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Helga Caroline Peres

MEMORIAL DA TRAJETÓRIA DOCENTE


Trabalho apresentado como requisito da disciplina
“Estudos em Formação de Professores”, do
Programa de Pós-graduação em Educação da
Universidade Federal de São Carlos/UFSCar.

SÃO CARLOS, MAIO DE 2017.

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Pois um acontecimento vivido é finito, ou pelo menos encerrado
na esfera do vivido, ao passo que um acontecimento lembrado é
sem limites, porque é apenas uma chave para tudo o que veio
antes e depois.

Walter Benjamin, em O Narrador(1936).

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .................................................................................................... P. 4

PARTE I ................................................................................................................ P. 5

PARTE II .............................................................................................................. P. 13

PARTE III ............................................................................................................ P. 17

CONCLUSÕES ................................................................................................... P. 24

REFERÊNCIAS ................................................................................................. P. 26

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INTRODUÇÃO

O processo de escrita nem sempre se dá de maneira agradável e harmoniosa.


Ao me deparar com uma folha em branco, percebendo que nela há tantos caminhos a
serem percorridos e tantas ideias que precisam tomar corpo, sou tomada pela sensação
de que os elementos que comporão o que será aqui exposto, ao mesmo tempo, emergem
e se perdem em meio à lembrança de fatos e sensações. Não se trata de uma tarefa
simples rememorar a trajetória que me permitiu chegar até aqui, aos 27 anos, professora
da Educação Integral do Município de Araraquara e doutoranda do Programa de Pós-
graduação em Educação da UFSCar – isto porque, hoje, vejo que minha trajetória
docente tem como base alguns ocorridos que tem tempo e lugar que antecedem o
primeiro dia em que adentrei uma sala de aula oficialmente como professora.
Segundo Bosi (1995 apud Guedes-Pinto, p. 2), a rememoração de uma
trajetória exige grandes esforços, por implicar um processo de reconstrução das ideias e
das experiências do passado. Isto porque enlaçam-se as experiências contemporâneas e
aquelas já vividas, de modo que é impossível desvincular o passado da visão que se tem
hoje sobre ele: “rememoramos a partir de nosso presente encarnado, de nossa
compreensão de vida até aquele determinado momento em que lembramos” (GUEDES-
PINTO, p.1).
A narrativa que será aqui apresentada constitui um elemento de grande
relevância para o âmbito de minha formação docente; reviver os caminhos e os
descaminhos que me levaram a ser professora permite compreender de que modo estes
influíram na construção de minha profissionalidade. Minha família, os professores que
tive durante a infância, as experiências pelas quais passei durante minha adolescência e
durante o período em que me graduei na Universidade, todos estes contribuíram de
algum modo para que eu me tornasse a professora que sou hoje.

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PARTE I
DAS ORIGENS: COM QUEM SE ENSINA, COM QUEM SE APRENDE A
ENSINAR

Desde muito cedo aprendi a conviver com o “fazer docente”: nasci na cidade
de Botucatu, interior de São Paulo, no ano de 1989, em uma família de professores
(como costumava ser lembrado em todas as reuniões familiares). Com exceção de meu
pai, que se formou em Ciências Sociais, mas optou por trabalhar em outra área – em um
cargo público de escriturário –, todos com quem tinha maior proximidade eram
professores; minha mãe, pedagoga, atuava como professora do Ensino Fundamental na
Rede Estadual de São Paulo; minha tia era graduada em Letras, e dava aulas de
português para o Ensino Médio; meus dois tios também se dedicavam à docência: o
primeiro, formado em economia, ministrava aulas de matemática como forma de
complementar sua renda, e o segundo, formado em psicologia, terminava naquela época
seu doutorado e era professor de uma instituição particular de ensino superior.
Deste modo, meu contato com a escola iniciou-se antes que eu a frequentasse.
Cresci ouvindo inúmeras conversas sobre “atribuições de aula”, “contagem de pontos”
para dar aulas nas melhores salas, “municipalizações” – processo que teve seu ápice
durante minha infância, e que levou a mudanças na escola onde minha mãe atuava,
pertencente ao Estado –, especulações sobre o tão esperado aumento de salário, que
demorava a chegar, visitas à “Diretoria de Ensino”; mesmo que não entendesse de fato o
teor destes assuntos, sua recorrência em tantos momentos me dava a sensação de já
compreendê-los. Como uma parte de mim, tão importante quanto era para minha
família.
Além disso, passava muito tempo de minha infância brincando entre as
atividades que minha mãe preparava para seus alunos: desenhos, textos, recortes...
Mesmo antes de saber ler ou escrever, pedia para realiza-las, também, do meu jeito.
Todas as noites após chegar do trabalho, minha mãe preparava as atividades para o dia
seguinte, e lá estava eu, junto a ela, insistindo para que pudesse participar de alguma
maneira. Ainda, nos períodos que antecediam as férias escolares, em que poucos alunos
iam à escola e os professores tinham os momentos de “conselho de classe” e “reuniões
pedagógicas”, minha mãe me levava para passar as tardes com ela na escola. Conhecia
seus alunos, os outros professores, enfim, todos que trabalhavam na escola, e tinha livre
acesso à sala dos professores, ao pátio, à biblioteca, e à sala onde minha mãe trabalhava.
Lia livros, comia a merenda, escrevia na lousa, brincava de ser professora e participava

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das conversas onde os outros professores se lamentavam das dificuldades da docência
naquela época.
É importante relatar tais fatos pois eles marcaram uma parte significativa de
minha infância, e foram cruciais para que minhas primeiras concepções sobre a
docência – mesmo que não elaboradas – tomassem corpo. Naquela época, tinha em
mente que a escola era o lugar em que tudo acontecia: movimentação, brincadeiras,
saberes, mas também políticas e problemas que tornavam os professores descontentes,
todos contidos neste universo que já era tão presente em minha vida. Estar inserida
neste meio, mesmo que não oficialmente como aluna ou professora, era importante não
apenas para estar próxima de minha família, mas também por permitir que eu me
apropriasse dos códigos escolares que no futuro subsidiariam meus anseios e meus
questionamentos sobre o “ser professora” – especialmente as contradições que
demarcam os contextos sociais e políticos que permeiam essa profissão.
Por volta de meus quatro anos de idade meus pais se divorciaram, e fomos
minha mãe e eu morar em uma casa que ficava na frente de uma pequena escola
chamada “Rouxinol”. Todos os dias eu via chegarem ali algumas crianças, e todas
pareciam muito felizes e animadas para passar a tarde naquele lugar. Percebendo que as
crianças tinham a idade parecida com a minha, dei início a uma empreitada de
insistência para que minha mãe me matriculasse na escola também; como já estava em
tempo de que eu começasse a frequentar a educação infantil, meus pais optaram por, a
princípio, me matricular na pequena escola.
Embora seu espaço físico não fosse grande, lembro-me de que as experiências
vividas no local trazem lembranças de um tempo de muitas alegrias, brincadeiras e
aprendizagens. Tinha grande apreço por minha professora, a Tia Cíntia, que era uma
pessoa bastante carinhosa e alegre. Fazíamos teatro, cantávamos, havia brincadeiras por
entre as árvores, e nos dias quentes era permitido nadar em uma pequena piscina que
havia no pátio. Todas as atividades eram bastante prazerosas, e, olhando hoje para tudo
o que foi vivido, entendo que minha primeira experiência na Educação Infantil foi
marcada pelo fundamento de valorização da infância, das brincadeiras, e do
desenvolvimento mediado pela ludicidade. É possível perceber, aí, a relevância da
Educação Infantil enquanto instância que promove o desenvolvimento da criança
através de práticas que possuem finalidades que se distanciam do mero “brincar pelo
brincar”, da visão ainda predominante da “recreação” sem finalidade pedagógica, e que

