Você está na página 1de 26

Amicus Curiae V.5, N.

5 (2008), 2011

Estado, políticas públicas e agentes sociais:


em busca do diálogo perdido

Wálber Araujo Carneiro1

Sumário
Introdução - 1. O Estado Social - 2. As políticas públicas - 3. As funções do Estado e as
políticas públicas - 4. Os agentes sociais e as políticas públicas - 5. Crise e reformulação
epistemológica - 6. O papel dos agentes sociais não-estatais na implementação das políticas
públicas - 7. Alternativas para a implementação das políticas públicas – Considerações finais
– Referências.

Introdução

Todos os estudos da contemporaneidade nos levam à constatação de que se vive uma


crise. Neste trabalho, a crise também será verificada. Contudo, dentre as diversas faces da
crise, a inefetividade da dimensão positiva dos direitos fundamentais marca o epicentro de um
problema que atinge diretamente o Estado e os agentes sociais, bem como a relação destes
com as políticas públicas voltadas para a concretização de tais direitos. Desse modo, busca-se
aqui discutir o papel do Estado e dos agentes sociais frente às políticas públicas, bem como o
modo em que vivem camuflados pelo velamento proporcionado por uma abordagem
conceitual-normativa.
Nesse estudo, será verificado que a crise que perpassa a concretização dos direitos
fundamentais, principalmente em sua dimensão positiva – aquela que exige prestações
materiais – é, em última análise, a grande marca da crise da modernidade, uma vez que o
constitucionalismo acabou incorporando as promessas dessa era. Por outro lado, ao passo em
que se vive uma crise decorrente dos déficites da modernidade, as estruturas historicamente
voltadas para a sua superação encontram-se obsoletas, modificadas ou desacreditadas. A
superação da crise da modernidade em um ambiente pós-moderno – na ausência de outro
nome – permite a constatação de uma crise dentro da crise: a de cariz epistemológico.

1
Professor de Introdução ao Estudo do Direito, Hermenêutica e Direito Econômico nos cursos de graduação e
pós-graduação da UNIFACS – Universidade Salvador. Professor convidado do CCJB – Centro de Cultura
Jurídica da Bahia no curso de especialização em Processo Civil. Doutorando pela Universidade do Vale do Rio
dos Sinos – UNISINOS, Mestre em Direito Público e Especialista em Direito do Trabalho e Processo do
Trabalho pela Universidade Federal da Bahia – UFBA. Advogado.

1
Amicus Curiae V.5, N.5 (2008), 2011

Desse modo, ao lado da denúncia e da desconstrução, o tema será abordado sob uma
perspectiva epistemológica, buscando, com isso, a possibilidade emancipatória de uma teoria
crítica. Na denúncia, restará latente o domínio da racionalidade instrumental e a decorrente
pauta estratégica em que se resumiu a ação política para, a partir de então, desconstruir as
bases ideológicas dessa racionalidade e propor uma reconstrução pautada em ações dialógicas
decorrentes da crença em um novo paradigma epistemológico. Assim, parte-se de uma análise
sumária do tipo de Estado onde se concebe as políticas públicas, bem como de um
desvelamento fenomenológico destas. Em seguida, busca-se as relações entre os agentes
governamentais e não governamentais com tais políticas para, ao final, ser analisada a
reformulação no tratamento dessas relações.

1. O Estado Social

Normalmente, a análise do Estado Social feita por juristas parte ou, pelo menos,
relaciona-se com o desenvolvimento do constitucionalismo moderno. Além de uma redução à
sua dimensão jurídica, tal enfoque pode provocar análises equivocadas. Resumidamente, a
questão passa pelos seguintes questionamentos: até que ponto o constitucionalismo foi
decisivo para a formação do Estado Social? Mais ainda, até que ponto as demandas sociais
foram determinantes para a formação do Estado Social? Nesse eixo, algumas questões devem
ser “desveladas”.
a) O Estado Social não se manifesta de uma única forma. Em primeiro lugar, temos um
Estado Social de economia planificada (os chamados Estados Socialistas) e os de economia
planejada, de cunho capitalista. Tal observação é importante porque não podemos perder a
idéia – e nas faculdades de Direito isso é corrente – que o Estado Social estudado na nossa
tradição acadêmica é um Estado capitalista. Em segundo lugar, este Estado Social capitalista
se manifestou em formas diferenciadas. Se levarmos em consideração duas características
básicas deste Estado – o intervencionismo na economia e a busca pelo bem-estar social –
perceberemos que, em muitos deles, a exemplo dos Estados latino-americanos, apenas a
primeira característica será marcante. Podemos utilizar a classificação de Gilberto Bercovici
(2003, p. 54) e sustentar a existência de um Estado Social em sentido amplo (bem-estar
social) e de um Estado Social em sentido estrito (apenas intervencionista).
b) O Estado Social surge, efetivamente, no período entre guerras e é impulsionado a
partir da década de 30. Na busca pelos fatores de formação deste Estado se encontrará duas
grandes questões: a crise do capitalismo e a demanda social. Sem fundamentalismos, não há
que se afastar uma em detrimento da outra e sustentar a existência de “uma” causa àformação
do Estado Social. De fato, os dois vetores foram decisivos, contudo, é possível verificar

