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DIREITO, TEMPO E

MEMÓRIA

Raffaele_De_Giorgi.p65 1 7/2/2006, 15:16


Editora Quartier Latin do Brasil
Rua Santo Amaro, 349 - CEP 01315-001
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RAFFAELE DE GIORGI
Professor titular de Teoria Geral do Direito e Sociologia do Direito da
Universidade de Lecce, Itália
Diretor do “Centro di Studi Sul Rischio”, fundado em parceria com Niklas
Luhmann na Universidade de Lecce

DIREITO, TEMPO E
MEMÓRIA

Tradução de
Guilherme Leite Gonçalves
Pesquisador da Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas
Doutorando em Sociologia do Direito pela Universidade de Lecce, Itália, sob a
orientação de Raffaele De Giorgi

Editora Quartier Latin do Brasil


São Paulo, verão de 2006
www.quartierlatin.art.br

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Editora Quartier Latin do Brasil
Rua Santo Amaro, 349 - Centro - São Paulo

Editor: Vinicius Vieira


Formado em Administração de Empresas pela Fundação Getúlio Vargas – FGV-SP

Editora de Texto: Priscila Tanaca


Mestranda em Direito na PUC-SP

Produção Editorial: Mônica A. Guedes


Formada em Letras pela FFLCH-USP

Produção de Arte: Thiago Kazuo Muniz de Souza

D E G IORGI , Raffaele - Direito, Tempo e


Memória / Raffaele De Giorgi – Trad. de
Guilherme Leite Gonçalves – São Paulo :
Quartier Latin, 2006.

ISBN 85-7674-101-6

1. Sociologia do Direito I. Título

Índice para catálogo sistemático:


1. Sociologia do Direito

Contato: editora@quartierlatin.art.br
www.quartierlatin.art.br

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SUMÁRIO

Dedicatória ...................................................................... 7
Agradecimentos ............................................................... 9
Apresentação .................................................................... 11

Tradução em teoria dos sistemas: considerações iniciais


a partir da obra de Raffaele De Giorgi ............................. 15

I
Direito e Memória, 35
A Memória do Direito ..................................................... 37
Roma como Memória da Evolução .................................. 63
Niklas Luhmann: o futuro da memória ............................ 89
Heinz von Förster (1911-2002) ....................................... 95

II
Teoria dos Sistemas e Direito Penal, 105
Direito e crime no século XXI ......................................... 107
Direito penal e teoria da ação entre hermenêutica e
funcionalismo ................................................................... 125

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III
Sistema jurídico e sociedade moderna, 141
O Deus com barba e o Deus sem barba ........................... 143
Ordens normativas, constelações de interesses e formas
de resistência no Estado de Direito. O caso italiano ........ 159
Condições de descrição da complexidade na sociedade
mundial ............................................................................ 173
O Direito na sociedade do risco ....................................... 191
A Reforma Universitária Européia: Ensino e Pesquisa
em Direito ........................................................................ 209

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DEDICATÓRIA
EDICATÓRIA

Para Dieter Simon,


Para o mestre,
Para o irmão.

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RAFFAELE DE GIORGI - 9

AGRADECIMENTOS
GRADECIMENTOS

Reunir estes ensaios, traduzi-los e torná-los acessíveis ao leitor


de língua portuguesa foi uma idéia de meu caro amigo Celso Cam-
pilongo e de meu jovem colaborador Guilherme Leite Gonçal-
ves. Um gesto de afeto do qual sou grato aos dois estimados
estudiosos: a Celso, intelectual refinado, que representa uma das
expressões mais agudas do pensamento sistêmico na sociologia
do direito; a Guilherme, que, com a paixão intelectual de sua jo-
vem idade, começa a recolher os primeiros resultados de seu tra-
balho. Grande parte das contribuições ora apresentadas foi escrita
durante um período de estudos que tive o privilégio de transcor-
rer no Instituto Max Planck de História do Direito Europeu, em
Frankfurt am Main. Aos diretores desse instituto, os professores
Dieter Simon, Michael Stolleis e Marie Théres Fögen, exprimo
minha gratidão pela hospitalidade que me concederam. Ao even-
tual leitor que decida se aproximar destes ensaios minha gratidão
pela paciência que deverá ter e o augúrio de se tornar feliz deixan-
do-se surpreender pelos conceitos que encontrará.

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RAFFAELE DE GIORGI - 11

APRESENTAÇÃO
PRESENTAÇÃO

Raffaele De Giorgi é, sem dúvida, reconhecido como um


dos mais importantes divulgadores e continuadores da Teoria dos
Sistemas, de Niklas Luhmann, com quem trabalhou e colaborou
por mais de vinte anos. Ao lado de Luhmann, De Giorgi ideali-
zou o Centro de Estudos sobre o Risco, importante referência de
estudos da teoria luhmanniana e destino acadêmico para docen-
tes e pesquisadores do mundo todo, onde os brasileiros sempre
foram bem-vindos. O curso de doutorado “Evolução do Direito e
novos Direitos”, coordenado pelo prof. De Giorgi, na Universi-
dade de Lecce, é também um destacado pólo de intercâmbio e
desenvolvimento da Teoria dos Sistemas de Luhmann.
Sua obra é bastante difundida e discutida na Europa e tam-
bém na América Latina, especialmente no Brasil, no México e na
Argentina. O professor De Giorgi ministrou cursos e participou
de congressos em várias Universidades desses países, além de ter
sido, por mais de um ano, professor visitante da mais prestigiosa
Universidade do México, a UNAM. Ainda no México, De Gior-
gi desenvolveu pesquisas sobre o conceito de “redes de inclusão” –
uma tentativa de descrição das “periferias da modernidade” a par-
tir da teoria dos sistemas – que resultaram na obra Redes de In-
clusión. La construcción social de la autoridad (México, UNAM
– Porrúa, 1998, Fernando Castañeda e Angélica Cuéllar coorde-
nadores). No Brasil, De Giorgi já coordenou, como professor
visitante, diversos cursos em renomadas Universidades: Universi-
dade de São Paulo e nas Universidades Federais de Minas Gerais,
Santa Catarina, Ceará e Mato Grosso do Sul.
Algumas de suas principais obras (Direito, democracia e ris-
co. Porto Alegre, Sergio Fabris Editor, 1998 e Ciência Del Dere-

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cho y Legitimación. México, Universidad Iberoamericana, 1998,


além das edições na Alemanha e na Itália e da próxima publicação
no Brasil), juntamente com o livro Teoría de la sociedad (México,
Iberoamericana, 1993), escrito com Niklas Luhmann, foram ado-
tados em diversos programas de estudos de pós-graduação em
Direito na América Latina (mencione-se, por exemplo, os cursos
dos professores Javier Torres Nafarrate, na UNAM, Santos Co-
llabela, na Universidad de Buenos Aires, Menelick de Carvalho
Neto, na Universidade Federal de Minas Gerais, José Eduardo
Faria, na Universidade de São Paulo e, por mim mesmo, na Pon-
tifícia Universidade Católica de São Paulo).
É no campo da apresentação, discussão e aplicação da Teoria
dos Sistemas que a presença de De Giorgi tem ocorrido na Amé-
rica Latina, principalmente nas Faculdades de Direito e de Ciên-
cias Sociais. Nos meios jurídicos, o esgotamento do potencial
explicativo dos paradigmas clássicos de ciência jurídica (positivis-
mo e jusnaturalismo) abriu espaço para fragmentadas e múltiplas
tentativas de oferecimento de teorias alternativas. Dentre elas, a
Teoria Jurídica Sistêmica, inspirada em Luhmann, tem atraído a
atenção de pesquisadores latino-americanos. Parcela dessa curio-
sidade intelectual deve-se ao trabalho didático, de pesquisa, à pu-
blicação e aos programas de intercâmbio realizados pelo Prof.
Raffaele De Giorgi.
Nos cursos de Ciências Sociais, a insatisfação da teoria dos
sistemas com os modelos inspirados em Marx, Durkheim e We-
ber, de um lado, e com a falta de capacidade de abstração socioló-
gica e de instrumentos metodológicos aptos à descrição da
sociedade complexa, de outro lado, também fazem da teoria da
comunicação e da teoria da evolução das formas de diferenciação
social – pontos essenciais da teoria da sociedade de Luhmann –
alvo de grande interesse. Novamente, também nesse âmbito, a
contribuição de De Giorgi tem sido relevante na América Latina.

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RAFFAELE DE GIORGI - 13

Nos artigos reunidos nesse livro, escritos durante sua estadia


como professor visitante do Instituto Max Planck de História do
Direito, de Frankfurt, De Giorgi retoma e desenvolve alguns te-
mas caros à teoria luhmanniana – tempo, memória, sociedade
mundial e complexidade –, ao mesmo tempo em que redescreve
conceitos sociológicos clássicos – ação, resistência civil – para, atra-
vés do instrumental oferecido por Luhmann, apresentá-los de for-
ma inédita e altamente criativa. A maior parte dos ensaios faz
parte do programa “História do Direito como evolução do Direi-
to”, coordenado por De Giorgi e Marie-Thérèse Fögeln, no Max
Planck, e refletem uma bem sucedida tentativa de observar a his-
tória do direito a partir da teoria da evolução de Luhmann.
A obra de Luhmann, lida por poucos e criticada por muitos,
requer paciência, estudo e, principalmente, ausência de precon-
ceitos. Munido dessas virtudes e de cultura invulgar – que transita
pelos domínios da teoria social e jurídica, assim como pelos cam-
pos da filosofia, da história e da literatura – De Giorgi enriquece
a Teoria dos Sistemas com a peculiar experiência de quem, viven-
ciando as periferias da modernidade, é capaz de observar as dife-
renças constitutivas do mundo atual e a unidade que delas resulta.
Já se disse que a Teoria dos Sistemas seria desnecessariamente
complicada. Sem dúvida é complicada. Não se trata de discurso
fácil. De Giorgi é capaz de indicar por que a Teoria dos Sistemas
é necessária. E, sobre isso, suas idéias não são poucas nem confu-
sas. A tradução desses ensaios para o português, feita por um dou-
torando de De Giorgi, sob sua supervisão, é mais um importante
passo para a difusão do pensamento sistêmico no Brasil. De nossa
parte, é uma pequena homenagem ao mestre italiano.

Celso Fernandes Campilongo


Professor dos Departamentos de Teoria do Direito da PUC-SP e da USP

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TRADUÇÃO EM TEORIA DOS SISTEMAS: CONSIDERAÇÕES


INICIAIS A PARTIR DA OBRA DE
ARTIR RAFFAELE DE GIORGI
AFFAELE

Guilherme Leite Gonçalves1

I
Traduções de textos relacionados à teoria dos sistemas são
freqüentemente consideradas problemáticas.2 Esta reclamação não
é privilégio dos leitores de língua portuguesa.3 Os problemas de
tradução decorrem do baixo grau de inserção da literatura sistê-
mica nos círculos acadêmicos. Ao desprezar modelos clássicos,
privilegiados nas faculdades de ciências humanas, a criatividade
sistêmica nunca foi vista com bons olhos4 , o que impediu o de-

1 Pesquisador da Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas e


doutorando em Sociologia do Direito pela Universidade de Lecce, Itália, sob a
orientação de Raffaele De Giorgi.
2 Em função desta dificuldade, Reinhardt Schmidt elaborou um léxico sistêmico
que foi publicado ao final da tradução italiana da obra Soziale System, de
Luhmann. Cf. SCHMIDT, Reinhardt. Tradurre la complessità. Note bilingui sul
lessico luhmanniano. In LUHMANN, Niklas. Sistemi sociale. Fondamenti di una
teoria generale. Bologna: Il Mulino, 1990, pp. 745-761.
3 Ver, nesse sentido, as notas do editor da versão inglesa do livro Das Recht der
Gesellschaft, de Niklas Luhmann, que se valeu de um discípulo do autor, Klaus
Ziegert, para escapar da baixa qualidade das traduções anteriores. Cf. HAWKINS,
Keith. General editor’s introduction. In LUHMANN, Niklas. Law as a social
system. Trad. Klaus Ziegert. Oxford: Oxford University Press, 2004, p. v. Esta
estratégia foi utilizada também por alguns editores de língua italiana e espanho-
la. No caso da Itália, o próprio De Giorgi foi um dos tradutores (Cf. LUHMANN,
Niklas. La differenziazione del diritto. Contributi alla sociologia e alla teoria del
diritto. Trad. Raffaele De Giorgi. Bologna: Il Mulino, 1990).
4 Desde Parsons, é possível notar esta desconfiança: “Parsons, como se sabe,
possui inegável vezo teorizante, e ninguém desconhece a incontinência de que
muitas vezes é possuído diante do gosto pela criação de termos técnicos, de
cunho limitado entre os próprios cientistas...” (Cf. CARDOSO, Fernando Henrique
e IANNI, Octavio. Homem e sociedade. Leituras básicas de sociologia geral.
São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1976, p. 7).

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senvolvimento de grupos de pesquisa e estudiosos dedicados a


sua ampliação e difusão no debate científico. Para traduzir em
ciências sociais é preciso familiaridade com a linguagem, o pensa-
mento e os conceitos de determinado autor.5 Em alguns casos, o
vasto alcance de certas teorias – pense-se, por exemplo, em Marx
ou Weber – produziu elevado consenso sobre escolhas e métodos
de tradução. Não foi o que aconteceu com a teoria dos sistemas.
Em função da rejeição decorrente da aversão à terminologia tra-
dicional, foi pouco estudada e, por conseguinte, não conseguiu
criar redundância conceitual. Seus tradutores se depararam com a
inexistência de apoio teórico no esclarecimento de termos especí-
ficos. Isto gerou dois tipos problemáticos de tradução: aquelas que
inovavam excessivamente e outras que aplicavam o referencial ter-
minológico dos clássicos em um modelo completamente diverso.
Se tais problemas são sentidos em muitas traduções de tex-
tos sistêmicos, quando se trata da obra de Niklas Luhmann eles
são acentuados. Foi este autor quem rompeu mais drasticamente
com os autores consagrados. Criou termos próprios, construídos
a partir do diálogo com outras disciplinas, como, por exemplo,
biologia, cibernética e matemática, pois entendia que somente
novos esquemas conceituais poderiam observar a complexidade
da sociedade moderna.6 Os textos de Luhmann colocaram os tra-
dutores – e também os estudiosos – fora de órbita. Dentre as ten-
tativas de estipular alguns parâmetros, são dignos de nota os
esforços de Claudio Baraldi, Elena Esposito e Giancarlo Corsi

5 Cf. BERLINER, Claudia. Entrevista. In BENEDETTI, Ivone C. e SOBRAL, Adail


(Orgs.). Conversas com tradutores: balanços e perspectivas da tradução. São
Paulo: Parábola, 2003, pp. 73-74 e GONÇALVES, Maria Stela. Entrevista. In
BENEDETTI, Ivone C. e SOBRAL, Adail (Orgs.). Conversas com tradutores: ba-
lanços e perspectivas da tradução. op. cit., p. 114.
6 Cf. LUHMANN, Niklas. Prefazione. In BARALDI, Claudio, CORSI, Giancarlo e
ESPOSITO, Elena. Luhmann in glossario. I concetti fondamentali della teoria dei
sistemi sociali. Milano: FrancoAngeli, 1995, p. 13.

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RAFFAELE DE GIORGI - 17

que, através da definição e explicação dos conceitos luhmannia-


nos, em língua italiana, na forma de verbetes de um glossário,
indicaram referências de tradução para diversas outras línguas,
principalmente latinas.7
No âmbito do direito, o impacto da teoria dos sistemas não
foi diverso: rompeu com padrões estipulados pelas teorias jurídi-
cas clássicas e apresentou, aos juristas, uma série de conceitos com
os quais eles não estavam habituados. Este foi um grande obstá-
culo para traduzir Raffaele De Giorgi. Mas não o único. Além do
apego às categorias sistêmicas, os textos do autor são ricos em
referências filosóficas, artísticas e literárias, que são constantemente
utilizadas para explicar conceitos técnicos. Desta combinação re-
sulta uma formulação irônica, sutil e poética. De Giorgi utiliza
contos, romances e pinturas para explicar as teses sistêmicas, di-
minuindo sua aridez conceitual. Durante muitos séculos, o direi-
to sempre esteve muito próximo das artes. Pense-se, por exemplo,
que o objeto da tese de doutorado de Hans Kelsen é a Divina
Comédia, de Dante, e a peça O mercador de Veneza, de Shakespea-
re, é a principal referência do clássico A luta pelo Direito, de Ru-
dolf von Jhering. A ciência do direito da segunda metade do século
XX, em nome do rigor científico, se afastou da literatura e, com
isso, perdeu grande parte de seu potencial criativo e poético. Recen-
temente, alguns autores procuram resgatar esta ligação perdida.8
De Giorgi, sem dúvida, é um destes pioneiros. Seus textos são

7 Luhmann, no prefácio a este glossário, considerou fundamental a tentativa dos


autores de homogeneizar as traduções dos conceitos de sua teoria para facilitar
a compreensão ao leitor de língua italiana. Ele mesmo acompanhou o trabalho
dos três pesquisadores. O glossário transformou-se, em pouco tempo, em refe-
rência mundial e foi traduzido para outros idiomas, entre eles, até o japonês. Cf.
BARALDI, Claudio, CORSI, Giancarlo e ESPOSITO, Elena. Luhmann in glossario.
I concetti fondamentali della teoria dei sistemi sociali. op. cit.,
8 Além do movimento americano law and literature, autores como François Ost e
Gunther Teubner dedicam-se à introdução do estilo literário em seus ensaios.

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pontuados por um estilo pouco usual nos trabalhos acadêmicos:


as afirmações, as hipóteses e as conclusões levantadas estão su-
bentendidas em exemplos retirados dos grandes clássicos da lite-
ratura universal. Some-se a isto o fato de os ensaios aqui reunidos
apresentarem uma linguagem ainda mais aberta e flexível por te-
rem sido redigidos na forma de conferências.9 Obviamente, tudo
isto dificulta o trabalho do tradutor especializado em ciências hu-
manas. Deve, além de superar os problemas inerentes à teoria dos
sistemas, estudar técnicas de tradução de obras literárias.
Além do estilo inovador, outra dificuldade decorre do fato
de que estes textos foram escritos em duas línguas: “Memória
do Direito” e “Roma como memória da evolução”, em alemão;
os demais, em italiano. No entanto, estes últimos apresentam,
em diversos momentos, citações, expressões e frases inteiras em
língua alemã. Não foi feita “tradução da tradução”. Os escritos
foram traduzidos diretamente dos dois idiomas. Nos textos ita-
lianos, as citações em alemão foram vertidas ao português e o
original foi mantido em nota de rodapé. O mesmo aconteceu
com as citações em italiano e latim, nos textos escritos em ale-
mão. Assim, além da terminologia sistêmica e da verve poética,
a tradução se deparou com o problema de estabelecer, em portu-
guês, uma unidade estilística entre duas línguas distantes, sem
que, com isto, o conteúdo fosse alterado. O rótulo traduttore tra-
ditore poderá ser alegado discretamente, pois este processo foi
acompanhado pelo próprio autor, que também conhece a língua
portuguesa. Isto permitiu uma tradução dotada de elevado grau

9 Tais conferências foram realizadas em diversos momentos e lugares, durante


período em que o autor foi Professor Visitante do Instituto Max Planck de Histó-
ria do Direito Europeu, na Alemanha. As únicas exceções são os textos “Heinz
von Förster” e “Ordens normativas, constelações de interesses e direito de resis-
tência. O caso italiano”, que foram redigidos como artigos, sendo o último es-
crito anteriormente a sua estadia no Max Planck.

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RAFFAELE DE GIORGI - 19

de fidelidade ao pensamento de De Giorgi, pois, nos casos em


que o rigor da tradução obscurecia a compreensão, as modifica-
ções foram revistas diretamente por ele.

II
Ainda que o autor tenha participado do processo tradutó-
rio, os textos reunidos não se filiam ao conceito de fidelidade em
tradução.10 É óbvio que não foi feita uma mera transcodificação
de palavras e expressões. A moderna teoria da tradução já se en-
carregou de desmistificar a idéia de que tradução é um translado
automático entre duas línguas.11 Faz parte de um processo criati-
vo que utiliza interpretação. Afirmava-se que uma boa tradução é
aquela que oculta a intervenção do tradutor, aquela que o texto
original flui da melhor maneira possível na língua de chegada.
Deste modo não se vê o tradutor, apenas o autor. Neste contexto,
texto traduzido é sinônimo de texto fidedigno. No entanto, como
afirma Benedetti, sobre a tese da invisibilidade do tradutor, “há uma
imprecisão”.12 Eu diria um paradoxo: quanto maior a fluência do
texto traduzido – e, portanto, a invisibilidade – maior a interferên-
cia do tradutor – sua visibilidade.13 Para o texto transcorrer na lín-
gua de chegada, o tradutor teve que manipular o original,
transformá-lo e adequá-lo ao novo idioma. Para o produto não ser

10 Sobre esta idéia ver BRITTO, Paulo Henriques. Entrevista. In BENEDETTI, Ivone
C. e SOBRAL, Adail (Orgs.). Conversas com tradutores: balanços e perspectivas
da tradução. op. cit., p. 93.
11 Esta idéia é denominada empirista. Para crítica contemporânea, ver BENEDETTI,
Ivone C. Prefácio. In BENEDETTI, Ivone C. e SOBRAL, Adail (Orgs.). Conversas
com tradutores: balanços e perspectivas da tradução. op. cit., pp. 18-19.
12 Cf. BENEDETTI, Ivone C. Prefácio. In BENEDETTI, Ivone C. e SOBRAL, Adail
(Orgs.). Conversas com tradutores: balanços e perspectivas da tradução. op.
cit., p. 27.
13 Cf. BENEDETTI, Ivone C. Prefácio. In BENEDETTI, Ivone C. e SOBRAL, Adail
(Orgs.). Conversas com tradutores: balanços e perspectivas da tradução. op.
cit., p. 27.

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notado, a intervenção em seu processo de produção foi claramente


visível. Esta idéia valoriza o papel do tradutor e questiona sua sub-
serviência em relação ao autor. O primeiro emprega, no material
que recebe, sua visão do mundo, sua experiência, seu contexto his-
tórico e cultural. Em uma palavra: interpreta. As idéias apresenta-
das no original são incorporadas e expressadas em outro estilo ou
forma gramatical. São diversas, novas, diferentes da anterior.
Em 1981, Haroldo de Campos escreveu ensaio que se trans-
formou em referência para as análises da função criativa do tra-
dutor. 14 Condenou, com base em artigo clássico de Walter
Benjamin15 , o vínculo de servitude do tradutor em relação ao
texto original que prevalecia nas “concepções ingênuas” sobre
tradução.16 Para Benjamin, a tradução exercia uma função an-
gelical17 : levaria à língua original aquilo que denominou de “lín-
gua pura”, ponto espiritual – messiânico, nas palavras de
Campos – de confluência da intencionalidade de todas as lín-
guas.18 Com a fragmentação da linguagem – babelização –, a
expressão da essência espiritual estaria limitada às possibilida-
des de cada língua. 19 Ao relacionar ou dialogar as línguas, o
tradutor faria emergir, novamente, a “língua pura”.20 Como tal

14 Cf. CAMPOS, Haroldo de. Transluciferação mefistofáustica. In Deus e o diabo


no Fausto de Goethe. São Paulo: Perspectiva, 1981, pp. 179-209.
15 Cf. BENJAMIN, Walter. La tâche du traducteur. In BENJAMIN, Walter. Ouvres. v.
I. Trad. por Maurice de Gandillac. Paris: Denoël, 1971, pp. 261-275.
16 Cf. CAMPOS, Haroldo de. Transluciferação mefistofáustica. op. cit., p. 179.
17 Cf. BENJAMIN, Walter. La tâche du traducteur. op. cit., p. 275.
18 Cf. CAMPOS, Haroldo de. Transluciferação mefistofáustica. op. cit., p. 179.
19 O exemplo que Benjamin oferece para compreensão destes limites é
esclarecedor: “a língua alemã, por exemplo, não é de modo algum a expressão
de tudo o que – supostamente – podemos exprimir através dela, mas sim a
expressão do que nela se transmite. Este ‘se’ é uma essência espiritual”. Cf.
BENJAMIN, Walter. Sobre a linguagem em geral e sobre a linguagem humana.
Trad. de Maria Luiz Moita. Lisboa: Relógio D’Água, 1992, p. 178.
20 Conforme aponta Leite, para Benjamin, “o ponto decisivo para compreensão do
conceito de tradução” é “a relação medial entre as linguagens”. LEITE, Marcos

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RAFFAELE DE GIORGI - 21

pureza lingüística é condição da apreensão total da essência


espiritual, o papel do tradutor adquire importância assombro-
sa: sem tradução, o original seria incapaz de ver a “língua pura”.
Nesse sentido que Campos utiliza Benjamin para negar o ve-
lho paradigma da fidelidade da tradução. Na perspectiva ben-
jaminiana, “o original é quem serve de certo modo à tradução”,21
pois sem ela estaria restrito à parcialidade de sua visão da es-
sência. Ela desoculta a “língua pura” que, no original, aparece
limitada às possibilidades de percepção de uma única língua.
Como este processo desenvolve-se pelo “lema rebelionário do
non serviam”, afirma Campos, o anjo da tradução de Benjamin
é um transgressor. Deve, por força, ser Lúcifer.22 A hipótese de
tradução luciferina busca subverter a relação de servidão. Dei-
xa de ser tradução para transformar-se em “operação radical de
transcriação”.23
A tradução é definida por Campos como transluciferação.24
Outra imagem utilizada para esclarecer sua idéia foi a vampiri-
zação. O vampiro nutre-se do sangue de suas vítimas com o in-
tuito de se alimentar e renovar seu próprio sangue. O mesmo faz
o tradutor: nutre-se do original e produz, ao final, um texto novo,
criativo, diverso do ponto de partida.25 Ressalte-se, porém, que,
conforme a lenda, o vampiro elimina suas vítimas. Esta parece
ser a pretensão de Campos em relação ao original que, segundo
o autor, sua proposta “intenta, no limite, a rasura da origem: a

Vinicius. A estrutura da linguagem em Walter Benjamin. Ver em


www.eticaefilosofia.ufjf.br Ver, ainda, Cf. CAMPOS, Haroldo de. Transluciferação
mefistofáustica. op. cit., p. 188.
21 Cf. CAMPOS, Haroldo de. Transluciferação mefistofáustica. op. cit., p. 179.
22 Cf. CAMPOS, Haroldo de. Transluciferação mefistofáustica. op. cit., p. 180.
23 Cf. CAMPOS, Haroldo de. Transluciferação mefistofáustica. op. cit., p. 180. Re-
pare que, nas obras traduzidas por Haroldo de Campos, não aparece “traduzido
por”, mas “transcriado por”.
24 Cf. CAMPOS, Haroldo de. Transluciferação mefistofáustica. op. cit., p. 209.
25 Cf. CAMPOS, Haroldo de. Transluciferação mefistofáustica. op. cit., p. 208.

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22 - DIREITO, TEMPO E MEMÓRIA

obliteração do original”.26 Como afirma Magalhães, nestes ter-


mos, a tradução é uma re-escrita.27 É verdade que este discurso
foi fundamental para valorizar o papel do tradutor, romper com
a servitude em face do original e desmistificar o paradigma da
fidelidade. Mas sua adoção integral envolve um risco elevado: a
contaminação.28 A idéia de vampirização baseia-se na distinção
entre texto original (material de nutrição) e texto traduzido (re-
novação). No entanto, em seu processo, a distinção pode ser eli-
minada pela confusão entre as duas partes, vale dizer, pela
contaminação de uma pela outra. Nesta hipótese, não existem
limites e certezas sobre o que é tradução e o que é original. Dois
exemplos da história da filosofia podem iluminar o risco da
contaminação.
O primeiro – muito caro aos tradutores por tratar do mais
remoto conflito significativo registrado pela história da tradu-
ção – é a apologia de São Jerônimo contra as traduções latinas
dos livros de Orígenes, o Perì Archôn, realizadas por Rufino.29
Para ofender e condenar Jerônimo, que acusara a obra de Oríge-
nes contrária à fé católica, Rufino traduziu-a, conferindo um
sentido favorável nas expressões sacrílegas que “seriam insupor-
táveis aos ouvidos dos romanos”.30 Em tal hipótese, a contami-
nação do original pela tradução transformou o tradutor em autor

26 Cf. CAMPOS, Haroldo de. Transluciferação mefistofáustica. op. cit., p. 209.


27 Cf. MAGALHÃES, Célia Maria. Haroldo de Campos e o sujeito da tradução
monstruosa. TradTerm, São Paulo, v. 5, n. 2, p. 13, jul./dez. 1998.
28 Cf. MAGALHÃES, Célia Maria. Haroldo de Campos e o sujeito da tradução
monstruosa. op. cit., p. 20.
29 Cf. SÃO JERÔNIMO. Apologia de Jerônimo, presbítero estridonense, contra os
livros de Rufino, enviada a Pamáquio e a Marcela. In CARPINETTI, Luís Carlos
L. O aspecto polêmico da apologia de Jerônimo contra Rufino. Tese apresenta-
da ao Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filoso-
fia, Letras e Ciências Humans da Universidade de São Paulo, pp. 136-252.
30 Cf. SÃO JERÔNIMO. Apologia de Jerônimo, presbítero estridonense, contra os
livros de Rufino, enviada a Pamáquio e a Marcela. op. cit., p. 141.

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RAFFAELE DE GIORGI - 23

e o herege em santo. No entanto, ao demonstrar os problemas


da tradução, São Jerônimo foi enfático: “em vez de gozar da li-
berdade dada ao tradutor, tu (Rufino) serás retido pela responsa-
bilidade de autor se algo herético se verificar em sua tradução”.31
Como Rufino tentou salvar um sacrílego, transformou-se em tal.
Aqui, o tradutor foi contaminado pelo autor e transformou-se em
herege. Em ambos os casos de contaminação, o original foi elimi-
nado pela criatividade ilimitada da tradução, que servia a interes-
ses pré-definidos.
O segundo exemplo foi extraído da obra A Sagrada Família
ou a crítica da Crítica crítica contra Bruno Bauer e consortes, de Karl
Marx e Friedrich Engels. Este livro contém um ensaio crítico de
Marx32 à tradução e aos comentários de Edgar Bauer sobre o tex-
to Qu’est-ce que la propriété?, de Proudhon. Segundo Marx, a tra-
dução de Bauer foi orientada para atender à critica que este
pretendia desenvolver. Por isso, ela teria um mau caráter. A tradu-
ção seria caracterizada para satisfazer aos interesses da Escola
Crítica crítica, da qual Bauer era um de seus principais represen-
tantes.33 Os escritos de Proudhon sofreriam, assim, um duplo ata-
que: um deles implícito, que se encontra na tradução
caracterizadora de Bauer, e outro explícito, expresso nos comen-
tários críticos às idéias de Proudhon, conforme apresentadas pela

31 Cf. SÃO JERÔNIMO. Apologia de Jerônimo, presbítero estridonense, contra os


livros de Rufino, enviada a Pamáquio e a Marcela. op. cit., p. 141.
32 MARX, Karl. Proudhon. In ENGELS, Friedrich e MARX, Karl. A Sagrada Família
ou a crítica da Crítica crítica contra Bruno Bauer e consortes. São Paulo:
Boitempo, 2003, pp. 34-67.
33 Cf. MARX, Karl. Proudhon. op. cit., p. 34. No texto de Marx, a afirmação de que
Edgar Bauer dá um mau caráter à tradução de Proudhon uma vez que a “trans-
forma num objeto da Crítica” tem duplo sentido. De um lado, pode-se atribuir o
mau caráter da tradução porque foi moldada conforme a crítica que sofreria.
De outra, o mau caráter é resultado do fato de ser objeto da corrente de pensa-
mento “Crítica crítica”, forma como Marx, pejorativamente, denominava os cha-
mados hegelianos de esquerda, entre eles, Edgar Bauer. Neste artigo, a ironia
marxista é constante.

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24 - DIREITO, TEMPO E MEMÓRIA

respectiva tradução.34 Ressalte-se que, para Marx, “o senhor Ed-


gar” era muito mais destrutivo quando traduzia do que quando
glosava criticamente.35
Para desenvolver seu argumento, Marx diferenciou o Prou-
dhon da tradução de Bauer – também chamado caracterizado,
místico, crítico ou da Crítica – do texto autêntico (Proudhon real,
acrítico, massivo ou da massa) e demonstrou como o primeiro
deturpou completamente o segundo. Utilizou-se desta diferença
para combater os princípios da Crítica crítica. A construção mar-
xista era altamente complexa. Segundo Marx, a tradução crítica
correspondia aos princípios sustentados por esta corrente teórica,
que, inspirada fortemente pelo transcendentalismo, sustentava que
a libertação do homem dava-se através do pensamento. Assim,
todas as possibilidades – também a tradução – deveriam ser resul-
tado de uma construção da consciência. Desconsiderava, portan-
to, a práxis, a vida e a realidade das massas, aspecto preponderante
da teoria marxista. Por isso, nunca poderia produzir uma tradução
real de Proudhon. As conclusões de Marx são irônicas e avassala-
doras: a tradução crítica de Bauer é fruto do pensamento, não da
práxis. Ela serve à Crítica crítica (pensamento), não à realidade.36
Neste caso, a contaminação fez com que o original servisse, de for-
ma negativa, ao pensamento do tradutor (à sua corrente teórica). O
tradutor nutriu-se do autor com o intuito de fazer valer sua idéia.
Para evitar o risco da contaminação, a teoria da tradução não
pode apelar ao transcendentalismo que a perspectiva benjaminia-
na carrega. Em nome da antevisão da “língua pura”, seria possível
ao tradutor tudo fazer. Não foi este o tipo de tradução lançado
sobre os artigos de De Giorgi. É nesse sentido que se afirmou que

34 Cf. MARX, Karl. Proudhon. op. cit., p. 34.


35 Cf. MARX, Karl. Proudhon. op. cit., p. 34.
36 Cf. MARX, Karl. Proudhon. op. cit., pp. 66-67.

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RAFFAELE DE GIORGI - 25

o autor participou das etapas tradutórias. As possibilidades de cri-


ação existiram, mas não foram ilimitadas a ponto de eliminar a
teoria proposta no original. Para compreender os limites utiliza-
dos, é preciso, antes, entender em que termos a liberdade de cria-
ção foi colocada. Para isso, a exemplo de Marx, faz-se necessário
compreender a tradução dentro do processo social. No entanto,
dada proximidade da operação tradutória com o aspecto comuni-
cativo, o conceito de sociedade que será adotado é aquele luh-
manniano de comunicação. Segundo Luhmann, o sistema social
é o conjunto de todas comunicações. A comunicação é formada
por três elementos: mensagem/informação/compreensão.37 Quan-
do a mensagem que contém uma informação é compreendida,
engata-se uma nova comunicação: aquilo que foi compreendido
pode ser aceito ou recusado pela comunicação seguinte. A comu-
nicação desenvolve-se a partir de dois pólos: Alter e Ego. A infor-
mação da mensagem de Alter pode ser aceita, rejeitada ou nem
sequer atingir Ego. Por isso, a comunicação é considerada um even-
to altamente improvável.
Dentre as várias improbabilidades, não há certeza se Ego re-
ceberá a informação emitida por Alter. A tradução pode ser obser-
vada como um elemento redutor desta improbabilidade. É um
meio que torna provável a improbabilidade da comunicação atin-
gir seus destinatários. Da perspectiva da teoria dos sistemas, a tra-
dução é definida como meio de difusão da comunicação, media
(Verbreitungsmedium).38 Pense-se, por exemplo, nas possibilida-
des e na complexidade que a comunicação literária atingiu quan-
do o russo foi traduzido para línguas da Europa ocidental. A

37 Cf. DE GIORGI, Raffaele e LUHMANN, Niklas. Teoria della società. Milano:


Franco Angeli, 1992, pp. 27-28.
38 Sobre os meios de difusão da comunicação, ver LUHMANN, Niklas. The Form
of writing. In Stanford Literatur Review. vol. 9, pp. 25-42, 2002.

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26 - DIREITO, TEMPO E MEMÓRIA

tradução é um meio que possibilita esta ampliação da comunica-


ção. Luhmann afirma que não é provável que a comunicação al-
cance pessoas ausentes, que não estejam presentes no âmbito da
interação.39 Para viabilizá-la é necessário tecnologias que a levem
para outros destinatários. Todos estes meios, segundo Luhmann,
foram desenvolvidos com base na linguagem. Eles são a escrita, a
imprensa e, na sociedade contemporânea, os meios de telecomu-
nicação. Também a tradução, apesar de não ser tecnologia, é ele-
mento da linguagem e pode ser assim considerada. Mas, ao
contrário dos outros meios, seu problema não é levar a comunica-
ção a ausentes, mas àqueles que não compreendem determinado
idioma.
Curioso notar que, dessa perspectiva, a tradução é um media
que depende de outro media para se propagar: depende de livros
ou televisões. Isto porque, ao lado do problema da ausência, apa-
rece aquele da transposição para um idioma conhecido. Ela surge
para resolver tal problema e, nesse sentido, é uma conquista evo-
lutiva. Esta não é, no entanto, sua única diferença em relação aos
outros meios de difusão. Ela é um media que, a exemplo dos ou-
tros, transmite, mas que, ao contrário dos demais, interfere na co-
municação, mais precisamente na informação.40 Neste ponto está
o aspecto criativo da tradução. Ao receber a informação (texto
original), o tradutor deve compreendê-la. Aquilo que o leitor do
texto traduzido apanha é a informação da mensagem compreen-
dida pelo tradutor. Ele é, ao mesmo tempo, Alter e Ego; é Alter-
Ego, pois estabelece uma relação medial entre duas comunicações.

39 LUHMANN, Niklas. A improbabilidade da comunicação. Lisboa: Veja Limita-


da, 1992, pp. 42-43.
40 É importante notar que as teorias contemporâneas dos medias reconhecem esta
mesma qualidade de interferência na informação nos demais meios de difusão.
Nesse sentido, ver BORDENAVE, Juan E. Díaz. O que é comunicação. São Pau-
lo: Brasiliense, 1982, pp. 92-101 e GUARESCHI, Pedrinho A. (Coord.) Comuni-
cação e controle social. Petrópolis: Vozes, 2001.

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RAFFAELE DE GIORGI - 27

Não é um fim em si mesmo como pretendem as teorias transcen-


dentais da tradução, mas ponto de conexão de dois eventos comu-
nicativos. A tradução é meio de difusão que viabiliza a
comunicação, mas, como depende da compreensão, é um meio de
difusão criativo. Não é versão do texto de partida, mas também
não é sua negação.

III
Foi dessa perspectiva que, neste livro, buscou-se estabelecer
um critério tradutório dos textos e conceitos sistêmicos. O objeti-
vo é criar, em língua portuguesa, nomes que reflitam a precisão
luhmanniana para que esta teoria possa atingir o leitor brasileiro.
Como já afirmado, existe uma dificuldade muito grande para tra-
duzir a terminologia sistêmica, o que bloqueia a difusão de seu
pensamento. Sem a presunção de criar uma “tradução canônica”,41
pretendeu-se, nesta obra, estabelecer uma coerência em relação
aos termos elaborados em língua alemã por Luhmann, de modo a
reduzir a ambigüidade e a controvérsia conceitual produzida pela
recepção internacional desta teoria.
Sem dúvida nenhuma, a principal celeuma se concentra na
tradução do código comunicativo do sistema jurídico: Recht/Un-
recht. Encontra-se, na literatura jurídica brasileira, vasta opção:
“direito/não direito”; “legal/ilegal”; “razão/torto”; “lícito/ilícito”,
“válido/inválido”, “conforme o direito/não conforme o direito” etc.
O código é o núcleo duro de um sistema, aquilo que permite sua
reprodução sem interferência de nenhum elemento presente no
ambiente externo. A comunicação não se reduz ao código, mas
este é um componente fundamental: toda informação emitida só

41 Sobre as vantagens de uma tradução “canônica” da teoria dos sistemas, ver


BELARDINELLI, Sergio. Nota del traduttore. In LUHMANN, Niklas. Funzione
della religione. Trad. Sergio Belardinelli. Brescia: Morcelliana, 1991, p. 17.

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28 - DIREITO, TEMPO E MEMÓRIA

pode ser compreendida com base em um “sim” ou em um “não”.


Daí porque todos os códigos comunicativos apresentam-se atra-
vés de uma forma binária. Eles são o substrato da operação de
compreensão e, portanto, mecanismo de diferenciação. Recht/Un-
recht desempenha esta função no sistema jurídico, qual seja, esta-
belece uma forma de compreensão da informação exclusiva do
direito, não encontrada em outros sistemas sociais. Não há equi-
valentes da binariedade comunicativa Recht/Unrecht no ambiente.
A escolha entre as traduções disponíveis deve observar estes parâ-
metros de autonomia do sistema, criados pela noção de código.
“Direito/não direito”, difundida por causa da opção espa-
nhola por “derecho/non-derecho”,42 gera muitos problemas in-
terpretativos, pois identifica o pólo positivo do código com o
próprio sistema e pode dar a falsa noção de que o pólo negativo
está fora dele. Poder-se-ia erroneamente afirmar que não-direito
é economia, política, religião etc. Isto destruiria a idéia de auto-
nomia do sistema jurídico. Unrecht não só faz parte do direito,
como também é valorizado, por Luhmann, como principal ele-
mento de ativação do sistema.43 Ambigüidade semelhante apre-
senta a tradução “legal/ilegal”, que segue a versão inglesa “legal/
illegal”. Entre nós, isto pode remeter ao legalismo, ao formalismo

42 Cf. LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedad. Trad. Javier Torres Nafarrate.


Mexico: Universidad Iberoamericana, 2003, p. 227.
43 Para que o sistema se construa de forma auto-referencial não basta que se
afirme positivamente – direito é lícito –, mas é primordial que transforme a
afirmação em negação – direito é ilícito – e continue introduzindo negações
nas afirmações resultantes. É dessa forma tautológica que Luhmann concebe
o fechamento operativo do sistema e resgata a importância do pólo negativo
de uma distinção (Cf. LUHMANN, Niklas. Das Recht der Gesellschaft. Frank-
furt am Main: Suhrkamp, 1995, p. 168). Da perspectiva da teoria do direito,
esta valorização do ilícito já pode ser observada em Kelsen: “do ponto de
vista jurídico, o ilícito não é ‘contrário ao direito’ nem uma ‘negação do direi-
to’; para o jurista, o ilícito é uma condição determinada do direito” (Cf. KELSEN,
Hans. Teoria generale del diritto e dello stato. Trad. Sergio Cotta e Giuseppino
Treves. Milano: Etas Libri, 1984, p. 54).

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RAFFAELE DE GIORGI - 29

hermenêutico e restringir o código comunicativo à máquina de


subsunção. Em língua portuguesa, uma binariedade deste tipo é
redutora das possibilidades do sistema jurídico. “Legal/ilegal” é a
binariedade operativa do “juiz boca da lei”, uma concepção de
direito pouco diferenciada da política e, portanto, incompatível
com a diferenciação sistêmica. Ainda no âmbito da questão da
autonomia, pode-se destacar as imprecisões da tradução “razão/
torto”, inspirada do italiano “ragione/torto”.44 Neste caso, tem-se
a impressão que o sistema jurídico é amparado por uma reta ra-
zão, que pode ser desviada pelo comportamento desconforme. Isto,
no entanto, retoma os fundamentos do jusracionalismo, de um
direito construído racionalmente, de algo que pode ser certo ou
errado. Não responde ao processo de positivação do direito, fun-
damental para a consolidação do sistema jurídico moderno, con-
forme sustentado por Luhmann.
Diante destes inconvenientes, “lícito/ilícito” parece a melhor
alternativa de tradução do código Recht/Unrecht. Demonstra que os
dois lados da dicotomia pertencem ao sistema jurídico e não con-
funde o direito nem com excesso de legalismo nem com transcen-
dentalismo. A esfera da licitude compreende normas gerais e
abstratas e individuais e concretas, contratos, tratados e normativi-
dade supranacional. Enfim, é capaz de conferir unidade às infinitas
possibilidades e à complexidade produzida pelo direito. Do mesmo
modo é a distinção “conforme o direito/não conforme o direito”,
mas como ela aparece diretamente especificada nos textos originais
dos autores sistêmicos – Rechtmässigkeit/Unrechtmässigkeit –, não
pode ser traduzida senão quando presente expressamente. Por fim,

44 Esta tradução encontra-se no verbete “Direito”, do glossário dos conceitos


luhmannianos. Cf. CORSI, Giancarlo. Diritto. In BARALDI, Claudio, CORSI,
Giancarlo e ESPOSITO, Elena. Luhmann in glossario. I concetti fondamentali
della teoria dei sistemi sociali. op. cit., p. 96.

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30 - DIREITO, TEMPO E MEMÓRIA

quanto à distinção “válido/inválido”, deve-se registrar que ela não


se refere diretamente ao código – que deve solucionar questões
relativas às frustrações de expectativas normativas –, mas à valida-
de dos programas condicionais, das normas jurídicas.
Não menos polêmica é a tradução do ponto de partida da te-
oria dos sistemas luhmanniana: a distinção System/Umwelt. As di-
ficuldades se concentram no segundo lado da diferença. O termo
Umwelt já foi traduzido por “ambiente”, “meio ambiente”, “entor-
no”, “meio circundante” ou “mundo circundante”. Para apreender o
significado técnico deste vocábulo, é preciso compreendê-lo não de
forma isolada, mas no âmbito da própria distinção. A diferenciação
é, para Luhmann, condição para criação de identidade. Assim, um
sistema só se constitui quando se distingue daquilo que a ele não se
refere. Ele se reconhece como identidade ao se observar como di-
verso. Esta observação estabelece uma fronteira entre aquilo que é e
não é sistema: Umwelt é tudo aquilo que não é sistema. Isto não
significa que Umwelt é descartado. Ele é condição de existência do
sistema: sem um dos lados da diferença, não há diferença. Neste
sentido, parece plausível entendê-lo como “ambiente” do sistema,
ou seja, aquilo que é externo e está em volta do sistema. Obviamen-
te, não se pode entender “ambiente” em seu sentido coloquial, como
“atmosfera”, já que, deste modo, ele se identificaria com o lado in-
terno de alguma coisa. A expressão foi escolhida por seu significado
técnico: espaço circundante externo, que envolve algo por todos os
lados, sem se confundir ou se misturar.
A opção por “meio ambiente” – do inglês environment –45
foi afastada, pois a palavra pode ser entendida como um compo-

45 Veja-se, a respeito da versão inglesa de Umwelt, RASCH, Willian. Introduction:


the self-positing society. In LUHMANN, Niklas. Theories of distinction: redescribing
the descriptions of modernity. Trad. Joseph O”Neil, Elliot Schreiber, Kerstin Behnke
e Willian Whobrey. Stanford: Stanford University Press, 2002, p. 19.

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RAFFAELE DE GIORGI - 31

nente do “ecossistema”. Neste caso, poder-se-ia aludir a existência


de vínculos de causalidade na relação entre System e Umwelt, já
que esta é a forma que une um organismo ao seu meio ambiente,
conforme definição biológica de “ecossistema”. Isto introduziria,
na distinção System/Umwelt, ligações de determinação que não
existem: o Umwelt é capaz de estimular, irritar o System, mas não de
controlar sua estrutura ou operações. Além disso, a palavra “meio” é
pouco precisa, uma vez que pode sugerir a idéia de um espaço inter-
mediário entre dois extremos e, portanto, de área interna. Por esta
razão, não há como manter a tradução “meio circundante”, adotada
em Portugal.46 Quanto ao termo “entorno”, influenciado pelas tra-
duções espanholas,47 sua incoerência deriva do fato de que, em lín-
gua portuguesa, a palavra significa “circunvizinhança” e Umwelt não
se reduz aos arredores do sistema. Ele expressa um conteúdo mais
forte: indica a estabilização de uma diferença.
A tradução “mundo circundante”, bastante difundida entre
1970 e 1980,48 deve ser analisada e questionada à luz de outro
conceito luhmanniano, a expressão Welt (mundo). Para os olhos
de um observador, “mundo” é a unidade da distinção System/
Umwelt. Como unidade, ele não pode ser observado. Pode-se ob-
servar um lado ou outro da diferença, mas não a identidade da

46 Esta foi a opção de Engrácia Antunes em TEUBNER, Gunther. O direito como


sistema autopoiético. Trad. José Engrácia Antunes. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 1989, p. 27.
47 Sobre a utilização do termo “entorno” pelos tradutores espanhóis, ver
NAFFARATE, Javier Torres. Nota a la versión en lengua castellana. In LUHMANN,
Niklas. Sistemas sociales: lineamentos para una teoría general. México:
Anthropos, 1998, p. 20.
48 Esta tradução foi realizada pelo introdutor do pensamento luhmanniano no Bra-
sil, Tercio Sampaio Ferraz Junior. Ressalte-se, entretanto, que, neste período, o
próprio Luhmann ainda não tinha elaborado, de forma precisa, a arquitetura
conceitual que comporá sua teoria da sociedade. Ver, a respeito da utilização
da tradução “mundo circundante”, FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Introdu-
ção ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 2ª edição. São Paulo:
Atlas, 1994, p. 253.