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contemplam tal desenvolvimento de modo pleno. Isto pôde ser observado em grande
parte de minhas lembranças concernentes à minha primeira escola.
Não me lembro ao certo quanto tempo permaneci na Escola Rouxinol, embora
tenha parecido um período bastante longo pela intensidade do que vivi neste lugar.
Porém, logo meus pais decidiram que eu deveria estudar em uma escola maior, que
favorecesse de modo mais “completo” meu desenvolvimento e que me permitisse ter
um futuro melhor. Isto porque eles acreditavam que eu merecia algo a mais do que eles
haviam tido em sua juventude: ambos conseguiram a conclusão do ensino superior; no
entanto, esta foi fruto de muitas lutas e muito trabalho. Minha mãe começou a trabalhar
logo cedo na fazenda onde meus avós eram empregados, e com muito custo conseguiu
pagar o curso de pedagogia; meu pai, por sua vez, trabalhava como músico e fazia
diversos “bicos” para conseguir terminar sua faculdade. Foi desta mesma forma que
meus tios conseguiram concluir seus respectivos cursos superiores.
Então, para que eu não passasse por essas situações, fui matriculada como
bolsista de um colégio tradicional de Botucatu, o Colégio Arquidiocesano La Salle.
Dirigido pelos Irmãos Lassalistas, a instituição existia na cidade desde a década de
1950, e era reconhecida pelo ensino de qualidade e por seus preceitos religiosos. Muito
diferente da Escola Rouxinol, o espaço escolar era bastante amplo e moderno; eram
inúmeras salas de aula, bibliotecas, laboratórios, quadras poliesportivas, vários pátios e
espaços de convivência, teatros, parques. Aos meus olhos, a escola se parecia muito
com um labirinto, onde sempre era possível encontrar algo novo.As instalações da
Educação Infantil ficavam em um prédio separado do Ensino Fundamental e Médio.
Havia um número bem maior de crianças do que havia na escolinha Rouxinol, e
também maior quantidade de recursos: muitos brinquedos, as salas muito arrumadas,
vários ambientes, muitos parques, materiais em demasia, tudo o que precisaríamos para
uma educação de qualidade.
O Colégio La Salle teve grande relevância em minha formação pessoal e
profissional. Primeiramente, porque permaneci treze anos de minha vida estudando
neste mesmo local; a educação infantil, o ensino fundamental e o ensino médio foram lá
realizados. Isto trouxe aspectos positivos à minha formação, mas também gerou alguns
ônus. É possível perceber, hoje, que a abordagem do colégio era bastante intensificada
em direção aos conteúdos. Já na Educação Infantil me lembro de sentir diferenças
bastante grandes de minha escola anterior – onde o foco eram as brincadeiras. A partir

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de então, tive acesso a materiais didáticos, apostilas, que se mesclavam às brincadeiras e
a outras atividades.
Os anos se passaram e fui me adaptando à rotina e ao modelo escolar à que
tinha acesso no colégio. As lembranças que tenho da Educação Infantil são bastante
positivas; minhas professoras, Tia Inês e Tia Rosely, eram bastante atenciosas e
dedicadas. Lembro-me especialmente de minha ansiedade para chegar ao Ensino
Fundamental. E logo este momento chegou. Ao final da última etapa da educação
infantil houve a formatura, um momento bastante marcante – visto que passamos muito
tempo ensaiando a peça de teatro que seria apresentada neste evento –, e, no ano de
1996, aos sete anos de idade, fui para o Primeiro ano do Ensino Fundamental.
Durante os oitos anos que passei no Ensino Fundamental houve uma
diversidade de fatos importantes para que eu construísse algumas de minhas ideias em
relação ao mundo, em geral, e à docência, em particular.
Muitos professores marcaram minha trajetória durante esse longo período; suas
práticas me vêm a memória com bastante clareza, e muitas me auxiliaram e ainda me
auxiliam a construir minha profissionalidade docente. Desde minha professora do
primeiro ano, a professora Aracy, que me traz lembranças bastante positivas acerca de
meu processo de alfabetização, com o qual não tive problemas, até os professores com
quem não tinha afinidade e, na época, os julgava como “professores ruins”: meus
maiores problemas eram com os professores de matemática, disciplina da qual não
gostava e tinha grande dificuldade em compreender. Alguns professores desta matéria
me marcaram de forma negativa: a professora Adriana, do segundo ano, que gritou
comigo na frente de toda a sala porque eu não conseguia efetuar uma soma, e a
professora Olga, no sexto ano, que me chamou na lousa para efetuar um cálculo que eu
não havia compreendido, e me deixou lá, sem qualquer explicação, até que eu
conseguisse resolver algo (o que só consegui fazer com a ajuda de colegas).
Também os professores que traziam elementos diferenciais para as aulas, que
eram sempre saturadas de conteúdos, deixaram sua marca positiva: a professora
Teresinha, que dava aulas de português, mas dava abertura para que em algumas aulas
realizássemos grupos de discussão sobre assuntos de nosso interesse – temas que
remetiam ao início da adolescência, a preconceitos, relacionamentos, dentre outros –; a
professora Marisa, de geografia, que criava músicas sobre o conteúdo para que
entendêssemos melhor; a professora Mara, de inglês, com quem aprendemos a língua a
partir das músicas dos Beatles; o professor Célio, de história, que dava aulas bastante