2
Amicus Curiae V.5, N.5 (2008), 2011

aquilo que foi preponderantemente responsável e, para tanto, uma breve análise cronológica
pode revelar alguns detalhes. A chamada “questão social” se mostra muitos anos antes do
momento de formação do Estado Social, fato que pode ser comprovado pela Constituição
francesa de 1848, que já enunciava direitos sociais; pela publicação do Manifesto do Partido
Comunista (Karl Marx) naquele mesmo ano; pelas revoluções socialistas que, muito embora
estouradas na segunda década do séc. XX, já vinham sendo pensadas e preparadas muito antes
e por muitos outros fatos. Ou seja, a ruína do capitalismo liberal já havia se manifestado,
inclusive para o próprio capitalismo, na medida em que o intervencionismo voltado para a
manutenção de mercados já era presente nos Estados Unidos desde a metade do séc. XIX com
a ShermannAct. No entanto, o Estado Social capitalista só surge quando se percebe que a
“questão social” pode representar “revolução social” e quando o capitalismo passa a ver no
Estado a alternativa para a sua crise. Coincidência? Acredito que não. O Estado Social
capitalista é, preponderantemente, uma solução do próprio capitalismo.
c) O Estado Social, diferentemente do Liberal, é um Estado que assume um papel ativo
na economia, seja ele meramente interventor ou efetivamente social. Esse novo papel exige
uma nova postura do Estado que passaa planejar suas ações, principalmente a partir do
segundo pós-guerra. A questão do planejamento é o ponto de contato do Estado Social com as
políticas públicas e que, como será demonstrado, encontra-se, hoje,em descompasso. O
planejamento econômico não era uma imposição jurídica, no entanto ele se fez presente no
Estado Social pela necessária racionalização das atividades interventivas, razão pela qual Eros
Grau (2002) entende que o planejamento não é, em si mesmo, uma intervenção, mas sim a
racionalização desta atividade. Portanto, o fato de a teoria constitucional ter percebido a
existência de normas programáticas nas cartas constitucionais inseridas no paradigma social e
o fato de tais normas terem se proliferado nas cartas em razão do surgimento das
“constituições econômicas”, nada tem a ver com a implementação de tais planejamentos. O
próprio constitucionalismo comprova isso na medida em que as teorias constitucionais
vigentes não viam tal formação como efetivamente constitucional e, quando passaram a ver,
não as enxergava com caráter normativo. Ou seja, o planejamento foi uma necessidade do
Estado Social.
De certo modo, o caráter programático e não-normativo da constituição econômica
proporcionou uma certa liberdade na concretização do planejamento. É verdade que, em
muitos Estados, o déficite continuou existindo em face de um enorme distanciamento do que
foi concretizado em face do planejado. Quero dizer apenas que as políticas públicas, por não
serem obrigatórias sob o ponto de vista normativo, podiam ser concebidas de um modo

3
Amicus Curiae V.5, N.5 (2008), 2011

orgânico, fazendo com que houvesse uma harmonia entre o planejamento e a execução de
diversas políticas. Neste sentido, afirma Bercovici (2005, p. 60) que:

a partir da década de 1980, o planejamento e a política nacional do desenvolvimento


foram totalmente abandonados pelo Estado. A atuação estatal caracterizou-se, desde
então, como desprovida de uma diretriz global para o desenvolvimento nacional. A
política econômica limitou-se à gestão de curtíssimo prazo dos vários “planos” de
estabilização econômica. Deste modo, o Poder Público foi incapaz de implementar
políticas públicas coerentes, com superposição e consecução apenas parcial de
diversos planos ao mesmo tempo.

A normatividade das normas constitucionais programáticas, de certa forma, vem


potencializando esse efeito, principalmente quando falamos em aplicabilidade imediata da
Constituição. Essa observação deve ser compreendida com cuidado, uma vez que ela não
propõe uma redução da força normativa da constituição, nem um papel secundário no
processo de superação dos déficites. Contudo, traz consigo a crítica ao modelo paradigmático
que se desdobra em um ativismo judicial inconseqüente: o ápice da crise.
Essa breve síntese do Estado Social visa a demonstrar o ambiente no qual nascem as
políticas públicas. Esse ambiente é, portanto, o de um Estado de economia planejada, pautado
em um modo de produção capitalista que via nas políticas públicas a sua própria
sobrevivência – basta ver a tese keynesiana e o papel que o Estado possuía para a economia.
A tentativa precária de equilibrar o modelo capitalista com o forte papel do Estado frente à
implementação das políticas públicas pressupõe, portanto, o planejamento orgânico dessas
políticas e a existência de um capitalismo de produção.

2. As políticas públicas

Normalmente, a análise das políticas públicas parte do estabelecimento do seu conceito.


