MEMÓRIA
TODOS OS DIREITOS RESERVADOS. Proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio ou processo, espe-
cialmente por sistemas gráficos, microfílmicos, fotográficos, reprográficos, fonográficos, videográficos. Vedada a memorização
e/ou a recuperação total ou parcial, bem como a inclusão de qualquer parte desta obra em qualquer sistema de processamento
de dados. Essas proibições aplicam-se também às características gráficas da obra e à sua editoração. A violação dos direitos
autorais é punível como crime (art. 184 e parágrafos do Código Penal), com pena de prisão e multa, busca e apreensão e
indenizações diversas (arts. 101 a 110 da Lei 9.610, de 19.02.1998, Lei dos Direitos Autorais).
DIREITO, TEMPO E
MEMÓRIA
Tradução de
Guilherme Leite Gonçalves
Pesquisador da Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas
Doutorando em Sociologia do Direito pela Universidade de Lecce, Itália, sob a
orientação de Raffaele De Giorgi
ISBN 85-7674-101-6
Contato: editora@quartierlatin.art.br
www.quartierlatin.art.br
Dedicatória ...................................................................... 7
Agradecimentos ............................................................... 9
Apresentação .................................................................... 11
I
Direito e Memória, 35
A Memória do Direito ..................................................... 37
Roma como Memória da Evolução .................................. 63
Niklas Luhmann: o futuro da memória ............................ 89
Heinz von Förster (1911-2002) ....................................... 95
II
Teoria dos Sistemas e Direito Penal, 105
Direito e crime no século XXI ......................................... 107
Direito penal e teoria da ação entre hermenêutica e
funcionalismo ................................................................... 125
AGRADECIMENTOS
GRADECIMENTOS
APRESENTAÇÃO
PRESENTAÇÃO
I
Traduções de textos relacionados à teoria dos sistemas são
freqüentemente consideradas problemáticas.2 Esta reclamação não
é privilégio dos leitores de língua portuguesa.3 Os problemas de
tradução decorrem do baixo grau de inserção da literatura sistê-
mica nos círculos acadêmicos. Ao desprezar modelos clássicos,
privilegiados nas faculdades de ciências humanas, a criatividade
sistêmica nunca foi vista com bons olhos4 , o que impediu o de-
II
Ainda que o autor tenha participado do processo tradutó-
rio, os textos reunidos não se filiam ao conceito de fidelidade em
tradução.10 É óbvio que não foi feita uma mera transcodificação
de palavras e expressões. A moderna teoria da tradução já se en-
carregou de desmistificar a idéia de que tradução é um translado
automático entre duas línguas.11 Faz parte de um processo criati-
vo que utiliza interpretação. Afirmava-se que uma boa tradução é
aquela que oculta a intervenção do tradutor, aquela que o texto
original flui da melhor maneira possível na língua de chegada.
Deste modo não se vê o tradutor, apenas o autor. Neste contexto,
texto traduzido é sinônimo de texto fidedigno. No entanto, como
afirma Benedetti, sobre a tese da invisibilidade do tradutor, “há uma
imprecisão”.12 Eu diria um paradoxo: quanto maior a fluência do
texto traduzido – e, portanto, a invisibilidade – maior a interferên-
cia do tradutor – sua visibilidade.13 Para o texto transcorrer na lín-
gua de chegada, o tradutor teve que manipular o original,
transformá-lo e adequá-lo ao novo idioma. Para o produto não ser
10 Sobre esta idéia ver BRITTO, Paulo Henriques. Entrevista. In BENEDETTI, Ivone
C. e SOBRAL, Adail (Orgs.). Conversas com tradutores: balanços e perspectivas
da tradução. op. cit., p. 93.
11 Esta idéia é denominada empirista. Para crítica contemporânea, ver BENEDETTI,
Ivone C. Prefácio. In BENEDETTI, Ivone C. e SOBRAL, Adail (Orgs.). Conversas
com tradutores: balanços e perspectivas da tradução. op. cit., pp. 18-19.
12 Cf. BENEDETTI, Ivone C. Prefácio. In BENEDETTI, Ivone C. e SOBRAL, Adail
(Orgs.). Conversas com tradutores: balanços e perspectivas da tradução. op.
cit., p. 27.
13 Cf. BENEDETTI, Ivone C. Prefácio. In BENEDETTI, Ivone C. e SOBRAL, Adail
(Orgs.). Conversas com tradutores: balanços e perspectivas da tradução. op.
cit., p. 27.
III
Foi dessa perspectiva que, neste livro, buscou-se estabelecer
um critério tradutório dos textos e conceitos sistêmicos. O objeti-
vo é criar, em língua portuguesa, nomes que reflitam a precisão
luhmanniana para que esta teoria possa atingir o leitor brasileiro.
Como já afirmado, existe uma dificuldade muito grande para tra-
duzir a terminologia sistêmica, o que bloqueia a difusão de seu
pensamento. Sem a presunção de criar uma “tradução canônica”,41
pretendeu-se, nesta obra, estabelecer uma coerência em relação
aos termos elaborados em língua alemã por Luhmann, de modo a
reduzir a ambigüidade e a controvérsia conceitual produzida pela
recepção internacional desta teoria.
Sem dúvida nenhuma, a principal celeuma se concentra na
tradução do código comunicativo do sistema jurídico: Recht/Un-
recht. Encontra-se, na literatura jurídica brasileira, vasta opção:
“direito/não direito”; “legal/ilegal”; “razão/torto”; “lícito/ilícito”,
“válido/inválido”, “conforme o direito/não conforme o direito” etc.
O código é o núcleo duro de um sistema, aquilo que permite sua
reprodução sem interferência de nenhum elemento presente no
ambiente externo. A comunicação não se reduz ao código, mas
este é um componente fundamental: toda informação emitida só
IV
O objetivo deste artigo e da tradução desta obra de De Giorgi
foi o de contribuir para a difusão do debate sistêmico no ambiente
acadêmico brasileiro. Não tem a pretensão de esgotar ou “canonizar”
determinada terminologia. Procura-se, na verdade, estabelecer um
ponto de partida que, de um lado, possibilite maior precisão nas tra-
duções dos termos luhmannianos, visando ampliar o estudo desta
perspectiva teórica e, de outro, demonstre que, se este processo for
desenvolvido com elementos do próprio modelo, trará importantes
e inovadoras contribuições para a própria teoria da tradução.51
Direito e Memória
A MEMÓRIA DO DIREITO
IREITO
na verdade, nem mesmo perceber por que sua lembrança dos even-
tos reativa, com os eventos, as percepções pelas quais ele viven-
ciou aqueles acontecimentos quando eles surgiram. Ireneo também
não pode pensar. Borges escreve que ele era quase incapaz de idéi-
as genéricas, platônicas. Na realidade, Ireneo não é capaz de reali-
zar cognição, pois não pode construir, para si, uma realidade.
Inventar, para si, uma realidade. Ireneo não tem memória.
2. É este o paradoxo da memória individual, entendida como
recordação, ou seja, como representação de qualquer coisa, de even-
tos, imagens, imagens de imagens que podem ser requisitadas.
Um paradoxo que possibilita ver como isto a que chamamos de
memória não pode surgir de uma relação direta nem com o passa-
do – que não é diretamente acessível a nenhuma observação –
nem com o mundo externo – que não é acessível diretamente.
Nem mesmo aqueles remédios que se davam às crianças para for-
talecer a memória (no meu tempo, chamava-se Biotônico Fontoura),
são diretamente memorizáveis, ou melhor, acessíveis para a me-
mória. O problema do acesso é relevante, porque quando se pensa
a memória como um dispositivo de conservação e manutenção de
qualquer coisa que fora arquivada em um determinado lugar, já se
deve saber como entrar no lugar onde aquilo está conservado. Se a
hipótese platônica da CERA (?- APARÊNCIA OU CÊRA??)
não nos satisfaz, o problema do acesso ainda permanece. As metá-
foras da memória, especialmente na chamada memória cultural,
pressupõem que são conservados instrumentos, reproduções, arte-
fatos: quaisquer entidades que são por si mesmas acessíveis. Mas,
na memória individual, não existe lugar para tudo isto. Assim como
não existe lugar para a memória individual.
Por que Ireneo não tem memória?
“Lá fora”, escreve Heinz von Foerster, “não existe nas coi-
sas nem luz nem cor, mas simplesmente ondas eletromagné-
ticas; ‘lá fora’ não há nem sons nem música, mas simples-
Ou se afirma que:
“Instituições e entidades como nações, Estados, a igreja ou
uma firma não ‘possuem’ memória, mas ‘fabricam’ uma para
si. Por isso, elas servem-se de marcas e símbolos memoriais,
textos, imagens, ritos, práticas, lugares e monumentos. Por
estes meios e exercícios de memória, os indivíduos são dota-
dos de determinada capacidade de memória e, com isto, são
detentores da memória coletiva”.
O ponto mais alto desta transcendência é construído pela
“memória da vontade”. De outra parte, encontram-se refinadas
formulações que, todavia, não se afastam da igualdade Memória =
Depósito e que fundamentam sua descrição por meio da manipu-
lação de conceitos como “Armazenagem e Tradição”, “Ato de ar-
mazenar”, “Reviver” etc.
Essas considerações nos dão motivo suficiente para pensar a
memória sem rótulo e empregar uma expressão mais conveniente.
A memória é uma função que se desenvolve quando o organismo,
ou melhor, o sistema observa as relações entres seus estados e as
conecta. A memória é, então, um modus operandi que continua-
mente é definido e redefinido pelo modo de funcionamento do
sistema e que, ao mesmo tempo, redefine este modo de funciona-
mento. A memória é um fenômeno correlato que acompanha as
operações do sistema. A memória permite um exame contínuo e
consistente das operações do sistema. A temporalidade do sistema
é produzida através da memória. Ela produz o tempo do sistema,
pois permite que ele saiba que todas suas operações são frutos de si
mesmas, ou melhor, que ele, sistema, é determinado por si mesmo.