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dinâmicas e nos ensinou um método de estudo bastante proveitoso, para que
conseguíssemos estudar para as provas que aconteciam todas as semanas.
Na perspectiva de Shulman (2005, p. 8), é necessário que o professor tenha
uma base de conhecimento consistente que não se restrinja apenas ao conhecimento do
conteúdo que será ensinado, mas também um conhecimento pedagógico geral e o
conhecimento pedagógico do conteúdo, além do conhecimento ligado ao currículo
escolar; trata-se de um “[...] repertório profissional que contém categorias de
conhecimentos que subjazem à compreensão que o professor necessita para promover a
aprendizagem dos alunos”. Para tal, exige-se que os professores sejam protagonistas da
construção de sua profissionalidade docente. Nas palavras de Mizukami: “Atividade,
reflexão, colaboração, paixão e comunidade, próprios ao exercício profissional, são
princípios, formas e estratégias necessários ao enfrentamento e superação dos desafios”.
Hoje percebo que grande parte dos professores com que tive o prazer de
aprender possuíam uma base bastante sólida não apenas do conteúdo que ensinavam,
mas também um conhecimento pedagógico bastante multifacetado – posto que as
estratégias por eles utilizadas para que todos os alunos se apropriassem dos conteúdos
eram bastante variadas e demonstravam que o conhecimento pedagógico e
metodológico lhes era bastante amplo. Mesmo os poucos professores com quem não
tinha afinidade demonstravam dominar tais conteúdos (embora algumas práticas, a meu
ver, surtissem o efeito contrário – como no caso da Professora Olga, que me gerou um
grande bloqueio em relação à matemática).
Poderia ocupar mais algumas linhas relatando as práticas docentes que me
marcaram positivamente durante este período, e as atividades que, na época, julguei
terem sido positivas em relação ao meu aprendizado. Exponho essas questões pois
percebo que, em meio à densidade das atividades e dos conteúdos com os quais me
deparei logo no início do Ensino Fundamental – uma proposta curricular da escola na
qual estudei –, à quantidade de avaliações semanais e à carga de trabalhos que deveriam
ser realizados, o que me rendeu conhecimento efetivo foram as ações que se afastavam
de uma pedagogia pautada no modelo tradicional, baseada na transmissão e assimilação
de conteúdos, principalmente nos anos iniciais do Ensino Fundamental – em que a
infância se fazia ainda bastante presente. Apresentações de teatro, músicas, discussões
que extrapolavam o que estava contido no livro, atividades artísticas, as feiras de
ciência, dentre outros, mostraram-se bastante positivos para meu aprendizado, e que

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demonstram a relevância da flexibilização do profissional docente, como já postulado
por Shulman (2005).
Nos anos finais do Ensino Fundamental, especialmente no sétimo e oitavo ano,
assuntos como “vestibular” e “universidade” eram recorrentes. Como atividades
extracurriculares, já havia simulados das provas dos principais vestibulares e testes
vocacionais, para que pensássemos em qual carreira gostaríamos de atuar. Era bastante
difundido pelo colégio o slogan de que os alunos que lá estudavam passavam nos
maiores vestibulares do país e, por isso, logo cedo a pressão para que escolhêssemos a
carreira que queríamos seguir e nos focássemos no vestibular já se fazia bastante
presente. A possibilidade de não realizar um curso superior não era nem ao menos
considerada pelos professores e pelos alunos. Isso demonstra um dos elementos
diferenciadores entre o ensino da rede privada e o da rede pública, cujas reformas, como
destacado por Cerrillo (2001, p. 142), afetam em larga medida o aproveitamento e a
formação dos alunos, em geral, e o desenvolvimento da profissionalização docente, em
particular. Neste contexto de precarização do trabalho do professor, somado a um
quadro de alunos que acabam por não encontrar perspectiva no modelo escolar ao qual
estão submetidos, palavras como “vestibular” e “universidade” encontram-se distantes
do vocabulário rotineiro.
Sempre tive muitas dúvidas sobre a profissão que queria seguir. Claramente
não tinha nenhuma afinidade com as ciências exatas, por isso desconsiderava qualquer
carreira em que tivesse que me deparar com cálculos ou algo do tipo; minhas disciplinas
preferidas na escola sempre foram o português, a literatura, as artes, a história e a
geografia. No entanto, ao considerar minha futura profissão, a única certeza que me
vinha em mente era a de que não queria, de maneira alguma, me tornar professora.
Diferente de minha primeira infância, onde a aproximação com a docência era
marcada pela admiração e pelo reconhecimento, à medida que fui crescendo passei a
perceber que os problemas que envolviam a profissão eram bastante complexos. Diante
das inúmeras intercorrências pelas quais os professores de minha família passavam –
baixos salários, indisciplina dos alunos, péssimas condições materiais, problemas com a
gestão das escolas, cansaço físico e emocional, excessiva carga de trabalho –, passei a
rejeitar qualquer proximidade com um curso superior que me levasse à docência na
educação básica. Além disso, cresci ouvindo de meus familiares que não deveria ser
professora, pois tinha exemplos dentro de casa e sabia das dificuldades pelas quais
passaria se optasse por esse caminho.

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Sem nenhuma certeza do que faria dali em diante, adentrei o Ensino Médio em
busca de respostas sobre o que poderia fazer em relação ao vestibular que se
aproximava. A pressão por parte da escola era cada vez maior, e o conteúdo deveria ser
compreendido por completo. Novas disciplinas que, para mim, trouxeram um alto grau
de dificuldade: física, química, biologia, e também a sociologia e a filosofia. A partir
daqui, teríamos aulas no período da manhã e da tarde, passando o dia todo na escola.
Havia a cobrança, ainda, de que estudássemos todos os dias em casa, e este hábito
deveria se intensificar cada vez mais.
A maioria dos professores se dedicava intensamente aos alunos; quando
necessário, eram marcados plantões de dúvida e aulas extras no período da noite.
Conheci, neste período, conteúdos aos quais antes não tinha acesso de forma
sistematizada: a literatura, a filosofia e a sociologia me encantavam com seus
questionamentos sobre o ser humano e suas relações.
Os professores que ministravam estas matérias tiveram grande contribuição
para que o meu prazer em estudá-las se efetivasse; a professora Ana Maria, de
Literatura, falava dos autores e de suas obras com tanta paixão que me comovia. Já a
professora de biologia, Keila, era uma pessoa muito séria; todos os alunos ficavam
embasbacados com suas aulas, pois sua forma de falar mostrava tanta clareza, que era
impossível não se prestar atenção ao que ela dizia. Por sua vez, meu professor de
filosofia e sociologia era o Irmão Roque. As concepções acerca da vida e do mundo de
diversos autores eram discutidas em sala de aula, mediadas por suas falas acerca do que
considerava sobre o mundo e sobre a humanidade. Das matérias não tão bem quistas os
professores também foram marcantes, e o foram pela forma com que abordaram os
conteúdos que eram tão complexos para tantos. Dentre estes havia o professor Rubinho,
de física, que nos fazia rir das piadas e músicas que criava para que decorássemos as
fórmulas, e o professor Danilo, de matemática, que a explicava de forma que não
parecesse tão maçante, para que entendêssemos o conteúdo. Novamente, recorremos à
proposta de Shulman (2005) para afirmar que o conhecimento pedagógico dos
professores, ligados à didática e à metodologias diferenciadas teve papel extremamente
relevante em minha formação escolar.
Outra descoberta do Ensino Médio foram as aulas de teatro; a professora de
artes, Eliana, disse que estava pensando em montar um grupo de teatro, e disse que
quem estivesse interessado poderia participar. Eu nunca havia me interessado
seriamente por teatro, porém, eu e mais alguns alunos resolvemos aceitar o convite e

