones queden coordinadas a través de relaciones
interpesonales legítimamente reguladas y da continuidad a la identidad de los grupos en un
grado que baste a la práctica comunicativa cotidiana. La coordinación de las acciones y la
estabilización de las identidades de grupo tienen aqui su medida en la solidariedad de los
miembros, lo cual se patentiza en las perturbaciones de la integración social, que se traducen
en anomía y en los correspondientes conflictos. En estos casos los actores ya no pueden
cubrir la necessidad de coordinación que las situaciones nuevas plantean, recurriendo a las
ordenaciones legítimas existentes. Las pertencias a grupos legítimamente reguladas ya no
bastan, y el recurso ‘solidariedad social’ se hace escaso.” (HABERMAS, 1999, p. 200)
“A integração social do mundo da vida se encarrega para que as situações novas que se
apresentam na dimensão do espaço social sejam conectadas aos estados do mundo já
existentes: cuida para que ações sejam coordenadas através de relações interpessoais
legitimamente reguladas e dá continuidade para a identidade dos grupos em um espaço
suficiente para a prática comunicativa cotidiana. A coordenação das ações e a estabilidade das
identidades do grupo têm aqui sua medida na solidariedade dos seus membros, e se revela
nas intreferências da interação social, que se traduzem em anomia e nos correspondentes
conflitos. Nesses casos, os atores já não podem dar conta da necessidade de coordenação
que as situações novas demandam, tendo que recorrar às instituições legítimas existentes.
Pertencer a grupos legitimanente regulados já não basta, e o recurso ‘solidariedade social’
fica escaso.” (Tradução livre.)
22 “La socialización de los miembros de un mundo de la vida se encarga, finalmente, de que las
nuevas situaciones que se producen en la dimensión del tiempo histórico queden conectadas
con los estados del mundo ya existentes: assegura a las generaciones siguientes la
88 André Viana Custódio – Marli Marlene Moraes da Costa – Rosane Teresinha Carvalho Porto

A ação comunicativa ainda sobrevive no mundo da vida, embora esteja


sendo invadida constantemente pela ação instrumental que, por sua vez, substi-
tuiu a linguagem do sistema político pelo poder, e a linguagem do sistema eco-
nômico pelo dinheiro, transformando-o em um mundo sistêmico (FEITOSA, 2005).
Dito de maneira diversa, considera-se a Justiça Restaurativa propícia à prática
da ação comunicativa, pois a sua essência consiste em garantir aos atores sociais a
possibilidade do uso da linguagem na construção do momento da escuta.
Ainda dentro desse cenário, pode-se reconhecer que a colonização do
mundo da vida também decorre da incapacidade de o sujeito enxergar o outro,
visualizando-o apenas quando ele tem utilidade ou pelo que consome. Além disso,
as pessoas agem violentamente e alimentam rancores quando aderem a uma
identidade. Nesse sentido,

Tendo como ponto de referência uma comunidade comunicativa alargada


de forma ideal, a teoria moral abandona também todos os conceitos pré-
-sociais de pessoa. A individuação é apenas o reverso da socialização. Só
por meio de relações de reconhecimento recíproco é que uma pessoa pode
constituir e reproduzir sua identidade. Até o âmago mais interior da pessoa
está internamente ligado à periferia mais externa de uma rede extrema-
mente ramificada de relações comunicativas. A pessoa só se torna idêntica
a si própria em proporção à sua exposição comunicativa. As interações so-
ciais que formam o Eu também o ameaçam através das dependências em
que ele se implica e das contingências a que ele se expõe. A moral actua
como fonte de equilíbrio para esta susceptibilidade inerente ao próprio
processo de socialização. (HABERMAS, 1989, p. 96)

adquisición de capacidades generalizadas de acción y se cuida de sintonizar las vidas


individuales con las formas de vida colectivas. Las capacidades interactivas y los estilos
personales de vida tienen su medida en la capacidad de las personas para responder
autónomamente de sus acciones. Es lo que se patentiza en las perturbaciones del proceso de
socialización, que se manifiestan en psicopatologias y en los correspondientes fenómenos de
alienación.” (HABERMAS, 1999, p. 201)
A socialização dos membros de um mundo da vida se encarrega, finalmente, das novas
situações que acontecem na dimensão do tempo histórico, as quais estão conectadas com o
mundo já existente: assegura às gerações futuras a aquisição de capacidades generalizadas
de ações e cuida de sintonizar as vidas individuais com as formas de vida coletivas. As
capacidades interativas e os estilos pessoais de vda têm sua medida na capacidade das
pessoas para responderem particularmente por suas ações. É o que fica evidente nas
interferências do processo de socialização, que se manifestam em psicopatologias e nos
correspondentes fenômenos de alienação.” (Tradução livre.)
Justiça Restaurativa e Políticas Públicas: uma análise a partir da teoria da proteção integral 89

Em termos gerais, “a sociedade é mundo da vida e mundo do sistema, ao


mesmo tempo” (SIEBENEICHLER, 1989, p. 40), denotando diversas representa-
ções que constituem suas estruturas. Assim, podem-se localizar nesse espaço de
interação e de dualidade as ações que movimentam e dão um sentido de pers-
pectiva social aos sujeitos que ocupam o cenário comunicacional, e que, portanto,
entender-se-ão sobre algo, quando desprenderem-se de atitudes irracionais e
interagirem de maneira intersubjetiva.
De outro modo, a conjuntura dessas ações é observada dentro da socieda-
de e junto às pessoas, que, com mundos diferenciados – o subjetivo, o social e o
objetivo – compartilham experiências, vivências, e têm como pano de fundo a
própria sociedade. Por vezes, os conflitos demasiados, como a banalização da
violência, implicarão uma retomada urgente da significação da racionalização
social, da integração e da solidariedade23, pois sem isso os atores sociais não
terão condições de se entenderem. Por sua vez, entendimento é pressuposto de
ação comunicativa.

Além disso, o individualismo desencadeado pelo capitalismo, assim como a


violência, o poder, o dinheiro, a exclusão do outro na sociedade, o descaso
com as políticas públicas socioeducativas, representam as imagens distor-
cidas criadas dentro da sociedade, que, conseqüentemente, explicitam a
instrumentalidade dessas ações. (HABERMAS, 1998, p. 436)

Para que o espaço comunicativo seja construído, não significa que as polí-
ticas de atendimento e os princípios elencados no Direito da Criança e do Adoles-
cente devam ser abandonados e em seu lugar seja adotado o modelo da Justiça
Restaurativa, que é contemplado por outros países, como a Nova Zelândia. Ao

23 “Do ponto de vista de uma teoria da sociedade, o direito preenche as funções de integração
social; com efeito, associado ao sistema político configurado através das Constituições, o di-
reito assume a garantia pelas perdas que se instalam na área da integração social. Ele funcio-
na como uma espécie de correia de transmissão que transporta, de forma abstrata, porém,
impositiva, as estruturas de reconhecimento recíproco existentes entre conhecidos e em con-
textos concretos do agir comunicativo, para o nível das interações anônimas entre estranhos,
mediadas pelo sistema. Ao passo que a solidariedade – que é a terceira fonte da integração
social, ao lado do poder administrativo e do dinheiro – surge indiretamente do direito, pois
ele garante, através da estabilização de expectativas de comportamento, relações simétricas
de reconhecimento recíproco entre os titulares dos direitos subjetivos. Tais semelhanças es-
truturais entre direito e agir comunicativo que se tornam reflexivas, desempenham papel cons-
titutivo na produção e no emprego de normas de direito.” (HABERMAS, 2003, p. 308-309)
90 André Viana Custódio – Marli Marlene Moraes da Costa – Rosane Teresinha Carvalho Porto

contrário, o que se pretende é lançar mão de mais uma ferramenta que, combina-
da à legislação brasileira, contribua para que se efetivem políticas públicas de
proteção, atendimento, promoção e justiça na área da infância e da juventude. A
adoção das práticas restaurativas que podem ser recepcionadas representa a
(re)significação e o reconhecimento dos atores sociais enquanto sujeitos de di-
reitos plenos. Por isso,

O espaço público da palavra e da ação é fundamental porque existem


assuntos que requerem uma escolha que não pode encontrar seu funda-
mento no campo da certeza, pelo que, apenas através do debate público, é
que se pode lidar com tais temas de interesse coletivo que não são e não
podem ser suscetíveis de serem regidos pelos rigores do conhecimento e
que não se subordinam, por isso mesmo, ao depotismo do caminho de
mão única de uma só verdade. Desta forma, toda ação, palavra e liberdade
não se configuram em coisas outorgadas, mas requerem para surgirem a
construção e a manutenção do espaço público, vale dizer, a garantia de
condições de possibilidade. (RAMIDOFF, 2006, p. 62)

Nesse quadro, o que se busca com as práticas restaurativas pela justiça é


que as partes envolvidas no processo tenham a possibilidade de ser escutadas e
principalmente que consigam escutar, bem como reconhecer as necessidades
básicas e humanas do outro. Do mesmo modo, ao criar e possibilitar um espaço
para se exercer atos comunicativos e se buscar acordos mútuos (LUDWIG, 2006,
p. 50-51), espera-se que os atos violentos ou instrumentais sejam deixados de
lado, dando lugar ao entendimento e à compreensão mútua. Por conta disso,
quer-se abandonar antigos paradigmas baseados em uma educação repressora
ou de uma justiça punitiva, que têm por premissa adestrar e domesticar crianças e
adolescentes (MELO, 2006, p. 646), não lhes possibilitando a condição de su-
jeitos de direitos, que também se dá pelo reconhecimento da sua efetiva cidada-
nia. Logo, a emancipação dos atores sociais no espaço construído pela Justiça
Restaurativa somente se efetivará se aliada a essa política dialógica intersubjetiva
somarem-se outras políticas públicas de apoio à vítima e ao adolescente.
UNIDADE III

Capítulo 01
A RECONSTRUÇÃO DA SOLIDARIEDADE DOS ATORES
SOCIAIS A PARTIR DO ESPAÇO LOCAL – A EXPERIÊNCIA
DA JUSTIÇA RESTAURATIVA EM PORTO ALEGRE

Autor y víctima se han encontrado. Todos somos al mismo tiempo


delincuentes y víctimas, pues el mundo es unidad. En este único mundo
existen diferentes espacios de encuentro. No podríamos preguntarnos a la
manera de Heidegger. ¿Cómo se puede disponer adecuadamente un
espacio, para que brote de él, un lugar de encuentro?24 (BERISTAIN, 2007,
p. 23)

O enfrentamento de situações problemáticas ou para se conviver com o


tema da violência junto a pessoas que se encontram no período da adolescência,
no espaço local, só é possível com a existência de políticas públicas que envol-
vam a família, a comunidade e o Estado. Embora os fatores desencadeadores da
violência também sejam provenientes do cenário global, é no local que os esfor-

24 “Autor e vítima se encontram. Todos somos ao mesmo tempo delinquentes e vítimas, pois o
mundo é unidade. Neste único mundo existem diferentes espaços de encontro. Nós não
poderíamos perguntar à maneira de Heidegger. Como se pode dispor adequadamente um
espaço para que se faça dele um lugar de encontro? (Tradução livre.)
92 André Viana Custódio – Marli Marlene Moraes da Costa – Rosane Teresinha Carvalho Porto

ços devem ser centralizados para a inserção e a proteção das crianças e dos
adolescentes no atual contexto de desigualdades e exclusões sociais.
O espaço local não é um lugar sem hostilidade e isolado das consequências
oriundas da globalização, por isso toda experiência que proponha desenvolver
um trabalho sério e de mobilização social precisa estar ciente da complexidade e
da necessidade de reconstruir a solidariedade, como também resgatar o sentido
de comunidade.
A 3ª Vara do Juizado Regional da Infância e da Juventude de Porto Alegre
elaborou em parceria com algumas instituições ligadas à rede de proteção e
atendimento da criança e do adolescente o projeto piloto denominado “Justiça
para o Século 21”, que consiste na implementação do modelo da Justiça Restau-
rativa, tendo como premissa maior romper com as práticas punitivas herdadas da
Doutrina da Situação Irregular e enraizadas na cultura patriarcal e assistencialista.
Assim, se propõe a mudança comportamental e de atitudes, de tal maneira que o
agir comunicativamente dos atores sociais, baseando-se na linguagem não vio-
lenta, ocasione transformações institucionais e estruturais para um melhor aten-
dimento de adolescentes.
A expressão “práticas restaurativas” é empregada para se referir em geral
às diversas estratégias judiciais ou não que possibilitem aos envolvidos outra
abordagem como resposta à infração para a resolução do conflito. Saliente-se que
o procedimento adotado é o modelo dos círculos, baseado na experiência neoze-
landesa na área da Infância e da Juventude.

O apoio ao trabalho é dado pela Associação de Juízes do Rio Grande do Sul


(AJURIS). Na Escola Superior da Magistratura é oportunizado um espaço
dialógico de discussões a respeito das práticas restaurativas para comple-
mentar as propostas elencadas no Direito da Criança e do Adolescente, sob
a égide da Teoria da Proteção Integral, denominada paradigma emancipa-
tório. (BRANCHER, 2006a, p. 671)

Note-se que todo paradigma propõe-se ao rompimento de antigos dogmas


e de visões reacionárias, que têm exclusivamente como objetivo legitimar a puni-
ção. Mas com a teoria da proteção integral e o paradigma restaurativo, o que se
deseja é construir uma nova percepção sobre o adolescente, de tal forma que o
olhar seja focalizado para a responsabilidade e às necessidades dos atores sociais.
Justiça Restaurativa e Políticas Públicas: uma análise a partir da teoria da proteção integral 93

Desse modo, faz-se também necessária a ruptura dos discursos do poder que
encobrem a realidade social (FEFFERMANN, 2006, p. 126).