Por meio da função da memória, o sistema é presente a si
mesmo. Isto permite ao sistema isolar, na rede de contínuos re-
envios simultâneos de modificações de estados, aquela modifica-
ção de estado que pode ser sintetizada como relevante para um
novo comportamento e, conseqüentemente, neste momento, como
tinções que são utilizadas no sistema. Tal ponto cego não é outra
coisa que não a esfera de latência do sistema, em que se constroem
seus próprios valores, que são as formas “que se satisfazem quan-
do um sistema se adapta a uma contínua observação que não pode
ser observada”. Estes próprios valores são as distinções que se di-
ferenciam e não se diferenciam.
Na simultaneidade das operações, o tempo retorna no tem-
po e o sistema do direito se acomoda sempre no presente. Neste
presente, a inobservável latência de todas as observações de obser-
vações se movimenta. Neste presente, que é o tempo da memória,
está em construção a aquisição evolutiva que desenvolve o para-
doxo construtivo da autofundamentação do direito.
Deste modo, podemos ver como o direito organiza uma ges-
tão centralizada dos paradoxos, que nascem da ocultação do para-
doxo constitutivo do direito. Pode-se também constatar como o
direito, através do acoplamento estrutural com os outros sistemas,
constrói suas características e como se estabiliza a regularidade de
um operar que sincroniza as diferentes temporalidades. Podemos
ver, ainda, como o direito está sempre adaptado a um ambiente
externo imprevisível, contra quem age como se estivesse coligado
em série. Esta coligação em série permite ao direito abandonar a
casualidade da intervenção dos acontecimentos. Finalmente, po-
demos constatar como o direito tolera as transformações contínu-
as dos artefatos históricos de sua memória, isto é, como possibilita
e permite o aumento e a extensão da redundância que é produzida
através da comunicação juridicamente relevante.
O sistema inteiro se especifica através do emprego de dife-
renças que a memória do direito submete a um contínuo exame
de consistência. Isto significa também que, por meio de sua me-
mória, o direito regula o grau e realiza a forma de sua autonomia.
Uma forma de dois lados, que a evolução conduziu a um recípro-
co incremento. Dependência e independência crescem juntas, como
existe uma mulher, que todos pensam ser cega como os demais,
mas que, na realidade, pode ver e finge a cegueira para si mesma e
para os outros. A chave do romance é a duplicidade desta mulher.
Alguns acreditam que a memória se encontra em determi-
nados lugares e que seja possível procurar onde foi depositada.
Ou, também, que as sociedades atravessam fases de transição, de
Times-outs, de ruptura, durante as quais se produziriam grandes
destruições. Em outras palavras: uma memória se exauriria e uma
outra começaria uma nova fase, tipologia ou organização. Alguém
que se ocupa do estudo da memória escreveu: “somente por esta
razão fala-se tanto de memória, porque ela não existe mais”. E
continua: “nós vivenciamos um olhar da transição, pois a consci-
ência de uma ruptura com o passado caminha com a sensação de
uma perda da memória”. Mas, se a memória é um conceito expli-
cativo, então não se pode admitir uma perda ou um desapareci-
mento da memória. Pensa-se diretamente em transformações,
rupturas ou transições, mas aquilo que não se pode interromper é
justamente a memória. A ruptura com o passado existe sempre,
pois o passado não existe mais. A memória, de fato, refere-se ao
presente, não ao passado. Como afirmava Dürrenmatt: “Se os pas-
sados fossem anulados, o universo transbordaria sobre nós” – os
passados, não o passado.
Para permanecer no passado e, ao mesmo tempo, na memó-
ria que não pode afastá-lo – e se pudesse veria a si mesma, isto é,
não veria nem mesmo a si mesma –, retomo novamente uma ima-
gem de Dürrenmatt, uma espécie de memória do escritor, que se
encontra em “Labyrinth. Estrofe I-II”. O tema é passado e ima-
gem. “O que nós chamamos história do mundo”, escreve Dürren-
matt, “assemelha-se, igualmente, a um olhar da bruma de
Andrômeda. Esta também se encontra inacessível no passado, dois
milhões e quinhentos mil anos atrás. Sua luz, que nós avistamos,
perdeu-se no primeiro aparecimento da humanidade”. O que ve-
mos, quando vemos esta luz? Nós a vemos agora, sempre agora.
Assim como outros observadores por milhões de anos a teriam
sempre agora observado, se a tivessem podido observar. O que
nós vemos quando vemos esta luz: passado ou presente? Qual pas-
sado e qual presente? Qual realidade tem esta luz? Quem é o ob-
servador? São estes os dois problemas: o observador e a construção
da realidade. O observador é o sistema, a realidade que ele cons-
trói é a realidade de sua memória.
8. Em uma entrevista, perguntaram a Heinz von Foerster o
que era a realidade. Para responder, ele contou uma história: um
sacerdote islâmico cavalgava sobre seu camelo no deserto e se de-
parou com uma briga de três beduínos. Ele os cumprimentou e
perguntou por que brigavam. Um dos beduínos respondeu: “An-
tes de nosso pai morrer, ele nos mandou dividir, entre os três fi-
lhos herdeiros, 17 camelos. O mais velho deveria ter a metade, o
segundo um terço e o último a nona parte. É impossível dividir os
17 camelos deste modo”. O sacerdote refletiu, reuniu seu próprio
camelo aos dos herdeiros e realizou a divisão com 18 camelos. O
mais velho recebeu 9, o segundo 6 e o terceiro 2 camelos. A soma
dos camelos repartidos totalizava somente 17. Dessa forma, o sa-
cerdote retomou seu próprio camelo e continuou sua viagem. Esta
história tornou-se célebre, pois Luhmann a usou em um manus-
crito, que recentemente foi publicado por Gunther Teubner. Na
versão de Luhmann, o número total de camelos é 11. Isto não
altera o resultado. O que era um total de 18 camelos para Heinz
von Foerster, torna-se, para Luhmann, um total de 12. Os 12 ca-
melos permitem que Luhmann escreva uma história das implica-
ções do paradoxo constitutivo do direito e de seu desdobramento.
A história de Luhmann é, na realidade, uma sociologia do para-
doxo. Os 12 camelos, para Luhmann, eram necessários e não ne-
cessários. O camelo tem uma função operativa, possibilita a decisão.
“O camelo é, como símbolo, a soma das possibilidades. Ele é, em
1.
A memória não é uma invenção recente. Recente, entretan-
to, é a redução da memória – e, por conseguinte, sua decadência –
à simples possibilidade de conservação do passado e à capacidade
de recordar, comandar e relembrar este passado exatamente como
aconteceu. Esta é uma decadência que aprisiona a memória justa-
mente no espaço do pensamento “por acidente” e com a qual Aris-
tóteles se ocupará largamente. De fato, com ele, conclui-se uma
primeira grande história da memória.
De acordo com a mitologia, Mnemosyne era uma deusa ti-
tânica, irmã de Kronos e de Okeanos e mãe das Musas. Ela tinha
no sangue – se é que os deuses possuem sangue – a circularidade e
a vagueza, a unidade e a distinção, a especificação e a universali-
zação, o transitório e a permanência. Mnemosyne realizava a fun-
ção poética, que se praticava de forma muito símile ao modo como
se produzia a função profética. Aedo e Vate, cegos que pertencem
às Musas e ao deus, viam aquilo que os outros não vêem. Eles não
somente viam o invisível, como também qualquer coisa que os
outros não viam. Eles penetravam tanto no tempo que não existe
mais, quanto no tempo que ainda não existe. Eles viam, dentro do
seu imediatismo, a ordem do cosmo.
O passado que as filhas de Mnemosyne cantavam não era o
passado que acontecera, mas o conto das origens, a arché, a gene-
alogia do tempo, não sua vulgar cronologia. O passado e o futuro
são presenças que circulam no mundo ultraterreno. Aedo e Vate
podem, de fato, entrar no outro mundo e dele sair livremente, e
1 Ich will Rom sehen das bestehend, nicht das mit jedem Jahrzehend
vorübergehend.
2.
O problema da lógica é o início, dizia Hegel. As estruturas
dos sistemas sociais, todavia, não possuem problemas lógicos. Para
estas estruturas o problema do início é um não-sentido. Cada iní-
cio, para poder funcionar como início, deve já ter começado. Para
poder operar, uma estrutura já deve operar. Ele deve poder se re-
conhecer, vale dizer, deve poder se distinguir e, portanto, saber
que não se concluirá com o próximo evento. “Cada oração”, dizia
Wittgenstein, “deve já ter um sentido”.5 A aceitação ou a negação
da proposição não faz outra coisa além de confirmar ou negar
aquele sentido. Assim, uma estrutura de operações sociais deve
ser capaz de acompanhar as próprias operações. Ela pode conti-
nuar, se produz aquela função que não pode observar senão por
meio das suas operações e que, como um efeito secundário, realiza
uma espécie de “segunda valorização, o que mesmo assim é efetu-
ado como operação”.6 Tal efeito se refere à memória daquela es-
trutura, ou melhor, aquela estrutura é mais precisamente sua
memória, pois “a memória”, como dizia Heinz von Förster, “está
em todo lugar”.7
Até mesmo Roma já existia. Até mesmo ela já tinha sua
memória. Uma memória que já funcionava, para que a cidade
pudesse se reconhecer como Roma, sem se confundir com suas
operações. Era esta a memória que empurrava os eventos ao pas-
sado e cancelava seus vestígios. Ela obscurecia o passado e deixava
a luz cair sobre o presente, ou seja, sobre aquele discrimine que
não tem duração, senão na permanência da própria memória. O
tempo de Roma, o tempo durável, é o tempo desta permanência.
Por meio da sua memória, a cidade atualiza continuamente a pró-
pria identidade, ou seja, reproduz ininterruptamente a própria di-
ferença. Isto não pode se realizar através do recurso à diferença
largamente reconhecida e praticada em relação aos bárbaros, pois
heterodescrições, já há muito difundidas, representavam a própria
cidade como um covil de bárbaros. A diferença em relação ao
ambiente é construída por duas modalidades de autodescrição que
se revelaram muito frutíferas, pois eram particularmente dotadas
de pressupostos e abertas ao futuro, ou seja, capazes de se adaptar,
de forma simples, à evolução social. A cidade constrói para si
mesma uma mitologia da origem e se representa como uma cópia
da ordem do mundo. Depois, as mitologias da origem se multi-
plicarão, se diferenciarão e continuarão por toda a Idade Média e
pelo Renascimento e, quando o domínio político na Europa procu-
3.