Raffaele_De_Giorgi.p65 31 7/2/2006, 15:16


32 - DIREITO, TEMPO E MEMÓRIA

diferença: só outra distinção seria capaz de observá-la. “Mundo”


é, portanto, o ponto cego da distinção System/Umwelt. Assim, ele
não pode ser reconhecido nem no System nem no Umwelt. Não
existe um “mundo circundante”, existe somente um “mundo”, que
abarca tanto o sistema quanto o ambiente.
Em torno do conceito Welt surge outro problema de tradu-
ção: o da expressão Weltgesellschaft – tema de um dos textos de
De Giorgi. Ela já foi traduzida por “sociedade-mundo”, “socie-
dade do mundo” e “sociedade mundial”. Quanto à primeira, a
inexatidão é semelhante àquela de “mundo circundante”: Welt
não pode se restringir a um dos lados da distinção System/Umwelt.
Como unidade desta diferença, “mundo” é horizonte das possi-
bilidades abertas e atualizáveis. O sistema social – ou sociedade
– é uma destas alternativas: comunicação. Assim, Weltgesellschaft
expressa como o horizonte de possibilidades é observado, pro-
duzido e verificado na comunicação. Em outras palavras: signi-
fica como o mundo se apresenta dentro da sociedade. Não há,
portanto, entre mundo e sociedade, uma relação semelhante àque-
la entre sistema e subsistema, que a expressão “sociedade do
mundo” poderia sugerir na língua portuguesa. Não se trata da
mesma hipótese que existe entre os sistemas jurídico, religioso,
político, econômico etc. e o sistema social. Neste sentido, a ex-
pressão “sociedade mundial” parece mais coerente do ponto de
vista sistêmico, uma vez que a utilização do adjetivo, ao invés da
locução adjetiva, reforça a idéia de que Weltgesellschaft é a comu-
nicação comunicando sobre mundo.
Finalmente, é importante mencionar o impasse na tradução
de dois termos fundamentais das análises luhmannianas: Diffe-
renzierung e Ausdifferenzierung. O primeiro é utilizado para ex-
plicar a diferenciação da sociedade, enquanto o segundo refere-se
ao processo de diferenciação dos subsistemas parciais. Tentou-
se, em italiano, traduzir Ausdifferenzierung por “metadifferen-

Raffaele_De_Giorgi.p65 32 7/2/2006, 15:16


RAFFAELE DE GIORGI - 33

zioazione”.49 No entanto, o risco de insinuar uma concepção trans-


cendental da produção social, o que Luhmann sempre desprezou, é
muito alto. Como não existe, em português, uma palavra capaz de
expressar Ausdifferenzierung, poder-se-ia criar um vocábulo, como fi-
zera, em francês, Jean Clam.50 Todavia, existe uma solução alternati-
va e, talvez, mais simples. Apesar de localizados em planos distintos,
Differenzierung e Ausdifferenzierung são mecanismos de diferencia-
ção. Assim, é possível adotar o termo “diferenciação” para ambos e
especificar qual a respectiva dimensão – sociedade ou subsistema –,
conforme o texto original. Quanto ao termo Innendifferenzierung –
diferenciação interna dos subsistemas parciais – não há nenhum pro-
blema, pois a tradução literal já indica um significado preciso.

IV
O objetivo deste artigo e da tradução desta obra de De Giorgi
foi o de contribuir para a difusão do debate sistêmico no ambiente
acadêmico brasileiro. Não tem a pretensão de esgotar ou “canonizar”
determinada terminologia. Procura-se, na verdade, estabelecer um
ponto de partida que, de um lado, possibilite maior precisão nas tra-
duções dos termos luhmannianos, visando ampliar o estudo desta
perspectiva teórica e, de outro, demonstre que, se este processo for
desenvolvido com elementos do próprio modelo, trará importantes
e inovadoras contribuições para a própria teoria da tradução.51

49 Cf. BELARDINELLI, Sergio. Nota del traduttore. In LUHMANN, Niklas. Funzione


della religione. op. cit., p. 17.
50 Para estabelecer uma distinção entre as duas formas de diferenciação, Jean Clam
inventou a palavra “perdifférenciation” para expressar o significado de
Ausdifferenzierung. Ver, nesse sentido, CLAM, Jean. Droit et société chez Niklas
Luhmann. La contingence des normes. Paris: Presses Universitaires de France,
1997, p. 21.
51 A escolha da tradução da terminologia sistêmica adotada nesta obra foi resulta-
do de intensa discussão com Celso Campilongo, Giancarlo Corsi, Marcelo Ne-
ves e Raffaele De Giorgi. Agradeço a todos pelas importantes contribuições.

Raffaele_De_Giorgi.p65 33 7/2/2006, 15:16


I

Direito e Memória

Raffaele_De_Giorgi.p65 35 7/2/2006, 15:16


RAFFAELE DE GIORGI - 37

A MEMÓRIA DO DIREITO
IREITO

Meu tema é a “memória do direito”. Antes de refletir sobre


ele, parece oportuno questionar se se trata efetivamente de um
tema, ou melhor, de um argumento sobre o qual se possa falar.
Parece legítimo perguntar se o direito não é sua própria memória
quando se diz, por exemplo, que ele reproduz as relações sociais e
que ele seria a representação de qualquer coisa diversa, ou seja, a
recordação de algo que se imprime no direito. Se o direito repro-
duz estas idéias ou, até mesmo, estas específicas relações sociais, o
direito seria, então, memória. Meu tema seria, portanto, um não
tema, pois deveria ser formulado como “o direito do direito” e isto,
como se sabe, é um paradoxo.
Para evitar o paradoxo, indago se a memória não tem um
outro significado. Afirma-se, por exemplo, que uma igreja é um
lugar da memória. Ela não é muito mais um lugar do esqueci-
mento? E um monumento? É um lugar de recordação ou de es-
quecimento? As respostas dependem do observador. Mas, quem é
o observador? Como observa este observador? Quando se empre-
ga a distinção recordar/esquecer, como saber se os “lugares da
memória” são lugares de recordação ou de esquecimento? Conta
Nietzsche que o homem uma vez perguntou para o animal: por
que você não fala da sua felicidade em vez de somente me con-
templar? O animal queria responder e dizer: isto ocorre porque eu
esqueço imediatamente aquilo que queria falar. Mas, logo em se-
guida, ele esqueceu sua resposta e se calou. Eis que o homem,
então, se maravilhou! Parece, entretanto, que o animal é quem
deveria ter se maravilhado. E, tenho certeza, que ele silenciou por
esta razão. Como de costume, nos casos semelhantes, ele preferiu
o silêncio.

Raffaele_De_Giorgi.p65 37 7/2/2006, 15:16


38 - DIREITO, TEMPO E MEMÓRIA

Para evitar o paradoxo do observador, pesquisei a literatura


sobre a memória. De um lado, porque se trata de um lugar da
memória. Muitos pensam que os livros são um dos numerosos
objetos nos quais se condensa a memória. Eles contêm a memória
cultural por que seriam produzidos, como se afirma, no âmbito de
uma cultura. Existe a memória coletiva – ainda que me seja difícil
entender por que – e, por fim, a memória individual, aquela que
pertence ao autor do livro. De outra parte, existem livros sobre a
memória que são, conseqüentemente, auto-referências absolutas.
Na realidade, estes livros são assim construídos: primeiro, eles pres-
supõem que o que se entende por memória é auto-evidente e que
esta auto-evidência deve ser desenvolvida como documentação
histórica. Dado que a memória relaciona-se com recordação e a
recordação só poder ser recordação do passado, os níveis da memó-
ria são níveis do passado, seja aquele longínquo ou aquele mais re-
cente. Para aqueles que entendem que a sociedade se desenvolve
em contínua negação ou – de modo hegeliano –, superando-se a si
mesma, o passado encontrado nos livros é uma coletânea de entu-
lhos. Quem, no entanto, possui uma outra perspectiva do passado,
examina tais livros como coletâneas de coletâneas. E a memória?
Ela é, para esta concepção, desdobramento de auto-referencialida-
de. A memória dos livros sobre a memória é um princípio explica-
tivo (Erklärungsprinzip). Esta é uma idéia introduzida por Heinz
von Förster, que se reporta ao “Metálogo de Batesons”:

Metálogo: O que é um instinto?


“Filha: Papai, o que é um instinto?
Pai: Um instinto, meu amor, é um princípio explicativo
(Erklärungsprinzip).
Filha: Mas, o que significa isto?
Pai: Tudo – quase tudo em geral. Tudo que se quer com isto
explicar.

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RAFFAELE DE GIORGI - 39

Filha: Eu não sou boba. O princípio ainda não explicou a


gravidade.
Pai: Ainda não, mas somente porque ninguém quer que ‘ins-
tinto’ explique a gravidade. Se se quisesse, também isto se explica-
ria. Nós poderíamos facilmente dizer que a Lua tem um instinto,
cuja força se altera de modo inversamente proporcional ao qua-
drado da distância...
Filha: Mas isto não tem sentido, papi.
Pai: Sim, certo. Mas você começou com ‘instinto’, não eu.
Filha: Está bem. Mas o que explica realmente a gravidade?
Pai: Nada, meu tesouro, porque a gravidade é um princípio
explicativo (Erklärungsprinzip).
Filha: Oh! Você quer dizer que não se pode empregar um
princípio explicativo (Erklärungsprinzip) para explicar outras coi-
sas? Nunca?
Pai: Hmmm... Raramente. Exatamente como pensava
Newton, quando ele dizia ‘hypotheses non fingo’.
Filha: E o que significa isto, por favor?
Pai: Bom, você já sabe o que são hipóteses. Cada proposição,
que liga duas proposições descritivas, é uma hipótese. Quando
você diz que os dias 1º de fevereiro e 1º de março foram de lua
cheia e estas duas observações, de alguma maneira, ligam-se uma
à outra, a proposição unida é uma hipótese.
Filha: Certo – e eu sei o que significa “non”. Mas, o que se
quer dizer com ‘fingo’?
Pai: É para já: ‘fingo’, ‘fingere’, é a palavra latina para ‘imagi-
nar’, ‘inventar’. Ela forma um substantivo verbal fictio, do qual nós
deduzimos a palavra ‘ficção’.
Filha: Papi, você quer dizer que Sir Isaac Newton pensou
que todas as hipóteses, como simples histórias, são inventadas?

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40 - DIREITO, TEMPO E MEMÓRIA

Pai: Sim – exatamente isto.


Filha: Mas então ele não descobriu a gravidade? Com a maçã?
Pai: Não, querida. Ele a inventou”.

A memória à qual me refiro é um princípio explicativo


(Erklärungsprinzip). Recorre-se a isto quando não se quer mais
explicar exatamente o que se pretende explicar. Àqueles que utili-
zam este princípio explicativo (Erklärungsprinzip), objeta-se que,
quando falam da memória coletiva, cultural ou social, na verdade,
estendem a necessidade individual ao coletivo, à cultura ou à soci-
edade. De acordo com tal objeção, não se está em grau de deter-
minar as características específicas que diferenciam a memória
individual daquela social ou da cultural. Na realidade, não se trata
disto. Quem confirma semelhante dimensão, parte do pressupos-
to – já formulado na Antiguidade Clássica – de que a memória do
indivíduo resgata, reúne e conserva recordação. Segundo eles, este
árduo trabalho é igualmente realizado pelos grupos e pela cultura.
Na verdade, este entendimento baseia-se em um profundo equí-
voco da consciência dos indivíduos que é estendido à sociedade,
compreendida como um conjunto de indivíduos reunidos por seus
particulares rastros.
Em seguida, pretendo demonstrar que a memória é entendi-
da como um princípio explicativo (Erklärungsprinzip); que os in-
divíduos inventam sua memória; que a sociedade e, por
conseguinte, os sistemas sociais – e, portanto, o direito – inven-
tam uma memória. Trata-se de provar, ainda, que a memória e,
naturalmente, também a memória inventada pelo direito, é consi-
derada uma função que é justificativa de si mesma e, conseqüen-
temente, decorre da evolução.
Começo com um paradoxo.
1. “Eu me lembro”. Assim começa o conto “Funes el memo-
rioso”, de Borges, de 1942. “Eu me lembro”, escreve Borges que,

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RAFFAELE DE GIORGI - 41

ao perceber, de imediato, a gravidade de sua afirmação, acrescen-


ta: eu não tenho o direito de pronunciar este verbo sagrado. Um
único homem teve este direito e este homem está morto. Foi Ire-
neo Funes, um jovem de 19 anos, cuja vida fora transformada por
um acontecimento imprevisto: ele caiu do cavalo e perdeu os sen-
tidos. Ao readquirir a consciência, percebeu que o presente tinha
se tornado insuportável. Em sua memória, tudo era presente. Ele
lembrava de tudo. Nós, escreve Borges, percebíamos com um olhar
três copos sobre uma mesa. Funes, todos os brotos, uvas e grãos em
um caramanchão. Sabia as formas das nuvens austrais de 30 de abril
de 1882 e podia compará-las, em sua lembrança, com a capa mar-
morizada de um livro que vira uma única vez ou com as espumas
que um remo levantara, no Rio Negro, às vésperas da batalha do
Quebracho. Não somente as imagens reproduziam-se continua-
mente na memória, mas, com elas, também aparecia uma sensação
térmica muscular que as acompanhava quando elas se tornaram
acessíveis à percepção. Duas ou três vezes Ireneo reconstruíra um
dia inteiro, mas, para cada reconstrução, também despendia o mes-
mo tempo. Ireneo via a crina desarrumada de um potro e as muitas
faces de um morto durante um longo velório. “Minha memória”,
diz Ireneo, “é como um depósito de detritos”. Ireneo Funes morreu
em 1889, aos 19 anos, de uma congestão pulmonar. Assim escreve
Borges, que inventou Ireneo nas suas Ficciones.
Na realidade, Ireneo morreu porque ele não pode viver. Ele
não pode viver porque não tem tempo; não tem tempo porque
não tem presente e não tem presente porque não pode fazer dis-
tinções. Ele morreu, pois é incapaz de construir o tempo: não pode
ativar, operativamente, a possibilidade de distinguir entre o tempo
dos eventos perceptivos e o tempo de sua reativação seletiva, por
meio de seu sistema nervoso. Não tem condições, portanto, de cons-
truir uma memória. Ireneo pode somente duplicar o tempo dos
eventos e afundar no mar indistinguível de seu fluir. Ele não pode,

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42 - DIREITO, TEMPO E MEMÓRIA

na verdade, nem mesmo perceber por que sua lembrança dos even-
tos reativa, com os eventos, as percepções pelas quais ele viven-
ciou aqueles acontecimentos quando eles surgiram. Ireneo também
não pode pensar. Borges escreve que ele era quase incapaz de idéi-
as genéricas, platônicas. Na realidade, Ireneo não é capaz de reali-
zar cognição, pois não pode construir, para si, uma realidade.
Inventar, para si, uma realidade. Ireneo não tem memória.
2. É este o paradoxo da memória individual, entendida como
recordação, ou seja, como representação de qualquer coisa, de even-
tos, imagens, imagens de imagens que podem ser requisitadas.
Um paradoxo que possibilita ver como isto a que chamamos de
memória não pode surgir de uma relação direta nem com o passa-
do – que não é diretamente acessível a nenhuma observação –
nem com o mundo externo – que não é acessível diretamente.
Nem mesmo aqueles remédios que se davam às crianças para for-
talecer a memória (no meu tempo, chamava-se Biotônico Fontoura),
são diretamente memorizáveis, ou melhor, acessíveis para a me-
mória. O problema do acesso é relevante, porque quando se pensa
a memória como um dispositivo de conservação e manutenção de
qualquer coisa que fora arquivada em um determinado lugar, já se
deve saber como entrar no lugar onde aquilo está conservado. Se a
hipótese platônica da CERA (?- APARÊNCIA OU CÊRA??)
não nos satisfaz, o problema do acesso ainda permanece. As metá-
foras da memória, especialmente na chamada memória cultural,
pressupõem que são conservados instrumentos, reproduções, arte-
fatos: quaisquer entidades que são por si mesmas acessíveis. Mas,
na memória individual, não existe lugar para tudo isto. Assim como
não existe lugar para a memória individual.
Por que Ireneo não tem memória?
“Lá fora”, escreve Heinz von Foerster, “não existe nas coi-
sas nem luz nem cor, mas simplesmente ondas eletromagné-
ticas; ‘lá fora’ não há nem sons nem música, mas simples-

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RAFFAELE DE GIORGI - 43

mente periódicas ondas de pressão no ar... e, por fim, ‘lá fora’


não existe seguramente dor”.
Nossos receptores sensoriais são cegos em relação à qualida-
de de suas estimulações. Eles reagem somente à quantidade. Este
é o princípio da codificação indiferenciada. O ambiente não con-
tém informações. O ambiente é como ele é. E o cântico das cria-
turas? A riqueza, a variedade, o sublime do universo? Simples
quantidades? E o acesso a tudo isto?
“A única coisa acessível ao sistema nervoso, em qualquer lu-
gar, são os estados de atividade relativa entre as células ner-
vosas e a única coisa, que pode ser originada por um deter-
minado estado de atividade relativa, são estados de ativi-
dade relativa em outras células nervosas que constroem os
estados de atividade relativa, da qual elas reagem”.
Humberto Maturana.
A conseqüência deste modo operativo do sistema nervoso
ou de um organismo é que a estrutura ativa não pode distinguir
entre os estados interno e externo da atividade nervosa. Esta dis-
tinção torna-se visível somente quando estes estados indicam di-
retamente suas origens ou quando se constroem fenômenos
correlatos, que se tornam pontos de referência das interações pro-
duzidas entre os estados. Isto se explica porque cada estado de
atividade relativa modifica a atividade relativa de outra célula ner-
vosa. Um estado de excitação nervosa produz não somente modi-
ficações nos possíveis estados do sistema, mas produz modificações
também na passagem das regras de um estado para outro. O que
se modifica, portanto, é o modus operandi de uma rede de relações.
Estas se correlacionam conjuntamente e tal correlação produz um
novo estado do sistema inteiro. Trata-se de uma atividade cons-
tante que nunca se interrompe. Ela, porém, é especificada, em
cada instante, pelas operações do sistema. Nesta relação entre cons-
tância e transformação, são ambos os fenômenos que determinam

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44 - DIREITO, TEMPO E MEMÓRIA

o sentido da transformação. São modificações de natureza morfo-


lógica e funcional, que geram permanente transformação da rea-
tividade do sistema. Cada transformação é modificação de uma
transformação precedente.
Um observador diria que o sistema aprende, que aprende no
presente, e que identifica, no aprendizado, uma seqüência de com-
portamentos do sistema, através dos quais se estende sua área de
cognição. Da perspectiva da teoria dos sistemas, trata-se de requi-
sitos internos das transformações do sistema. O aprendizado de-
senrola-se para o sistema como um processo atemporal de
transformação. A temporalidade é construída quando o sistema
interage através de suas distinções com seus próprios estados. E
dado que este processo interativo é contínuo, o sistema é o produ-
to de suas próprias modificações, isto é, ele é seu próprio resulta-
do. O processo não tem começo nem fim, pois o sistema não pode
observar nem seu início nem seu final. O sistema se especializa na
prática de suas distinções e, assim, pode se reconhecer. Pode cons-
truir temporalidade, pode estender ou edificar o tempo e o espaço
ocupado pela sua cognição.
A função da memória é expressão de um sistema modificado
capaz de sintetizar novos comportamentos que são relevantes para
seu presente estado de atividade. O sistema interage com seus
próprios estados através de suas recursivas operações distintivas e
coliga as relações que ele próprio produz. “A memória”, escreve
von Foerster, “é reproduzida por meio de um especial modus ope-
randi do cálculo aritmético central, cuja completa organização
funcional é definida e redefinida pela avaliação dos estados parti-
culares e das relações”. A partir daí, extraem-se duas conseqüênci-
as de grande relevância. Primeira: a memória, como a relação de
experiências passadas, é a construção de um observador. Não exis-
te, portanto, uma função neurofisiológica chamada “memória”,
compreendida como “depósito de representações do ambiente que

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RAFFAELE DE GIORGI - 45

possa ser requisitado em diversas ocasiões”. Segundo: a memória


está em toda parte. Ela está na estrutura “dos esquemas de ligação
e nas modalidades de operação de todos os pontos nodulares da
retícula”.
3. Os resultados de nossas considerações são de grande rele-
vância e, talvez para muitos, redundantes. A redundância tem uma
função importante na economia da comunicação. Mas, de qual-
quer modo, alcançamos alguns sólidos pontos que constituem o
núcleo das reflexões sobre a memória do direito e que, claramen-
te, marcam uma diferença e uma distância que nos separam de
grande parte das publicações comerciais que se vestem no merca-
do com a etiqueta “memória” acompanhada de um adjetivo qual-
quer. Vejamos, então, quais são estes pontos importantes. Cabe,
no entanto, alertar que o objeto primário de nosso interesse não é
nem o cérebro nem o processo de aprendizado individual ou cole-
tivo (expressão que, além de insensata, é também perigosa), mas
os sistemas sociais, ou melhor, a sociedade. O conhecimento que
deriva da observação da memória individual não nos serve muito,
porque podemos aplicá-lo de forma análoga e, mais do que isto,
porque eles são resultado do conhecimento que não pode ser des-
considerado. A ciência social não pode fechar-se à observação do
conhecimento que é produzido na esfera específica do sistema
científico.
De fato, se se consideram somente os indivíduos, nota-se,
imediatamente, que as idéias correntes sobre a memória são fru-
tos de ontológicos desprezos do indivíduo. Vejamos, por exemplo,
uma pesquisa sobre a memória: “nós devemos constatar que a memó-
ria é a capacidade de lembrar... faz os homens tornarem-se homens”.
Uma afirmação inaceitável como esta se torna pressuposto para
outra afirmação igualmente inaceitável:
“Indivíduos atrelam suas lembranças na grande memória
da sua comunidade, da sua cidade, da sua geração”.

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46 - DIREITO, TEMPO E MEMÓRIA

Ou se afirma que:
“Instituições e entidades como nações, Estados, a igreja ou
uma firma não ‘possuem’ memória, mas ‘fabricam’ uma para
si. Por isso, elas servem-se de marcas e símbolos memoriais,
textos, imagens, ritos, práticas, lugares e monumentos. Por
estes meios e exercícios de memória, os indivíduos são dota-
dos de determinada capacidade de memória e, com isto, são
detentores da memória coletiva”.
O ponto mais alto desta transcendência é construído pela
“memória da vontade”. De outra parte, encontram-se refinadas
formulações que, todavia, não se afastam da igualdade Memória =
Depósito e que fundamentam sua descrição por meio da manipu-
lação de conceitos como “Armazenagem e Tradição”, “Ato de ar-
mazenar”, “Reviver” etc.
Essas considerações nos dão motivo suficiente para pensar a
memória sem rótulo e empregar uma expressão mais conveniente.
A memória é uma função que se desenvolve quando o organismo,
ou melhor, o sistema observa as relações entres seus estados e as
conecta. A memória é, então, um modus operandi que continua-
mente é definido e redefinido pelo modo de funcionamento do
sistema e que, ao mesmo tempo, redefine este modo de funciona-
mento. A memória é um fenômeno correlato que acompanha as
operações do sistema. A memória permite um exame contínuo e
consistente das operações do sistema. A temporalidade do sistema
é produzida através da memória. Ela produz o tempo do sistema,
pois permite que ele saiba que todas suas operações são frutos de si
mesmas, ou melhor, que ele, sistema, é determinado por si mesmo.
Por meio da função da memória, o sistema é presente a si
mesmo. Isto permite ao sistema isolar, na rede de contínuos re-
envios simultâneos de modificações de estados, aquela modifica-
ção de estado que pode ser sintetizada como relevante para um
novo comportamento e, conseqüentemente, neste momento, como

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RAFFAELE DE GIORGI - 47

estado momentaneamente capaz de conexão. Deste modo, a atem-


poralidade das operações é interrompida e esta interrupção cons-
titui o tempo. Forma-se, com isto, diferença e exclusão, que serão
encadeadas somente no final da interrupção. Se chamarmos esta
exclusão de “esquecer”, veremos, então, que o tempo se forma com
o “esquecer”, que o tempo é sempre presente e que coordenação e
correlação são resultados de um processo de exclusão. Em outras
palavras: a função da memória, que acompanha as operações do
sistema que são relevantes para a constituição do presente, é uma
função de distinção, uma função que continuamente reproduz a
diferenciação entre recordar e esquecer. Recordar, todavia, não é
um termo apropriado. Aquilo que o sistema recorda é o fato de
que, em todas suas operações, ele é sempre presente, é sempre
presente a si mesmo, ou seja, que ele recomeça sempre de si. Neste
sentido, o sistema opera como um sistema histórico, ou seja, como
um sistema determinado estruturalmente, um sistema que inven-
ta continuamente sua própria história. Com o presente, o sistema
constitui não apenas o tempo, mas também a história. Para ser
mais claro: as capacidades de perceber, recordar e indicar seu fe-
chamento não podem ser isoladas, pois constituem a totalidade
do processo cognitivo, que determina a capacidade do sistema de
inventar um novo comportamento. Aquilo que parece ser registro
ou devolução é, na verdade, reescrito. A reescrever acontece sem-
pre no presente. A consistência das operações é produzida de vez
em vez (? CASO A CASO ?) no presente. Conseqüentemente, o
sistema está sempre adaptado às situações: o sistema inventa as
situações às quais se adapta.
A memória controla as operações. Ela constitui, para si, uma
coerência através das operações que a coligam ao exame consis-
tente de sua evolução. Esta memória é resultado da evolução. Ela
se produz como função de contínua auto-adaptação do sistema
frente à infinita variedade de modificações de estado, os quais

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48 - DIREITO, TEMPO E MEMÓRIA

conduzem o sistema a se auto-orientar através da diferenciação


dos próprios estados de excitação relevantes para a escolha dos
atuais comportamentos. O sistema é forçado a seleções estáveis e
a oscilações entre um estado e outro. É forçado a estabilizar, em
cada caso, as modalidades de suas consistências. Estas modalida-
des surgem da invenção de regras transitórias, ou seja, regras de
transformação. Isto é, o sistema opera seletivamente e, portanto,
esquece continuamente. Mas adapta-se continuamente a si mes-
mo, pois, somente deste modo, está adaptado às situações. Este é
o único meio de adaptação ao ambiente colocado à disposição do
sistema. Através de sua memória, o sistema se estabiliza perma-
nentemente e torna-se continuamente imprevisível para si pró-
prio. Ele se estabiliza, pois coordena suas operações e as torna
consistentes. Mas o sistema não pode observar a distinção que
utiliza para realizar a prova de consistência, cujo resultado é a
memória que se manifesta na construção do presente. Por isto, ele
se torna imprevisível e, assim, evolui. Na memória, se lê a evolu-
ção. A memória, assim como a evolução, está em toda a parte.
4. A memória é uma função dos sistemas que temporaliza as
operações recursivas atemporais. Conseqüentemente, os sistemas
que processam sentido também possuem uma memória. Também
neles está presente uma função da memória. O direito, do mesmo
modo, possui uma memória. O direito é, igualmente, a estrutura
de um sistema que opera continuamente em uma atemporalida-
de: os eventos que o direito considera juridicamente relevantes
transformam-se em presente e, portanto, fragmentam-se, a cada
momento, em um antes e um depois. O antes e o depois seriam
relevantes para o direito se eles não fossem antes e depois de um
evento que o direito construiu como síntese relevante para um
novo comportamento. O direito, então, produz, constrói seu pró-
prio tempo e conhece a contingência de sua temporalidade, assim
como também sabe que é absolutamente imperiosa a necessidade

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RAFFAELE DE GIORGI - 49

de um exame de consistência de sua própria construção de even-


tos, ou seja, de seu próprio estado de excitação e do modo como
isto é tratado. Quanto mais relevante é o problema da consistên-
cia, mais a esfera de cognição do direito se estende. A extensão
desta esfera é o resultado da evolução. O direito deve estar pre-
sente a si mesmo em todas suas operações, ou seja, em cada exten-
são individual de sua relevância e em cada tratamento de eventos.
A atualidade da qual falávamos não se refere somente ao
problema do reconhecimento de suas operações como próprias,
mas refere-se, também, às possibilidades de confrontar constru-
ções e tratamento dos casos. Em outros termos: o direito deve
poder tratar seus estados estimuladores de atividade como gran-
dezas uniformes, como temas, porque, deste modo, podem-se es-
tabilizar correlações. Trata-se de correlações na construção e no
tratamento. É claro que o direito aplica seu código como distin-
ção fundamental, mas é claro, também, que o direito deve, ao
mesmo tempo, “esquecer” e “recordar”. Nessa contínua oscilação,
o direito observa seus artefatos e, através desta observação, per-
manece presente a si mesmo. A unidade do direito re-entra na
distinção entre sistema e seu ambiente interno e é representada
como a diferença entre, de um lado, atemporalidade ou indiferen-
ça temporal ou ininterrupção da capacidade de comunicação e, de
outro, temporalidade ou pontualidade dos eventos.
É essa a função da memória (memory function) do sistema.
Ela permite que o sistema jurídico invente-se uma realidade: uma
realidade, não a realidade, pois, no sistema jurídico, o sistema é
presente como observador. E como se inventa uma realidade?
Através do cálculo de descrições. Uma vez que estas descrições
são continuamente calculadas, o direito inventa sua realidade atra-
vés do cálculo dos cálculos. A memória está na não observação do
presente, na atualidade do presente. O presente pode ser observa-
do somente quando o presente é passado. A memória, assim, é

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50 - DIREITO, TEMPO E MEMÓRIA

resultado da evolução e a evolução não pode observar a evolução.


Aquilo que se pode observar são os próprios valores (Eigenwerte),
os próprios estados, os próprios conceitos, ou seja, aquelas aquisi-
ções evolutivas que constituem fósseis guias, sedimentos, que a
memória trata como temas no seu contínuo oscilar entre esquecer
e recordar. Deste modo, o sistema pode fazer experiência com si
mesmo. Por poder tratar a experiência como experiência, o direito
redefine seu passado e autoconstrói seu presente como espaço de
liberdade, vale dizer, como extensão temporal que torna possível a
previsão e a prospecção. A memória está sempre em toda parte,
mas sempre no presente. O presente é a realidade que o sistema
constrói; a realidade de seu oscilar e de sua auto-especificação no
uso das diferenças.
A função da memória orienta-se, assim, para a construção
do presente como uma realidade do direito. Ela permite, portan-
to, que o direito represente sua atividade como um agir do sistema
em sua totalidade, temporalize seus estados de automovimenta-
ção e se observe como temas. A função da memória permite que o
direito opere na simultaneidade todos seus estados de automovi-
mentação e construa, para cada um deles, uma temporalidade di-
ferente. Através de sua memória, o direito considera seus estados
como temas. Costuma-se chamar tais temas de casos individuais.
Dado que o direito, em cada uma de suas operações – cada
uma das atividades que o observador considera como aplicação
do direito –, inicia sempre a partir de si próprio, sua memória é
sempre uma memória histórica e, como memória, não tem um
começo. Através de sua memória, entretanto, o direito pode sem-
pre construir seu início e, conseqüentemente, fixá-lo. Ele fixará
seu início naquela espécie de atividade sináptica que recebe um
estado de atividade relativa e a trata, no confronto com os pró-
prios estados e os próprios conceitos do sistema, como temas,
como casos.

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RAFFAELE DE GIORGI - 51

5. O sistema é, ao mesmo tempo, sua memória e o destinatá-


rio dela. Isto vale também para o sistema jurídico. A memória não
diferencia considerando uma finalidade e não se exaure com a
construção de uma realidade ou com a repetição de uma operação,
assim como o direito também não se esgota em um de seus esta-
dos. Estes devem se repetir continuamente. Em outras palavras:
pretensões em torno do direito devem ser manifestadas e válidas.
O direito deve poder produzir continuamente o tempo que con-
some em cada uma de suas operações. Deve poder observar. Deve
poder empregar a distinção antes/depois tanto em relação ao seu
ambiente, quanto a si próprio. O sistema deve poder utilizar a
temporalização tanto para estabilizar sua função em contraposi-
ção ao ambiente, quanto para observar suas próprias operações.
No curso de sua evolução, o direito introduziu um valor que
não tem valor, mas que é um símbolo que circula continuamente
no sistema e que se chama validade. Este símbolo confere valor de
realidade às combinações entre as operações e permite que o sis-
tema reconheça suas operações como operações do sistema. O sím-
bolo justifica, assim, a capacidade de mudança e de combinação,
capacidade de conexão. Se verificada a introdução do símbolo e a
adaptação da estrutura hierárquica do sistema jurídico à tempora-
lidade, uma aquisição evolutiva pode ser observada. Agora, a ca-
pacidade de mudança pode ser sempre reconhecida a partir do
direito como novo direito, que vincula o tempo e que permite,
portanto, que o sistema jurídico recomece sempre de si próprio. A
capacidade de conexão vincula o tempo porque permite ao direito
produzir seqüências observadas por ele mesmo como grandezas
individuais, como episódios, através dos quais o direito reage ao
ambiente externo. Mas o ambiente é aquilo que ele é, incapaz de
produzir informações. Informações são produzidas pelo direito.
O ambiente proporciona irritações que o direito percebe como
eventos comunicativos. A qualificação destas irritações acontece

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52 - DIREITO, TEMPO E MEMÓRIA

no sistema. A atividade de percepção do direito é movimentada


por estruturas de expectativas que se dirigem ao direito. A elabo-
ração desta percepção realiza-se com o processar da distinção líci-
to/ilícito (rechtmässig/unrechtmässig).
A validade do direito é a memória do sistema. Como me-
mória, a validade permite que o sistema recorde e esqueça ao mes-
mo tempo. Permite previsão e retrospecção. O direito não pode
simplesmente “recordar” ou “esquecer”, vale dizer, olhar para trás
ou não olhar para atrás. A memória é o ponto cego da distinção
entre recordar e esquecer. Ela é o fenômeno secundário que deriva
da correlação entre os estados de automovimentação do direito.
Ela é a auto-referência do cálculo das descrições que são elabora-
das pelo direito.
O caráter de aquisição evolutiva desta memória pode ser vis-
to porque, agora, o direito pode especificar-se na função de elabo-
ração do cálculo dos cálculos, ou seja, de produção do direito a
partir do direito e, conseqüentemente, no uso de seu código, que
se torna um código universal. Se a memória está em toda parte,
então ela funciona como “restrição daquilo que pode ser tratado
como premissas futuras do tratamento de um caso” (Luhmann).
O direito deve organizar o acesso à informação. Não pode reco-
meçar sempre de novo. Cada repetição reativa o sistema em uma
nova situação. O direito deve poder aprender consigo. “Pode-se
também dizer”, escreve Luhmann, reportando-se a Heinz von
Foerster, “que a memória mantém, de forma ordenada, os própri-
os valores do modo de produção recursiva do sistema”. Esta or-
dem reduz a quantidade de informação necessária para o
tratamento dos casos porque torna acessíveis as invariabilidades
que são produzidas nos cálculos efetuados pelo direito. Estas in-
variabilidades, estes próprios valores, são os pontos nodais em torno
dos quais se reúnem redundâncias. A redundância sempre é pro-
duzida na comunicação. Ela não é informação, mas facilita a ela-

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RAFFAELE DE GIORGI - 53

boração de dados necessários para a produção de informação. Ela


permite o esquecer, pois possibilita a formação da identidade que
pode ser constatada quando o desvio se apresenta. Mais ainda, o
diverso, o desvio, pode ser observado como desvio, porque se so-
brepõe àquela sombra que acompanha a informação e traz à luz as
diferenças. Os próprios conceitos do direito condensam redun-
dância e esta condensação permite a elaboração de observações,
ou seja, distinções sempre mais elaboradas. Esta contínua especi-
alização no uso de distinções exonera a memória do direito da
necessidade de explicação do surgimento da informação e, ao
mesmo tempo, produz um contínuo aumento da organização das
condições de acesso à informação.
O direito, em outras palavras, esquece cada vez mais. Está
sempre mais indiferente à surpresa, pois sua memória lhe fornece
uma capacidade sempre alta de especificação. Isto possibilita que
o direito produza diferenças internas e ulteriores especificações
de sua função, aperfeiçoe sua sensibilidade e se deixe observar por
uma maioria de observações que ativam, contemporaneamente, a
memória do sistema. Estas ativações simultâneas podem ser cor-
relacionadas somente pela memória genérica do sistema jurídico,
que se auto-submete a um exame de consistência através dos dife-
rentes estados de atividade relativa do sistema inteiro. A conseqü-
ência é um contínuo incremento da diferenciação interna do
sistema jurídico, vale dizer, de sua memória. Em outras palavras,
verifica-se um aumento da extensão da esfera de cognição do di-
reito. Quando, todavia, cresce a variedade no interior do direito,
aumenta também a redundância e, com esta última, crescem, ain-
da, dois efeitos concomitantes: por um lado, a trivialização do di-
reito em relação ao seu tema e à elaboração de sua linguagem e,
por outro, o fenômeno da exposição do direito à indeterminação.
A atividade do direito é continuamente determinada pela
percepção dos eventos individuais, ou seja, pela comunicação de

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54 - DIREITO, TEMPO E MEMÓRIA

expectativas jurídicas. O direito atribui a esta modalidade de co-


municação um dos valores de seu código lícito/ilícito. O direito,
em outros termos, sincroniza sua temporalidade com a tempora-
lidade do ambiente, com o qual se acopla através da especificação
de expectativas jurídicas que o sistema usa de modo oportuno.
Esta especificação depende da memória da sociedade. A reação
do direito se manifesta como decisão, ou melhor, como um even-
to pontual, em que se reativa a memória do sistema. A reativação
da memória – o emprego de redundância – torna-se manifesto na
argumentação. Na argumentação, o direito se auto-observa com
auxílio da distinção entre recordar e esquecer.
“Deslocamentos de validade e argumentação”, escreve Luh-
mann, “são combinados através de acoplamento estrutural, isto é,
através de textos”. Textos devem ser interpretados. Textos são de-
pósitos, não são informações: somente interpretação produz in-
formação. Em outras palavras, através da memória do direito se
produz sentido e, portanto, comunicação e, portanto, presente. Os
textos, dessa forma, possibilitam que o sistema represente seus
estados internos.
6. O direito constrói para si uma realidade com a ajuda da
função da memória. É esta a realidade de suas operações. Todas as
operações do direito utilizam a distinção lícito/ilícito. Esta dis-
tinção é, simultaneamente, utilizada por diversos observadores, os
quais não podem ver a distinção que empregam, pois não se con-
segue, na distinção, observar a distinção da distinção e as opera-
ções com as quais se indica uma parte da própria distinção. Os
observadores são observados continuamente através de outros
observadores que observam como os observadores observados
empregam a distinção, mas estes mesmos não podem ver a distin-
ção que utilizam. Se a condição de possibilidade das operações do
sistema for sua observabilidade com base na distinção lícito/ilíci-
to, esta condição de possibilidade é o ponto cego de todas as dis-

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RAFFAELE DE GIORGI - 55

tinções que são utilizadas no sistema. Tal ponto cego não é outra
coisa que não a esfera de latência do sistema, em que se constroem
seus próprios valores, que são as formas “que se satisfazem quan-
do um sistema se adapta a uma contínua observação que não pode
ser observada”. Estes próprios valores são as distinções que se di-
ferenciam e não se diferenciam.
Na simultaneidade das operações, o tempo retorna no tem-
po e o sistema do direito se acomoda sempre no presente. Neste
presente, a inobservável latência de todas as observações de obser-
vações se movimenta. Neste presente, que é o tempo da memória,
está em construção a aquisição evolutiva que desenvolve o para-
doxo construtivo da autofundamentação do direito.
Deste modo, podemos ver como o direito organiza uma ges-
tão centralizada dos paradoxos, que nascem da ocultação do para-
doxo constitutivo do direito. Pode-se também constatar como o
direito, através do acoplamento estrutural com os outros sistemas,
constrói suas características e como se estabiliza a regularidade de
um operar que sincroniza as diferentes temporalidades. Podemos
ver, ainda, como o direito está sempre adaptado a um ambiente
externo imprevisível, contra quem age como se estivesse coligado
em série. Esta coligação em série permite ao direito abandonar a
casualidade da intervenção dos acontecimentos. Finalmente, po-
demos constatar como o direito tolera as transformações contínu-
as dos artefatos históricos de sua memória, isto é, como possibilita
e permite o aumento e a extensão da redundância que é produzida
através da comunicação juridicamente relevante.
O sistema inteiro se especifica através do emprego de dife-
renças que a memória do direito submete a um contínuo exame
de consistência. Isto significa também que, por meio de sua me-
mória, o direito regula o grau e realiza a forma de sua autonomia.
Uma forma de dois lados, que a evolução conduziu a um recípro-
co incremento. Dependência e independência crescem juntas, como

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56 - DIREITO, TEMPO E MEMÓRIA

particularmente demonstra uma comparação da autonomia da


memória do direito com aquela da sociedade. Esta autonomia pode
ser observada de modo específico em relação à utilização de re-
cursos que a memória da sociedade disponibiliza. Estes constitu-
em um substrato medial que é utilizado pelo direito para a
reconstrução de suas próprias formas. A especificação de expecta-
tivas jurídicas, que é contingente para o direito, deriva destes re-
cursos. Mas também os meios de comunicação são meios que o
direito usa para construir suas próprias formas.
Tais considerações nos permitem formular conclusões pro-
visórias e alguns problemas. A memória do direito opera sempre e
de qualquer jeito. Ela opera sempre no presente, constitui o pre-
sente do direito e torna o direito presente de si mesmo. Não se
pode pensar em uma operação do direito sem a memória do siste-
ma. Uma memória que nada tem a ver com elementos recolhidos
e conservados em qualquer lugar do sistema ou em seu exterior, e
que não extrai informações destes elementos, mas constrói as in-
formações e, com elas, também os elementos como titulares da
informação. Uma memória que produz a sua identidade como a
sombra que produz aquele que caminha. Uma teoria da memória
do direito é sempre uma teoria do direito presente para o direito
presente.
O primeiro problema que surge é como seria construída uma
história da memória do direito. Se a memória é resultado da evo-
lução, o problema aumenta: como seria construída uma história
da evolução, isto é, uma história das construções da realidade que
não podem observar a si mesmas como construções de realidade?
Se a evolução é cega e não pode ver a si mesma como evolução,
uma respectiva história seria uma história da cegueira. O prêmio
Nobel português José Saramago escreveu um interessante romance
chamado “Ensaio sobre a cegueira”. Todos os protagonistas são
cegos e constroem uma realidade de cegos. Entre eles, entretanto,

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RAFFAELE DE GIORGI - 57

existe uma mulher, que todos pensam ser cega como os demais,
mas que, na realidade, pode ver e finge a cegueira para si mesma e
para os outros. A chave do romance é a duplicidade desta mulher.
Alguns acreditam que a memória se encontra em determi-
nados lugares e que seja possível procurar onde foi depositada.
Ou, também, que as sociedades atravessam fases de transição, de
Times-outs, de ruptura, durante as quais se produziriam grandes
destruições. Em outras palavras: uma memória se exauriria e uma
outra começaria uma nova fase, tipologia ou organização. Alguém
que se ocupa do estudo da memória escreveu: “somente por esta
razão fala-se tanto de memória, porque ela não existe mais”. E
continua: “nós vivenciamos um olhar da transição, pois a consci-
ência de uma ruptura com o passado caminha com a sensação de
uma perda da memória”. Mas, se a memória é um conceito expli-
cativo, então não se pode admitir uma perda ou um desapareci-
mento da memória. Pensa-se diretamente em transformações,
rupturas ou transições, mas aquilo que não se pode interromper é
justamente a memória. A ruptura com o passado existe sempre,
pois o passado não existe mais. A memória, de fato, refere-se ao
presente, não ao passado. Como afirmava Dürrenmatt: “Se os pas-
sados fossem anulados, o universo transbordaria sobre nós” – os
passados, não o passado.
Para permanecer no passado e, ao mesmo tempo, na memó-
ria que não pode afastá-lo – e se pudesse veria a si mesma, isto é,
não veria nem mesmo a si mesma –, retomo novamente uma ima-
gem de Dürrenmatt, uma espécie de memória do escritor, que se
encontra em “Labyrinth. Estrofe I-II”. O tema é passado e ima-
gem. “O que nós chamamos história do mundo”, escreve Dürren-
matt, “assemelha-se, igualmente, a um olhar da bruma de
Andrômeda. Esta também se encontra inacessível no passado, dois
milhões e quinhentos mil anos atrás. Sua luz, que nós avistamos,
perdeu-se no primeiro aparecimento da humanidade”. O que ve-

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58 - DIREITO, TEMPO E MEMÓRIA

mos, quando vemos esta luz? Nós a vemos agora, sempre agora.
Assim como outros observadores por milhões de anos a teriam
sempre agora observado, se a tivessem podido observar. O que
nós vemos quando vemos esta luz: passado ou presente? Qual pas-
sado e qual presente? Qual realidade tem esta luz? Quem é o ob-
servador? São estes os dois problemas: o observador e a construção
da realidade. O observador é o sistema, a realidade que ele cons-
trói é a realidade de sua memória.
8. Em uma entrevista, perguntaram a Heinz von Foerster o
que era a realidade. Para responder, ele contou uma história: um
sacerdote islâmico cavalgava sobre seu camelo no deserto e se de-
parou com uma briga de três beduínos. Ele os cumprimentou e
perguntou por que brigavam. Um dos beduínos respondeu: “An-
tes de nosso pai morrer, ele nos mandou dividir, entre os três fi-
lhos herdeiros, 17 camelos. O mais velho deveria ter a metade, o
segundo um terço e o último a nona parte. É impossível dividir os
17 camelos deste modo”. O sacerdote refletiu, reuniu seu próprio
camelo aos dos herdeiros e realizou a divisão com 18 camelos. O
mais velho recebeu 9, o segundo 6 e o terceiro 2 camelos. A soma
dos camelos repartidos totalizava somente 17. Dessa forma, o sa-
cerdote retomou seu próprio camelo e continuou sua viagem. Esta
história tornou-se célebre, pois Luhmann a usou em um manus-
crito, que recentemente foi publicado por Gunther Teubner. Na
versão de Luhmann, o número total de camelos é 11. Isto não
altera o resultado. O que era um total de 18 camelos para Heinz
von Foerster, torna-se, para Luhmann, um total de 12. Os 12 ca-
melos permitem que Luhmann escreva uma história das implica-
ções do paradoxo constitutivo do direito e de seu desdobramento.
A história de Luhmann é, na realidade, uma sociologia do para-
doxo. Os 12 camelos, para Luhmann, eram necessários e não ne-
cessários. O camelo tem uma função operativa, possibilita a decisão.
“O camelo é, como símbolo, a soma das possibilidades. Ele é, em

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RAFFAELE DE GIORGI - 59

outras palavras, a auto-referência localizada do sistema”. E mais:


“Os 12 camelos percorrem, ao mesmo tempo, todos os caminhos
que se dividem”. Pode-se perguntar se os 12 camelos, na concepção
de Luhmann, são a memória do direito, assim como se os 18 came-
los, no sentido de von Foerster, eram a realidade. O camelo é o
ponto cego das operações. Não é um valor que se acrescenta aos
valores dos camelos, mas é adicionado ao valor das operações. Ele
poderia atuar, sem dúvida, como valor de fechamento da operação.
Existe, no entanto, uma outra versão desta história. Entre os
livros de crianças que circulavam no Brasil na primeira metade do
século passado, existe uma coleção de narrativas chamada “O
Homem que calculava”. Trata-se de narrativas orais que foram
reunidas por um autor, cujo pseudônimo é Malba Tahan. Tam-
bém aqui, existe um problema de partilha de herança. Desta vez,
no entanto, existem 35 camelos, que devem ser partilhados por
três filhos na mesma proporção presente na história de von Foers-
ter. Nesta narrativa, é um jovem iraquiano, Beremiz Samir, que
resolve o problema. Os atuais 36 camelos podem ser exatamente
partilhados conforme o desejo paterno: o mais velho, a quem cor-
respondia a metade, recebe 18 camelos; o segundo filho, da terça
parte, ficava com 12; ao filho caçula restavam 4 camelos, propor-
cionais à nona parte. Como se pode notar, 34 camelos são dividi-
dos para satisfazer a briga dos herdeiros. Mas, nesta situação,
sobram não apenas um camelo, mas dois. Beremiz retomou o seu
camelo e presenteou o outro a um amigo que o acompanhava na
viagem para Bagdá. Uma perigosíssima viagem, na qual não era
aconselhável que duas pessoas cavalgassem em um único camelo.
Neste ponto, surgem muitos problemas, muitas dúvidas e,
talvez, abram-se alguns horizontes. Não mais se trata de saber se
os 36 camelos, que Samir acrescentou à herança, são suficientes
ou não, muito menos se os camelos devem ser efetivamente dis-
tribuídos ou se realizavam simplesmente uma função. Não se pode

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60 - DIREITO, TEMPO E MEMÓRIA

mais dizer, também, que o camelo adicionado era a realidade. A


realidade está aqui duplicada. Se um camelo é a auto-referência
localizada do sistema, o outro é a hetero-referência deslocada? O
que é o segundo camelo? O prêmio dos justos, a vitória daqueles
que negociam acordos com o direito? Ou um presente como re-
cordação de uma operação?
Reflitamos brevemente. Deve-se efetuar a divisão de uma
herança e não se pode cortar um camelo em dois pedaços. Um
jovem de grande coração e inteligência coloca seu camelo à dispo-
sição, efetua a partilha de acordo com a intenção daquele que ha-
via escrito o testamento e sobram dois camelos, ou seja,
encontram-se ainda mais camelos. Concordo que o primeiro ca-
melo possa ser considerado como realidade. A realidade é o espa-
ço de possibilidades das operações. Ela é a atualização das operações
possíveis. Também está claro que esta realidade condensa a me-
mória do sistema. Deve-se concordar com a narrativa de von Fo-
erster e de Luhmann. E o outro camelo? A questão requer uma
particular atenção e uma reflexão analítica.
Para os fins desta discussão, levanto somente algumas hipó-
teses. A herança, a estrutura das operações, produz um excedente,
que acompanha as operações, mas nasce de sua sombra. O segun-
do camelo não circula no sistema como os outros. Ele é simples
resultado das operações. Mas, uma vez produzido, não pertence
mais à estrutura. Ele é indivisível, é inacessível a qualquer opera-
ção. Não existem possibilidades de introduzi-lo no cálculo. Ele é
uma duplicidade e basta! Não pode ser restituído a ninguém por-
que não pertence a ninguém. Escapa da circularidade das opera-
ções, mas se produz como um parasita das próprias operações.
Nasce das operações e é excluído das próprias operações. O came-
lo emprestado, ao contrário, está incluído. Este camelo é realidade
das operações e realidade para as operações. O outro, por sua vez,
é a realidade da exclusão. Em outras palavras, existe, ao mesmo

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RAFFAELE DE GIORGI - 61

tempo, inclusão e exclusão. A realidade das operações é, dessa for-


ma, memória da inclusão e da exclusão juntas. A memória do di-
reito seria memória da inclusão e da exclusão? Com operações
que produzem direito seriam produzidas, ao mesmo tempo, in-
clusão e exclusão? Acima do código do direito estaria um meta-
código parasitário, o código da inclusão e exclusão, e este código
se universalizaria com a especificação da memória do direito mo-
derno? Em outros termos, a diferença inclusão/exclusão seria a
verdadeira diferença que duplica a construção da realidade do sis-
tema jurídico e a exclusão seria o único resíduo que permanece
em uma memória cega, que opera sempre e em toda parte?
Isto é somente uma hipótese, que os sistemas jurídicos de
muitas regiões do globo parecem tornar plausível e que gostaria
de deixar para reflexões ulteriores.