Contudo, a busca por um conceito e, mais ainda, o desdobramento de sua análise a partir do
conceito formulado nos levaria a inúmeros equívocos. Isso porque o conceito enquanto logos,
ou seja, enquanto juízo, não encerra a verdade, na medida em que será, necessariamente, uma
síntese precária dos fenômenos compreendidos como políticas públicas. No âmbito jurídico,
por exemplo, há uma tendência em conceituar as políticas públicas a partir de um ângulo
normativo. Essa visão nos leva à relação existente entre as diversas políticas e a concretização
de direitos constitucionais que delas dependem. Neste sentido, as políticas públicas se
mostram como normas integradoras do ordenamento jurídico que buscam dar concretude à
carta constitucional. Assim, para Guilherme Amorim (2004, p. 104), seriam:

o instrumento de ação do Estado e de seus poderes constituídos [...] de caráter


vinculativo e obrigatório, que deve permitir divisar as etapas de concreção dos

4
Amicus Curiae V.5, N.5 (2008), 2011

programas políticos constitucionais voltados à realização dos fins do [Estado],


passíveis de exame pelo Poder Judiciário.

Por trás da conceituação normativa de políticas públicas está o princípio da legalidade e


a necessidade de normatização infraconstitucional que estabeleça a forma de atuação do
Executivo.
Ocorre que a complexidade das políticas públicas transcende a sua dimensão normativa.
Tal dimensão, em verdade, é meio e não o seu fim, ou seja, a juridicização de políticas
econômicas, sejam elas quais forem, obedece previamente a uma análise de adequação
finalística que acaba determinando o que será juridicizado. É claro que a Constituição e seu
conteúdo material determinam, ou pelo menos deveriam determinar, tais políticas, mas entre o
mandamento constitucional e a juridicização das políticas públicas há etapas complexas que
não podem ser ignoradas. É aqui, portanto, que surge o problema da técnica como
determinante da política. Por ora, independente de ser a técnica ou outro princípio epocal o
elemento determinante de sua racionalidade, cabe-nos, apenas, a pergunta que guiará a análise
quanto ao seu aspecto funcional: para que servem as políticas públicas?
Resumidamente, pode-se dizer que as políticas públicas são os meios pelos quais o
Estado cumpre o seu dever prestacional, razão pela qual não é possível separar políticas
públicas do Estado Social, já que o dever prestacional do Estado Liberal era diminuto e não
demandava uma teorização acerca do assunto. Quando nos deparamos, portanto, com o dever
prestacional do Estado, surge outra indagação: o que o Estado deve prover? Essa indagação
nos leva, em um Estado democrático de direito, à Constituição. Assim, as políticas públicas
acabam sendo o meio pelo qual o Estado cumpre os seus deveres prestacionais impostos pela
Constituição. Verifica-se, assim, uma relação direta entre políticas públicas e Constituição,
mais precisamente com a dimensão positiva dos direitos fundamentais. Mas essa relação é, de
fato, direta? O fato de existir essa relação e o fato de os direitos fundamentais dependerem das
políticas públicas implicam uma relação direta? Aqui a questão se torna mais complexa e
exige a análise de cada ponto da relação.
Se analisarmos os direitos fundamentais, perceberemos que todos eles possuem
dimensão positiva, como denunciam Holmes e Sunstein (1999) e, no Brasil, Gustavo Amaral
(2001), no entanto, são com os chamados direitos de segunda dimensão que o problema se dá.
Assim, teremos, por exemplo, aqueles elencados no art. 6º: educação, saúde, trabalho,
moradia, lazer, previdência social, assistência aos desamparados, dentre outros. Estes direitos
não são, em si mesmos, uma res que poderia ser objeto de uma obrigação de dar ou de fazer.
Não é possível “dar” saúde, no máximo proporcionar meios para que ela seja atingida. Não é
possível “dar” educação, mas criar instrumentos que a viabilize. Outros que poderiam,

5
Amicus Curiae V.5, N.5 (2008), 2011

aparentemente, representar uma obrigação de dar, se bem analisados possuem diversas