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comparecer ao grupo. Logo de imediato, vi que ali estava a resposta que tanto procurei,
e decidi que cursaria o curso superior de artes cênicas. As tardes que passava nas aulas
de teatro eram as mais agradáveis; exercitávamos nossa criatividade, através da
invenção de cenas e da prática de modalidades de interpretação. Apresentamos diversas
peças na escola, e durante todo o ensino médio participei do grupo através de diversas
atividades extracurriculares.
Minhas aulas de teatro permearam todo meu Ensino Médio, e, de início, estava
certa de que cursaria artes cênicas. Porém, devido aos bons professores que tive, logo
essa certeza se esvaiu. No terceiro e último ano, fomos apresentados ao novo professor
de História: Paulo Pizigatti, vulgo “Paulão”, como era chamado pelos alunos. Suas aulas
me transportavam a outro universo. Muitas palavras me vêm em mente ao pensar em
suas aulas: competência, conhecimento, posicionamento crítico, e de repente eu estava
imersa em suas concepções para que pudesse construir as minhas. Sua competência
permitiu a desconstrução da história como algo pautado na inércia e na linearidade, e
pude entender ali o real ofício de um historiador.
Decidi, então, que queria construir meus conhecimentos da mesma forma que
esse professor. Surgiu, aí, meu grande dilema: se optasse por prestar o vestibular para o
curso de História, possivelmente me tornaria professora – algo de que queria distância.
Depois de muito pensar e pesquisar sobre as possibilidades circunscritas à História e às
ciências humanas, cheguei a conclusão de que deveria prestar o curso de Ciências
Sociais, pois este, além de me propiciar conhecimentos ligados aos meus interesses, me
traria outras opções, sem a obrigatoriedade de enfrentar uma sala de aula.
Parti para a bateria de vestibulares, e, para minha surpresa, fui aprovada no
vestibular para Ciências Sociais na Unesp de Araraquara. Esta não foi a opção que
deixou minha família mais contente; todos me incentivavam às grandes carreiras, como
o Direito ou a Engenharia. No entanto, acabaram aceitando minha escolha, e passaram
então a incentivar que eu continuasse estudando, mesmo depois de terminar a
graduação.

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PARTE II
CONSTRUINDO PARA DESCONSTRUIR: ROMPENDO OS ENLACES

Então, arrumei minhas malas e me mudei, no ano de 2008, para Araraquara.


Cidade nova, um novo estilo de vida, e a liberdade de pela primeira vez morar longe de
casa. Ao mesmo tempo em que tinha consciência de que queria estar ali, vivendo aquele
novo mundo, a insegurança era bastante grande. Será que escolhi o curso certo? E se eu
não estiver preparada para as aulas da faculdade? Como vou aprender tantas coisas
novas?
Inicialmente, o curso de Ciências Sociais trouxe aquilo que eu já esperava:
conhecimentos ligados à antropologia, sociologia, política, história, filosofia, dentre
outras. Muitas das ideias e concepções que havia construído durante minha trajetória
foram se esmaecendo à medida que compreendia as teorias e conceitos, que se provaram
ágeis em derrubar minhas visões de mundo. No entanto, havia algo que me deixava
incomodada; onde se encontrava a prática? O que iria fazer com tudo aquilo que me era
apresentado? Eu havia planejado todo meu percurso profissional. Mas de que adiantava
tomar posse dos conhecimentos teóricos, se não poderia fazer algo de útil à sociedade
com eles? Diante de tais questionamentos, passei a enxergar um único meio que
suprisse minha necessidade de fazer algo com o conhecimento que adquiriria: utilizá-los
em favor da docência.
Obviamente, o despontar destes questionamentos gerou uma série de crises em
relação às minhas escolhas e às minhas concepções tão arraigadas sobre o ser
professora. Era contraditório que, justo no momento em que havia feito minha escolha
profissional, percebesse a docência como um caminho a ser seguido, mesmo negando
esta possibilidade por tanto tempo. Em meio a esse embate pessoal, houve na
Universidade um minicurso – “Ciências Sociais na escola: uma experiência em
movimento”, onde alguns alunos mostraram o trabalho realizado em salas de aula do
Ensino Médio. Este minicurso foi determinante para minha escolha, pois percebi que,
embora a docência fosse permeada por inúmeros problemas, era isso que eu desejava
fazer.
Porém, ainda não estava satisfeita. Eu havia aceitado, a duras penas, que uma
parte de mim queria tornar-se professora. Mas de que modo, e para quem eu faria isso?
As ciências sociais, embora me trouxessem naquele momento um conhecimento

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bastante amplo, não me traziam a satisfação que trouxera no início do curso. Meus
interesses, gradualmente, foram tomando a direção da área da educação. Eu queria
compreender os problemas sociais, as questões políticas e antropológicas, porém, queria
fazê-lo sob a perspectiva da escola e das teorias pedagógicas.
Então, uma última vez me decidi. Para insatisfação de meus familiares,
tranquei o curso de ciências sociais e, no final do ano de 2008, prestei novamente o
vestibular para o curso de pedagogia da Unesp/Araraquara, no qual fui aprovada. A
partir daí, uma nova etapa em minha trajetória de formação docente teve início.
O curso de pedagogia, de início, trouxe muito daquilo que eu esperava:
conhecimentos acerca da sociologia, da história, da filosofia, tendo como norte o campo
da educação e da formação. Nos primeiros anos do curso me identifiquei de forma
bastante profícua com os tantos textos que deveriam ser lidos, as ideias dos grandes
pensadores que se dedicaram a pensar sobre a formação dos indivíduos e os diversos
conceitos paralelos a esta. Os bons professores, novamente, se fizeram presentes durante
o curso, e tiveram grande importância para que eu desenvolvesse minhas ideias sobre a
educação de modo fundamentado e crítico.
Aprendi, já durante a graduação, que o processo de formação docente se dá em
dois momentos: a formação inicial, que se acolhe os conhecimentos teóricos acerca da
educação e insere o licenciando em sala de aula através dos estágios supervisionados, e
a formação prática, que se dá a posteriori, e que ocorre ao longo dos anos iniciais em
que o professor inicia sua atuação docente, em que se aprenderá, de fato, a ensinar de
maneira reflexiva e com segurança. Flores (2014) amplia essa perspectiva, afirmando
que