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RAFFAELE DE GIORGI - 63

ROMA COMO MEMÓRIA DA EVOLUÇÃO

1.
A memória não é uma invenção recente. Recente, entretan-
to, é a redução da memória – e, por conseguinte, sua decadência –
à simples possibilidade de conservação do passado e à capacidade
de recordar, comandar e relembrar este passado exatamente como
aconteceu. Esta é uma decadência que aprisiona a memória justa-
mente no espaço do pensamento “por acidente” e com a qual Aris-
tóteles se ocupará largamente. De fato, com ele, conclui-se uma
primeira grande história da memória.
De acordo com a mitologia, Mnemosyne era uma deusa ti-
tânica, irmã de Kronos e de Okeanos e mãe das Musas. Ela tinha
no sangue – se é que os deuses possuem sangue – a circularidade e
a vagueza, a unidade e a distinção, a especificação e a universali-
zação, o transitório e a permanência. Mnemosyne realizava a fun-
ção poética, que se praticava de forma muito símile ao modo como
se produzia a função profética. Aedo e Vate, cegos que pertencem
às Musas e ao deus, viam aquilo que os outros não vêem. Eles não
somente viam o invisível, como também qualquer coisa que os
outros não viam. Eles penetravam tanto no tempo que não existe
mais, quanto no tempo que ainda não existe. Eles viam, dentro do
seu imediatismo, a ordem do cosmo.
O passado que as filhas de Mnemosyne cantavam não era o
passado que acontecera, mas o conto das origens, a arché, a gene-
alogia do tempo, não sua vulgar cronologia. O passado e o futuro
são presenças que circulam no mundo ultraterreno. Aedo e Vate
podem, de fato, entrar no outro mundo e dele sair livremente, e

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64 - DIREITO, TEMPO E MEMÓRIA

relatar aquilo que viram com a ajuda de Mnemosyne. É ela a deu-


sa titânica que, com o relato dos cegos, reintroduz o tempo no
tempo. “Mnemosyne”, disse Hesíodo, “sabe e canta tudo aquilo
que foi, que é e que será”. Mas não só isto, pois “aquele que faz
recordar” é também “aquele que faz esquecer os males do presen-
te”. A recordação é uma imagem que ocupa o espaço de uma outra
imagem. No Hades, ao lado de Mnemosyne, está Léthe, a fonte
do esquecimento. Léthe pode ser considerada o símbolo da mor-
te, enquanto Mnemosyne possibilita o andar além da morte.
Em um ensaio chamado Aspectos místicos da memória e do
tempo, Jean-Pierre Vernant ressalta que a memória não conduz à
exploração do passado e nem mesmo à construção de uma ar-
quitetura do tempo. Ela, acrescentamos nós, realiza uma rein-
trodução do tempo no tempo; é a construção de um segundo
tempo. Trata-se do tempo da vida ou do tempo da morte. Mne-
mosyne os conecta de modo que o início já tenha começado e o
fim seja sempre um novo início. Não é por acaso que o maior
esplendor da memória titânica pode ser observado no interior
do ritual de reencarnação. Também para Platão a anámnesis não
é simples recordação do passado, mas é o retorno em um mundo
que se encontra fora do tempo.
A memória dos antigos é uma inobservabilidade permanen-
te. Ela é a recordação do tempo fora do tempo, a contínua recons-
trução da unidade da diferença entre vida e morte, entre o tempo
do tempo e o tempo do cosmo.
“Eu quero ver Roma existente”, escreveu Goethe, “a Roma
que existe, não aquela que transcorre a cada decênio”.1 De fronte
a si, entretanto, havia somente ruínas, pedras, vestígios. No silên-

1 Ich will Rom sehen das bestehend, nicht das mit jedem Jahrzehend
vorübergehend.

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RAFFAELE DE GIORGI - 65

cio de Roma, no abismo daquele silêncio de pedra, ele se sentia


“companheiro da grande ordem do destino”.2 Mas, nem mesmo
aquele destino, ele podia observar. Podia caminhar ao lado daque-
le destino, podia somente relatar a sua recordação, isto é, podia
relatar somente o seu presente, o seu êxtase ou a sua dor. Mas não
podia ver senão as pedras. A exclamação de Schiller, “Roma é so-
mente uma sepultura do passado”, 3 não seria muito original se
não escondesse uma tensão profunda que atinge a origem de Mne-
mosyne: “O que deve viver imortal em cânticos”, escrevia ele, “deve
na vida perecer”.4 Somente Mnemosyne pode reintroduzir o tempo
no tempo. Somente Aedo e Vate podem ver o invisível. De Roma,
podia-se cantar a recordação e, nesta, podia-se cantar o esplendor,
a grandeza e, depois, o declínio. Goethe queria poder ver o pre-
sente de Roma, quando este ainda era um passado que se tornaria
futuro. Queria poder ver o que se esconde sob o véu de Mne-
mosyne, poder ver a unidade da diferença entre recordação e es-
quecimento. Ele queria poder desvelar o segredo da memória,
observar aquilo que não pode ser observado. Em outras palavras,
Goethe queria, em essência, observar o paradoxo da memória.
Ocultado o mito, Mnemosyne se torna um paradoxo: o paradoxo
da construção do presente no presente.
Nós devemos evitar o paradoxo. A recordação de Roma ou,
como se repete continuamente, a idéia de Roma, a presença de
Roma são construções do observador. A Idade Média ou o Re-
nascimento, o Classicismo ou o Romantismo têm construído suas
Romas; cada qual uma Roma diversa. As realidades de Roma são
as realidades destas construções. A recordação não é a memória.
Ele é um lado da distinção com a qual opera a memória. O outro

2 Mitgenosse der groâen Ratschlüsse des Schicksals.


3 Rom ist nur ein Gab der Vergangenheit.
4 Was unsterblich im Gesang soll leben, muâ im Leben untergehen.

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66 - DIREITO, TEMPO E MEMÓRIA

lado é o esquecimento. A recordação é aquela parte que dispõe do


poder de se conectar. Uma recordação se conecta a outra recorda-
ção. Neste sentido, a idéia de Roma ou Roma como idéia perten-
cem à memória do observador. A unidade da distinção entre
recordar e esquecer – o ponto cego não observável desta distinção
– é a memória do observador. Um observador sem memória não
poderia operar, pois estaria privado da possibilidade de recordar
as suas observações: ele desapareceria como um evento incapaz de
se dar sentido e, portanto, como uma operação incapaz de se dar
realidade. Por outro lado, se tentasse observar a unidade da distin-
ção que constitui a estrutura da sua memória, ele se bloquearia.
Para evitar que se bloqueie, o observador deveria novamente ob-
servar a sua recordação por meio de outra recordação. Deste modo,
entretanto, trocaria a descrição que faz de si mesmo pela realidade
daquilo que recorda. Para escapar do paradoxo da memória, o ob-
servador incorreria no paradoxo da autodescrição.

2.
O problema da lógica é o início, dizia Hegel. As estruturas
dos sistemas sociais, todavia, não possuem problemas lógicos. Para
estas estruturas o problema do início é um não-sentido. Cada iní-
cio, para poder funcionar como início, deve já ter começado. Para
poder operar, uma estrutura já deve operar. Ele deve poder se re-
conhecer, vale dizer, deve poder se distinguir e, portanto, saber
que não se concluirá com o próximo evento. “Cada oração”, dizia
Wittgenstein, “deve já ter um sentido”.5 A aceitação ou a negação
da proposição não faz outra coisa além de confirmar ou negar
aquele sentido. Assim, uma estrutura de operações sociais deve
ser capaz de acompanhar as próprias operações. Ela pode conti-

5 Jeden Satz muâ schon einen Sinn haben.

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RAFFAELE DE GIORGI - 67

nuar, se produz aquela função que não pode observar senão por
meio das suas operações e que, como um efeito secundário, realiza
uma espécie de “segunda valorização, o que mesmo assim é efetu-
ado como operação”.6 Tal efeito se refere à memória daquela es-
trutura, ou melhor, aquela estrutura é mais precisamente sua
memória, pois “a memória”, como dizia Heinz von Förster, “está
em todo lugar”.7
Até mesmo Roma já existia. Até mesmo ela já tinha sua
memória. Uma memória que já funcionava, para que a cidade
pudesse se reconhecer como Roma, sem se confundir com suas
operações. Era esta a memória que empurrava os eventos ao pas-
sado e cancelava seus vestígios. Ela obscurecia o passado e deixava
a luz cair sobre o presente, ou seja, sobre aquele discrimine que
não tem duração, senão na permanência da própria memória. O
tempo de Roma, o tempo durável, é o tempo desta permanência.
Por meio da sua memória, a cidade atualiza continuamente a pró-
pria identidade, ou seja, reproduz ininterruptamente a própria di-
ferença. Isto não pode se realizar através do recurso à diferença
largamente reconhecida e praticada em relação aos bárbaros, pois
heterodescrições, já há muito difundidas, representavam a própria
cidade como um covil de bárbaros. A diferença em relação ao
ambiente é construída por duas modalidades de autodescrição que
se revelaram muito frutíferas, pois eram particularmente dotadas
de pressupostos e abertas ao futuro, ou seja, capazes de se adaptar,
de forma simples, à evolução social. A cidade constrói para si
mesma uma mitologia da origem e se representa como uma cópia
da ordem do mundo. Depois, as mitologias da origem se multi-
plicarão, se diferenciarão e continuarão por toda a Idade Média e
pelo Renascimento e, quando o domínio político na Europa procu-

6 Zweitauswertung dessen, was ohnehin als Operation durchgeführt wird.


7 Gedächtnis ist überall.

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68 - DIREITO, TEMPO E MEMÓRIA

rar num direito o fundamento para o poder, construirá este direito


por meio de uma atualização de uma daquelas mitologias.
Através da invenção da própria origem, a cidade procura um
fundamento para o próprio domínio na regularidade do universo
e no querer dos deuses. Deste modo, como fruto do destino, ela se
livra das ameaças derivadas do dissenso que maculava o domínio
que a cidade exercitava sobre os outros povos. A invenção da ori-
gem, justificada pelo domínio, ligava o próprio domínio à sua na-
tureza originária. Plutarco dizia que a cidade teria sido construída
no centro geométrico de uma circunferência ideal, que abraçava o
arco do céu e o fosso do inferno. E mais: porque este fosso se
chamava mundus, a cidade foi fundada como caput mundi. Segun-
do Catão, com o termo mundus, os gregos designavam o Olimpo.
Na mitologia, existem muitos ingredientes que possuem a função
de diferenciar a imagem originária, adaptando-a às transforma-
ções da semântica da autodescrição da cidade. A natureza da dife-
rença da cidade em relação ao mundo nasce da natureza da sua
origem. A cidade está no centro do mundo e, ao mesmo tempo, o
domina. O tempo do universo flui por meio da cidade e se con-
funde com o tempo da cidade. Outras genealogias da origem se-
rão inventadas e serão construídas de modo que o tempo de cada
uma delas transcorra e seja incluído no tempo das filiações. Isto
que se construirá será a continuidade do tempo das origens no
presente. Uma continuidade que confere ao presente a sacralida-
de da origem e o descreve como um tempo que sempre já fora
iniciado. O tempo da cidade não podia ser um tempo cronológi-
co; não podia ter início nem fim. Ele podia transcorrer somente
como tempo genealógico, por meio das diferenças das filiações
indiferenciadas dos homens e dos deuses. A mitologia das origens
podia continuamente se enriquecer, se adaptar e se delinear de
presente em presente até a cristianização através da metamorfose
semântica da pedra de Rômulo, sobre a qual se edificará a Igreja

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RAFFAELE DE GIORGI - 69

de Roma, ou então, até a multiplicação das linhagens troianas para


proporcionar um descendente capaz de chegar na França, na Ale-
manha, em Constantinopla ou na Rússia.
Esta mitologia da origem fornece um fundamento plausível
para a autodescrição da cidade como cópia do mundo, da sua ori-
gem, da sua grandeza e da sua harmonia. Este tipo de autodescri-
ção produz a redundância semântica pela qual se sustenta a
memória da cidade, na operação de distinção entre recordar e es-
quecer, em face da mutabilidade dos eventos, ou seja, da variação
que constitui o horizonte temporal da sua experiência. Se Polemo-
ne podia chamar a cidade como uma fração de todos os homens8 , Ru-
tílio podia dizer à cidade: fez-se uma cidade que antes era mundo9 .
Virgílio podia falar a Júpiter, concedi um domínio sem fim,10 e acredi-
tar que fosse realmente assim, até o momento em que Santo Agos-
tinho não o teria convidado para corrigir sua afirmação.
Assim, quando a cidade for saqueada, muitos dirão – e talvez
realmente pensavam – que não caía Roma, mas o mundo. O tem-
po da cidade é o tempo do mundo; a sua permanência, a perma-
nência do mundo. Quando a profecia vir o fim do mundo – e o
verá muito próximo – deverá se preocupar com o tempo da cidade
e encontrar um tempo intermediário da sua duração, ou mesmo,
conferir sentido para a duração deste tempo. Por exemplo, ela de-
verá suportar e devolver o tempo do Anticristo. Ela deverá dilatar
o tempo do mundo, que, então, significava dilatar o tempo do
sofrimento terreno na esperança do advento do reino de Deus. De
qualquer modo, o tempo de Roma é o tempo que nos resta. São
Paulo, quando fala, evita pronunciar o nome da cidade, pois todos
pensavam que ela fosse eterna; Tertulliano se consola porque, en-

8 epítome tes oikouménes.


9 urbem fecisti, quae prius orbis erat.
10 imperium sine fine dedi.

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70 - DIREITO, TEMPO E MEMÓRIA

quanto Roma resistir, teremos tempo e não devemos temer; Lat-


tanzio, ao contrário, lamenta por ter de prever o fim do tempo da
cidade contra a esperança de eternidade. Em 1527, Erasmo dirá
que não se destrói a cidade, mas o mundo. Em suma, o tempo de
Roma é o tempo que o tempo tem para acabar.

3.
O espaço da cidade é o espaço do mundo. A cidade inclui o
mundo. Para os outros povos, a terra é dada com um limite determi-
nado: o espaço de Roma, ao contrário, coincide com o mundo11 , assim
falou Ovídio. A cidade não tem fronteiras, não pode ser delimita-
da. Seu caráter monumental reproduz a grandeza do mundo.
Majestas, se dizia: um termo que indicava grandeza e força, legiti-
midade, quase naturalidade da medida e da posição superior. Em
resumo, diferença na qualidade. O mundo, por sua vez, pertencia
à cidade. A cidade é o todo e o mundo as suas partes. O todo
inclui as partes. O todo é uno e será sempre, até o advento da
modernidade, a unidade da diferença do uno e das suas partes.
Dante o recordará no seu tratado; Gierke o descreverá como idéia
central da Idade Média. Por fim, novamente Ovídio, ele já lem-
brara que todo o mundo estava na cidade12 . Trata-se de uma fórmu-
la chave da semântica da inclusão. Ela identifica o espaço e os
destinos dos eventos que se produzem naquele espaço: a pacifica-
ção e a domesticação do mundo são uma necessidade que nasce
da necessidade de manter a paz na cidade e de impor sua justiça.
Também era comum chamar tudo isto de civilização. Como hoje,
aquela semântica assinalava que, na estrutura das operações sociais,
deviam ter sido experimentadas, com sucesso, práticas capazes de

11 Gentibus est aliis tellus data limite certo: Romanae spatium est urbis et orbis
idem.
12 ingens orbis in urbe fuit.

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RAFFAELE DE GIORGI - 71

restabelecer a assimetria entre a cidade e o mundo. A outra parte


da cidade não poderia ser simétrica em relação à cidade. O princí-
pio da inclusão é, de fato, um paradoxo: ele oculta o fato que a
outra parte está incluída, justamente, porque está excluída. O pa-
radoxo precisa da permanência da assimetria e do seu contínuo
restabelecimento. A cidade não pode se dissolver no seu ambiente
interno e muito mesmo naufragar na indiferenciada abertura ao
ambiente externo.
A semântica da inclusão é dotada de uma grande capacidade
de adaptação à imprevisibilidade dos eventos relativos à reestabi-
lização da assimetria. Os seus conteúdos de sentido dispõem de
grande capacidade combinatória. Eles se desenvolvem sempre a
partir de si próprios; eles temporalizam o mito da origem e da
fundação e, dessa forma, dominam semanticamente a contingên-
cia dos conflitos inevitáveis. Conservação da desigualdade13 é o pro-
blema constante que orienta a auto-organização da cidade. Produção e
organização da desigualdade14 : origem do tempo histórico da cida-
de e temporalização da contingência. Uma formulação sintética
que condensa os conteúdos da percepção que sempre vinculam a
memória da cidade. Neles, se exprime a recursividade das opera-
ções, que podem ser esquecidas como operações específicas à me-
dida que seus resultados são recordados. Antes ainda que se possam
construir os “autovalores” (Eigen-werte) da memória, o aparato
perceptivo da cidade experimenta, no seu horizonte de experiên-
cia, a intervenção de um medium de construção da desigualdade:
um medium instável, arriscado, mas universalmente aplicável. Ele
se chama domínio (Gewalt). É um medium da construção do mun-
do que opera através da diferença superioridade/inferioridade
(Überlegenheit/Unterlegenheit). A instabilidade desta construção do

13 Erhaltung der Ungleichheit.


14 Schaffung und Erhaltung der Ungleichheit.

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72 - DIREITO, TEMPO E MEMÓRIA

mundo necessita, se não quiser desaparecer, da intervenção está-


vel de um medium instável. A cidade centraliza o recurso ao me-
dium e organiza, de modo rígido, os elementos do substrato medial
por meio da militarização da sua estrutura. Diferencia-se, assim,
uma estrutura religiosa-militar-burocrática que administra as for-
mas de seletividade do medium, que é largamente individualizada
na estrutura social e que, para se harmonizar continuamente com
a estrutura econômica, deve sempre reinventar as condições da
própria estabilidade.
Os programas nos quais se reúnem estas condições são re-
gistrados como direito. Estas aquisições permanecem calculáveis,
domesticam o recurso à violência e lhe conferem um poder de
autocontrole e, por decorrência, de autofundação. O condiciona-
mento do recurso à violência, que é sustentado pela institucionali-
zação dos instrumentos por ela utilizados, se revela como um
complexo mecanismo provido de capacidade de construção sistê-
mica (Systembildungskapazität). Este mecanismo se consolida numa
estrutura de gestão e de manutenção da desigualdade: uma estrutu-
ra de tipo novo que se revela capaz de desfrutar tanto das diferenças
internas da estratificação, quanto das diferenças externas da distin-
ção centro e periferia. O conceito de dominação (Herrschaft) pode
ser usado para definir as características e as funções desta estrutura.
“A seleção evolutiva dedicava-se continuamente à sempre precária
auto-seleção desta nova estrutura”, 15 escreve Luhmann. A inclusão
adquire novas especificações. A dominação oculta a violência, por-
que a violência que ela utiliza é violência que se legitima na ordem
autoconstruída da inclusão. Esta ordem universaliza e reespecifica
continuamente o domínio. Este estende ao mundo o horizonte de
sentido da cidade: ela não mais copia o mundo, mas o rege. Recorda,

15 Die evolutionäre Selektion oblag dann der immer prekären Selbstselektion dieser
neuartigen Struktur.

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RAFFAELE DE GIORGI - 73

romano, que reges os povos pelo domínio16 , assim canta o poeta. Difuso
e multiforme no interior da cidade, respeitoso nos confrontos da
estratificação, glorioso da sua sacralidade e protegido da sombra
que projeta sua natural justiça, o domínio, se questionado, se direci-
ona ao exterior como guerra.
O domínio torna visível a cidade no mundo. Ele é, na cida-
de, a unidade da diferença entre interno e externo. Ele não pode
ser observado. Pode ser contado, cantado e celebrado. Agora, o
tempo histórico da cidade, o tempo sem início e sem fim, o tempo
que sempre já começou, se confunde com o tempo do domínio.
Sempre presente a si mesmo, o domínio constrói o horizonte de
sentido da memória da cidade. Ele delimita o espaço da percep-
ção na qual se organiza a função seletiva e discriminante da me-
mória da cidade.

4.
Diante da devastação e espoliação praticada pelos romanos e
da certeza que sofreria outras violências, Biocalo, fiel aliado dos
Ampsivarii, pediu aos deuses para revirar o mar inteiro sobre os
romanos, usurpadores de terras. No entanto, o governador roma-
no Avito o avisou que “deve imediatamente se submeter às ordens
do mais habilidoso”17 . Em latino, se diz: é preciso obedecer ao co-
mando dos melhores18 . “Meliores” define os romanos como diversos
por qualidade. Eles também são genus humanum, mas são diversos
dos outros. São, de fato, meliores.
A fundação e o reconhecimento racional do domínio nasce
da diferença entre os romanos e os outros. Os romanos, todavia,

16 Tu regere imperio populos, Romane, memento.


17 Man müsse sich eben den Befehlen der Tüchtigeren.
18 patienda meliorum imperia.

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74 - DIREITO, TEMPO E MEMÓRIA

podem ser identificados como cives romani. É, justamente, a civi-


tas o que os torna diverso; uma diferença querida pelos deuses, aos
quais, segundo alguns, se acrescentava o fato. Natureza e virtude
eram pressupostos e resultados da vida da civitas e eram conside-
rados como requisitos racionais da diferença, à qual não se exigia
justificação. Bastava ser provocada que, em decorrência, estava
provada. Os deuses – os mesmos que foram requisitados pelos
Ampsivarii para intervir contra os romanos – concluiriam, como
afirma Avito, que a decisão, sobre o que eles davam ou sobre o que
eles deviam tomar, permaneceria nas mãos dos romanos e que eles
não tolerariam outro juiz diverso deles mesmo. O termo usado
por Avito é arbitrium, que não corresponde ao alemão Entschei-
dung (decisão), usado pelo tradutor. Arbitrium é uma construção
do observador que deve imputar um comportamento e não vê
outra coisa, senão determinação estrutural (Strukturdeterminier-
theit). O paradoxo, neste momento, nasce do fato que o observa-
dor é Avito, o Romano que é governador. Avito se move e
argumenta no âmbito de uma auto-referência exclusiva e absolu-
ta. Esta auto-referência não surpreende o bárbaro: ela correspon-
de às suas expectativas. O bárbaro também se conhece como
construção da civitas. A auto-referência nos permite observar como,
na civitas, a experiência do mundo desemboca num presente que
já está preparado, vale dizer, num presente privado de surpresas, já
que, na memória da cidade, ele é construído como continuação do
passado que se recorda. Como a distinção entre interno e externo
se forma na cidade e exclui construções simétricas, também a dis-
tinção entre auto-referência e heterorreferência se constrói na auto-
referência, de modo que o outro lado não possua semântica, não
possua palavra: ele não pode observar porque não pode distinguir.
Depois de ocupar a Irlanda, o exército de Agrícola circunda
a Bretanha. “A Bretanha”, diz Agrícola, “estaria em vantagens di-
ante desta situação, se levantasse cercas ao redor das armas roma-

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RAFFAELE DE GIORGI - 75

nas e, assim, privasse a liberdade de seus olhos”.19 Para ativar a


memória, para experimentar o presente, é suficiente esquecer a
liberdade. Mas se esquece a liberdade, se o mundo for considera-
do com outros olhos.
A memória – como o domínio – constrói, a partir de si mes-
ma, sua coerência e sua sintonia com o mundo. Esta sintonia, por
sua vez, nasce da simples sintonia que a memória tem consigo
própria. Porque a memória não pode nunca parar, nós pensamos
que o tempo seja contínuo, sem interrupção, e que, neste tempo,
se enquadram os eventos que se seguem sem nenhuma interrup-
ção. Na realidade, os eventos também são construídos pela nossa
memória, pois, sem memória, não poderiam ser colocados em
nenhuma parte. Dessa forma, por exemplo, a imposição da língua
latina, a maneira romana de construir casas, a moda dos vestuári-
os e dos chamados costumes, tudo isto “se chamava de imperitos
humanitas”. Na realidade, “isto era somente um pars servitutis”.
Plínio se sentia tranqüilizado pela normalidade readquirida, pelo
retorno espontâneo da certeza na cidade e pela inclusão restabele-
cida que fizera retornar no mundo “terror et metus votum imperata
faciendi”. O mundo se recorda de si.
A memória torna possível a cognição, ou seja, a construção
do mundo sem que o sistema se vincule às suas operações. Ela fixa
continuidade na multiplicidade indiferenciada dos eventos. A
memória da cidade é o ponto cego da distinção entre passado e
presente. É o contínuo e sempre renovado presente da cidade. Tal
presente sempre já se encontra preparado, pois nasce, flui do pas-
sado que a memória recorda. Mas este passado é inventado: a
memória não sabe que ela discrimina entre recordar e esquecer.

19 Diese Situation würde auch Britannien gegenüber von Vorteil sein, wenn es
rings von Römerwaffen umgeben und so die Freiheit gleichsam seinen Blicken
entzogen würde.

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76 - DIREITO, TEMPO E MEMÓRIA

Não podemos recordar de esquecer. De fato, a memória opera e


constrói continuidade.
Do mesmo modo, o domínio é o ponto cego da distinção
entre dominante e dominado. Mas é possível ser dominante e
dominado. Onde está a unidade da diferença? Ou se recorda ou se
esquece. Pode-se tratar como humanitas um pars servitutis e se
esquece a liberdade, porque se vê o mundo com os olhos do outro.
Mas a diferença subsiste, ao menos se acreditamos nos deuses.
Mesmo se não acreditamos, ela permanece, já que os deuses do
Bárbaro são diversos dos deuses do Romano. Ambos se vêm um
através do outro. Aquilo que os une é a forma do domínio.
Com relação à distinção entre romanos e bárbaros, o domí-
nio é a forma que re-entra na forma; a distinção que re-entra na-
quilo que é distinto. Mas não é a mesma forma: fixa-se outra
unidade da distinção. Este re-entrar justifica, ao mesmo tempo, a
barbárie dos bárbaros e a romanidade dos romanos. A unidade – a
não observabilidade – é a romanitas que se aplica a si mesma e se
mantém. Ambos, romanos e bárbaros, são construções da cidade.
A cidade é sua própria construção. O mundo também é o mundo
da cidade. As histórias do mundo, que serão escritas até o século
XVI, serão histórias deste mundo.
O domínio é a forma, ou seja, a inobservável unidade da
distinção que o observador usa para observar a autolimitação da
cidade em seus próprios sentidos. Se o observador é a cidade, o
domínio é a inobservável unidade da distinção entre a cidade e
seus sentidos. Em outras palavras, o domínio é a sua memória; ele
é a memória da inclusão.
Desde quando a cidade se inventou no mito da origem, ela
tem construído, através da responsabilidade do acontecimento do
tempo (Ereignishaftigkeit der Zeit), o fundamento da sua existên-
cia. Ela o tem contado como profecia. É o conto de Mnemosyne,
o conto da memória da cidade. Porque, nele, a cidade inicia-se

Raffaele_De_Giorgi.p65 76 7/2/2006, 15:16


RAFFAELE DE GIORGI - 77

exatamente a partir de si mesma, o relato de Mnemosyne é um


conto histórico. Na linguagem de Heinz von Förster, os sistemas
sociais são máquinas históricas que começam sempre do estado
que eles próprios estabeleceram por meio das suas operações.
Numa conferência em 1935 – o ano não é por acaso –, com o
significativo título “A resistência intelectual contra Roma no mun-
do antigo”20 , Harald Fuchs dizia: “A história da Roma antiga é
um processo extraordinário que se estende de uma cidade para
um império e se espiritualiza de um poder temporal para uma
idéia de dominação e, depois, para todo um velho mundo”21 . Os
escritores antigos, diz Fuchs, se ocuparam da majestosidade da
cidade e descreveram como a cidade espelhava o mundo submisso
e o representava em um espaço limitado. Mas um olhar mais pro-
fundo “reconhecia, na simultaneidade da cidade, a grande ima-
gem de sentido onde se representava a essência espiritual do
Império”.22 A cidade “poderia ser chamada, de certa forma, como
o império originário ou o império em si”.23 A cidade como me-
mória, o domínio como memória, Mnemosyne como, nas pala-
vras de Heinz von Förster, autovalor (Eigen-Wert). Calgaco tinha
dito: Denominam saquear, matar e roubar, erroneamente, como do-
mínio e, onde se produz solidão, chamam de paz”24 .
Calgaco descrevia a seletividade da memória, ou seja, a ativi-
dade da memória como um esquecer seletivo. Ele observava como,
através do esquecimento, se produz latência. Em outras palavras:

20 Der geistige Widerstand gegen Rom in der antiken Welt


21 Die Geschichte dês antiken Rom ist der auâerordentliche Vorgang, wie sich
eine Stadt zu einem Reich erweitert und eine irdische Macht sich zum
Herrschaftsbegriff für ein ganzes Weltalter vergeistigt
22 erkannte in der Stadtzugleich das groâe Sinnbild, in dem sich das geistige Wesen
des Reiches darstellte.
23 Ur-Reich gewissermaâen oder das Reich an sich, wie man es nennen können.
24 Auferre, trucidare, rapere falsis nominibus imperium, atque ubi solitudinem
faciunt, pacem appellant.

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78 - DIREITO, TEMPO E MEMÓRIA

ele descrevia como a memória constitui seu tempo histórico como


aqueles no qual se acumula aquilo que é esquecido. Tudo aquilo
que, excluído do tempo da memória, é excluído do presente, torna-
se privado de memória, incapaz de se recordar na comunicação e,
por conseguinte, desprovido de palavra. Morrer, dizia Pessoa, é como
não ser visto. Aquilo que é esquecido não pode mais ser observado.
Se ele não pode nem mesmo se distinguir de si próprio, de que
poderia ser distinto? Calgaco não podia ver que a única possibilida-
de que ele tinha para se distinguir lhe foi dada pela sua inclusão no
tempo da memória, ou seja, no tempo da cidade.
A história da antiga Roma – aquela que Fuchs considerava
como o processo no qual qualquer coisa temporal se transformava
em um conceito de dominação (Herrschaftsbegriff) – é a única
memória da evolução de uma estrutura seletiva que é inventada a
partir de si mesma. Ela é a história da cidade que temporalizou o
mito no paradoxo da inclusão daquilo que está excluído e descre-
veu este paradoxo como o fundamento do seu domínio. A história
da antiga Roma é, ainda, a história do mundo como horizonte da
experiência que a cidade, por meio da sua memória, cria continua-
mente a partir de si própria. Este mundo é o ambiente externo que,
no paradoxo da inclusão, re-entra na cidade e se deixa dominar como
espaço interno da experiência. A história de Roma é a história da
evolução da memória, pois a memória está em todos os lugares. Ela
se encontra na constituição da experiência interna, no contato com
o ambiente através do domínio, na irreversibilidade do tempo e na
reprodução do tempo da cidade como tempo histórico.
As primeiras funções evolutivas observadas são condensadas
nos mecanismos de variação e seleção, vale dizer, forma do confli-
to e forma do domínio, intensificação das comunicações e especi-
ficação seletiva por meio da inclusão. A ordem social no interior
da cidade é a ordem da estratificação. Uma ordem tendencial-
mente estável que a incessante expansão do mundo da cidade tor-

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RAFFAELE DE GIORGI - 79

na continuamente instável, pois a forma do domínio não é provo-


cada somente pelo contato com o ambiente externo, mas também
pela ordem interna à estrutura. Em outras palavras: a memória se
torna instável porque os resultados das suas operações, nas suas
conexões recíprocas, produzem imprevisibilidade. Ela pode tratar
de problemas que derivam da invenção do tribuno ou da auto-
constituição do poder imperial, da difusão de uma nova religião,
do controle das fronteiras ou da presença dos bárbaros no exército
e nos cargos administrativos de escalão superior. Em cada um
desses casos, a função seletiva da memória, ou seja, do domínio,
deve se especificar, pois, como diz Luhmann, “a seleção estrutural
evolutiva não é um processo de orientação estável”. O domínio,
exposto à evolução, requer uma identidade real (Identifizierba-
rkeit) que o proteja em relação à estratificação e às ameaças exter-
nas. Reestabilização é o mecanismo evolutivo que indica aquelas
formas de automodificação do domínio, que se revelam capazes
de diferenciar a estrutura de um sistema social dotado de compe-
tência universal. Este sistema se chamará política.

5.
O paradoxo da inclusão foi sempre revelado como repleto de
conflitos. Diferentes formas de resistência se condensavam em
semânticas das quais restavam somente vestígios, que sempre eram
cancelados pela memória da cidade. Muitas memórias sem recor-
dação irritaram a memória da cidade. Muita latência se acumu-
lou. Os gregos eram convencidos da barbárie de Roma e Políbio
tentou corrigir esta opinião difusa para conter o desprezo que ela
despertava. Carneade foi até Roma para provar, publicamente, que
os Romanos não conheciam a justiça e não respeitavam o direito.
Circulavam oráculos que previam um futuro catastrófico para a
cidade e aumentavam o ódio que se sentia contra ela – não so-
mente pelos hebreus, em que o messianismo difundira uma pro-

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80 - DIREITO, TEMPO E MEMÓRIA

paganda muito feroz contra Roma que, na maldição, era identifi-


cada com a Babilônia. Persino aruspici etruschi, convocados a
Roma, tinham previsto o fim da cidade. Salústio e Horácio fazi-
am considerações preocupantes sobre o futuro. A esperança se abria
somente no querer dos deuses, que, mais de uma vez, já tinham
manifestado seu apoio em favor da cidade. Pelo que parece, outra
idéia recorrente que comprova a atitude manifestada em alguns
estratos era abandoná-la. Nesse mesmo momento, difundiam-se
as primeiras histórias do mundo – como aquela de Trogus Pom-
peius – e o mito da origem era extraído de uma narração infame: a
cidade foi fundada por um grupo de bárbaros sob o rastro de um
delito sanguinário e de atos de brutal violência. No oriente, ainda
se dizia que o motivo pelo qual os Romanos guerreavam contra
todos os povos era “a profunda cobiça por dominação e riqueza”.25
Luciano desacreditara a vida da cidade, que parecia indigna se
comparada a Atenas. Sobre a pax romana, basta pensar nas pala-
vras de Calgaco: vestígios que não tiveram qualquer efeito de en-
vergadura histórica. Neles se condensava a resistência à inclusão.
Todavia, estas memórias sem recordação ampliavam a própria
memória do domínio e, assim, se produzia uma referência cons-
tante, uma ficção autopoieticamente necessária da comunicação,
ou seja, uma referência na qual dissenso e consenso convergiam.
Força satânica e querer dos deuses, justiça ou cobiça de domínio e
virtude, apocalipse e esplendor, eternidade e catástrofe, se encon-
travam em uma ficção necessária naquela referência, cujas partes
coexistiam e cobriam o paradoxo da cidade. Como o paradoxo
não possui tempo, tal referência ultrapassava o tempo.
Produzia-se, assim, a Referência-Roma (Referenz-Rom) que,
no tempo, se especificaria e forneceria um tema constante da

25 Die tiefe Gier nach Herrschaft und Reichtum.

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RAFFAELE DE GIORGI - 81

comunicação, mesmo quando a cidade real já tivesse se transfor-


mado em uma tumba. A Referência-Roma (Referenz-Rom) se-
ria definitivamente imposta como núcleo semântico das descrições
da cidade quando a comunidade cristã, por meio de suas sempre
renovadas interpretações das profecias messiânicas, transformara
a infernal pedra de Rômulo na divina pedra de Pedro: “aquela que
era mestra do erro, se tornou discípula da verdade”.26 No lapso
temporal que resta até o fim do tempo, a ficção da Referência-
Roma (Referenz-Rom) continua o tempo da cidade além de si.
A Referência-Roma (Referenz-Rom) é produzida na resis-
tência contra Roma, oculta a realidade do domínio, a amplifica,
une o terror à esperança, oferece refúgio àqueles que se sentem
chamados pelo Senhor, dá segurança àqueles que se entregam ao
querer dos deuses, se celebra no pão e circo e se declara indiferen-
te ao insulto. Dela fala Plutarco quando diz que “o tempo que
estabeleceu o fundamento de Roma, com a ajuda da divindade,
mesclou e acoplou Acaso e Virtude a fim de que se construísse,
para todos os homens, habitação verdadeiramente sacra e benéfi-
ca, uma ‘gomena’ constante e um princípio eterno, ‘um ancora-
douro, como escreve Demócrito, na tormenta e na deriva para as
flutuantes condições humanas’”.
Com o advento do império, a memória se dedica à manuten-
ção da unidade do território e da consolidação do domínio. Depois
virão os problemas da fragilidade das fronteiras, da reforma buro-
crática e administrativa, da composição do exército e da desorgani-
zação das expectativas. Isto ocorreu porque o uso que se pensou
fazer dos “bárbaros” transformou-se, ao contrário, em penetração e
invasão destes no território e, em seguida, na cidade. O domínio
revela seu paradoxo e o paradoxo revela a fragilidade do domínio.

26 quae erat magistra erroris facta est discípula veritatis.

Raffaele_De_Giorgi.p65 81 7/2/2006, 15:16


82 - DIREITO, TEMPO E MEMÓRIA

No território que formava o mundo da cidade, os centros de


domínios ligados à estratificação se multiplicam, se reforçam, se
autonomizam. A memória da cidade é agredida: seu aparato per-
ceptivo deve mentir para si para poder elaborar informações úteis;
suas ramificações são despedaçadas. O domínio, que tinha reali-
zado a inclusão do mundo na cidade, revela sua impotência quan-
do a cidade sai e se aliena de si mesma. A única realidade que
resiste é a Referência-Roma (Referenz-Rom).
Mas o domínio deixa de representar, até mesmo, a unidade
da cidade na cidade. Com a memória do domínio também se des-
pedaça o domínio como memória. A unidade que permanece é
uma ficção autopoieticamente necessária: a Referência-Roma
(Referenz-Rom).

6.
“As últimas unidades”, escreve Luhmann, “são sempre senti-
dos que um paradoxo oculta quando elas favorecem determinadas
diferenças, cuja unidade não pode ser tematizada”.27 A Referên-
cia-Roma (Referenz-Rom) é a unidade que se constrói quando a
memória não encontra mais passados dos quais possa recordar
para construir um presente que, ao contrário, se fluísse em direção
a estes, os uniria como sua continuação. Ela exprime o fato de não
existirem mais anormalidades que, utilizadas para descrever a ve-
lha ordem, parecessem sensatas em relação à nova. Que ordem, se
não existe memória que a construa? O império está em decadên-
cia: duplicou-se. A inclusão do mundo na cidade chama-se, ago-
ra, devastação da cidade e fragmentação de seu território. Se, antes,

27 Letzte Einheiten sind immer Konstrukte, die eine Paradoxie verdecken, indem
sie bestimmte Unterscheidungen favorisieren, deren Einheit nicht thematisiert
werden kann.

Raffaele_De_Giorgi.p65 82 7/2/2006, 15:16


RAFFAELE DE GIORGI - 83

parecia que a história realizara a profecia bíblica que anunciava a


transferência do poder, das ciências e da cultura do oriente para o
ocidente, agora se ameaçava concretizar o percurso inverso. Era
como se o mundo se multiplicasse no mundo, como se fosse po-
voado de memórias esquecidas e como se as memórias destituídas
de memória pretendessem impregnar o presente de vestígios de suas
recentes recordações. Plutarco ainda poderia se entusiasmar, pois “o
poder move-se em direção a uma ordem de paz e a um único círcu-
lo imutável”. Neste momento, entretanto, as palavras de Latanzio
pareciam inadequadas para descrever, de modo plausível, os even-
tos: uma vez deslocada a sede do império, mesmo que o nome tenha per-
manecido igual, segue-se confusão e desordem no gênero humano.28
Este acontecimento significou um excesso de variação que
expõe a memória da cidade às mutações da própria estrutura sele-
tiva, da qual nascem novos “auto-valores” (Eigenwerte) cuja re-
estabilização diferenciará a estrutura de um sistema social.
Na primeira leitura aos Coríntios, São Paulo escreve: “Isto
finalmente vos digo, irmãos: o tempo é breve; o que resta é que,
não só os que têm mulheres, sejam como se as não tivessem; mas
também os que choram, como se não chorassem, e os que folgam,
como se não folgassem; e os que compram, como se não possuís-
sem; e os que usam deste mundo, como se dele não usassem; por-
que a figura deste mundo passa. Quero pois que vós vivais sem
inquietação” (1, 29-32). O sentido é claro: qualquer um vive se-
gundo a vocação que lhe é atribuída; 29 vive a convocação (Beruf)
messiânica “como um eterno por vir” (CELSO); vive, diria Derri-
da, a expectativa messiânica como contínua differánce, contínua
diferenciação e aceitação, como um presente continuamente

28 Immutato nomine atque imperii sede traslata confusio ac perturbatio humani


generis consequetur.
29 In qua vocazione vocatus est.

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84 - DIREITO, TEMPO E MEMÓRIA

prorrogado e, justamente por isto, vivenciado em sua plenitude.


Chamado a viver sua condição factual, o cristão vive, no momen-
to da aceitação de sua chamada terrena, a convocação messiânica.
Santo Agostinho, usando uma linguagem destituída de caracteres
messiânicos, dirá: No que concerne a esta vida dos mortais, que em
poucos dias se conduz e se exaure, o que importa sob o domínio de quem
vive destinado a morrer, se aqueles que comandam não constrangem a
impiedade e a injustiça?30
A postura inicial cristã de repelir a romanidade pagã e de des-
prezar seus ideais é esquecida em virtude de um longo trabalho de
interpretação dos textos bíblicos que não somente leva à aceitação
do presente daquela romanidade, mas também à sua transfigura-
ção. Se o tempo se contrai, o sentido do presente, seu significado,
re-inclui a recordação do passado do qual nasce. Presente e passado
re-entram no desenho divino da história do mundo. Roma não pode
continuar a ser a outra Babilônia. A semântica da criação inclui, em
si, a descrição da evolução. A memória recupera sua continuidade.
Para Santo Agostinho, o império é um reino como os outros. A res
publica não era de direito (de iure). Em Roma, não existia justiça. Se,
de um lado, esta postura desacreditava o mito, de outro, impedia
considerar o passado como preparação do presente. Orosio poderá
cristianizar o mito obscurecido da história da cidade. A Referência-
Roma (Referenz-Rom) não só permanece, mas adquire contornos
sempre mais precisos. A continuidade do presente é assegurada.

7.
Rutilio tinha oportunamente pensado que “ordo renascendi
est crescere posse malis”. Na realidade, não se tratava nem de um

30 Quantum enim pertinet ad hanc vitam mortalium, quae paucis diebus ducitur et
finitur, quid interest sub cuius império vivat homo moriturus, si alli qui imperant
ad ímpia et iníqua non cogant?

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RAFFAELE DE GIORGI - 85

renascimento da cidade, nem da reconstituição de uma ordem.


Era, ao contrário, a necessidade de dar um fundamento ao pre-
sente. Este era encontrado na continuidade que, por sua vez, po-
dia ser tratada como uma forma de dois lados. De um lado, se
inscrevia no desenho divino que a conferia um fundamento de
validade. De outro, se fundava sobre si, ou seja, ela própria consti-
tuía seu fundamento de validade. Conforme as duas partes fos-
sem consideradas como capazes de se recordar (anschlußfähig),
conseguiam possibilidades semânticas de grande relevo.
No primeiro caso, a memória da cidade era a memória da
Providência. Argumentava Prudentius: “Ad cuius rei affectum cre-
dimus providentia Dei romani regni latitudinem praeparatam: ut re-
ationes vocandae ad unitaten Corporis Christi, prius iure unius
consociaretur imperii”. O fundamento do domínio era externo a ele
próprio.
No segundo caso, entretanto, o domínio fundava-se sobre si,
sobre sua legalidade (Rechtlichkeit). Os argumentos são diversos.
Alguns, entre os mais esclarecedores, se encontram na “Monar-
quia” de Dante. Procurar se alguma coisa acontece no direito, diz
Dante, significa procurar se aconteceu segundo a vontade de Deus.
O direito, de fato, é um bem; o bem é querido por Deus; a divina
vontade é o direito. O povo romano conquistou de direito e não
usurpando o império que está acima dos homens mortais. Este
fato foi reconhecido por Cristo que, nascendo sob a égide do im-
pério romano, aceita sua legitimidade (Gui – NRCésar). A des-
mistificação do império tentada por Santo Agostinho é invertida.
No purgatório, Beatriz diz a Dante: “então, você quer ser comigo
um cidadão sem limites daquela Roma onde Cristo é romano”.31
A velha outra Babilônia tornou-se local de salvação, paraíso.

31 e sarai meco senza fine cive di quella Roma onde Cristo è romano.

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86 - DIREITO, TEMPO E MEMÓRIA

Gierke escreveu que “o princípio constitutivo de todo o mun-


do é, antes de tudo, o princípio da unidade”32 e especificou: “onde
sempre existir um todo específico com finalidade particular su-
bordinada a uma finalidade do mundo, o ‘principium unitatis’ deve
ser considerado válido de um modo análogo”33 . Este princípio
atravessa todo o pensamento da Idade Média. É clara sua origem
cristã, mas também é evidente sua função. A memória da inclu-
são, ou seja, a memória do domínio, sempre foi a memória da
unidade. A finalidade do mundo (Weltzweck) e a finalidade parti-
cular (Sonderzweck), das quais falava Gierke, reformulam o para-
doxo da inclusão, que reformula o paradoxo da continuidade, que
reformula o paradoxo da fundação do fundamento, que reformula
o paradoxo da Referência-Roma (Referenz-Rom).
Se a primeira história do mundo em latim é aquela escrita
por Trogus Pompeius e se, naquela obra, no resumo de Justinus
citado por Hieronymus, se diz “a dominação do mundo foi re-
alizada sucessivamente por diversos povos, mas, como ela sem-
pre permaneceu existente, pode se conceber o todo por meio
da ligação de uma única cadeia”34 , então também nós podemos
dizer que Referência-Roma (Referenz-Rom) conecta muitos pa-
radoxos a uma única cadeia e que esta cadeia é a certeza do
domínio. Uma cadeia que vinculará séculos de lutas, conflitos,
disputas; que atravessará a produção do saber jurídico, teológi-
co, filosófico e que provocará uma irrecuperável distância en-
tre ocidente e oriente.

32 Konstituierendes Princip des Weltganzen sei nun... vor allem das Princip der
Einheit.
33 Wo immer daher ein besonderes Ganze mit einem dem Weltzweck
untergeordneten Sonderzweck bestehen soll, muss das ‘principium unitatis’ in
analoger Weise zur Geltung kommen.
34 Die Weltherrschaft sei nacheinander bei verschiedenen Völkern gewesen, selbst
aber bestehen geblieben und verbände daher ‘alle in einer einzigen Kette.

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RAFFAELE DE GIORGI - 87

A grande função evolutiva da elaboração cristã da Referên-


cia-Roma (Referenz-Rom) é que ela torna possível a autotransfor-
mação do mito da inclusão, ou seja, a autotransformação de Roma,
como memória do domínio, em mistério da natureza do poder, ou
melhor, em memória da evolução do sistema social da política.
No final, as duas faces da continuidade convergirão e o resultado
desta convergência será o mistério do poder fundado sobre o di-
reito ao poder. O mistério se deposita no paradoxo.

8.
Unidade, continuidade, verdade e direito: é esta a cadeia evo-
lutiva que transforma o domínio em poder, ou seja, o poder de
tipo moderno, o poder que não é domínio, o poder que se funda
sobre seu próprio direito. O poder deve ser unitário, exibir sua
continuidade e comunicar a própria verdade na forma de sua legi-
timidade. Em outras palavras: deve provar que sua origem está no
direito ao poder. Deve, também, se inventar uma origem: um po-
der sem genealogia não tem poder; um poder sem memória não
tem legitimidade. A evolução encontra seguro ancoradouro no
plano da salvação que, por sua vez, encontra sua história terrena
na Referência-Roma (Referenz-Rom). “Que coisa é toda a histó-
ria senão um louvar a Roma?”35 , perguntava-se Petrarca. Até o
século XVI, toda história européia é uma história romana, afir-
mou Foucault, em uma esplêndida lição, em 1976. É história uni-
tária; é história da monarquia; é narração da recordação; conto do
mito da origem, da verdade da própria genealogia; é história da
ritualidade do poder, de sua apoteose. “Roma”, dizia Foucault, “ain-
da era atual e produzia, de uma maneira contínua e sem ter perdi-
do o presente histórico, efeitos na Idade Média. Roma foi percebida

35 Quid est enim aliud omnis historia quam romana laus?

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88 - DIREITO, TEMPO E MEMÓRIA

e subdividida como uma enormidade de manchas”.36 Roma como


memória. A história ocidental do mito do poder fundado sobre o
direito ao poder – a história de evolução do sistema político – é
uma história jupiteriana (jupterische Geschichte). O paradoxo da in-
clusão é substituído pelo paradoxo da soberania. Mas, para que
isto seja possível, será necessário escrever histórias anti-romanas.
Mais uma vez, estas histórias utilizarão a Bíblia e a profecia para
escrever suas próprias genealogias, sem recordação.