variáveis. Dar trabalho é, de certo modo, possível, mas questões como “dar a quem” e “dar
que tipo de trabalho” demonstram que não há uma relação direta entre o direito fundamental
prestacional e à prestação propriamente dita. O mesmo ocorre com a moradia, na medida em
que dar moradia poderia representar “dar casas”, “dar abrigos” e assim por diante. Tais
questões não se resumem apenas a um grau de abstração da norma constitucional, mas ao fato
de que tais direitos, muito embora envolvam prestações materiais do Estado, não são
diretamente tais prestações, mas sim “estados de coisas”. Aqui a discussão entre os critérios
fraco e forte na diferenciação de princípios poderia ser recolocada, na medida em que sendo
princípios um “estado de coisas”, constituem uma imagem estática que dependem de ações
(condutas) para sua garantia. Essas ações são as políticas públicas. As políticas públicas,
portanto, se buscadas a partir do texto constitucional, não surgirão de imediato. Não é
coincidência serem chamadas de políticas, afinal, são meios para se chegar a um determinado
fim, assumindo o conceito aristotélico. As políticas buscam, com determinadas prestações,
provocar o “estado de coisas” imposto pela Constituição e, por isso, se ligam diretamente a
estes direitos, estando, ao mesmo tempo, afastadas pela sua instrumentalidade.
Sendo assim, para a saúde, por exemplo, as variáveis são inúmeras. Ainda que
desconsiderada a multiplicidade de males, estes podem ser combatidos mediante um
tratamento preventivo, curativo ou por ambos. Dentro do preventivo, por exemplo, pode ser
buscada mediante campanhas de educação e de saúde pública (sanitárias), o que já envolve
outras políticas; mediante vacinas, exames periódicos ou medicamentos profiláticos. No
campo curativo, diversos podem ser os tratamentos, sendo que tal diversidade pode variar na
sua relação custo-benefício – tempo do tratamento, eficácia do tratamento e custo do
tratamento – bem como poderia variar subjetivamente. Assim, como encontrar tais respostas
no texto constitucional? Seria possível, de alguma forma, estabelecer essa relação? Seria
possível perceber o que há entre o “estado de coisas” imposto pela Constituição e as ações
efetivas do welfare state? Um olhar atento às respostas permitem a revelação da crise
epistemológica, questão que ainda será abordada. Por enquanto, da desconstrução do conceito
normativo de políticas políticas públicas, segue-se o enfrentamento de alguns elementos
presentes na relação Estado, agentes sociais e políticas públicas.

3. As funções do Estado e as políticas públicas

A figura do Estado é, certamente, a primeira que surge quando o assunto é a


implementação das políticas públicas. Isso ocorre justamente pelo fato de que, no nosso
horizonte histórico, as políticas públicas nascem em um Estado Social que tinha o dever

6
Amicus Curiae V.5, N.5 (2008), 2011

político de implementá-las. No entanto, as transformações e dificuldades do Estado


contemporâneo ampliam essas discussões, apontando tanto para a reafirmação jurídica desse
dever, como para fatores de escusa. Tenta-se, a seguir, enfrentar a relação do Estado frente ao
dever de implementar as políticas públicas na contemporaneidade, iniciando pelas duas
principais correntes que tratam do problema da eficácia constitucional.
A primeira solução é encontrada em uma visão clássica – e ultrapassada – do Direito
Administrativo e Constitucional, bem como da Teoria do Estado. Parte-se da idéia de que há
uma separação entre as funções políticas e judiciais e que por ela caberá ao executivo, dentro
da sua discricionariedade administrativa, determinar as políticas. Em situações subjetivas que
envolvam a prestação material do Estado, a inexistência de uma política previamente
juridicizada impede a caracterização de direitos, uma vez que não se admite a aplicabilidade
imediata da Constituição. Tais construções encontram guarida na conhecida teoria da norma
constitucional que concebe tais direitos como decorrentes de normas de eficácia limitada 2.
Assim, ou há a implementação da política pública voltada para a concretização desses direitos
e, dentro da sua juridicização, o deferimento de direitos, ou se impede qualquer atuação do
Poder Judiciário em nome da divisão de poderes e funções do Estado.
Já a segunda linha consiste em reduzir o problema ao alto grau de abstração da norma
constitucional e, com isso, legar à hermenêutica constitucional a solução do problema. Essa
proposta tem como base epistemológica a jurisprudência de valores e é voltada,
principalmente, para a implementação e controle feitos a partir do Poder Judiciário. Desse
modo, enfrenta dois problemas cruciais: a legitimidade do Poder Judiciário para enfrentar a
questão e a visão limitada do fenômeno à sua dimensão normativa. A questão da legitimidade
está no fato de que o mecanismo de identificação da política pública a ser adotada passa pela
aplicação de métodos de interpretação, notadamente os de interpretação constitucional, que,
teoricamente, seriam capazes de encontrar no texto constitucional uma resposta. Se for
considerado o fato de que métodos tradicionais sempre chegam tarde, como demonstra o
pensamento de Heidegger e Gadamer, e o fato de que não há um sentido oculto no texto, uma
metódica constitucional não irá conferir legitimidade ao Poder Judiciário nessa atuação
política. Ainda que se admita uma imbricação entre o jurídico e o político, essa criatividade
extrapolaria qualquer limite razoável para a intervenção do Judiciário.
O problema que envolve a eficácia das normas constitucionais vem sendo agravado por
aspectos extra-normativos que devem ser levados em conta. Em verdade, tais aspectos são
extra-normativos se considerarmos a tradição epistemológica que recorta o fenômeno jurídico

2
Vide, para tanto, as classificações de José Afonso da Silva e de Maria Helena Diniz, que trabalham com a idéia
de normas constitucionais de eficácia limitada.

