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net/publication/315380275
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Cícero Da Silva
Universidade Federal de Tocantins
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Caderno da Realidade na Pedagogia da Alternância: um instrumento pedagógico mediador do letramento View project
All content following this page was uploaded by Cícero Da Silva on 30 October 2019.
1 Introdução
Assim como em outros domínios sociais, o uso da linguagem nas atividades típicas
da esfera escolar é primordial, pois constantemente seus atores recorrem à composição de
enunciados (orais ou escritos) específicos para executar suas atividades. Neste trabalho,
tomamos o vocábulo enunciado numa perspectiva bakhtiniana, o qual é denominado gênero
do discurso. Como é explicitado no excerto, os gêneros do discurso apresentam três
elementos básicos: conteúdo temático, estilo linguístico e construção composicional. De certo
modo, são relativamente estáveis, pois atendem as especificidades de comunicação de cada
campo quando se faz uso da linguagem. Para alguns estudiosos dos gêneros (MARCUSCHI,
2005, p. 17), a noção de estabilidade é interpretada como essencial para a afirmação da forma.
Entretanto, a concepção de relatividade sob a ótica enunciativa e da abordagem histórico-
social da língua, parece sobrepor-se aos aspectos estritamente formais e é capaz de delinear
melhor os aspectos históricos e os limites de cada gênero.
Como citar este trabalho:
SILVA, C.; MOREIRA, F. Caderno da Realidade enquanto gênero discursivo: conceituação, constituição e
práticas sociais. In: SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE ESTUDOS DE GÊNEROS TEXTUAIS, 6., 2011,
Natal. Anais... Natal: SIGET; UFRN, 2011. p. 1-15.
Como o autor russo previu que a “diversidade dos gêneros do discurso” é infinita e
ocorre em função da abundância de formas da atividade humana, enquanto espaço de
convivência de atores sociais, a escola oferece a possibilidade de composição e disseminação
de gêneros do discurso para atender as suas demandas típicas. E todos os gêneros
concretizam-se em textos (orais ou escritos), pois “[...] o texto é a realidade imediata
(realidade do pensamento e das vivências). [...]” (BAKHTIN, 2006, p. 307).
A discussão sobre concepções de texto, embora salutar em qualquer trabalho dessa
natureza, não será aprofundada aqui, pois o objeto principal deste estudo é o uso das normas
linguísticas no gênero Caderno da Realidade, instrumento pedagógico típico das escolas que
praticam a educação em regime de alternância. Todavia, buscamos conceitos que norteiam
nosso trabalho, sobretudo de autores brasileiros. Para Marcuschi (2009, p. 30), “[...] o texto é
o resultado atual das operações que controlam e regulam as unidades morfológicas, as
sentenças e os sentidos durante o emprego do sistema lingüístico numa ocorrência
comunicativa. [...]”. Em outras palavras, são as sentenças articuladas em termos de sentido,
ideias, recursos linguísticos, que vão resultar em textos. Em razão disso, a criação de cada
texto tem sempre um motivo, uma necessidade social, as marcas da autoria manifestadas no
estilo, os elementos recorrentes de cada gênero.
Portanto, por trás de cada texto está o sistema da linguagem. A esse sistema
corresponde no texto tudo o que é repetido e reproduzido e tudo o que pode
ser repetido e reproduzido, tudo o que pode ser dado fora do texto (o dado).
Concomitantemente, porém, cada texto (como enunciado) é algo individual,
único e singular, e nisso reside todo o seu sentido (sua intenção em prol da
qual ele foi criado). [...]” (BAKHTIN, 2006, p. 309-310)
Embora cada texto ou gênero seja algo “individual, ímpar”, ainda sob o ponto de
vista bakhtiniano ele manifesta “vozes de outros atores”, sobretudo quando se diz que tudo é
repetido e reproduzido. Isto por que a construção de um texto dá-se de maneira dialógica,
especialmente a partir das nossas vivências, experiências sobre as coisas e o mundo que nos
circunda. Isto ocorre basicamente em função do texto depender de atores que compartilham
de um mesmo sistema de linguagem para existir.
Além disso, outro elemento relevante nas interações sociais estabelecidas pelos
textos ou gêneros é o contexto. A vida discursiva de um texto, na maioria das vezes, surge ao
situá-lo em um determinado contexto. Para alguns autores, não há uma definição precisa sobre
contexto, mas a maleabilidade linguística permite que outras terminologias como esfera,
retome o sentido de contexto. Desse modo,
[...] os estilos de linguagem ou funcionais não são outra coisa senão estilos
de gênero de determinadas esferas da atividade humana e da comunicação.