36 Rom war noch gegenwärtig und wirkte im Mittelealter als eine Art andauernder
und aktueller historischer Gegenwart fort. Rom wurde wahrgenommen und als
in tausend Kanäle unterteilt.

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RAFFAELE DE GIORGI - 89

NIKLAS LUHMANN: O FUTURO DA MEMÓRIA


Recordar é uma atividade do esquecer seletivo. Recordar
Niklas Luhmann significa esquecer o início.1 Durante os de-
zoito anos que nos esperamos reciprocamente, não existiu um
início para mim. Ele esperava rever a solidão humana das olivei-
ras que lhe faziam companhia no Sul; eu, sentir novamente em
Oerlinghausen a emoção de seu sorriso leve, das poucas linhas
de suas mãos que acompanhavam os dias mudos de silêncio pro-
fundo. A comunicação, dizia ele, é paradoxal à medida que sem-
pre comunica algo não comunicável. Justamente isto é o que não
tivera um início.
Quando, em 1980, conheci Niklas Luhmann, me pareceu
como Ireneo Funes: “monumental como o bronze, mais antigo
que o Egito, anterior às profecias e às pirâmides”. Antes, não pen-
sava que sua realidade tivesse realidade, fosse presente. Depois de
nosso encontro entendi que aquilo que me parecia difícil era a
inexplicável auto-evidência deste presente e o fato que não tives-
se, precisamente, um início. Aquilo que me parecia difícil era so-
mente a dificuldade de aceitar a surpresa como alguma coisa
normal, resistente ao tempo. Com ele a teoria, o mundo e o pre-
sente eram essa normalidade do surpreender-se.
Hegel afirmara que o problema da lógica era o início. Para
Luhmann, não era este o problema. Tudo inicia, dissera ele, com o

1 O início pode ser fixado em 1979, quando a editora alemã Dunkle & Humboldt
enviou para Luhmann uma cópia do livro de De Giorgi Wahrheit und Legitimation
im Recht. Após a leitura deste trabalho, Luhmann escreveu uma carta a De
Giorgi, comunicando-lhe que tinha gostado de seu estudo e que se interessava
por estabelecer um intercâmbio de idéias. (N. T.)

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90 - DIREITO, TEMPO E MEMÓRIA

já estar iniciado. Pude entender isso em novembro de 1980, quan-


do comecei a esperá-lo; quando também ele, assim me contara,
começou a me esperar. Se o início não é o problema nem mesmo
o fim será. O problema é o presente, sua improbabilidade, sua
presença, seu poder de surpresa, seu existir porque não existe, o
fato de ser um tempo que tem tempo. Mas isso não é somente o
presente. Este é ele próprio, é Niklas Luhmann.
Deixe-me concentrar. Permita-me sair do labirinto, deste
sonho dos cômodos infinitos, como acontecia ao coronel Aureli-
ano Buendia, e, como ele, deixe-me despertar para trás, porque
não encontro nenhum início. É aqui onde se pode ver. Então ve-
jamos, como no romance de Saramago, no final do primeiro capí-
tulo, quando o cego vê que era cego. Penso em Novalis para
começar.
Buscamos sempre incondicionalidades (das Unbedingte), di-
zia, mas encontramos sempre e somente coisas (die Dingen). Luh-
mann não encontrava coisas. Ele se surpreendia diante das coisas,
dos seus nomes. “Como é possível?”, era sua pergunta. Diante da
surpresa, a única resposta podia consistir em uma atitude que
mantivesse o caráter surpreendente da surpresa e visse as coisas
como improváveis. Mas a surpresa e a improbabilidade também
deveriam ser descritas. A teoria da sociedade é o resultado desse
esforço: divertido e titânico, humano e desumano, infantil e ingê-
nuo e, ao mesmo tempo, calculado de forma refinada. O esforço
de descrever essa surpresa produziu uma arquitetura conceitual
grandiosa que se surpreende a partir de si. Aquilo que os outros
viam, as coisas que eram vistas como incondicionalidades, ele as
encontrava improváveis como resultado de autocondicionamen-
to. Assim ele via o mundo, o presente, a tenebrosa interioridade
dos homens. Era seu modo de levar a sério o que via. O pensa-
mento da complexidade nascia inteiro desta atitude do homem.
Com esta arma simples e ingênua, ele desarmou o pensamento da

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RAFFAELE DE GIORGI - 91

Velha Europa, como gostava de denominar, que permanecera atra-


sado em face das transformações da estrutura da sociedade. As-
sim, a sociedade se vê como improbabilidade que se produz a partir
de si e se torna imprevisível a si mesma, ou seja, se surpreende a si
mesma. Mas existe uma outra parte do paradoxo da improbabili-
dade. É esta: a teoria, como ele amava dizer, é escrita a partir de si.
É como se a teoria tivesse começado com o estar já começado e
nunca fosse concluída porque sempre fora concluída. Estas coisas
simples, sua majestosa grandiosidade e, alguns trocaram por tec-
nologias sociais, memórias artificiais, resistências calculadas pelas
irresistíveis forças do homem. Quantas vezes sorrimos sobre tudo
isto. Estava no cômodo ao lado. Retirava a folha da máquina de
escrever. Vinha com um sorriso largo: “quem são os novos bárba-
ros?”, me perguntava.2 Esperava-se a resposta de um sorriso. Onde
vive o homem? Alguém dissera que sua construção fosse grandi-
osa e falsa. Ria, e rindo repetia para mim: “será; mas é falsa do
único modo justo”.
Como Pirandello, Luhmann descrevia o humor trágico da
realidade que outros queriam absolutamente reparar, colocar em
ordem. Para este trabalho de reparação da realidade, ele respondia
com seu sorriso forte e amargo, ingênuo e refinado, triste e sarcás-
tico. Assim como seu pensamento e sua vida, sua teoria é, como
escreveu Quasímodo em uma poesia para a morte do pai, “uma
conta de números baixos, que recomeçava exata, concêntrica, um
balanço de vida futura”. São baixos os números dessa improvável
construção, são simples e paradoxais como o zero, como o décimo
segundo camelo, como a realidade da realidade, como ele, Niklas
Luhmann. Ele era sua teoria. Não porque a teoria fosse sua vida,

2 A resposta é: Jürgen Habermas. Cf. LUHMANN, Niklas. Jenseits von Barberei. In


MILLER, Max e SOEFFNER, Hans-Georg. Modernität und Barberei. Frankfurt
am Main: Suhrkamp, 1999, p. 219. (N. T.)

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92 - DIREITO, TEMPO E MEMÓRIA

mas porque seu pensamento e sua vida eram como sua teoria: sur-
preendente, auto-irônico, paciente, solitário, incompreensível, sim-
ples, inócuo e destrutivo, paradoxal e auto-evidente. Tinha definido
a identidade como “manter distância”. Mas sua distância, sua indi-
ferença inócua, se observada externamente, não era outra coisa que
sua silenciosa, triste, delicada compreensão, sua disponibilidade, seu
modo de elaborar interiormente todos os detalhes e oferecer trata-
mento aos “tranqüilos progressos da corrupção, das cáries e da fadi-
ga”, como dizia Borges. Era seu modo de compreender e viver um
“mundo multiforme, instantâneo e quase inexoravelmente preciso”.
Ele vinha com o último sol do inverno. Seguia e corria atrás
daquele sol. Amava a terra vermelha do Salento, acariciava com
seu sorriso silencioso a solidão milenar das oliveiras, que, diante
dele, se emaranhavam ainda mais sobre si mesmas. Seu conto se
confundia com o vento do norte que vinha do mar. Era antigo
aquele conto. Existia o ruído da guerra e o céu esplêndido dos
montes; era povoado de mulheres nobres e de grandes palácios;
tinha a umidade da relva e o frio branco da neve, a luz fraca de um
antigo sorriso de vidro. Tinha o tempo da memória naquele con-
to. Até o mar, até as varas de pescar de San Foca, que na praia se
mantinham próximas contra o vento, tinham se organizado para
deixá-lo ler a estética de Hegel, falar da causalidade no Sul e da
ecologia do não-saber, de organização e decisão e, depois, de Anne,
Alessandro, Antonio e Carla e dos camponeses de Campone. To-
dos estes últimos o conheciam e quando ele passava, gritavam:
“Professore!” Suas faces, queimadas pelo sol e pelo gelo, se ilumi-
navam como seus olhos, quando ele cedia diante da insistente
generosidade de cada um. Tinha um deles, em especial, que o
esperava todas as noites por muitos anos.3 Tinha o rosto de ma-

3 O autor se refere ao seu pai. (N. T.)

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RAFFAELE DE GIORGI - 93

deira e as mãos de pedra, duras, ásperas, secas. Eles se entendiam


em uma língua incompreensível. Ambos usavam distinções arcai-
cas. Foi, assim, que uma noite falaram sobre risco. O velho conhe-
cia somente o perigo, como os romanos. Era 1988. Fundamos o
Centro de Estudos do Risco. O velho não se deu conta disto. Para
ele o risco ainda não tinha sido inventado. Continuou a esperá-lo
todas as noites até quando caminhou ao encontro do vento e da
certeza de não mais sentir suas mãos de pedra.
Era o tempo da memória, o tempo do futuro da memória.
Eram os projetos para o Centro de Estudos do Risco; era a elabo-
ração do material para a Teoria della Società.4 Quatro meses em
San Foca5 nos quais o rumor surdo do mar lembrava o repetir e o
esquecer com os quais a sociedade constrói suas estruturas, a des-
crição do futuro se apresentava aos olhos e as ondas cansadas so-
bre a praia serviam para recordar que o mar também envelhece,
exatamente como as semânticas da autodescrição da sociedade.
Em um dia de setembro, o verão não queria terminar. As
pedras se incendiaram em luzes violentas; renasceram as amorei-
ras e as amoras; os tordos voltaram para as ruas de terra branca e
os muros de pedra se colocaram novamente dignos e discretos a
olhar o céu. Tínhamos encontrado raízes antigas de uma afinida-
de incomunicável. Tínhamos descoberto a Masseria.6 A velha
Masseria, onde o diabo soprava ao vento e os camponeses ordena-
vam-no a trançar a água e amarrar a areia com as cordas. O diabo,

4 Cf. DE GIORGI, Raffaele e LUHMANN, Niklas. Teoria della società. Milano:


Franco Angeli, 1996 (trad. esp. Teoria de la sociedad. México: Universidad
Iberoamericana, 1998). (N. T.)
5 Pequena praia do Mar Adriático, que se encontra na região italiana de Salento e
se localiza muito próxima da Masseria (ver nota seguinte). (N. T.)
6 Masseria é uma antiga casa onde, no passado, os camponeses coletivamente
habitavam durante períodos de trabalho no campo. Aquela a que o autor se
refere pertencia à família de sua mãe. A partir de 1994, ele e Luhmann residiram
neste local nos meses que trabalhavam juntos. (N. T.)

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94 - DIREITO, TEMPO E MEMÓRIA

agora, era o observador. Este diabo, o observador, Luhmann gos-


tava muito. Sonhamos, assim, o sonho da Masseria. Um céu es-
trelado que nunca concluía a Crítica da Razão Prática, mas que se
estendia inocente sobre a solidão exterminada das raízes e dos tron-
cos abertos como mãos incrustadas de terra vermelha. Teríamos
recolhido na Masseria todo o material produzido em trinta anos de
trabalho e escutado o silêncio ou, então, teríamos falado com o di-
abo ou visto o vento que rompe de noite a solidão milenar das oli-
veiras. Era este o futuro da memória. Vimos este futuro até agosto
de dois anos atrás. Depois, o silêncio e o escuro da memória. Agora
este sonho pode retornar. A Fundação Rico Semeraro, uma grande
fundação de Lecce, por decisão de seu presidente, decidiu construir
na Masseria o Instituto Niklas Luhmann para que recolha toda
obra de Luhmann e se dedique ao estudo e à pesquisa de seu pensa-
mento. Justamente como era nossa intenção original.
Nos anos 70, as cinzas incandescentes dos vulcões apagados
que tinham desarmado nossas esperanças, aquelas cinzas tinham
dissecado as paixões de nossa geração. A racionalidade clássica
tinha exaurido sua função. O ar estava impregnado de fumo e o
futuro tinha perdido o fascínio das expectativas. Tínhamos medo
e não existiam mais espaços para ilusões racionais. Niklas Luh-
mann nos retirou o medo. Ele me retirou o medo. Sua paciência
“foi lição de dias unidos à morte”. Com ele atravessei caminhos
longos por meio dos quais atravessa, como dizia Hegel, a “paciên-
cia e a dor do conceito”. Um caminho de séculos. Um caminho
que agora quero percorrer com Giancarlo Corsi. Com as costas
voltadas para o futuro, como os profetas de Israel. Nos grandes
cômodos de Campone7 , onde leio as páginas de um livro que cada
dia se reescreve a partir de si. O título do livro é: “O futuro da
memória”. O autor – entenda-se – é Niklas Luhmann.

7 Campone é o nome da Masseria. (N. T.)

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RAFFAELE DE GIORGI - 95

HEINZ VON FÖRSTER (1911-2002)


(1911-2002)
Einstein afirmou que as teorias científicas são livres cria-
ções da mente humana. Se, de um lado, tal assertiva encontrava
plausibilidade em algumas aquisições recentes da física; de ou-
tro, liquidava os esforços realizados por muitos séculos de refle-
xão ocidental sobre a teoria do conhecimento. Em relação a estes
esforços, a afirmação de Einstein parecia paradoxal. Ele mesmo
se questionava maravilhado: se isto é verdade, como é possível com-
preender o universo através de teorias e explicações científicas? Não
se trata de um paradoxo, esclareceu Maturana: “postulados cien-
tíficos não explicam um mundo independente ou o universo;
eles explicam a práxis da vida (o domínio da experiência) do
observador, utilizam as mesmas operações coerentes que a consti-
tuem em linguagem”.1 Esta é uma explicação que, ao contrário,
deixa emergir a realidade paradoxal das tradicionais concepções
dualistas do conhecimento. Aquelas concepções que, movendo-
se pelo pressuposto óbvio de uma distinção entre sujeito e objeto,
interno e externo, trabalharam, por muito tempo, na tentativa –
menos óbvia e, de qualquer forma, não alcançada – de superar a
diferença e de explicar onde se poderia colocar a unidade desta
diferença: no sujeito ou no objeto, no interno ou no externo, na
mente ou no universo.
Logo depois, Maturana acrescenta outra reflexão: uma es-
pécie de comentário daquilo que já afirmara. Ele o faz na forma

1 “Scientific explanation do not explain an independent world or universe;


they explain the práxis of living (the domain of experience) of the observer,
making use of the same operational coherences that constitute it in
languaging”.

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96 - DIREITO, TEMPO E MEMÓRIA

de uma anotação, quase de um lembrete que alguém escreve para


si mesmo: “é aqui onde a ciência se torna poesia”.2 Poesia?
A poesia não representa um mundo, um universo fora de si,
não o descreve, não o explica. A poesia constrói seu mundo. As
imagens do mundo redesenhadas na poesia não são imagens do
mundo, mas um mundo de imagens pelas quais a poesia faz poe-
sia, um mundo de representações que a poesia faz de si, através de
si mesma. Essas imagens não são o mundo: elas são a poesia. A
ciência torna-se, de verdade, poesia? Torna-se experiência lingüís-
tica da experiência lingüística, mundo dos mundos, experiência
do mundo através da construção do mundo, experiência de si por
meio do agir que o constitui? Se, dessa forma, a ciência se torna
poesia – como afirmou Maturana quase murmurando para si mes-
mo –, então Heinz von Förster foi um grande poeta.
Como um grande poeta, queremos recordá-lo agora que ele
não existe. Um poeta da experiência, do conhecimento, da liber-
dade, da ética. Assim como amava falar e amava o diálogo, ele
amava os números e as fórmulas, as máquinas e o mundo do qual
se sentia parte e que ele construía. Mas sua experiência, sua cog-
nição, seu linguajar, como diria Maturana, eram atividades de um
poeta; uma experiência não repetível, como a experiência de toda
ciência que se torna poesia.
Afirmavam que “um grande homem obriga os outros a com-
preendê-lo”.3 Heinz von Förster não força os outros a compreen-
dê-lo. Sua poética sempre foi claríssima, simples e linear. Mas,
então, como se pode fazer poesia quando se utiliza uma poética
abertamente declarada, linear? Se isto fosse possível, deveríamos
reconhecer que somos todos poetas, ou seja, que todos somos cons-

2 It is here where science becomes poetry.


3 Ein grosser Mann zwingt die anderen dazu, ihn zu verstehen.

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RAFFAELE DE GIORGI - 97

trutores do mundo, que o esplendor do velho e franciscano cânti-


co das criaturas se ofuscou ao alvorecer de um novo horizonte
duradouro, que começa a escrever o cântico dos criadores e entre-
laça a dança que cria. Onde está o milagre da poesia? Uma vez
disse Fernando Pessoa: ser poeta não é minha ambição. É minha
maneira de estar só. Von Förster poderia acrescentar: é nossa ma-
neira de estar só, com os outros. Esta é a diferença.
Heinz von Förster atravessou um século que soube construir
sua grandeza e sua decadência. Um século que, através do repetir
e do esquecer, construiu, como dizia Nietzsche, seu ininterrupto
estado de ser, seu negar, consumar e continuar de si mesmo, que
absorveu e, depois, dispersou o tempo nas arquiteturas de grandes
narrações das quais somente permanecem os vestígios de ruínas
circulares, como as ruínas dos grandes templos no conto de Bor-
ges, “Las ruínas circulares”. Von Förster atravessou seu tempo sem
início ou fim vivendo em um contínuo presente que se surpreen-
de, que se fascina, porque se inventa continuamente e nesta in-
venção se deixa novamente surpreender, pois se vê como
conseqüência de si. Uma conseqüência na qual se vertem futuros
que nunca começam, porque não param de se multiplicar.
Na obra e no pensamento de von Förster, agem e se sentem
agir aquela magia do tempo e aquele milagre da vida que somente
a leveza de uma infantil ingenuidade pode conter. Diante destes,
a única questão possível é: Por quê? Uma pergunta que nasce da
surpresa; uma pergunta que espera somente respostas que tam-
bém se surpreendam. Desta perspectiva é a ciência que se libera
de sua própria sombra, que caminha sobre ela, esmagando as ino-
portunas cadeias do ser que, por séculos, impediram sua liberda-
de. É a ciência que se emancipa de si, que se constitui surpresa,
poesia: “Gostaria incessantemente de chamar a atenção sobre o
fato de que tudo aquilo com que nos ocupamos na nossa vida
diária é inexplicável, é um milagre. Se nos detemos um momento

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98 - DIREITO, TEMPO E MEMÓRIA

e refletimos: ‘Por quê?’, ‘Por que acontece isto?’, ‘Por que este pás-
saro voa?’ – É simplesmente inexplicável! A esta altura eu sento e
me maravilho, me maravilho”.4
Por que se produz a memória? Por que se aprende? Por
que se produz uma realidade? Por que acontece alguma coisa?
Se, diante daquilo que geralmente se considera uma obvieda-
de, simplesmente colocamos a pergunta por que é possível que
isto aconteça, por que é possível que seja assim como é, abrir-se-ão
enormes espaços nos quais a partir de nossa ingênua surpresa
se pode produzir poesia, criar, inventar. Por que se produz o
pensamento? Por que podemos conhecer? Podemos construir,
com ajuda da poesia, máquinas que nos fazem ver em miniatu-
ras rudimentares um simples aspecto desta poesia que conti-
nuamente produzimos?
A estas perguntas seguem outras questões que somente uma
grande ingenuidade poderia formular. Mas são perguntas que, só
pelo fato de serem formuladas, produzem êxitos catastróficos na
resistente cegueira da tradição do pensamento ocidental: por que
é possível pensar a verdade? Verdade do quê? Por que é possível
pensar a existência de objetos, sem pensar que eles se tornam ob-
jetos porque existe um observador que os observa e, portanto, que
os constrói? Por que é possível pensar que um significado possa
ser transferido ou que uma informação possa ser transmitida? Em
resumo: Por que é possível pensar que o pensamento possa sair de
si e operar em outra parte? E o mundo? Por que é possível pensar
que o mundo possa organizar o cérebro ou que o cérebro possa
repetir o mundo?

4 Ich möchte ununterbrochen darauf aufmerksam machen, dass alles, womit wir
uns im täglichen leben beschäftigen, unerklärich ist, ein Wunder ist. Wenn wir
nun einen Moment stehen bleiben und uns überlegen: ‘Wie kommt das?’, ‘Wieso
passiert das?’, ‘Wieso fliegt diese Vogel?’ – Es ist ja einfach unglaublich! Da sitze
ich und staune und staune.

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RAFFAELE DE GIORGI - 99

Para construir teorias, dizia Luhmann, é necessário trans-


formar obviedades em problemas; surpreender-se e inventar-se,
nas palavras de Heinz von Förster. Assim, a ciência se torna poe-
sia, porque cognição é comportamento, conhecimento é constru-
ção, invenção de si que inventa o mundo, invenção da máquina na
qual a percepção percebe a si mesma. A ciência transforma-se em
poesia, pesquisa de linguagem por meio de linguagem, condensa-
ção simbólica na qual uma percepção que constrói um mundo se
exprime em uma relação de números, fórmulas ou conjuntos fini-
tos. A poética da construção do mundo torna-se poética da cons-
trução lingüística, sensível ao lirismo da essência: “... e tudo aquilo
que se sabe e que não fora simplesmente sentido como rumor ou
estrondo, pode-se dizer em três palavras”.5
A serena ingenuidade, simplicidade, clareza das perguntas, a
certeza, como afirmara Wittgenstein, de que “se deve calar sobre
aquilo que não se pode falar”6 , a coerente disponibilidade a se
deixar surpreender pelo mundo inventado e guiar pela surpresa na
pesquisa do outro, a continuar inventar o mundo e observá-lo que
foi inventado, e a contar a outros observadores, a disponibilidade
a observar as observações dos outros observadores e a expor-se a
eles, a perceber-se como parte do mundo que, assim, se constrói
são atitudes fundamentais que Heinz von Förster sempre teve.
Como ele se encontra em uma ininterrupta infância, elas produ-
zem resultados dilaceradores. As petrificadas seguranças dos prin-
cípios, das teorias do conhecimento, das filosofias da história e da
natureza, das distinções que se consideravam como dados em sua
objetividade e de todos os percursos científicos construídos para
negar estas próprias seguranças se fragmentam a partir de si mes-

5 ... und alles, was man weiâ, nicht bloâ rauschen und brausen gehört hat, läât
sich in drei Worten sagen.
6 Wovon man nicht sprechen kann, daruber muâ man schweigen.

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100 - DIREITO, TEMPO E MEMÓRIA

mo. Onde está o mundo além do mundo que eu construo? Sujeito


e objeto, interno e externo, verdade e falsidade, bem e mal, ser e
dever ser, subjetivismo e objetivismo, causa e efeito: estas sacrali-
dades mumificadas, incapazes de se surpreender e de ver que não
vêem os paradoxos sobre os quais se constituem, desabam, como
disse Nietzsche, assassinadas por uma criança que, em santificada
cegueira, brinca entre as cercas do passado e do futuro.
Estimulado pelas próprias conseqüências, esta criança segue
participando de uma brincadeira, iniciada com a natürliche Magie,
de Wieglebs, e que continuou, respectivamente, em Viena, Ber-
lin, nos primeiros laboratórios de física e com o Tractatus de Wit-
tgenstein. Em seguida, tal brincadeira prossegue o percurso para
sobreviver naquele trágico inferno cósmico, no qual os homens
brincam de destruir o mundo que procuraram construir. Ela, no
entanto, constrange a não ver que também eles agem por suas
conseqüências. Eles acreditaram na verdade de suas verdades, na
universalidade de suas distinções, na necessidade cósmica de seus
princípios e, no final, não encontram mais palavras para dizer a
troca que os lançaram mais uma vez, como disse Saramago, ao
inferno dos princípios e das certezas da diferença entre o impossí-
vel permanecer e a simples recordação de ter vivido. Agora se vê
que os homens não vêem que não vêem. Penetrar neste mecanis-
mo é a nova brincadeira de von Förster.
Em outros lugares, encontram-se pessoas que, do mesmo
modo, já tinham começado a retirar as cercas do futuro. Estas se
unem e, em uma irrepetível brincadeira do grupo, iniciam sua gran-
de empreitada: reconstruir a magia da vida, dar-lhe corpo pela
magia dos números, das máquinas, das formas e torná-la observá-
vel através da magia do diálogo. Nasce o Biological Computer
Laboratori: um teatro da surpresa e da paciente reconstrução dos
caminhos pelos quais o mundo é construído e os homens se in-
ventam; um teatro da magia da linguagem e da experiência, da

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RAFFAELE DE GIORGI - 101

construção de si por meio do diálogo e da imaginação poética. A


imaginação que inventa máquinas e universos pela invenção de
seus observadores. Quando descem as cortinas deste teatro, He-
inz von Förster se retira em sua verde colina, onde continuou a
contar aos outros o modo pelo qual ele se inventou e construiu
seu mundo. As únicas obras escritas que deixou são estes contos,
diálogos, conversas públicas e privadas: as descrições das magias
que praticou por toda vida. A radicalidade de seu pensamento se
reflete na hermética condensação das fórmulas que ele gostava de
usar. Ele chamava suas recordações (memorabilia) de Förstereien.
São tantas. Qualquer uma delas é uma explosão de luz violenta
que cega a tradição das epistemologias.
Verdade (Wahrheit) era, para ele, a invenção de um mentiroso7 ;
paradoxo (Pardox) era aquilo que mina as bases da legitimidade
do ortodoxo8 ; ciência (Wissenschaft) era a arte do distinguir9 ; rea-
lidade (Wirklichkeit) era uma cômoda, mas inútil muleta que nas-
ce do diálogo10 ; diálogo (Dialog) significa se ver com os olhos de
um outro11 ; por fim, observador (Beobachter) era aquele que cons-
trói um universo, aquele que faz uma distinção12 .
Eu gosto de recordar Heinz von Förster como um poeta da
ciência que faz poesia e como um grande poeta da liberdade.
Uma vez ele disse: como máquinas não triviais, os homens se
inventam como livres. A epistemologia praticada por Heinz von
Förster é uma epistemologia da liberdade, da experiência da li-
berdade, da experiência do outro como construtor de espaços de
liberdade.

7 die Erfindung eines lüguers.


8 das, was die Legitimität dês Orthodoxen unterminiert.
9 die Kunst des Unterscheidens.
10 eine bequeme, aber überflüssige Krücke, die aus dem Dialog entsteht.
11 sich mit den Augen eines Anderen sehen.
12 derjenige, der ein Universum schafft, der eine Unterscheidung macht.

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102 - DIREITO, TEMPO E MEMÓRIA

No final de 1998, pouco depois da morte de Luhmann, He-


inz von Förster lhe escreve uma carta:
Meu caro Niklas,
O que aconteceu a você, nos deixar em um momento tão
importante e decisivo?13 Ele agradece a Luhmann por ter
desmascarado a forma misteriosa do observador.14 Quem é
o observador? Como reconhecê-lo?15 – pergunta von
Förster. Luhmann responde de modo simples: observa-
dor é aquele que é observado como observador.16 Von Förster
continua: estou feliz por ainda poder falar de tudo isto con-
tigo no lugar onde você está agora.17
Até breve, meu caro Niklas.
Seu Heinz.
E, assim, aconteceu. Agora, vejo ambos passear no pântano
sacro até as ruínas circulares de um templo de deuses incendiados,
como o estrangeiro do conto de Borges. Enquanto Heinz conta a
Luhmann a história do homem que se torna máquina não trivial,
Niklas relata a Heinz a história do homem que tinha feito uma
viagem realizada por causa de um propósito não impossível, mas
sobrenatural: ele queria sonhar com um homem absolutamente
completo e impô-lo na realidade. Este projeto mágico exaurira
todo espaço de sua alma. Em menos de um ano, sonhou com um
homem completo que, todavia, não falava, nem podia abrir os olhos.
Continuou a sonhar, adormentado. Por causa da intervenção de
um deus múltiplo que se apresentara no sonho, o sonhador acor-

13 Mein liebe Luhmann, was ist Dir dem eingefallen, uns in einer so wichtigen und
entscheidenden Zeit uns selber zu überlassen?
14 Entlarvung der geheimnisvollen Gestalt des Beobachters.
15 Woran erkennt man ihn?
16 Beobachter ist der, der als Beobachter beobachtet wird.
17 Ich freue mich aschon, mit Dir dort, wo Du jetzt bist, über all das weitersprechen
zu dürfen. Also auf bald, mein lieber Niklas. Dein Heinz.

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RAFFAELE DE GIORGI - 103

dou. Gradualmente o homem se acostuma à realidade. Porque


nunca soube que era um fantasma, diz Borges, lhe infunde o es-
quecimento total de seus anos de aprendizado. Ele, no entanto,
temia que o filho pudesse descobrir sua condição de simples si-
mulacro. Nesta preocupação, um incêndio concêntrico contornou
os muros do templo e ele o atravessou sem se queimar. “Com alí-
vio, humilhação e terror ele compreende que era também uma
aparência, que um outro o estava sonhando”.

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II

Teoria dos Sistemas e


Direito Penal

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RAFFAELE DE GIORGI - 107

DIREITO E CRIME NO SÉCULO XXI


IREITO

1)
Sobre o futuro, sabemos somente que não repetirá o passado.
O passado não se apresenta de novo e aquilo que retorna é, de
qualquer modo, diverso. Em relação ao futuro, podemos unica-
mente decidir, vale dizer, arriscar. Sobre o passado, sabemos que é
passado e, portanto, podemos somente redescrever aquilo que já
foi descrito através da comunicação social. E sobre o presente? O
que sabemos dele? O presente não é, como poderia parecer, uma
questão banal. Em relação a ele, não podemos decidir, porque o
presente não é futuro; não podemos redescrevê-lo, pois não é pas-
sado. Podemos nos aproximar do presente de dois modos: provido
de não-saber, se olhamos para o futuro ou, se damos as costas a ele
– como fizeram os profetas de Israel –, dotado de um saber que
seguramente não servirá para nada. Todavia, o presente é o tempo
em que acontece tudo aquilo que acontece e, portanto, estamos
sempre no presente, o presente está sempre aqui.
Mas qual presente? Quanto dura o presente?
Estes problemas – e com estes muitos outros – me atraíram e
me preocuparam enquanto procurava refletir sobre o tema direito
e crime no século XXI. Um tema aparentemente simples, muito
interessante, mas simples. Trata-se de refletir sobre direito e cri-
me no século XXI. Um século que acabou de começar e que ainda
não parece um século. Nós o experimentamos como nosso pre-
sente e, dessa forma, percebemos que se trata do direito e do cri-
me hoje, ou seja, do presente. Como observar e descrever o
presente? Observar significa fazer uma distinção. Em relação a

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108 - DIREITO, TEMPO E MEMÓRIA

que se distingue este presente? Ou em relação ao passado ou em


relação ao futuro. No entanto, em relação a que passado e, natu-
ralmente, a que futuro? Detenhamo-nos aqui. Não queremos en-
frentar grandes questões filosóficas; queremos somente levar o tema
a sério. Mas se o levamos a sério, percebemos que o tema esconde
um paradoxo e que o paradoxo é ocultado pela introdução de uma
distinção. Os paradoxos são circularidades que, se não forem de-
senvolvidos (svolgere – svolte), bloqueiam as operações dos siste-
mas que eles constituem. Por essa razão, os paradoxos devem ser
ocultados. Um paradoxo pode ser desenvolvido por meio de uma
distinção que introduz no sistema uma assimetria e que dispõe de
dois lados. Pode-se começar de um ou de outro lado. Nesse caso, o
paradoxo constitutivo é o paradoxo da autofundação do direito,
da auto-implicação do próprio direito. Em outros termos, o fun-
damento do direito é constituído pelo fato de que o direito é des-
provido de fundamento. Não se funda nem sobre pacto social –
que pressupõe o direito para se assegurar o respeito –, nem sobre a
razão – que também se funda sobre si mesma –, nem mesmo so-
bre uma evidência empírica qualquer ou sobre pressupostos com-
partilhados. O direito se funda em si e, através de suas operações,
constrói uma realidade. A distinção introduzida é a distinção entre
direito e crime. A distinção é construída de modo que seus dois
lados se contrapõem como se fossem duas realidades distintas: de
um lado, o direito, de outro,o crime. Deste modo, as duas realidades
podem se observar distintamente: uma primeiro, depois a outra. A
realidade originária, a unidade do paradoxo desapareceu. Agora, o
direito pode adiar sua origem, pode se inventar continuamente.
Também o crime, que é o outro lado do outro lado, pode esquecer
sua origem e sempre se reinventar, se atualizar.
Assim, sobre a base da observação de um ou de outro lado,
podem-se construir teorias do direito e teorias do crime, descri-
ções sociológicas do direito e do crime. Pode-se observar o incre-

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RAFFAELE DE GIORGI - 109

mento ou a redução dos crimes e atribuí-los, de modo causal, a


fatores externos. Podem-se construir relações recíprocas, um lado
da distinção pode-se referir ao outro e, pode-se também, conferir
ao direito um efeito ou uma função de intimidação em relação ao
crime e, a este, um efeito estabilizante do direito. Pode-se justifi-
car, assim, tanto a pena de morte – uma macabra incivilidade –,
como sua abolição; pode-se inventar o zero tolerance, ou mesmo,
como na Itália, pode-se encher os cárceres de extracomunitários;
podem-se inventar princípios constitucionais do justo processo
ou justificar o inferno processual de Guantánamo.
Não é difícil ver, então, que, se o paradoxo é constitutivo do
direito, a distinção é uma técnica de desenvolvimento do parado-
xo que se revela útil e altamente funcional no plano operativo.
Sem a distinção seria impossível observar o crime, porque seria
impossível distingui-lo do direito – isolar alguma coisa no fluxo
contínuo da comunicação social – defini-lo, caracterizá-lo como
evento em relação ao resto e, talvez, contrapô-lo ao direito.
Ora, a distinção não diz nada sobre os dois lados da dis-
tinção. Ela somente diz que um lado é o outro lado do outro
lado, que se pode observar um lado ou o outro lado, que não é
possível observar os dois lados contemporaneamente. Isto pro-
duziria o risco de cegueira, assim como se a luz, o mistério
fossem observados. Por último, e esta é a informação que mais
nos interessa, a distinção nos diz que um lado é independente
do outro, mas que um não existe sem o outro. Disso resulta que
a própria distinção não aparece na distinção. Em outras pala-
vras: através da distinção não se vê a unidade da diferença en-
tre direito e crime. Esta unidade é inobservável: é o ponto cego
da distinção. Podemos observar o direito ou o crime e pode-
mos acreditar que no mundo existe direito e crimes. Mas não
podemos ver o arcano da unidade da diferença. Nós ficaríamos
cegos e o direito se bloquearia.

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110 - DIREITO, TEMPO E MEMÓRIA

2)
Não são diversas as considerações que podemos fazer sobre a
temporalização da distinção direito/crime, ou seja, as considera-
ções que nascem do uso da diferença temporal para observar as
diferenças que se manifestam nesta distinção. Em outras palavras:
utilizamos a diferença temporal para observar o direito ou o crime
ou podemos, no passado, ver os vestígios da unidade de suas dis-
tinções? Como construímos a diferença temporal? Direito e cri-
me co-evoluem. De onde começa a evolução cada vez que ela
começa? O passado e o futuro são os temas do paradoxo ou de
qualquer um dos lados da distinção que o desenvolve? Todas as
operações sociais – e, por conseguinte, também as operações de
observação – são produzidas no presente. A distinção direito/cri-
me também se produz no presente. Tudo isto pode ser compreen-
dido por si só. Aquilo que, todavia, não se compreende por si só é
justamente isto: o que observamos quando tentamos observar o
presente? O presente representa a unidade da diferença entre pas-
sado e futuro. Ele é, entretanto, inobservável. Quando se atualiza,
ele já é passado em relação à observação. Este paradoxo do tempo
também é ocultado e, por meio dele, se introduz uma distinção
que resolve o problema da inobservabilidade: a distinção causa/
efeito. Desse modo, o presente aparece como efeito do passado.
No presente, se observam conseqüências dos eventos produzidos
no passado e assim, enquanto nos iludimos em construir o futuro
com base em projetos racionais, em evitar o retorno e a repetição
do passado, na realidade não fazemos outra coisa que não tentar,
continuamente, reparar o presente, consertá-lo, remendá-lo, re-
portando-o ao passado.
A distinção que oculta o paradoxo do presente, o tempo
que não tem tempo, pode ser utilizada na observação de um ou
de outro lado da distinção direito/crime. Pode-se dizer que o
direito, por exemplo, é instrumento de controle do crime ou que

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RAFFAELE DE GIORGI - 111

ele é inadequado para este tipo de controle em uma sociedade


moderna; pode-se dizer que no presente existe muito ou muito
pouco direito penal; que criminalizando determinados compor-
tamentos se obterão determinados efeitos ou que descriminali-
zando determinadas fattispecie se produzirá um espaço maior de
liberdade. Isto é o que afirmavam, com a segurança daqueles
que conhecem a verdade, alguns penalistas “de esquerda” na Itá-
lia, dez anos atrás. Eles se ocupavam da teorização do direito
penal mínimo – a redução dos crimes a um número limitado de
fattispecie –, alegando motivações emancipatórias e libertárias.
O projeto era tão revolucionário que, nos últimos três ou quatro
anos, foi largamente implementado pelo governo neofascista atu-
almente no poder, de acordo com o interesse de seu capo e de um
grupo restrito pertencente ao clã. Atualmente, os penalistas “de
esquerda” estão empenhados em pedir a requalificação como cri-
me de certas tipologias de comportamentos, particularmente na
economia. Uma vez que os dois lados da distinção são tratados
como realidades diferentes e contrapostas, a observação política,
a sociológica e a moral começam a oscilar continuamente de um
lado para o outro, do direito ao crime e do crime ao direito. Esta
oscilação não pode continuar sem destino, não pode se tornar
novamente cega. A oscilação entre direito e crime opera como
uma função recursiva, uma função que se aplica a si mesma, uma
função que tem a si como seu argumento. Este oscilar, para usar
uma idéia e uma imagem de Heinz von Förster, produz autova-
lor (Eigenwert), auto-objeto. Como a percepção produz objetos,
também a oscilação da observação entre direito e crime produz
autovalores (Eigenwert) em seus movimentos recursivos, os tra-
ta, de fato, como objetos, como entidades que têm sua existên-
cia. Estes objetos, estes autovalores são chamados, pelo direito,
de bens jurídicos e, pelo crime, de desvio. Os bens jurídicos po-
dem ser objetos de observação filosófica, jurídica, política; o des-

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112 - DIREITO, TEMPO E MEMÓRIA

vio pode ser objeto de observação sociológica, clínica, política,


religiosa: é inexaurível como objeto. Bens jurídicos e desvio ad-
quirem características ontológicas, são universalizados, tornam-
se realidade. Uma vez fixados estes autovalores, a oscilação do
direito ao crime e do crime ao direito é apresentada pelo obser-
vador como transformação: transformação do direito, transfor-
mação do crime. Se o observador usa distinções temporais,
somente a construção de autovalor pode permitir indicar, ou seja,
observar objetos e distingui-los em relação a outros ou em rela-
ção a si mesmo. Como os objetos, também os autovalores cons-
tituídos no direito e no crime têm uma própria realidade, ou
melhor, uma própria temporalidade, se distinguem em relação
ao tempo. O presente, que se materializa através da distinção
causa/efeito, pode ser enriquecido com alternativas: os efeitos
podem ser desejados ou não, resultados de cálculo ou perversão.
Da mesma forma, o futuro pode ser tratado, evitado e construído
mediante projetos – construções de causalidade projetadas no fu-
turo, geralmente chamadas de política do direito penal –, projetos
para o tratamento ou, como se diz, de forma metafísica, para a
prevenção da criminalidade.
O desenvolvimento do paradoxo da inobservabilidade do
presente multiplica, no presente, as temporalidades do direito e
do crime, as diferencia. O tempo do crime é o tempo da desordem
e a sociedade não pode tolerar estar em desordem. O tempo do
direito é o tempo da ordem social, de sua ininterrupta renovação,
não importando se ninguém se pergunta ou sabe o que significa
ou se é possível “ordem social”. O que importa é construir uma
grande semântica do repetir e do esquecer, do ocultar e do distin-
guir, do contínuo oscilar, construir e reformar, ou seja, uma se-
mântica que tolere qualquer dispositivo da produção de sentido e
que, deste modo, também deste modo, produza sociedade e que
esta evolua.

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RAFFAELE DE GIORGI - 113

3)
As reflexões que acabamos de desenvolver nos permitem re-
formular os problemas antigos da observação do direito penal e
do crime. Elas nos permitem entender, também, como se desen-
volve a semântica tradicional dos lugares comuns sobre direito e
sobre crime: a semântica da ordem social, dos bens jurídicos fun-
damentais, da tutela da sociedade através da tutela dos bens jurí-
dicos, da defesa da sociedade contra o crime e, correlata a esta, a
semântica das “condições” biológicas, sociais e psíquicas do crime
e as numerosas teorias do desvio, desde aquelas ligadas à estratifi-
cação social até outras mais sofisticadas, relacionadas à orientação
psicanalítica ou, mais vagamente, sociológica. Vejamos, então,
como os autovalores do direito e do crime condensam o valor po-
sitivo e negativo dos eventos, o valor social e anti-social da ação, o
valor de bem e de mal do ponto de vista da moral que, em sua
religiosa imanência, pode apresentar o crime como maldição e,
portanto, justificar a sanção, mas também o pedido de perdão e o
arrependimento. Se tudo isto nos é suficientemente claro, então
podemos nos perguntar como o direito penal se realiza por si (spe-
rimenta). Podemos reformular a questão central nos seguintes ter-
mos: como se constrói uma realidade e o direito penal? Como,
através da construção de sua realidade, o direito penal produz so-
ciedade? Uma resposta a estas duas questões deveria nos permitir
clarear de que modo operam, no presente, as distinções que de-
senvolvem os paradoxos dos quais já falamos.
O poder moderno é um poder fundado sobre direito ao po-
der, disposto a submeter-se ao direito que ele próprio produz. Hoje,
geralmente se chama esta circularidade de democracia. Ela confe-
re legitimidade ao poder que investe poder para eliminar poder e
requer dois pressupostos. O primeiro é aquele que o povo, despro-
vido de poder, seja tratado como fonte do poder. O segundo, ao
contrário, refere-se ao fato de os indivíduos serem tratados como

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114 - DIREITO, TEMPO E MEMÓRIA

indivíduos e, portanto, como livres, capazes de se opor ao poder.


Ambos são, neste sentido, soberanos. Estes requisitos, por sua vez,
estão ligados a uma condição estrutural da forma de diferenciação
da sociedade moderna: a inclusão de todos em cada sistema social.
Este aspecto da sociedade moderna é extremamente relacio-
nado à possibilidade de especificação funcional dos sistemas soci-
ais. Se o sistema educativo se especifica baseado nas condições
para aprender a aprender e que isto acontece somente no interior
deste sistema, então todos devem poder estar nele incluídos, pois
somente assim todos poderão ser tratados daquele ponto de vista.
Especificação funcional dos sistemas e inclusão universal dos in-
divíduos evoluem e se pressupõem ao mesmo tempo. Do mesmo
modo, a sociedade não tolera que alguém não possa ter acesso ao
direito ou que dele se subtraia para ter direito. Inclusão significa
que se pode ter direito somente através do direito, significa que
alternativas são excluídas e que, portanto, direito produz direito,
assim como poder elimina poder.
O direito tem a função de tornar o poder manifesto. Tal visi-
bilidade estabiliza a expectativa de que existe um poder que se
funda sobre direito ao poder e que existe um direito que é susten-
tado pelo poder. Esta visibilidade estabiliza, no tempo, a expecta-
tiva de que o direito ao poder não somente fundamenta o poder,
mas nele se fundamenta. Esta visibilidade torna evidente o fato
de que não se trata de um ato fundador (fondativo) baseado em
uma recíproca auto-implicação de poder e de direito penal, mas se
trata de uma circularidade sempre presente, desprovida de ori-
gem, capaz de recapitular cada vez sua história e de se construir
uma origem, de se inventar um passado. A auto-implicação recí-
proca não pode se manifestar como vínculo do tempo, vínculo do
futuro. Por isso, diante do direito de exercício do direito, se espe-
cifica o direito penal que, ao contrário, é direito da sanção. Por
meio da sanção, o poder manifesto vincula o futuro enquanto in-

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RAFFAELE DE GIORGI - 115

troduz o tempo da sociedade no tempo do direito. O futuro se


determina, assim, como tempo do direito, como continuação do
direito, como contínua reativação do passado, como um presente
sem interrupção. Isto se tornou possível graças à idéia das conse-
qüências. Porque as conseqüências – as que se verificam ou não –
e subtraem da observação empírica, a idéia das conseqüências jus-
tifica qualquer representação do futuro e, portanto, qualquer tera-
pia do presente. De fato, a circularidade da auto-implicação do
poder e do direito penal deve ser reconstituída sempre no presen-
te. Os programas que vinculam o futuro devem ser ativados so-
mente no presente. Na constituição destes programas, o não-saber
do futuro se materializa como prevenção, o não-saber da diferen-
ça dos sistemas psíquicos e dos sistemas sociais se materializa como
integração e o não-saber das diferenças dos indivíduos se materi-
aliza como ressocialização.
Esta realidade construída pelo direito penal não pode ser
baseada em uma observação da comunicação social. A comunica-
ção social não é diretamente observável. Para que isto se torne
possível, é necessário desnaturar a comunicação, subtrair-lhe rea-
lidade, reduzi-la, simplificá-la, ou seja, poder construir um evento
na irrefreável rede de comunicação social. Às vezes, basta sua au-
sência, desde que esta possa ser delimitada, ou seja, isolada em
uma conexão causal. A construção desta determinação observável
acontece por meio da redução da comunicação à ação, vale dizer,
através do isolamento de um evento como artefato dotado de uma
história própria. Ação, precisamente. Se introduz, assim, na co-
municação, uma assimetria, uma duração, uma delimitação. Sele-
ções de sentido podem ser imputadas a sistemas, subtraídas do
ambiente, uma pode ser conectada à outra, enquanto a contínua e
aberta irritabilidade da comunicação pode ser bloqueada e redu-
zida a um formato passível de tratamento: a irreversibilidade do
evento é tratada como responsabilidade para as conseqüências.