O Estado democrático, agente responsável pela promoção dos direitos hu-


manos nas democracias modernas, tem papel importante a ser exercido na
sociedade brasileira em especial, possuidora de um elevado grau de desi-
gualdade social e de crescimento da violência. Essa realidade tende a se
agravar com os efeitos da globalidade. No entanto, diante desse quadro,
as instituições do Estado se eximem de sua responsabilidade na promoção
dos direitos humanos e buscam a ordem social por meios que são legais,
mas nem sempre legítimos. (FEFFERMANN, 2006, p. 127)

Embora existam discursos do poder que se voltem apenas aos interesses


de uma minoria e das instituições estatais em nome do “bom funcionamento”,
valendo-se do poder para legitimar a violência, a exclusão social e a estigmatiza-
ção, não se pode generalizar e deixar de perceber as ações sociais ousadas como
as restaurativas, por parte dessas mesmas instituições que se permitem por meio
de agentes transformadores, como juízes e operadores da área da infância e ju-
ventude, rever alguns procedimentos com relação à adolescência e à prática do
ato infracional, à vítima e à comunidade (FEFFERMANN, 2006, p. 127).
Portanto, nesse cenário de reflexões, as diferentes atividades e os eixos de
aplicação do projeto são apoiados pelo Ministério da Justiça e pelo Programa de
Desenvolvimento das Nações Unidas (PNUD), via outro projeto denominado:
“Promovendo Práticas Restaurativas no Sistema de Justiça Brasileiro”, e também
pela Organização das Nações Unidas para Educação, a Ciência e a Cultura
(Unesco), com o apoio da Rede Globo, por meio do Programa Criança Esperança.
Contam ainda com o apoio operacional da Promotoria de Justiça e da Defensoria
Pública em atuação na 3ª Vara, a Fundação de Atendimento Socioeducativo
(FASE), que executa as medidas socioeducativas privativas da liberdade; a Fun-
dação de Assistência Social e Cidadania (FASC), órgão da assistência social muni-
cipal responsável pela execução das medidas socioeducativas de meio aberto; a
Secretaria Estadual de Educação; a Secretaria Municipal de Educação; e a Secre-
taria Municipal de Direitos Humanos e Segurança Urbana, através da Guarda Muni-
cipal (BRANCHER, 2006a, p. 677).
Como se pode observar, vários são os órgãos envolvidos com a experiência
das práticas restaurativas em Porto Alegre, que tem seu eixo principal na 3ª Vara
do Juizado da Infância e Juventude, responsável pela atribuição de execução de
94 André Viana Custódio – Marli Marlene Moraes da Costa – Rosane Teresinha Carvalho Porto

medidas socioeducativas. Nessa dimensão, outras dez instituições ligadas à área


da infância e juventude também estão engajadas no projeto principal. Isso se
consolida com um protocolo formal entre as instituições, devendo oferecer recursos
humanos e, principalmente, o comprometimento para implementação das práticas
da Justiça Restaurativa na resolução de situações de violência que envolvem crian-
ças e adolescentes.
Nesse contexto, o acolhimento da Justiça Restaurativa baseia-se no buscar
alternativas que contribuam para a redução do dano de violência cultural e insti-
tucional, presentes nas formas usuais de responsabilização dos adolescentes.
Partindo desse pressuposto, são planejadas ações concretas que sirvam para
humanizar os serviços prestados pelo Sistema de Justiça, em conformidade com
os preceitos do Direito da Criança e do Adolescente. Também se preocupa para
que toda a resposta institucional não seja motivadora de outro ato de violência,
ao contrário, que contribua com seu papel social na redução da violência. Por
isso, as práticas restaurativas devem ser utilizadas como procedimento de ressignifi-
cação das medidas socioeducativas (BRANCHER; AGUINSKI, 2007).
Em decorrência disso, torna-se imperativo, para a aplicação e para o cum-
primento de qualquer uma das medidas dispostas no artigo 112 do Estatuto da
Criança e do Adolescente, que seja estabelecida uma proposta socioeducativa que
favoreça, através de estratégias pedagógicas transdisciplinares, o desenvolvi-
mento pessoal pelos valores humanos e a constituição da dignidade da pessoa
humana pelo respeito e pela solidariedade afetiva pelo outro (RAMIDOFF, 2006,
p. 82).
No início de 2006, deu-se a criação da Central de Práticas Restaurativas
(CPR), com o propósito de desenvolver as práticas restaurativas em processos
judiciais que são oriundos do sistema de atendimento ao ato infracional, junto ao
Centro Integrado de Atendimento da Criança e do Adolescente (CIACA), onde se
encontra o Projeto Justiça Instantânea (JIN), em Porto Alegre, representando a
atuação integrada entre o Poder Judiciário, o Ministério Público e a Delegacia
Especializada da Criança e do Adolescente (DECA) (BRANCHER, 2006a, p. 677). A
esse respeito:

A maior parte dos encaminhamentos tem ocorrido nos processos de co-


nhecimento, provindos da audiência inicial de apresentação (equivalente
ao interrogatório do processo criminal). Nesse momento, o juiz pode sus-
pender a audiência e encaminhar o caso ao círculo restaurativo, cujo acor-
do poderá subsidiar a aplicação da medida em prosseguimento, ou desde
Justiça Restaurativa e Políticas Públicas: uma análise a partir da teoria da proteção integral 95

logo ajustar genericamente a medida, encaminhando ao círculo para, já


sob a competência do juízo do processo de execução, serem melhor espe-
cificados os compromissos a serem abrangidos no cumprimento da medi-
da. Também na audiência de instrução poderá tornar-se oportuno o enca-
minhamento, especialmente porque este será o momento do contato do
juiz com a vítima. Especialmente nos fatos de maior impacto psicológico,
como por exemplo em roubos, esse momento, que em regra sucede algu-
mas semanas após a ocorrência, pode se afigurar emocionalmente mais
propício para abordagem da vítima – preferencialmente depois da sua oiti-
va pelo juiz, até então, nesses casos, mantendo-se os moldes do processo
convencional. Também nos processos de execução de medidas sócio-
-educativas são originados casos para atendimento em círculos restaurati-
vos, em regra nos casos de adolescentes privados da liberdade e em razão
da identificação de peculiaridades que o tornam propício para o procedi-
mento, o que se verifica nas audiências de revisão (semestrais) da medi-
da. Além destes, alguns outros casos, ainda poucos é verdade, também já
têm sido encaminhados para os círculos diretamente pela promotoria, me-
diante exclusão do processo (procedimento diversório). (BRANCHER,
2006a, p. 678)

Pelo fato de a adolescência ser uma fase das transformações psicossociais


e do abandono da identidade infantil na busca pela emancipação enquanto su-
jeito pertencente a uma comunidade, o diálogo como método de contato e com-
preensão de tais mudanças, inclusive as que passam pela transgressão, é primor-
dial e significativo para a retomada de posições e a devida construção de cone-
xões. Dito de maneira diversa, “o diálogo permite romper com o mundo das ilu-
sões e construir a estrutura simbólica necessária” (VEZZULA, 2004, p. 35-36).
Nesse contexto, o procedimento restaurativo decorre de três etapas dis-
tintas: pré-círculo (preparação); círculo (realização do encontro) e pós-círculo
(acompanhamento). Saliente-se que os atores sociais (vítima, ofensor e comuni-
dade) são relevantes para a realização dessas fases. Além disso, os coordena-
dores (geralmente assistentes sociais) serão responsáveis pelo desenvolvimento
do procedimento. Portanto, no pré-círculo os coordenadores se apropriam do
caso, inteirando-se de todas as informações necessárias para se ter clareza dos
fatos (BRANCHER, 2006a, p. 686).
O procedimento restaurativo contempla todas essas etapas de maneira vin-
culada e interdependente, pois a divisão em etapas é apenas de natureza didática
96 André Viana Custódio – Marli Marlene Moraes da Costa – Rosane Teresinha Carvalho Porto

e operacional. Nenhuma das etapas deve ser extinta, pois tem relevância na práti-
ca propriamente dita.
Note-se que o pré-círculo é uma fase preliminar, que tem por finalidade
aproximar e preparar as partes envolvidas para o dia do círculo, procurando fixar
o encontro dos atores nos fatos e evitar uma discussão desgastante sobre o con-
flito. Ademais, é apresentado aos envolvidos o resumo dos fatos e como se dará
o círculo, em data e local definidos pelos coordenadores, que são técnicos da
justiça. Aliás, todo o trabalho desenvolvido por eles é devidamente documentado
(BRANCHER, 2006a, p. 686).

Além do ofensor e da vítima, e das pessoas espontaneamente indicadas


por eles para participarem do círculo, o Coordenador pode estimulá-los a
fazer outras indicações ou indicar ele próprio outras pessoas cuja presença
considere importante. Os convidados podem ser listados como apoiadores
(pessoas do relacionamento afetivo dos envolvidos, como parentes, ami-
gos, empregadores, etc.) ou como referências comunitárias (líderes comu-
nitários ou religiosos, policiais, testemunhas, professores e outros profis-
sionais relacionados às pessoas e/ou ao caso). Inicia pelo ofensor, o que
evita a frustração da vítima que já tenha consentido, caso depois o ofensor
se recuse. No que se refere ao ofensor e à vítima, o convite é feito mediante
contato pessoal (reuniões pré-círculo), para o qual se recomenda a mobili-
zação e a presença dos apoiadores. São prestados esclarecimentos sobre
o projeto, sobre a JR, funcionamento do círculo, participantes, expectativas,
efeitos. Confere-se o resumo dos fatos, marca-se a data, horário e local
para o círculo. (BRANCHER; AGUINSKI, 2007)

Em síntese, o pré-círculo é a fase preparatória, em que a equipe responsá-


vel pela prática restaurativa do Juizado realiza os contatos e os convites e fornece
orientações sobre o que será desenvolvido na próxima fase, o dia do círculo.
Pranis define o círculo como:

Un proceso que reúne as personas que desean resolver un conflicto,


reconstruir vínculos, sanar, brindar apoyo, tomar decisiones o realizar
otras acciones en las cuales la comunicación honesta, el desarrollo de los
vínculos y el fortalecimiento comunitario son parte esencial de los
resultados esperados25. ([s.d.], p. 7)

25 “Um processo que reúne as pessoas que desejam resolver um conflito, reconstruir vínculos,
reparar uma transgressão, oferecer apoio, tomar decisões ou realizar outras ações nas quais a
Justiça Restaurativa e Políticas Públicas: uma análise a partir da teoria da proteção integral 97

O círculo é caracterizado pela reunião, em um determinado lugar, com o


coordenador, a vítima, o adolescente e familiares ou amigos das partes principais
que exercerão concomitantemente o papel de comunidade. Nesse encontro, em
que as partes ficam sentadas em círculo, o principal objetivo está na proposição
de acordos. E mesmo que a vítima não compareça, admitem-se outras formas de
manifestação de sentimentos (gravação em fita, vídeo, carta etc.) Em última ins-
tância, o acordo é consignado em termo. Essa etapa é delimitada por quatro mo-
mentos distintos. No primeiro momento, o foco é a vítima que fala sobre os seus
sentimentos e as necessidades atuais dos fatos. Em ato contínuo, o ofensor diz o
que ele ouviu da vítima. Depois ela confirma se foi ou não compreendida pelo
ofensor. Logo após, podem manifestar-se a respeito as pessoas da comunidade
de apoio da vítima (BRANCHER, 2006a, p. 686).

No segundo momento, o foco é o ofensor que também manifestará seus


sentimentos e suas necessidades atuais decorrentes dos fatos. Em segui-
da, o coordenador pergunta à vítima o que ela ouviu o ofensor relatar. De-
pois o ofensor confirma se foi ou não compreendido pela vítima. E, por
fim, podem também externar os seus atos de fala a respeito dos fatos as
pessoas da comunidade de apoio ao ofensor. (BRANCHER; AGUINSKI, 2007)

Por conseguinte, o terceiro momento é direcionado aos fatos. Nessa ocasião,


o ofensor fala sobre as necessidades que estava procurando atender no momento
em que praticou o ato infracional. A vítima diz o que ouviu do ofensor externar
verbalmente e ele confirma se foi compreendido. Em seguida, podem falar a res-
peito as pessoas das comunidades de apoio. E o quarto momento diz respeito ao
acordo.