7
Amicus Curiae V.5, N.5 (2008), 2011

e o isola de uma realidade de aplicação. Evidentemente, eles se transformariam em


normativos se a visão do fenômeno jurídico fosse ampliada, fato preconizado pelas mais
recentes matrizes epistemológicas. Nessa linha, surgem as questões relacionadas à ausência
de tratamento orgânico às diversas políticas públicas e a não observância da escassez.
A falta de organicidade decorre do fato de que as políticas públicas vêm sendo
concebidas a partir de um texto constitucional isolado e descontextualizado. A idéia de
aplicação imediata da constituição gera um dedutivismo isolado e as políticas públicas
acabam, por fim, apresentando-se como a aplicação de um direito específico, como se a saúde
não dependesse da educação; o lazer de ambos; o trabalho não estivesse relacionado a tudo
isso e assim por diante. A organicidade das políticas públicas só pode ser concebida a partir
de um planejamento econômico que confira as bases de sua estrutura orgânica. O orçamento,
por sua vez, constitui uma norma jurídica que deve estar de acordo com o planejamento
econômico, logo, há uma hierarquização que deve ser respeitada.. Em 2006, o orçamento da
União só foi aprovado na segunda metade do mês de abril, sendo que a discussão crucial para
o atraso era a construção ou não de uma ponte no Estado de Sergipe. Não se discute no
Legislativo a relação orgânica entre orçamento e planejamento, ficando a questão restrita aos
órgãos técnicos do Executivo. O Judiciário, por sua vez, está muito mais distante dessa
discussão.
No que toca à escassez, os desencontros não são menores. O tema é normalmente
tratado a partir da estrutura dogmática da “reserva do possível” (HÄBERLE apud
CANOTILHO, 2004, p. 107). Ao lado da “reserva do possível”, outra estrutura surge para
determinar que a “reserva do possível” deve, necessariamente, atender ao “mínimo
existencial” (ALEXY). Consequentemente, como o que está em jogo são prestações materiais
do Estado, surge o problema do orçamento. Para Eros Roberto Grau, “em face dessas
limitações materiais à sua efetivação, decorrente dessa escassez, esses direitos ficam sujeitos
ao que a doutrina e a jurisprudência [=fatores institucionais] chamam de submissão à cláusula
da reserva do possível” (2005, p. 124). Muito embora afirme o professor que “essa reserva
não pode ser reduzida a limite posto pelo orçamento, até porque, se fosse assim, um direito
social sob „reserva dos cofres cheios‟ equivaleria, na prática, - como afirma José Joaquim
Gomes Canotilho – a „nenhuma vinculação jurídica‟” (2005, p. 125).
Lenio Streck, defensor de um substancialismo dirigente, faz referência a acertadas
decisões judiciais que implicam o dispêndio de recursos do Estado (2004, p. 57), mas também
demonstra sua preocupação não só com um dirigismo irresponsável, assumindo o alerta de
Gilberto Bercovicci e Canotilho (2004, p. 142), mas também com as possibilidades fáticas de
concretização dos direitos constitucionais quando faz referência a Cristina Queiroz (2004, p.

8
Amicus Curiae V.5, N.5 (2008), 2011

186). Logo em seguida faz, inclusive, referência a uma posição de Andréas Krell e adverte
sobre a necessária cautela na modificação da dotação orçamentária (2004, p. 186).
O próprio Andréas Krell – talvez aquele que na doutrina nacional admita a maior
interferência do Judiciário na implementação das políticas públicas – muito embora rechace a
tese da “reserva do possível”, por se tratar de uma construção da jurisprudência alemã não
aplicável à realidade brasileira (2002, p. 52), traz a problemática do orçamento, estabelecendo
uma crítica à ausência de eficácia no seu cumprimento (2002, p. 99). Cristina M. M. Queiroz,
após sustentar a possibilidade de se extrair de direitos fundamentais econômicos direitos
subjetivos, aduz que “o intérprete se encontra agora limitado, para além da „reserva do
possível‟, por „exigências metódicas mais exigentes‟ que o forçam a procurar uma „relação de
adequação‟ entre o „texto da norma‟ e a „situação concreta‟ a que se aplica” (2002, p. 153).
Para a autora lusitana, “isto implica, entre outras coisas, a verificação da existência de
recursos orçamentais e financeiros disponíveis que garantam a „efectividade óptima‟ desses
direitos e pretensões no quadro de uma „liberdade de conformação‟ a favor do legislador”
(2002, p. 153). Víctor Abramovich e Cristian Courtis (2002, p. 85-92), dão nota sobre os
Princípios de Limburgo e Maastricht, sobre a exigência no cumprimento de obrigações
básicas e, ao mesmo tempo, da possibilidade de escusa do Estado se algum fato impedir a
consecução desse objetivo, ainda que recaia sobre ele o ônus da prova (2002, p. 90-91).
Uma outra alternativa, já sustentada no Brasil por Gustavo Amaral (2001), que é
Procurador do Estado do Rio de Janeiro, segue um outro extremo onde a escassez é
efetivamente demonstrada e a implementação de políticas públicas acabam, na prática, a
mercê de dotações orçamentárias e de juridicização prévia. O autor aponta uma série de
obstáculos para a participação do Judiciário na concretização dos direitos sociais,
especialmente no que diz respeito às situações subjetivas. De fato, ainda que se admita a
eficácia e possibilidade de direitos subjetivos decorrentes das normas em questão, o
deferimento pelo judiciário de prestações materiais em situações subjetivas acaba, no mais das
vezes, proporcionando um desequilíbrio isonômico na distribuição desses recursos, além de
afetar o equilíbrio sistêmico da dotação orçamentária. Por essa razão, visando a resolver o
problema da escassez, defende a inexistência de direitos subjetivos correlatos ao dever
prestacional do Estado. O desequilíbrio isonômico se dá na medida em que, uma vez admitida
a escassez, o deferimento, muitas vezes liminar, de prestações materiais do Estado em nome
de um direito subjetivo a uma prestação material acaba implicando na omissão do Estado
frente a outras prestações. Desse modo, um cidadão obteve a prestação material, ou seja, foi
beneficiário de uma política pública, enquanto outros, que não recorreram ao Judiciário,
acabaram não sendo contemplados.