Aprender a ensinar constitui um processo complexo e multifacetado


que começa antes da entrada num curso de formação inicial de
professores e é influenciado por um conjunto de variáveis, de
perspectivas, de crenças e de práticas, por vezes conflituais, que
marcam a transição de aluno a professor, destacando-se a
aprendizagem pela observação durante a experiência escolar no
contexto da sala de aula onde os futuros professores observaram a
atuação de seus professores. Esta cultura é reativada durante a
formação inicial persistindo ainda na prática profissional (p. 219).

Minhas experiências com a docência, seja em momentos de afastamento ou de


aproximação, foram influenciadas de forma preponderante pela relação que estabeleci
com professores – fossem os professores com que tive contato durante minha trajetória

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de escolarização, fossem os professores de minha família, com quem tinha maior
proximidade. Deste modo, seria impossível desvincular meu processo formativo de
minha trajetória de vida.
Flores destaca também um aspecto bastante relevante acerca da prévia inserção
do licenciando na escola e no âmbito das práticas pedagógicas: “[...] deve-se dar
especial atenção às oportunidades e experiências para apoiar e ajudar os futuros
professores a tornarem-se bons professores, o que requer a mudança pessoal e
profissional, e não apenas adquirir saberes sobre o ensino” (p. 219). Como citado por
outros autores, como Day (2014), Gatti (2010), Cerrillo (2001), André (2010), os
estágios obrigatórios, em grande medida nos cursos de Licenciatura no Brasil, tem uma
carga horária bastante precária e são reduzidos à mera observação da prática do docente
da sala de aula. Isto implica a necessidade de que a formação docente seja reestruturada
em direção à um tipo de inserção profícua do licenciando em sala de aula. Segundo
Flores (2014),

O estágio tem sido entendido como um elemento central na formação


de professores e como espaço privilegiado para superar a falta de
articulação entre teoria e prática. A articulação entre os dois locais de
aprendizagem profissional (escolas e universidades), a colaboração
entre supervisoras, professores e cooperantes e a ligação entre o
conhecimento prático e as competências adquiridas na universidade
têm sido aspectos identificados na literatura nesse domínio (p. 223).

Senti isso nos primeiros meses em que realizei o estágio obrigatório. Ainda,
logo no segundo ano de curso passei a participar também do PIBID – Programa
Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência –, e também do Programa de estágio do
CENPE – Centro de Pesquisas da Infância e da Adolescência (Unidade Auxiliar da
Unesp/Araraquara). O objetivo do primeiro consistia na inserção dos licenciandos em
salas de aula da Educação Básica, porém, sob uma perspectiva diferente dos estágios
obrigatórios do curso; deveríamos acompanhar uma mesma sala de aula durante dois
anos, realizando intervenções conjuntas com a professora e intervenções individuais. O
programa também exigia que participássemos de grupos de estudos onde discutiríamos
com o orientador as questões ocorridas em sala de aula, realizando a ponte entre
universidade e escola. O segundo, estágio que também durou dois anos, consistia no
acompanhamento de alunos com dificuldades de aprendizagem que eram encaminhados
ao centro, e nós, estagiárias, preparávamos atividades diferenciadas que pudessem

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suprir as dificuldades em questão. A participação em um grupo de estudos sobre o tema
também era obrigatória, bem como a supervisão no momento de elaboração das
atividades.
Todas estas atividades práticas foram fundamentais para minha formação.
Especificamente, a participação no PIBID e no estágio do CENPE detiveram especial
relevância: nestes, senti uma aproximação maior com o fazer docente. Na sala de aula
que acompanhei durante os anos de PIBID, me aproximei da professora que me
supervisionava e, juntas, pudemos pensar em atividades diferenciadas, nos problemas
que a sala apresentava; nos momentos em que realizei minhas atividades “solo”, não me
senti em momento algum desamparada, pois a professora estava presente para me
auxiliar caso algum problema acontecesse. Já o estágio realizado no CENPE me trouxe
subsídios infindáveis para repensar atividades e modos de intervenção, bem como
compreender as diferentes dificuldades de aprendizagem que despontam em uma sala de
aula. Vê-se, aí, a relevância da articulação teórico-prática no âmbito da formação inicial,
posto que esta deveria subsidiar experiências mais profundas com a docência, para além
do estágio obrigatório reduzido à observação.
Nos anos que se passaram, percebi que havia feito a escolha certa; mesmo com
todos os “poréns”, especialmente a insegurança sempre presente no processo de
formação inicial, e sabendo das dificuldades que enfrentaria no futuro, passei a ver a
docência com outros olhos.

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PARTE III
DESVENDANDO OS CAMINHOS E DESCAMINHOS DA DOCÊNCIA

Finalizei minha graduação em 2012, e, a partir daí, iniciava-se uma nova


batalha: o que fazer após a faculdade? Seria difícil conseguir um emprego na área? Eu
deveria continuar meus estudos na pós-graduação? Como iria me manter a partir de
então? Desde o início da graduação, tinha o desejo de aprofundar meus estudos através
da pesquisa, no mestrado e no doutorado. Porém, também gostaria de estar em sala de
aula – visto que já compreendia a pesquisa em educação como uma via de mão dupla,
considerando a necessidade de estar em sala de aula para compreender a fundo as
questões escolares. Então, com isso em mente, elaborei um projeto de pesquisa e decidi
me inscrever no processo seletivo para o mestrado na Unesp, ao mesmo tempo em que
prestei um processo seletivo para professor temporário do Ensino Fundamental I (etapa
com a qual sentia maior afinidade e tinha maior “experiência”, devido ao PIBID) da
Rede Municipal de Araraquara.
Em abril de 2013 fui chamada para assumir uma sala de aula de 4º ano em uma
escola campesina localizada em um Assentamento, como professora temporária, e, no
mesmo período, fui selecionada para o mestrado em educação escolar, que se iniciaria
em agosto do mesmo ano. A partir daí, iniciou-se um novo tempo, que exigiu mais de
mim do que poderia imaginar.
Optei por aceitar o trabalho de professora e cursar o mestrado. Sabia que não
seria uma trajetória fácil, principalmente por aquele ser o meu primeiro ano atuando em
sala de aula, e por já prever que a carga de trabalho do mestrado também seria grande.
Imaginei que, como as aulas da pós-graduação só teriam início em agosto, haveria um
tempo até que eu me adaptasse ao trabalho em sala de aula.
As coisas foram muito difíceis no início. Lembro-me que, no primeiro dia que
cheguei à escola, minhas pernas tremiam e sentia que minha voz não sairia de maneira
alguma. Mesmo com todo o processo de formação inicial que me permitiu realizar
intervenções em sala de aula, me ver sozinha, responsável por meus alunos e tendo que
tomar decisões por minha própria conta, foi um choque bastante grande. Mesmo com o
apoio da gestão e dos outros professores – que sabiam que era minha primeira vez como
docente, e mostraram-se bastante solícitos –, me sentia bastante solitária. Tratava-se de
uma escola pequena, com apenas uma sala para cada ano de ciclo. Então, não havia
parceiros para compartilhar meus anseios.