Essa etapa é introduzida fazendo um resumo das anteriores, mediante a


recapitulação das necessidades não atendidas manifestadas pelos partici-
pantes. A seguir, o coordenador encorajará os participantes a fazerem
propostas para um provável acordo que lide com as necessidades antes
registradas, para assegurar a reparação ou compensação das conseqüên-
cias da infração, e para que o fato não se repita: o ofensor fala se existe
alguma coisa que ele poderia dizer ou fazer para a vítima. A vítima fala se
aceita. A vítima fala se existe alguma coisa que poderia dizer ou fazer para

comunicação honesta, o desenvolvimento de vínculos e o fortalecimento comunitário são parte


essencial dos resultados esperados.” (Tradução livre.)
98 André Viana Custódio – Marli Marlene Moraes da Costa – Rosane Teresinha Carvalho Porto

o ofensor. O ofensor fala se aceita. As comunidades de apoio falam se há


alguma forma de contribuir e apoiar no que foi proposto pelo ofensor e ví-
tima. (BRANCHER; AGUINSKI, 2007)

Os resultados do círculo (notícia sobre sua realização, relatório de conteú-


do e documentação do acordo) devem ser comunicados pelo coordenador à pes-
soa responsável (juiz, diretor, técnico etc.) pelo encaminhamento do caso ao
procedimento restaurativo. Por fim, no pós-círculo, o coordenador deverá manter
contato com as partes envolvidas a fim de observar se as tarefas estipuladas du-
rante o acordo foram ou não cumpridas. Ademais, nos casos judiciais, quando o
acordo contemplou a aplicação de medida socioeducativa, o acompanhamento
posterior será realizado pelo técnico da medida. Portanto, a função do coordena-
dor é verificar se o atendimento está sendo efetivado e acionar o Sistema de Jus-
tiça quando constatar qualquer alteração. Salienta-se que todos os procedimentos
e acompanhamentos realizados pelo coordenador deverão ser informados, via
relatório complementar. Se o acordo deixar de ser cumprido, uma nova avaliação
sobre o caso será feita pelos responsáveis pelo encaminhamento. Entre as solu-
ções possíveis, pode-se decidir pela realização de novo círculo restaurativo, pela
realização de um círculo familiar e pelos encaminhamentos convencionais
(BRANCHER; AGUINSKI, 2007).
Las diferentes funciones de los círculos les dan su nombre, círculos de
diálogo, círculos de sanación, círculos de planificación, círculos de
sentencia, círculos de celebración, siendo “círculos de paz” el de uso más
genérico, así como el que se utiliza para denominar los círculos para la
solución de conflictos. Los “Círculos” presentam una alternativa a los
procesos comúnmente utilizados para resolver conflictos y relacionarse,
los cuales muchas veces se fundan en la jerarquía y aplican enfoques
bidimensionales, como el de ganar-perder, víctima-salvador, inclusión-
exclusión, blanco-negro. Aunque que los círculos tienen su origen en las
tradiciones nativas y aborígenes de Nueva Zelandia y Norte América,
principalmente, son comunes y han sido utilizados por gran parte de las
comunidades indígenas del mundo. Los círculos congregan a las personas
de manera tal que se genera confianza, respeto, intimidad, buena
voluntad, sentido de pertenencia, generosidad, solidarieda y reciprocidad
entre ellas. Es un proceso que no trata de cambiar a los otros, siendo más
bien una invitación para cambiar una misma y su relación con la
comunidad; entendiendo por comunidad, la familia, el grupo de trabajo, la
junta escolar, la iglesia, o la asociación de vecinos. Los círculos tienen
Justiça Restaurativa e Políticas Públicas: uma análise a partir da teoria da proteção integral 99

mecanismos para crear un espacio “sagrado” que derriba las barreras


entre las personas, abriéndoles nuevas posibilidades de relacionarse, de
colaborar y de comprenderse mutuamente26. (PRANIS, [s.d.], p. 8)

Segundo Damásio (2007), o consenso é o pressuposto fundamental da


Justiça Restaurativa, que adota o círculo restaurativo como procedimento nas suas
práticas, pois pressupõe um acordo livre e consciente entre as partes envolvidas
no conflito. Ao revés, caberá às partes recorrer aos procedimentos tradicionais da
justiça.
O problema com relação ao crime diz respeito à geração de oportunidades
para entender e praticar a democracia na comunidade de uma nova ma-
neira. Já está claro que a criação de comunidades seguras exige o envolvi-
mento ativo dos cidadãos. Exige uma retomada do envolvimento de todos
os cidadãos no processo de determinar normas compartilhadas, considerá-
-las como sendo da responsabilidade de todos e determinar a melhor for-
ma de resolver violações, de um modo que não aumente o risco à comuni-
dade. Diversos processos originados nas culturas indígenas e adotados
pelo movimento da justiça restaurativa usam decisões consensuais e per-
mitem que todos participem nas decisões. Duas características levam o
nosso conceito de democracia a uma nova fronteira: 1) a inclusão de todas
as partes com interesse no resultado; 2) decisões consensuais. Os proces-
sos consensuais empoderam a todos. A conquista do consenso exige que
um grupo dê atenção aos interesses daqueles que normalmente não detêm
o poder. As decisões precisam representar todos os envolvidos; caso con-
trário, não haverá consenso. Os processos consensuais têm potencial para

26 “Às diferentes funções dos círculos se dão o nome de círculos de diálogo. círculo de
reparação, círculos de planejamento, círculos de sentença, círculos de celebração, sendo
‘circulos de paz’ o uso mais genérico, assim como o que se utiliza para denominar os círculos
para as soluções de conflito. Os ‘Círculos’ representam uma alternativa aos processos
comumente utilizados para resolver conflitos e relacionar-se, os quais muitas vezes se fundam
na hierarquia e aplicam enfoques bidimensionais, como o de ganhar-perder, vítima-salvador,
inclusão-exclusão, branco-negro. Embora os círculos tenham sua origem nas tradições nativas
e aborígenes da Nova Zelândia e da América do Norte principalmente, são comuns e têm sido
utilizados em grande parte das comunidades indígenas do mundo. Os círculos congregam as
pessoas de tal maneira que gera confiança, respeito, iontimidade, boa vontade, sentido de
pertença, generosidade, solidariedade e reciprovidade entre elas. É um processo que não
tenta mudar o outro, sendo suficiente um convite para mudar a si mesmo e sua relação com a
comunidade, entendendo-se por comunidade as pessoas da família, do trabalho, da escola, a
igreja ou a associação de bairro. Os círculos têm mecanismos para criar um espaço ‘sagrado’
que derruba as barreiras entre as pessoas, abrindo-lhes novas possibilidades de relacionarem-
-se, de colaborarem e compreenderem-se mutuamente.” (Tradução livre.)
100 André Viana Custódio – Marli Marlene Moraes da Costa – Rosane Teresinha Carvalho Porto

resultados mais fundamentalmente democráticos, uma vez que todos os


interesses devem ser levados em consideração. (PRANIS, 2006, p. 584-585)

O consenso visado no círculo restaurativo é um exercício de cidadania ativa


e de comprometimento social com os conflitos, pois permite a possibilidade de
empoderamento e tomada de decisões. Portanto, em pequenos espaços como
esses construídos pela Justiça através de ações políticas, mesmo que experimen-
tais, a conexão do diálogo intersubjetivo é uma esperança.

Cada participante do círculo é incentivado a recorrer à sua experiência de


vida para auxiliar no entendimento do problema e gerar possíveis solu-
ções. Cada história de vida tem relevância para a descoberta de uma solu-
ção que facilite a recuperação de todos aqueles afetados pelo crime. Dis-
cussões circulares sobre crimes individuais muitas vezes transformam-se
em problemas mais amplos da comunidade. O círculo oferece um fórum,
que opera sobre os princípios centrais da democracia – inclusão, igualdade
e respeito. (PRANIS, 2006, p. 585)

Destaca-se, ainda, que o círculo restaurativo no âmbito dos processos judi-


ciais é determinado pela via judicial, normalmente em audiência, com concordân-
cia das partes (defesa e MP), sendo a situação encaminhada para a equipe avaliar
a possibilidade de instauração dos procedimentos restaurativos, iniciando com
pré-círculo e com concordância das partes, realizando o círculo, e acompanhando
o acordo no pós-círculo. Participam do círculo, além do coordenador, represen-
tante da equipe, um co-coordenador, também representante da equipe, o ofensor,
a vítima e os apoiadores que eles indicaram e gostariam de contar no momento do
círculo. Eventualmente também participam representantes da rede de atendimento,
dependendo da particularidade da situação (BRANCHER; AGUINSKI, 2007).
A Central de Práticas Restaurativas representa a consolidação de um espaço
dialógico de aplicação de Justiça Restaurativa em processos judiciais junto ao Cen-
tro Integrado de Atendimento da Criança e do Adolescente (BRANCHER, 2006a).
Além disso,

É um espaço destinado à aplicação prática, testagem e avaliação das práti-


cas restaurativas, bem como à capacitação em serviço dos atuais e novos
Coordenadores de Círculos Restaurativos. Os casos envolvendo infratores e
vítimas e respectivos apoios são triados e encaminhados para realização
de Círculo Restaurativo como etapa inicial do processo de execução da me-
Justiça Restaurativa e Políticas Públicas: uma análise a partir da teoria da proteção integral 101

dida sócio-educativa, imediatamente após a sua aplicação, ou seja, em re-


gra imediatamente ou poucos dias após a ocorrência da infração. Também
são encaminhados para a Central de Práticas processos suspensos, sem
medida ainda aplicada, para que, através das práticas restaurativas, sejam
sugeridas formas pertinentes de responsabilização que serão apreciadas
judicialmente. (BRANCHER; AGUINSKI, 2007)

Ressalta-se ainda que, antes de iniciar o processo judicial, a Promotoria de


Justiça pode fazer o encaminhamento direto de casos à Central de Práticas Res-
taurativas. Iniciado o processo, o encaminhamento pode ocorrer em qualquer fase
do processo de conhecimento (JIN, 1ª e 2ª Varas) ou do processo de execução
(3ª Vara) (BRANCHER, 2006a).
Os responsáveis pela realização dos círculos restaurativos adotam algumas
providências para melhor organização do trabalho em equipe. Inicialmente regis-
tram a origem do processo, o ato cometido pelo adolescente, as medidas socioe-
ducativas que ele está cumprindo, a data da primeira audiência, a data que efeti-
vamente o caso foi distribuído para o coordenador, o prazo estipulado pelo juiz
para a entrega do relatório do círculo e a situação em que se encontra o caso
como: não iniciado (distribuído mas não acionado), pré-círculo contatos (trabalho
iniciado sem entrevistas), pré-círculo entrevista (na fase de visita aos envolvidos),
pré-círculo completo (quando toda a fase foi concluída, informando quem não
aceitou e os motivos da não continuidade), círculo familiar sem a presença da
vítima e círculo restaurativo com a presença da vítima, informando a data. E o
pós-círculo, também lançando a data de sua realização (BRANCHER, 2006a).
Capítulo 02
UMA BREVE ANÁLISE DE DADOS SOBRE A EXPERIÊNCIA
DA 3ª VARA DO JUIZADO DA INFÂNCIA E JUVENTUDE
DE PORTO ALEGRE

No ano de 2005, cem casos foram avaliados com a intenção de verificar as


condições de serem incluídos no processo restaurativo. Dessa avaliação resulta-
ram oito círculos restaurativos e todos culminaram em acordos total ou parcial-
mente cumpridos. Aliás, apenas um caso redundou em acordo não cumprido.
Diversos foram os motivos que dificultaram a realização de círculos nos demais
casos, entre eles: localização das partes, não aceitação das partes em participar,
condições desfavoráveis de saúde dos convidados, negativa de autoria do ado-
lescente, sofrimento psíquico do adolescente e o temor da vítima em participar
(BRANCHER; AGUINSKI, 2007).
No ano de 2005 totalizaram 97 casos de atos infracionais encaminhados
para a Central de Práticas Restaurativas, os quais foram distribuídos da seguinte
maneira: furto (22), roubo (33), latrocínio na forma tentada (01), atentado vio-
lento ao pudor (03), estupro (01), porte ilegal de arma (05), ameaça (06), le-
sões corporais (11), dano (08), perturbação ao trabalho (01), corrupção de
menores (01), condução de veículo sem habilitação (2) e não informado (3)
(BRANCHER, AGUINSKI, 2007). Note-se que o maior índice de atos infracionais
envolve casos de roubos, furtos e lesões corporais, ou seja, crimes contra o patri-
mônio e a pessoa.
Dos oito círculos restaurativos que foram realizados no início do projeto
“Justiça para o Século 21”, três envolviam ato infracional de roubo, dois de dano,
dois de furto e um de lesões corporais. Resultaram nesses círculos os seguintes
acordos: ressarcimento em dinheiro da metade do prejuízo da vítima, compromisso
do adolescente em realizar tratamento psiquiátrico e em conversar ao invés de
agredir, compromisso do adolescente em não cometer novos atos infracionais e
manter convivência pacífica com a vítima, pedido de desculpas à vítima e seus
pais; compromisso com sua mãe em não repetir o ato, compromisso de obedecer
104 André Viana Custódio – Marli Marlene Moraes da Costa – Rosane Teresinha Carvalho Porto

aos pais, não mais roubar e compromisso em pedir desculpas à vítima não pre-
sente ao círculo (BRANCHER; AGUINSKI, 2007).
Quanto a informações sobre o pós-círculo, que diz respeito ao acompa-
nhamento dos acordos pelos técnicos responsáveis pelas práticas restaurativas,
cinco casos foram cumpridos, um não foi cumprido, um foi cumprido parcialmente
e um sem registro (BRANCHER; AGUINSKI, 2007).
Como se pode notar, no ano de 2005, os círculos restaurativos não reper-
cutiram com a amplitude desejada pelas práticas restaurativas, pois dos vários
casos que se encontravam em condições de aplicabilidade e inserção a essa prá-
tica, apenas oito tiveram prosseguimento, o que demonstra a dificuldade de se
resolver conflitos pela não violência e principalmente de se distanciar do atual
modelo de justiça considerado retributivo, por ter nas suas práticas essencial-
mente a punição como cunho dissimulado de caráter pedagógico.
Baseado nos levantamentos desse período, a 3ª Vara do Juizado da Infân-
cia e Juventude procurou se articular e estabelecer melhor suas metas de trabalho
e abordagem com os círculos restaurativos, que centralizaram um espaço e pes-
soal qualificado para o atendimento dos casos que eram recepcionados pela Jus-
tiça Restaurativa. Assim se originou a Central de Práticas Restaurativas.
Já no ano de 2006, a Central de Práticas Restaurativas obteve um total de
133 casos distribuídos. Nesses casos, 26 círculos (19,5%) foram realizados,
destes: 20 com a participação da vítima e 06 de natureza familiar, sem a partici-
pação da vítima. Saliente-se apenas sete pós-círculos foram realizados. Os casos
em andamento, que naquele período eram 22, passaram para o ano de 2007
(16,5%), casos encerrados no pré-círculo foram 73 (54,9%) e casos não inicia-
dos e não realizados 12 (9,0%).
Um dos pontos que merece ser destacado são os casos encerrados no pré-
-círculo, que apresentaram os seguintes motivos: não admissão de autoria do fato,
oito (11,0%); ofensor e vítima não aceitaram, dois (2,7%); vítima impossibilitada
em participar, um (1,4%); ofensor impossibilitado em participar, um (1,4%);
ofensor aceitou, mas não compareceu, um (1,4%); vítima aceitou mas não com-
pareceu, um (1,4%); não localização do ofensor, quatro (5,5%); não localização
da vítima, três (4,1%); avaliação técnica, cinco (6,8%); técnicos não conseguiram
realizar o círculo; oito (11,0%); e por decisão judicial, dois (2,7%). Desses, sali-
enta-se dois pela maior proporcionalidade, 21 (28,8%), porque o ofensor não
aceitou participar; e 16 (21,9%), em que a vítima não aceitou participar.
Justiça Restaurativa e Políticas Públicas: uma análise a partir da teoria da proteção integral 105