O espaço da cidade é o espaço do mundo. A cidade inclui o
mundo. Para os outros povos, a terra é dada com um limite determi-
nado: o espaço de Roma, ao contrário, coincide com o mundo11 , assim
falou Ovídio. A cidade não tem fronteiras, não pode ser delimita-
da. Seu caráter monumental reproduz a grandeza do mundo.
Majestas, se dizia: um termo que indicava grandeza e força, legiti-
midade, quase naturalidade da medida e da posição superior. Em
resumo, diferença na qualidade. O mundo, por sua vez, pertencia
à cidade. A cidade é o todo e o mundo as suas partes. O todo
inclui as partes. O todo é uno e será sempre, até o advento da
modernidade, a unidade da diferença do uno e das suas partes.
Dante o recordará no seu tratado; Gierke o descreverá como idéia
central da Idade Média. Por fim, novamente Ovídio, ele já lem-
brara que todo o mundo estava na cidade12 . Trata-se de uma fórmu-
la chave da semântica da inclusão. Ela identifica o espaço e os
destinos dos eventos que se produzem naquele espaço: a pacifica-
ção e a domesticação do mundo são uma necessidade que nasce
da necessidade de manter a paz na cidade e de impor sua justiça.
Também era comum chamar tudo isto de civilização. Como hoje,
aquela semântica assinalava que, na estrutura das operações sociais,
deviam ter sido experimentadas, com sucesso, práticas capazes de
11 Gentibus est aliis tellus data limite certo: Romanae spatium est urbis et orbis
idem.
12 ingens orbis in urbe fuit.
15 Die evolutionäre Selektion oblag dann der immer prekären Selbstselektion dieser
neuartigen Struktur.
romano, que reges os povos pelo domínio16 , assim canta o poeta. Difuso
e multiforme no interior da cidade, respeitoso nos confrontos da
estratificação, glorioso da sua sacralidade e protegido da sombra
que projeta sua natural justiça, o domínio, se questionado, se direci-
ona ao exterior como guerra.
O domínio torna visível a cidade no mundo. Ele é, na cida-
de, a unidade da diferença entre interno e externo. Ele não pode
ser observado. Pode ser contado, cantado e celebrado. Agora, o
tempo histórico da cidade, o tempo sem início e sem fim, o tempo
que sempre já começou, se confunde com o tempo do domínio.
Sempre presente a si mesmo, o domínio constrói o horizonte de
sentido da memória da cidade. Ele delimita o espaço da percep-
ção na qual se organiza a função seletiva e discriminante da me-
mória da cidade.
4.
Diante da devastação e espoliação praticada pelos romanos e
da certeza que sofreria outras violências, Biocalo, fiel aliado dos
Ampsivarii, pediu aos deuses para revirar o mar inteiro sobre os
romanos, usurpadores de terras. No entanto, o governador roma-
no Avito o avisou que “deve imediatamente se submeter às ordens
do mais habilidoso”17 . Em latino, se diz: é preciso obedecer ao co-
mando dos melhores18 . “Meliores” define os romanos como diversos
por qualidade. Eles também são genus humanum, mas são diversos
dos outros. São, de fato, meliores.
A fundação e o reconhecimento racional do domínio nasce
da diferença entre os romanos e os outros. Os romanos, todavia,
19 Diese Situation würde auch Britannien gegenüber von Vorteil sein, wenn es
rings von Römerwaffen umgeben und so die Freiheit gleichsam seinen Blicken
entzogen würde.
5.
O paradoxo da inclusão foi sempre revelado como repleto de
conflitos. Diferentes formas de resistência se condensavam em
semânticas das quais restavam somente vestígios, que sempre eram
cancelados pela memória da cidade. Muitas memórias sem recor-
dação irritaram a memória da cidade. Muita latência se acumu-
lou. Os gregos eram convencidos da barbárie de Roma e Políbio
tentou corrigir esta opinião difusa para conter o desprezo que ela
despertava. Carneade foi até Roma para provar, publicamente, que
os Romanos não conheciam a justiça e não respeitavam o direito.
Circulavam oráculos que previam um futuro catastrófico para a
cidade e aumentavam o ódio que se sentia contra ela – não so-
mente pelos hebreus, em que o messianismo difundira uma pro-
6.
“As últimas unidades”, escreve Luhmann, “são sempre senti-
dos que um paradoxo oculta quando elas favorecem determinadas
diferenças, cuja unidade não pode ser tematizada”.27 A Referên-
cia-Roma (Referenz-Rom) é a unidade que se constrói quando a
memória não encontra mais passados dos quais possa recordar
para construir um presente que, ao contrário, se fluísse em direção
a estes, os uniria como sua continuação. Ela exprime o fato de não
existirem mais anormalidades que, utilizadas para descrever a ve-
lha ordem, parecessem sensatas em relação à nova. Que ordem, se
não existe memória que a construa? O império está em decadên-
cia: duplicou-se. A inclusão do mundo na cidade chama-se, ago-
ra, devastação da cidade e fragmentação de seu território. Se, antes,
27 Letzte Einheiten sind immer Konstrukte, die eine Paradoxie verdecken, indem
sie bestimmte Unterscheidungen favorisieren, deren Einheit nicht thematisiert
werden kann.
7.
Rutilio tinha oportunamente pensado que “ordo renascendi
est crescere posse malis”. Na realidade, não se tratava nem de um
30 Quantum enim pertinet ad hanc vitam mortalium, quae paucis diebus ducitur et
finitur, quid interest sub cuius império vivat homo moriturus, si alli qui imperant
ad ímpia et iníqua non cogant?
31 e sarai meco senza fine cive di quella Roma onde Cristo è romano.
32 Konstituierendes Princip des Weltganzen sei nun... vor allem das Princip der
Einheit.
33 Wo immer daher ein besonderes Ganze mit einem dem Weltzweck
untergeordneten Sonderzweck bestehen soll, muss das ‘principium unitatis’ in
analoger Weise zur Geltung kommen.
34 Die Weltherrschaft sei nacheinander bei verschiedenen Völkern gewesen, selbst
aber bestehen geblieben und verbände daher ‘alle in einer einzigen Kette.
8.
Unidade, continuidade, verdade e direito: é esta a cadeia evo-
lutiva que transforma o domínio em poder, ou seja, o poder de
tipo moderno, o poder que não é domínio, o poder que se funda
sobre seu próprio direito. O poder deve ser unitário, exibir sua
continuidade e comunicar a própria verdade na forma de sua legi-
timidade. Em outras palavras: deve provar que sua origem está no
direito ao poder. Deve, também, se inventar uma origem: um po-
der sem genealogia não tem poder; um poder sem memória não
tem legitimidade. A evolução encontra seguro ancoradouro no
plano da salvação que, por sua vez, encontra sua história terrena
na Referência-Roma (Referenz-Rom). “Que coisa é toda a histó-
ria senão um louvar a Roma?”35 , perguntava-se Petrarca. Até o
século XVI, toda história européia é uma história romana, afir-
mou Foucault, em uma esplêndida lição, em 1976. É história uni-
tária; é história da monarquia; é narração da recordação; conto do
mito da origem, da verdade da própria genealogia; é história da
ritualidade do poder, de sua apoteose. “Roma”, dizia Foucault, “ain-
da era atual e produzia, de uma maneira contínua e sem ter perdi-
do o presente histórico, efeitos na Idade Média. Roma foi percebida
36 Rom war noch gegenwärtig und wirkte im Mittelealter als eine Art andauernder
und aktueller historischer Gegenwart fort. Rom wurde wahrgenommen und als
in tausend Kanäle unterteilt.
1 O início pode ser fixado em 1979, quando a editora alemã Dunkle & Humboldt
enviou para Luhmann uma cópia do livro de De Giorgi Wahrheit und Legitimation
im Recht. Após a leitura deste trabalho, Luhmann escreveu uma carta a De
Giorgi, comunicando-lhe que tinha gostado de seu estudo e que se interessava
por estabelecer um intercâmbio de idéias. (N. T.)
mas porque seu pensamento e sua vida eram como sua teoria: sur-
preendente, auto-irônico, paciente, solitário, incompreensível, sim-
ples, inócuo e destrutivo, paradoxal e auto-evidente. Tinha definido
a identidade como “manter distância”. Mas sua distância, sua indi-
ferença inócua, se observada externamente, não era outra coisa que
sua silenciosa, triste, delicada compreensão, sua disponibilidade, seu
modo de elaborar interiormente todos os detalhes e oferecer trata-
mento aos “tranqüilos progressos da corrupção, das cáries e da fadi-
ga”, como dizia Borges. Era seu modo de compreender e viver um
“mundo multiforme, instantâneo e quase inexoravelmente preciso”.
Ele vinha com o último sol do inverno. Seguia e corria atrás
daquele sol. Amava a terra vermelha do Salento, acariciava com
seu sorriso silencioso a solidão milenar das oliveiras, que, diante
dele, se emaranhavam ainda mais sobre si mesmas. Seu conto se
confundia com o vento do norte que vinha do mar. Era antigo
aquele conto. Existia o ruído da guerra e o céu esplêndido dos
montes; era povoado de mulheres nobres e de grandes palácios;
tinha a umidade da relva e o frio branco da neve, a luz fraca de um
antigo sorriso de vidro. Tinha o tempo da memória naquele con-
to. Até o mar, até as varas de pescar de San Foca, que na praia se
mantinham próximas contra o vento, tinham se organizado para
deixá-lo ler a estética de Hegel, falar da causalidade no Sul e da
ecologia do não-saber, de organização e decisão e, depois, de Anne,
Alessandro, Antonio e Carla e dos camponeses de Campone. To-
dos estes últimos o conheciam e quando ele passava, gritavam:
“Professore!” Suas faces, queimadas pelo sol e pelo gelo, se ilumi-
navam como seus olhos, quando ele cedia diante da insistente
generosidade de cada um. Tinha um deles, em especial, que o
esperava todas as noites por muitos anos.3 Tinha o rosto de ma-
e refletimos: ‘Por quê?’, ‘Por que acontece isto?’, ‘Por que este pás-
saro voa?’ – É simplesmente inexplicável! A esta altura eu sento e
me maravilho, me maravilho”.4
Por que se produz a memória? Por que se aprende? Por
que se produz uma realidade? Por que acontece alguma coisa?