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116 - DIREITO, TEMPO E MEMÓRIA

A inacessibilidade do sistema psíquico dos indivíduos, a ino-


bservabilidade dos estados mentais e a inexaurível complexidade
da comunicação, que impede uma observação direta, são simplifi-
cadas através da imputação da ação a indivíduos concretos, com-
pletos e particulares. Esta é uma técnica que torna possível o
desenvolvimento de uma grande semântica, a redescrição da co-
municação através de distinções que fazem história e, ao mesmo
tempo, a reinvenção contínua do passado e do futuro do ponto de
vista deste evento particular que chamamos ação. Em sua longa
história, esta semântica caminhou na direção de uma evolução
que culmina com a representação da própria sociedade como um
sistema de ação. No curso desta semântica, com enriquecimentos
posteriores, fixou-se a forma da causalidade do agir, sua referência
à razão como economia da relação entre meios e fins e elaborou-
se uma complexa analítica da ação. Das formas da reciprocidade
até as elaborações da política de Aristóteles, até a semântica do
movimento que encontramos em Leibniz, Hobbes e Kant, até as
análises da diferença entre saber e poder, elaborada por Hegel, até
a grandiosa reconstrução da ação como movimento que produz
alienação, observável no trabalho objetivo que nos forneceu Marx,
a ação tem demonstrado uma alta capacidade de mudanças que
atesta a co-evolução da semântica com a estrutura social.
Conforme Radbruch, no início do século XIX, a ação entra
direito penal com muita força através da porta da imputação. O
crime é ação. Por isso, as omissões são tratadas penalmente como
ações que não tiveram lugar. Mas o que interessa não é nem a
analítica da ação, nem sua dogmática. O relevante é que a identi-
ficação do crime como ação individualiza o tratamento penal, jus-
tifica o controle político da sanção, inclui todos no direito penal –
na medida em que todos podem praticar crimes –, universaliza o
indivíduo burguês que pressupõe a autodeterminação da ação par-
ticular e estabiliza a expectativa de que a ação socialmente aceitá-

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RAFFAELE DE GIORGI - 117

vel seja a ação que pode ser descrita segundo o modelo da racio-
nalidade da relação entre meios e fins.
A identificação do crime e da ação civiliza o direito penal
que pode generalizar as expectativas dirigidas à sua construção da
realidade. Desprovida de correspondência no ambiente, a realida-
de que o direito penal se constrói duplica a realidade da comuni-
cação social e a redescreve do ponto de vista da ação. A
comunicação social povoa-se de eventos, de histórias, de delimi-
tações, de realidade que marginalizam a complexidade da comu-
nicação e que substituem a ela. A simultaneidade da comunicação
fragmenta-se na seqüência das conexões causais. No contínuo
exercício de construções conceituais e no tratamento das fattispe-
cie são produzidas incongruências, as quais, todavia, não colocam
o direito penal em contradição consigo, mas são objetivadas. Es-
tas objetivações constituem os autovalores dos quais já falamos,
chamados bens jurídicos. Eles são largamente utilizados com o
intuito de construir hierarquias do ponto de vista da decisão jurí-
dica e do controle político, mas servem, em particular, para que se
mantenha continuamente aberta a possibilidade de uma revisão
desta hierarquia, de acordo com a percepção da situação por parte
do sistema jurídico ou segundo a representação de ameaças que a
política julga realizar em seu ambiente. Também aqui o direito
penal oscila entre os diversos níveis da hierarquia dos bens jurídi-
cos e este ininterrupto oscilar produz aquilo que geralmente é
chamado de transformação do direito, sua adequação aos valores
da sociedade ou, simplesmente, transformações dos valores reco-
nhecidos. Um eufemismo para dizer que o direito penal inventa a
realidade que produz. Os autovalores fixados como bens jurídicos
determinam o espaço de oscilação tolerado pelo sistema e por sua
arquitetura interna. Além deste espaço, existe a necessidade: uma
imanência que está sempre presente no direito penal e no poder.
Quando esta imanência se consolida, os autovalores que se estru-

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118 - DIREITO, TEMPO E MEMÓRIA

turaram segundo uma hierarquia são suspensos, conservados, e


superados por um único autovalor, que anula toda a hierarquia.
Este autovalor exclusivo é o próprio direito penal. O direito pe-
nal, portanto, se aprisiona, se separa de si. O estado de necessida-
de é o estado normal.
Estas considerações nos permitem ver que o paradoxo da
autofundação do direito penal é somente ocultado e que as distin-
ções que são introduzidas para ocultá-lo podem variar e, na reali-
dade, variam. A realidade que o direito penal constrói é a realidade
da auto-referência interna do sistema penal. Ela não tem equiva-
lente na realidade da comunicação social. O direito penal não con-
trola a realidade da comunicação social. A comunicação se produz
da forma como ela se produz. O direito penal só é capaz de se
controlar: ele não tem a função de estabilizar uma ordem social
qualquer. Ao contrário, ele pressupõe uma ordem social, um certo
grau de paz social que serve de cenário para a difusão do poder
que ele torna visível.

4)
O controle sobre si mesmo era a única garantia que o direi-
to penal podia dar ao ambiente externo, a única garantia de raci-
onalidade. Era o resultado da representação da política das
revoluções liberais do século XIX. O individualismo burguês ti-
nha necessidade de representar o futuro como horizonte aberto
à ação racional e construtiva. O direito – e especialmente o di-
reito penal – constituía um vínculo estável para o futuro. A nor-
matividade do direito positivo não se referia certamente à ação,
mas à continuidade das expectativas, vinculava, de fato, o futuro,
não o presente. Ora, na sociedade contemporânea o futuro é
percebido como risco, como conseqüência de uma decisão que
poderia ter sido outra, como horizonte de incerteza, que não
pode ser absorvida. O direito, assim como a sociedade, se arrisca

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RAFFAELE DE GIORGI - 119

e, como todos os sistemas que arriscam – e isto é válido também


para os sistemas psíquicos –, o direito incorre na ilusão do con-
trole. Porque o ambiente é como é e não se deixa controlar, o
direito, da mesma forma que outros sistemas sociais, deve refor-
çar a disponibilidade cognitiva de sua estrutura, ou seja, sua ca-
pacidade de aprender a partir de si, de aprender com a situação e
reduzir as pretensões de consistência de suas operações. Por ou-
tro lado, a política também se experimenta do mesmo modo.
Ela arrisca. Ela constrói representações da realidade que se reve-
lam como erros, projetos baseados em conexões causais, nas quais
um problema presente deverá encontrar soluções na indetermi-
nação de eventos futuros que não se sabe se acontecerão. E mais:
os programas devem ser reformulados no curso de sua realização
porque o ambiente se revela muito complexo ou porque, com
sua atuação, arrisca-se perder o consenso que lhes dava susten-
tação. Tudo isto é despejado no direito, que é sobrecarregado de
tarefas que não pode efetuar, particularmente do ônus de tratar
juridicamente os conflitos produzidos pelas contraditórias pro-
jeções normativas da política. Uma vez que a política – e tam-
bém a economia – dispõe de temporalidade diversa da
temporalidade do direito ou da sanção, o direito também se pre-
dispõe a uma temporalização da validade das normas. É sempre
menos necessário representar o futuro através do vínculo do tem-
po. A construção daquele vínculo era necessária ao direito penal
da ação, ao direito penal que tinha constituído um requisito da
sociedade moderna. Evitar o risco implica evitar a ação, evitar o
pressuposto da construção do futuro. Na percepção do risco por
parte da política, o vínculo do futuro é o próprio risco. É claro
que o observador que percebe o risco é o poder, não os indivídu-
os que, na realidade, são, somente, os destinatários de sua amea-
ça. Não se imputa mais a ação, mas o risco. Esta situação leva a
um enfraquecimento contínuo da coerência argumentativa no

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120 - DIREITO, TEMPO E MEMÓRIA

interior do direito, a uma contínua fragmentação das constru-


ções dogmáticas, a uma cada vez mais acentuada arbitrariedade
do intervento da magistratura, a uma maior contradição das pre-
tensões dirigidas ao direito, mas também das expectativas que
orientam o agir dos indivíduos enquanto fornecem a eles um
sustento de tipo normativo. O direito é fortemente desorienta-
do por esta simultaneidade de contraditórias irritações. O direi-
to penal é forçado a deixar visível o poder não somente através
da construção de sua realidade orientada à ação, mas, cada vez
mais, através de uma construção da realidade dirigida a referên-
cias externas. Estas referências são justificadas pela percepção
do futuro como risco. Em relação à ação, estas referências exter-
nas são os crimes. A sanção se dirige a eles. Somente assim ela
pode ter uma função preventiva em relação à ação, relegando os
indivíduos à não-ação. São introduzidas, assim, novas assime-
trias de papéis (di ruolo): o direito penal intervém com a função
preventiva de um risco percebido como imanente àquelas refe-
rências externas que o direito penal da ação tinha cancelado por
meio da redução da comunicação social ao evento chamado ação.
Este paradoxo do risco, este paradoxo que nega à ação dos indi-
víduos um futuro, enquanto não evita nenhum risco, criminaliza
raças, culturas, etnias, nacionalidades, fés religiosas. Afirma-se
como certo que a alternativa ao risco seja a segurança e que esta
seja dada como prevenção ao risco. Mas a segurança da não-
ação é uma circularidade que unicamente incrementa o risco.
Não se pode prevenir aquilo que não se sabe se acontecerá. Sus-
tenta-se um direito penal do suspeito, constrói-se exclusão, en-
quanto a exclusão que o sistema político não consegue gerir é
confiada à seletividade da intervenção penal. Na Europa, os cár-
ceres são refúgios seguros para os extracomunitários. A uma cres-
cente descriminalização dos crimes ligados à ação – desde aqueles
econômicos àqueles financeiros, contra a pessoa, a saúde, o am-

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RAFFAELE DE GIORGI - 121

biente – corresponde uma crescente criminalização, sem ação,


de status, papel, crenças com o intuito de impedir qualquer ação.
O direito penal constrói, assim, uma realidade da exclusão. À
obra, que caracteriza uma barbárie da sociedade moderna, con-
corre o direito administrativo, o direito civil, todo o direito da
exclusão das não-pessoas, no qual a política confia a gestão de
sua representação do risco. De fato, este direito penal se especi-
aliza na produção de não-pessoas. Seu tratamento preventivo do
outro é, na verdade, uma construção da exclusão do outro, uma
construção jurídica do aniquilamento das possibilidades do agir,
uma autocontradição da modernidade da sociedade moderna,
que usa o direito para manter aberto um futuro incerto ao qual
não pode se vincular. Desse modo, a política da sociedade tenta
controlar as conseqüências da diferenciação funcional, que pode
somente operar por meio da inclusão de todos em cada sistema
social. Ora, nós sabemos que exclusão já é produzida pelo nor-
mal funcionamento dos sistemas. Ela é um correlato da diferen-
ciação funcional, mas é, todavia, incompatível com esta forma
de diferenciação. Como reflexo da inclusão universal, o normal
funcionamento dos sistemas sociais produz exclusão. O direito
penal, através de uma intervenção preventiva, segrega, na exclu-
são, aquele excedente que, na percepção do futuro por parte da
política, constituiria um risco para a produção de exclusão deste
normal funcionamento. O direito penal contribui, assim, para a
estabilização de um metacódigo, de uma metadistinção que atra-
vessa os sistemas sociais diferenciados. Trata-se do metacódigo
inclusão/exclusão, que ativa a barbárie tipicamente moderna da
sociedade mundial.
No início da sociedade moderna, a invenção da ação tinha
produzido uma considerável civilização do direito penal. O di-
reito penal da ação desacoplava a prática dos séculos XVI e XVII,
que tinha modelado o crime, respectivamente, conforme a es-

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122 - DIREITO, TEMPO E MEMÓRIA

tratificação social, os sexos e a orientação política, e tinha segre-


gado as “classes perigosas” nos manicômios, nos hospitais, à
margem das cidades ou nas primeiras casas de trabalho. O direi-
to penal da ação realizava os pressupostos da inclusão universal.
O direito penal do risco e da prevenção inclui através da violên-
cia preventiva da exclusão. Ele tende a impedir que se atinja o
nível em que se ativariam os pressupostos do direito penal da
ação. De fato, no universo da exclusão, a política e o direito dei-
xam subsistir, toleram, aceitam um alto grau de violação do di-
reito, induzido estruturalmente. Contra este gênero de violação
do direito, o direito não se ativa.
Neste universo, os problemas que se colocariam para o di-
reito e para a política seriam catastróficos em função do respeito
ao direito. Na Itália, trezentas ou quatrocentas mil pessoas vi-
vem em torno de organizações mafiosas. Uma hipotética luta
contra a máfia deixaria uma grande quantidade de pessoas, edu-
cadas pelo uso das armas, sem trabalho e sem destino. A econo-
mia alemã se arruinaria, de modo ainda mais dramático, se
eliminasse o trabalho informal. Em muitos países europeus, os
serviços de assistência, cujos custos são insuportáveis, são de-
senvolvidos exclusivamente com recurso às prestações dos tra-
balhadores clandestinos do leste europeu. Existem numerosos
outros exemplos: basta pensar no Brasil!
Em todos estes casos, o crime que deve ser evitado não é a
ação antijurídica, mas a passagem, a transformação das não-pes-
soas em pessoas às quais podem ser imputadas ações. Existir: é
este o crime que se deve evitar. Naturalmente, existir para o direi-
to, porque das não-pessoas os outros sistemas sociais podem fazer
o uso que necessitam. O relevante é que a eles é bloqueado o aces-
so ao posto de pessoa, o acesso aos requisitos do direito de ação.
Seus corpos, como teria dito Hegel, podem, sem dúvida, existir e
obter reconhecimento.

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RAFFAELE DE GIORGI - 123

5)
No universo da exclusão não existe espaço para a autodeter-
minação da ação, para nenhuma economia lógica da relação entre
meios e fins. Não existe espaço para a construção de vínculos com
o futuro. A ordem do direito, que se diferenciou como pressupos-
to evolutivo da sociedade moderna, era a ordem das ações dos
indivíduos capazes de se autodeterminar pela ação, ou melhor,
indivíduos que eram pressupostos como titulares daquela capaci-
dade. Hoje, aquela ordem do direito é suspensa. Diante da per-
cepção do risco que ativa o sistema político, aquela ordem aparece
como uma ameaça. A suspensão daquela ordem motiva um contí-
nuo recurso à demanda de tutela e de proteção contra o status do
direito positivo. O Estado é destinatário de demandas de prote-
ção contra as ameaças externas, de demandas de ajuda social e, ao
mesmo tempo, de demandas de proteção contra a suspensão da
ordem do direito da ação por parte do Estado. Uma ambigüidade
que se materializa nos protestos universais contra a violação dos
direitos humanos e na demanda universal de sua aplicação. São
apelos a um direito que está além do direito positivo e que so-
mente a política pode transformar em direito positivo. Como se
os direitos humanos, tornados (resi) eficazes como o direito posi-
tivo, não pudessem – como o que acontece com o direito positivo
atual – ser suspensos. Somente a violação do direito o torna váli-
do, torna visível sua existência e, por conseguinte, sua suspensão.
O paradoxo originário, o paradoxo constitutivo do direito emer-
ge, novamente, em uma forma diversa, sob uma nova aparência
adaptada ao presente. Vê-se que o direito é válido somente por-
que é violado. Aqui se separam duas frentes. De uma parte, se
pede menos direito, porque se pretende que a renovação da ordem
da ação seja confiada à economia e ao mercado. Os novos funda-
mentalistas, sustentadores desta visão, pretendem que o direito
suspenso seja substituído pelas práticas de compaixão aos excluí-

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124 - DIREITO, TEMPO E MEMÓRIA

dos. De outra parte, se pede mais direito, porque ainda se nutre a


expectativa de obter o reconhecimento da ordem da ação através
da afirmação da eficácia de um direito superior, que deveria sus-
pender a suspensão do direito. De uma parte, os incluídos que
consideram a civilidade jurídica moderna uma civilidade de ca-
deias; da outra, os excluídos que pedem para entrar na lei. Diante
da lei existe um guardião, escreve Kafka, em um maravilhoso con-
to. Diante deste guardião, se apresenta um homem do interior
que pede para entrar na lei. Mas o guardião diz que agora não
pode lhe consentir o ingresso. O homem pergunta se poderá en-
trar mais tarde. É possível, responde o guardião. O homem tenta
olhar através da porta da lei, mas o guardião o proíbe e lhe diz que
não seria possível suportar o olhar dos outros guardiões. O ho-
mem aceita, espera, passam os anos, torna-se velho, a vista se en-
fraquece, as forças lhe faltam, não lhe resta mais muito tempo de
vida. Com os últimos respiros que lhe restam, o homem pede ao
guardião: “Todos querem alcançar a lei. Por que, em todos estes
anos, ninguém, além de mim, pediu para entrar?” O guardião en-
tende que o homem está nas últimas e grita: “Nenhum outro po-
deria obter a permissão de entrar aqui porque este ingresso era
destinado somente a você. Agora vou e o fecho”.

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RAFFAELE DE GIORGI - 125

DIREITO PENAL E TEORIA DA AÇÃO ENTRE


IREITO
HERMENÊUTICA E FUNCIONALISMO

I
Existem, ainda, histórias possíveis, histórias dignas de um
escritor? Era o que se perguntava Friedrich Dürrenmatt, meio sé-
culo atrás, enquanto se preparava para escrever um conto, A pane1 ,
a história de um contratempo, de uma banalidade. Um evento do
enfadonho cotidiano que se torna o prólogo e o cenário de uma
narrativa perturbadora, de um processo que se celebra por meio
de um jogo no curso de um jantar interminável e de uma conde-
nação que o inocente protagonista pune com o suicídio.
Onde se pode encontrar a matéria de uma história possível,
questionava Dürrenmatt: na generalização lírica ou romântica do
próprio Eu, na verossimilhança? Isto significa indagar como é
possível universalizar os significados dos eventos desprovidos de
significado – como, por exemplo, um contratempo ou uma pane.
Sem mais nenhum Deus que ameace, nenhuma justiça ou ne-
nhum fato – como na Quinta Sinfonia – resta o quotidiano vazio
de cada um e, diante dele, o público, a multidão de indivíduos,
cotidianos vazios que esperam a provisão de valores superiores, de
considerações morais, de sentenças praticáveis, a narrativa de pe-
quenas mentiras que, agrupadas, não fazem nem meia verdade.
Neste meio tempo, aquela realidade subterrânea, sequer digna de
observação, se fragmenta em labirintos que embaralham as som-
bras dos indivíduos que esperam controlar racionalmente seus res-

1 Cf. Friedrich Dürrenmatt. A pane. São Paulo: Códex, 2003.

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126 - DIREITO, TEMPO E MEMÓRIA

pectivos presentes mas que, ao contrário, se cruzam em uma “his-


tória possível de juízos e de justiça, talvez também de piedade,
captada por acaso, refletida pelo monóculo de um bêbado”.
E em relação ao direito, ao direito moderno, existe uma
história possível, digna de ser contada? Onde pode ser encon-
trada a matéria de uma narrativa do direito: nas grandiosas de-
clarações universais ou no cotidiano bestial de um Centro de
Permanência Temporária para Imigrantes ou, se preferirem, em
Guantánamo? Ou, então, como nos sonhos, naquela inconsci-
ente transposição do cotidiano frustrante para grandes imagens
plásticas e sem consistência, transparentes, imateriais, como, por
exemplo, na imagem da justiça, da soberania, na representação
de casos iguais tratados de modo igual, do direito que se encon-
tra depois ou, mesmo antes, do direito ou na heróica sublimação
de um justo processo? Mas esta matéria, que pode ser encontra-
da, não é destruída e fragmentada pela banalidade cotidiana do
direito, não se dissipa em sua evidente trivialização?
Por que o direito é trivial? Certamente, não é porque se ocupa
das lesões culposas, da espessura das cascas de maçãs, das células esta-
minais e do diâmetro das laranjas e, nem mesmo porque o direito
determina, ao mesmo tempo, a diferença da vida e da morte e tam-
bém o significado dos números. A trivialidade do direito é simulta-
neamente conexa ao fato de que ele pode ser aplicado a tudo, de que
tudo pode ser determinado como lícito/ilícito e que o direito aplica
também a si esta distinção (NR). Emerge, assim, seu paradoxo cons-
titutivo, o paradoxo de sua circularidade, de sua autofundação.
Não se pode compreender ou narrar um paradoxo. É possível
somente escondê-lo ou ocultá-lo. O véu que oculta o paradoxo pode
ser uma história heróica, de justiça e de valores, de natureza e de
razão; pode ser uma distinção, uma diferença que faz diferença e
produz, portanto, informação. Se não se recorre à introdução de
uma diferença, a ontologia do direito torna-se a impossível ontolo-

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RAFFAELE DE GIORGI - 127

gia de um paradoxo. A introdução de uma distinção permite cons-


tituir inumeráveis conexões e, por conseguinte, desenvolver o para-
doxo. Na presença de uma distinção é possível conectar
gradativamente cada uma das duas partes da distinção. Podem-se
produzir múltiplas ramificações. A estrutura do paradoxo é substi-
tuída pela estrutura da diferença. A diferença mais famosa é aquela
entre ser e dever ser. Depois de sua invenção, registram-se ramifica-
ções que se multiplicam sobre si mesmas e que se iniciam, respecti-
vamente, do “ser” do “ser” ou do “ser” do “dever ser”. Um trabalho
dos conceitos, uma paciência e uma dor do conceito que, como
diria Hegel, ainda continua incessante. É sempre alguma coisa que
se subtrai à observação e que, por este motivo, torna possível uma
história, ou seja, a construção de sentido, um conto que não desaba
na trivialidade do paradoxo, mas desliza, se dissipa nos longos ca-
minhos que se bifurcam, como nas Ficciones de Borges. O que é o
Rechtlisches (jurídico), a coisa-direito, die Sache Recht, aquele direito
do direito que busca a hermenêutica, senão uma refinada, acurada,
culta metáfora da necessidade de estender um véu sobre a insensa-
ta, brutal, imóvel insensatez do paradoxo?
Histórias possíveis do direito são narrações do direito no di-
reito, do direito que se compreende a partir de si, percursos da refle-
xão do direito sobre si, do direito que começa a partir de si e volta-se
a si mesmo e, por meio desta recursividade, se constrói como o pró-
prio objeto e lhe confere existência: círculos concêntricos, ruínas
circulares. Ainda um conto: um homem sobre uma ilha, protegido
das ruínas circulares do templo de um deus do fogo, quer sonhar
um homem na realidade. Imagina-o até ele mesmo não estar en-
volvido nos círculos concêntricos do fogo das ruínas circulares.

II
Meus temas referem-se a tramas de histórias possíveis, de
histórias já escritas ou de realidades comunicativas já construídas.

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128 - DIREITO, TEMPO E MEMÓRIA

Percursos já indicados por distinções que permitem construir ou-


tras distinções: sentido consolidado, circulante, reconhecível. Com
relação a eles, espera-se de nós uma crítica. De qual perspectiva?
Do ponto de vista de uma outra história possível, como as outras.
Limitar-me-ei, então, a redescrever, ou seja, a observar os per-
cursos que seguem as tramas das histórias possíveis já contadas, a
trama das descrições que o direito prepara a partir de si mesmo para
sair das ruínas circulares, ou para evitar entrar nelas, vale dizer, para
evitar bloquear a si mesmo. Histórias que o direito imprime em sua
memória: atualiza em cada uma de suas operações e utiliza conti-
nuamente de modo que a redundância assim produzida lhe permita
tratar, com relativa economia informativa, a variedade dos eventos
que se expõem à sua seletividade. A memória do direito – aquela
função de controle da consistência das operações e de contínua adap-
tação do direito a si mesmo – permite ao direito uma contínua pos-
tergação de suas origens, a introdução e o uso de distinções que, por
sua vez, ao se bifurcarem, condensam diferenças. Isto já acontecia
nos tempos da vontade divina ou da natureza e da razão. Forma-se,
assim, uma elaborada semântica do fundamento que se desloca de
modo imprevisível na evolução e que se apresenta concomitante à
emergência de outras semânticas, aquela dos princípios, das conse-
qüências, da aplicação. Multiplicam-se as distinções e o direito tor-
na possível o acesso a si próprio através de auto-observações e
auto-descrições que utilizam tanto as distinções consolidadas, como
as diferenças que se constroem a partir daquelas distinções. As auto-
reflexões do direito, o sentido que o direito tematiza em sua própria
reflexão ( il senso che il diritto oggettualizza nella riflessione di sé),
certamente não é mais o non sense de um paradoxo, mas o sentido
que se produz e se coloca na comunicação especializada em ques-
tões jurídicas e que se fixa como um conjunto de conhecimentos
sobre o direito, condensados na forma de um saber científico dife-
renciado sobre o direito. Uma vez que nem mesmo a positividade

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RAFFAELE DE GIORGI - 129

do direito positivo erradica a certeza de que o direito possa ser ob-


jeto de determinação filosófica ou de conhecimento científico, en-
contram-se, do ponto de vista externo do direito, esquemas, modelos,
perspectivas epistemológicas e fundadoras que introduzem novas
distinções que têm a função de tornar obsoletas aquelas já sedimen-
tadas e de teorizar as funções de preferência de uma outra parte de
uma outra distinção.
Produz-se, assim, uma diferença entre a estrutura do direito,
que é constituída das operações autoproduzidas, e os significados
por meio dos quais o direito representa, a si mesmo, aquelas ope-
rações. O paradoxo da autofundação é ocultado por uma semânti-
ca dos fundamentos do direito que justifica teorias e filosofias
contrapostas. Já que os fundamentos não podem se apoiar sobre
um Un-gründe (não fundamento), extraem sua força da razão. Não
importa que a razão não possa provar sua racionalidade, nem pos-
sa dizer de si, que é uma entre as tantas razões possíveis. As possí-
veis diferenças em sua autocompreensão são tratadas como formas
de sua historicidade, de sua temporalidade. Já que o poder moder-
no é fundado sobre o direito ao poder, que, dessa forma, é legiti-
mado a produzir direito, e o direito ao poder pode sempre fixar
sua origem porque a inventa quando o direito já está operando,
não é difícil ver como a razão do direito ou, mais precisamente, a
razão do fundamento, é procurada na auto-organização do poder.
O poder moderno é um mecanismo reflexivo dotado de auto-
referência negativa, ou seja, capaz de produzir poder com base no
poder e, portanto, de se investir para negar poder. Compreende-
se, assim, que o direito não tem somente a função de fundamentar
o poder e legitimar seu exercício, mas representa também o me-
dium no qual o poder condensa sua sensibilidade em relação ao
ambiente. No interior do direito, o direito penal descreve o início
desta sensibilidade. Por isto, o direito penal é direito da sanção e
não direito orientado ao exercício do direito. Por meio do direito

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130 - DIREITO, TEMPO E MEMÓRIA

penal, o direito olha para fora de si e manifesta seu poder de tornar


visível o poder. A sanção é uma técnica que estabiliza esta visibili-
dade no plano temporal à medida que inclui o tempo da sociedade
no tempo do direito. Este vínculo temporal, em seguida, se genera-
liza no plano social, através da atribuição da culpa, e no plano ma-
terial, em que torna possível a individualização da pena.
O paradoxo da inclusão do tempo no tempo e a indetermi-
nação do futuro são ocultados pela semântica das conseqüências.
Posto que as conseqüências se subtraem a qualquer controle em-
pírico, podem-se desenvolver numerosas teorias da reflexão justi-
ficadas pelo fato de que o futuro não é conhecido ou determinado.
Todas estas teorias são, portanto, reunidas pela impossibilidade
de sua observação empírica. O direito penal constrói, assim, a pos-
sibilidade (i) de tratar a ressocialização, ou seja, a inclusão ou, como
dizia Hegel, constrói o direito de cultivar ou domar os corpos e as
almas; (ii) de praticar a prevenção, ou seja, de justificar comporta-
mentos que se fundam sobre o não-saber do futuro ao qual são,
todavia, direcionados e no qual deveria agir de modo que não acon-
teça aquilo que não se sabe se acontecerá ou não. Este modo de
agir – o futuro no presente – próximo de uma realidade, esta téc-
nica de representação pode pretender ser, como se diz, positiva,
negativa, geral e, talvez, especial. Por fim, existe, no direito penal,
(iii) a integração, que se tornou possível pelo não-saber da diferen-
ça entre sistemas psíquicos e sociais, pela conseqüente ocultação
daquela diferença e pela inclusão de distinções artificiais como,
por exemplo, aquela entre normatividade e desvio. Não importa a
origem da distinção: uma distinção que opere construirá sempre
sua origem. Fará carreira, moda, história, reduzirá a complexida-
de, permitirá se orientar.
De outro lado, a abstração da formulação contida na norma
justifica, sob o nome de concretização, a re-entrada de uma mera
valoração que, em outras circunstâncias e em outros âmbitos cog-

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RAFFAELE DE GIORGI - 131

nitivos, não teria mais valor que a adivinhação: teria somente a


função de absorver a insegurança.
Nas palavras de Marx, assim como as mercadorias não vão a
sós ao mercado, as conseqüências não se coligam por necessidade
natural dos eventos que devem ser isolados seletivamente pelo
direito. Este, por sua vez, se ativa somente porque os trata como
eventos juridicamente relevantes. A atribuição das conseqüênci-
as, em outros termos, acontece por meio da imputação. A imputa-
ção é possível somente se o direito pode observar, ou seja, indicar:
uma vez que a comunicação não é diretamente observável, mas
somente, em certo sentido, deduzida, ela é reduzida, simplificada,
desnaturada como ação. A ação é um artefato, um sentido, uma
cisão na recursividade da comunicação, da qual se pode sempre
recomeçar. Ela é uma diferença temporal que pode ser usada para
colocar, em seu interior, a trama de uma história que poderá ser
contada de maneiras diversas. Por meio do isolamento da ação, o
evento comunicativo é assimetrizado, adquire uma direção, é fi-
xado há um tempo, limitado a uma duração como evento. Esta
simplificação não só torna observável o acontecimento comuni-
cativo, mas também a auto-observação. Assim, preparando nela
mesma uma descrição de si mesma, a estrutura seletiva que se
constitui viabiliza sua continuação, direção, ou seja, o processo de
sua reprodução. Os instrumentos operativos da comunicação per-
mitem a construção de um sistema social que, agora, pode ser
observado e descrito como sistema de ação. Ações são constituídas
em virtude de processos de imputação. Em outras palavras, isto
significa somente que seleções, quaisquer que sejam os motivos,
os contextos ou as semânticas em virtude das quais se produzem,
são imputadas aos sistemas, não ao seu ambiente. Isto permite
determinar destinatários de ulteriores comunicações, conectar às
ações outras ações e reduzir a irritação aberta da comunicação à
responsabilidade pelas conseqüências. Uma simplificação que pode

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132 - DIREITO, TEMPO E MEMÓRIA

ser deduzida, pois a ação é imputada a indivíduos concretos, com-


pletos, não obstante ser mais fácil observar situações do que, por
exemplo, estados mentais.
Todavia, imputação a um indivíduo completo reduz, de ma-
neira drástica, a complexidade que, de outra forma, poderia blo-
quear o isolamento de um evento como ação. Já que ações podem
ser reconhecidas e tratadas de modo muito mais simples do que a
comunicação, compreende-se o interesse do direito penal por elas.
A ação se deixa tratar segundo modalidades disponíveis no
interior do sistema de direito penal. Trata-se de modalidades que
são estabilizadas no curso da evolução de uma semântica da cau-
salidade do agir e que deram lugar a uma complexa analítica da
ação. Já a encontramos em Aristóteles. Posteriormente, de forma
muito elaborada, é encontrada nas técnicas desenvolvidas pela tra-
dição do pensamento católico para o tratamento de uma práxis de
intencionalidade e de controle externo do sistema psíquico e, ain-
da, na semântica do movimento, produzida por Leibniz, Hobbes
e Kant. Até as análises da diferença do saber e querer, em Hegel, e
até as elaborações da psicologia moderna, a ação pode ser tratada
como condicionada, incondicionada, querida, não querida. Pode
ser descrita segundo esquemas causais, naturalísticos e finalísti-
cos. Por isto, o próprio indivíduo que age pode se auto-imputar a
ação e, assim, liberar o controle social da comunicação através do
autocontrole da ação. A primeira conseqüência decorrente deste
tratamento da ação pelo direito penal consiste no fato de que ele
pode abstrair da complexidade dos eventos comunicativos em sua
completude (consite nel fatto che esso puo astrare dalla complssi-
ta degli eventi comunicativi nella loro completezza). A conexão
destinada à construção das relações ocorre entre ações e não no
espaço dificilmente delimitável de complexos eventos comunica-
tivos. Através da ação, o direito penal constrói para si um início e,
portanto, uma realidade. Diversamente da comunicação, a ação

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RAFFAELE DE GIORGI - 133

mantém a irreversibilidade do tempo e torna possível uma coor-


denação cronológica, uma seqüência e, mais uma vez, pontualiza-
ção e assimetria. Cadeias de ação podem ser representadas como
cadeias de fatos: uma torna a outra possível. A conexão entre elas
é a realidade sob a qual o direito penal se constrói. Desenvolve-se
uma grandiosa semântica do movimento, da intencionalidade, da
causalidade e, por fim, também uma semântica da subjetividade.
A rudeza e a rudimentaridade da simplificação que se extrai
dos rótulos “ação” ou “sujeito” e que pode ser decomposta e conti-
nuamente recomposta, possibilitam ao direito penal incrementar
tanto sua variedade, quanto a redundância. A variedade conecta-se
ao espectro de variações que a analítica da ação torna acessível ao
tratamento penal. A redundância reduz a informação necessária
sobre comunicação social e permite uma referência indiferenciada à
ação, sem que se duvide que se trata, de fato, de ação. A centralidade
da ação e sua referência individual, em outras palavras, permitem ao
direito penal alcançar um alto grau de indiferença em relação ao
ambiente interno da sociedade e pactuar, através das teorias da ação,
os modos da sua “reaproximação” àquele ambiente.

III
Na realidade, aquela diferença oculta o paradoxo da diferen-
ça, ou dos princípios. É claro que os princípios não são entidades
universais que orientam a decisão. Os princípios, na verdade, são
sempre parte de uma distinção: aquela parte a qual se atribui um
valor de preferência, um valor positivo. Eles viabilizam ulteriores
distinções das quais ocultam, na latência, o ponto cego, o ponto
que escapa à observação. No caso do direito penal, os princípios
protegem do re-entrar (NR) da distinção entre interno e externo,
ou seja, de um re-entrar não seletivo da distinção sistema/ambi-
ente no sistema. No direito penal moderno, a centralidade da ação
condensa-se na centralidade da valoração das conseqüências, que

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134 - DIREITO, TEMPO E MEMÓRIA

são tratadas tanto como conseqüências da ação penalmente rele-


vante, como conseqüências da sanção. Os princípios possibilitam
um tratamento diferenciado, variável, da valoração social do ilíci-
to. Realizam uma função de imunização, regulam a origem da
sensibilidade do direito penal em relação ao ambiente. Por outro
lado, justificam as diferenças que o direito penal produz em seu
interior. Diferenças que derivam tanto do tratamento variável do
ilícito, que pode ser ocultado por meio da diferença entre senten-
ça de condenação e execução da pena, como da escassa consistên-
cia dogmática do tratamento das fattispecie.
Surge, de tudo isso, uma conseqüência relevante. O direito
penal pode dispor, em seu interior, do problema da justiça. Para um
sistema complexo que opera com em decisões, justiça poderia ser
entendida como racionalidade do sistema, ou seja, como congruên-
cia do decidir, como consistência de seu diferenciado operar na si-
multaneidade. Mas esta consistência alcança, no sistema do direito
penal, níveis muito baixos. Se observado deste ponto de vista, o
sistema aparece como um sistema altamente injusto. Tudo isto, in-
cluídas as diferenças no tratamento das fattispecie, pode ser oculta-
do quando as expectativas e a observação se deslocam da consistência
em relação às decisões para a consistência em relação aos princípios.
Em virtude do caráter paradoxal dos princípios, o sistema penal
confia a si mesmo a administração da justiça que pode conter. Em
outras palavras: o sistema penal pode se apresentar sempre como
um sistema justo que legitima a crítica de sua injustiça.
Desenvolve-se uma refinada semântica dos princípios, que
se materializa na justiça do caso individual e se temporaliza na
contínua produção de diferenças que encontram sua plausibilida-
de na sempre mais complexa analítica da ação. Trata-se de aquisi-
ções evolutivas que se estabilizam com o iluminismo e que contêm
e realizam os pressupostos da democratização do direito penal, ou
seja, da inclusão de todos no próprio direito penal. O requisito

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RAFFAELE DE GIORGI - 135

desta inclusão universal é constituído pelo fato de que o acesso ao


tratamento penal é reservado aos indivíduos considerados em sua
completude. Os indivíduos, assim representados, são caracteriza-
dos como pessoas que se pressupõem racionais e livres. Também
encontramos um pressuposto deste gênero na economia, no siste-
ma educativo, na política e na arte. Trata-se de um pressuposto da
forma típica da diferenciação da sociedade moderna. No direito
penal, a indiferenciação que este pressuposto traz consigo, sua
associabilidade, constitui referência da construção de tipologias
da abstrata diferenciação de seus constituintes. Trata-se de cons-
truções que possuem sua realidade somente no direito penal e
que se justificam com a necessidade de um operar seletivo de sua
estrutura. As diferenças introduzidas no direito penal produzem
assimetrias que, privadas de correlatos no ambiente, isolam o even-
to comunicativo em relação à sua sociabilidade e, com relação à
indiferença da pessoa, concorrem para a construção penalista da
realidade.
O direito penal pode utilizar, ainda, uma referência indistin-
ta e indiferenciada em relação ao ambiente interno ou externo da
sociedade. No que se refere ao ambiente interno, podem ser dife-
renciadas as inconsistências que se produzem no tratamento das
fattispecie, até o momento que se consolide uma hierarquia de di-
ferenças. Estes podem ser objetivados e orientar, deste modo, tan-
to a atividade legislativa, como a jurisprudencial. Isolam-se, assim,
bens jurídicos dos quais se diz serem merecedores da tutela penal.
Desta maneira, o merecimento é anteposto à diferença de trata-
mento da qual ele, na realidade, surge. No que tange ao ambiente
externo, ao contrário, particularmente no que diz respeito aos ho-
mens, o direito penal se atribui uma função sócio-terapêutica, sem
que se considere, por exemplo, ao legislador ou ao juiz, a oportu-
nidade de prever conseqüências penais, nos casos em que esta fun-
ção não é desempenhada com sucesso.

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136 - DIREITO, TEMPO E MEMÓRIA

IV
Podemos concluir, então, que o direito penal, assim como
todo o direito, é imunizado em relação àquilo que acontece no
ambiente da sociedade, não obstante mantenha alto o limite de
sua sensibilidade em relação ao ambiente. Isto significa que o di-
reito reage somente a si próprio. Em todas as operações, o direito
pressupõe e reproduz a diferença entre ele e seu ambiente. Tal
consideração nos permite observar como se coloca o problema da
historicidade do direito penal. A historicidade é ligada à tempo-
ralidade de um modo particular. O direito é um sistema determi-
nado por sua própria estrutura. Isto significa que, em todas suas
operações, o direito começa de si mesmo, ou seja, começa do esta-
do que se colocou por suas próprias operações. É esta a real histo-
ricidade do direito penal. Deste modo, o sistema se torna
imprevisível a si, justamente em função de sua determinação.
Quando o sistema jurídico observa relações entre as transforma-
ções de seu estado e as correlaciona, desenvolve-se uma função
que chamamos memória. A memória não é um lugar que contém
as experiências passadas que o sistema praticou consigo, mas um
modus operandi que se redetermina continuamente e que, sempre
no presente, em cada presente, acompanha as operações do siste-
ma. Um contínuo controle da consistência. A memória permite
que o sistema saiba que ele é presente a si mesmo. Na rede de
contínuos reenvios simultâneos às transformações de seu estado,
a memória permite ao sistema sintetizar aquelas transformações
que se revelam capazes de conexão, ou seja, capazes de fazer emer-
gir um novo comportamento. Deste modo, a atemporalidade do
contínuo operar é interrompida e esta interrupção constitui o tem-
po, vale dizer, a diferença, o presente. Com a construção do presen-
te, o direito inventa sua história. Deste caráter estrutural do direito
resulta que o sistema jurídico está sempre adaptado às situações,
pois ele inventa a situação à qual se adapta. Isto é possível pela

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RAFFAELE DE GIORGI - 137

memória que não é nada mais que a diferença entre recordar e es-
quecer, incluir e excluir. A memória é uma função que se produz na
evolução do direito. A evolução não é um processo planificável, mas
o resultado da forma imprevisível que adquire a diferença entre va-
riação e seleção, ou seja, entre eventos que ativam o direito e deci-
sões que, gradativamente, determinam aquilo que é direito.
O fato de o direito ser fixado na forma escrita faz surgir a
diferença entre texto e sentido e o expõe, portanto, à interpreta-
ção. Todo o direito escrito é direito que deve ser interpretado. A
interpretação permite ao direito aprender a partir de si, observar-
se através da diferença identidade/diferença NR e, portanto, ope-
rar de modo que torne visíveis tanto as transformações do direito,
como as distinções em relação ao caso. É evidente o predomínio
da interpretação na construção da diferença entre variação e sele-
ção, ou seja, na construção da realidade em que as operações do
direito são possíveis. Em outras palavras: o predomínio da inter-
pretação em relação à evolução, que subsiste até em um regime
em que parece predominante a função legislativa, ao se considerar
que também esta função se condensa em texto.
A interpretação é sustentada por argumentos que, por sua vez,
se distinguem porque são dotados ou não de fundamento. Os fun-
damentos devem ser fundamentados. Para isto, o saber jurídico dis-
põe de artefatos históricos – os conceitos –, de esquematismos de
tipo dogmático, de textos com caráter normativo, de conteúdos de
sentido dotados de um alto grau de redundância capaz de orientar
a seleção das informações, delimitar o âmbito da pesquisa e evitar
inconsistências que possam ser reconhecidas. É aqui, então, que
se ativa a memória do sistema, ou seja, se vê, mais precisamente,
que o sistema é, ao mesmo tempo, sua memória e o destinatário
das operações de sua memória. A memória realiza conexões que
dependem de formas de acoplamento flexível (sciolto – ágil??)
entre as informações que podem ser repetidas a partir de outras

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138 - DIREITO, TEMPO E MEMÓRIA

operações do sistema. Se redundância é a informação da qual já se


dispõe, a informação faltante é constituída de variedade. Ambas
se potencializam reciprocamente e a evolução estabiliza formas
jurídicas com um potencial combinatório sempre mais alto.
Tudo isto deveria permitir ver como o sistema jurídico está
apto a reproduzir e reforçar sua capacidade operativa em condições
que não prevêem unidades centralizadas, mas somente referências
delimitadas que não reenviam à totalidade do sistema. Em outras
palavras: constrói ordem a partir de rumor. Entenda-se: não se trata
de uma ordem lógica. A variação é induzida no sistema, em grande
medida também pela política, que persegue finalidades que, depois,
tornam-se conflitos. Isto leva a uma contínua e inconsistente pro-
dução de normas. À inconsistência temporal daquela produção não
corresponde mais uma consistência material da interpretação que,
assim, se habitua, pela ambigüidade, a uma longa tolerância, a um
enfraquecimento das figuras dogmáticas e a um contínuo reforço
do desvio. Diante desta situação, não se pode responder com recur-
so a garantias externas, mas, somente, com a contínua reprodução
do direito. Em outras palavras: o direito penal é como é.

V
Afirmar que “o direito penal é como é” não significa fugir da
crítica, excluir alternativas ou soluções diversas para problemas soci-
ais que se entende que o direito penal possa somente agravar. Signi-
fica, ao contrário, reconhecer que o direito penal inventa sua realidade
e que, portanto, esta realidade não é garantida por ontologias. “É como
é” significa que pode ser diverso de como é. Procuramos o incondici-
onado em todas as partes, dizia Novalis, e encontramos somente coi-
sas. As coisas são invenções do observador. A ontologia – e também a
ontologia do direito penal que a hermenêutica entende poder indicar
– é atravessada por paradoxos. Ela mesma é construída sobre um
paradoxo, o paradoxo da compreensão, o paradoxo da identidade. A

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RAFFAELE DE GIORGI - 139

própria identidade é a construção de um observador que julga poder


indicar a manutenção de uma distinção, sem poder observar que sua
observação é uma operação que consome tempo e, portanto, é dife-
rente de si mesma. Assim como a compreensão se deontologiza de si,
porque pressupõe simultaneamente identidade e distinção de quem
compreende e de quem é compreendido, na comunicação social não
existe um lugar da ontologia, nem mesmo um lugar do “dever ser”. A
presença do “ser” pode ser observada e interpretada somente como
ambivalência porque aquilo que é pode, podia ou poderá ser diverso.
O “ser” inclui, ao mesmo tempo, o outro e a alteridade de si. The same
is different, dizia Zeleny. A ontologia, enfim, não pode escapar do
paradoxo de sua constituição. De outro lado, a sociedade moderna,
em sua evolução, destruiu suas premissas ontológicas: somente assim
foi possível a diferenciação de um direito penal moderno. A histori-
cidade desta formação social destruiu toda ontologia da historicida-
de. Por isto, liberou o futuro. Um futuro que o sentido não determina,
pois o sentido que se produz na comunicação social não tem as carac-
terísticas do “ser”, mas é contínuo reenvio a outras possibilidades,
sempre abertas. Nesta abertura opera a memória da sociedade e, com
ela, a memória do direito e, por conseguinte, aquela do direito penal
moderno. Nenhuma delas pode se bloquear ou sufocar na ontologia.
A hermenêutica produziu importantes aquisições. A nega-
ção da distinção sujeito/objeto, de sua dualidade, a compreensão
entendida como constituição de uma circularidade e a própria
constituição de sentido, indicam uma clara consciência herme-
nêutica dos limites e das aporias do pensamento tradicional. Em
relação às certezas daquele pensamento, a idéia da historicidade
da hermenêutica, elaborada por Arthur Kaufmann, e suas refle-
xões sobre o direito penal têm um caráter seguramente descons-
trutivo. Em sua filosofia da existência é constante a consideração
e a inclusão da alteridade, assim como em sua epistemologia da
ciência jurídica é constante a negação das distinções tradicionais

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140 - DIREITO, TEMPO E MEMÓRIA

positivismo/jusnaturalismo e, em sua concepção de subjetividade,


está presente uma idéia de tolerância que tende à inclusão daquilo
que está excluído. Sua concepção de historicidade, por meio do
reconhecimento da historicidade da linguagem, abre espaço para
uma segura desconstrução da identidade. Para Kaufmann, o di-
reito é um acontecimento real, assim como a idéia de círculo her-
menêutico mostra-se sensível a uma autocompreensão da ontologia
como estrutura de inclusão do intérprete no texto e, portanto, como
a realidade de uma contínua descontextualização do texto.
Permanece, todavia, aberto o problema do paradoxo consti-
tutivo do direito, sua autofundação, que também se manifesta na
forma do paradoxo do observador e de sua posição. Também o
observador é determinado, em sua observação, pela distinção que
usa e pelo fato de se colocar no interior ou no exterior do direito
penal. Não se pode pensar uma objetividade do direito penal, uma
realidade do direito penal diversa da realidade que o próprio di-
reito se constrói para tornar suas operações possíveis. Não existe
uma verdade que tenha o nome “direito”, assim como não existe
uma hermenêutica possível capaz de determinar historicamente
um sentido diverso daquele que se produz por meio da estrutura
da comunicação social, chamada direito penal.
A hermenêutica que pratica esta autocompreensão bloqueia-
se nas ruínas circulares de uma ontologia que a sociedade moderna,
antes de qualquer outra epistemologia, deixou para trás. Em sua
autodescrição, ou seja, na narração de uma história possível, a soci-
edade moderna não mais se orienta em direção à identidade, mas à
diferença. O direito penal coevolui com a sociedade na qual se dife-
rencia. Dizer o direito, Recht sprechen, não pode significar dizer a
essência, nem apregoar o ser e, muito menos, a verdade. A verdade,
disse Heinz von Förster, é a invenção de um mentiroso. Aqui, o
mentiroso é o direito penal.

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III

Sistema jurídico e
sociedade moderna

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RAFFAELE DE GIORGI - 143

O DEUS COM BARBA E O DEUS SEM BARBA

I
Em 1973, numa conferência, Foucault citou um texto de
Nietzsche escrito exatamente um século atrás. Em um ponto per-
dido do universo, dizia Nietzsche, onde o esplendor se estende a
inumeráveis sistemas solares, existiu um astro no qual alguns ani-
mais inteligentes inventaram o conhecimento. Foi o instante mais
mentiroso e arrogante da história universal. O objetivo da inso-
lência de Nietzsche era Kant: as idéias kantianas da correspon-
dência entre condições de possibilidade da experiência e condições
de possibilidade do objeto da experiência, da naturalidade do co-
nhecimento e da unidade do sujeito do conhecimento, da verdade
como resultado da investigação de apropriação do mundo através
do conhecimento e, por fim, a idéia da compreensão como hori-
zonte da produção de sentido subjetivo que a razão utiliza como
orientação para a ação. Foucault recupera, ainda, um outro trecho
de Nietzsche, O que significa conhecer, no qual o filósofo alemão
nega a plausibilidade da afirmação de Spinoza e declara que, ao
contrário do que este pensava, compreender não é nada mais do
que um jogo, o resultado da composição e da compensação entre
rir, chorar e detestar. A negação do reconhecimento da unidade
do sujeito na conexão entre natureza, desejo, vontade, racionali-
dade, conhecimento e existência significa a negação de continuar
a tradição do pensamento ocidental, que foi obrigado a postular o
pensamento de Deus para poder pensar a verdade e terminava no
reconhecimento da transcendentalidade do sujeito para pensar as
possibilidades de uma orientação racional da ação. Aquela nega-

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144 - DIREITO, TEMPO E MEMÓRIA

ção nascia da consumação da idéia da velha ordem do mundo, do


desmoronamento dos pressupostos sobre os quais se fundava a
velha ordem do mundo. Nietzsche descrevia a conclusão de um
processo que começou muito antes e que o pensamento filosófico
não conseguia interpretar. Isto explica a violência e a ousadia do
seu ataque. O mundo se separava da verdade. Marx já o tinha
observado e, por esta razão, também foi violento e ousado com
Hegel que, ao contrário, pensava que se podia ou se devia contro-
lar tal separação. Por isto, Hegel afirmava que se deve comandar
no mundo, e não na razão: é preciso comandar na casualidade infi-
nita. Permaneceram somente o positivismo e a ontologia; mais
tarde a hermenêutica e, depois, os regimes totalitários – as últimas
construções que tentaram restabelecer ou impor, com violência, a
unidade entre poder e conhecimento, a estabilidade de sentido, a
regularidade da ordem e a unificação entre sujeito e sentido. A
casualidade infinita da qual falava Hegel – die unendliche Zufälli-
gkeit – eram os indivíduos.

II
O que se conhece quando se conhece o direito? O que se com-
preende quando se compreende o direito? O que se vê quando se
está à frente da porta da Lei? Certamente não é a ordem do mundo,
nem mesmo a verdade. O direito moderno se emancipou da verda-
de e não mais reproduz a necessidade da ordem. A natureza não
mais dita as finalidades da ação e as suas regularidades não mais
indicam a regularidade da ação. A razão, nesse sentido, não pode
dizer que é racional, nem mesmo que é única. Não existe mais espa-
ço para a epopéia, para a tragédia. O teatro do mundo, dizia Dür-
renmatt, pode ser representado somente pela comédia. Na base da
tragédia há culpas, afã, medida, clareza, responsabilidade. Existem as
categorias do direito, existe a unidade aristotélica do espaço e do
tempo. A comédia é a representação do grotesco. Mas o grotesco,

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RAFFAELE DE GIORGI - 145

continua Dürrenmatt, é a expressão sensível, paradoxo sensível, a


forma de uma essência da forma, a face de um mundo sem face. A
positivação do direito, que encontra sua afirmação na constitucio-
nalização da relação entre política e direito, não deixa mais espaço
para uma filosofia do direito. Qual pode ser o objeto de uma filoso-
fia do direito se: (i) o direito é resultado de decisões, (ii) a experiên-
cia do direito é interior àquilo que pode ser diverso e teria podido
ser diverso e (iii) o direito é como é justamente porque não pode
dizer sobre si mesmo que tem direito a ser direito? Qual é a face
deste direito em um mundo sem face? Outros regimes do direito
representavam sua produção como resultado de um processo cog-
nitivo: conhecimento do direito era conhecimento dos fundamen-
tos do direito. O direito positivo moderno torna grotesca a concepção
do conhecimento dos fundamentos, assim como a idéia de que um
consenso sobre os fundamentos possa lhe conferir validade.