Assim, foram definidos critérios para a escolha das demandas na aplicação


do âmbito judicial. No ano de 2005, os critérios definidos foram: admissão da
autoria do cometimento do ato infracional pelo adolescente; ter vítima identifica-
da; não ser caso de homicídio, latrocínio, estupro e de conflitos familiares. Já no
ano de 2006, os critérios de escolha das demandas foram: levar em conta os
princípios: admissão da autoria do cometimento do ato infracional pelo adoles-
cente; voluntariedade na participação; círculo com foco no fato (último ato infra-
cional); ter vítima identificada; não ser caso de conflitos familiares e violência
sexual intrafamiliar (BRANCHER; AGUINSKI, 2007).
Quanto ao sexo dos adolescentes que participaram dos círculos restaurati-
vos, a maioria é de meninos, ou seja, dos 20 círculos, apenas duas eram meninas.
Por tudo isso, os objetivos do Projeto da Justiça para o Século 21 também
se assentam na necessidade de ampliar a satisfação dos usuários pelos serviços
jurisdicionais; em humanizar substancial e pedagogicamente as medidas socioe-
ducativas; de democratizar a justiça por meio dos princípios da inclusão, da
corresponsabilidade e da participação dos atores sociais envolvidos no processo;
de envolver a comunidade nos processos de superação de conflitos e violências;
de prevenir violências, desjudicializar o atendimento e de prevenir a reincidência
(BRANCHER; AGUINSKI, 2007).
Portanto, mais da metade dos casos, no período de 2006, indicam proble-
mas que precisam ser combatidos para que as práticas restaurativas sirvam como
uma política pública socioeducativa para o enfrentamento do ato infracional.
De qualquer sorte, no ano de 2006, houve um pequeno avanço se compa-
rado ao número de círculos realizados no período de 2005, que foram apenas
oito. Contudo, não há de se esquecer que a Justiça Restaurativa representa um
projeto de pequena proporção que está em fase de avaliação para a efetiva im-
plementação. Tal mudança não é simples, pois também significa romper paradig-
mas enraizados na sociedade, como a cultura da violência, ao invés da cultura da
não violência, a qual contribui e reconhece nas práticas restaurativas uma pro-
posta de resolução de conflitos.
Embora a amostragem de dados de 2007, quando do levantamento para
esta pesquisa, ainda estivesse em aberto, pode-se observar que inclusive os pós-
-círculos que dela resultaram tornou-se fundamental também indicar no trabalho
alguns dados sobre os círculos restaurativos realizados.
No período de 1º de janeiro a 02 de agosto de 2007, a Central de Práticas
Restaurativas teve 64 casos encaminhados; desses, 19 (29,7%) círculos restau-
106 André Viana Custódio – Marli Marlene Moraes da Costa – Rosane Teresinha Carvalho Porto

rativos foram realizados e 15 (23,4%) estavam em andamento. Quanto ao total


de casos encerrados no pré-círculo, chegou-se a 30 (46,9%).
Note-se que, ainda no ano de 2007, o número de casos encerrados na fase
do pré-círculo é significativa e maior quando comparado à fase do círculo propria-
mente dita. Destaca-se ainda que desses 30 casos, 12 (40,0%) não se deu pelo
fato de a vítima não ter aceito; quatro (13,3%), porque o adolescente não assu-
miu a autoria do fato; quatro (13,3%), porque o adolescente e a vítima não
aceitaram; em três (10,0%), a vítima aceitou, mas depois desistiu; em dois
(6,7%), não foi localizada a vítima; um (3,3%), a vítima estava com problemas
de saúde; um (3,3%), não foi localizado o adolescente; um (3,3%), problemas
com avaliação técnica; em um (3,3%), adolescente e mãe não aceitaram; e em um
(3,3%), o adolescente apresentava problemas de saúde. Ainda foram encami-
nhados casos com nove medidas em meio aberto, 13 medidas em meio fechado,
seis de advertência, 34 casos suspensos na Justiça Instantânea (JIN)) e duas
remissões sem medida socioeducativa.
Observou-se que dos motivos que ocasionaram o encerramento dos casos
no pré-círculo, a maioria se deu pela não aceitação da vítima em participar do
círculo (40,0%) e pelo o adolescente não ter assumido a autoria do delito
(13,3%). É interessante notar que no ano de 2006 o maior índice de encerra-
mento do pré-círculo se deu pelo fato de o adolescente não querer participar do
círculo, representando (28,8%), e em segunda posição devido à vítima não que-
rer participar (21,9%).
Mesmo que os dados de 2007 não estejam finalizados, com uma mera
comparação é possível verificar que houve uma inversão de posição no que diz
respeito à não aceitação da vítima em participar do círculo. Esse motivo repre-
sentou 40,0% dos casos, e o mais interessante, é que a não aceitação por parte
do adolescente se reduziu significativamente (3,3%), indicando uma maior parti-
cipação e interesse do adolescente em relação à proposta restaurativa.
Além da inserção dos dados anteriores na referida pesquisa, também se
teve a preocupação de realizar uma amostragem com os casos de 2005 e 2006,
para verificar a ocorrência ou não da reincidência da prática de ato infracional
pelos adolescentes que participaram ou tinham condições de participar das práti-
cas restaurativas. Essa é uma das primeiras amostras realizadas pelos especia-
listas e responsáveis pela avaliação da Justiça Restaurativa como experimento e
alternativa de resolução de conflitos.
Justiça Restaurativa e Políticas Públicas: uma análise a partir da teoria da proteção integral 107

Neste sentido, a análise deu-se em 173 casos, dos quais apenas 41


(23,8%) reincidiram e 131 (76,2%) não reincidiram. Salienta-se que a pesquisa
foi realizada nos processos, buscando o nome do adolescente, e após inserido no
sistema on-line (sistema JIJ), verificado se ele estava respondendo a outro proce-
dimento na Justiça. O sistema utilizado pela Central de Práticas Restaurativas pos-
sibilita verificar a situação dos adolescentes até completarem os 18 anos.
Para um estudo mais detalhado, buscou-se, sobre os 133 dados fornecidos
pela 3ª Vara do Juizado Regional da Infância e da Juventude, verificar as seguintes
questões: Quantos casos no pré-círculo? Quantos casos no círculo? Quantos não
foram iniciados? Quantos que na fase do pré-círculo reincidiram? E por último um
comparativo de reincidência no pré-círculo com o círculo. Os resultados aponta-
ram que no pré-círculo houve a maior quantidade de casos, totalizando 105, o
que corresponde a 61,0%. No círculo, ocorreram 35 casos, equivalente a 20,3%,
e os casos não iniciados somaram 32, correspondente a 18,6%.
Em um outro momento, passou-se a verificar principalmente o número de
reincidências no pré-círculo e no círculo restaurativo. Note-se que os casos que
não foram iniciados apresentam uma percentagem maior de não reincidência; no
entanto, esses dados aqui não podem ser considerados com absoluta precisão.
No pré-círculo, 27 casos (25,7%) reincidiram; no círculo, apenas oito
(22,9%); e não iniciados, seis casos (18,8%), que fecham os 41 casos e equi-
valem aos 23,8 % de casos de reincidência.
No que diz respeito aos casos que não reincidiram, no pré-círculo o número
correspondente é de 78 (74,3%); no círculo, totalizou 27 (77,1%); e não iniciados
26 (81,3%), totalizando os 131 casos que correspondem a 76,2%. A reincidência
no pré-círculo foi 2,8% maior do que no círculo, apresentando uma proporção de
reincidência 12,23% maior, segundo dados analisados pelo Núcleo de Pesquisa e
Estudos Sociais (NUPES) da Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC).
Note-se que nas fases das práticas restaurativas ainda não há como obser-
var uma mudança significativa de diminuição da reincidência. Contudo, comparando
o pré-círculo com o círculo, embora sejam pequenos os indicadores, é possível
considerar que a passagem do jovem pelo círculo torna-se um contributo interes-
sante para o enfrentamento da prática do ato infracional.
A diferença proporcional não apresenta diferença substancial, mas sinaliza
e deixa evidente a importância de engajamento dos atores sociais e do trajeto da
escuta pelo procedimento da comunicação não violenta, indicando a possibilidade
de se atingir resultados positivos em maior amplitude.
108 André Viana Custódio – Marli Marlene Moraes da Costa – Rosane Teresinha Carvalho Porto

A reincidência é considerada como “reprodução social da criminalização”,


pois quanto maior a reação repressiva, maior a sua probabilidade. A instituciona-
lização e a rotulação que dela decorrem são consequências que elevam a repro-
dução de atos infracionais (SANTOS, 2002, p. 119).
Os dados demonstram alguns entraves que dificultam a efetiva concretiza-
ção do modelo da Justiça Restaurativa. Tais problemas se assentam na seara ins-
titucional no sentido de profissionais que atendam à demanda de procedimentos
restaurativos que envolvam os adolescentes. A Central de Práticas Restaurativas é
constituída de quatro profissionais que atendem os casos que são recepcionados
pelo modelo restaurativo. O número pequeno de técnicos nas abordagens res-
taurativas pode interferir significativamente na prestação de serviços de qualidade.
Outra observação interessante é o fato de as “medidas restaurativas serem
propostas após a sentença, pela vara de execução de medidas sócio-educativas,
cumulando-se a estas e, ainda correndo numa distância temporal do fato o que
prejudica sensivelmente o diálogo” (SICA, 2007, p. 226). Para o referido autor, a
cumulação das medidas pode representar uma revitimização e uma sobreposição
da justiça restaurativa sobre a justiça formal, entendendo que o processo restau-
rativo da mediação seria o mais adequado para superar tal incompatibilidade.
As práticas restaurativas não representam uma revitimização pela sistemá-
tica adotada pela 3ª Vara de Execução em Porto Alegre27, pois as medidas res-
taurativas não são impostas às partes. Entretanto, é aceitável que a distância
temporal do fato pode prejudicar o diálogo. Isso denota a necessidade de mais
técnicos para exercerem o papel de facilitadores nos os processos restaurativos.

A necessidade de que a intervenção seja imediata proporciona a significa-


ção, sempre existente, das implicações de um processo infracional e da
eventual medida socioeducativa. Por isso que longos períodos entre o ato
e a resposta, de regra, implicam que a intervenção se dê em outro adoles-

27 De acordo com a sistematização pelo NUPEDH de registros de presenças em atividades de


formação e mobilização, planilhas de registros de círculos restaurativos do Juizado da Infância
e Juventude (CPR), planilhas de registros de círculos restaurativos das escolas e guias de pro-
cedimentos restaurativos preenchidos pelos coordenadores de círculos restaurativos, o rela-
tório de 2005/2007 apontou os seguintes indicativos: nos procedimentos restaurativos reali-
zados em processos judiciais, foram 2.583 participantes; os procedimentos restaurativos rea-
lizados na execução de medidas socioeducativas totalizaram 722; os procedimentos restaura-
tivos realizados nas escolas, em torno de 104; e mobilização institucional e comunitária e
formação de recursos humanos totalizou 5.906 participantes.
Justiça Restaurativa e Políticas Públicas: uma análise a partir da teoria da proteção integral 109

cente, já modificado pelo tempo. Apesar de o tempo da ‘outra cena’ não


ser temporizável, o ato já foi encadeado simbolicamente e a intervenção é
puro ato de poder desprovido de qualquer pretensão rumo à autonomia.
Enfim, não há sentido em intervir noutro adolescente, já que as modifica-
ções são dinâmicas. Logo, salvo casos extremos, o melhor é a extinção do
processo ou eventualmente da medida aplicada porque a autonomia possí-
vel já foi alcançada por outros caminhos ou, por outra parte, deixa de exis-
tir relação entre o ato e a medida socioeducativa, sendo, no fundo, um ato
violento e intempestivo. (ROSA, 2007, p. 234)

Além disso, há a necessidade de recurso público que abarque tais propos-


tas, pois, até então, o emprego de recursos é restrito e depende de apoio da
sociedade civil e organizações interessadas a dar continuidade ao trabalho.
Capítulo 03
O RESGATE DA COMUNIDADE COMO DESAFIO DA
JUSTIÇA RESTAURATIVA