17
Para Reali, Tancredi e Mizukami (2008), a base de conhecimento do professor
iniciante se difere consideravelmente daquela já presente na prática de professores
experientes; este professor iniciante, segundo as autoras, sofre de um tipo de “miopia”,
que faz com que focalize suas ações no âmbito da socialização no ambiente escolar e no
gerenciamento de demandas mais imediatas em sala de aula. Segundo as autoras, “O
conjunto de uma rede de desafios e demandas pode minar as energias dos iniciantes e
converter o otimismo em desânimo e desesperança” (2008, p. 83).
Segundo Gatti (2010), a formação do profissional pedagogo é insuficiente por
apresentar conteúdos/disciplinas genéricas, matrizes curriculares inespecíficas e estágios
que não constituem, de fato, um espaço de formação. Para a autora, a profissionalidade
se constitui através da mobilização da racionalização de conhecimentos e habilidades
necessárias ao exercício profissional, e a profissionalização do docente,
especificamente, requer que tais processos ocorram dentro de um espaço autônomo de
construção de sua própria individualidade. Mesmo tendo uma inserção diferenciada em
sala de aula, devido ao PIBID, percebi que minha formação não havia me preparado
para as tantas situações que passaria em meu primeiro ano como docente.
Na tentativa de sanar minhas dificuldades, passava todo o tempo em que estava
fora da escola planejando minhas aulas. Procurava atividades, lia e relia o material
didático utilizado pela escola, e mesmo assim, minha insegurança não diminuía. Eu
estava seguindo a metodologia adequada? Como adequar os conteúdos? E como ajudar
os alunos com problemas de aprendizagem, sendo que na sala havia mais vinte para
quem deveria dar atenção? Como adaptar atividades? Como gerir o comportamento de
meus alunos?
A partir da leitura de Day (2014) sobre a necessidade de que o professor
construa uma resiliência diária, se recuperando de acontecimentos adversos através da
reflexão e em oposição à mera sobrevivência em sala de aula, percebo que meus
primeiros meses foram marcados por atitudes de sobrevivência em sala de aula. Para
Day (2014), “O processo de ensinar, aprender e liderar requer que os envolvidos sejam
resilientes no seu dia-a-dia, persistentes, assumam um compromisso e tenham por base
valores fundamentais fortes” (p. 106).
Ocorre que me encontrava em processo formativo prático, e meus
conhecimentos acerca dos conteúdos escolares, dos conteúdos pedagógicos e
curriculares – minha base de conhecimento, como explicitado por Shulman – não
encontravam-se consolidados. Meus estudos sobre os conteúdos e as metodologias que

18
deveria usar ainda não eram suficientes para que minhas atitudes fossem resilientes em
minhas práticas. Mais do que certezas, eram os questionamentos acerca de minha
atuação que me enleavam naquele momento.
Em meio a estes questionamentos, uma pesquisadora que cursava o doutorado
em educação, Patrícia, foi até à escola, e propôs que alguns professores participassem de
sua pesquisa. Esta versava sobre o ensino colaborativo entre professores,
especificamente entre o professor do ensino fundamental I e o professor da educação
especial (que atua em espaços diferenciados). A pesquisa consistia, primeiramente, na
filmagem das aulas do professor titular e, posteriormente, esta filmagem seria analisada
pelo próprio professor, pela pesquisadora, e pelos outros professores que optassem por
participar da pesquisa. Após esta etapa, seriam pensadas atividades onde o professor
titular e o professor da educação especial atuassem de forma conjunta, e também
estratégias para que o titular repensasse sua atuação. Ao todo, isso aconteceria por três
meses.
Decidi participar da pesquisa, pois naquele momento, toda ajuda seria bem-
vinda. Eu e mais uma professora, além da professora da educação especial, fomos as
únicas que optaram por participar. E então, teve início um dos processos formativos
mais importantes de minha trajetória docente.
Depois de superar a inibição inicial, visto que minhas aulas eram filmadas duas
vezes por semana, percebi que compartilhar meus anseios e assumir que tinha
dificuldades em diversos âmbitos foi fundamental para que pudesse repensar minhas
intervenções. Assistíamos minhas aulas e as da outra professora, e repensávamos juntas
as fragilidades e os pontos fortes de nossa atuação. Assistir as gravações da outra
professora, também, teve grande importância; por ser já uma professora experiente,
pude observar suas atitudes frente às situações inusitadas, a forma com que lidava com
o conteúdo, e a segurança que tinha em relação à docência. Aprendemos sobre novas
estratégias de mediação, pudemos aplica-las em nossas práticas, e planejamos atividades
colaborativas, onde a professora de educação especial realizava intervenções em nossa
sala.
Posso afirmar que, após esse processo formativo, marcado pela interlocução
entre universidade e escola, meus anseios, embora se fizessem ainda presentes em
minha prática, foram aos poucos dando lugar a situações em que me sentia mais segura,
por saber quais estratégias utilizar. Ao final do ano letivo, embora consciente de minhas
limitações iniciais, que sabia que só minimizariam com o tempo de minha formação

19
prática, pude observar um quadro relativamente positivo em relação ao trabalho que
tinha realizado, devido principalmente ao aprendizado da formação em serviço.
Constata-se que essa proposta de formação em serviço se aproxima daquilo que
Flores (2014) nomeia de auto-estudo:

[...] envolve um escrutínio próximo da própria pedagogia inerente ao


processo de ensinar sobre o ensino de modo a desenvolver o
conhecimento sobre essa mesma prática. [...] deve ir além das meras
reflexões pessoais sobre a prática e incluir o questionamento dos
pressupostos teóricos que lhe estão subjacentes, com rigor e
sistematicidade, de modo a aprofundar o conhecimento sobre o ensino
e sobre a aprendizagem sobre o ensino (p. 226).