9
Amicus Curiae V.5, N.5 (2008), 2011

Percebe-se, portanto, que ainda há muitos desencontros no que se refere à necessária


organicidade das políticas públicas e ao que poderia ser chamado de tratamento jurídico à
escassez. De todo modo, ainda que o tema seja retomado quando da tentativa de se estabelecer
uma proposta reconstrutiva do problema, convém adiantar que a omissão frente a essas
questões, viabilizadas por um recorte mais estreito da ciência do direito, acaba sendo
equivocado. Não será ignorando a escassez que ela será superada. Passemos, por enquanto, às
relações entre os agentes sociais e as políticas públicas.

4. Os agentes sociais e as políticas públicas

A sociologia não possui uma preocupação semântica acerca da expressão “agentes” ou


“atores sociais”. Em alguns momentos, ela pode estar relacionada, inclusive, aos atores que
exercem funções dentro do próprio Estado. Aqui, agentes sociais dirão respeito àqueles atores
não-estatais, classificados a partir das relações travadas com as políticas públicas. Assim,
dentro dos agentes sociais não-estatais, poderíamos pensar na seguinte classificação a) o
terceiro setor; b) os movimentos sociais e c) a sociedade civil. Considerando os limites deste
trabalho, não será possível enfrentar os problemas gerados pelo critério de divisão, nem
aqueles decorrentes de regiões limítrofes.
O terceiro setor pode ser aqui considerado como o conjunto “de organizações sem fins
lucrativos, criadas e mantidas pela ênfase na participação voluntária, num âmbito não-
governamental, dando continuidade às práticas tradicionais de caridade, da filantropia e do
mecenato e expandindo o seu sentido para outros domínios, graças, sobretudo, à incorporação
do conceito de cidadania e de suas múltiplas manifestações na sociedade civil”
(FERNANDES, 2005, p. 27). O terceiro setor, portanto, ocupa um espaço público e traz, por
sua vez, a novidade de uma ocupação não estatal deste espaço através de um processo de
“automização social” (BOLZAN, 2002, p. 78). Os agentes do terceiro setor são aqueles que
possuem com as políticas públicas uma relação mais próxima daquela existente com o Estado.
O terceiro setor está mais voltado para o provimento do que para demandas, muito embora a
discussão conceitual já ressaltada acima proporcione alguns problemas neste sentido, já que
há organizações tidas de terceiro setor que são extremamente reivindicatórias, aproximando-
se dos movimentos sociais e da sociedade civil.
A sociedade civil, por sua vez, representa o espaço privado por excelência, mas que se
liga ao espaço público a partir de suas demandas. A sociedade civil pressupõe uma
organização básica, que normalmente se dá com a criação de grupos aglutinados por
determinadas opções políticas, produzindo, conseqüentemente, estruturas institucionais que
favorecem a cidadania. Na proposta classificatória já esboçada, a sociedade civil difere do

10
Amicus Curiae V.5, N.5 (2008), 2011

terceiro setor, basicamente, pelo fato de ser seu foco, preponderantemente, a demanda e não a
prestação, não impedindo que ações assistencialistas sejam percebidas. Em seu entorno,
estariam o mercado e o Estado, este ocupando preponderantemente o espaço público. A
sociedade civil possui uma ligação direta com as políticas públicas porque ela é, no fundo, a
sua principal destinatária. Mesmo quando as políticas públicas são voltadas para o mercado,
possuem, em tese, como pano de fundo, a função social da iniciativa empresarial.
Os movimentos sociais, por sua vez, também se ligam às políticas públicas a partir das
demandas sociais, razão pela qual poderiam ser inseridos na própria sociedade civil. Contudo,
os movimentos sociais possuem um nível de organização mais elevado, demandas mais
pontuais e objetivos mais definidos. Para Maria da Glória Gohn (1997, p. 251), os
"movimentos sociais são ações sociopolíticas construídas por atores coletivos pertencentes a
diferentes classes e camadas sociais articuladas em certos cenários da conjuntura sócio-
econômica e política de um país, criando um campo político de força social na sociedade
civil".
Diante desse quadro, percebe-se que os agentes sociais não-governametais se colocam
frente às políticas públicas a partir de três relações distintas, ainda que possam se manifestar
cumulados em um mesmo grupo. São elas: a) relação de prestação; b) relação de destinatário
e c) relação de demandante. Sendo assim, partindo desses três modos de interação, caberá a
seguinte pergunta: qual o papel que os agentes sociais não-estatais poderiam exercer? Aqui se
inicia a tentativa reconstrutiva do presente trabalho.