A Justiça Restaurativa tem se desenvolvido como uma abordagem promis-


sora no atendimento a adolescentes e demais interlocutores do conflito, pois o
foco está na reparação do dano e na reconstrução dos relacionamentos. Embora
os resultados práticos com algumas experiências no mundo sejam positivas, faz-se
necessário reconhecer o seu potencial enquanto instrumento de construção co-
munitária (BAZEMORE, 2006).
Portanto, para o citado autor, três princípios para a prática precisam ser
observados: o primeiro, diz respeito à reparação do dano que se pauta na cola-
boração do ofensor, da vítima e da comunidade. Todos têm sua parcela de cor-
responsabilidade sobre o fato que desencadeou o ato infracional. O segundo
princípio versa sobre o envolvimento das partes interessadas. Isso significa maior
comprometimento, exercício de participação e valorização das necessidades dos
envolvidos no processo. E o último princípio aborda a transformação na comuni-
dade, os papéis do governo e os relacionamentos. Nesse se identifica a limitação
do Estado na resolução de conflitos, reconhecendo a necessidade de se fortalecer
relações com a comunidade, que possui um papel essencial no processo de res-
posta à criminalidade (BAZEMORE, 2006, p. 605-606).
Os dados estatísticos que ilustram a pesquisa deixam clara a necessidade
de fortalecimento das relações com o Estado como fomentador e responsável
pela implementação e concretude das políticas públicas. Por isso, corrobora
Kliksberg (1997, p. 54) quando diz que o Estado é inteligente ao fomentar e
solidificar no espaço local políticas públicas conjuntamente com a família, a escola
e a comunidade. Porém, essa relação de conexão, de cooperação, não é simpló-
ria; ao contrário, os papéis socioinstitucionais precisam ser desvelados e recepcio-
nados também por políticas públicas. Os conflitos aumentarão se nenhuma tenta-
tiva for feita que parta da instituição estatal, como a do Judiciário, que tenta mo-
112 André Viana Custódio – Marli Marlene Moraes da Costa – Rosane Teresinha Carvalho Porto

bilizar os demais atores sociais para enfrentarem a violência e tornarem-se cor-


responsáveis no processo de inserção restaurativa do adolescente.
As transformações culturais são os principais desafios, mas os fenômenos
da pobreza, exclusão e as desigualdades sociais também precisam ser considera-
dos como prioridade. Note-se que a cultura profunda é algo de maior complexi-
dade e emblema a ser desvelado por toda e qualquer proposta de que se valha
para resolver conflitos. Assim sendo,
Os dois gigantes na compreensão de seres humanos, Freud e Jung, tinham
uma divisão de trabalho. Freud viu atitudes profundas por baixo de atitudes
do indivíduo. Jung viu atitudes profundas por baixo de atitudes coletivas.
Ambos viram ambas. Jung em seu trabalho com a “sombra” – as atitudes
que não admitimos ter – e Freud em seu trabalho com monoteísmo são
bons exemplos. Chamemos essas atitudes profundas de subconsciente in-
dividual e subconsciente coletivo. O “coletivo” não implica nada de miste-
rioso, apenas se refere a atitudes profundas que membros de uma certa
categoria parecem partilhar. A suposição é de que impressões similares os
tenham moldado mais ou menos da mesma maneira, expostos às mesmas
impressões: não há nenhuma suposição acerca de uma “alma coletiva” ou
algo que o valha. Usemos a expressão cultura profunda sobre o subconsci-
ente coletivo, que a cultura muito freqüentemente não reconhece. Isso, no
entanto, torna-se muito abstrato. Nosso encargo é mostrar que a cultura
profunda desempenha um papel e é importante na formação de atitudes e
comportamentos durante um conflito. Em outras palavras, a cultura de con-
flito tem de ser incluída no trabalho de conflito. (GALTUNG, 2006, p. 192)

Em linhas gerais, significa dizer que o reconhecimento de que existe a


cultura profunda para ser desvelada e enfrentada representa um avanço quando
da inserção do modelo da Justiça Restaurativa na sociedade. Faz-se necessário
que se concebam outras políticas públicas sociais básicas para a revitalização e a
consolidação das práticas restaurativas. Por isso, a construção da emancipação
dos atores sociais, tanto o ofensor, como a vítima e a comunidade, necessita de
políticas que venham ao encontro da possibilidade de se explorar os capitais
social e humano, os quais poderão servir de conexão para o estabelecimento da
comunicação e emancipação desses atores sociais, proposta por Habermas.
Por conta disso, como contribuição a essa abordagem habermasiana, inte-
ressa a retomada do conceito de comunidade e capital social, isso por saber que
Justiça Restaurativa e Políticas Públicas: uma análise a partir da teoria da proteção integral 113

a comunidade também é corresponsável pela pacificação dos conflitos. Nesse


contexto,

Tornou-se uma palavra-chave usada para descrever unidades sociais que


variam de aldeias, conjuntos habitacionais e vizinhanças até grupos étni-
cos, nações e organizações internacionais. No mínimo, comunidade geral-
mente indica um grupo de pessoas dentro de uma área geográfica limitada
que interagem dentro de instituições comuns e que possuem um senso
comum de interdependência e integração. (BOTTOMORE, 2006, p. 115)

“A justiça restaurativa trata de danos e necessidades bem como obrigações


decorrentes, e envolve todos os que sofrem o impacto ou têm algum interesse na
situação utilizando, na medida do possível, processos cooperativos e inclusivos”
(ZEHR, 2008, p. 258). Ela surgiu, em parte, da análise das necessidades e pa-
péis das vítimas, dos ofensores e das comunidades que têm interesse na justiça.
Observa-se ainda que,
Nos últimos anos, a questão comunitária vem se tornando muito mais parte
da justiça restaurativa, mas também mais complexa e contenciosa. Muitos
defensores da justiça restaurativa entendem que ela não estará completa a
menos que a comunidade esteja plenamente representada no processo
restaurativo. Alguns argumentam que as abordagens de justiça restaurati-
va, como os processos circulares, têm potencial para incentivar uma forma
mais participativa de democracia no âmbito da comunidade. Eles sugerem
que um dos critérios de avaliação da justiça restaurativa seja justamente
sua capacidade de fortalecer a comunidade. Seja como for, as comunida-
des têm interesse porque em certa medida elas também são vítimas, e
também têm obrigações, representando um recurso importante. Embora a
importância da comunidade na justiça restaurativa tenha sido enfatizada de
modo crescente, a definição de comunidade continua de grande debate.
Como definir a comunidade? O que significa na prática? Qual o papel ade-
quado do governo no tocante às iniciativas comunitárias? Alguns defen-
dem que a comunidade deveria ser proprietária e gerenciar os processos
restaurativos, enquanto outros entendem que a comunidade está por de-
mais traumatizada e doente para podermos confiar a ela esse processo.
(ZEHR, 2008, p. 254)

Para Bauman (2003), a abordagem com relação à comunidade não deve


ser feita como um lugar de compreensão mútua ou na qual não existam conflitos
114 André Viana Custódio – Marli Marlene Moraes da Costa – Rosane Teresinha Carvalho Porto

sociais, pois há uma ilusão de que nela as discussões são amigáveis e amenas,
que os interesses são voltados à coletividade em prol da harmonia, embora a
palavra comunidade evoque tudo aquilo de que se sente falta e de que se precise
para viver seguro e confiante no mundo contemporâneo28.
Nesse sentido, Sica traz à discussão as dificuldades de se resgatar o signi-
ficado de comunidade, principalmente nos grandes centros urbanos, onde são
raras as relações pessoais e o convívio nos espaços sociais. Contudo, enfatiza
que a proposta da Justiça Restaurativa é a de resgatar as relações comunitárias
(2007, p. 15). Porém,
o que se observa é que o preenchimento do conteúdo do termo “comuni-
dade” deve ser obtido de acordo com as [...] peculiaridades operativas de
cada programa [...]. Por exemplo, em certos lugares a comunidade é com-
preendida no sentido de community of concern , ou seja, aquelas pessoas
mais diretamente relacionadas com o ofensor e com a vítima (familiares,
amigos, vizinhos) e que, de alguma forma, podem dimensionar os efeitos
ou foram afetados pelo crime e colaborar para uma solução consensual.
Em outros lugares, a comunidade pode ser concebida por meio da partici-
pação de entidades da sociedade civil organizada que trabalham em de-
terminadas situações, ou seja, a regra básica é “respostas diferentes, para
contextos diferentes”. (SICA, 2007, p. 15)

Verifica-se, desse modo, que, para se obter êxito nos programas de Justiça
Restaurativa, faz-se necessária a participação da comunidade, de maneira coo-
perativa e responsável. Além disso, para que se tenham sujeitos responsáveis,
solidários, cooperativos e que se sintam pertencendo àquela respectiva comuni-
dade, torna-se relevante o reconhecimento do capital social e o seu fortaleci-
mento com as políticas públicas sociais.
No entanto, essa assertiva não é simples, pois resgatar o sentido de comu-
nidade parece uma busca incessante de um lugar que seja aconchegante e que
acolha os seus membros, independentemente das divergências de pensamento. O
28 [...] “comunidade” é o tipo de mundo que não está, lamentavelmente, a nosso alcance – mas
no qual gostaríamos de viver e esperamos vir a possuir. Raymond Williams, atento analista de
nossa condição comum, observou de modo cáustico que o que é notável sobre a comunidade
é que “ela sempre foi”. Podemos acrescentar: que ela sempre esteve no futuro. “Comunida-
de” é nos dias de hoje outro nome de paraíso perdido – mas a que esperamos ansiosamente
retornar, e assim buscamos febrilmente os caminhos que podem levar-nos até lá. (BAUMAN,
2003, p. 9)
Justiça Restaurativa e Políticas Públicas: uma análise a partir da teoria da proteção integral 115

espaço é para ser compartilhado, mesmo que o consenso se dê de maneira diversa


(BAUMAN, 2003, p. 9).
Pensar a atuação da rede de atendimento, da Justiça em parceria com a
comunidade, implica, antes de tudo, delinear o que se considera como comunida-
de. A constituição de uma comunidade define-se como um espaço constituído de
pessoas interligadas, dispõe de uma rica fonte de conexão a ser explorada, ou
seja: o capital social (PUTNAM, 1993). Significa mencionar como coabitam as
relações pessoais a que estão sujeitas ou influenciadas pelos paradoxos fortale-
cimento e fragilidade. Logo, mesmo que com interferências das desigualdades
sociais, dos fenômenos como a pobreza, a exclusão e a violência, pode-se reco-
nhecer que o capital social é um instrumento de grande valia para a instauração
da comunicação e do entendimento para dirimir conflitos sociais e prezar a coo-
peração de seus membros no enfrentamento de tais questões.
As conexões em rede, constituídas a partir de valores compartilhados e
objetivos comuns e que se referem à maneira como as pessoas convivem –
as emoções e as razões pelas quais permanecem juntas –, à forma como
se relacionam e ao modo como regulam seus conflitos e se conduzem co-
letivamente. Estas relações são geradoras de capital social: quanto mais
freqüentes e quanto mais fortes forem essas relações (“fracas”), mais ca-
pital social será produzido e reproduzido e mais capacidade terá uma socie-
dade de cooperar, formar redes, regular seus conflitos democraticamente
e, enfim, constituir comunidade. (FRANCO, 2002, p. 66)

O capital social diz respeito à capacidade de relacionamento do indivíduo,


sua rede de contatos sociais que se baseia nas expectativas de reciprocidade e
comportamentos confiáveis, que, no conjunto, melhoram a eficiência individual.
Nesse contexto, valendo-se do plano coletivo, o capital social auxiliaria na manu-
tenção da coesão social, pela obediência às normas, como também na negociação
em situações de conflitos, prevalecendo a cooperação sobre a competição, e
assim resultando em uma sociedade democrática por basear-se na associação
espontânea (COLEMAN, 1990).
Do mesmo modo, o capital social se reflete no grau de confiança existente
entre os diversos atores sociais, seu grau de associativismo e no acatamento às
normas de comportamento cívico, tais como o pagamento de impostos e os cui-
dados com que são tratados os espaços públicos e os “bens comuns” (PUTNAM,
1993).
116 André Viana Custódio – Marli Marlene Moraes da Costa – Rosane Teresinha Carvalho Porto

Ademais são distintos o capital humano do capital social. O primeiro é pro-


duto de ações individuais em busca de aprendizado e aperfeiçoamento; já o se-
gundo se fundamenta nas relações entre os atores sociais que estabelecem obri-
gações e expectativas mútuas, estimulam a confiabilidade nas relações sociais e
agilizam o fluxo de informações internas e externas, propiciando o funcionamento
de normas e sanções consentidas, ressaltando os interesses públicos coletivos
(ABRAMOVAY, 2000).
Logo, o capital social diz respeito a recursos cujo uso abre caminho para o
estabelecimento de novas relações entre os habitantes de uma determinada região
e daí sua relação com o conceito de comunidade (PUTNAM, 1993, p. 178-179).
Assim, o capital social é esse conjunto de recursos, boa parte dos quais simbóli-
cos, de cuja apropriação depende em grande parte o destino de uma certa comu-
nidade (ABRAMOVAY, 2000).
Para Schmidt (2006), a riqueza está associada ao capital social no sentido
de integração a redes sociais e a variadas formas de recursos, que possibilitam
algumas pessoas atingirem o ápice de ordem econômica. Por outro lado, os po-
bres também têm uma rede, porém com menos recursos, e obviamente, por es-
tarem integrados a outras pessoas de mesma situação econômica, não conse-
guem evitar a pobreza. Apesar das duas distinções entre pobres e ricos, já foi
levantado pela literatura da educação popular e da Teologia da Libertação que há
um elevado nível de solidariedade e cooperação entre os pobres, maior inclusive
que entre os ricos.
O capital negativo pode se dar pela desigualdade social, pelas diversas
formas de discriminação social e, portanto, a cooperação e a reciprocidade num
espaço constituído por esse tipo de capital liga indivíduos aceitos na mesma po-
sição hierárquica. Como bem esclarece Schmidt (2006), de algum modo existe um
“capital social excludente” e um capital social includente.
Assim, o referido autor diz que, quanto maior for a confiança, a cooperação
e o sistema de informações e de associativismo horizontal, maior será a capaci-
dade das instituições de apresentar políticas eficazes. Isso porque, nas regiões
em que o capital social é fortalecido, “os cidadãos participam mais, cobram mais
das autoridades e se comunicam melhor com os governantes”, já nas regiões
onde o capital social é pouco desenvolvido, “tende a prevalecer o clientelismo e o
mandonismo das elites”. O Brasil não aparece como um país cujo o capital social
seja desenvolvido, pois a presença de seus cidadãos como atores relevantes ain-
Justiça Restaurativa e Políticas Públicas: uma análise a partir da teoria da proteção integral 117