Em cada campo existem e são empregados gêneros que correspondem às
condições específicas de dado campo; é a esses gêneros que correspondem
determinados estilos. [...] (BAKHTIN, 2006, p. 266)
Portanto, nesse excerto vê-se que o autor usa esfera em referência ao que seria
contexto. Por si só, isso já é uma marca de uso da linguagem em determinado ambiente, pois
no contexto social vivenciado por Bakhtin, em função de algum motivo, optou-se por
empregar em seus textos o vocábulo esfera em lugar de contexto. Para corroborar isso,
Halliday e Hasan (1989, p. 46) afirmam que o contexto “[…] é o ambiente imediato em que
um texto está realmente funcionando. Usamos essa noção para explicar por que certas coisas
foram ditas ou escritas, nesta ocasião especial, e o que mais poderia ter sido ou escrito que
Como citar este trabalho:
SILVA, C.; MOREIRA, F. Caderno da Realidade enquanto gênero discursivo: conceituação, constituição e
práticas sociais. In: SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE ESTUDOS DE GÊNEROS TEXTUAIS, 6., 2011,
Natal. Anais... Natal: SIGET; UFRN, 2011. p. 1-15.
1
Do original em inglês, contexto “[...] is the immediate environment in which a text is actually functioning. We
use this notion to explain why certain things have been said or written on this particular occasion, and what else
might have been or written that was not.” (p. 46)
2
No Brasil, os dois tipos principais de unidades educativas (CEFFA) que assumiram o sistema pedagógico da
Pedagogia da Alternância são mais conhecidos por Escolas Famílias Agrícolas (EFA) e Casas Familiares
Rurais (CFR). Entretanto, ambas têm objetivos comuns, voltados à formação de jovens agricultores.
3
Do original em inglês, textos: “[...] are very commonly designed to make the most economical connection with
context precisely to avoid unnecessary linguistic processing, so that understanding them is not a function of
analysis at all.” (p. 23)
Como citar este trabalho:
SILVA, C.; MOREIRA, F. Caderno da Realidade enquanto gênero discursivo: conceituação, constituição e
práticas sociais. In: SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE ESTUDOS DE GÊNEROS TEXTUAIS, 6., 2011,
Natal. Anais... Natal: SIGET; UFRN, 2011. p. 1-15.
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Embora fossem leigos, os pais tinham consciência de que o modelo de ensino (francês) precisava mudar para
atender as necessidades reais de seus filhos.
Como citar este trabalho:
SILVA, C.; MOREIRA, F. Caderno da Realidade enquanto gênero discursivo: conceituação, constituição e
práticas sociais. In: SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE ESTUDOS DE GÊNEROS TEXTUAIS, 6., 2011,
Natal. Anais... Natal: SIGET; UFRN, 2011. p. 1-15.
gêneros de texto (textuais). Apesar disso, compreende-se, segundo Rojo (2005, p. 185),
algumas diferenças básicas:
a) Gêneros do discurso (discursivos): de herança bakhtiniana, centram-se, sobretudo,
no estudo das situações de produção dos enunciados ou textos e em seus aspectos sócio-
históricos;
b) Gêneros de texto ou textuais: têm como foco a descrição da composição e da
materialidade linguística dos textos no gênero;
Como se pode observar, a abordagem metodológica para estudo dos primeiros tem
como foco principal a descrição dos eventos de enunciação e aspectos sócio-históricos que
envolvem o gênero. Por outro lado, quando se trata de gêneros textuais, o foco do estudo são
as marcas linguísticas e a descrição da composição dos textos no gênero. Isto torna um
trabalho de metalinguagem.
Quadro 1
Caderno da Realidade (CR)
Componentes de cada etapa
PE Conteúdo dos registros
de registro do PE no CR
Durante a preparação de saída do CEFFA para o meio
familiar/propriedade, ocorre a escolha de um tema ou PE
(por monitores e alunos). Em seguida, o monitor prepara
com os jovens um Questionário de pesquisa sobre o tema
do Plano de Estudo (PE) a ser aplicado na comunidade. No
meio familiar/propriedade, o alternante planeja e prepara as
Parte 1 Pesquisa do PE
atividades, como a transcrição das respostas ao questionário
na folha própria do CR, para apresentar ao retornar ao
CEFFA. Assim, a Pesquisa do PE é um texto composto
apenas de questões e respectivas respostas de um ator da
comunidade, podendo ser os pais ou outras pessoas que
Criação de suínos
Apesar de não ser impresso em uma gráfica, a EFAZD é responsável pela confecção
dos CR para cada ano letivo em material impresso e compilado em espiral. O modelo é o
mesmo para as turmas do 6º, 7º, 8º e 9º ano. Por si só, a padronização desses elementos da
estrutura do caderno para os registros representa uma tentativa de estabilização do gênero na
escola. Em se tratando das práticas de linguagem, “[...] do ponto de vista do uso e da
aprendizagem, o gênero pode, assim, ser considerado um megainstrumento que fornece um
suporte para a atividade, nas situações de comunicação, e uma referência para os aprendizes”
(SHNEUWLY; DOLZ, 2004, p. 64). Por isso, o sucesso e a importância do gênero Caderno
da Realidade para fazer cumprir a missão educativa da Pedagogia da Alternância. Trata-se,
então, de um megainstrumento que para existir depende de outros instrumentos pedagógicos.