Se, diante daquilo que geralmente se considera uma obvieda-
de, simplesmente colocamos a pergunta por que é possível que
isto aconteça, por que é possível que seja assim como é, abrir-se-ão
enormes espaços nos quais a partir de nossa ingênua surpresa
se pode produzir poesia, criar, inventar. Por que se produz o
pensamento? Por que podemos conhecer? Podemos construir,
com ajuda da poesia, máquinas que nos fazem ver em miniatu-
ras rudimentares um simples aspecto desta poesia que conti-
nuamente produzimos?
A estas perguntas seguem outras questões que somente uma
grande ingenuidade poderia formular. Mas são perguntas que, só
pelo fato de serem formuladas, produzem êxitos catastróficos na
resistente cegueira da tradição do pensamento ocidental: por que
é possível pensar a verdade? Verdade do quê? Por que é possível
pensar a existência de objetos, sem pensar que eles se tornam ob-
jetos porque existe um observador que os observa e, portanto, que
os constrói? Por que é possível pensar que um significado possa
ser transferido ou que uma informação possa ser transmitida? Em
resumo: Por que é possível pensar que o pensamento possa sair de
si e operar em outra parte? E o mundo? Por que é possível pensar
que o mundo possa organizar o cérebro ou que o cérebro possa
repetir o mundo?
4 Ich möchte ununterbrochen darauf aufmerksam machen, dass alles, womit wir
uns im täglichen leben beschäftigen, unerklärich ist, ein Wunder ist. Wenn wir
nun einen Moment stehen bleiben und uns überlegen: ‘Wie kommt das?’, ‘Wieso
passiert das?’, ‘Wieso fliegt diese Vogel?’ – Es ist ja einfach unglaublich! Da sitze
ich und staune und staune.
5 ... und alles, was man weiâ, nicht bloâ rauschen und brausen gehört hat, läât
sich in drei Worten sagen.
6 Wovon man nicht sprechen kann, daruber muâ man schweigen.
13 Mein liebe Luhmann, was ist Dir dem eingefallen, uns in einer so wichtigen und
entscheidenden Zeit uns selber zu überlassen?
14 Entlarvung der geheimnisvollen Gestalt des Beobachters.
15 Woran erkennt man ihn?
16 Beobachter ist der, der als Beobachter beobachtet wird.
17 Ich freue mich aschon, mit Dir dort, wo Du jetzt bist, über all das weitersprechen
zu dürfen. Also auf bald, mein lieber Niklas. Dein Heinz.
1)
Sobre o futuro, sabemos somente que não repetirá o passado.
O passado não se apresenta de novo e aquilo que retorna é, de
qualquer modo, diverso. Em relação ao futuro, podemos unica-
mente decidir, vale dizer, arriscar. Sobre o passado, sabemos que é
passado e, portanto, podemos somente redescrever aquilo que já
foi descrito através da comunicação social. E sobre o presente? O
que sabemos dele? O presente não é, como poderia parecer, uma
questão banal. Em relação a ele, não podemos decidir, porque o
presente não é futuro; não podemos redescrevê-lo, pois não é pas-
sado. Podemos nos aproximar do presente de dois modos: provido
de não-saber, se olhamos para o futuro ou, se damos as costas a ele
– como fizeram os profetas de Israel –, dotado de um saber que
seguramente não servirá para nada. Todavia, o presente é o tempo
em que acontece tudo aquilo que acontece e, portanto, estamos
sempre no presente, o presente está sempre aqui.
Mas qual presente? Quanto dura o presente?
Estes problemas – e com estes muitos outros – me atraíram e
me preocuparam enquanto procurava refletir sobre o tema direito
e crime no século XXI. Um tema aparentemente simples, muito
interessante, mas simples. Trata-se de refletir sobre direito e cri-
me no século XXI. Um século que acabou de começar e que ainda
não parece um século. Nós o experimentamos como nosso pre-
sente e, dessa forma, percebemos que se trata do direito e do cri-
me hoje, ou seja, do presente. Como observar e descrever o
presente? Observar significa fazer uma distinção. Em relação a
2)
Não são diversas as considerações que podemos fazer sobre a
temporalização da distinção direito/crime, ou seja, as considera-
ções que nascem do uso da diferença temporal para observar as
diferenças que se manifestam nesta distinção. Em outras palavras:
utilizamos a diferença temporal para observar o direito ou o crime
ou podemos, no passado, ver os vestígios da unidade de suas dis-
tinções? Como construímos a diferença temporal? Direito e cri-
me co-evoluem. De onde começa a evolução cada vez que ela
começa? O passado e o futuro são os temas do paradoxo ou de
qualquer um dos lados da distinção que o desenvolve? Todas as
operações sociais – e, por conseguinte, também as operações de
observação – são produzidas no presente. A distinção direito/cri-
me também se produz no presente. Tudo isto pode ser compreen-
dido por si só. Aquilo que, todavia, não se compreende por si só é
justamente isto: o que observamos quando tentamos observar o
presente? O presente representa a unidade da diferença entre pas-
sado e futuro. Ele é, entretanto, inobservável. Quando se atualiza,
ele já é passado em relação à observação. Este paradoxo do tempo
também é ocultado e, por meio dele, se introduz uma distinção
que resolve o problema da inobservabilidade: a distinção causa/
efeito. Desse modo, o presente aparece como efeito do passado.
No presente, se observam conseqüências dos eventos produzidos
no passado e assim, enquanto nos iludimos em construir o futuro
com base em projetos racionais, em evitar o retorno e a repetição
do passado, na realidade não fazemos outra coisa que não tentar,
continuamente, reparar o presente, consertá-lo, remendá-lo, re-
portando-o ao passado.
A distinção que oculta o paradoxo do presente, o tempo
que não tem tempo, pode ser utilizada na observação de um ou
de outro lado da distinção direito/crime. Pode-se dizer que o
direito, por exemplo, é instrumento de controle do crime ou que
3)
As reflexões que acabamos de desenvolver nos permitem re-
formular os problemas antigos da observação do direito penal e
do crime. Elas nos permitem entender, também, como se desen-
volve a semântica tradicional dos lugares comuns sobre direito e
sobre crime: a semântica da ordem social, dos bens jurídicos fun-
damentais, da tutela da sociedade através da tutela dos bens jurí-
dicos, da defesa da sociedade contra o crime e, correlata a esta, a
semântica das “condições” biológicas, sociais e psíquicas do crime
e as numerosas teorias do desvio, desde aquelas ligadas à estratifi-
cação social até outras mais sofisticadas, relacionadas à orientação
psicanalítica ou, mais vagamente, sociológica. Vejamos, então,
como os autovalores do direito e do crime condensam o valor po-
sitivo e negativo dos eventos, o valor social e anti-social da ação, o
valor de bem e de mal do ponto de vista da moral que, em sua
religiosa imanência, pode apresentar o crime como maldição e,
portanto, justificar a sanção, mas também o pedido de perdão e o
arrependimento. Se tudo isto nos é suficientemente claro, então
podemos nos perguntar como o direito penal se realiza por si (spe-
rimenta). Podemos reformular a questão central nos seguintes ter-
mos: como se constrói uma realidade e o direito penal? Como,
através da construção de sua realidade, o direito penal produz so-
ciedade? Uma resposta a estas duas questões deveria nos permitir
clarear de que modo operam, no presente, as distinções que de-
senvolvem os paradoxos dos quais já falamos.
O poder moderno é um poder fundado sobre direito ao po-
der, disposto a submeter-se ao direito que ele próprio produz. Hoje,
geralmente se chama esta circularidade de democracia. Ela confe-
re legitimidade ao poder que investe poder para eliminar poder e
requer dois pressupostos. O primeiro é aquele que o povo, despro-
vido de poder, seja tratado como fonte do poder. O segundo, ao
contrário, refere-se ao fato de os indivíduos serem tratados como
vel seja a ação que pode ser descrita segundo o modelo da racio-
nalidade da relação entre meios e fins.
A identificação do crime e da ação civiliza o direito penal
que pode generalizar as expectativas dirigidas à sua construção da
realidade. Desprovida de correspondência no ambiente, a realida-
de que o direito penal se constrói duplica a realidade da comuni-
cação social e a redescreve do ponto de vista da ação. A
comunicação social povoa-se de eventos, de histórias, de delimi-
tações, de realidade que marginalizam a complexidade da comu-
nicação e que substituem a ela. A simultaneidade da comunicação
fragmenta-se na seqüência das conexões causais. No contínuo
exercício de construções conceituais e no tratamento das fattispe-
cie são produzidas incongruências, as quais, todavia, não colocam
o direito penal em contradição consigo, mas são objetivadas. Es-
tas objetivações constituem os autovalores dos quais já falamos,
chamados bens jurídicos. Eles são largamente utilizados com o
intuito de construir hierarquias do ponto de vista da decisão jurí-
dica e do controle político, mas servem, em particular, para que se
mantenha continuamente aberta a possibilidade de uma revisão
desta hierarquia, de acordo com a percepção da situação por parte
do sistema jurídico ou segundo a representação de ameaças que a
política julga realizar em seu ambiente. Também aqui o direito
penal oscila entre os diversos níveis da hierarquia dos bens jurídi-
cos e este ininterrupto oscilar produz aquilo que geralmente é
chamado de transformação do direito, sua adequação aos valores
da sociedade ou, simplesmente, transformações dos valores reco-
nhecidos. Um eufemismo para dizer que o direito penal inventa a
realidade que produz. Os autovalores fixados como bens jurídicos
determinam o espaço de oscilação tolerado pelo sistema e por sua
arquitetura interna. Além deste espaço, existe a necessidade: uma
imanência que está sempre presente no direito penal e no poder.