III
O direito deve ser falado. Deve ser encontrado e falado. Aque-
le que fala o direito, exercita um poder sobre o mundo: o poder de
efetuar uma distinção. No princípio, não existia o ilícito. O direito
substitui a indistinção originária da palavra, do pensamento, da
realidade pela distinção entre o direito e o ilícito. Falar o direito
significa reconstruir continuamente a distinção direito/ilícito. O
direito falado inclui, oculta o paradoxo da distinção que se apre-
senta como a invisível unidade da diferença entre direito e ilícito.
Tudo o que é dito, escreveu Maturana, é dito por um observador.
Quem é o observador nesta situação? É a divindade, o profeta, a
razão, aquilo que deve ser. Mas a razão, teria dito Hegel, não está
em tão grave condição de dever somente ser. Assim, ela se torna
razão de estado, poder, política, monopólio, exclusão. Não se pode
passar através da porta da Lei. Aquele para quem a porta é aberta,
não pode entrar. Pode entrar se quiser. Mas morre na esperança de

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146 - DIREITO, TEMPO E MEMÓRIA

poder conseguir. Através da porta se vê uma luz, mas é a luz de um


labirinto. É o labirinto da lei, mas é o labirinto da experiência
interior daquele que quer entrar na lei. O labirinto da exclusão
daquele que foi incluído, que foi eleito, pois a porta esteve aberta
somente para ele. Na sua conferência Gesetzeskraft (força da lei),
Derrida refere-se a Montaigne: as leis, escreve Montaigne, obtêm
respeito contínuo e dispõem de crédito não porque são justas, mas
porque são postas: este é o fundamento místico da sua autoridade.
O poder de dizer o direito não é justo ou injusto, mas é o poder de
praticar no mundo a distinção entre justo e injusto, através de
uma ruptura que reconstrói o mundo da perspectiva de um obser-
vador colocado sobre um dos lados que surgem desta distinção.
Não se obedece às leis porque são justas, mas porque são postas. O
fato de as leis serem postas deve tornar-se visível. A palavra fixa-se
imediatamente como palavra escrita. Antes que a palavra escrita
fosse difundida, o direito se serviu de sinais que a técnica divina
tinha experimentado e utilizado para fixar no presente as imagens
do futuro. O direito torna-se texto, texto escrito, sentido fixado,
contínua presença da qual sempre é possível fazer recurso. Como?

IV
O direito falado é utilizado na situação imediata, no caso
específico. Na palavra, início e fim coincidem. A palavra é dita e
se consome, porque não tem duração. Ela é ligada ao evento. O
texto é fixado, pois disponível para usos futuros. Como caso indi-
vidual, como evento, a palavra falada não pode ser retirada. O
texto, ao contrário, pode ser transformado, revisto, reformulado.
O texto exprime o direito, mas não é o direito. Com o texto, se
pratica e se reconhece a diferença entre sentido e texto. Desta di-
ferença surgem outras diferenças: a diferença entre texto e con-
texto, texto e interpretação, sentido e contexto, a intenção do
sentido e o sentido expresso, o sentido do presente da produção

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RAFFAELE DE GIORGI - 147

do texto e o sentido dos diferentes presentes da interpretação do


texto. Em outras palavras: fixa-se a diferença entre identidade e
diferença. É claro que a textualização do direito abre espaço para
grandes possibilidades evolutivas, porque se presta ao reconheci-
mento de imprevisíveis possibilidades combinatórias que derivam
não somente da transformação do texto, mas das contínuas e im-
previsíveis formas de recomposição da unidade das respectivas
diferenças entre texto e aquilo que continuamente se separa em
relação ao texto. Estas diferenças, como dizia Montagne, repro-
duzem o fundamento místico da autoridade que estabelece o di-
reito, mas operam independentemente da contínua reativação
daquele fundamento. O texto fala de si próprio, mesmo se é ex-
posto à interpretação e pode ser interpretado de modos diferen-
tes. O fundamento místico se laiciza e se torna fonte do direito.
Tal fonte se legitima a partir de si mesma, porque não pode pro-
nunciar o ilícito. Esta é a fonte do direito. Somente a interpreta-
ção pode fixar limites à interpretação e a plausibilidade dos
argumentos utilizados na interpretação depende do seu reconhe-
cimento, na interpretação, como argumentos da interpretação.
Afirma-se, assim, a separação entre direito e verdade, entre direito
e ordem do mundo e se consolida a correspondência entre ordem
argumentativa, ordem de linguagem e ordem do mundo e, depois,
entre linguagem e experiência do direito. Dessa forma, condensa-
se no direito uma memória coletiva da sociedade, mas o direito
condensa saber sobre o mundo unicamente como saber sobre o
direito. Este saber, como cada saber, se expande e se universaliza
por meio do uso recursivo da diferença entre aquilo que é admiti-
do e aquilo que não é admitido: no caso específico, através do uso
da distinção entre direito e ilícito. Conseqüentemente, torna-se
claro que quanto mais se expande o espaço do direito, maior tam-
bém é a expansão do espaço do ilícito. Em outras palavras: quanto
mais se expande o saber, maior a expansão do não-saber, parti-

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148 - DIREITO, TEMPO E MEMÓRIA

cularmente, do não-saber do direito. O direito expresso e reunido


nos textos torna-se fundamento idêntico da construção de opini-
ões diferentes. Na memória social, os textos e suas interpretações
podem ser condensados, até a indistinção entre eles, até que se
ativem técnicas que reestabilizam a diferença segundo uma hie-
rarquia interna e até a estabilização de regimes jurídicos. Nestes
regimes, a interpretação utiliza, como texto, a razão que se con-
densa fixada no espaço universal de algum princípio e a diferença
relevante não é mais entre sentido e texto, mas é aquela entre iden-
tidade e diferença dos casos individuais.
Cada determinação de sentido reativa as possibilidades afas-
tadas, abre contínuos horizontes de sentido, inclui projeções desvi-
antes e exclui, como irrelevante, sentido estabilizado. A contínua
abertura de sentido exclui não somente a correspondência entre di-
reito e verdade, mas também toda causalidade. Ela torna obsoleta a
circularidade entre natureza, razão e direito e cria os pressupostos
evolutivos para a afirmação de uma técnica particular de recordação
entre eventos no direito. A produção do texto e do evento que ativa
a pesquisa do sentido do direito são atribuídas a uma decisão: a
decisão de agir e não agir. Duas decisões de agir, dois transportado-
res da ação, duas abstrações, duas generalizações que podem ser
continuamente especificadas. De uma parte, o legislador, o texto e a
norma; da outra, o indivíduo, o sujeito e o destinatário. Com esta
especificação torna-se plausível o recurso a todos os ingredientes
do paradoxo da decisão: vontade, saber, conhecimento e determi-
nação, compreendidas as respectivas negações. Este percurso evo-
lutivo alcança seu nível mais alto na aquisição do requisito da forma
escrita como requisito de validade do direito.

V
Este direito utiliza e torna possível uma contínua expansão
da dimensão temporal da comunicação social. Não necessita de

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RAFFAELE DE GIORGI - 149

uma conservação estabilizante do sentido jurídico, do saber jurí-


dico da sociedade. Aquele sentido é um horizonte aberto à im-
probabilidade: uma vez fixado, é projetado em direção ao futuro e
preparado no futuro para admitir contínuas determinações im-
prováveis. Por outro lado, a experiência que os indivíduos cons-
troem através daquele sentido é vinculada à situação: sua
estabilidade é somente uma estabilidade que permite tratar o evento
e que se transforma no próprio tratamento do evento. Enquanto
concretização de sentido, enquanto qualificação dos eventos, dizia
Kelsen, o direito orienta o agir, no sentido que pode ser empregado
como referência da expectativa de um agir conforme os outros, mas
também no sentido que torna possível uma economia lógica do
próprio agir. A positivação do direito utiliza amplamente as possi-
bilidades imanentes da dimensão temporal da comunicação social
e a reforça continuamente. A estabilidade do sentido se reforça por-
que novo sentido pode determinar novo sentido. O direito vale por-
que não vale. O agir se orienta para o futuro na expectativa de obter
o reconhecimento do próprio direito. O direito positivo adquire,
assim, o caráter de uma promessa, de uma determinação que se
realiza somente no futuro. O direito está sempre por se realizar: em
cada uma de suas afirmações se reproduz a metáfora da idéia cristã
de justiça. A verdade depois o fim; o juízo depois que a história já
passou. Todavia, como naquela metáfora, a justiça divina existe sem-
pre, existe para sempre. Também, no caso do direito positivo, o di-
reito existe sempre. Em todas as suas operações, o direito inicia-se a
partir de si, começa, como escreveu Luhmann, do estado que ele
mesmo se colocou com suas operações. Mas com o processo de
positivação, continua Luhmann, a velha promessa da auto-evidên-
cia do direito é invertida. Aquilo que não é auto-evidente, aquilo
que é somente possível – o improvável –, torna-se objeto de expec-
tativa. Realiza-se, dessa forma, uma particular constelação de pos-
sibilidades da comunicação social que consiste no fato de que,

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150 - DIREITO, TEMPO E MEMÓRIA

através do direito, é possível continuamente uma combinação al-


tamente improvável de seleções e motivações. Não se trata de es-
tados psíquicos, mas de construções sociais nas quais a aceitação
da comunicação torna-se premissa de ulterior comunicação. A
seleção é condicionada em virtude do fato de que se produz direi-
to somente com base em direito e se anula direito somente com
base em direito. A normatividade do direito positivo refere-se a si
mesma. Isto limita o abuso político do direito através do direito,
mas somente porque o condiciona. De outro lado, a consciência
individual também obtém proteção em relação ao direito. É por
isto que não precisa utilizar a combinação entre cognição e moti-
vação. A compreensão do direito pode ser pressuposta, mas so-
mente como fator de auto-imunização do direito.

VI
Como é possível motivar a aceitação do direito quando é
evidente que este é produzido com base em processos seletivos
que, por sua vez, são também seletivos, vale dizer, quando o mate-
rial jurídico produzido é sempre menos provido de auto-evidên-
cia capaz de ser conectada ao valor divino e à verdade? Este é um
problema que já se coloca para as culturas pré-modernas altamen-
te desenvolvidas. Inicialmente, reforçam-se os instrumentos de
convencimento dos quais a comunicação verbal dispunha. A mul-
tifuncionalidade, que caracterizava as sociedades pouco diferen-
ciadas, se reproduz na linguagem jurídica, mesmo sendo essa
também pouco diferenciada. Posteriormente, estabiliza-se um es-
tamento que se especializa na comunicação jurídica e os instru-
mentos da comunicação persuasiva se unem à pobre formulação
jurídica. Tópica, retórica, moral permeiam esta formulação, a acom-
panham, se confundem com ela, explicam a máxima jurídica, ofe-
recem sustento para sua estrutura e para seu caráter de princípio, a
comentam, a ampliam. Procurava-se, deste modo, reforçar a de-

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RAFFAELE DE GIORGI - 151

clinante unidade de cognição e motivação. Mas o problema não


podia mais ser tratado com estes instrumentos, cuja utilização te-
ria conferido ao material jurídico aquele caráter desarticulado que
o tornava cada vez mais inacessível. Justiniano tinha dado uma
indicação: certas et brevi sermone conscriptas leges componere. Podia-
se, desta forma, dispor dos textos acessíveis, o que teria possibili-
tado o recurso a um sentido jurídico fixado nos princípios e na
experiência e teria permitido orientar-se com certeza na multipli-
cidade indeterminada dos casos futuros. Na diferença entre texto
e sentido, abria-se espaço para a interpretação, vale dizer, para a
construção. Mas à fragmentação política e às novas formas de di-
ferenciação social que se delineavam teria correspondido uma frag-
mentação e uma multiplicação de linguagens, de projeções
normativas e de horizontes de sentido que o saber jurídico não
teria podido conter. Exposto à experiência, o sentido jurídico se-
dimentado se predispõe a continuar – incalculáveis aquisições evo-
lutivas. O latim permanece a linguagem do direito enquanto as
linguagens da experiência se diversificam. Fortificam-se novas
formações lingüísticas e a diferença das linguagens reproduz as
novas formas da diferenciação social. Nos mistérios da língua se
manifestam os mistérios do poder (e da divindade). Até a igreja
fala a mesma língua para conter e revelar o mistério e a verdade.
As metáforas da teologia tornam-se, também, metáforas do po-
der. A linguagem do direito adquire estas metáforas que têm a
função de esconder e tornar invisível o paradoxo constitutivo do
próprio direito. Na sua dependência direta com o poder político, o
direito é uma estrutura da sociedade. A imprevisibilidade do agir
encontra, no direito, uma referência estável de sentido. Mas se
trata de uma estabilidade dinâmica: estável é o recurso sempre
possível àquele sentido, mas sempre aberto a resultados interpre-
tativos diversos e às transformações impostas pelo poder político.
Isto se dá até quando se institucionaliza a transformação no direi-
to e a própria determinação do direito se transforma, como disse

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152 - DIREITO, TEMPO E MEMÓRIA

Luhmann, na manutenção de presentes possibilidades de mudan-


ças. Dirigir-se de uma linguagem a outra, afirmou Derrida, pare-
ce ser a condição de cada justiça possível. E é exatamente isto o
que acontece. O direito deve também falar nos textos as novas
linguagens da experiência social. Mas, estas linguagens, sua for-
mação local, são rudimentares, são pouco refinadas e parecem in-
capazes de absorver a apuração lingüística e conceitual da forma
lingüística do direito romano. A compreensão da linguagem do di-
reito vem sentida e apresentada como possibilidade de controle do
abuso e do arbítrio político. O latim era a língua do direito e a
língua da ciência jurídica. Os vulgares (línguas vernáculas) consti-
tuíam a língua das leis e da prática jurídica, em que, todavia, ainda
se confundia com a língua da tradição do direito. Igual situação se
verificava na linguagem da ciência, da filosofia e nas relações inter-
nacionais. Por alguns séculos, pelo menos entre o XIV e o XVI, a
questão da língua se torna uma das questões sociais mais relevantes.
Para a língua alemã, por exemplo, no século XVI, Hattenhauer es-
creveu que a honra do Reich, a honra imperial, parecia depender da
língua. No século seguinte, a utilização da língua alemã na política
e no direito foi sentida como requisito necessário para a manuten-
ção da soberania. É por esta razão que, neste mesmo século, se
reforça a atenção da purificação da língua alemã que deveria ser
apresentada como capaz de expressar os conceitos que antes esta-
vam expressos somente em outras línguas. A língua alemã deveria
atestar sua plena capacidade de ser língua da ciência e, também, da
ciência jurídica. Leibniz e Thomasius operavam neste sentido. Fi-
nalmente Wolff tenta provar que, para a ciência, a língua alemã é
mais adaptada que a latina e que se pode exprimir em autêntico
alemão aquilo que em latim soa terrivelmente bárbaro. A tensão
sistemática da teoria do direito do racionalismo e as instâncias de
centralização do sistema político tornavam evidente a impossibili-
dade de deixar sobreviver uma práxis legislativa sempre mais am-

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RAFFAELE DE GIORGI - 153

pliada, ao lado de uma práxis jurídica sempre mais fragmentada no


desordenado acúmulo de material da mais variada origem e confi-
guração. Colocava-se a questão da codificação e seu primeiro pro-
blema referia-se à língua. O sistema do direito devia conter um
corpo orgânico de princípios, definições e conceitos. A língua de-
veria, portanto, ser clara, concisa e compreensível. O sistema políti-
co, de outro lado, legitima o seu controle sobre o direito porque a
formulação do direito em uma língua clara e compreensível torna-
va-o acessível a todos. Todos eram tratados como súditos do poder
porque eram considerados como destinatários do direito. Era uma
questão de justiça que Conrig expressava nestes termos: iniquius
enim est quam siquis secundum legem vivere debet, quam non intelligit.
Realmente, não existe nada mais injusto que o fato de que uma
pessoa deva viver segundo uma lei que ela não compreende. Era
1642. Por um século, serão dados conselhos para se estudar manu-
ais de gramática e de sintaxe e para usar a língua na compilação
das leis. Na metade do século seguinte, Montesquieu será ainda
mais explícito: a linguagem do direito deve evocar completamen-
te as próprias representações, deve ser expressão da razão sã de um
bom pai de família. Clareza, simplicidade e determinação. Frede-
rico II, da Prússia, teria pretendido que as leis fossem formuladas
de um modo tão claro que excluíssem todo conflito sobre sua in-
terpretação. A expectativa se transformara em pretensão. O ho-
mem comum devia estar em condição de compreender as leis e a
linguagem do direito. No final do século, 1780, Pütter publicará
um manual de estilística da linguagem jurídica. Era exatamente
1788 quando Klein se colocou a mesma pergunta que se formula
hoje: é propício que o homem comum saiba a lei?1 A resposta
naturalmente era positiva.

1 ist es zuträglich, dass der gemeine Mann die gesetze wisse?

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154 - DIREITO, TEMPO E MEMÓRIA

VII
Seguirá um século de elaboração dos textos dos códigos: do
final do século XVIII ao final do século XIX. Os textos e aqueles
que os teriam transformado, integrado, substituído realizavam os
pressupostos do racionalismo iluminista, conferiam ao poder uma
face aceitável, tornavam visível a unidade do Estado nacional e
concluíam a questão da língua. Por estes textos, o homem sem
qualidade sentia-se tratado como destinatário do direito e, na in-
sensatez da vida cotidiana, podia não se desesperar como preten-
dia a literatura, pois podia confiar na sua qualidade jurídica. No
início do século XIX, Savigny manifestou toda sua perplexidade
sobre a idoneidade da língua alemã para exprimir o conteúdo da
codificação, mas sua desaprovação era de outra natureza. A inade-
quação que Savigny lamentava se referia à profundidade da ela-
boração científica dos conceitos do direito. O problema referia-se
à ciência jurídica, não à língua. Em outras palavras: ele observava
que não se tratava de formular em uma língua moderna os con-
ceitos do direito romano, em suma, de traduzir em alemão, nem
mesmo de elaborar uma língua polida e correta. Tratava-se de ela-
borar uma conceituação jurídica complexa e capaz de adequar a
complexidade do direito positivo moderno. O problema se referia
à linguagem da ciência jurídica e, só por conseqüência, à lingua-
gem do direito. Se a ciência jurídica conseguisse alcançar níveis
mais altos, também a linguagem obteria benefícios como uma força
vital espontânea e originária. Assim pensava Savigny. E tinha ra-
zão! Quase um século depois, 1889, quando o trabalho de exati-
dão lingüística tinha purificado a linguagem jurídica e a pretensão
de clareza, simplicidade e concisão parecia verdadeiramente reali-
zada, Gierke reconhecia que der Entwurf eines bürgerlichen Geset-
zbuchs (Projeto de Código Civil) elaborado por uma comissão
apropriada apresentava altos níveis de aprimoramento lingüísti-
co. A comissão tinha utilizado uma terminologia unívoca: os ter-

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RAFFAELE DE GIORGI - 155

mos e as conexões lingüísticas foram utilizados sempre com o


mesmo sentido; evitava-se a casuística e respeitava-se mais a pre-
cisão que a brevidade das formulações. Um aprimoramento extre-
mo que permitia observar como a comissão tinha sido inspirada
no ideal de uma ciência exata, tentando elevar a proposição jurídi-
ca ao nível da fórmula matemática. Um trabalho grandioso com
linguagem clara e precisa, a ser aceito por todos. O resultado?
Aquela linguagem era unicamente doutrinária, pedante, vulgar,
artificiosa e complicada. Em outros termos: trivial.

VIII
Quase um século depois, 1972, Luhmann fornecerá uma
explicação plausível para a trivialidade do direito. De frente a uma
complexidade flutuante, irreconhecível, escreve Luhmann, ativam-
se estratégias de prevenção, de fragmentação, de generalização e
de neutralização. Nas sociedades, que dispõem de uma considerá-
vel riqueza de alternativas, sub-entram estratégias de trivialização
no lugar da interpretação religiosa do mundo.
Na medida da sua expansão e transformação, o direito po-
sitivo torna-se direito trivial. Certamente que num direito alta-
mente complexo, que se ocupa tanto da pena de morte, como do
diâmetro das maçãs, das etiquetas dos adesivos nas garrafas de
vinho e do preterdolo de um evento criminoso, não pode haver
caracteres sacramentais. Este direito existe, multiplica-se e se
transforma: sabe-se que é disponível na forma escrita e que, em
qualquer momento, pode-se dele fazer recurso se se quer saber
como se deve comportar em vista de determinada circunstância.
Mesmo que se possa sempre a ele recorrer, este direito não permi-
te certamente identificar estilos de vida ou experiências interiores
ou peculiares e, de qualquer modo, não permite que se constituam
conteúdos estáveis de sentido, que tenham caráter estruturante
pela experiência e por processos de construção da identidade. Com

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156 - DIREITO, TEMPO E MEMÓRIA

relação a este direito, é possível somente construir projeções nor-


mativas e verificar se resistem ou se devem predispor-se ao apren-
dizado. E, de fato, com o regime do direito positivo se aprende a
não aprender. Aprende-se, continuamente, a construir expecta-
tivas capazes de resistir de maneira contra-factual às resistências
que se opõem à experiência. Mas sabe-se que, se oportuno, deve-
se aprender. A aquisição evolutiva do direito positivo moderno
pode ser observada, de fato, com relação à peculiaridade deste
acoplamento de aprender e não aprender. A estabilidade de sen-
tido que este direito torna disponível e acessível a todos é a
mutável exterioridade que pode ser tratada de modo diverso:
pode-se a ela recorrer ou resistir, sem que isto implique o pró-
prio saber, a própria consciência, o próprio sentir. Por outro
lado, sabe-se que este direito pode mudar e muda sem que com
isto os indivíduos experimentem perda de sentido, desorienta-
ção ou mesmo sintam despedaçar a referência de sentido da
própria experiência. Trivial é este direito porque é altamente
insensível às diferenças. O direito, dizia Puchta, constrange as
desigualdades, anula as diferenças, as absorve e as reduz àquilo
que convém a todos em medida igual: à possibilidade de um que-
rer. Esta indiferença do direito em relação à desigualdade pro-
duz conseqüências de grande relevância: os indivíduos se sentem
imunizados em relação ao direito, que é imunizado em relação
ao indivíduo. São possíveis, ao mesmo tempo, generalização e
especificação e os conteúdos de sentido do direito podem ser
suportados pela consciência dos indivíduos, o que é possível
constantemente, caso a caso. Mas é justamente este fato que
torna inócua, para a elaboração da consciência interior dos in-
divíduos, a grandiosa e incontrolável expansão do direito e a
destruída multiplicação dos âmbitos da experiência que po-
dem interessar ao direito. Segundo estas considerações, o co-
nhecimento e a compreensão do direito são irrelevantes para o
indivíduo. Ao contrário, como dizia Luhmann, o não-conhe-

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RAFFAELE DE GIORGI - 157

cimento do direito se revela racional, senão é aconselhável.


Assim como não é plausível que uma coleção de conhecimento
jurídico possa permitir que a própria conduta da vida se torne
comandada, previsível e calculável, do mesmo modo não é plau-
sível que o conhecimento e a compreensão possam ser ligados
a um comportamento conforme o direito ou a uma expectativa
de um comportamento conforme. Por outro lado, o direito pres-
supõe o conhecimento do direito e, portanto, é imunizado con-
tra o não-conhecimento. Basta pensar qual teria sido a evolução
do direito se não tivesse operado esta pressuposição. O direito
está ali. Qualquer um pode verificar a consistência das própri-
as expectativas normativas: qualquer um pode controlar o seu
saber sobre o direito antes de agir, informando-se sobre o con-
teúdo de sentido do direito escrito e julgando como manipular
o agir de acordo com o seu próprio interesse. Mas o agir se
desenvolve normalmente com base em uma confiança sumária
na tolerabilidade do próprio comportamento, que se justifica
também no caso de um desvio conhecido. O direito e, mais
que o direito, a política utilizam este confiar do agir incognita-
mente; uma confiança na regularidade de conteúdos de senti-
do que continuamente recolocam o agir na perspectiva de uma
agir no direito. Normas podem ser transformadas, o direito dos
juízes pode desenhar novos percursos, desvios podem ser nor-
matizados, o agir pode ser ulteriormente condicionado sem que
se produzam catástrofes nos conhecimentos adquiridos, ou me-
lhor, sem que os indivíduos percebam aquilo que acontece. Na
realidade, reforça-se somente a expectativa que o direito seja
produzido pelo direito e que, no futuro, a atual diferença entre
direito e texto seja substituída por uma outra diferença entre
direito e texto. Não é somente necessário o não-saber do direito,
ele também é racional: clareza e precisão, brevidade e univocida-
de da linguagem deixam somente transparecer a trivialidade do
direito. O seu paradoxo permanece encoberto.

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158 - DIREITO, TEMPO E MEMÓRIA

IX
No paradoxo, escreveu Dürrenmatt, revela-se a realidade. A
idéia de que uma formulação clara e compreensível do direito tor-
ne possível seu conhecimento e que este permita que os indivídu-
os orientem o agir em direção ao direito ou permita um
funcionamento do direito sem atritos e, eventualmente, sem con-
flitos, é algo que pode ser bem representado no teatro do grotesco.
Quanto mais os indivíduos sabem sobre o direito, mais são cons-
trangidos a experimentar que somente o direito determina se aquele
saber é saber do direito. Quanto mais sabem, menos sabem. Um
conceito, um termo jurídico pode ser unívoco, claro e preciso quan-
do se quer, mas somente o direito determina se aquela univocida-
de é unívoca ou não. Mais uma vez, o problema é: quem é o observador?
A idéia segundo a qual o direito é um conjunto de comandos que
o legislador dirige aos súditos – a que, hoje, prefere-se chamar
cidadãos –, os quais, se compreenderem o conteúdo do comando,
podem orientar sensatamente seu agir, é sugestiva, mas, sem dúvi-
da, ingênua. Da mesma forma, a idéia que a linguagem transfere
um conteúdo de sentido daquele que a emite àquele que a recebe,
e que, portanto, basta observar o conteúdo de sentido intenciona-
do para aceitar que seja claro e preciso e para elaborar prognósti-
cos sobre a compreensão e o comportamento do receptor, é algo
um pouco menos sugestivo e talvez mais ingênuo. Ambas, toda-
via, são imanentes à auto-representação do direito. Acompanham,
pelo que sugere a literatura mais recente, as atuais preocupações
das teorias jurídicas. Certamente, não sugerimos que estas teorias
se tornem infelizes com a teoria dos sistemas, mas que, ao contrá-
rio, elas se distraiam, por exemplo, descendo ao vale da confusão
(Durcheinandertal) de Dürrenmatt, onde se poderia ver que não se
pode ver a unidade da diferença entre o Deus com barba e o Deus
sem barba. Esta visão poderia talvez ajudá-las.

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RAFFAELE DE GIORGI - 159

ORDENS NORMA TIV


NORMATIV AS, CONSTELAÇÕES DE INTERESSES E
TIVAS
FORMAS DE RESISTÊNCIA NO EST ADO DE DIREIT
STADO O. O
IREITO
CASO ITALIANO
ITALIANO

I
A recente literatura jurídica parece muito sensível a temas
de natureza neojusnaturalista. Mais do que questionar os pressu-
postos teóricos do positivismo, parece disposta a amenizar a rigi-
dez que caracterizou o debate filosófico dos anos 70. Ela resgatou
a reflexão sobre a sociedade justa, as formas de reconhecimento
das expectativas e das pretensões da minoria, os limites da demo-
cracia da maioria. Estes interesses foram também estimulados pelo
clima político que, depois dos anos de terrorismo, reconheceu –
pelo menos na Itália – um espaço de legitimidade para demandas
que nasciam da consolidação, cada vez mais radical, dos princípi-
os do Estado social. Um clima político duradouro possibilitou
superar, no âmbito da produção legislativa, a chamada “cultura da
emergência”. Uma cultura que espelhava uma alta taxa de confli-
tuosidade ideológica na sociedade civil não somente por causa do
terrorismo, mas também pelas específicas políticas sociais, sindi-
cais e fiscais e pela radicalização dos programas dos diversos par-
tidos políticos, em virtude do bipolarismo que, naqueles anos,
parecia estar estabilizado.
O novo clima político e cultural permitiu que fenômenos
sociais inéditos surgissem na sociedade civil e que novos progra-
mas se alinhassem no sistema político. Obviamente, tudo isto pro-
duziu efeitos consideráveis sobre o direito, que reagiu ativando
mecanismos de imunização ou estendendo sua porosidade. O siste-

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160 - DIREITO, TEMPO E MEMÓRIA

ma jurídico revelou, assim, sua particular ambigüidade e esta se


expressou na multiplicidade de reações, tratamentos e tematiza-
ções. Entre estas últimas apareceu aquilo que a literatura jurídica
denominou de “direito de resistência”.
Nas seguintes reflexões, indicarei, primeiramente, algumas
peculiaridades da situação italiana em relação ao caráter estrutu-
ral do ordenamento jurídico, ou seja, buscarei delinear as formas
pelas quais se exprimem os fenômenos de resistência. Depois, pre-
tendo me debruçar sobre algumas interpretações correntes sobre a
idéia de resistência no Estado de Direito e os motivos de sua inad-
missibilidade ou legitimação. Em seguida, discutirei algumas ca-
racterísticas estruturais do direito e, a partir de uma análise das
formas de resistência, demonstrarei como aquelas interpretações
não são plausíveis, porque a resistência, por manifestar-se em face
do direito, não se dirige e não pede reconhecimento nem ao siste-
ma jurídico nem ao sistema político. Por fim, explicarei que, de
um lado, ela pode ser absorvida pelo direito e pela política, pois é
produto estrutural e funcional de ambos e, de outro, não é absor-
vida, já que se acha desprovida dos objetivos elaborados pelos dois
sistemas.

II
Na Itália, uma hipotética retomada da jurisprudência dos
interesses encontraria dificuldades tanto no plano teórico quanto
naquele prático-dogmático. Há alguns anos, o sistema jurídico
italiano se submeteu a uma sobrecarga estrutural que rompeu sua
armadura – originariamente muito sólida e pouco flexível – e o
constrangeu a assumir formas evolutivas destituídas de coerência
e, portanto, muito frágeis. Esta sobrecarga estrutural deriva de fa-
tores de natureza diversa. De uma parte, a estrutura conceitual de
instituições fundamentais do ordenamento jurídico italiano, pro-
duzidas durante o fascismo, persistiu como núcleo de desenvolvi-

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RAFFAELE DE GIORGI - 161

mento de uma legislação contingente, muitas vezes, redundante


e, conceitualmente, sem reflexão. De outra parte, a legislação dos
últimos quarenta anos – e isto não aconteceu somente na Itália –
adquiriu o caráter de legislação com caráter de compensação e,
portanto, como disse Luhmann, de compensação da compensa-
ção. Uma legislação que, na prática, pôde reparar os danos produ-
zidos pelas decisões que a constituíam, produzindo outros. Tal
reparação se verificou pelo menos na auto-representação dos su-
jeitos destinatários de escolhas, aos quais, todavia, um outro po-
der de acordo permitiu obter continuamente novas escolhas, de
caráter obviamente compensatório.
Não se pode ignorar outro aspecto que contribui para deter-
minar o caráter da produção legislativa italiana: o sistema político
está sujeito a contínuas pressões de instabilidade à medida que é
possível constituir governos não por programas, mas por alianças
e, portanto, pela constante possibilidade de desistir das próprias
alianças. Dessa forma, as decisões têm caráter distributivo e com-
pensativo: são, ao mesmo tempo, conservadoras e progressistas.
Forma-se uma legislação que se destina mais ao trabalho
paciente da hermenêutica jurídica e à sábia intervenção da Corte
Constitucional do que à tutela unilinear ou pluralista de determi-
nados interesses ou constelações de interesses. É compreensível
que uma escolha política, produtora de uma específica configura-
ção jurídica, normatize a tutela de determinados interesses. Isto,
entretanto, não exclui que interesses contrapostos sejam canaliza-
dos através de outras formas de tutela e também não significa que
aquele tipo de interesse seja normatizado de modo exclusivo. Por
fim, não se pode esquecer que a idéia de interesse é suporte de
legitimação de escolhas já efetuadas.
Diante deste quadro jurídico e político, é possível compreen-
der por que o horizonte evolutivo do sistema jurídico italiano en-
contra-se retalhado e, particularmente, por que, ao lado dos

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162 - DIREITO, TEMPO E MEMÓRIA

institutos antigos, ainda cobertos pela conceitualidade originária,


coexistem elementos que apresentam uma evolução estrutural tão
bem projetada em direção ao futuro que alguns juristas, de modo
contingente, a consideram profundamente arriscada. Se institu-
tos, como, por exemplo, o direito de família, o direito penitenciá-
rio, a legislação trabalhista e aquela relativa à igualdade de gênero,
são amplamente desenvolvidos no sentido liberal e democrático, a
estrutura do direito penal e o impanto do direito processual penal
e civil ressentem de uma perigosa inércia evolutiva. E mais: en-
quanto alguns âmbitos da intervenção jurídica – como aqueles
que tratam de determinadas inovações tecnológicas capazes de
produzir efeitos particulares – revelam uma dificuldade evoluti-
vo-estrutural do sistema jurídico; em outros, ao contrário, existe
uma ampla disponibilidade, provida de interventos legislativos
estatais, os quais, todavia, são totalmente imunizados pela incon-
trolável fragmentação de competências entre poder central e po-
deres periféricos. É o que acontece com o direito ambiental.

III
Assim como parece muito difícil delinear constelações de in-
teresses que não se referem a formas de tutela compensativa, não é
simples individualizar, exceto para determinar contingências, cons-
telações desta natureza que sejam objeto de específico desinteresse
legislativo e, portanto, de perigosa transgressão. Tal situação subsis-
te não pela benevolência igualitária do legislador italiano, mas pelo
caráter de compensação reflexiva do Estado Social de Direito. Este
caráter do sistema jurídico reduziu a pressão ideológica e a susten-
tação política generalizada e, ao mesmo tempo, particularizada pelo
protesto. Diante deste horizonte, o protesto e a resistência contra o
sistema jurídico assumiram, na Itália, formas particulares. Nestas
formas, todavia, se exprimem não somente conteúdos particulares,
mas essencialmente seus significados, objetivos e limites. Distin-

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RAFFAELE DE GIORGI - 163

guirei pelo menos quatro formas diversas de relação negativa e rea-


tiva que sujeitos ou grupos têm contra o direito e que se manifes-
tam e se entendem como resistência.
Existe uma forma de resistência que, através da violação de
regras, pretende produzir direito. Geralmente, não se trata de um
direito diverso que regule de modo diverso determinadas rela-
ções, mas de um direito melhor, cuja universalidade de fins deve-
ria conduzir à regulação de relações, denominadas, de origem
controlada. Este tipo de resistência – praticada, igualmente, em
outros países – é típica dos movimentos feministas, igualitaristas,
ambientalistas e pacifistas. Note-se, todavia, que, nos últimos anos,
o conteúdo ideológico, que sustentava esta forma de protesto e
que originava a resistência, diminuiu e a referência ideal quase
desapareceu. O universalismo de base foi consumido pela capaci-
dade do sistema político de aprender e despejar problemas para o
sistema jurídico. De fato, esta oposição não somente se alimenta
de legitimação política, mas também persegue objetivos políticos.
Além da resistência criadora de direito, para utilizar a ex-
pressão de Benjamin, existe uma forma de resistência que procu-
ra, ao contrário, conservar o direito ou o silêncio do ordenamento
jurídico de forma ordenada, para possibilitar regulação jurídica de
determinados bens sociais ou de determinadas pretensões ou pri-
vilégios afirmados de facto. Através de um não-fazer, esta resistên-
cia utiliza o direito para se opor a tentativas de superação de
situações, anteriormente, produzidas por causa de comportamen-
tos que se colocavam à margem do direito e pelos quais o direito
não manifestava interesse explícito. O fato de esta resistência se
exprimir através de um não-fazer, não implica necessariamente
que ela, por não ser violenta, não seja ativa e organizada. É uma
forma de resistência que individualiza constelações de interesses
que requerem tutela e que possam ser garantidas somente por meio
do silêncio do direito.

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164 - DIREITO, TEMPO E MEMÓRIA

Existe, ainda, uma forma de resistência ao direito que, pelas


conseqüências provocadas em muitas situações, tem se revelado
como manifestação particularmente perigosa de desobediência.
O caráter desta resistência consiste no fato de que ela se produz
através do rigoroso respeito às normas jurídicas vigentes. Obser-
vando normas e regulamentos, por exemplo, doutores italianos
paralisaram a sacralidade e as criações das taxas alfandegárias: uma
pequena parcela forçou o fechamento dos aeroportos. O princípio
sobre o qual se baseia esta forma de violência contra o sistema
jurídico é a rigorosa aplicação do direito, ou melhor, o princípio
do direito aplicado a si mesmo. Tal aplicação requer e consome
muito tempo e pode ser revista em cada etapa da seqüência de
comportamentos previstos, que implodem o sistema jurídico a
partir de seu interior. Por exemplo: recentemente, advogados de
defesa de alguns mafiosos requereram, em um determinado mo-
mento do processo, a possibilidade de ler os atos processuais rela-
tivos a todos os imputados. O exercício deste direito teria paralisado
o processo.
Gostaria, por fim, de lembrar uma outra forma de resistência
que se exprime na organização dos cidadãos. Estes têm por finali-
dade estabelecer formas de tutela ou de defesa contra institutos
previstos no ordenamento jurídico, através da ativação de estrutu-
ras substituíveis ou da atividade de denúncia organizada, dotada
de ostentações e largamente acessível à opinião pública.

IV
Estes exemplos permitem formular algumas reflexões sobre
a idéia de resistência e sobre aquilo que, na literatura, se chama
“direito de resistência”. Parece que o debate sobre este tema se
desenvolve – especialmente, na Alemanha – através de esquemas
extremamente reducionistas que se limitam a discutir as resistên-
cias legítimas e as ilegítimas. Ambas são entendidas como tipos

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RAFFAELE DE GIORGI - 165

de comportamentos que violam a legalidade justamente porque


se questiona a legitimidade de determinadas formas de legalida-
de. Explicam-se, assim, fórmulas, como aquela de Kirchheimer,
que vê o Estado moderno “sustentado pela falta de um direito de
resistência ou pela sua degradação a um catálogo de direitos de
liberdade constitucionalmente garantidos” (1967, p. 9), ou, como
a de Habermas, segundo a qual a desobediência civil, enquanto
elemento de prova da democracia, se exprimiria, de forma com-
pleta, no Estado de direito e encontraria seu fundamento no sen-
tido de justiça de alguns e nos fundamentos morais da democracia.
A pouca originalidade de Habermas repete aquela de Rawls e de
tantos que crêem que a razão universal hipotético-discursiva pos-
sa individualizar os fundamentos morais da forma do Estado e
indicar, portanto, um critério não jurídico ao lícito e ao ilícito.
Ainda mais paradoxal é a posição de alguns, como Dreier, que
realmente pensam poder individualizar um critério jurídico fun-
dador da esquematização binária lícito/ilícito, vale dizer, um cri-
tério decisório de declaração da legitimidade da legalidade: “Quem
publicamente, sem uso de violência e por motivos de natureza
política e moral, só ou conjuntamente, empregue a fattispecie da
proibição, age legitimamente conforme os direitos fundamentais
se, deste modo, protesta contra uma grave violação do direito (Un-
recht) e se este protesto é proporcional”.
Estas perspectivas estão vinculadas a um esquematismo não
diverso daquele que forçava Benjamin a diferenciar entre violên-
cia que aplica e que mantém o direito e a reduzir a real ambigüi-
dade do sistema jurídico a esta binariedade. De fato, se a idéia de
uma admissível legitimação externa da legalidade torna ético o
princípio do Estado de Direito, uma hipotética legalização dos
valores legitimadores do direito o constrangeria a reduzir seu có-
digo binário a valores que, por se sujeitarem a outros códigos, es-
capam de sua lógica interna.

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166 - DIREITO, TEMPO E MEMÓRIA

Mas existe, ainda, uma dúplice dificuldade que consome a


argumentação daqueles que refletem sobre a resistência ao direito
da perspectiva neojusnaturalista. A primeira dificuldade nasce do
fato de que eles são obrigados a compreender a resistência so-
mente como violência não violenta, como grande empreendimento
moralmente fundado para perseguir fins universalizáveis. A outra
dificuldade refere-se à incapacidade destes teóricos de perceber e
entender o complexo de microviolências que constituem a reali-
dade funcional da resistência ao direito no Estado de Direito. Nele,
não se registra, salvo de modo excepcional, a violência que cha-
marei prometeica – aquela aludida de Sorel a Habermas e denomi-
nada de origem controlada. Isto ocorre não porque os princípios de
justiça do Estado de Direito tornaram-se um componente orgâ-
nico da consciência dos cidadãos, como crê Habermas e os neo-
jusnaturalistas, mas porque o Estado de Direito dissolveu os
pressupostos daquelas formas de resistência à medida que os des-
pedaçou, rotinizou e os absorveu plenamente. A resistência ao
direito no Estado de Direito deve ser tematizada, no plano teóri-
co, de modo que permita reter a complexidade e a turbulência
que, através da própria resistência, penetra na comunicação social.
Para isto, é necessário realizar uma série de distinções que possi-
bilitem isolar funções individuais da resistência e, ao mesmo tem-
po, determinar os sistemas nos quais elas se exprimem e as formas
da comunicação social que as ativam. A violência prometeica –
aquela contra o Estado de Direito – pertence mais à manualística
do que à realidade que pode ser objeto de observações e descrições
sociológicas. Na medida em que não condiz com a manualística,
ela pode pertencer à história ou ser produto conceitual da mera
necessidade de definição dogmático-jurídica. No primeiro caso,
citando ainda Benjamin, legítimo é o direito positivo criado pelo
exercício da resistência e, portanto, legítima é a violência que o
produziu. Poderíamos, assim, dizer que, ainda hoje, a violência

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RAFFAELE DE GIORGI - 167

partegiana é legítima. Mas, como é possível colocar o problema da


legitimidade do exercício da violência assegurada pelo direito sem
antes invocar um juízo de mera natureza ética ou religiosa? No
segundo caso – aquele relativo à necessidade de definição dogmá-
tico-jurídica –, o problema não é diverso de nenhum outro relativo
à definição do próprio direito. É a carga ética e política intrínseca
ao tema que obriga a ver aquilo que não existe. Se excluirmos a
manualística e limitarmos, como já fizera Jhering, a construção ju-
rídica à esquematização conceitual com função sistemático-defini-
dora, e lhes reconhecermos a necessidade histórica de utilizar
processos seletivos para construir suas definições, então poderemos
nos predispor à observação sociológica de algumas estruturas do
sistema jurídico e à descrição das formas de resistência que entram
na rede de comunicação social, formada pelo direito.
Antes de mais nada, é preciso se liberar de posturas intelec-
tuais de tipo jusnaturalista ou ética, porque são reducionistas, cons-
trangem a falar do direito por meio da linguagem moral ou política
e produzem a ilusão de que fatos e eventos possam, através da
conceitualidade jurídica e de seu poder de definição, ser descritos
externamente ao direito. O pessimismo com que Franz Neuman
conclui suas reflexões “sobre os limites de uma desobediência jus-
tificada” é, por sua vez, plenamente justificado. “Nenhuma teo-
ria”, escrevia Neuman, “consegue resolver o dilema entre
consciência e ordem social. Aqueles que possuem esta pretensão
não fazem outra coisa que não repetir fórmulas abstratas e vazias,
que carecem de concretização”.

V
Evidentemente, o problema é colocado em outros termos.
Ele não se refere nem à consciência nem a uma hipotética relação
entre consciência e ordem social. Ambos se legitimam a partir de
si e, enquanto sistemas fechados, não entram em contato recípro-

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168 - DIREITO, TEMPO E MEMÓRIA

co. O contato se estabelece através da disponibilidade recíproca a


aprender ou a não aprender. O ordenamento jurídico, de outra
parte, não constitui uma ordem, mas a reconhece, a normatiza,
como dizia Carl Schmitt. O legislador, afirmava Platão, é o guar-
dião da ordem. Ordem, podemos afirmar hoje, é desordem: são
grandezas incomparáveis entre si.
Para a observação sociológica, a ordem do direito se mani-
festa como uma ordem que estrutura emergências continuamente
novas, que existem à medida que produzem direito por meio do
direito. Aquilo que aparece como problema de natureza ética ou
aquilo que é percebido como deficit estrutural da representação
dos interesses é relevante ao observador enquanto é individuali-
zado como problema do sistema jurídico, ou seja, como emergên-
cia que pode ser elaborada somente no direito, por meio do direito,
e que acresce, portanto, complexidade interna ao sistema jurídico
e pode ser reconduzida à diferença entre sistema e ambiente.
Em relação a esta distinção é necessário precisar que o siste-
ma jurídico é estruturado segundo uma diferenciação binária: lí-
cito/ilícito. Tertium non datur. Somente no interior do direito pode
se colocar o problema: o que é lícito e o que é ilícito. Assim, se
uma ética do direito e uma ontologia da causalidade são excluí-
das, o problema do direito de resistência pode ser oportunamente
reformulado: qual o grau de sobrecarga estrutural que o sistema
jurídico pode suportar? Quais são os limites da auto-reprodução
do direito? De quais sistemas sociais provém esta sobrecarga e
quais são as possibilidades de canalização jurídica que o direito
suporta? Cada forma de sobrecarga estrutural produz ulterior so-
brecarga estrutural. Às pressões geradas por diversos sistemas so-
ciais, a política reage com processos de juridicização. A este “acesso
de comodidade” (Luhmann), a política reage ativando processos
de deslegislação. É, assim, que se alternam linhas evolutivas e in-
volutivas.

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RAFFAELE DE GIORGI - 169

Da perspectiva dos sistemas sociais que constituem o ambi-


ente do direito, estes processos são legitimados continuamente
em virtude de escalas contingentes de preferência. Da perspectiva
do sistema jurídico, estes mesmos processos se legitimam a partir
de si. A falta de teoria jurídica, ou seja, de auto-observação do
direito, produz necessidade moral, procura compensação ética.
Sem recorrer à ontologia, o problema do direito de resistên-
cia não se apresenta. A questão, então, é esta: dado um certo tipo
de pressão que o ambiente exercita sobre o direito, ele tem condi-
ções de transformá-las em premissas internas para efetuar opera-
ções próprias, capazes de manter a diferença em relação ao
ambiente, sem produzir sobrecarga estrutural que o sistema não
pode suportar?
Ousarei responder com Luhmann que, por sua vez, serve-se
de uma reflexão elaborada por Heinz von Förster: um sistema
pode ver aquilo que não pode ver.
Se, para o direito, é fundamental manter a diferença em rela-
ção ao ambiente, poderia se perguntar se a disponibilidade dos
fenômenos de protesto seria capaz de ameaçar a diferença entre
sistema jurídico e seu ambiente; poderia se perguntar qual a dis-
ponibilidade dos sistemas sociais em absorver as pressões das for-
mas de protesto que nascem para o direito, em distribuí-las na
comunicação social e em aceitar os riscos conseqüentes. Minha
opinião é que a resposta não pode ser aceitação ou exaltação do
direito de resistência.
As formas de resistência são formas de protesto, manifesta-
ções de agir não conforme. O seu objetivo não é o direito e, muito
menos, a tutela de presumidos interesses gerais ou particulares. O
agir não conforme adquiriu maneiras expressivas, novas e diver-
sas, às vezes, destituídas de objetivos. Justamente por este motivo,
trata-se de modos que possuem escassa ressonância no sistema
jurídico. Eles podem encontrar ressonância no interior do sistema

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170 - DIREITO, TEMPO E MEMÓRIA

jurídico, mas a ressonância deste sistema é altamente seletiva. De


outra parte – e este é um fato historicamente relevante –, enquan-
to, até o final dos anos 60, o protesto usava formas expressivas que
buscavam produzir exclusivamente ressonância no sistema, hoje,
as formas pelas quais o protesto se exprime não são voltadas –
exceto em casos limitados e provavelmente excepcionais – para a
produção de ressonância no interior do direito.
Diante destas novas formas de protesto, o sistema político
reage com impaciência, com irritação, porque não consegue com-
preender, absorver e canalizar um agir não conforme que não se
deixa agarrar e definir. Esta irritação do sistema político provoca
ou muita ou muito pouca ressonância no sistema jurídico. A im-
pressão dos objetivos desorienta a comunicação social através da
política e do direito. O protesto é rebaixado à oposição que, por
sua vez, é qualificada como violência. Mas os problemas não são
de natureza jurídica: são distúrbios da comunicação por meio dos
sistemas sociais.
Antes de concluir gostaria de refletir brevemente sobre a
natureza destes distúrbios.