A autora considera que o auto-estudo pode ocorrer em três níveis: sobre si


próprio, em colaboração ou sobre instituições educativas. É possível perceber que a
pesquisa de doutoramento1 de Patrícia, que se traduziu em uma prática de formação
continuada, acabou por constituir um processo de auto-estudo pautado pela ação
colaborativa entre professores experientes e professora iniciante. A partir do momento
em que pude avaliar minha própria atuação em sala de aula, bem como a atuação da
outra professora que participava da pesquisa, através das filmagens e das discussões
fundamentadas, pude ter uma visão crítica de minha prática. Como explica Flores
(2014): “[...] ultrapassa o contexto inicial do estudo, remetendo para uma pedagogia da
formação de professores que implica um conhecimento de base partilhado acerca do
ensino sobre o ensino” (p. 227).
Isto favoreceu a construção inicial de minha base de conhecimento e de minha
identidade como docente. Segundo Mizukami (2004), a docência é uma atividade
aprendida ao longo do tempo, que deve pautar-se em determinados parâmetros e em
determinados conhecimentos, e são os conhecimentos de base que trazem certo
diferencial à prática docente. A partir da proposta de formação docente da qual
participei, pude dar início a construção de minha base de conhecimento e de meu
processo de raciocínio pedagógico de forma reflexiva, no sentido explicitado por
Keneth (2008):

[...] os professores devem exercer, juntamente com outras pessoas, um


papel ativo na formulação dos propósitos e finalidades de seu trabalho
1
Título: “Estratégias pedagógicas e inclusão escolar: um estudo sobre a formação continuada em serviço
de professores a partir do trabalho colaborativo” (2014). Disponível em:
https://repositorio.unesp.br/handle/11449/115668 , acesso em 04.07.2017.

20
e de que devem assumir funções de liderança nas reformas escolares.
A reflexão também significa que a produção de conhecimentos novos
sobre ensino não é papel exclusivo das universidades e o
reconhecimento de que os professores também têm teorias que podem
contribuir para o desenvolvimento para um conhecimento de base
comum sobre boas práticas de ensino (p. 539).

Minha atuação em sala de aula, em 2013, também foi importante para minha
pesquisa de mestrado. Embora a carga de estudos fosse bastante densa, e as cobranças
se fizessem presentes em tempo integral, pude sentir que o entrecruzamento teórico-
prático, que passei a ver como fundamental para a pesquisa em educação. Diversas
questões levantadas ao longo da pesquisa se deram em função daquilo que havia sido
observado em sala de aula. Vi, aí, que embora me sentisse bastante atraída pela área da
pesquisa em educação, não a desvincularia de minha prática em sala de aula, pois minha
formação como professora, subsidiada por estes dois âmbitos, se daria de forma mais
ampla e bem fundamentada.
Flores (2014) dá destaque para a importância da investigação na formação de
professores; embora em minha formação inicial o PIBID tenha me propiciado efetivar
essa relação – posto que desenvolvíamos trabalhos teóricos acerca de nossa atuação
como bolsistas –, o tipo de investigação realizado no mestrado trouxe uma
sistematização mais precisa de minha atividade docente; como explicitado por Flores,
“[...] a expectativa é a de que os professores se tornem professores investigadores, isto
é, consumidores de investigação – capazes de ler e interpretar investigação realizada – e
produtores de investigação – capazes de realizar investigação” (p. 225).
Como meu contrato no ano que se passou era temporário, prestei dois outros
concursos para professora efetiva: para o Ensino Fundamental I, e para a Educação
Integral. Nunca havia trabalhado com o segundo seguimento, e não tinha muitas
certezas sobre como esse sistema funcionava. Sabia, vagamente, que o modelo se dava
através de oficinas na área de artes, e que o programa no município de Araraquara era
bastante consolidado. No entanto, por ter afinidade com essa área, optei por prestá-lo
mesmo sem conhecê-lo em profundidade.
Para minha surpresa, fui aprovada em uma boa colocação no concurso para
trabalhar com a Educação Integral. Porém, fui contratada apenas em agosto de 2014. No
primeiro semestre deste ano, então, dediquei atenção exclusiva ao mestrado, finalizando
as disciplinas e realizando minha pesquisa de campo. No segundo semestre voltei à
rotina de trabalhar e estudar; no entanto, uma nova adaptação foi necessária, visto que o

21
modelo da educação integral exigiu que eu elaborasse de forma diferenciada minhas
práticas docentes.
Minhas primeiras impressões da educação integral eram bastante difusas. Não
imaginava exatamente se haveria documentos ou materiais que norteariam a prática
desse “professor oficineiro”, ou se haveria algum programa a ser seguido. Quando
cheguei à escola para a qual fui alocada, descobri que a oficina que ministraria, naquele
ano, seria de música. A coordenadora me explicou, então, que na educação integral
trabalhava-se com a pedagogia de projetos, e cada escola, no início do ano letivo,
determinava qual tema seria abordado no projeto anual. Cada professor poderia escolher
o direcionamento da oficina que ministraria, os temas, e as atividades deveriam ser
elaboradas em acordo com os objetivos inicialmente estipulados. Portanto, ficaria a meu
critério a forma com que o projeto teria seguimento.
Ao me deparar com tanta “liberdade”, fiquei um tanto quanto receosa. Como
criar atividades, ao longo de um ano inteiro, que se diferenciassem das atividades do
Ensino Fundamental e que se adequassem ao projeto da escola? O próprio espaço
escolar era organizado de forma diferenciada; as salas de aula não tinham carteiras,
armários e lousas, mas sim almofadas, pequenas cadeiras organizadas em círculos,
brinquedos, fantasias, máscaras, espelhos, palcos... tudo muito diferente daquilo que eu
havia convivido até então. Ocorre que, ao adentrar uma nova área de atuação – seja ano
de ciclo, seja segmento educacional –, o professor se vê novamente como iniciante; e,
embora ainda em meu início de carreira, me vi nessa posição e novamente vi a
necessidade de me adaptar ao novo contexto.
Foi um grande desafio adaptar minha pouca prática em sala de aula a tantas
novidades. Planejar as oficinas me exigia criatividade; ao contrário de buscar
referências em materiais didáticos, como fazia até então, a literatura, a música e o teatro
se tornaram minhas grandes referências no trabalho. Pensar nas formas metodológicas
de aplicação das atividades também exigia inovações; era necessário sempre inovar as
formas das atividades e as vias de diálogo.
Parte das referências que deram subsídio à construção de meus primeiros
passos na educação integral foram encontradas em um tempo mais distante, qual seja,
aquele em que as práticas de meus professores do ensino fundamental e médio se faziam
marcantes por trazerem elementos que se distanciavam de uma abordagem
exclusivamente conteudista. Assim, através da rememoração de minhas aulas de teatro,
das músicas que eram cantadas em sala de aula, dos debates promovidos pela Professora