Quando esta imanência se consolida, os autovalores que se estru-
4)
O controle sobre si mesmo era a única garantia que o direi-
to penal podia dar ao ambiente externo, a única garantia de raci-
onalidade. Era o resultado da representação da política das
revoluções liberais do século XIX. O individualismo burguês ti-
nha necessidade de representar o futuro como horizonte aberto
à ação racional e construtiva. O direito – e especialmente o di-
reito penal – constituía um vínculo estável para o futuro. A nor-
matividade do direito positivo não se referia certamente à ação,
mas à continuidade das expectativas, vinculava, de fato, o futuro,
não o presente. Ora, na sociedade contemporânea o futuro é
percebido como risco, como conseqüência de uma decisão que
poderia ter sido outra, como horizonte de incerteza, que não
pode ser absorvida. O direito, assim como a sociedade, se arrisca
5)
No universo da exclusão não existe espaço para a autodeter-
minação da ação, para nenhuma economia lógica da relação entre
meios e fins. Não existe espaço para a construção de vínculos com
o futuro. A ordem do direito, que se diferenciou como pressupos-
to evolutivo da sociedade moderna, era a ordem das ações dos
indivíduos capazes de se autodeterminar pela ação, ou melhor,
indivíduos que eram pressupostos como titulares daquela capaci-
dade. Hoje, aquela ordem do direito é suspensa. Diante da per-
cepção do risco que ativa o sistema político, aquela ordem aparece
como uma ameaça. A suspensão daquela ordem motiva um contí-
nuo recurso à demanda de tutela e de proteção contra o status do
direito positivo. O Estado é destinatário de demandas de prote-
ção contra as ameaças externas, de demandas de ajuda social e, ao
mesmo tempo, de demandas de proteção contra a suspensão da
ordem do direito da ação por parte do Estado. Uma ambigüidade
que se materializa nos protestos universais contra a violação dos
direitos humanos e na demanda universal de sua aplicação. São
apelos a um direito que está além do direito positivo e que so-
mente a política pode transformar em direito positivo. Como se
os direitos humanos, tornados (resi) eficazes como o direito posi-
tivo, não pudessem – como o que acontece com o direito positivo
atual – ser suspensos. Somente a violação do direito o torna váli-
do, torna visível sua existência e, por conseguinte, sua suspensão.
O paradoxo originário, o paradoxo constitutivo do direito emer-
ge, novamente, em uma forma diversa, sob uma nova aparência
adaptada ao presente. Vê-se que o direito é válido somente por-
que é violado. Aqui se separam duas frentes. De uma parte, se
pede menos direito, porque se pretende que a renovação da ordem
da ação seja confiada à economia e ao mercado. Os novos funda-
mentalistas, sustentadores desta visão, pretendem que o direito
suspenso seja substituído pelas práticas de compaixão aos excluí-
I
Existem, ainda, histórias possíveis, histórias dignas de um
escritor? Era o que se perguntava Friedrich Dürrenmatt, meio sé-
culo atrás, enquanto se preparava para escrever um conto, A pane1 ,
a história de um contratempo, de uma banalidade. Um evento do
enfadonho cotidiano que se torna o prólogo e o cenário de uma
narrativa perturbadora, de um processo que se celebra por meio
de um jogo no curso de um jantar interminável e de uma conde-
nação que o inocente protagonista pune com o suicídio.
Onde se pode encontrar a matéria de uma história possível,
questionava Dürrenmatt: na generalização lírica ou romântica do
próprio Eu, na verossimilhança? Isto significa indagar como é
possível universalizar os significados dos eventos desprovidos de
significado – como, por exemplo, um contratempo ou uma pane.
Sem mais nenhum Deus que ameace, nenhuma justiça ou ne-
nhum fato – como na Quinta Sinfonia – resta o quotidiano vazio
de cada um e, diante dele, o público, a multidão de indivíduos,
cotidianos vazios que esperam a provisão de valores superiores, de
considerações morais, de sentenças praticáveis, a narrativa de pe-
quenas mentiras que, agrupadas, não fazem nem meia verdade.
Neste meio tempo, aquela realidade subterrânea, sequer digna de
observação, se fragmenta em labirintos que embaralham as som-
bras dos indivíduos que esperam controlar racionalmente seus res-
II
Meus temas referem-se a tramas de histórias possíveis, de
histórias já escritas ou de realidades comunicativas já construídas.
III
Na realidade, aquela diferença oculta o paradoxo da diferen-
ça, ou dos princípios. É claro que os princípios não são entidades
universais que orientam a decisão. Os princípios, na verdade, são
sempre parte de uma distinção: aquela parte a qual se atribui um
valor de preferência, um valor positivo. Eles viabilizam ulteriores
distinções das quais ocultam, na latência, o ponto cego, o ponto
que escapa à observação. No caso do direito penal, os princípios
protegem do re-entrar (NR) da distinção entre interno e externo,
ou seja, de um re-entrar não seletivo da distinção sistema/ambi-
ente no sistema. No direito penal moderno, a centralidade da ação
condensa-se na centralidade da valoração das conseqüências, que
IV
Podemos concluir, então, que o direito penal, assim como
todo o direito, é imunizado em relação àquilo que acontece no
ambiente da sociedade, não obstante mantenha alto o limite de
sua sensibilidade em relação ao ambiente. Isto significa que o di-
reito reage somente a si próprio. Em todas as operações, o direito
pressupõe e reproduz a diferença entre ele e seu ambiente. Tal
consideração nos permite observar como se coloca o problema da
historicidade do direito penal. A historicidade é ligada à tempo-
ralidade de um modo particular. O direito é um sistema determi-
nado por sua própria estrutura. Isto significa que, em todas suas
operações, o direito começa de si mesmo, ou seja, começa do esta-
do que se colocou por suas próprias operações. É esta a real histo-
ricidade do direito penal. Deste modo, o sistema se torna
imprevisível a si, justamente em função de sua determinação.
Quando o sistema jurídico observa relações entre as transforma-
ções de seu estado e as correlaciona, desenvolve-se uma função
que chamamos memória. A memória não é um lugar que contém
as experiências passadas que o sistema praticou consigo, mas um
modus operandi que se redetermina continuamente e que, sempre
no presente, em cada presente, acompanha as operações do siste-
ma. Um contínuo controle da consistência. A memória permite
que o sistema saiba que ele é presente a si mesmo. Na rede de
contínuos reenvios simultâneos às transformações de seu estado,
a memória permite ao sistema sintetizar aquelas transformações
que se revelam capazes de conexão, ou seja, capazes de fazer emer-
gir um novo comportamento. Deste modo, a atemporalidade do
contínuo operar é interrompida e esta interrupção constitui o tem-
po, vale dizer, a diferença, o presente. Com a construção do presen-
te, o direito inventa sua história. Deste caráter estrutural do direito
resulta que o sistema jurídico está sempre adaptado às situações,
pois ele inventa a situação à qual se adapta. Isto é possível pela
memória que não é nada mais que a diferença entre recordar e es-
quecer, incluir e excluir. A memória é uma função que se produz na
evolução do direito. A evolução não é um processo planificável, mas
o resultado da forma imprevisível que adquire a diferença entre va-
riação e seleção, ou seja, entre eventos que ativam o direito e deci-
sões que, gradativamente, determinam aquilo que é direito.
O fato de o direito ser fixado na forma escrita faz surgir a
diferença entre texto e sentido e o expõe, portanto, à interpreta-
ção. Todo o direito escrito é direito que deve ser interpretado. A
interpretação permite ao direito aprender a partir de si, observar-
se através da diferença identidade/diferença NR e, portanto, ope-
rar de modo que torne visíveis tanto as transformações do direito,
como as distinções em relação ao caso. É evidente o predomínio
da interpretação na construção da diferença entre variação e sele-
ção, ou seja, na construção da realidade em que as operações do
direito são possíveis. Em outras palavras: o predomínio da inter-
pretação em relação à evolução, que subsiste até em um regime
em que parece predominante a função legislativa, ao se considerar
que também esta função se condensa em texto.
A interpretação é sustentada por argumentos que, por sua vez,
se distinguem porque são dotados ou não de fundamento. Os fun-
damentos devem ser fundamentados. Para isto, o saber jurídico dis-
põe de artefatos históricos – os conceitos –, de esquematismos de
tipo dogmático, de textos com caráter normativo, de conteúdos de
sentido dotados de um alto grau de redundância capaz de orientar
a seleção das informações, delimitar o âmbito da pesquisa e evitar
inconsistências que possam ser reconhecidas. É aqui, então, que
se ativa a memória do sistema, ou seja, se vê, mais precisamente,
que o sistema é, ao mesmo tempo, sua memória e o destinatário
das operações de sua memória. A memória realiza conexões que
dependem de formas de acoplamento flexível (sciolto – ágil??)