VI
Na sociedade contemporânea, é possível observar uma cres-
cente quantidade daquilo que chamarei de improbabilidade residu-
al de ações sociais conforme. Anuladas as ideologias, o poder de
integração social dos sistemas de valores se tornou puramente re-
sidual e age somente de forma escassa, como referência congru-
ente da ação. Os valores – como as ideologias – são recursos sempre
mais escassos. “Da lógica do poder e do contrapoder, que implica-
va o conflito de ideologias e de objetivos, linhas políticas, cálculo
racional de oportunidades, o confronto se transfere para o plano
simbólico, onde as táticas e os programas políticos perdem signi-
ficado, onde os custos e os benefícios da ação não são mais medi-

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RAFFAELE DE GIORGI - 171

dos, onde a lógica é aquela do desafio” (Sassoon, 386). Neste sen-


tido, o protesto se torna uma função estável na sociedade comple-
xa. Ele busca a contínua ruptura e a reformulação das regras do
jogo; ele se torna um ritual destituído de objetivos, ou melhor, de
objetivos políticos. A politização dos objetivos o perverteria em
interesses e estes podem encontrar reconhecimento, podem ser
absorvidos. O protesto é forma difusa de agregação reagregação.
Em função deste propósito, os fins podem ser intercambiáveis,
contingentes, contraditórios.
Dessa forma, a oposição se volta contra a violência simbólica
dos sistemas sociais, não contra sua violência real. Por isso, a vio-
lência implícita no protesto também é violência simbólica: ela evita
o poder de definição do direito que é um poder de definição real.
A ilegalidade coloca para si um horizonte. Como todo horizonte,
este também se distancia à medida que o poder de definição, dele,
se aproxima na tentativa de agredi-lo. Assim como, pela ação so-
cial, é impossível orientar a obrigação de protestar contra o poder,
porque o problema efetivamente é encontrar e definir o “poder”;
também, para o “poder”, o problema fundamental é encontrar e
definir os objetivos do protesto e da oposição. Para ambos, a vio-
lência se torna violência branca, sem derramamento de sangue,
violência simbólica (Sassoon, 393). Ela pode produzir non sense,
ausência de comunicação e suspensão dos fluxos informativos entre
sistemas sociais. A violência assumiu novos códigos que não pro-
duzem ressonância no sistema político ou jurídico. Daí porque a
irritação, a desorientação, a sobrecarga, o stress que hoje caracteri-
zam estes sistemas e a impossibilidade de processamento desta
violência.
O direito de resistência que a ação dos movimentos sociais
requer nos dias atuais é exatamente o direito de não ser processa-
da. O paradoxo do direito de resistência pode ser assim expressa-
do: o direito de resistência pode ser reconhecido pelo sistema

Raffaele_De_Giorgi.p65 171 7/2/2006, 15:16


172 - DIREITO, TEMPO E MEMÓRIA

jurídico somente se pode ser processado, mas seu processamento


o destrói, pois o nega. Este é um paradoxo, ao mesmo tempo,
antigo e moderno.

Raffaele_De_Giorgi.p65 172 7/2/2006, 15:16


RAFFAELE DE GIORGI - 173

CONDIÇÕES DE DESCRIÇÃO DA COMPLEXIDADE NA


SOCIEDADE MUNDIAL

“‘Mundo’: uma injúria cristã”1 , uma vez escreveu Nietzsche.


“Um conceito limite para onde se dirige toda nossa necessária ig-
norância”.2 Que o mundo refira-se ao nosso não-saber, que consti-
tua um conceito limite, que, de fato, assinale limites, parece, sem
dúvida, plausível. Mas, este é o mundo da sociedade mundial? Para
que serve uma idéia de mundo?
Nos discursos sobre mundo que circulam por todo o mundo
não se reconhece somente a antimetafísica de Nietzsche, mas tam-
bém metafísicas negativas e positivas, expectativas, medos, angústias,
certezas exasperadas, tradições escatológicas inquietudes apocalípti-
cas. O olhar sobre o mundo é conduzido pelo contínuo flutuar de um
não-saber, que se renova pela inclusão e pela exclusão de corajosas
aquisições de uma tradição milenar. É, assim, que a idéia está sempre
viva. Esta também foi reformulada por Nietzsche pela distinção en-
tre um mundo verdadeiro e um falso: de um lado, a idéia de um
mundo ordenado, obediente às leis da natureza ou à vontade divina e,
de outro, a idéia de um mundo desordenado, desarrumado pelos ho-
mens que o habitam. De fato, este mundo é habitado. Nele existem
homens, casas, estradas, mares. Apesar disso, é muito viva a idéia de
um mundo totalizante, de um mundo do imediatismo, da íntima
fusão, de um mundo da vida, como dizem os filósofos, e de um
mundo artificial, de um perigoso mundo sem alma ou, como o cha-
mavam os críticos poucos anos atrás, de um mundo colonizado.

1 Welt: ein christlisches Schimpfwort.


2 Ein Grenzbegriff wohin wie alle unsere notwendige Unwissenheiten schicken.

Raffaele_De_Giorgi.p65 173 7/2/2006, 15:16


174 - DIREITO, TEMPO E MEMÓRIA

Todavia, não é sempre que a tradição oferece distinções sin-


ceras ou valores opostos como referências da representação do
mundo. Mais freqüentemente, as distâncias se confundem, o ho-
rizonte se expande. Nas representações cosmológicas da harmo-
nia e da ordem, os homens estão incluídos do mesmo modo que,
nas imagens apocalípticas das agitações universais, eles são os pri-
meiros a serem feridos. É, dessa forma, que, ao lado da idéia de
uma estranha e ameaçadora diferença, acompanha outra idéia: a
de um indiferenciado, penetrante e jusnatural imediatismo natu-
ral da vida do mundo e sobre o mundo.
O século XIX reuniu e organizou as aquisições reflexivas e
evolutivas da segunda metade do século precedente. Trouxe tam-
bém as conseqüências mais radicais. Da idéia da universalidade
da razão decorria a idéia de expansão da ordem política e jurídica
que se afirmava na realização das nações, compreendidas, conjun-
tamente, pelos sistemas político e jurídico dos Estados. Como os
indivíduos eram – com algumas exceções – racionais, eram – tam-
bém com algumas exceções – cidadãos. Eram, em suma, todos
iguais. Habitavam o mundo, mesmo que não diretamente. Porque
o mundo estava dividido em territórios que eram territórios dos
Estados e, nestes territórios, viviam os cidadãos que eram cida-
dãos dos Estados, então a ordem do mundo era a ordem dos esta-
dos e, portanto, a coexistência das nações. Aquilo que acontecia
no seu interior era questão interna. Não tinha relevância para o
mundo. Era esta a sociedade dos cidadãos mundiais (Weltbürger-
gesellschaft) que Kant tinha falado, em 1784. Uma esfera pública
(Öffentlichkeit) que mantém vivo o processo do iluminismo; preo-
cupações mundiais (Weltsorge), teria se dito há alguns anos.
A idéia de Marx que “o homem é o mundo dos homens,
Estado, sociedade”3 torna-se um sonho messiânico que poderá

3 Dass der Mensch die Welt dês Menschen, Staat, Sozietät.

Raffaele_De_Giorgi.p65 174 7/2/2006, 15:16


RAFFAELE DE GIORGI - 175

unir aqueles que estavam excluídos da sociedade dos cidadãos


mundiais (Weltbürgergesellschaft), em virtude, justamente, de sua
exclusão. Marx pensava que este mundo – que descrevera em suas
estruturas antropológicas e nas configurações históricas das orga-
nizações da exploração humana – somente fora, por nós, interpre-
tado de vários modos. Agora, era o caso de transformá-lo.4 Sobre
a idéia de transformação do mundo certamente se podia reunir
consenso. Obviamente que não no sentido atribuído por Marx. A
língua do mundo fala a língua de Königsberg – para ainda usar
uma expressão nietzscheana – e se não fala esta língua, fala, na
obscuridade das profundas interioridades, romântico. De fato,
aquele direito natural dos homens que a razão deu aos povos para
o livre desenvolvimento das Nações permitirá chegar a um futuro
direito do mundo com suas leis e juízes. Os povos realizarão um
comércio e poderão viver uma paz no mundo. São idéias de Jo-
hann Caspar Bluntschli, um jurista suíço que fez carreira política
na Alemanha e que, na segunda metade do século XIX, tinha cer-
teza de que “também a humanidade que progride conseguirá ga-
rantir aos seus membros, aos povos uma existência segura e
reuni-los em uma grande comunidade mundial”.5 O direito desta
comunidade será o direito dos cidadãos mundiais. Se existem dú-
vidas sobre os significados ou sobre os conteúdos concretos do
direito dos cidadãos mundiais, pode-se recorrer ao Léxico de Krug,
de 1834, onde se pode facilmente ler: “direito dos cidadãos mun-
diais (jus cosmopoliticum) é a faculdade que cada homem possui
para viajar por toda terra (que, aqui, se chama, de fato, o mundo) e
para se representar aos outros homens nas relações da vida em

4 Diese Welt hätten wir nur verschieden interpretiert. Nun Käme es darauf an, sie
zu verändern.
5 Es werde auch der fortschreitenden Menschheit glücken, ihren Glieden, den
Völkern, ein gesichertes Dasein zu gewährleisten um zu einer grossen
Weltgemeinschaft zusammenzufassen.

Raffaele_De_Giorgi.p65 175 7/2/2006, 15:16


176 - DIREITO, TEMPO E MEMÓRIA

qualquer vínculo (de tipo científico, artístico, comercial etc.); tal


direito se chama também direito geral do hóspede ou direito da
geral hospitalidade (ius hospitalitatis universalis)”.6
Ordem da razão e ordem do mundo: o projeto da razão e o
projeto do mundo. Permanecem excluídos os indivíduos que são
constrangidos a sentir e viver a própria individualidade através da
diferença entre indivíduo e sociedade, ou seja, através da experi-
ência da própria diferença. Quanto mais notória e resoluta for a
diferença, mais particular será a personalidade dos indivíduos. A
experiência da individualidade dos indivíduos é experiência da
própria particularidade, do fechamento na interioridade inexpri-
mível e, portanto, incomunicável. O povo, a nação, o estado, a
comunidade do mundo – conexões que a razão mantém reunidas
e que continuamente realizam o iluminismo, o espírito absoluto
ou a eticidade de um dever ser normatizado –, estas totalidades
que, cada vez mais, se descrevem na linguagem das organizações,
se opõem às individualidades, que só recentemente foram desco-
bertas, e as dominam, as derrotam, as ameaçam até o momento
que elas celebram como liberdade a própria estranheza em relação
àquelas totalidades intimidadoras.
Da semântica dos organismos que deviam incluir em seu
interior todos os indivíduos e que deviam tratá-los como particu-
laridades, pois a inclusão podia ser somente individual, se delineia
uma nova semântica da individualidade fechada que, sucessiva-
mente, será impenetrável, sublimada, estetizada, por fim, deca-
dente. De qualquer forma, as individualidades não habitam o
mundo. Para se fazer valer como individualidade, elas devem ser

6 Weltbürgerrecht (jus cosmopoliticum) ist die Befugnis jedes Menschen, die ganze
Erde (welche eben hier die Welt heisst) zu bereisen und sich anderen Menschen zum
Lebensverkehre in irgendeiner (wissenschaftlichen, künstlerischen, kaufmännischen
etc.) Beziehung darzustellen; weshalb es auch das allgemeine Gastrecht oder das
Recht der allgemeine Wirtbarkeit (ius hospitalitatis universalis) heisst.

Raffaele_De_Giorgi.p65 176 7/2/2006, 15:16


RAFFAELE DE GIORGI - 177

outro, devem estar separadas, devem possuir algo de transgressor.


Sobre o mundo vive o homem, o mundo é povoado de gêneros
(Gattungen), não de individualidades particulares. O mundo é
povoado de povos, Estados, Nações. Existem, ainda, casas, estra-
das, rios e mares. O mundo os contém; é dividido em regiões que
delimitam os territórios e constituem os currais naturais, nos quais
os povos encontram refúgio e segurança, ou os currais artificiais,
no interior dos quais os povos foram forçados, fragmentados, se-
parados depois de alguma guerra. A história do mundo é justa-
mente a história deste mundo.

II
Do período do mundo ao período do mundo7 – se lê no sécu-
lo XIX – a humanidade alcançou altos níveis de seu desenvolvi-
mento em direção a uma comunidade mundial (Weltgemeinschaft).
A idéia deste dever ser deslocada no futuro torna a justificativa que
estimula o interesse pela paz e a confiança no direito. Desta cons-
trução nasce a certeza que o Estado realizara o bem comum. Por
causa da realização deste fim, o século XIX assiste às reunificações,
reconstruções e restaurações nacionais. As regiões, os estados, as
nações, o bem comum e a coexistência pacífica são, ao mesmo tem-
po, os espaços reais e os metafísicos, nos quais se concretizou a an-
tiga idéia iluminista de gêneros (Gattung), que, agora, se chama
humanidade, pois se deixa governar pela região.
Se a idéia de humanidade realçava a igualdade imanente ao
gênero, a idéia de região pressupunha o consenso na representa-
ção da necessidade de organizar, dividir, distribuir, reunificar a
humanidade por meio de identidades históricas que tinham de-
terminadas quantidades ou partes do gênero humano. As nações

7 Von Weltperiode zu Weltperiode.

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178 - DIREITO, TEMPO E MEMÓRIA

através dos estados e recorrendo ao direito, ou melhor, a política e


o uso político da força, encontraram, ao mesmo tempo, sua justi-
ficativa racional e a racional justificação do controle do consenso,
tanto da perspectiva interna quanto externa. Mas são justamente
estes pressupostos racionais da coexistência na comunidade mun-
dial que tornam impossível esta coexistência. A comunidade mun-
dial constitui uma objetividade natural para todos aqueles que a
habitam. Como todas objetividades naturais, esta é construída e
reconstruída de maneira diversa de qualquer dos elementos que a
constituem. Toda nação e todo estado são justificados em sua ima-
nente necessidade. Eles têm necessidade de afirmar a própria ir-
redutível individualidade. A palavra de ordem é: segurança.
O século passado realizou as premissas de um pensamento
que já tinha percorrido dois séculos e que foi celebrado como aqui-
sição de civilidade. A razão que sustentava este pensamento era
aquela de um iluminismo que assegurava a construção racional
das condições justas para a humanidade e a impossibilidade de
opor os indivíduos – que condensavam a igualdade no gênero e
sublimavam a homologação na razão – à realização do bem co-
mum. Já, no início do século, a realização destas premissas tor-
nou-se evidente, quando, no teatro do mundo – mundo da razão e
da humanidade –, começou, para usar a formulação hegeliana, a
representação da tragédia na eticidade que o absoluto recita con-
sigo.8 Uma tragédia que ainda continua.
A face real daquele paradoxo, que se chamava segurança, é
manifestada na guerra: guerras quentes ou frias, mas sempre guerras
mundiais. A elas sucederam paz mundial e organizações mundi-
ais, crises e ilusões mundiais. Em seguida, os indivíduos, cuja in-
dividualidade, agora, vem destruída e exterminada nas apocalípticas

8 Die Aufführung der Tragödie im Sittlichen, die das Absolute mit sich selbst spielt.

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RAFFAELE DE GIORGI - 179

quantidades, começaram a correr pelo mundo, atravessar as regiões


e a experimentar a constituição paradoxal do direito, a estrutura
paradoxal da soberania, a paradoxal distinção das formas de igual-
dade. Paradoxal é o direito, pois a distinção entre lícito e ilícito
começa a partir de si; paradoxal é a estrutura da soberania, pois o
povo é soberano porque é desprovido de poder; paradoxal é a igual-
dade porque ela é o outro lado da distinção da qual o outro lado é
a desigualdade. Quanto mais os indivíduos são iguais como cida-
dãos, mais os cidadãos são desiguais como indivíduos.
A evidência destes paradoxos impede que as estruturas, so-
bre as quais são construídos, operem sem pressupostos. De fato,
os pressupostos são rapidamente procurados e determinados. Con-
tinua fundamental a determinação estrutural das razões, sua es-
pecificação nacional, a integração político-administrativa dos
indivíduos através das prestações da organização estatal da políti-
ca. Assim, liberam-se os espaços daquelas prestações sociais que,
desde os primórdios da sociedade moderna, tiveram propósito
cognitivo, pois sua repulsa à normatividade e ao “dever ser” parece
ser constitutiva. Em outras palavras: declaram-se exauridas as fi-
losofias da história e a experiência do “dever ser” e afirma-se uma
semântica de autoregulação que, agora, será chamada liberdade.
O homem da comunidade do mundial é o homem livre. O mode-
lo de autoregulação é desenhado pelo mercado que, para além da
metafísica, é somente uma organização da economia. Como o
mercado organiza a liberdade da comunidade mundial em um
espaço que se estende a toda terra, também a política, pela sua
competência universal sobre temas da comunicação, organiza a
democracia. O mundo tem, como se diz, uma nova ordem. Por-
que a expansão e a velocidade alcançada pelos media de difusão
tornam possível a experiência da simultaneidade dos aconteci-
mentos em todas as regiões da terra e permitem a explicação des-
tes acontecimentos através das simplificadas construções de cadeias

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180 - DIREITO, TEMPO E MEMÓRIA

causais, começou-se a usar o termo globalização. Um termo que


serve para exprimir a experiência dos eventos em um mundo que
se continua a considerar povoado de homens surpresos, pois a vida
do mundo (Weltleben) teria destruído seu mundo da vida (Le-
benswelt). Na realidade, se surpreendem porque a ordem do mun-
do não mais corresponde à ordem da razão e porque esta se revela
incapaz de controlar a indeterminável complexidade, que se der-
rama sobre um mundo que fora imaginado como uma conexão de
organizações iguais e livremente ordenadas segundo justiça e di-
reito, mas que, ao contrário, se apresenta como incompreensível
horizonte de irredutíveis indeterminações.
Recorre-se, ainda uma vez, à razão, pede-se ajuda à ética,
tenta-se reconstruir hierarquias que permitam observar do alto
um mundo que, na verdade, é inobservável por um observador
colocado na interminável planura de sua superfície. Representam-
se esquemas de ordem que prevejam organizações supranacionais,
polícias internacionais, tribunais universais. Em seguida, celebram-
se os direitos do homem que sempre acompanharam as aventuras
e os paradoxos da razão. Atualiza-se o velho repertório dos últi-
mos fundamentos: paz e segurança, liberdade e subjetividades
ameaçadas, ordem e justiça podem ser recuperados pela comuni-
dade mundial, por meio de um discurso racional e livre de sujeitos
críticos, ou seja, racional e livre. São os discursos que justificam a
política do “Tolerância Zero”, as políticas de segurança, aquele jus
ospitalitatis universalis que alguns países oferecem aos estrangei-
ros e, especialmente, meu país – Itália – destina aos extracomuni-
tários. São os discursos que justificam as guerras humanitárias e,
nos últimos tempos, as bombas atômicas sem danos colaterais,
que prefiro chamar bombas inteligentes, pois são as únicas que
fazem emergir o deserto do jardim dos caminhos que se bifurcam
da ordem do mundo. É o discurso que justifica a diferença entre
interno e externo, substituto funcional da velha distinção entre

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RAFFAELE DE GIORGI - 181

amigo e inimigo. É o discurso que justifica a guerra invernal no


Tibet, guerra esplendidamente descrita por Dürrenmatt, na qual
se inventa continuamente o inimigo, a administração protege e
destrói e são enforcados guardiões que se iludem em não ser guar-
diões, mas crêem ser prisioneiros.

III
Os limites de um pensamento deste tipo derivam das hiper-
simplificações histórico-causais, de seu antropologismo e da in-
determinação natural que atribui às imagens de imagens
características objetivas. É uma questão de teoria do conhecimento.
Permitam-me, mais uma vez, afrontá-la recorrendo a Dürrenmatt.
Nos seus “Stoffe”, se lê: “Aquilo que chamamos história universal
se assemelha, em um primeiro momento, a um olhar lançado so-
bre a nebulosa de Andrômeda. Esta também se encontra inalcan-
çável no passado, dois milhões e meio de anos atrás; a luz que
avistamos não partiu dos primeiros raios da humanidade e não
pode interpretar as cadeias de dedução nas quais se baseiam as
consciências astronômicas”.9 Maturana, de modo muito mais con-
ciso, afirmou: tudo aquilo que é dito, é dito por um observador.
Um maior nível de abstração conceitual nos permite observar aqui-
lo que o imediatismo faz aparecer revirado e indeterminado. A
luz que cobrimos é um reflexo da realidade da luz de Andrômeda,
que é uma construção da astronomia. Nossos olhos repetem uma
operação que a história do mundo realizou infinitas vezes. Sem-
pre igual, sempre diversa, projetada sobre uma imagem sempre
igual, sempre diversa. Isto tudo vale também para a objetividade

9 Was wir Weltgeschichte nennen, gleicht vorerst einem Blick auf den
Andromedanebel. Auch dieser liegt unerreichbar in der Vergangenheit,
zweieinhalb Millionen Jahre zurück, sein licht, das wir erblicken, verliess ihn
im ersten Auffdämmern der Menschheit, auch er ist nicht zu deuten ohne die
Ketten von Folgerungen, auf die sich die Erkenntinisse der Astronomie stützen.

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182 - DIREITO, TEMPO E MEMÓRIA

do mundo, que se reproduz, de forma igual ou diversa, na história


de quem a observou, ou seja, de quem a usou como referência para
suas operações. Se interpretarmos a frase de Maturama de modo
que o observador realize uma operação que possa ser exclusiva-
mente social, que se reproduz somente na sociedade, ou melhor,
produza só sociedade, podemos, então, afirmar que aquilo que se
chama objetividade é unicamente um correlato das operações que
produzem sociedade. É um horizonte que se constitui através de
experiência interior (Erlebnis). Esta, por sua vez, é experiência in-
terior das possibilidades de construção do horizonte de outras
experiências interiores. Aquilo que se chama sujeito é a represen-
tação consciente do limite interno da constituição do mundo. Se
o mundo é este horizonte e se correlaciona à construção de expe-
riências interiores, sua constituição se dá concomitante à diferen-
ciação da sociedade.
Esta desconcretização do mundo permite determinar os con-
fins da sociedade como limites de uma sociabilidade que se repro-
duz a partir de si e que retorna sempre a si. Sociedade produz
sempre e somente sociedade. O horizonte se expande com a ex-
pansão da sociedade; o mundo se expande com sua expansão. O
que se produz com a produção da sociedade é sentido, ou seja,
determinação que fixa uma possibilidade e reenvia a outras possi-
bilidades. Assim, mundo é o horizonte de possibilidades que se
reproduzem para cada atualização de sentido. Neste contínuo atu-
alizar e potencializar, aquilo que é improvável torna-se provável a
partir de si. Chamamos isto de evolução. Agora, o que se chamava
história do mundo pode ser observado como evolução da socieda-
de. Esta sociedade é sociedade mundial porque é a única socieda-
de que temos; porque, notoriamente, determina seus confins;
porque o mundo é o horizonte das possibilidades sempre abertas
e atualizáveis; porque esta experiência pode ser objeto de expecta-
tivas que, por sua vez, podem ser objetos de expectativas. Esta

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RAFFAELE DE GIORGI - 183

experiência do mundo é experiência da contingência, ou seja, da


possibilidade do outro (Anderssein), uma possibilidade que não é
vista como falta, mas como simulacro de alternativas que conti-
nuamente se reabrem. O mundo é o longo horizonte do qual se
desdobra todo o possível, mas onde também tudo é possível. Este
mundo pressupõe sociedade como estrutura seletiva, como, nas
palavras de Luhmann, ordem auto-substitutiva (selbstsubstitutive
Ordnung) da seletividade, como contexto das operações que a tor-
nam possível e que tornam possíveis as operações que a tornam
possível. De fato, não se pode pensar em um antes e em um de-
pois. Se a comunicação social é a operação que possui capacidade
universal de recordação, a sociedade é a estrutura universal das
possibilidades universais de recordação da comunicação social.
Sociedade mundial, escreveu Luhmann, é a produção, o aconte-
cer, a verificação do mundo nas comunicações.10 Vejamos como é
possível entender esta formulação.
Sociedade mundial é o resultado de evolução. Esta existe sem-
pre e em toda parte. Isto nos leva a negar a plausibilidade das
descrições histórico-causais. Na sociedade mundial se realiza um
constante incremento da seletividade da estrutura social, ou me-
lhor, das possibilidades de experiência que conduz à emergência
contínua de ordens redutivas, que tornam possível a experiência
concreta. Estas ordens redutivas (reduktive Ordnungen) são cha-
madas de sistemas sociais, que se constituem com base na dife-
renciação. Uma sociedade assim construída não tolera mais um
centro, pois não pode mais conter em seu interior um lugar de
representação da sociedade na sociedade. Verifica-se, portanto, uma
transferência da centralidade das estruturas normativas para es-
truturas cognitivas de organização da experiência possível. Da
mesma forma, se dá o envelhecimento das estruturas hierárquicas

10 Weltgesellschaft ist das Sich-ereignen von Welt in der Kommunikationen.

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184 - DIREITO, TEMPO E MEMÓRIA

e verticais que, antes, predominavam na sociedade. Transforma-


se, em outros termos, a orientação da vantagem evolutiva que pos-
sibilitou as formas preponderantes de diferenciação em outras
sociedades. Permanecem velhas, mas devem ser reestruturadas em
função da constituição heterárquica dos sistemas sociais. A van-
tagem evolutiva se dirige àqueles sistemas sociais que são estrutu-
ras baseadas em uma ordem cognitiva. Nos sistemas científico e
econômico, por exemplo, esta orientação já existia no início do
processo de estabilização funcional dos sistemas funcionais dife-
renciados. Também o direito, como direito positivo, apresenta cada
vez mais a prevalência das características cognitivas. No mesmo
sentido o sistema político, que deve reforçar sua sensibilidade di-
ante de uma opinião pública que o torna mais vulnerável. Esta
última aumenta sua função política como reserva dos temas capa-
zes de contínua renovação e, portanto, fortemente caracterizada
por uma postura cognitiva.
A dimensão da seletividade social onde se manifesta, de
maneira marcante, a perspectiva cognitiva é, sem dúvida, a di-
mensão temporal. Nesta dimensão, a contingência do possível
caracteriza a experiência do mundo de modo dúplice. Em relação
ao presente, a contemporaneidade dos eventos torna o mundo ino-
bservável, justifica a constituição de ordens altamente redutivas e
motiva sua contínua revisão. Pense-se nas reformas e na contínua
pressão para reformar as reformas. Em relação ao futuro, a con-
tingência se apresenta na forma de um futuro aberto no qual tudo
é possível, ou seja, na forma de um horizonte de não-saber. A base
de sustentação mais confiável é dada pelas organizações que po-
dem continuamente rever os programas decisórios pelos quais o
agir é orientado. Este aspecto do futuro torna obsoleto qualquer
significado do passado como reserva do saber e, portanto, como
referência plausível para a construção de expectativas no presente.
Todo evento que será produzido no futuro conduzirá à revisão,

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RAFFAELE DE GIORGI - 185

construída no presente, da seqüência dos eventos e imputará cau-


salidade a um certo passado. Como Aureliano Buendia, em “Cien
años de soledad”, que uma noite acordou para trás, este modo de
temporalidade, pela qual o mundo se reflete e se manifesta na
comunicação, obriga a desenvolver estratégias de controle da con-
tingência do mundo, ou melhor, técnicas de sua calculabilidade.
Nas sociedades em que predominava uma postura normativa e
uma estrutura hierárquica, estas técnicas eram largamente ofere-
cidas pelas estruturas normativas: o direito, a propriedade, a es-
cassez dos recursos, a exclusão do acesso à comunicação social, o
estamento, a diferença. Na sociedade mundial, estas técnicas são
obsoletas, porque sua capacidade de vincular o futuro é limitada e
tende a desaparecer. Nesta sociedade, o vínculo do tempo se pro-
duz na forma de risco. Este é a técnica da imputação de eventos
quando se verifica um dano que se queria evitar. Risco significa
que uma outra decisão poderia evitar o dano que se produziu. Ele
é construção de um observador. Não existem situações nas quais,
como se diz, exista um risco. Ele é o necessário não-saber de todo
saber. Isto significa que é possível evitar um risco, mas somente
nas condições de correr outro risco, sem saber qual. Desta pers-
pectiva as chamadas políticas de segurança não somente não têm
relação nenhuma com segurança, como incrementam o risco. É
um dado da experiência o fato de que as estratégias de segurança
aumentam o risco, pois (i) se fundam em experiências passadas,
em percepções causais, redutivas e esquemáticas, (ii) não podem
calcular o incremento da contingência que se coliga a sua própria
ativação e (iii) constituem somente técnica da produção do con-
senso, da tranqüilização da opinião pública. As políticas de segu-
rança produzem um considerável aumento das expectativas em
face do sistema político e têm, por conseguinte, a função de re-
introduzir na comunicação política temas que podem ser tratados
por meio dos princípios, valores, interesses. Uma condição que

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186 - DIREITO, TEMPO E MEMÓRIA

reforça a ilusão da centralidade do sistema político e de sua capa-


cidade – como se afirma através de um divertido eufemismo – de
governar a sociedade.
Por causa da específica forma de diferenciação que a carac-
teriza, a sociedade mundial não pode manter a velha centraliza-
ção na distribuição das possibilidades de acesso à comunicação
social. Esta função e as formas de condicionamento relativo são
atribuídas aos sistemas sociais. Esta situação não garante mais que
a inclusão em um sistema social implique também a inclusão em
outro. Produz-se, assim, uma diferenciação entre inclusão e ex-
clusão que aumenta o risco e diminui a interdependência. Porque
existe inclusão somente porque existe exclusão, a especificação e a
generalização das formas de inclusão na sociedade mundial con-
duzem a um contínuo incremento da exclusão. Se inclusão pode
ser entendida como técnica do tratamento da relevância dos indi-
víduos como “pessoas”, pode-se, então, afirmar que, nesta socie-
dade, cresce de modo incontrolável a quantidade de não-pessoas.
Outras sociedades colocavam à margem as não-pessoas, quando
os limites naturais de uma cidade ou de um estado assinalavam os
confins de uma sociedade. A sociedade mundial não tem estas
preocupações. Ele pode inviabilizar os corpos, pode esquecê-los,
mas os conserva sempre no interior de um espaço físico que não
mais delimita o espaço da comunicação sócia. Esta sociedade pode
tolerar desigualdades, heterogeneidade, diferenças em um altíssi-
mo nível. As semânticas que se desenvolvem e que acompanham,
de forma distante, as operações da estrutura social ocultam os pa-
radoxos constitutivos de uma sociedade que pode alcançar pata-
mares inimagináveis de barbárie produzidos pelo seu normal
funcionamento, o qual podemos corretamente chamar de aquisi-
ções evolutivas.
Ocultando os paradoxos constitutivos, estas semânticas pos-
sibilitam, naturalmente, o funcionamento dos sistemas sociais, mas

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RAFFAELE DE GIORGI - 187

impedem de se observar as potencialidades efetivas e imanentes


desta sociedade. Cada sistema social reconstrói e reinterpreta, em
seu interior, a sociedade inteira. Em outras palavras: a sociedade
mundial se observa continuamente com olhos de múltiplos ob-
servadores. Torna-se necessário, então, formular a idéia de histo-
ricidade desta sociedade. Tanto as semânticas pelas quais a
sociedade se descreve, como as formas da seletividade com as quais
as estruturas operam, começam sempre a partir de si; elas sempre
se consideram como referência para seu início. Por isto, não existe
início e, nem mesmo, continuidade. Com suas operações, a socie-
dade se torna imprevisível, surpreende-se a si mesma. Por esta
razão, o olhar sobre a nebulosa de Andrômeda vê sempre a mesma
luz que é sempre diversa.

IV
A descrição de um sistema que se encontre em um determi-
nado estado não pode ser realizada por meio da descrição de to-
dos os elementos que caracterizam o estado deste sistema. Sistemas,
cujo logaritmo do número dos possíveis estados é tão grande quan-
to sua estrutura, são indetermináveis. Luhmann nos conta que
Maturana, uma vez, afirmou que “poder-se-ia descrever um orga-
nismo vivo através da descrição de todas as moléculas necessárias,
mas, dessa forma, nunca se poderia compreender exatamente aquilo
que se verifica na realidade: a autopoiesis da vida”.11 Um sistema
vivente – o mesmo vale para um sistema social – não pode ser
indeterminável. Ora, o observador de um sistema depende da dis-
tinção que se utiliza e que permite isolar um lado em relação ao
outro. A sociedade mundial apresenta confins claramente defini-

11 Man könnte einen lebenden Organismus beschreiben durch Bechreibung aller


dazu notwendigen Moleküle, nur würde man damit genau das nicht erfassen,
worauf es ankomme: die Autopiesis des Lebens.

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188 - DIREITO, TEMPO E MEMÓRIA

dos. Ela evolui, se estabiliza, opera como estrutura seletiva que


opera continuamente. Ela aplica a si mesma esta seletividade. Ela
opera sempre em relação a si e, portanto, não pode ser indetermi-
nável para si. Da concatenação de operações seletivas nasce a for-
mação dos sistemas. Chamo de complexidade um princípio da
formação de sistemas. Por meio desta, é possível observar ordens
complexas como seleções e a distinção que a guia como a diferen-
ça sistema/ambiente. Estruturas seletivas são estruturas de rela-
ções e de relações entre relações. Pode-se efetuar a descrição destas
estruturas através da observação das distinções e das distinções de
distinções que se combinam reciprocamente. As ordens comple-
xas que se produzem deste modo são ordens condicionadas pela
história das seleções que as constituem. Estruturas seletivas deste
tipo deixam emergir a contingência e também permitem observar
de que modo se determina continuamente uma relação contin-
gente entre complexidade e contingência. Luhmann definiu com-
plexidade como “princípio da forma que gera forma”.12 Forma, no
sentido usado por Spencer Brown, é a unidade de uma distinção.
A primeira distinção – já dissemos – é a distinção sistema/ambi-
ente. Com ela o sistema observa a si mesmo; a seletividade retor-
na a si. Citemos, ainda, Luhmann: “Do ponto de vista do método
da distinção, complexidade não é outra coisa que uma distinção,
na qual o problema da seletividade se representa, a saber, se repre-
senta em um dos lados da diferença. No conceito de complexida-
de, a seletividade se refere a si, em uma forma que, naturalmente,
não vem determinada”.13

12 Formgenerierendes Formprinzip.
13 Unterscheidungs-methodologisch gesehen ist Komplexität ja nicht anderes als
eine Unterscheidung, in der das Problem der Selektivität wiedervorkommt,
nämlich auf der einen Seite der Unterscheidung wiedervorkommt. Im Begriff
der Komplexität wird die Seletivität, freilich in dadurch bestimmter Form, auf
sich selbst zurückbezogen.

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RAFFAELE DE GIORGI - 189

A esta altura é claro que a descrição da complexidade não


pode ser efetuada com base em reduções a específicos fatores cau-
sais, particulares elementos, leis, princípios, escopos. Assim como
a seletividade, também a descrição implica “inserção de um fator
auto-referencial”.14

V
Toda descrição do mundo e da sociedade mundial se expõe
ao mundo e à sociedade mundial. O observador não pode obser-
var as distinções que ele usa para efetuar suas observações. Como
a sociedade, também o observador é exposto a outras observações
que usam outras distinções. A descrição oculta uma latência que
sempre pode ser diversa. Esta latência possibilita ver a descrição
como contingente, o mundo como construção e ambos como pres-
tação da sociedade. Nesta, não existe lugar para fundamentos,
ontologias, talvez nem mesmo, para o espírito absoluto e, tam-
pouco, para a crítica se, com esta, se entende o uso de uma distin-
ção melhor que as outras. O observador que observa um outro
observador não é um observador melhor, mas somente um outro
observador que vê a distinção utilizada pelo primeiro e não pode
ver sua distinção.
Existe uma pintura de Salvador Dalí denominada “Dalí, aos
seis anos, enquanto soergue a pele da água para observar um cão
adormentado sob a sombra do mar”. Na esperança que seu país
alcançasse a democracia, José Saramago, o grande escritor portu-
guês, escreveu, em 1974, o primeiro de trinta poemas nos quais
buscava exprimir “a angústia, o medo e também a esperança de
um povo oprimido que, aos poucos, vence o conformismo e orga-
niza a resistência até a batalha decisiva”. Saramago se inspirou no

14 Hinzufügung eines selbstreferentiellen Faktors.

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190 - DIREITO, TEMPO E MEMÓRIA

quadro de Salvador Dalí e concluiu “nada existe sob a sombra que


a criança soerguera como uma pele escoriada”.
E o observador? Respondo com as palavras de Saramago: pode
“olhar em outra parte a própria sombra com olhos invisíveis e sorrir
enquanto as pessoas procuram perplexas onde não existe nada”.

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RAFFAELE DE GIORGI - 191

O DIREITO NA SOCIEDADE DO RISCO


IREITO

1.
“Humanidade é um papel humorístico”. Assim escreveu
Novalis, em um de seus Fragmentos, no final do século XVIII.
Uma afirmação surpreendente em um período em que a poesia
romântica celebrava, no sombrio interior dos indivíduos, a gran-
diosa universalidade do gênero humano e a sublime experiência
do mundo. Também o mundo, naquele período, iniciava uma car-
reira de sucesso como conceito jurídico e político. Somente um
século depois, Nietzsche teria dito que o mundo não é outra coisa
senão uma praga cristã. Um conceito limite ao qual endereçamos
toda nossa necessária ignorância.
O horizonte inevitavelmente se distancia quando dele nos
aproximamos com nosso saber sobre o mundo. Humanidade e
mundo, humorismo e paradoxo. Uma distinção que converge em
um ponto cego e que representa a unidade da diferença que a
produz. Esta unidade não é nada mais que a razão. No século
XIX, a razão iluminista, que permitiu constitucionalizar o direito,
ainda que devesse fechar-se em si mesma como razão dos parti-
culares, registrou sucessos e reconhecimento na organização dos
Estados e na regulação jurídica das ações.
Foi conferida dignidade jurídica para a humanidade dos ho-
mens, tratados como cidadãos dos Estados. Do ponto de vista
jurídico, foram negadas as diferenças em relação à qualidade da
natureza das pessoas. Kant podia esperar uma sociedade universal

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192 - DIREITO, TEMPO E MEMÓRIA

dos cidadãos do mundo. Feuerbach tornou absoluta a idéia do


humanismo do homem e o protegeu das ameaças da religião.
Continuou, assim, a obra do outro Feuerbach, que contribuíra para
a civilização do direito penal. Uma obra que, mais tarde, tornou
possível a formalização do ilícito e a delimitação da incerteza da
intervenção punitiva.
De outro lado, os primeiros códigos racionalizaram a experi-
ência jurídica. Conferiram estrutura às expectativas dos particula-
res, tornaram objeto de expectativa as expectativas de acesso ao
direito, de cálculo racional das ações dos particulares e do Estado.
Enquanto os juristas pensavam que o progresso da humanidade
garantiria aos povos existência segura e os ampararia em uma gran-
de comunidade do mundo, no direito público – mas também no
comercial e no internacional –, a afirmação da idéia de mundo
alarga e estabiliza relações e parece corresponder à expansão uni-
versal da razão, que teria abandonado, no passado, a barbárie do
direito penal e identificado o progresso com o reconhecimento da
humanidade dos homens.
De um lado, humanidade e razão. De outro, o direito do mun-
do e as leis do mundo. Por um século, até o limiar do século XX,
estes conceitos permitiram à sociedade se representar e descrever
sua diferença. Representar a distância que a separava do passado e
imaginar a construção de seu futuro como progresso. Humorismo –
um humorismo trágico como aquele que os personagens de Piran-
dello recitavam – e paradoxo eram velados, ocultados.
De fato, só na primeira metade do século XIX, a humanida-
de podia ser representada através da perversa redescrição das dife-
renças entre raças, enquanto a razão política dos Estados, que
começavam a se considerar nacionais, revelou-se razão justifica-
dora das guerras como razão de Estado e, portanto, como violên-
cia legítima. Ao mesmo tempo, o direito dos códigos, que nasceu
do direito dos particulares, manifestava-se cada vez mais como

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RAFFAELE DE GIORGI - 193

direito daqueles a quem Kant chamou senhores de si mesmos, ou


seja, daqueles que tinham interesses a tutelar e dispunham dos
respectivas meios de tutela. Uma humanidade, uma qualidade de
cidadãos que a industrialização limitava a uma minoria sempre
mais restrita, constituída por aqueles que, oportunamente, eram
chamados de abastados. Hegel podia considerar o Estado como
realização da idéia ética e atribuir à razão ocidental e ao seu limite
temporal – o direito – a cidadania européia. No mundo, dizia Hegel,
deve-se comandar. Na malvada infinidade, deve-se comandar. Para
a política dos Estados, isso significa que o mundo deve ser civili-
zado e que a humanidade inferior, aquela que vivia na exclusão da
razão, deveria ser colonizada. Guerra de povos e guerra de raças.
Foi assim que os Estados nacionais, os sistemas jurídicos consti-
tucionalizados e a cultura ocidental apresentaram-se ao século XX.
Um século que, muitas vezes, conheceu a destruição da huma-
nidade, com o mundo transformado em teatro da guerra. Hegel afir-
mou: “não é nada além que a representação da tragédia na eticidade
que o absoluto eternamente recita consigo mesmo”. Uma represen-
tação na qual a humanidade adquire o papel do humorismo trágico
e o mundo, que não tem papel, torna-se o espaço sem tempo, o
confim do não-saber. Enquanto a razão se manifesta finalmente como
ponto cego, paradoxo da fundação, referência destituída de referên-
cias, a mesma razão – que, segundo Kant, está além do tempo, aquela
pela qual o tempo inicia, aquela que, como razão dos particulares,
dos Estados e do mundo, inicia o tempo – não pode dizer sobre si
mesma que é racional. O século passado, mas também este que co-
meça, vincularam seu tempo histórico ao paradoxo da razão.

2.
Naquela razão o direito moderno encontrou força, sustenta-
ção e legitimação. Era uma razão que utilizava referências exter-
nas, às vezes diversas, que conectava sua descontinuidade e se

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194 - DIREITO, TEMPO E MEMÓRIA

apresentava como progresso, emancipação ou liberação. Trata-se


do querer divino, da ordem do mundo, da natureza humana ou da
natureza dos homens e das coisas. Assim, aquelas referências jus-
tificavam o direito da igualdade ou o direito da diferença; o direi-
to de fazer a guerra ou o direito de defender-se; o direito que
inclui e o que exclui. Mas a razão não agia somente como funda-
mento. Operava como parasita no interior do direito por meio das
variadas multiplicidades das figuras dogmáticas, de suas conexões
e elisões. Podia ser razão de Estado ou dos privados, razão de in-
teresse do particular ou de interesse coletivo, razão da tortura ou
da moderação da pena, razão inquisitória ou acusatória. O parasi-
ta sempre agiu; funcionou, inclusive, para requerer, em nome da
humanidade, um direito superior ao direito. Um direito humano,
tantos direitos humanos, que justificam a pena de morte e a mor-
te da pena, a ordem do mundo e mundo da ordem, o nascimento
em nome do Senhor e a morte em nome do povo, a guerra huma-
nitária e a humanização da guerra. A humanidade é o ponto cego
das distinções que devem ser sublimadas. Um véu grotesco sob o
qual os escritores contemporâneos de textos jurídicos e sociológi-
cos “procuram perplexos onde não existe nada”.
Aquela razão condensou seguranças, desenvolveu um uni-
verso semântico de certezas, identidade e estabilidade. Motivou
representações do futuro como resultado de um projeto racional
que realizaria condições melhores para a sociedade. Mas a socie-
dade não realiza projetos, não persegue fins e não opera com base
em princípios. A sociedade é como é. Da mesma forma, o direito
da sociedade também não persegue fins, não se realiza nem se
conclui com a realização de um fim, mesmo que este se refira à
humanização, justiça ou ordem.
A semântica da razão representou-se como semântica da
sociedade moderna. Mas, diante da modernidade da sociedade
moderna e da não-identificação desta sociedade com as socieda-

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RAFFAELE DE GIORGI - 195

des precedentes, a semântica soube apenas declarar a modernida-


de como seu projeto falido. Podia fornecer somente idéias norma-
tivas e, não podendo desvelar o paradoxo de sua racionalidade e
renunciar à representação do futuro como dever ser, protege-se do
presente declarando a sociedade moderna como sociedade do ris-
co, sociedade em risco. Diante do risco, indica ulterior recurso à
razão: a escolha racional, a redução do dano, um direito orientado
às conseqüências, as agências de risco, uma tecnologia cautelosa,
uma política da compaixão, uma ordem universal da boa vontade,
um banco moral, uma ciência limitada pela bondade dos fins. Por
trás da argumentação da razão existe um outro horizonte de cer-
tezas: a moral. Um outro paradoxo encontra-se no fato de que a
moral não pode dizer, sobre si mesma, se é ou não moral, assim
como a moral do risco não conhece o risco da moral.
Mas o que é representado como risco na sociedade do risco?
O que está em risco nesta sociedade: o direito, a política ou a
própria sociedade? A que se contrapõe o risco? Qual o outro lado
da distinção em que um dos lados é a sociedade do risco? Segu-
rança? Estabilidade? Compaixão? Ordem? Ou ainda: racionali-
dade, crítica, reflexão? O risco da sociedade do risco é uma questão
que interessa às operações da estrutura da sociedade ou uma ques-
tão relativa ao caráter das descrições da semântica, por meio das
quais a sociedade se observa?

3.
Desde o momento em que a sociedade moderna começou a
considerar-se moderna, as características da modernidade estão
em mudança contínua. As semânticas que representaram aquelas
características também estão em freqüente mudança. No plano
das operações realizadas através da estrutura da sociedade moder-
na, aquilo que caracteriza sua recursividade é a capacidade de au-
totransformação. A sociedade moderna, em outras palavras, é

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196 - DIREITO, TEMPO E MEMÓRIA

caracterizada pelas ordens que se substituem a partir de si e, por-


tanto, pela contínua produção daquilo que é outro. Esta sociedade
torna-se instável a partir de si e não pode ser observada através da
distinção entre ordem e desordem. Ordem e desordem não po-
dem se confrontar. Podemos dizer, então, que, no âmbito de suas
operações, a sociedade moderna não tolera nenhuma ontologia.
Esta sociedade depende, inexoravelmente, de si; é deixada, como
escreveu Luhmann, a si mesma, sem alternativas.
As observações dos aspectos estruturais que fazem a dife-
rença (a modernidade da sociedade moderna) permitem-nos con-
siderar as seguintes conseqüências. Primeiro, a dimensão temporal
diferencia esta sociedade das outras. Ela é moderna. Esta mesma
dimensão, todavia, identifica esta sociedade consigo mesma. A
contínua auto-instabilização – aquilo que continuamente é outro
– torna grave o problema do presente, mas também a questão do
futuro. O presente não pode mais ocultar seu paradoxo constituti-
vo, que o torna um tempo que não tem tempo. O presente adquire
o caráter de um valor limite que marca a diferença entre passado e
futuro. Do mesmo modo, o futuro, a dimensão temporal daquilo
que pode ser outro, põe, continuamente, o presente diante da ne-
cessidade de dispor de vínculos que delimitam a possibilidade de
ser outro, que tornem o presente objeto de expectativa de modo
que, qualquer que seja o evento, saiba-se agir.
A segunda conseqüência é que a sociedade moderna não se
identifica continuamente com o passado: sua memória é ininter-
ruptamente exposta àquilo que é outro, ou seja, a uma realidade
autoconstituída, a uma realidade que não requer justificação e não
permite que se faça alguma coisa. A memória – função que conti-
nuamente reconstrói a unidade da diferença entre recordar e es-
quecer – torna possível a adaptação da sociedade à realidade que
ela mesma constrói para si. Através da recursividade das opera-
ções e da contínua adaptação à realidade, estabilizam-se estados

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RAFFAELE DE GIORGI - 197

do sistema da sociedade que a vinculam à sua realidade. Trata-se


daquilo que von Förster chamava de autovalores ou sinais de mo-
dos estáveis de comportamentos. Na sociedade moderna, estes au-
tovalores não são mais a humanidade, a razão ou o mundo. Os
autovalores produzidos têm a forma da contingência, ou seja,
uma forma modal da substituibilidade, daquilo que pode ser ou-
tro, que poderia ser outro e daquilo que poderia ter sido diferente
de como é ou foi.
A terceira conseqüência deriva do fato de que, a estas condi-
ções, a sociedade soma informações de si mesma e se constrange a
orientar-se entre variação e redundância, oscilando entre a produ-
ção daquilo que é outro e a utilização daquilo que foi. Se conside-
rarmos que tudo o que acontece, acontece no presente, podemos
ver que, nesta sociedade, não podem existir centros de controle,
autoridades que ofereçam últimas garantias, seguranças na cons-
trução da realidade ou certezas para o futuro. Os vínculos que a
sociedade precisa para construir o futuro podem assumir, unica-
mente, o caráter modal da contingência. Podia ser diverso de como
é. Poderia ser diverso de como é.
Compreende-se, então, por que a sociedade moderna repre-
sentou-se através da semântica do movimento, da ação e de uma
racionalidade que orienta e oferece garantia com base na correla-
ção racional entre meios e fins. Ora, esta semântica exauriu seu
potencial descritivo porque a sociedade emancipou-se dos auto-
valores estáveis a que recorreu no passado. Emancipou-se da ra-
zão e do paradoxo de sua racionalidade.
Nestas condições, a sociedade não tolera verticalidade ou
hierarquia, não tolera idéias normativas ou limites externos. O
limite da sociedade é o mundo e o mundo é o horizonte das pos-
sibilidades. Horizonte dentro do qual aquilo que é possível pode
sempre ser atualizado. O mundo expande-se com a expansão da
sociedade, ou seja, com a expansão da comunicação social. Como

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198 - DIREITO, TEMPO E MEMÓRIA

esta sociedade é a única que existe, podemos chamá-la de socieda-


de mundial. Sociedade mundial, escreveu Luhmann, é o produzir-se
do mundo nas comunicações.
A constituição paradoxal desta sociedade requer um contínuo
incremento da seletividade das operações que constituem sua es-
trutura. Isto leva à emergência de ordens redutivas que tornam pos-
sível a experiência concreta. Chamamos estas ordens redutivas de
sistemas sociais. Eles emergem em razão da diferenciação social
que privilegia evolutivamente as ordens que dispõem de estruturas
cognitivas, de estruturas capazes de organizar cognitivamente a ex-
periência possível.
No passado, as ordens redutivas tinham privilegiado estruturas
normativas. Ora, aquelas estruturas tornaram-se obsoletas e consti-
tuem resistências à diferenciação, ou seja, às possibilidades de multi-
plicação da sociedade na sociedade. Estas ordens tornaram possível o
cálculo do futuro com base na exclusão. Enquanto a sociedade mo-
derna opera por meio da inclusão universal, não tolera bloqueios ao
acesso à comunicação social. É verdade que esta sociedade produz
bloqueios ao acesso, mas os produz por causa da inclusão universal.
Não existem mais diferenças de estamentos na sociedade moderna,
não existe mais nobreza, mas existem as favelas e os “Sul” do mundo.
Eles, todavia, são derivados da inclusão e da amplificação das dife-
renças que a estrutura da comunicação social acha racional utilizar.
Ordens redutivas cognitivamente orientadas são a ciência, a
economia, mas também o direito que, por meio de sua positivação,
reorganizou, cognitivamente, sua estrutura. Estas ordens são dota-
das de alto potencial adaptativo e, portanto, evolutivo. A política
também reestruturou-se cognitivamente orientando-se à opinião
pública e à realidade produzida pelas mídias da comunicação de
massas, dispondo-se à contínua revisão de seus programas.
A sociedade moderna e as ordens redutivas que se diferenci-
am em seu interior são máquinas não triviais porque podem apren-

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RAFFAELE DE GIORGI - 199

der a partir de si, são sempre adaptadas à realidade que produzem


e são racionais, não no sentido que orientam suas operações con-
forme premissas de sentido provenientes do exterior, de modelos
ou formas últimas, mas porque produzem, em seu interior, a uni-
dade da diferença entre interno e externo, entre referência a si
mesmo e referência ao exterior. Eles constroem, em seu interior,
aquilo que tratam como seu ambiente.
Assim, se os autovalores produzidos na sociedade moderna
assumem a forma da contingência, se a continuidade na orientação
da seletividade das estruturas das ordens cognitivas deriva da con-
tingência, como é possível construir vínculos com o futuro? Quais
características podem ter estes vínculos do tempo? A questão é par-
ticularmente relevante, caso se considere que a modernidade da so-
ciedade moderna representa-se, antes de mais nada, na dimensão
temporal. Nesta dimensão, de fato, a seletividade das estruturas de
operações manifesta sua contingência. Quanto mais cresce a seleti-
vidade, mais cresce a complexidade: complexidade e contingência
estão em relação de recíproco incremento. Segundo Luhmann, “se-
ríamos tentados a ver a complexidade como medida para a contin-
gência, para a informação, para a informação que ainda falta”.
Quando se diz que a sociedade moderna é sociedade comple-
xa – ou mesmo que é a sociedade da informação –, não se quer dizer
nada mais do que se afirmou aqui, ou seja, não se quer indicar ou-
tras características da modernidade além da correlação entre com-
plexidade, contingência e informação. Mas, quando se afirma que
esta sociedade é sociedade do risco, quer se afirmar a mesma coisa.