da não é expressiva (SCHIMIDT, 2006, p. 2.023). Somente com o fortalecimento


do capital social e com a construção de uma cultura política democrática, apesar
de ser uma tarefa política de grande envergadura, será possível atingir qualidade
e a efetividade tão almejadas em relação aos novos modelos de políticas públicas
em construção (SCHIMIDT, 2006, p. 2.024).
Tal ideário exige uma disposição positiva a partir do capital social do Estado
e de cada comunidade. O capital social inclui características de cooperação, reci-
procidade, construção de redes, associativismo, participação, empoderamento e
uma verdadeira sinergia do Estado e da sociedade para a efetivação de toda e
qualquer proposta de desenvolvimento social. Logo, o capital social pode servir
de uma condicionante de vantagens ou desvantagens de se pertencer a uma de-
terminada comunidade (ALBAGLI; MACIEL, 2003, p. 424).
Embora os discursos mais eloquentes se primem pela comunidade, identifi-
cando-a como o espaço local e propício para o desenvolvimento de políticas pú-
blicas de inclusão social, não se pode desconsiderar, que independentemente de
se sentir algo muito bom e próximo quando referenciada, ela pode ser uma cons-
trução imaginária, e não real. A menos que em seu bojo existam diversidades e
hostilidades e que para coabitá-la o individualismo precise ser encarado de fren-
te, alcançá-la significa também perder a liberdade. Em linhas gerais, segurança e
liberdade não coabitam o mesmo espaço (BAUMAN, 2003, p. 10).
Ainda que se esteja distante do que efetivamente a comunidade representa
na realidade, reafirma-se a noção de comunidade como redes de cidadãos interli-
gadas, com recursos que podem ser coletivamente mobilizados na promoção da
integração e cooperação social (BAZEMORE, 2006, p. 586-587).
Entende-se que a diminuição dos danos ocasionados pela violência estru-
tural se dá a partir da comunidade, diga-se aqui, de uma comunidade real. E isso
procede, em virtude do impulso e da valorização da função social que ela repre-
senta na inserção dos membros de uma comunidade.
A energia gerada nas comunidades pela preocupação acerca do crime pode
ser canalizada para processos que aumentam a participação democrática
na criação de comunidades fortes, que assumam a responsabilidade pelo
bem-estar de todos os membros, incluindo vítimas e ofensores. Os processos
consensuais têm potencial para revigorar as democracias ocidentais, com a
participação popular genuína nas decisões coletivas que moldam as vidas
dos cidadãos. O próprio conceito de justiça exige a inclusão, voz igual e
decisões que representam todos os interesses. Os processos consensuais
118 André Viana Custódio – Marli Marlene Moraes da Costa – Rosane Teresinha Carvalho Porto

cumprem esses objetivos de forma mais completa que a votação pela von-
tade da maioria. Nessa nova forma de responder ao crime estão as se-
mentes para um modo de praticar todas as novas funções democráticas.
(PRANIS, 2006, p. 609)

Como bem esclarece Costa (2006, p. 18), referindo-se às ideias de Bursik,


as comunidades sofrem significativas interferências dos fatores sociais e ambientais,
o que acarreta uma maior ou menor distinção na proporção da natureza de crimes
que a constituem e como se distribuem em seu espaço sociodemográfico. Desse
modo, para planejar estratégias de enfrentamento e políticas públicas que envol-
vam principalmente a sua participação no processo inclusivo de seus membros, é
fundamental o diagnóstico das condições de violência que recaem sobre determi-
nada comunidade, para tentar compreender e sinalizar em direção à concretude de
políticas públicas e do atendimento às necessidades humanas.
Embora fatores sociais e ambientais interfiram na formação de cada comu-
nidade, para que se possa explorar a participação na resolução de conflitos que
digam respeito aos seus membros, outras políticas públicas precisam ser imple-
mentadas para que possam dar sustentabilidade e voz ativa ao processo restau-
rativo. Dito de outra forma, o que se verifica é que o Estado não pode somente se
preocupar com as políticas públicas socioeducativas, pois essas representam, na
sua grande maioria, um estágio avançado do problema, quando as políticas públi-
cas básicas de atendimento devem proporcionar o atendimento desde a primeira
infância, como propõe o Direito da Criança e do Adolescente, primando pela ga-
rantia de educação, saúde, moradia e apoio com programas sociais às famílias.
(COSTA, 2006, p. 19).
Mesmo que todos estejam submetidos aos efeitos perversos do processo
de globalização e em virtude da interdependência que ela gera, não possibilitan-
do autonomia e liberdade na gestão de suas vidas, existem tarefas com as quais
cada pessoa não pode lidar de forma individual, mesmo que o próprio sistema
tenha imposto distanciamento em relação aos outros. Assim, para que os mem-
bros de uma comunidade consigam controlar os desafios da vida impostos por
tais tarefas – a citar, mais especificadamente, a violência e a exclusão social –
precisam agir coletivamente (BAUMAN, 2003, p. 134).
Aqui, na realização de tais tarefas, é que a comunidade mais faz falta; mas
também aqui reside a chance de que a comunidade venha a se realizar. Se
vier a existir uma comunidade no mundo dos indivíduos, só poderá ser (e
precisa sê-lo) uma comunidade tecida em conjunto a partir do comparti-
Justiça Restaurativa e Políticas Públicas: uma análise a partir da teoria da proteção integral 119

lhamento e do cuidado mútuo; uma comunidade de interesse e responsa-


bilidade em relação aos direitos iguais de sermos humanos e igual capaci-
dade de agirmos em defesa desses direitos. (BAUMAN, 2003, p. 134)

Observe-se que a comunidade pode ser o encontro do paraíso perdido,


desde que seus membros sejam educados e sintam a necessidade de comparti-
lhar e realizar tarefas coletivamente. Logo, mesmo diante de uma sociedade de
normalização e também de consumo, as pessoas ainda podem encontrar no espa-
ço local a alternativa para conectarem-se e socializarem-se.
Não se quer dizer que, na execução das medidas socioeducativas, não haja
solução para dirimir e evitar a reprodução da violência, mas os programas res-
taurativos, sem dúvida, precisam de atuação interssetorial para garantir o atendi-
mento integral ao adolescente.
Percebe-se no conjunto de dados fornecidos pela 3ª Vara do Juizado da
Infância e da Juventude que as práticas restaurativas dispõem também de ações
não sociais instrumentais, pois, embora queira-se afastar das práticas retributivas,
dando oportunidade de escuta aos atores sociais envolvidos pelo ato infracional,
a cultura da doutrina da situação irregular permanece arraigada nas estruturas
institucionais de atendimento às crianças e aos adolescentes. Além disso, mesmo
que o Direito da Criança e do Adolescente represente uma ruptura das antigas
práticas de estigmatização e negação da cidadania da criança e do adolescente, a
prática institucional tem demonstrado o contrário, pois tem forte no seu ímpeto
um caráter cultural de estigma e exclusão aos marginalizados.
Significa dizer, em linhas gerais, que a tecnicidade e o afastamento do re-
conhecimento do outro, como também a negação de inserção no espaço local,
ocasionam distorções na comunicação entre os atores sociais, o que fica claro
quando os casos de reincidência não acusam mudanças significativas quando
comparados os adolescentes que participaram apenas do pré-círculo com os que
participaram do círculo. Além disso, a burocracia e a falha nos mecanismos de
controle e acompanhamento dos adolescentes que ingressam no sistema de justi-
ça quando do cometimento de ato infracional, a citar a ausência de pesquisas
mais precisas nessa seara ou ainda em andamento, comprometem parte da
observação das práticas restaurativas.
Com relação a isso, ainda vale lembrar que a amostragem levantada nos
dados da 3ª Vara do Juizado da Infância e da Juventude serve como mote para
complementar e fundamentar alguns aspectos que deverão servir de desafios
120 André Viana Custódio – Marli Marlene Moraes da Costa – Rosane Teresinha Carvalho Porto

para que a Justiça Restaurativa atinja seu objetivo maior, que é diminuir a violên-
cia institucional. Primeiramente, é preciso reafirmar que a teoria da proteção inte-
gral visa garantir a condição e o reconhecimento da criança e do adolescente
como sujeitos de direitos. Segundo, destaca-se a necessidade de o Estado
implementar políticas públicas básicas de enfrentamento à pobreza, à exclusão
social e às desigualdades sociais. Contudo, se o locus da Justiça Restaurativa está
na comunidade, é preciso questionar: de qual comunidade se está falando?
Hodiernamente, percebem-se as dificuldades do atual sistema de Justiça da
área da Infância e da Juventude em dirimir os conflitos. Tais demandas estão
atreladas a vários motivos, em especial a pobreza, a exclusão e a desigualdade
social. Compreende-se, ainda, que a Justiça não consegue promover sozinha a
efetivação dos direitos de crianças e adolescentes, pois essa instituição repre-
senta apenas uma parte da rede de atendimento que deve ter agregada a si
outros segmentos, como o município responsável pela implementação de progra-
mas de medidas socioeducativas em meio aberto, assim como a concretude de
políticas setoriais de saúde, educação e assistência social (MELO, 2006, p. 658).
Como se verifica,

A justiça restaurativa exige uma resposta conjunta ao comportamento cau-


sador de danos entre a comunidade e o governo. A comunidade é respon-
sável por: apoiar aqueles que foram prejudicados; comunicar o impacto do
comportamento sobre a comunidade; oferecer oportunidades para que os
causadores do dano reparem perante a vítima e a comunidade; estabelecer
e comunicar expectativas de comportamento para cada membro da comu-
nidade, de uma forma respeitosa; abordar causas subjacentes do compor-
tamento indesejado. Essas responsabilidades comunitárias formam a base
para o desenvolvimento de empatia por todos os membros da comunidade.
Apoiar aqueles que foram prejudicados exige dividir a dor – um elemento
crucial da empatia.. [...] Cada membro da comunidade é responsável por
executar essas funções comunitárias. Cada um deles tem seu papel no
comportamento geral de nossos jovens. Cada membro da comunidade tem
oportunidades para praticar pequenas ações que possam reverter o ciclo
do medo dos jovens e o isolamento e afastamento resultantes experimen-
tados por eles. Os jovens respondem ao mundo da maneira como o vêem –
não foram eles que deram início a esse estado de coisas. Nossos filhos e
crianças são espelhos – reflexos de nós. (PRANIS, 2006, p. 592)
Justiça Restaurativa e Políticas Públicas: uma análise a partir da teoria da proteção integral 121

Portanto, embora a Justiça Restaurativa possa ser tida como uma política
pública de inclusão social por escutar e conclamar que os atores envolvidos se
manifestem significativamente em um determinado espaço, por si só não atende o
que se deve contemplar em uma política pública efetiva, devido à necessidade de
complementaridade de outras políticas públicas que atendam e envolvam as famí-
lias; políticas públicas que explorem a cooperação e a confiança de uma comuni-
dade (ou espaço local) para resolver seus próprios conflitos.
De qualquer sorte, pode-se dizer que a Justiça Restaurativa é uma utopia,
como a educação, a comunidade e a justiça enquanto solidariedade e acesso para
todos. Mas o que é a utopia? Para Santos,
A utopia é a exploração de novas possibilidades e vontades humanas, por
via da oposição da imaginação à necessidade do que existe, só porque
existe, em nome de algo radicalmente melhor que a humanidade tem di-
reito de desejar e por que merece a pena lutar. (1999, p. 323)

Portanto, utopia é uma categoria básica para a mobilização social e busca


de alternativas, como um modelo de justiça não punitivo, humanizador, baseado
no princípio da não violência, que possibilite o resgate das contradições entre os
espaços locais frente ao global (CUSTÓDIO, 2006, p. 79).
As ações nos espaços locais reconstroem comunidades de sentido, atribu-
indo um papel pedagógico aos movimentos sociais na medida em que os
reconhece como agentes de ação coletiva, instrumentos de pressão, de
interação e de construção de um novo conjunto de valores, agora, preocu-
pados com a afirmação e efetivação dos direitos humanos. (CUSTÓDIO,
2006, p. 79)

Embora a Justiça Restaurativa signifique uma ruptura em relação às práticas


punitivas arraigadas no atual sistema, vale frisar a relevância de se avaliar cons-
tantemente os seus resultados, mas com o cuidado e seriedade de se empregar
vários métodos com inúmeros enfoques. Ao aplicar métodos de avaliação, o olhar
retributivo precisa ser substituído pela posição restaurativa. Isso significa um
abandono dos papéis sociais de poder de autoridade exercidos na sociedade.
Uma sugestão interessante dada por Zehr, para avaliar as práticas restaurativas,
“é perguntar a todas as partes e atores envolvidos o que eles acreditam estar
fazendo e o por quê” (2006, p. 414). Nesse ponto, é possível concluir que todos
não veem as coisas da mesma maneira.
122 André Viana Custódio – Marli Marlene Moraes da Costa – Rosane Teresinha Carvalho Porto

Além dessa peculiaridade, é importante prestar contas às vítimas e aos


demais atores sociais, inserindo-os em auditorias de fiscalização e audiências
públicas. O debate, por se tratar de interesse público, deve ser estimulado entre
os vários segmentos da sociedade, que precisam participar do processo dialógico
e de escuta para que as “práticas com princípios” sirvam como mote de transfor-
mação e pacificação social na consolidação da cidadania (ZEHR, 2006, p. 415).
A justiça restaurativa alega ser sensível às necessidades dos vários indiví-
duos e atores, incluindo as vítimas, os infratores e as comunidades. Em
uma situação ideal, a justiça restaurativa cria uma arena onde as pessoas
podem estabelecer, com limites, o que a justiça significa em seu caso especí-
fico. A justiça restaurativa é pós-moderna em sua percepção de que as
nossas verdades acerca do que é justiça dependem do nosso contexto e
que o conceito de justiça deve ser formado a partir da comunidade. Gosta-
ria de concluir, portanto, com o que se tornou o meu mantra: que a justiça
restaurativa é acima de tudo uma forma de alcançar o respeito por todos e
que a humildade é imprescindível para atingir esse tipo de respeito. Na
minha concepção de humildade, está incluído não colher louros indevidos
e, mais importante, eu também incluo a consciência dos limites do que sa-
bemos: um reconhecimento de que o que eu “sei” é apenas uma visão
parcial da realidade, o que eu “sei” é inevitavelmente influenciado pela
minha formação e identidade, e o que o que eu “sei” pode não ser verda-
deiro para outras pessoas. O que é fundamental para a justiça restaurativa
é o compromisso de escutar outras vozes, inclusive as dissonantes. Se ape-
nas tivermos como base o respeito e a humildade, poderemos evitar que a
abordagem restaurativa da justiça, que nos parece tão libertadora, torne-se
um fardo ou até mesmo uma arma que pode ser usada contra as pessoas,
como aconteceu em algumas reformas passadas. (ZEHR, 2006, p. 416)

Vale mencionar que a Justiça Restaurativa também significa a tentativa de


explorar e ocupar esse espaço vazio deixado na comunidade; no entanto, reafir-
ma-se novamente a necessidade de existirem outros mecanismos e políticas que
venham ao encontro dessa proposta que não é inovadora no cenário global, mas
na seara local. Representa uma inovação, não no sentido de criação, mas de
transformação e aplicação da teoria da proteção integral. Nesse aspecto, como
mencionado antes, as distorções comunicativas no sistema de garantias de direi-
tos da criança e do adolescente prejudicam o processo emancipatório dos atores
sociais. Mas como a modernidade e as suas legislações instituídas são uma pro-
messa inacabada, vale a pena acreditar em propostas transformativas como a
Justiça Restaurativa e Políticas Públicas: uma análise a partir da teoria da proteção integral 123

Justiça Restaurativa, desde que não incorram em reproduzir sofisticadamente no


seu exercício as práticas punitivas, e seja efetivamente o que significa para Levinas:
“a justiça é um direito à palavra”29.
Partindo desse pressuposto, a Justiça Restaurativa tem como desafio a
transformação cultural, mas trabalhar nesse limite, além de ser um desafio e uma
utopia, representa uma outra possibilidade. Ocorre que a atual justiça também
apresenta falhas e principalmente a ausência do mecanismo da escuta para
aqueles que estão envolvidos diretamente com o conflito. Além disso, a transfor-
mação cultural deve passar pela educação, pois educar é falar, é comunicar atitu-
des e valores. Portanto, os seres humanos precisam aprender que a fala é a
estrutura da socialização e renúncia à violência.