entre as informações que podem ser repetidas a partir de outras
V
Afirmar que “o direito penal é como é” não significa fugir da
crítica, excluir alternativas ou soluções diversas para problemas soci-
ais que se entende que o direito penal possa somente agravar. Signi-
fica, ao contrário, reconhecer que o direito penal inventa sua realidade
e que, portanto, esta realidade não é garantida por ontologias. “É como
é” significa que pode ser diverso de como é. Procuramos o incondici-
onado em todas as partes, dizia Novalis, e encontramos somente coi-
sas. As coisas são invenções do observador. A ontologia – e também a
ontologia do direito penal que a hermenêutica entende poder indicar
– é atravessada por paradoxos. Ela mesma é construída sobre um
paradoxo, o paradoxo da compreensão, o paradoxo da identidade. A
Sistema jurídico e
sociedade moderna
I
Em 1973, numa conferência, Foucault citou um texto de
Nietzsche escrito exatamente um século atrás. Em um ponto per-
dido do universo, dizia Nietzsche, onde o esplendor se estende a
inumeráveis sistemas solares, existiu um astro no qual alguns ani-
mais inteligentes inventaram o conhecimento. Foi o instante mais
mentiroso e arrogante da história universal. O objetivo da inso-
lência de Nietzsche era Kant: as idéias kantianas da correspon-
dência entre condições de possibilidade da experiência e condições
de possibilidade do objeto da experiência, da naturalidade do co-
nhecimento e da unidade do sujeito do conhecimento, da verdade
como resultado da investigação de apropriação do mundo através
do conhecimento e, por fim, a idéia da compreensão como hori-
zonte da produção de sentido subjetivo que a razão utiliza como
orientação para a ação. Foucault recupera, ainda, um outro trecho
de Nietzsche, O que significa conhecer, no qual o filósofo alemão
nega a plausibilidade da afirmação de Spinoza e declara que, ao
contrário do que este pensava, compreender não é nada mais do
que um jogo, o resultado da composição e da compensação entre
rir, chorar e detestar. A negação do reconhecimento da unidade
do sujeito na conexão entre natureza, desejo, vontade, racionali-
dade, conhecimento e existência significa a negação de continuar
a tradição do pensamento ocidental, que foi obrigado a postular o
pensamento de Deus para poder pensar a verdade e terminava no
reconhecimento da transcendentalidade do sujeito para pensar as
possibilidades de uma orientação racional da ação. Aquela nega-
II
O que se conhece quando se conhece o direito? O que se com-
preende quando se compreende o direito? O que se vê quando se
está à frente da porta da Lei? Certamente não é a ordem do mundo,
nem mesmo a verdade. O direito moderno se emancipou da verda-
de e não mais reproduz a necessidade da ordem. A natureza não
mais dita as finalidades da ação e as suas regularidades não mais
indicam a regularidade da ação. A razão, nesse sentido, não pode
dizer que é racional, nem mesmo que é única. Não existe mais espa-
ço para a epopéia, para a tragédia. O teatro do mundo, dizia Dür-
renmatt, pode ser representado somente pela comédia. Na base da
tragédia há culpas, afã, medida, clareza, responsabilidade. Existem as
categorias do direito, existe a unidade aristotélica do espaço e do
tempo. A comédia é a representação do grotesco. Mas o grotesco,
III
O direito deve ser falado. Deve ser encontrado e falado. Aque-
le que fala o direito, exercita um poder sobre o mundo: o poder de
efetuar uma distinção. No princípio, não existia o ilícito. O direito
substitui a indistinção originária da palavra, do pensamento, da
realidade pela distinção entre o direito e o ilícito. Falar o direito
significa reconstruir continuamente a distinção direito/ilícito. O
direito falado inclui, oculta o paradoxo da distinção que se apre-
senta como a invisível unidade da diferença entre direito e ilícito.
Tudo o que é dito, escreveu Maturana, é dito por um observador.
Quem é o observador nesta situação? É a divindade, o profeta, a
razão, aquilo que deve ser. Mas a razão, teria dito Hegel, não está
em tão grave condição de dever somente ser. Assim, ela se torna
razão de estado, poder, política, monopólio, exclusão. Não se pode
passar através da porta da Lei. Aquele para quem a porta é aberta,
não pode entrar. Pode entrar se quiser. Mas morre na esperança de
IV
O direito falado é utilizado na situação imediata, no caso
específico. Na palavra, início e fim coincidem. A palavra é dita e
se consome, porque não tem duração. Ela é ligada ao evento. O
texto é fixado, pois disponível para usos futuros. Como caso indi-
vidual, como evento, a palavra falada não pode ser retirada. O
texto, ao contrário, pode ser transformado, revisto, reformulado.
O texto exprime o direito, mas não é o direito. Com o texto, se
pratica e se reconhece a diferença entre sentido e texto. Desta di-
ferença surgem outras diferenças: a diferença entre texto e con-
texto, texto e interpretação, sentido e contexto, a intenção do
sentido e o sentido expresso, o sentido do presente da produção
V
Este direito utiliza e torna possível uma contínua expansão
da dimensão temporal da comunicação social. Não necessita de
VI
Como é possível motivar a aceitação do direito quando é
evidente que este é produzido com base em processos seletivos
que, por sua vez, são também seletivos, vale dizer, quando o mate-
rial jurídico produzido é sempre menos provido de auto-evidên-
cia capaz de ser conectada ao valor divino e à verdade? Este é um
problema que já se coloca para as culturas pré-modernas altamen-
te desenvolvidas. Inicialmente, reforçam-se os instrumentos de
convencimento dos quais a comunicação verbal dispunha. A mul-
tifuncionalidade, que caracterizava as sociedades pouco diferen-
ciadas, se reproduz na linguagem jurídica, mesmo sendo essa
também pouco diferenciada. Posteriormente, estabiliza-se um es-
tamento que se especializa na comunicação jurídica e os instru-
mentos da comunicação persuasiva se unem à pobre formulação
jurídica. Tópica, retórica, moral permeiam esta formulação, a acom-
panham, se confundem com ela, explicam a máxima jurídica, ofe-
recem sustento para sua estrutura e para seu caráter de princípio, a
comentam, a ampliam. Procurava-se, deste modo, reforçar a de-
VII
Seguirá um século de elaboração dos textos dos códigos: do
final do século XVIII ao final do século XIX. Os textos e aqueles
que os teriam transformado, integrado, substituído realizavam os
pressupostos do racionalismo iluminista, conferiam ao poder uma
face aceitável, tornavam visível a unidade do Estado nacional e
concluíam a questão da língua. Por estes textos, o homem sem
qualidade sentia-se tratado como destinatário do direito e, na in-
sensatez da vida cotidiana, podia não se desesperar como preten-
dia a literatura, pois podia confiar na sua qualidade jurídica. No
início do século XIX, Savigny manifestou toda sua perplexidade
sobre a idoneidade da língua alemã para exprimir o conteúdo da
codificação, mas sua desaprovação era de outra natureza. A inade-
quação que Savigny lamentava se referia à profundidade da ela-
boração científica dos conceitos do direito. O problema referia-se
à ciência jurídica, não à língua. Em outras palavras: ele observava
que não se tratava de formular em uma língua moderna os con-
ceitos do direito romano, em suma, de traduzir em alemão, nem
mesmo de elaborar uma língua polida e correta. Tratava-se de ela-
borar uma conceituação jurídica complexa e capaz de adequar a
complexidade do direito positivo moderno. O problema se referia
à linguagem da ciência jurídica e, só por conseqüência, à lingua-
gem do direito. Se a ciência jurídica conseguisse alcançar níveis
mais altos, também a linguagem obteria benefícios como uma força
vital espontânea e originária. Assim pensava Savigny. E tinha ra-
zão! Quase um século depois, 1889, quando o trabalho de exati-
dão lingüística tinha purificado a linguagem jurídica e a pretensão
de clareza, simplicidade e concisão parecia verdadeiramente reali-
zada, Gierke reconhecia que der Entwurf eines bürgerlichen Geset-
zbuchs (Projeto de Código Civil) elaborado por uma comissão
apropriada apresentava altos níveis de aprimoramento lingüísti-
co. A comissão tinha utilizado uma terminologia unívoca: os ter-
VIII
Quase um século depois, 1972, Luhmann fornecerá uma
explicação plausível para a trivialidade do direito. De frente a uma
complexidade flutuante, irreconhecível, escreve Luhmann, ativam-
se estratégias de prevenção, de fragmentação, de generalização e
de neutralização. Nas sociedades, que dispõem de uma considerá-
vel riqueza de alternativas, sub-entram estratégias de trivialização
no lugar da interpretação religiosa do mundo.
Na medida da sua expansão e transformação, o direito po-
sitivo torna-se direito trivial. Certamente que num direito alta-
mente complexo, que se ocupa tanto da pena de morte, como do
diâmetro das maçãs, das etiquetas dos adesivos nas garrafas de
vinho e do preterdolo de um evento criminoso, não pode haver
caracteres sacramentais. Este direito existe, multiplica-se e se
transforma: sabe-se que é disponível na forma escrita e que, em
qualquer momento, pode-se dele fazer recurso se se quer saber
como se deve comportar em vista de determinada circunstância.
Mesmo que se possa sempre a ele recorrer, este direito não permi-
te certamente identificar estilos de vida ou experiências interiores
ou peculiares e, de qualquer modo, não permite que se constituam
conteúdos estáveis de sentido, que tenham caráter estruturante
pela experiência e por processos de construção da identidade. Com
IX
No paradoxo, escreveu Dürrenmatt, revela-se a realidade. A
idéia de que uma formulação clara e compreensível do direito tor-
ne possível seu conhecimento e que este permita que os indivídu-
os orientem o agir em direção ao direito ou permita um
funcionamento do direito sem atritos e, eventualmente, sem con-
flitos, é algo que pode ser bem representado no teatro do grotesco.
Quanto mais os indivíduos sabem sobre o direito, mais são cons-
trangidos a experimentar que somente o direito determina se aquele
saber é saber do direito. Quanto mais sabem, menos sabem. Um
conceito, um termo jurídico pode ser unívoco, claro e preciso quan-
do se quer, mas somente o direito determina se aquela univocida-
de é unívoca ou não. Mais uma vez, o problema é: quem é o observador?
A idéia segundo a qual o direito é um conjunto de comandos que
o legislador dirige aos súditos – a que, hoje, prefere-se chamar
cidadãos –, os quais, se compreenderem o conteúdo do comando,
podem orientar sensatamente seu agir, é sugestiva, mas, sem dúvi-
da, ingênua. Da mesma forma, a idéia que a linguagem transfere
um conteúdo de sentido daquele que a emite àquele que a recebe,
e que, portanto, basta observar o conteúdo de sentido intenciona-
do para aceitar que seja claro e preciso e para elaborar prognósti-
cos sobre a compreensão e o comportamento do receptor, é algo
um pouco menos sugestivo e talvez mais ingênuo. Ambas, toda-
via, são imanentes à auto-representação do direito. Acompanham,
pelo que sugere a literatura mais recente, as atuais preocupações
das teorias jurídicas. Certamente, não sugerimos que estas teorias
se tornem infelizes com a teoria dos sistemas, mas que, ao contrá-
rio, elas se distraiam, por exemplo, descendo ao vale da confusão
(Durcheinandertal) de Dürrenmatt, onde se poderia ver que não se
pode ver a unidade da diferença entre o Deus com barba e o Deus
sem barba. Esta visão poderia talvez ajudá-las.