4.
O risco condensa uma simbiose particular entre futuro e so-
ciedade: ele permite construir estruturas nos processos de trans-
formação dos sistemas, especificar as emergências de ordens nas
estruturas dos sistemas. O risco é, na realidade, uma construção

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200 - DIREITO, TEMPO E MEMÓRIA

da comunicação que descreve a possibilidade de arrepender-se,


no futuro, de uma escolha que produziu o dano que se queria
evitar. Dessa forma, risco está ligado ao sentido da comunicação e
é relevante por este aspecto, não pelos vestígios que podem existir
na consciência. O risco estabelece a necessidade de um cálculo do
tempo segundo condições que nem a racionalidade nem o cálculo
da utilidade nem a estatística podem fornecer indicações úteis. Nestas
condições de não-saber, aquilo que, realmente, se pode saber é que
cada redução ou minimização do risco aumenta o próprio risco.
Nesta circularidade, condensa-se, também, o fato de que renunciar
ao risco significa renunciar à racionalidade. Significa renunciar ao
controle das possibilidades de seleção que nascem da possibilidade
de um sistema construir, em seu interior, a unidade das distinções
das referências que orientam suas operações.
Disto deriva a necessidade de decidir sabendo que outra de-
cisão poderia evitar o dano que deveria verificar. Mas se isto deve-
ria acontecer, aconteceria no futuro. É por isto que a sociedade
moderna representa o futuro como risco. Se o representa, o cons-
trói. Esta é a simbiose da qual falávamos. Trata-se de uma simbi-
ose que torna possível o tratamento racional da contingência, uma
acomodação da contingência que mantém aberto o espaço da pos-
sibilidade de produção de eventos. A contingência permanece
aberta tanto em relação aos eventos que podem ou não ser seleci-
onados – e, para cada uma destas seleções, podem ou não gerar
cadeias de conexão de eventos – , quanto em relação ao dano, que
pode ou não verificar-se.
A conexão entre risco e contingência é, portanto, também a
conexão entre risco e complexidade. Uma é a outra parte da outra
parte. Do mesmo modo que a complexidade, o risco também é
um princípio de formas que geram formas, de distinções que ge-
ram distinções, de vínculos que se unem e, ao mesmo tempo, se
desprendem de uma realidade destituída de conexões com qual-

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RAFFAELE DE GIORGI - 201

quer realidade. O risco tem, ainda, a função de produzir realidade,


ou seja, conexões observáveis entre eventos.
Destas considerações deveria estar claro que a alternativa ao
risco não é a segurança. A idéia de segurança nega a contingência.
Estamos seguros disto. Aquela idéia, todavia, deriva sua seguran-
ça do exterior, de estabilidades artificiais como a natureza dos
homens, da racionalidade das relações entre meios e fins, de qual-
quer ontologia ou de observações relativas ao passado. Em relação
ao futuro, entretanto, todo este material não pode dizer nada. Não
se pode saber, conforme o título de um famoso livro, “quanto é
seguro, suficientemente seguro”. Aquilo que podemos saber da
experiência é que o incremento das medidas de segurança produz
o incremento do risco, sem que se saiba qual risco. Uma afirmação
que não requer nenhuma prova: basta observar o que surgiu nos
últimos dois anos como conseqüência das políticas de segurança
ativadas em algumas áreas do globo terrestre ou, então, basta pen-
sar nas conseqüências que se conectam às medidas de segurança
ativadas pelo direito penal dos Estados nacionais.
O círculo do risco é fechado e se apresenta, mais uma vez, o
paradoxo de uma inevitabilidade que pode ser evitada, em rela-
ção à qual se pode fazer alguma coisa. De fato, se nos liberamos
do fascínio ilusório e ameaçador da idéia de segurança e, como
alternativa ao risco inerente às decisões do sistema, considera-
mos perigo a possibilidade de verificação de um dano no futuro
que uma outra decisão não poderia evitar, poderemos observar,
então, que, na sociedade moderna, se produz redução do perigo
e incremento do risco. O saber que provinha da religião, da cos-
mologia e da verdade mágica é substituído, na sociedade mo-
derna, pelo não-saber sobre o futuro, pela oportunidade de agir
para evitar a inevitabilidade de aceitar o futuro que vier e se ar-
repender, no futuro, por não ter feito alguma coisa ou por ter
feito algo determinado.

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202 - DIREITO, TEMPO E MEMÓRIA

O risco, então, é uma característica estrutural da complexi-


dade da sociedade moderna, de sua temporalização, da simbiose
com o futuro, do paradoxo do presente, da ecologia do não-saber.
O risco dos modernos não tem qualquer relação com o perigo dos
antigos. O risco dos modernos expande o potencial para as deci-
sões, duplica a possibilidade de escolha, racionaliza a incerteza
(no sentido que permite ativar mecanismos de sua absorção), bi-
furca os caminhos do agir possível e duplica suas bifurcações. As
alternativas multiplicam-se e, em relação ao futuro, esta multipli-
cação é racional.
Observa-se, assim, como esta característica estrutural da socie-
dade moderna retira os pressupostos da racionalidade clássica, torna-
a impotente, desacredita em suas certezas, despedaça sua ontologia,
impõe aos sistemas sociais diferenciados pretensões de racionalidade
que os constrange a uma contínua autotransformação.
Esta característica das operações decisórias dos sistemas so-
ciais nos permite observar como aquelas condições da sociedade,
tratadas como contraditórias, são, na realidade, paradoxos consti-
tutivos da modernidade. Nesta sociedade, existe mais pobreza
porque existe mais riqueza, mais não-saber porque existe mais
saber, mais risco porque existe mais segurança, menos informação
porque existe mais informação e, por fim, menos direito, porque
existe mais direito. Podemos continuar com o paradoxo da demo-
cracia, da participação, com a realidade da opinião pública que é
menos informada quanto mais fagocita informação ou com o
ambiente que, quanto mais destruído, mais difundidas são as po-
líticas ambientalistas ou, ainda, com os projetos de desenvolvi-
mento que, quanto mais se tornam realidade política ou econômica,
mais aumentam as diferenças entre os chamados desenvolvimen-
to e subdesenvolvimento.
Não se trata de uma racionalidade limitada, como poderia
pensar Simon. Trata-se, na verdade, da emergência de estruturas

Raffaele_De_Giorgi.p65 202 7/2/2006, 15:16


RAFFAELE DE GIORGI - 203

de ordem em relação às quais aquela velha racionalidade não con-


segue entender o paradoxo. Estamos fora do tempo das formas
que tinham validade universal, como diz, mais uma vez, Novalis,
em um de seus Fragmentos. Mas isto também vale para o direito.

5.
Também o direito é um vínculo do tempo, uma modalidade
de controle do futuro do ponto de vista da diferença lícito/ilícito. O
direito, todavia, não pode proibir o risco. De fronte ao risco, o direi-
to manifesta seus limites e deve recorrer às estratégias que reduzam
o risco do tratamento jurídico do risco. De outro lado, a política é
sempre mais a destinatária de prevenções de minimizações do risco,
de reduções do risco a níveis toleráveis. Mas as decisões da política
assumem a forma jurídica. A política, agora, descarrega, sobre o
direito, o risco de suas decisões. Como as possibilidades de tratar o
risco tornam-se obsoletas, não se manifestam apenas os riscos deri-
vados do tratamento dos riscos que se quer evitar, mas se estabiliza
uma legislação, uma modalidade de produção legislativa do direito
que sobrecarrega e deforma a conceitualidade jurídica.
O direito, então, não consegue imunizar-se do risco do di-
reito. Fragilizam-se figuras dogmáticas estabilizadas. Surgem no-
vas figuras dogmáticas que impõem, aos atores particulares do
direito, controle do risco ou que sancionam comportamentos líci-
tos se, em virtude do exercício do direito, são produzidos danos
que se queriam evitar. Surgem novos problemas de determinação
causal de efeitos produzidos a distância no tempo e implicam uma
imprevisível quantidade de fatores causais concomitantes. Multi-
plicam-se tentativas de alcançar determinações causais aceitáveis
por meio de contínuos deslocamentos e incalculáveis inversões do
ônus da prova. Estendem-se as previsões de justiciabilidade de
interesses não claramente definíveis e constelações de riscos não
precisamente determináveis.

Raffaele_De_Giorgi.p65 203 7/2/2006, 15:16


204 - DIREITO, TEMPO E MEMÓRIA

Alarga-se, por intermédio da jurisprudência, a capacidade


de aprendizagem do sistema jurídico e, com isso, estende-se a ten-
dência de repolitizar temas do risco que a política despejara sobre
o direito. Mas a tendência que mais largamente se afirma é aquela
de uma transferência do tratamento do risco do direito para a
economia. O risco monetariza-se. Como a economia pode tolerar
limitadamente a externalização do risco produzida por outros sis-
temas sociais, ativa formas de securitização do risco, as quais, por
sua vez, incrementam atitudes de risco.
Esta circularidade nascida essencialmente do fato de que as
situações de risco não se deixam configurar como situações pro-
blemáticas de tipo normativo, constrange o direito a práticas de
aplicações pactuadas pelo direito. Conferem ao juiz, de uma par-
te, e ao sujeito de direito, de outra, um poder de contratação que
estende continuamente as margens de tolerância do ilícito. O
mesmo processo sobrecarrega-se de imprevisibilidade e obtém sem-
pre menos controle do tempo de sua duração e mais incerteza
sobre seu resultado. Desenvolve-se, assim, uma atividade admi-
nistrativo-regulatória que expõe a burocracia a um ininterrupto
processo de aprendizagem, turva as questões da responsabilidade
e alarga a margem de erro. Multiplicam-se os interesses admiti-
dos como merecedores de tutela e ampliam-se os conflitos e as
colisões entre os interesses que podem ser tutelados. Política e
direito predispõem-se a contínuos processos de aprendizagem para
os quais falta o tempo de elaboração reflexiva. Com isso, afirma-
se uma prática de pôr à prova, reciprocamente, as soluções. Uma
recíproca irritação, um recíproco observar e observar-se. Ambos
os sistemas são expostos a um stress cognitivo em virtude do qual
a normatividade das expectativas perde, crescentemente, seu sig-
nificado e função originais. Estende-se a produção jurisprudenci-
al do direito, sem que a jurisprudência possa produzir estabilidade
conceitual. O que, em realidade, se verifica é uma contínua irrita-

Raffaele_De_Giorgi.p65 204 7/2/2006, 15:16


RAFFAELE DE GIORGI - 205

ção jurisprudencial da política por meio da sensibilidade reativa


da opinião pública.
O enfraquecimento da função normativa do direito e a tem-
poralização cada vez mais marcada pela validade normativa trans-
formam as expectativas dirigidas ao direito. O direito fornece
sempre menos garantias contra as desilusões, enquanto o acesso
ao direito torna-se um acesso de risco. O problema mais grave
que o sistema jurídico deve enfrentar é originado pela dificuldade
do sistema jurídico em aceitar suas próprias condições de risco.
Em outros termos, o direito não consegue controlar sua própria
instabilidade temporal através do recurso à função tradicional-
mente desenvolvida pela normatividade, isto é, através da valida-
de: fornecer a certeza que será, igualmente, um direito. A certeza
de que haverá um direito independentemente do resultado do
conflito, de qual seja a expectativa, a resistência ou desilusão.
Diante desta condição alteram-se as expectativas dirigidas
ao direito. A política trata o direito como um lugar da sociedade
no qual se experimenta com soluções que são postas à prova. O
público substitui a velha certeza de que existirá um direito pela
nova certeza de que, no futuro, poderá haver outro direito que
fornece reconhecimento às possibilidades de agir atualmente ex-
cluídas. O próprio direito reage à indeterminação de tarefas que
lhe são confiadas pela política, por meio da acentuação de sua
dimensão temporal. O sistema jurídico orienta-se sempre mais à
casualidade e não, como inicialmente ocorria, à casuística; atua
crescentemente de modo não sistemático, é cada vez mais sensível
a um ambiente em que demonstra poder aprender a ser indiferen-
te. Generaliza-se, assim, uma forma de ilegalidade fixada, aceita,
uma difusa mediação de ilegalidade pactuada. É como se a viola-
ção do direito constituísse mais o resultado de um agir normaliza-
do no direito, e menos um aspecto estrutural das operações dos
sistemas sociais. Não é o resultado de uma negação do direito.

Raffaele_De_Giorgi.p65 205 7/2/2006, 15:16


206 - DIREITO, TEMPO E MEMÓRIA

Uma ilegalidade estrutural que não é somente tolerada, mas é cla-


ramente estimulada.
De outro lado, quando a sociedade trata o futuro como um
risco que depende de uma decisão, o direito desta sociedade vin-
culará o próprio reconhecimento às possibilidades de controle do
risco. O direito não consegue ver se a economia utiliza novas es-
cravidões sem que se produza desordem social, mas com a expec-
tativa de que este uso escravocrata da força de trabalho reduza de
algum modo a forma e a periculosidade social dela derivadas. Tam-
bém não pode ver se a destruição de parte da Amazônia implica
interesses convergentes. Se os danos produzidos pelos comporta-
mentos ilícitos são extensos e grandes, então a medida adminis-
trativa se adapta melhor do que a penal.
O direito, em outros termos, constrói hierarquias e priorida-
des de bens jurídicos, os quais não representam, absolutamente,
qualidades ontológicas de coisas, de situações ou de fatos, mas
constituem o reflexo invertido da disponibilidade para tolerar a
violação estrutural do direito. Em um sentido muito diverso da-
quele que, há cerca de um século, empregou Kelsen, podemos di-
zer que o ilícito, a violação do direito é o pressuposto do
funcionamento do direito. Constitutiva é a estrutura do processo,
a qual age de modo seletivo seja em relação ao acesso ao direito,
seja em relação ao resultado da intervenção do direito. Na Itália,
quase a totalidade da assistência domiciliar aos idosos é desenvol-
vida por mão-de-obra clandestina, proveniente de países do leste
europeu. Uma lei neo-fascista regula o fluxo migratório de modo
a tornar quase impossível o ingresso, na Itália, de pessoas advin-
das de países extracomunitários. Nenhum daqueles que há anos
trabalham nessas condições de ilegalidade se dirigiria ao direito
para fazer valer tal pretensão ou expectativa. Creio que nunca te-
nha existido um processo contra um desses trabalhadores. Porém,
qualquer percepção de hipotética perturbação da ordem pública

Raffaele_De_Giorgi.p65 206 7/2/2006, 15:16


RAFFAELE DE GIORGI - 207

leva-os à expulsão seletiva. Obviamente, nenhum destes traba-


lhadores pode adoecer. Morrer sim: isso é possível e lícito.
O processo, então, é a estrutura seletiva das formas de con-
trole da tolerância política e jurídica em direção à ilegalidade es-
trutural. Mas o processo é, também, o sistema social no qual se
experimenta com a inclusão e com o vínculo de um futuro aberto;
é o sistema social no qual as condições de risco do direito encar-
nam o risco da sociedade do risco. O processo é a estrutura de um
sistema social que discrimina, continuamente, entre inclusão e
exclusão. O processo temporaliza a condição de risco do futuro.
Fornece o tempo de não acessar, o tempo de subtrair-se, o tempo
de esquecer o direito. O processo assinala o limite, a unidade da
diferença entre inclusão e exclusão. Um horizonte móvel que atra-
vés do contínuo recordar e esquecer, ver e não ver, tem sob contro-
le as expectativas de inclusão de uma parte e a intolerabilidade da
exclusão da outra.
No fundo, os direitos humanos. Mais que direitos de proteção
frente à ingerência do Estado, mais que direitos que se possui para
serem tutelados pelo direito, mais que direitos de qualquer ser hu-
mano, compreendida a maioria dos homens que vivem na exclusão,
mais que isto, os direitos humanos são direitos de assistência hu-
manitária. Condensam a angústia, o medo e a ilusão daqueles que
vivem na exclusão. E a humanidade? A humanidade se descobre
verdadeiramente livre quando é violentada. Para o direito, ela é so-
mente um papel humorístico. Assim como para a política.

Raffaele_De_Giorgi.p65 207 7/2/2006, 15:16


RAFFAELE DE GIORGI - 209

A REFORMA UNIVERSITÁRIA EUROPÉIA: ENSINO E


PESQUISA EM DIREITO
IREITO

I
Neste ensaio, buscarei analisar um tema complexo, que inte-
ressa ao debate contemporâneo europeu e latino-americano. Os
atores deste debate são vários e diferenciados. De um lado, os ad-
vogados, que esperam da Universidade jovens habilitados para o
exercício da profissão; de outro, a comunidade científica do direi-
to, que espera Universidades capazes de produzir jovens motiva-
dos à pesquisa. De um lado, jovens que se matriculam nas
Faculdades de Direito porque não possuem motivação para cursar
outra faculdade, porque sonham em combater a injustiça ou com
um emprego público, ou mesmo, porque o pai era advogado. De
outro lado, o sistema político que sente o eco distante das expec-
tativas contrapostas, que as mescla, cria uma massa única e lhe
confere um nome: Reforma.
É assim que o tema do debate torna-se a reforma do ensino
universitário. O principal problema é o seguinte: como conjugar
atividade didática e de pesquisa nas Universidades, sendo que es-
tas têm como função específica formar pessoas que possam in-
gressar no mercado de trabalho – profissionais liberais – e que,
também, sejam eventualmente capazes de orientar as próprias
habilidades à produção de novos conhecimentos, ou seja, que pos-
sam se dedicar à pesquisa?
O problema é muito grave. Na Europa, a separação entre
oferta de profissões e demanda no mercado de trabalho é sempre
maior. Alguns pensam que a Universidade deveria orientar sua

Raffaele_De_Giorgi.p65 209 7/2/2006, 15:16


210 - DIREITO, TEMPO E MEMÓRIA

estrutura de formação à demanda do mercado de trabalho. Isto


não faz sentido. A demanda do mercado de trabalho é presente e
a formação universitária direciona-se ao futuro. Quando as habi-
lidades formadas são oferecidas no mercado de trabalho, a de-
manda é outra. Por exemplo, alguns anos atrás, dizia-se que a
Europa sofria com falta de médicos. Atualmente, somente 30%,
35% dos graduados em medicina encontram trabalho nos primei-
ros cinco anos após o término da graduação. Nestas condições,
seria razoável pensar uma formação universitária generalista e
deixar ao mercado de trabalho a seleção das habilidades. Esta, no
entanto, é, exatamente, a situação que existia antes e que se quis
reformar. Discutiremos, então, a reforma.
Nos últimos dez anos, o processo de integração da União
Européia fez muitos progressos. Existe um espaço livre para as
profissões liberais. Um advogado italiano pode exercer a profissão
na Alemanha ou na França e o mesmo vale para um advogado
português ou espanhol. Para isso, criou-se a possibilidade de de-
senvolver parte do percurso formativo nos diferentes países da
União. Isto requer critérios seletivos, valorativos e formativos ho-
mogêneos. A partir da metade dos anos 90, os ministros da cultu-
ra de alguns países europeus começaram a ter encontros – primeiro,
informais e, depois, formais –, estendidos a um número sempre
maior de países, cuja finalidade era criar um espaço comum de
formação universitária européia.
Elaborou-se um sistema de créditos, chamado créditos de
formação. A cada crédito corresponde uma quantidade de traba-
lho individual e de atividade didática a serem desenvolvidos nos
cursos. Os cursos de graduação são divididos em dois períodos: o
primeiro, com duração de três anos, é chamado período de forma-
ção básica; o segundo, com duração de dois anos, é o de formação
especializada. O título obtido após o período de três anos deveria
habilitar o aluno para ingressar no mercado de trabalho dos em-

Raffaele_De_Giorgi.p65 210 7/2/2006, 15:16


RAFFAELE DE GIORGI - 211

pregos públicos. O período de dois anos é necessário para exercer


a profissão liberal de advogado, participar do concurso de ingres-
so na magistratura e no tabelionato. Antes de ter acesso a essas
possibilidades, é necessário passar, com sucesso, por dois anos de
escola forense. Esta é administrada, conjuntamente, pelas Uni-
versidades, pela magistratura e pelas ordens profissionais.
Para aqueles que decidem dedicar-se à pesquisa, existe um
programa de estudos de nível superior: o doutorado. Em italiano,
para sublinhar o significado específico deste tipo de formação, o
curso denomina-se doutorado de pesquisa (dottorato di ricerca).
São estas as linhas da reforma, iniciada nos anos 2000-2001, que,
atualmente, depois da primeira experiência, é objeto de nova re-
forma. Para que se possa compreender quanto é grande a separa-
ção entre princípios declarados, fins abstratamente perseguidos e
a realidade, trago somente um exemplo. Na Itália, antes da refor-
ma, a realidade das faculdades de direito era a seguinte: um terço
dos estudantes inscritos graduava-se no período previsto de qua-
tro anos; um terço precisava de 6, 7, 8 anos; um terço nunca con-
seguia concluir o curso. Dizia-se que a evasão universitária
alcançava cerca de 60%, 70% dos estudantes. Um dos fins espe-
cificamente perseguidos pela reforma era eliminar a evasão uni-
versitária. Por isto, na reforma, é prevista a redução e a
simplificação dos programas de graduação, a obrigatoriedade de
freqüência, a organização de cursos conjuntos orientados à re-
cuperação dos créditos perdidos. Deste modo, todos os estudan-
tes inscritos no novo curso de graduação com duração de três
anos deviam se graduar em três anos. Ano passado, em junho,
graduaram-se os primeiros estudantes que, há três anos, com o
início da reforma, inscreveram-se na Universidade. Em minha
faculdade, no ano 2000-2001, havia mil estudantes matriculados.
Destes, em junho de 2004, graduaram-se somente três. Estes são
os primeiros resultados da reforma.

Raffaele_De_Giorgi.p65 211 7/2/2006, 15:16


212 - DIREITO, TEMPO E MEMÓRIA

Gostaria de refletir sobre alguns problemas que permane-


cem abertos e que a reforma deixa sem solução. Os juristas conhe-
cem muito bem este problema. Nos textos sagrados e místicos das
declarações políticas está escrito: as Universidades – e, portanto,
também as faculdades de direito – são instituições que perseguem,
simultaneamente, o fim da didática e da pesquisa. Interpreto do
seguinte modo: didática orientada à aquisição de habilidades des-
tinadas ao mercado de trabalho e ao exercício da profissão; pes-
quisa orientada à pesquisa e pesquisa orientada à didática. O
problema é saber como realizar simultaneamente tudo isto. Em
meu curso de filosofia do direito, tenho aproximadamente seis-
centos, setecentos estudantes. Alguns têm formação clássica, ou-
tros freqüentaram escolas científicas e os demais provêm de escolas
técnicas. Alguns têm grande interesse em relação ao direito, ou-
tros – e são a maioria – não sabem o que fazem na faculdade de
direito. Esta mesma disciplina aparece com outro nome no curso
de especialização. Qual linguagem devo usar? Um escrevente deve
saber a diferença entre direito positivo e direito natural? Provavel-
mente, não. Deste modo, restringiu-se o espaço das disciplinas
filosóficas, sociológicas e teóricas até quase anulá-las. Há poucos
anos, estas matérias chamavam-se disciplinas fundamentais da
ciência jurídica. O mesmo discurso é, também, válido para o di-
reito privado e para o direito penal. Um escrevente deve ou não
saber direito das obrigações? Deve conhecer o direito de família
ou o direito sucessório?
Existem, ainda, outras questões que podem ser levantadas.
Como construir, na formação jurídica de base, integração entre
formação teórica e formação prática? A resposta costuma ser: a
formação prática acontece após o cumprimento do biênio de es-
pecialização. No entanto, quem tem, efetivamente, necessidade
de formação prática é aquele que, depois de três anos, deveria en-
trar, diretamente, no mundo do trabalho.

Raffaele_De_Giorgi.p65 212 7/2/2006, 15:16


RAFFAELE DE GIORGI - 213

E mais: o que significa pesquisa no âmbito do direito? Qual


o objeto da pesquisa? O que faz o jurista universitário concreta-
mente quando faz pesquisa sobre direito?
Como se vê, a reforma deixa em aberto todos os problemas
cruciais do ensino e da prática do direito que conhecemos desde
que o sistema jurídico tornou-se sistema de direito positivo.
Pessoalmente, sou interessado pela pesquisa sobre o direito e
sustento que a reflexão sobre o significado da pesquisa nos permi-
te formular, de modo diverso, todos os problemas que acabamos
de acenar. Não é meu interesse criticar a Reforma, muito menos
posso indicar soluções capazes de resolver os problemas. Os pro-
blemas sociais sempre têm muitas soluções diferentes, mas as so-
luções dependem da formulação dos problemas. Refletiremos,
então, sobre o sentido da pesquisa no direito e veremos quais as
conseqüências decorrentes. Gostaria de começar pela estrutura do
curso de doutorado, de modo a delinear a situação do ensino jurí-
dico na Itália e observar quais idéias podem ser formuladas. Te-
nho certeza que a partir de uma nova concepção sobre pesquisa
seja possível trazer indicações úteis para uma nova concepção da
didática.

II
Os cursos de Pós-Graduação foram criados na Itália pela lei
de reforma do ensino universitário, de 1980. Até aquela data, exis-
tiam na Itália somente Cursos de Especialização, Escolas de Es-
pecialização e Institutos superiores. Eram estruturas que forneciam
qualificações científicas específicas em determinados campos.
Destinavam-se, sobretudo, à formação profissional e apenas par-
cialmente à pesquisa. Na década de 70, foram tomadas medidas
legislativas urgentes para a Universidade, destinadas a qualificá-
la não só no âmbito didático, mas também no âmbito da pesquisa.
Essas medidas legislativas permitiram a um grande número de

Raffaele_De_Giorgi.p65 213 7/2/2006, 15:16


214 - DIREITO, TEMPO E MEMÓRIA

jovens um vínculo com a Universidade, na qualidade de pesquisa-


dores com contratos temporários de direito privado, com a dura-
ção de dois anos, renováveis até o máximo de quatro anos. Assim,
a Universidade passou a contar com um enorme contingente de
novos pesquisadores contratados a título precário. Isso forçou uma
completa revisão da organização da docência superior. Em parti-
cular, houve necessidade de uma clara diferenciação entre ativida-
de didática e atividade de pesquisa e, paralelamente, de integração
dessas modalidades, de estruturação orgânica da docência e de
regulação das formas de acesso às carreiras universitárias, garan-
tindo um recrutamento que privilegiasse jovens que tivessem ad-
quirido uma formação específica para a pesquisa.
A legislação de 1980 introduziu a diferença entre professo-
res de “prima fascia” (na denominação italiana, “ordinários”, na
nomenclatura brasileira, “titulares”) e professores “seconda fascia”
(associados); estabilizou as figuras que estavam na Universidade a
título precário, instituindo o cargo de pesquisador; aboliu a figura
do assistente, que passou a ser um quadro em extinção; criou os
cursos de doutorado, destinados à formação de jovens que dese-
jassem se dedicar, exclusivamente, à atividade de pesquisa, objeti-
vando uma preparação científica que os habilitasse ao ingresso na
carreira universitária. Naturalmente, a obtenção dessa formação
não constitui garantia de acesso à carreira. Ter o título não é pres-
suposto necessário para participar de concurso universitário. Além
disso, não há qualquer proporção entre as vagas disponíveis na
carreira universitária e a quantidade de pesquisadores que adqui-
rem o título de doutor.
Os pressupostos para o acesso ao doutorado são, acima de
tudo, a conclusão do curso de graduação (que prevê um exame
final e a defesa de uma tese de láurea – monografia de final de
curso) e, depois, um exame de admissão para o curso de pós-gra-
duação. O exame de ingresso constitui-se de prova escrita, prova

Raffaele_De_Giorgi.p65 214 7/2/2006, 15:16


RAFFAELE DE GIORGI - 215

oral e averiguação do conhecimento de uma língua estrangeira.


Os cursos de pós-graduação podem ter duração de três ou quatro
anos, de acordo com os diversos currículos fixados no projeto. É
conferida bolsa de estudos para o período do curso. Estrangeiros
podem ingressar no curso depois de passar pelas mesmas provas
de admissão a que estão submetidos os italianos. Para todos os
efeitos, os cidadãos da União Européia estão equiparados aos ita-
lianos. Os cursos de doutorado podem ser organizados por apenas
uma Universidade ou pelo consórcio de várias Universidades. Ao
final, o aluno deve elaborar uma tese de doutorado. O Conselho
de Docentes avalia a tese, sendo que tal avaliação consiste na sus-
tentação oral diante de Banca nomeada pelo Reitor. Aprovado, o
candidato obtém o título de Doutor em Pesquisa, com validade
exclusivamente acadêmica, conferido diretamente pelo Reitor.

III
O doutorado visa a uma melhor capacitação científica para a
pesquisa em âmbitos específicos. Está estruturado por currículos
setoriais organizados com vistas à obtenção de saber especializa-
do. Os currículos podem, também, ser estruturados de modo in-
terdisciplinar, uma vez que objetivam formações não identificadas
com esquemas disciplinares determinados, mas com a obtenção
de conhecimentos especializados, que devem necessariamente
superar os limites das disciplinas individuais. Os cursos, portanto,
são definidos por temáticas estruturadas de acordo com conden-
sações curriculares que podem coligar diversos setores disciplina-
res ou, então, diferenciar o âmbito específico de uma mesma
disciplina.
A caracterização temática diferencia, de modo particular, os
cursos de doutorado das escolas de especialização. Nelas, na ver-
dade, os currículos são constituídos por disciplinas específicas e se
destinam à melhoria de conhecimentos especializados relativos à

Raffaele_De_Giorgi.p65 215 7/2/2006, 15:16


216 - DIREITO, TEMPO E MEMÓRIA

profissionalização básica. A caracterização temática dos cursos de


doutorado constitui um pressuposto obrigatório quer para o de-
senvolvimento da pesquisa, quer para a contínua abertura e dis-
ponibilidade à obtenção do saber. Tudo isso torna viável a formação
dos jovens pesquisadores e professores. Nesse sentido, o doutora-
do é uma estrutura organizada para transferência das inovações
da pesquisa à didática.
Cada tema de pesquisa pode tornar-se tema de um currícu-
lo. Naturalmente, é necessário que o tema adquira estrutura, isto
é, seja organizado segundo currículos de formação. Esta organi-
zação integra, ao longo da duração do curso, o caráter didático e a
dimensão da pesquisa. Dentro do currículo, o doutorado isola o
tema da pesquisa e organiza atividades didáticas que são forneci-
das pelas estruturas universitárias e científicas quer na Itália, quer
no exterior. Segundo uma periodicidade preeestabelecida, são efe-
tuadas verificações do andamento das pesquisas em curso. Não é
difícil notar que a este largo espaço de autonomia na construção
dos temas e dos currículos corresponde, igualmente, um largo es-
paço de autonomia individual do doutorando na organização das
atividades didáticas que este, em conjunto com seu orientador,
entenda que possam auxiliar sua formação. Esse duplo valor da
autonomia confere ao curso de doutorado não tanto o caráter de
curso de estudos pré-estruturados no sentido tradicional do ter-
mo, mas, acima de tudo, um caráter de estrutura original de auto-
organização e integração da didática e da pesquisa, segundo
peculiaridades relativas a determinados âmbitos temáticos.
Na verdade, o pressuposto da originalidade que se requer
para a opção temática, para a escolha do currículo e para a seleção
da pesquisa específica deve encontrar correspondência no caráter
de originalidade que se exige na formação do doutorando. Nesse
sentido, o doutorado que se pode conseguir na Itália está bastante
próximo do doutorado que se obtém na Alemanha, onde, tam-

Raffaele_De_Giorgi.p65 216 7/2/2006, 15:16


RAFFAELE DE GIORGI - 217

bém, não existem cursos específicos de doutorado, mas está pre-


vista uma organização autônoma da pesquisa, objetivando a ela-
boração de tese original. Na Alemanha, a atividade didática para
obtenção do título de doutor não se diferencia da atividade didá-
tica normal de nível universitário. O doutorando, de fato, não é
obrigado a freqüentar um curso específico. Verifica-se, apenas, o
cumprimento dos requisitos previstos para que lhe seja permitido
realizar o exame final de doutorado. Isso acontece algum tempo
antes do candidato ser submetido à discussão oral da tese. Na Itá-
lia, ao contrário, dispõe-se de serviços didáticos, no curso de dou-
torado, que visam à organização da autonomia da pesquisa e do
percurso formativo.

IV
Se os objetivos perseguidos pelo doutorado italiano podem
ser configurados de acordo com as linhas que acabamos de traçar,
não se pode por certo afirmar que esses objetivos, ao final, sejam
efetivamente alcançados ou que subsistam os pressupostos para
que isso se verifique. Isso ocorre por diversos motivos.
O primeiro deles decorre do fato de que, na Itália, as facul-
dades de direito são pouco seletivas. O número de estudantes ins-
critos é altíssimo, assim como são elevadíssimas a evasão escolar e,
também, a dispersão universitária, uma vez que a permanência na
Universidade é, em média, mais elevada nos cursos jurídicos do
que nos demais. Além disso, ao contrário do que ocorre na Ale-
manha, infelizmente, na Itália, não existe incompatibilidade en-
tre exercício da profissão e atividade acadêmica. Isto, contudo, não
produz contatos efetivos ou uma respectiva funcionalização entre
exercício prático do direito e atividade de formação universitária.
Ao contrário. A separação entre os dois universos é total. De ou-
tra parte, não se pode nem mesmo afirmar que as Faculdades de
Direito reproduzam o fechamento da ciência ou da dogmática

Raffaele_De_Giorgi.p65 217 7/2/2006, 15:16


218 - DIREITO, TEMPO E MEMÓRIA

jurídica, entendida como o resultado de uma marcada diferencia-


ção, historicamente estabilizada, entre atividade exclusivamente
didático-acadêmica e atividade profissional. Por fim, não se pode
esconder que as faculdades de direito carecem de qualquer orien-
tação para a pesquisa. Se é plausível discutir as formas de organi-
zação da pesquisa e se é compreensível encontrar orientações
diversas nos cursos que possuam modalidades de integração for-
mativa com a prática profissional, é, porém, certamente verdadei-
ro que não é prevista, nesta realidade, nenhuma atividade de
pesquisa na qual sejam formados os jovens estudantes. Estes são
formados com base numa literatura manualística, que, ainda, os-
cila entre um sempre vivo positivismo, camuflado em modos mais
ou menos originais, e uma cada vez mais desesperadamente ansi-
osa jurisprudência dos interesses. O estudo do direito é organiza-
do no espaço compreendido entre os universalismos, deduzidos
das fórmulas mágicas do direito, e as incompreensíveis especiali-
zações que derivam de delimitações disciplinares, privadas de qual-
quer fundamento possível.
Ao nosso ver, esta falta de transparência e dualidade da for-
mação do jurista pode ser coligada, de uma parte, ao fato de as
faculdades de direito terem se caracterizado, nas últimas décadas,
como um recipiente universal que podia absorver grande quanti-
dade de jovens, com garantia de acesso à Universidade, mas aos
quais não era ofertado nenhum estímulo profissional e nenhuma
orientação motivacional. As faculdades de direito são freqüenta-
das, em larga medida, por jovens que, não sabendo que curso gos-
tariam ou poderiam freqüentar, preferem iniciar um curso que,
supostamente, oferece maiores possibilidades de inserção no mer-
cado de trabalho. Na prática, uma enorme ilusão! A Administra-
ção Pública, o segundo escalão da política, as funções diretivas
dos ministérios e os níveis altos das carreiras militares já estão
lotados de bacharéis em direito. De outra parte, aquela falta de

Raffaele_De_Giorgi.p65 218 7/2/2006, 15:16


RAFFAELE DE GIORGI - 219

transparência pode ser ligada às características da técnica legisla-


tiva e às estruturas de produção do direito. A técnica da legislação
responde sempre menos a critérios de racionalidade programante
e de planificação do futuro e sempre mais a critérios de mediação
política que conduzem à diferenciação contingente de interesses,
à sua tutela e à sua superação. Também o espaço da autonomia
privada, entendida como fonte de produção jurídica, vem regula-
do pelos limites de seu reconhecimento, que aumentam e dimi-
nuem segundo pressões exercidas pelo sistema político. Trata-se
de uma considerável parcela do direito mantida pela rigidez e in-
flexibilidade dos princípios que, tradicionalmente, regiam a inter-
pretação do direito e seu controlável potencial evolutivo.
Além dessas mudanças, acrescentam-se as dificuldades de
autocontrole do sistema jurídico: o espaço das certezas conceitu-
ais se restringe, enquanto aumentam as pressões do ambiente so-
bre o sistema. As conseqüências sobre a formação do jurista são
evidentes: o curso jurídico fornece referências conceituais que têm
a função de observar quanto a produção jurídica distancia-se e se
aproxima dos limites que essas referências conceituais delineiam.
Em razão disso, o saber que pode ser produzido nas Universida-
des oscila entre esquemas universalísticos de princípios desprovi-
dos de fundamento e os particularismos de suas fragmentações
impostas pela contingência.
Se estes pressupostos estruturais delineiam os limites nos
quais se constrói a formação do jurista, como é possível desenvol-
ver pesquisa pura ou aplicada em direito?

V
A pesquisa jurídica tradicional tinha duas grandes linhas de
orientação. A primeira era caracterizada por interesses de nature-
za prevalecentemente dogmática e se desenvolvia sob especialís-
sima tutela positivista. Aqui, tratava-se de estudar a coerência e a

Raffaele_De_Giorgi.p65 219 7/2/2006, 15:16


220 - DIREITO, TEMPO E MEMÓRIA

recíproca integração das construções dogmáticas, o potencial de


expansão da conceitualidade dogmática, a capacidade da dogmá-
tica auto-inovar-se. Os novos achados da produção jurídica vi-
nham filtrados pelas construções dogmáticas a fim de se chegar a
formulações compatíveis com as sedimentações de sentido con-
solidadas pelos esquemas da teoria jurídica. Tratava-se de pesqui-
sas preocupadas em fornecer garantias de legitimação conceitual
e de autotutela do direito produzido pela prática jurisprudencial,
legislativa e regulamentar que brotavam das práticas reconhecidas
pelo exercício da autonomia privada. Nesse sentido, a pesquisa
orientava-se na busca de garantias conceituais de controle da au-
toprodução do direito e de seus limites.
A segunda perspectiva de desenvolvimento da pesquisa, ao
contrário, era voltada para as disciplinas fundamentais da ciência
jurídica. Tinha uma orientação exclusivamente teórica e preten-
dia elaborar “conhecimentos” sobre o direito. Pensava-se que estes
conhecimentos pudessem ser garantidos por modelos teóricos, fi-
losóficos ou políticos de caráter universalístico e que fossem ca-
pazes de conferir fundamento à prática jurídica ou formular críticas
a esta prática. Na realidade, tratava-se de encontrar formas de le-
gitimação da contingência do direito por meio do recurso a técni-
cas da teoria que permitiam utilizar tanto esquemas de descrição
como esquemas de auto-reflexão do direito.
Ao lado destas duas linhas fundamentais que definem a ori-
entação da pesquisa jurídica, desenvolveu-se, com um certo cará-
ter esotérico em relação às exigências mais imediatas da prática
jurídica, uma pesquisa de natureza sociológica, predominantemen-
te empírica, que pensava poder observar o impacto do direito so-
bre o agir social e, assim, extrair conclusões sobre a pretensa eficácia
do direito. Pesquisas desse tipo desenvolveram-se em particular
nas últimas décadas, mas seu potencial descritivo é inversamente
proporcional à ressonância que suscitaram inicialmente e à rapi-

Raffaele_De_Giorgi.p65 220 7/2/2006, 15:16


RAFFAELE DE GIORGI - 221

dez de sua difusão, o que justifica, portanto, o relativo descrédito


com que vem acolhida no âmbito dos estudos jurídicos.
Pensamos que a pesquisa em direito não esteja adequada à
complexidade atingida pelo sistema jurídico em seu atual nível
evolutivo. Entendemos que o sistema jurídico possa desempenhar
e, com certeza, em determinados setores já desempenha, opera-
ções muito mais complexas do que aquelas que a pesquisa sobre o
direito esteja em condições de descrever e de observar por meio
do estudo das integrações da conceitualidade dogmática ou por
meio da auto-reflexão teórica. Sob pressão dos sistemas político e
econômico, caracterizados pela alta variabilidade e incongruência
das expectativas, o direito deve atingir potenciais de mutabilidade
e níveis de auto-irritabilidade altamente complexos. Nestas con-
dições, a pesquisa em direito deve se orientar no sentido da explo-
ração das potencialidades evolutivas do sistema jurídico, ou seja, a
descrição do potencial do sistema para a complexidade organiza-
da. Nesta atividade, a pesquisa contribui para concretização da
racionalidade do direito, se por racionalidade entendermos a ca-
pacidade de que dispõe o sistema para controlar seu ambiente por
meio do controle de si próprio. O problema da pesquisa, então,
não está tanto na determinação de novos direitos e na formulação
das possibilidades de elaboração das pretensões destinadas ao di-
reito, mas, sim, em sua capacidade de descrever as premissas evo-
lutivas do sistema jurídico aos níveis de complexidade atingidos,
de observar o potencial para a elaboração jurídica da complexida-
de do direito, vale dizer, de observar os espaços de racionalidade
do sistema jurídico.
Desta perspectiva, os conceitos dogmáticos descrevem o es-
paço inercial e a determinação estrutural do sistema, ou seja, a
inevitabilidade da auto-reprodução do direito através de suas pró-
prias estruturas e da rede de seus próprios conceitos. A pesquisa a
respeito das pré-condições evolutivas do sistema ocupa-se do es-

Raffaele_De_Giorgi.p65 221 7/2/2006, 15:16


222 - DIREITO, TEMPO E MEMÓRIA

tudo não dogmático da dogmática, desenvolve investigações so-


bre as possibilidades de construção jurídica dos problemas sociais,
examina as condições de elaboração jurídica da complexidade pro-
duzida na política e na economia, isto é, libera o direito do uso
político e do uso econômico do direito. A pesquisa busca deter-
minar as possibilidades de redução da desproporção existente en-
tre o tempo do direito e o tempo da política e da economia.
Como se pode notar, projeta-se um largo espaço para a pes-
quisa que pretenda voltar seu interesse às possibilidades evoluti-
vas do sistema jurídico. A fim de que seja possível atingir tal
objetivo é imprescindível o abandono de todos os resíduos onto-
lógicos, substancialistas e universalistas ainda presentes na teolo-
gia jurídica. O problema da pesquisa transforma-se, assim, no
problema do autocontrole do sistema: a pesquisa explora os impe-
dimentos estruturais que se interpõe à diferenciação funcional do
sistema jurídico na sociedade contemporânea. Na verdade, sabe-
mos bem que existem ordenamentos jurídicos nos quais a dife-
renciação está bloqueada e o direito não consegue opor resistências
às pressões da política e da economia. Nesses ordenamentos, pro-
duz-se uma particular corrupção do código do direito que, por sua
vez, tem como conseqüência a drástica redução da taxa de legali-
dade, que garante a existência da democracia moderna. Penso, es-
pecificamente, no caso italiano, em que a auto-inibição política
do sistema jurídico criou os pressupostos para a eliminação das
velhas estruturas que organizavam o sistema político.1 Isso não
foi resultado de qualquer atividade revolucionária ou da afirma-
ção de grandes ideais políticos. Ao contrário. A incerteza e a con-
fusão políticas são altíssimas. Foi, apenas, um nível mais alto de
diferenciação do sistema jurídico que tornou possível um resgate

1 N.T. O autor refere-se ao movimento “operações mãos limpas”, produzido pela


magistratura italiana contra a máfia e a corrupção no Estado.

Raffaele_De_Giorgi.p65 222 7/2/2006, 15:16


RAFFAELE DE GIORGI - 223

da legalidade. Na sociedade moderna, na verdade, a legalidade


depende da diferenciação do sistema jurídico e de sua especifica-
ção funcional.

VI
Abrem-se, assim, espaços inéditos para a pesquisa em direi-
to. A pesquisa pode contribuir para a identificação dos novos ho-
rizontes da juridicidade, para um crescimento potencial dos
mecanismos reguladores, para a construção de soluções originais
aos problemas sociais. A pesquisa em direito pode contribuir para
a expansão criativa de figuras dogmáticas, orientadas em sentido
funcional, ou seja, ocupadas com a busca de alternativas úteis para
solução de problemas. De maneira indireta, a pesquisa pode con-
tribuir para a diferenciação do sistema, ou seja, pode permitir a
visualização dos obstáculos que se opõem à evolução do direito.
Isto significa que a pesquisa pode contribuir para o alargamento
das fronteiras da legalidade e, conseqüentemente, para a demo-
cratização do sistema político.
Não sabemos se e em que medida o doutorado pode satisfa-
zer estes pressupostos. Existem dificuldades estruturais relativas à
formação dos juristas na Universidade e, também, fortes resistên-
cias nas corporações acadêmicas. Julgamos, porém, que a discus-
são sobre a pós-graduação deve se ocupar da estrutura e função da
pesquisa em direito e individualizar, sem preconceito, os percur-
sos a serem abertos em direção ao futuro. Trata-se de um futuro
que não pode ser projetado utilizando-se das categorias sagradas
da dogmática tradicional. Mas se trata, igualmente, do futuro de
um sistema determinado pela sua estrutura.
Essa estrutura é sedimentada pela influência do velho Ilu-
minismo e, no curso do século, foi submetida a perigosas e trági-
cas involuções. A estratégia do futuro, ao nosso ver, pode ser
caracterizada, exclusivamente, pela pesquisa das formas de con-

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224 - DIREITO, TEMPO E MEMÓRIA

quista de graus mais altos de racionalidade do sistema jurídico.


Racionalidade é – repetimos – potencial de autocontrole do siste-
ma. Altos graus de racionalidade, capazes de adequar a complexi-
dade do sistema à complexidade do ambiente da sociedade,
representam uma conquista improvável, mas não impossível. Lem-
bremos que, na sociedade contemporânea, esta conquista pode
representar o desafio da pesquisa em direito, sob o influxo de um
novo Iluminismo, voltado à busca de graus mais altos de legalida-
de e, conseqüentemente, de democracia.

ESTE LIVRO FOI COMPOSTO EM FONTE ACASLON REGULAR 11/15


E IMPRESSO EM PAPEL PÓLEN 70 G/M2 NAS OFICINAS DA
GRÁFICA PAYM

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