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1. Introdução
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2. O mito da doação e a ideologia do trabalhismo
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legislação trabalhista. Ela foi a grande responsável pela popularidade do presidente. É a partir
daí que se desenrola o culto às qualidades pessoais de Vargas. Com isto, pode-se imaginar que
a ideologia do trabalhismo adentrou a mentalidade dos produtores da literatura de cordel. A
imagem dele como pai dos pobres foi bastante presente na consciência destes setores
populares.
Contudo, é sabido que a produção dos folhetos tem uma maciça pressão dos
consumidores. Os poetas sentem a necessidade de produzi-los conforme o gosto do freguês.
Portanto, ele produz aquilo que seria facilmente vendido. Delarme Monteiro da Silva
expressou em seus versos as “concessões” getulistas no que diz respeito a legislação
trabalhista.
Porém, também há folhetos da literatura de cordel onde se começa a fazer uma
contraposição em relação à ideologia oficial. Enquanto Marcondes Filho pronunciava a
suposta fartura na mesa do rico e do pobre, Manuel D’Almeida Filho versava: “Foi o único
presidente / Que protegeu a pobreza”. (p. 76).
A partir daí as diferenças entre a ideologia do trabalhismo e a literatura de cordel se
intensificaram. Vargas passou a ser relatado “como aquele que, em meio ao desamparo geral,
simplesmente alivia a carga de sofrimento dos pobres.” (p. 76). Tal como diz o poeta
Francisco Firmino Do Amaral: “Se eu fosse um cachorro / Tinha mais regalia, / Quando
fossem comer / Eu ficava de espia, / Jogavam os ossos no mato / Eu ia atrás e lambia” (Idem).
Vários outros expressavam sua insatisfação frente à pobreza. Estes exemplos iam se
distanciando dos pronunciamentos de Marcondes Filho. Estas críticas que são conhecidas
como “lamentações” são anteriores e posteriores e contemporâneas ao Estado-Novo.
Alguns poetas apontam a insuficiência da legislação trabalhista. Outros, apesar de
exaltar Getúlio, descrevem uma situação de pobreza, ou seja, mesmo admirando a legislação
trabalhista eles versam sobre um mundo dotado de amarguras. Em outros termos, embora as
leis trabalhistas constituam num alívio, estão longe de ser uma solução.
Ora, o que estes exemplos clarificam, é o abismo entre a ideologia do trabalhismo e a
realidade social, e conseqüentemente a diferença ente a ideologia do trabalhismo e a literatura
de cordel.
Essa diferença também se exprimiu referente à relação entre capital e trabalho
pronunciado pela ideologia do trabalhismo e pela redefinição dada pela literatura de cordel.
No discurso oficial, a proteção que Vargas outorgou aos pobres, não estava ligada a sua
oposição aos ricos. Assim, ele seria o conciliador dos interesses entre capital e trabalho. Nos
pronunciamentos de Marcondes Filho, há uma tentativa de não definir o que é o proletariado.
Segundo ele todos são proletários, inclusive Getúlio. Para ele, tanto empregados quanto
empregadores são operários do Brasil, de um Brasil forte e próspero.
Porém, na literatura de cordel, mais especificamente nas poesias de Manuel Pereira
Sobrinho, Vargas aparece com um aliado dos pobres na luta contra os ricos, um elemento
distinto dos pronunciamentos oficiais. Houve também, versos que expressavam uma
concepção aproximada da de Marcondes Filho, ou seja, Vargas como um conciliador.
Entretanto, os folhetos em geral reconheciam que a conciliação e equidade não eram possíveis
devido a gritante diferença entre nobres e pobres.
Para intensificar as diferenças entre os pronunciamentos originais e a literatura de
cordel, constata-se pelos exemplos citados por Adalberto Paranhos, que a imagem do Brasil
com um reino de concórdia não se sustenta nos folhetos.