I
A recente literatura jurídica parece muito sensível a temas
de natureza neojusnaturalista. Mais do que questionar os pressu-
postos teóricos do positivismo, parece disposta a amenizar a rigi-
dez que caracterizou o debate filosófico dos anos 70. Ela resgatou
a reflexão sobre a sociedade justa, as formas de reconhecimento
das expectativas e das pretensões da minoria, os limites da demo-
cracia da maioria. Estes interesses foram também estimulados pelo
clima político que, depois dos anos de terrorismo, reconheceu –
pelo menos na Itália – um espaço de legitimidade para demandas
que nasciam da consolidação, cada vez mais radical, dos princípi-
os do Estado social. Um clima político duradouro possibilitou
superar, no âmbito da produção legislativa, a chamada “cultura da
emergência”. Uma cultura que espelhava uma alta taxa de confli-
tuosidade ideológica na sociedade civil não somente por causa do
terrorismo, mas também pelas específicas políticas sociais, sindi-
cais e fiscais e pela radicalização dos programas dos diversos par-
tidos políticos, em virtude do bipolarismo que, naqueles anos,
parecia estar estabilizado.
O novo clima político e cultural permitiu que fenômenos
sociais inéditos surgissem na sociedade civil e que novos progra-
mas se alinhassem no sistema político. Obviamente, tudo isto pro-
duziu efeitos consideráveis sobre o direito, que reagiu ativando
mecanismos de imunização ou estendendo sua porosidade. O siste-
II
Na Itália, uma hipotética retomada da jurisprudência dos
interesses encontraria dificuldades tanto no plano teórico quanto
naquele prático-dogmático. Há alguns anos, o sistema jurídico
italiano se submeteu a uma sobrecarga estrutural que rompeu sua
armadura – originariamente muito sólida e pouco flexível – e o
constrangeu a assumir formas evolutivas destituídas de coerência
e, portanto, muito frágeis. Esta sobrecarga estrutural deriva de fa-
tores de natureza diversa. De uma parte, a estrutura conceitual de
instituições fundamentais do ordenamento jurídico italiano, pro-
duzidas durante o fascismo, persistiu como núcleo de desenvolvi-
III
Assim como parece muito difícil delinear constelações de in-
teresses que não se referem a formas de tutela compensativa, não é
simples individualizar, exceto para determinar contingências, cons-
telações desta natureza que sejam objeto de específico desinteresse
legislativo e, portanto, de perigosa transgressão. Tal situação subsis-
te não pela benevolência igualitária do legislador italiano, mas pelo
caráter de compensação reflexiva do Estado Social de Direito. Este
caráter do sistema jurídico reduziu a pressão ideológica e a susten-
tação política generalizada e, ao mesmo tempo, particularizada pelo
protesto. Diante deste horizonte, o protesto e a resistência contra o
sistema jurídico assumiram, na Itália, formas particulares. Nestas
formas, todavia, se exprimem não somente conteúdos particulares,
mas essencialmente seus significados, objetivos e limites. Distin-
IV
Estes exemplos permitem formular algumas reflexões sobre
a idéia de resistência e sobre aquilo que, na literatura, se chama
“direito de resistência”. Parece que o debate sobre este tema se
desenvolve – especialmente, na Alemanha – através de esquemas
extremamente reducionistas que se limitam a discutir as resistên-
cias legítimas e as ilegítimas. Ambas são entendidas como tipos
V
Evidentemente, o problema é colocado em outros termos.
Ele não se refere nem à consciência nem a uma hipotética relação
entre consciência e ordem social. Ambos se legitimam a partir de
si e, enquanto sistemas fechados, não entram em contato recípro-
VI
Na sociedade contemporânea, é possível observar uma cres-
cente quantidade daquilo que chamarei de improbabilidade residu-
al de ações sociais conforme. Anuladas as ideologias, o poder de
integração social dos sistemas de valores se tornou puramente re-
sidual e age somente de forma escassa, como referência congru-
ente da ação. Os valores – como as ideologias – são recursos sempre
mais escassos. “Da lógica do poder e do contrapoder, que implica-
va o conflito de ideologias e de objetivos, linhas políticas, cálculo
racional de oportunidades, o confronto se transfere para o plano
simbólico, onde as táticas e os programas políticos perdem signi-
ficado, onde os custos e os benefícios da ação não são mais medi-
4 Diese Welt hätten wir nur verschieden interpretiert. Nun Käme es darauf an, sie
zu verändern.
5 Es werde auch der fortschreitenden Menschheit glücken, ihren Glieden, den
Völkern, ein gesichertes Dasein zu gewährleisten um zu einer grossen
Weltgemeinschaft zusammenzufassen.
6 Weltbürgerrecht (jus cosmopoliticum) ist die Befugnis jedes Menschen, die ganze
Erde (welche eben hier die Welt heisst) zu bereisen und sich anderen Menschen zum
Lebensverkehre in irgendeiner (wissenschaftlichen, künstlerischen, kaufmännischen
etc.) Beziehung darzustellen; weshalb es auch das allgemeine Gastrecht oder das
Recht der allgemeine Wirtbarkeit (ius hospitalitatis universalis) heisst.
II
Do período do mundo ao período do mundo7 – se lê no sécu-
lo XIX – a humanidade alcançou altos níveis de seu desenvolvi-
mento em direção a uma comunidade mundial (Weltgemeinschaft).
A idéia deste dever ser deslocada no futuro torna a justificativa que
estimula o interesse pela paz e a confiança no direito. Desta cons-
trução nasce a certeza que o Estado realizara o bem comum. Por
causa da realização deste fim, o século XIX assiste às reunificações,
reconstruções e restaurações nacionais. As regiões, os estados, as
nações, o bem comum e a coexistência pacífica são, ao mesmo tem-
po, os espaços reais e os metafísicos, nos quais se concretizou a an-
tiga idéia iluminista de gêneros (Gattung), que, agora, se chama
humanidade, pois se deixa governar pela região.
Se a idéia de humanidade realçava a igualdade imanente ao
gênero, a idéia de região pressupunha o consenso na representa-
ção da necessidade de organizar, dividir, distribuir, reunificar a
humanidade por meio de identidades históricas que tinham de-
terminadas quantidades ou partes do gênero humano. As nações
8 Die Aufführung der Tragödie im Sittlichen, die das Absolute mit sich selbst spielt.
III
Os limites de um pensamento deste tipo derivam das hiper-
simplificações histórico-causais, de seu antropologismo e da in-
determinação natural que atribui às imagens de imagens
características objetivas. É uma questão de teoria do conhecimento.
Permitam-me, mais uma vez, afrontá-la recorrendo a Dürrenmatt.
Nos seus “Stoffe”, se lê: “Aquilo que chamamos história universal
se assemelha, em um primeiro momento, a um olhar lançado so-
bre a nebulosa de Andrômeda. Esta também se encontra inalcan-
çável no passado, dois milhões e meio de anos atrás; a luz que
avistamos não partiu dos primeiros raios da humanidade e não
pode interpretar as cadeias de dedução nas quais se baseiam as
consciências astronômicas”.9 Maturana, de modo muito mais con-
ciso, afirmou: tudo aquilo que é dito, é dito por um observador.
Um maior nível de abstração conceitual nos permite observar aqui-
lo que o imediatismo faz aparecer revirado e indeterminado. A
luz que cobrimos é um reflexo da realidade da luz de Andrômeda,
que é uma construção da astronomia. Nossos olhos repetem uma
operação que a história do mundo realizou infinitas vezes. Sem-
pre igual, sempre diversa, projetada sobre uma imagem sempre
igual, sempre diversa. Isto tudo vale também para a objetividade
9 Was wir Weltgeschichte nennen, gleicht vorerst einem Blick auf den
Andromedanebel. Auch dieser liegt unerreichbar in der Vergangenheit,
zweieinhalb Millionen Jahre zurück, sein licht, das wir erblicken, verliess ihn
im ersten Auffdämmern der Menschheit, auch er ist nicht zu deuten ohne die
Ketten von Folgerungen, auf die sich die Erkenntinisse der Astronomie stützen.
IV
A descrição de um sistema que se encontre em um determi-
nado estado não pode ser realizada por meio da descrição de to-
dos os elementos que caracterizam o estado deste sistema. Sistemas,
cujo logaritmo do número dos possíveis estados é tão grande quan-
to sua estrutura, são indetermináveis. Luhmann nos conta que
Maturana, uma vez, afirmou que “poder-se-ia descrever um orga-
nismo vivo através da descrição de todas as moléculas necessárias,
mas, dessa forma, nunca se poderia compreender exatamente aquilo
que se verifica na realidade: a autopoiesis da vida”.11 Um sistema
vivente – o mesmo vale para um sistema social – não pode ser
indeterminável. Ora, o observador de um sistema depende da dis-
tinção que se utiliza e que permite isolar um lado em relação ao
outro. A sociedade mundial apresenta confins claramente defini-
12 Formgenerierendes Formprinzip.
13 Unterscheidungs-methodologisch gesehen ist Komplexität ja nicht anderes als
eine Unterscheidung, in der das Problem der Selektivität wiedervorkommt,
nämlich auf der einen Seite der Unterscheidung wiedervorkommt. Im Begriff
der Komplexität wird die Seletivität, freilich in dadurch bestimmter Form, auf
sich selbst zurückbezogen.
V
Toda descrição do mundo e da sociedade mundial se expõe
ao mundo e à sociedade mundial. O observador não pode obser-
var as distinções que ele usa para efetuar suas observações. Como
a sociedade, também o observador é exposto a outras observações
que usam outras distinções. A descrição oculta uma latência que
sempre pode ser diversa. Esta latência possibilita ver a descrição
como contingente, o mundo como construção e ambos como pres-
tação da sociedade. Nesta, não existe lugar para fundamentos,
ontologias, talvez nem mesmo, para o espírito absoluto e, tam-
pouco, para a crítica se, com esta, se entende o uso de uma distin-
ção melhor que as outras. O observador que observa um outro
observador não é um observador melhor, mas somente um outro
observador que vê a distinção utilizada pelo primeiro e não pode
ver sua distinção.