Pensamos que a tarefa da educação escolar, como um espaço artificial de


convivência, é permitir e facilitar o crescimento das crianças como seres
humanos que respeitem a si próprios e os outros com consciência social e
ecológica, de modo que possam atuar com responsabilidade e liberdade
na comunidade a que pertencem. A responsabilidade e a liberdade só são
possíveis desde o respeito por si mesmo, que permite escolher a partir de
si não movido por pressões externas. (MATURANA, 2000, p. 13)

De acordo com Maturana, “toda atividade humana ocorre em conversações,


quer dizer, num entrelaçamento da linguagem (coordenações de coordenações
comportamentais consensuais) como o emocionar” (2000, p. 15).
Para Costa, a prevenção à delinquência e à não violência não é papel só da
família enquanto primeiro elemento socializador do ser humano, mas também da
escola, que tem um papel fundamental na formação do indivíduo por ser o se-
gundo elemento socializador na sua vida. A família e a escola são elementos de
valores éticos morais e sociais que conduzem o sujeito ao exercício de uma cida-
dania plena (2006, p. 14).
O verbo educar significa etimologicamente “trazer para fora” (e-ducare, de
ducere, “liderar”). Na antiga Grécia, o pedagogo era um escravo que leva-

29 “A substituição dos homens uns pelos outros, desrespeito original, torna possível a explora-
ção. Na história – história dos Estados – o ser humano aparece como o conjunto de suas
obras – vivo, ele é sua própria herança. A justiça consiste em tornar novamente possível a
expressão em que, na não-reciprocidade, a pessoa se apresenta única. A justiça é um direito à
palavra.” (LEVINAS, 1980, p. 278)
124 André Viana Custódio – Marli Marlene Moraes da Costa – Rosane Teresinha Carvalho Porto

va a criança de casa para a escola comunitária (a palavra grega paida-


gôgos vem de pais, paidos, “criança”, e agein, “liderar”). Esse passo edu-
cacional, essa jornada pedagógica que leva a criança para fora da família a
fim de chegar à escola é uma boa expressão para o propósito da educação:
transmitir ao aluno valores morais que conduzem à boa cidadania. A escola
é um espaço intermediário, um lugar de transição entre o círculo familiar e
o amplo mundo lá fora. Depois que a família fez o melhor que pôde para
garantir a segurança emocional da criança, é um dos deveres da escola
oferecer-lhe a oportunidade de descobrir a sociedade e a convivência com
eles. A escola é, portanto, um lugar especial para a socialização cívica e
política. A escola não é o mundo, mas a educação deve preparar a criança
para viver no mundo; e num primeiro momento deve proteger a criança do
mundo. A educação deve ter como principal ambição o preparo das crian-
ças para se tornarem filósofas e cidadãs. (MULLER, 2006, p. 74)

Com isso, pode-se afirmar que a educação tem um papel relevante e tam-
bém deve educar para a não violência. Para que tal proposta seja possível, não se
deve esquecer que a violência “é a expressão de algo que não conseguiu ser
dito” e que a resposta deve ser “uma tentativa de restabelecer a comunicação”.
Por conta disso, é importante que as instituições educacionais estabeleçam redes
com a comunidade e que busquem as organizações de bairro, especialmente
aqueles sujeitos que tenham um papel social de mediação ou liderança (MULLER,
2006, p. 68-69).
A educação também é uma ação comunicativa para a difusão da paz, por-
tanto reforça-se ainda mais a sua função social em preparar a comunidade pela
linguagem contra a cultura da violência (GUIMARÃES, 2005). Logo, as políticas
públicas básicas e socioeducativas como a Justiça Restaurativa devem ser traba-
lhadas no espaço local para cotejarem resultados satisfatórios.
O Estado precisa cumprir plenamente suas responsabilidades como poder
público, intervindo como agente interessado na defesa, na garantia e na
ampliação de direitos. A implementação dessa política implica a participa-
ção da sociedade e a fixação de previsões orçamentárias concretas. Como
se sabe, os Conselhos de Direitos, os Conselhos Tutelares e os Conselhos
de Assistência são atores centrais da política de assistência, cabendo-lhes
elaborar estratégias e programas de ação, com o apoio material dos res-
pectivos governos estaduais e municipais e no nível federal. Os Conselhos
devem saber combinar suas ações com as do Judiciário e do Executivo. Os
governadores e prefeitos precisam ser mobilizados para apoiar os Conse-
Justiça Restaurativa e Políticas Públicas: uma análise a partir da teoria da proteção integral 125

lhos e garantir o financiamento necessário aos programas. (VERONESE;


COSTA, 2006, p. 175-176)

A tentativa dos operadores do sistema de garantias de direitos, através dos


organismos governamentais e não governamentais, de estarem discutindo sobre
alternativas de resoluções de conflitos dentro do direito da criança e do adolescente
clarifica e reafirma o reconhecimento da justiça enquanto solidariedade, pois,
Se interpretarmos a justiça como aquilo que é igualmente bom para todos,
o “bem” contido na moral constitui uma ponte entre a justiça e a solidarie-
dade. Pois também a justiça entendida universalisticamente exige que uma
pessoa responda pela outra – e que, aliás, cada um também responda pelo
estranho, que formou a sua identidade em circunstâncias de vida total-
mente diferentes e entende-se a si mesmo à luz de tradições que não são
as próprias. O bem na justiça lembra que a consciência moral depende de
determinada autocompreensão das pessoas morais, que se sabem perten-
centes à comunidade moral. A essa comunidade pertencem todos os que
foram socializados numa forma de vida comunicativa qualquer. Indivíduos
socializados, pelos fato de somente poderem estabilizar sua identidade em
condições de reconhecimento mútuo, são especialmente vulneráveis em
sua identidade e, por isso, dependentes de uma proteção específica. Eles
têm de poder apelar para uma instância além da própria comunidade... [...]
A partir desta perspectiva, justiça significa simultaneamente solidariedade.
(HABERMAS, 2002, p. 41-42)

O sentido de responsabilidade também sugere uma “uma articulação entre


palavra e ação, não podendo haver incompatibilidade entre essas duas dimensões
do espaço público” (FARIAS, 2007).

Eis porque, com o desenvolvimento da forças produtivas e a extensão da


divisão do trabalho, o espaço é manipulado para aprofundar as diferenças
de classes. Esta mesma evolução acarreta um movimento aparentemente
paradoxal: o espaço que une e separa os homens. (SANTOS, 1992, p. 21.
Destaques do original.)

É fundamental a inserção do princípio da solidariedade no espaço público,


a partir de uma redefinição do papel da sociedade e das demais instituições,
como a família, a escola, o Judiciário, o Estado e a própria sociedade civil, tendo
por objetivo maior consolidar a gestão do social como processo de reconstrução
126 André Viana Custódio – Marli Marlene Moraes da Costa – Rosane Teresinha Carvalho Porto

solidária de mecanismos de integração e cooperação social (VERONESE; COSTA,


2006, p. 186).
No entanto, a “globalização” como um dos mais graves e consequentes
problemas sociais, tem conduzido os sujeitos a agirem instrumentalmente, isto é,
seus atos de fala como condição humana voltam-se à estratégia do sucesso indi-
vidual, e o direito acaba sendo empregado como mecanismo de controle do Estado
e do mercado, o que literalmente torna-se uma condicionante para a supressão
da solidariedade enquanto justiça, cooperação e igualdade de oportunidades aos
sujeitos de direitos (FARIAS, 2007).
A esse respeito, Dowbor se refere “ao reordenamento dos espaços, na
medida em que conceitos como ‘globalização’ trazem uma visão simplificada de
abertura e unificação dos espaços da reprodução social” (2007). Esse fenômeno,
ao fragilizar o Estado diante do mercado, demanda que os espaços das metrópo-
les, das cidades, sejam reconstruídos e fortalecidos como espaços comunitários
que, em transformação, darão outro sentido ao indivíduo, atualmente fragmenta-
do e atomizado pela economia. O seu fortalecimento enquanto cidadão no espaço
público é primordial para o enfrentamento dos conflitos sociais.
Na medida em que a construção do espaço público implica a existência de
uma referência de solidariedade entre os atores sociais, tendo a considerar
o espaço público, essencialmente, como um espaço de solidariedade. Por
outro lado, devemos também procurar pensar o espaço da solidariedade
como um espaço de diversidade. O espaço da solidariedade deve garantir
a unidade incorporando a diversidade. Unidade e diversidade devem coe-
xistir na lógica da solidariedade. (FARIAS, 2007 – Destaques do original.)

A descoberta da solidariedade, que tem suas raízes nas revoluções de


1789 e de 1848 na França, se deu no final do século XIX, na Europa, passando a
designar “uma nova maneira de pensar a relação indivíduo-sociedade, indivíduo-
-Estado, enfim, a sociedade como um todo” (FARIAS, 2007). No entanto, a soli-
dariedade não deve ser confundida com o assistencialismo ou com a filantropia,
devendo ser compreendida como “uma nova maneira de pensar a sociedade e
uma política concreta, não somente de um sistema de proteção social”, mas tam-
bém como “um fio condutor indispensável à construção e à conceitualização das
políticas sociais” (FARIAS, 2007). Embora seja uma terminologia de diversas
interpretações dentro da sociedade, constitui fator determinante para a consoli-
dação do espaço público.
Justiça Restaurativa e Políticas Públicas: uma análise a partir da teoria da proteção integral 127

O espaço público é uno e diverso, demonstrando que existe complexidade,


pois, assim como os indivíduos não são iguais, as comunidades também são di-
ferentes umas das outras, motivo pelo qual torna-se necessária a adoção de um
pensamento complexo que contribua para a reconstrução da solidariedade no
espaço público, assim como no resgate de comunidades que precisam ser res-
peitadas pelas suas peculiaridades.
A reconstrução da solidariedade pressupõe articular o sistema com o
“mundo da vida”, incorporando os aspectos espontâneos das relações
interpessoais, dos laços de afetividade que constituem o “estar-junto
antropológico”, vistos como elementos importantes das formas de solida-
riedade. As relações de amor e de amizade, por exemplo, têm a capacida-
de de combinar o Id e o Eu, permitindo combinar o desejo e a empatia,
sem identificar um ao outro. Na relação amorosa ou amigável, o sujeito se
afirma porque reconhece o outro como sujeito. (MORIN, 1997, p. 63)

Nesse sentido, a reconstrução da solidariedade deve ser explorada e arti-


culada entre os atores sociais, para que, como princípio constitucional juntamente
com o principio da cidadania, não continue a desempenhar uma mera função sim-
bólica. Associada a essa ideia está também a de reconstrução do sujeito en-
quanto ator social, pois se entende por ato social o sujeito liberto que concebe a
si mesmo a possibilidade de agir comunicativamente e, com isso, transformando o
seu entorno social. “Portanto, uma das condições da democracia é a reconstrução
do sujeito como ator social” (FARIAS, 2007).
Esta rearticulação passa por uma redefinição da cidadania, e em particular
por uma redefinição das instituições para que os espaços participativos
coincidam com as instâncias de decisões significativas. As hierarquizações
tradicionais dos espaços já são insuficientes, ou inadequadas; precisamos
de muito mais democracia, de uma visão mais horizontal e inter-conectada
da estrutura social. (DOWBOR, 2007)

O que se põe a lume, é que a redefinição da cidadania, com um viés demo-


crático na estrutura do espaço público, é o reconhecimento dado ao sujeito de
exercer o seu direito de cidadania, assim como poder afirmar que a condição
básica de cidadania é o exercício dos direitos humanos que precisam se materiali-
zar nas práticas institucionais e serem compartilhados adequadamente. (CORRÊA,
2000, p. 217). Por isso, há a necessidade de se refletir sobre a reconstrução do
128 André Viana Custódio – Marli Marlene Moraes da Costa – Rosane Teresinha Carvalho Porto

sujeito, que identifica nesse mesmo espaço diverso a solidariedade, como a local
do agir comum.