Por outro lado, é importante ressaltar também que
[...] O gênero do discurso não é uma forma da língua mas uma forma típica
do enunciado; como tal forma, o gênero inclui certa expressão típica a ele
inerente. No gênero a palavra ganha certa expressão típica. Os gêneros
correspondem a situações típicas da comunicação discursiva, a temas típicos,
por conseguinte, a alguns contatos típicos dos significados das palavras com
a realidade concreta em circunstâncias típicas. [...] (BAKHTIN, 2006, p.
293)
4 Considerações finais
O trabalho não deixa dúvidas de que o propósito dos CEFFA, por meio das práticas
educativas por alternância, seja proporcionar aos jovens do meio rural uma modalidade de
educação que valoriza a sua realidade, a sua vida familiar e comunitária e as suas atividades
cotidianas. Tudo orientado por um processo que instiga o jovem a sistematizar a reflexão e a
ação, de modo que possa alcançar a transformação da realidade local e comunitária.
Avaliando alguns pontos que foram discutidos no estudo, o gênero Caderno da
Realidade é, de fato, um instrumento fundamental para a PA cumprir alguns de seus objetivos.
Além disso, o CR depende dos Planos de Estudo e de outros instrumentos pedagógicos para
implementar a sua produção. É preciso admitir que os seus textos apresentam certas
peculiaridades, quer sejam no plano estrutural, formal ou abordagem discursiva.
Os PCN enfatizam que “toda educação comprometida com o exercício da cidadania
precisa criar condições para que o aluno possa desenvolver sua competência discursiva”
(BRASIL, 2001, p.23). E a PA desde seus primórdios reconheceu isso nas experiências
desenvolvidas nas Maisons francesas, ao introduzir a sua La monografhie de village
(Monografia da comunidade). Ou seja, o texto (do próprio jovem) passa a ser uma ferramenta
importante para o fazer pedagógico. Uma das bases das práticas educativas é o texto que o
jovem produz sobre a realidade da sua família, da comunidade, das suas experiências. Mas,
para que tudo isso aconteça, as práticas discursivas são essenciais.
Portanto, hoje o CR preenche essa lacuna, pois tem sua composição dentro de um
processo didático-pedagógico dialógico do ponto de vista bakhtiniano, situado numa
pedagogia que se aproxima, de fato, de uma proposta transdisciplinar (FAZENDA, 2003) a
partir dos temas geradores dos Planos de Estudo. É uma experiência de ensino e produção de
um gênero (CR) bastante peculiar e que exige dos atores (estudantes, monitores, pais,
parceiros de sala de aula, etc.) um envolvimento contínuo. Como diz Bakhtin (2006, p. 268),
“os enunciados e seus tipos, isto é, os gêneros discursivos, são correias de transmissão entre a
história da sociedade e a história da linguagem.” Nesse sentido, o CR representa muito bem as
correias de transmissão não só do conhecimento que temos sobre a história da PA e do estilo
linguístico empregado em seus textos, mas também a história de uma educação de iniciativa
popular, construída por e para um grupo minoritário: os camponeses.
Referências bibliográficas
BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. In:_______. Estética da criação verbal. 4. ed.
São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 261-335
BAZERMAN, Charles. Gêneros textuais, tipificação e interação. 3. ed. São Paulo: Cortez,
2009.
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de aula. São Paulo: Parábola Editorial, 2004.
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Fundamental. Língua Portuguesa. Brasília: MEC/SEF, 2001.
EFA – Escola Família Agrícola. PPP da Escola Família Agrícola Zé de Deus. Colinas: 2009.
ESTEVAM, Dimas de Oliveira. Casa Familiar Rural: a formação com base na pedagogia da
alternância. Florianópolis: Insular, 2003.
FAZENDA, Ivani. Interdisciplinaridade: qual o sentido? São Paulo: Paulus, 2003.
HALLIDAY, M. A. K.; HASAN, Ruqaiya. Language, context, and text: aspects of language
in a social-semiotic perspective. 2. Ed. Oxford: Oxford University Press, 1989.
Como citar este trabalho:
SILVA, C.; MOREIRA, F. Caderno da Realidade enquanto gênero discursivo: conceituação, constituição e
práticas sociais. In: SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE ESTUDOS DE GÊNEROS TEXTUAIS, 6., 2011,
Natal. Anais... Natal: SIGET; UFRN, 2011. p. 1-15.