Existe uma pintura de Salvador Dalí denominada “Dalí, aos
seis anos, enquanto soergue a pele da água para observar um cão
adormentado sob a sombra do mar”. Na esperança que seu país
alcançasse a democracia, José Saramago, o grande escritor portu-
guês, escreveu, em 1974, o primeiro de trinta poemas nos quais
buscava exprimir “a angústia, o medo e também a esperança de
um povo oprimido que, aos poucos, vence o conformismo e orga-
niza a resistência até a batalha decisiva”. Saramago se inspirou no
1.
“Humanidade é um papel humorístico”. Assim escreveu
Novalis, em um de seus Fragmentos, no final do século XVIII.
Uma afirmação surpreendente em um período em que a poesia
romântica celebrava, no sombrio interior dos indivíduos, a gran-
diosa universalidade do gênero humano e a sublime experiência
do mundo. Também o mundo, naquele período, iniciava uma car-
reira de sucesso como conceito jurídico e político. Somente um
século depois, Nietzsche teria dito que o mundo não é outra coisa
senão uma praga cristã. Um conceito limite ao qual endereçamos
toda nossa necessária ignorância.
O horizonte inevitavelmente se distancia quando dele nos
aproximamos com nosso saber sobre o mundo. Humanidade e
mundo, humorismo e paradoxo. Uma distinção que converge em
um ponto cego e que representa a unidade da diferença que a
produz. Esta unidade não é nada mais que a razão. No século
XIX, a razão iluminista, que permitiu constitucionalizar o direito,
ainda que devesse fechar-se em si mesma como razão dos parti-
culares, registrou sucessos e reconhecimento na organização dos
Estados e na regulação jurídica das ações.
Foi conferida dignidade jurídica para a humanidade dos ho-
mens, tratados como cidadãos dos Estados. Do ponto de vista
jurídico, foram negadas as diferenças em relação à qualidade da
natureza das pessoas. Kant podia esperar uma sociedade universal
2.
Naquela razão o direito moderno encontrou força, sustenta-
ção e legitimação. Era uma razão que utilizava referências exter-
nas, às vezes diversas, que conectava sua descontinuidade e se
3.
Desde o momento em que a sociedade moderna começou a
considerar-se moderna, as características da modernidade estão
em mudança contínua. As semânticas que representaram aquelas
características também estão em freqüente mudança. No plano
das operações realizadas através da estrutura da sociedade moder-
na, aquilo que caracteriza sua recursividade é a capacidade de au-
totransformação. A sociedade moderna, em outras palavras, é
4.
O risco condensa uma simbiose particular entre futuro e so-
ciedade: ele permite construir estruturas nos processos de trans-
formação dos sistemas, especificar as emergências de ordens nas
estruturas dos sistemas. O risco é, na realidade, uma construção
5.
Também o direito é um vínculo do tempo, uma modalidade
de controle do futuro do ponto de vista da diferença lícito/ilícito. O
direito, todavia, não pode proibir o risco. De fronte ao risco, o direi-
to manifesta seus limites e deve recorrer às estratégias que reduzam
o risco do tratamento jurídico do risco. De outro lado, a política é
sempre mais a destinatária de prevenções de minimizações do risco,
de reduções do risco a níveis toleráveis. Mas as decisões da política
assumem a forma jurídica. A política, agora, descarrega, sobre o
direito, o risco de suas decisões. Como as possibilidades de tratar o
risco tornam-se obsoletas, não se manifestam apenas os riscos deri-
vados do tratamento dos riscos que se quer evitar, mas se estabiliza
uma legislação, uma modalidade de produção legislativa do direito
que sobrecarrega e deforma a conceitualidade jurídica.
O direito, então, não consegue imunizar-se do risco do di-
reito. Fragilizam-se figuras dogmáticas estabilizadas. Surgem no-
vas figuras dogmáticas que impõem, aos atores particulares do
direito, controle do risco ou que sancionam comportamentos líci-
tos se, em virtude do exercício do direito, são produzidos danos
que se queriam evitar. Surgem novos problemas de determinação
causal de efeitos produzidos a distância no tempo e implicam uma
imprevisível quantidade de fatores causais concomitantes. Multi-
plicam-se tentativas de alcançar determinações causais aceitáveis
por meio de contínuos deslocamentos e incalculáveis inversões do
ônus da prova. Estendem-se as previsões de justiciabilidade de
interesses não claramente definíveis e constelações de riscos não
precisamente determináveis.
I
Neste ensaio, buscarei analisar um tema complexo, que inte-
ressa ao debate contemporâneo europeu e latino-americano. Os
atores deste debate são vários e diferenciados. De um lado, os ad-
vogados, que esperam da Universidade jovens habilitados para o
exercício da profissão; de outro, a comunidade científica do direi-
to, que espera Universidades capazes de produzir jovens motiva-
dos à pesquisa. De um lado, jovens que se matriculam nas
Faculdades de Direito porque não possuem motivação para cursar
outra faculdade, porque sonham em combater a injustiça ou com
um emprego público, ou mesmo, porque o pai era advogado. De
outro lado, o sistema político que sente o eco distante das expec-
tativas contrapostas, que as mescla, cria uma massa única e lhe
confere um nome: Reforma.
É assim que o tema do debate torna-se a reforma do ensino
universitário. O principal problema é o seguinte: como conjugar
atividade didática e de pesquisa nas Universidades, sendo que es-
tas têm como função específica formar pessoas que possam in-
gressar no mercado de trabalho – profissionais liberais – e que,
também, sejam eventualmente capazes de orientar as próprias
habilidades à produção de novos conhecimentos, ou seja, que pos-
sam se dedicar à pesquisa?
O problema é muito grave. Na Europa, a separação entre
oferta de profissões e demanda no mercado de trabalho é sempre
maior. Alguns pensam que a Universidade deveria orientar sua
II
Os cursos de Pós-Graduação foram criados na Itália pela lei
de reforma do ensino universitário, de 1980. Até aquela data, exis-
tiam na Itália somente Cursos de Especialização, Escolas de Es-
pecialização e Institutos superiores. Eram estruturas que forneciam
qualificações científicas específicas em determinados campos.
Destinavam-se, sobretudo, à formação profissional e apenas par-
cialmente à pesquisa. Na década de 70, foram tomadas medidas
legislativas urgentes para a Universidade, destinadas a qualificá-
la não só no âmbito didático, mas também no âmbito da pesquisa.
Essas medidas legislativas permitiram a um grande número de
III
O doutorado visa a uma melhor capacitação científica para a
pesquisa em âmbitos específicos. Está estruturado por currículos
setoriais organizados com vistas à obtenção de saber especializa-
do. Os currículos podem, também, ser estruturados de modo in-
terdisciplinar, uma vez que objetivam formações não identificadas
com esquemas disciplinares determinados, mas com a obtenção
de conhecimentos especializados, que devem necessariamente
superar os limites das disciplinas individuais. Os cursos, portanto,
são definidos por temáticas estruturadas de acordo com conden-
sações curriculares que podem coligar diversos setores disciplina-
res ou, então, diferenciar o âmbito específico de uma mesma
disciplina.
A caracterização temática diferencia, de modo particular, os
cursos de doutorado das escolas de especialização. Nelas, na ver-
dade, os currículos são constituídos por disciplinas específicas e se
destinam à melhoria de conhecimentos especializados relativos à
IV
Se os objetivos perseguidos pelo doutorado italiano podem
ser configurados de acordo com as linhas que acabamos de traçar,
não se pode por certo afirmar que esses objetivos, ao final, sejam
efetivamente alcançados ou que subsistam os pressupostos para
que isso se verifique. Isso ocorre por diversos motivos.
O primeiro deles decorre do fato de que, na Itália, as facul-
dades de direito são pouco seletivas. O número de estudantes ins-
critos é altíssimo, assim como são elevadíssimas a evasão escolar e,
também, a dispersão universitária, uma vez que a permanência na
Universidade é, em média, mais elevada nos cursos jurídicos do
que nos demais. Além disso, ao contrário do que ocorre na Ale-
manha, infelizmente, na Itália, não existe incompatibilidade en-
tre exercício da profissão e atividade acadêmica. Isto, contudo, não
produz contatos efetivos ou uma respectiva funcionalização entre
exercício prático do direito e atividade de formação universitária.
Ao contrário. A separação entre os dois universos é total. De ou-
tra parte, não se pode nem mesmo afirmar que as Faculdades de
Direito reproduzam o fechamento da ciência ou da dogmática
V
A pesquisa jurídica tradicional tinha duas grandes linhas de
orientação. A primeira era caracterizada por interesses de nature-
za prevalecentemente dogmática e se desenvolvia sob especialís-
sima tutela positivista. Aqui, tratava-se de estudar a coerência e a
VI
Abrem-se, assim, espaços inéditos para a pesquisa em direi-
to. A pesquisa pode contribuir para a identificação dos novos ho-
rizontes da juridicidade, para um crescimento potencial dos
mecanismos reguladores, para a construção de soluções originais
aos problemas sociais. A pesquisa em direito pode contribuir para
a expansão criativa de figuras dogmáticas, orientadas em sentido
funcional, ou seja, ocupadas com a busca de alternativas úteis para
solução de problemas. De maneira indireta, a pesquisa pode con-
tribuir para a diferenciação do sistema, ou seja, pode permitir a
visualização dos obstáculos que se opõem à evolução do direito.
Isto significa que a pesquisa pode contribuir para o alargamento
das fronteiras da legalidade e, conseqüentemente, para a demo-
cratização do sistema político.
Não sabemos se e em que medida o doutorado pode satisfa-
zer estes pressupostos. Existem dificuldades estruturais relativas à
formação dos juristas na Universidade e, também, fortes resistên-
cias nas corporações acadêmicas. Julgamos, porém, que a discus-
são sobre a pós-graduação deve se ocupar da estrutura e função da
pesquisa em direito e individualizar, sem preconceito, os percur-
sos a serem abertos em direção ao futuro. Trata-se de um futuro
que não pode ser projetado utilizando-se das categorias sagradas
da dogmática tradicional. Mas se trata, igualmente, do futuro de
um sistema determinado pela sua estrutura.
Essa estrutura é sedimentada pela influência do velho Ilu-
minismo e, no curso do século, foi submetida a perigosas e trági-
cas involuções. A estratégia do futuro, ao nosso ver, pode ser
caracterizada, exclusivamente, pela pesquisa das formas de con-