5. Crise e reformulação epistemológica

A crise epistemológica aqui denunciada não está relacionada, apenas, ao paradigma


sobre o qual a racionalidade jurídica se funda. Trata-se de uma crise muito mais ampla que
tem no direito uma de suas diversas manifestações. A política – e aqui a separação entre
direito e política se dá, tão somente, para explicitar atividades que são preponderantemente
políticas ou jurídicas – é uma das áreas em que a crise se manifesta com extrema intensidade.
Mas, tanto a crise vivenciada na política, como a crise vivenciada no direito, possuem a
mesma base: a crise epistemológica decorrente de um princípio epocal. A partir das lições de
Heidegger, Ernildo Stein dirá que o princípio epocal é algo descrito como permanente; algo
presente que não cessa de inscrever-se e “se constela numa ação articuladora de todas as
esferas fundamentais do saber” (2005, p. 76). O princípio epocal será, portanto, um ponto de
partida que suportará todas as construções – e portanto, todos os saberes – tidos como
racionais. Na verdade, o princípio epocal vai muito além da racionalidade e determina, na

11
Amicus Curiae V.5, N.5 (2008), 2011

medida em que é um ponto de partida, a própria verdade sobre o ser. O princípio epocal que
sobre a qual funda a racionalidade moderna é, conforme denúncia de Heidegger, a “técnica”.
Estudos contemporâneos mais analíticos, que vão além de Marx, Hegel e Nietzsche,
auxiliam a compreensão do fenômeno que estaria por trás da racionalidade. Neste sentido,
situa-se a relação entre conhecimento, interesse e ideologia em Habermas3 e os cálculos de
correspondência de Boaventura de Souza Santos4. Tais estudos apontam para uma
domesticação do mundo da vida pela racionalidade instrumental, o que permite a conclusão
de que a técnica proporciona boas bases para uma racionalidade instrumental, ao tempo em
que não suporta uma racionalidade moral-prática. Desse modo, é comum se preconizar a
superação da técnica e de sua racionalidade instrumental e um retorno à racionalidade moral-
prática. Concordamos com essa proposta, contudo, não é possível perder de vista que os
estudos analíticos voltados para a desmistificação da racionalidade não negam a existência de
uma racionalidade instrumental, mas apenas nega a sua hegemonia. Isso quer dizer que o
movimento de um corpo celeste ou de uma partícula pode ser racionalizado pelas leis da física
(instrumental), o que não significa que as ações sociais obedeçam à mesma lógica. A questão,
no entanto, se torna problemática quando o mundo da vida envolve ações práticas em meio a
determinantes naturais, inviabilizando sua racionalização a partir de um único paradigma, sob
pena de se perder em algum dos pontos. Conformá-los, portanto, acaba sendo o grande
desafio da epistemologia e, em sendo assim, somente a ruptura com os padrões
epistemológicos da modernidade pode conferir respostas satisfatórias.
A rigor, é necessário construir um paradigma que seja universal, para que dentro dele se
movimentem todas as formas de racionalidade, que poderiam ser resumidas em três: estética-
expressiva, moral-prática e cognitiva-instrumental (SANTOS, 2003, p. 77). Qualquer
tentativa de adaptação nos remeterá a fundamentalismos, o que pode ser percebido nas
propostas de desconstrução pós-modernas, que acabam, no fundo, partindo da maior
liberalidade estética e domesticando outras; no funcionalismo instrumental, que privilegia a
racionalidade cognitiva ou em um fundamentalismo axiológico que ignora a diversidade e
quer romper, inocentemente, barreiras naturais. Um paradigma epistemológico que se volte
para essa universalidade deve, portanto, fugir dos ditames de uma metafísica clássica, que vê,
no ente, essências, bem como de uma ontologia representacional, que acredita na reconstrução

3
Vide, em Habermas, Teoría y práxis: estúdios de filosofia social (2000), Ciência y técnica como “ideologia”
(1999), dentre outros escritos que estão na base do pensamento habermasiano, fator determinante para a
construção de sua proposta epistemológica, qual seja, a “teoria da ação comunicativa” e seus desdobramentos na
ética e no direito.
4
Vide, em Boaventura de Souza Santos, a estrutura analítica do projeto de modernidade e suas relação com o
capitalismo na obra Crítica da razão indolente (2000).