A reconstrução da solidariedade pressupõe um mundo comum onde a for-


mação da identidade não admite o esmagamento do outro. Ela é feita no
reconhecimento da alteridade e da diferença, na convivência com o outro,
com o diferente. O mundo comum não pode ser construído sem que seja
levada em conta a idéia da alteridade. (FARIAS, 2007)

Além disso, pode-se considerar que a rede de políticas públicas sociais


constituídas por atores como a família, a escola, a comunidade, o poder público e
a sociedade civil, ao também admitirem e aplicarem a justiça como sinônimo de
solidariedade, no sentido de estabelecer parcerias reconhecendo a corresponsa-
bilidade com suas crianças e adolescentes, partindo de uma cooperação e aceita-
bilidade de enfrentamento de desafios arraigados na cultura profunda, estarão
avançando no entendimento mútuo e no discurso pautado pelo consenso que
deve preponderar no espaço local.
A reflexão sobre o espaço público e a reconstrução da solidariedade põem
em evidência que, numa sociedade democrática, não há diversidade sem
historicidade compartilhada, ou seja, a diversidade não exclui a idéia de
um espaço comum, pois é a construção do espaço comum que garante a
existência da diversidade, e, inversamente, é a existência da diversidade
que garante o espaço comum. Nesse sentido, a solidariedade pressupõe a
existência de atores sociais capazes de dar um novo rumo ao processo
histórico, de iniciar algo de novo, de realizar o improvável e o imprevisível.
A sociedade é um processo complexo, aberto, inacabado, que está em
permanente desconstrução e reconstrução. (FARIAS, 2007)

Dito de outra maneira, a inserção do princípio da solidariedade como


(re)definição dos papéis socioinstitucionais dos demais atores sociais, inclusive
do Estado, é fundamental para o desenvolvimento social e à concretude de políti-
cas públicas de inclusão social (VERONESE; COSTA, 2006, p. 186). A Justiça Res-
taurativa pode ser um contributo indispensável para a construção desse novo
caminho em busca da garantia dos direitos humanos e da proteção integral de
crianças e adolescentes no Brasil.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A elaboração da presente obra tornou possível concluir que é visível a preo-
cupação de diversos países do mundo, entre eles o Brasil, com novas alternativas
de resolução de conflitos, que adotem o princípio da não violência. A Justiça
Restaurativa surgiu de movimentos sociais que se preocupavam em encontrar
alternativas diferentes ao atual sistema, que se sabe inoperante e fracassado,
pois não possibilita a escuta e a efetiva reparação do dano entre as partes envol-
vidas no conflito. O que se objetiva com esse modelo, pelo menos em tese, é
oportunizar um espaço de escuta entre os atores sociais (adolescente, vítima e
comunidade), de tal maneira que, além de contribuírem na elaboração do acordo,
exerçam os seus papéis socioinstitucionais juntamente com o Estado, para dimi-
nuírem as situações problemáticas e melhorar a prestação de serviço nas institui-
ções, a fim de se evitar a violência institucional e a violência estrutural propria-
mente dita.
Ao utilizar a Teoria da Ação Comunicativa de Jürgen Habermas, manifesta-se
a preocupação de encontrar o seu fio condutor na Justiça Restaurativa, o que foi
perfeitamente visível, ao observar que ambas enfatizam a importância do agir
comunicativo dos atores sociais, ou seja, a necessidade de um espaço público
para o exercício do diálogo como processo social de cooperação, integração e
solidariedade social. Nesse contexto, a ação não social instrumental e a ação
comunicativa são estratégias fundantes da sua teoria para tentar observar se nas
práticas restaurativas, efetivamente, se concretiza o diálogo.
Embora seja difícil de medir e controlar a intersubjetividade de cada sujeito,
pois cada um representa um mundo objetivo e subjetivo a compartilhar pelas
regras do discurso, vale lembrar que, mesmo que o sujeito externe um ato dizendo
ser verdade e no seu ímpeto esteja mentindo, o que importa para as regras do
discurso é que, o que ele externar, será considerado verdadeiro, se reconhecido e
130 André Viana Custódio – Marli Marlene Moraes da Costa – Rosane Teresinha Carvalho Porto

aceito por todos. Desse modo, mesmo que a verdade seja dissimulada, não
importará para o círculo restaurativo o sentimento de arrependimento ou veraci-
dade e sim a capacidade de se responsabilizar pelo seu ato, de tal forma que as
alternativas apresentadas para a elaboração conjunta de um acordo sejam legíti-
mas e aceitas pelos demais atores sociais. Se assim o for, pode-se afirmar que o
atual modelo de justiça não está ocupando novos espaços para continuar propa-
gando e aplicando suas práticas punitivas.
Entre as funções do direito está a sua capacidade de solucionar conflitos
pela cooperação, integração e sociabilização entre os atores sociais. Sabe-se que
os atores sociais são os sujeitos livres na condição de cidadãos, que agem comu-
nicativamente, e por meio das articulações e mobilizações sociais transformam o
seu entorno social. Além disso, considera-se o próprio direito um paradigma pro-
cedimentalista, quando, por exemplo, não se detém estritamente ao conteúdo da
norma, mas ao procedimento que se adotará para a solução de um conflito, como
as práticas restaurativas. Observe-se mais uma vez a sua inter-relação necessária
com a Teoria da Ação Comunicativa.
De sorte, a Justiça Restaurativa como espaço de diálogos é desenvolvida no
Brasil em três localidades: São Caetano do Sul, em São Paulo, Brasília, no Distrito
Federal, e em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, na 3ª Vara do Juizado Regional
da Infância e da Juventude. Salienta-se que em Porto Alegre, com a experiência,
via “Projeto Justiça para o Século 21” os facilitadores que realizam os círculos
restaurativos ou as práticas restaurativas adotam dois procedimentos para a sua
execução. O primeiro é a técnica da Comunicação Não Violenta (CNV), do psicólo-
go Marshall Rosenberg, e a segunda é a técnica da mediação. Denota-se que a
CNV trabalha com uma linguagem limpa, sem subterfúgios e que principalmente
reafirma a importância de se conduzir o diálogo entre os interlocutores, explorando
as suas necessidades humanas e básicas. Resta assim a mediação, que pode ser
considerada como processo restaurativo, porém, a abordagem emprega outras
técnicas ou terminologias diferenciadas para que se resolva o conflito. Geral-
mente se tem procurado utilizá-la com a CNV nos conflitos de natureza familiar.
Trabalhou-se na construção e reconstrução da parte histórica do Direito da
Criança e do Adolescente, com a conexão e o desvelamento do discurso assisten-
cialista, filantrópico e punitivo, que se dissimula pela violência estrutural e pelas
suas mais variadas facetas – a violência institucional e intrafamiliar – como um
discurso necessário e protetivo. Isso significa reconhecer que as práticas puniti-
vas permanecem latentes e servindo de estratégia de controle social e aniquila-
Justiça Restaurativa e Políticas Públicas: uma análise a partir da teoria da proteção integral 131

mento daqueles que, além de serem considerados “estranhos” (oriundos da


pobreza), têm sua cidadania denegada.
Nesse contexto, percebe-se a força do discurso de caráter estrutural domi-
nante na sociedade, que tende a reduzir o adolescente ao momento da prática do
ato infracional que lhe foi atribuído. O ato infracional, ou as “situações problemá-
ticas”, termo defendido por alguns autores, significa que o adolescente está ten-
tando encontrar a própria sintonia, nem que de maneira impositiva ou violenta.
Significa dizer que ele quer se fazer notar por aqueles que o tornou “invisível”,
precisa sobreviver. No entanto, não se quer encontrar aqui justificativas para os
seus atos, mas compreensão para que se possam desenvolver políticas públicas
ou de atendimento que tenham nas suas diretrizes “o agir comunicativamente”,
valendo-se da linguagem do amor, do interesse mútuo e da solidariedade
enquanto justiça.
Ademais, mesmo com a afirmação histórica do Direito da Criança e do Ado-
lescente no Brasil, fundado na Teoria da Proteção Integral, as ações da família, da
sociedade e do próprio Estado são ações não sociais e instrumentais, pela peculiari-
dade de focalizarem suas atenções para a repressão, punição e isolamento, não
cumprindo efetivamente o que está disposto no artigo 227 da Constituição de
1988. Nesse contexto, entende-se que a abordagem ao ato infracional é conven-
cional, ou seja, os níveis de moralidade e de perspectiva social desses entes são
comprometidos, o que os distancia da razão comunicativa e compromete as políti-
cas públicas de atendimento, em especial, as políticas públicas socioeducativas.
Vale lembrar que as instituições são “instituições de sequestro” quando se preo-
cupam apenas em elaborar estratégias de controle do comportamento humano,
nem que para isso se utilizem disfarçadamente da educação.
Ainda hoje, nas instituições responsáveis pela execução das medidas socioe-
ducativas, as suas práticas estão distantes do que está disposto no Direito da
Criança e do Adolescente, reproduzindo estratégias de controle e dominação
sobre a adolescência.
No entanto, a preocupação de alguns segmentos da sociedade e do Poder
Público, a citar o Judiciário com sua política de justiça, pode indicar possibilidades
de transformações sociais, a longa data. Demonstra-se isso pelas discussões em
espaços públicos sobre o sistema de justiça adotado pela sociedade, e a possibi-
lidade de transformá-lo em outros modelos, como o da Justiça Restaurativa. Pode-
-se afirmar que as práticas de tal modelo podem ser acolhidas pelo ordenamento
132 André Viana Custódio – Marli Marlene Moraes da Costa – Rosane Teresinha Carvalho Porto

jurídico brasileiro, ou seja, no próprio Estatuto, a exemplificar os artigos 88 e


126. Entretanto, o desafio maior está em consolidar o agir e o falar em mudanças
de atitudes, o que representa transformar uma cultura já arraigada. Somente des-
sa maneira o discurso se valida e o modelo não se torna evasivo.
A Justiça Restaurativa é uma proposta inovadora de política pública de
inclusão social, mais especificadamente política pública socioeducativa, porém, se
for apenas proveniente de políticas de justiça e se estiver desarticulada da rede,
restringir-se-á a uma mera política pública compensatória, sem força de contribuir
para a autonomia e cidadania dos sujeitos ligados pelo conflito.
Os dados apresentados sobre as práticas restaurativas teve por objetivo
ilustrar e demonstrar, mesmo que parcialmente, como está sendo realizada a
Justiça Restaurativa no Brasil, em especial em Porto Alegre, de maneira a trazer à
tona a reflexão sobre a inserção dos princípios da subsidiariedade, da solidarie-
dade e da cidadania no espaço local.
Embora seja cedo para tirar algumas conclusões sobre o modelo de Justiça
Restaurativa, outros pontos merecem ser destacados para que as suas práticas
sejam efetivamente recepcionadas pela comunidade brasileira: aumento de pro-
fissionais qualificados para atuarem como facilitadores dos círculos restaurativos,
dotação orçamentária específica para a realização de tais práticas e maior mobili-
zação social para que tanto as instituições quanto a sociedade civil rompam com a
cultura da punição e encarem de vez as suas crianças e os seus adolescentes
como prioridade absoluta.
Considerando o exposto, retoma-se os seguintes questionamentos: As prá-
ticas da Justiça Restaurativa no Sistema de Justiça e de Atendimento à Infância e
da Juventude aplicadas pela 3ª Vara do Juizado da Infância e da Juventude de
Porto Alegre podem ser empregadas como estratégia de enfrentamento e preven-
ção à violência? A Justiça Restaurativa é um espaço dialógico emancipatório ou
emerge no seu centro o poder punitivo mascarado? E a Justiça Restaurativa é uma
política pública de inclusão social a adolescentes garantidora da cidadania plena?
Foi preciso destacar que, para se consolidar uma política pública de inclu-
são social, destacando as políticas públicas socioeducativas, que venham somar
com o modelo restaurativo, a discussão não pode permanecer somente com o
Estado, eis que a comunidade precisa cooperar na resolução e enfrentamento das
suas demandas sociais. Para que isso ocorra, enfatiza-se aqui a necessidade e a
Justiça Restaurativa e Políticas Públicas: uma análise a partir da teoria da proteção integral 133

importância do reconhecimento e da garantia dos direitos e da condição básica de


cidadania e o fortalecimento do capital social como ícone do sentimento de per-
tencimento dessa comunidade.
Dito de maneira diferente, é possível reafirmar que o modelo restaurativo
como processo dialógico envolve os atores sociais, a saber: a vítima, o ofensor e
a comunidade. É também uma possibilidade de se resgatar as relações comunitá-
rias e consequentemente a tomada de posição da comunidade com relação à
corresponsabilização no conflito, por isso a sua importância no espaço público de
maneira cooperativa.
Analisando-se as experiências de justiça restaurativa, em especial na 3ª
Vara do Juizado Regional da Infância e da Juventude Porto Alegre no Estado do
Rio Grande do Sul, entende-se que esta pode oferecer um locus concreto para
democratizar a justiça e construir cidadania. Também se considera que as práticas
restaurativas poderão assegurar a continuidade democrática, se o espaço ofereci-
do à fala e à escuta for aberto e amplo para a consolidação e exercício da cidada-
nia plena, não dispondo de mecanismos dissimulados de punição como estratégias
de controle social.
Resta dizer que o grande desafio dos atores sociais está na criação de um
sistema de real eficácia e integração que, ao acolher as práticas restaurativas,
seja capaz de garantir às crianças e aos adolescentes o pleno exercício da cida-
dania, por meio de políticas públicas que enfatizem a inter-relação da família, da
comunidade, do Estado e da sociedade civil. Significa dizer que, como alternativa
para o fortalecimento da rede de atendimento, se faz necessário resgatar a co-
munidade e reconstruir a solidariedade no espaço público. Assim, estar-se-ão
utilizando implicitamente os procedimentos restaurativos, pois eles adotam a
linguagem da não violência para a solução de conflitos. Observe-se que as neces-
sidades básicas somente são alcançadas pela comunicação, pela capacidade de
entendimento e cooperação mútua.
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