22
Teresinha, dos livros indicados por minha professora de literatura, dentre tantos outros
elementos que eram constantemente lembrados na medida em que planejava minhas
aulas, pude compreender a relevância de meus professores para a construção de minha
profissionalidade.
Com o tempo e com a ajuda dos outros professores, percebi que a Educação
Integral se aproxima da perspectiva de uma educação sensível, fundamentada na
afetividade e na ludicidade – que são pouco a pouco tomadas das crianças quando
chegam ao Ensino Fundamental. Fui buscando cada vez mais inovar minha prática e
fortalecer o vínculo com meus alunos, e, depois de passar por diversas oficinas –
música, artes cênicas, educação ambiental, jogos e brincadeiras – vejo que me identifico
cada vez mais com esse modelo educacional. Mesmo sendo ainda uma professora
iniciante – posto que meus cinco anos de atuação na escola ainda me deixam insegura
com determinadas situações, e a necessidade de subsídios prático-didáticos seja
constante –, a experiência com a educação integral me gera aprendizados diários.
A opção de cursar o mestrado concomitantemente à minha formação prática foi
de grande relevância. Não foi uma escola simples – visto que nem sempre pude contar
com o apoio da equipe gestora escolar, e que as condições fornecidas pela Secretaria
Municipal de Educação de Araraquara ao professor que cursa a pós-graduação estão
longe de serem ideais –, e passei por diversos desafios para finalizar o mestrado. No
entanto, ao passo que desenvolvi os conhecimentos teóricos necessários ao trabalho
acadêmico, pude articulá-los à minha prática, ao mesmo tempo em que a sala de aula
me trazia diversos elementos importantes para repensar as questões teóricas no contexto
de meu trabalho.
A defesa de minha dissertação aconteceu em janeiro de 2016 e, neste ano, usei
meu tempo para desenvolver um novo projeto que me permitisse prestar o processo
seletivo para cursar o doutorado. Fui aprovada para o curso de doutorado na Ufscar e,
desde então, continuo seguindo o caminho da docência na Educação Integral,
aprendendo diariamente através de minha prática, e dei início a essa nova etapa no curso
de doutorado, sobre a qual poderei lembrar no futuro.

CONCLUSÕES

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A realidade cotidiana é percebida por cada um de nós de um modo
muito particular, damos sentido às situações por meio do nosso
universo de crenças, elaborado a partir das vivências, valores e papéis
culturais inerentes ao grupo social a que pertencemos.
(GALVÃO, 2005, p. 328).

A partir da elaboração do memorial de minha trajetória docente, foi possível


notar com maior atenção aquilo que há de mais particular em minhas experiências. Tais
particularidades trazem à tona a construção de minha profissionalidade docente que,
como já explicitado no início desta narrativa, iniciou-se antes que eu me visse como
professora atuante.
Logo de cara pontuo esta questão por compreender que o fato de ter aprendido,
desde muito cedo, a coabitar o universo escolar, trouxe para minhas experiências uma
série de preconcepções acerca da docência: especialmente aquelas advindas de minha
família, onde a atuação docente não partiu de uma escolha, mas sim de uma necessidade
– em outras palavras, de uma oportunidade de atuar profissionalmente em um âmbito
que permitisse a inserção efetiva em um determinado mercado de trabalho. Isto
implicou que a construção de meu olhar sobre a docência se desse com base nas críticas
à profissão que ouvia dentro de minha própria casa. Segundo Reali, Tancredi e
Mizukami (2008, p. 79), aprender a ser professor é um processo contínuo que ocorre ao
longo da vida. Nas palavras das autoras:

[...] nos processos de aprendizagem profissional da docência ocupam


lugar de destaque as teorias pessoais (ou crenças, valores, juízos,
opiniões, concepções) dos professores que, de certa maneira, definem
fortemente suas práticas pedagógicas. Essas crenças são influenciadas
pelas experiências pessoais, experiências com o conhecimento formal,
experiências escolares e com a sala de aula (p. 82).

Por isso, a competência profissional para a docência não deve ser deduzida
apenas dos cursos de formação inicial em nível superior. Deste modo, vejo que minha
aprendizagem da docência teve início aí, justamente em minha negação e em minhas
críticas a esta profissão, pois minhas preconcepções foram meu primeiro aprendizado e
meus primeiros exemplos sobre o que me aguardava se me tornasse professora. Por
escolha, professora me tornei. E com o auxílio de minha formação inicial no curso de
pedagogia, de minha formação prática em serviço, e do subsídio teórico-prático

24
adquirido através da pesquisa na pós-graduação, minhas preconcepções foram
substituídas por conhecimento fundamentado sobre o ser professor.
Ter elaborado o memorial da trajetória docente foi fundamental desencadear
um novo tipo de formação mais ampla; isto porque, segundo Galvão (2005), a escrita de
narrativas funciona como um potente elemento que favorece o processo de reflexão
pedagógica e é parte do processo formativo: “O contar obriga a pensar e a procurar
explicações que são mais importantes para si do que para o ouvinte” (p. 341). Tem-se aí,
portanto, um processo investigativo sobre a própria trajetória, que pode ter reflexos na
formação docente.

REFERÊNCIAS

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ANDRÉ, M. Formação de professores: a constituição de um campo de estudos.

CERRILLO, Q. La escuela como espacio de trabajo para los professores.

DAY, C. A resiliência, os professores e a qualidade da educação.

FLORES, M. Desafios atuais e perspectivas futuras na formação de professores:


um olhar internacional.

GALVÃO, C. Narrativas em educação. Revista Ciência e Educação, v. 11, n. 2, p.


327-345, 2005.

GATTI, B. Formação de professores no Brasil: características e problemas.

GUEDES-PINTO, A. L. Memorial de formação – registro de um percurso.

KENETH, Z. Uma análise crítica sobre a reflexão como conceito estruturante na


formação docente.

MIZUKAMI, M. Aprendizagem da docência: algumas contribuições de L. S.


Shulman.

REALI, A; TANCREDI, R; MIZUKAMI, M.G. Programa de mentoria on-line:


espaço para o desenvolvimento profissional de professoras iniciantes e experientes.
Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 34, n. 1, 2008.

SHULMAN, L. Conocimiento y enseñanza: fundamentos de la nueva reforma.

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