Além disto, a forma como a literatura de cordel concebe o Estado Novo e a
democracia liberal é distinta do discurso oficial. Se ambas defendem o Estado Novo e
criticam a democracia, não equivale dizer que as perspectivas sejam idênticas. Para
Marcondes Filho, o surgimento do Estado-Providência implicaria necessariamente o combate
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ao liberalismo para a instauração da cooperação do Estado para evitar predominância dos
interesses individualistas. Só assim se derrubaria a política interesseira. Na literatura de
cordel, a democracia liberal é concebida como regime dos ricos. Aqui já constitui uma
diferença em relação a visão disseminada pela ideologia oficial. Dois aspectos se destacam na
literatura de cordel referente à posição assumida diante do Estado novo: 1 – a ditadura (e a
legislação trabalhista) teria demonstrado certa consideração para com os pobres; 2 – os
políticos tradicionais que faziam o governo dos ricos haviam sido expulsos da cena.
Assim, devido essa identificação de democracia com regime dos ricos, os poetas
expressavam preferência pela ditadura paternalista tal como expressa Zé Vicente, Aba-K-X e
outros.
Por isso o “Estado Novo sobreviveu à própria morte, recortado freqüentemente pelos
poetas populares inclusive na década de 50. Enquanto a ideologia do trabalhismo critica a
política e os políticos em geral, na literatura de cordel a crítica se concentra numa perspectiva
de classe, como bem aponta Paranhos.
Contudo, em certos folhetos, os autores atribuem a Vargas um papel de pacificador e
garantidor da ordem, discurso parecido com da ideologia oficial. No entanto, esta ordem era
algo bem concreto: “uma ordem social dentro da qual a pobreza seja protegida da exploração
dos ricos.” (p. 89). Ou seja, o culto à ordem é tratado de forma diferente nas duas correntes.
A imagem de Getúlio como pai dos pobres é, de fato, interiorizada pelos poetas e
consumidores do cordel. Contudo, esta imagem sofre redefinições como, por exemplo, o caso
do antagonismo entre as classes que foi banida dos discursos oficiais. Por outro lado, a
literatura de cordel via Getulio com um aliado na luta contra a exploração dos ricos. Em
outros termos, de um lado o Estado prega a colaboração de classes, de outro, setores da
literatura de cordel reforça o antagonismo entre elas. Em muitas delas, encontra-se a presença
dos “tubarões” que são os exploradores. Eles reconheciam então a luta de classes, embora em
outros termos.
Assim, o autor faz o seguinte questionamento: não tiveram as classes populares, para
além da manipulação ideológica que foram submetidas, certa percepção de seus interesses de
classe? Paranhos afirma que nenhuma dominação é absoluta. A manipulação tem que
respeitar certas aspirações das classes dominadas, se não podem perder sua eficácia. Portanto,
as classes populares não são modeláveis ao bel prazer do Estado ou das classes dominantes. A
glorificação de Vargas não se deveu a seu carisma nem a seu sorriso, mas sim à legislação
trabalhista que atendeu algumas aspirações reais das classes dominadas. “E foi sobre essa
base real – a legislação trabalhista e o atendimento parcial de certos interesses das classes
dominadas – que se produziu a mistificação da realidade via ideologia do trabalhismo.” (p.
92). E se nenhuma dominação é absoluta, a transmissão ideológica não se dá perfeitamente e
completamente, pois, por mais eficaz que tenha sido a ideologia do trabalhismo ela não foi
assimilada na sua totalidade pelas classes dominadas.
Paranhos vai concluindo o texto mostrando que podem haver pontos de tangência
entre ideologias dominantes e dominadas: “coexistem sempre assimilações e rejeições ou
redefinições”. (p. 93) Por mais que as classes populares tenham sido subordinadas, podemos
encontrar uma certa expressão de consciência de seus interesses de classe.
Tudo que foi aqui exposto coloca em cheque certas concepções com um viés elitista
na qual as classes populares não teriam consciência de seus interesses de classe. Essas
concepções são incapazes de apreender a consciência de classe na sua realidade dialética.