12
Amicus Curiae V.5, N.5 (2008), 2011

dessas essências na consciência com o auxílio da lógica. Essa busca acaba nos remetendo ao
giro lingüístico pragmático.
Não seria aqui possível tratar de todas as variáveis epistemológicas que se enquadrariam
nessa tendência. Contudo, guardadas as especificidades, os estudos voltados para a construção
de uma racionalidade a partir do giro lingüístico têm como marca a idéia de que a linguagem
deixa de ser uma coisa que se interpõe entre o sujeito e o objeto, deixando de ser um cálculo
da natureza e assumindo a condição de um meio ambiente (mitte ou medium)5. Desse novo
modo de ver a linguagem, surgem, portanto, concepções de racionalidade que podem ser tidas
como dialógicas6. A racionalidade dialógica – se é possível estabelecer uma noção dissociada
de um autor ou, pelo menos, de uma corrente – é caracterizada pela preocupação com o outro,
ou seja, pela alteridade. Tem como base a idéia de que a verdade não pode ser encontrada no
objeto, nem que no sujeito que se coloca diante de um objeto e que se utiliza de métodos para
conhecê-lo. As coisas deixam de ter uma “natureza” e passam a ter um “significado”, este
construído em uma relação sujeito-sujeito(s) em contraposição a estrutura cognitiva sujeito-
objeto. Supera-se, portanto, a chamada filosofia da consciência.
Heidegger foi, certamente, determinante para esse giro, na medida em que retoma a
discussão do ser e reconstrói a ontologia a partir do que passou a ser chamado de diferença
ontológica. Nela, “ser” e “ente” não se confundem, sendo aquele o significado deste. Este
significado é, em Heidegger, construído na faticidade, no encontro dos sujeitos com as coisas.
O sujeito será, necessariamente, um ser-aí com os outros e, nesse mundo vivido pelo sujeito,
ele incorpora o horizonte de sentido que já é dado às coisas desde e sempre. A alteridade, em
Heidegger, é, portanto, prévia ao momento cognitivo. O conhecimento para Heidegger, muito
embora se dê no indivíduo, já contempla a presença do outro. Muito embora Heidegger não
fale em um diálogo, isso não significa que ele ignora a questão da alteridade7. Em Gadamer o
diálogo já surge de modo mais expresso na medida em que, na sua hermenêutica filosófica, a
compreensão se dá a partir de uma fusão de horizontes. Um horizonte histórico, construído
nos moldes heideggerianos, e um horizonte novo trazido pelo “texto”. O diálogo com o texto,
de que trata Gadamer, é, em última medida, o diálogo com um novo horizonte proporcionado
pelo outro8. Na nova retórica de Perelman a ação dialógica já se mostra com maior
intensidade, muito embora ele ignore alguns limites impostos pela nosso movimento

5
Sobre a noção de linguagem como cálculo e como medium,vide Martin Kusch (2003).
6
Insiro neste âmbito, tanto Gadamer quanto Habermas, muito embora faço a ressalva de suas inúmeras
diferenças.
7
Vide Ser e tempo de Martin Heidegger (2005).
8
Gadamer coloca os traços fundamentais de sua hermenêutica filosófica em Verdade e método (2003). Sobre o
diálogo em Gadamer, vide a leitura feita por Luiz Rohden (2003).

13
Amicus Curiae V.5, N.5 (2008), 2011

cognitivo9 e proponha, inspirado na “velha” retórica uma ação voltada para o convencimento
e não para um entendimento ou para a revelação de uma verdade já presente em um horizonte
histórico10. Será em Habermas, contudo, que o diálogo assumirá uma posição de destaque,
fato que pode ser constatado em uma de suas principais obras, a Teoría de
laaccióncomunicativa, e que marcará a partir de então todo o seu pensamento. A proposta
epistemológica de Habermas, no entanto, trará alguns problemas. Destaca-se o fato de ele
traçar para a ação dialógica uma série de condições para a validade do discurso, sob pena de o
resultado não ser considerando válido. Tais condições de validade seriam a priori e
desprovidas de conteúdo moral, neutralidade que gera muitos debates, em especial com
Apel11, um dos seus principais inspiradores. Além disso, a racionalidade prática proposta por
Habermas é, em verdade, uma prática comunicativa, fazendo com que a validade – já que
Habermas não trata de verdade – encontre lugar em enunciados, deixando em segundo plano o
nível fenomênico. Habermas promove também uma cisão entre juízos de fundamentação e de
aplicação, o que provoca uma incompatibilidade com a aplicatio hermenêutica, além de tentar
superar um horizonte histórico com o fito de estabelecer uma “hermenêutica” crítica12.
Ainda que o paradigma dialógico esteja em construção e cause alguns desencontros, o
diálogo é, de fato, o fio condutor da epistemologia contemporânea. Desse modo, mesmo que
não seja aqui possível esboçar uma teoria que sirva como proposta paradigmática, é possível
dizer que a fenomenologia hermenêutica é mais apropriada para essa quadra da história. São
muitos os motivos, dentre eles o fato de ser ela a única que consegue trabalhar com os planos
apofântico (relacionados ao juízo, ao discurso) e fenomenal (relativo ao ente, ao fato, às
coisas). A fenomenologia hermenêutica constitui uma base para a construção de uma teoria
crítica sem ignorar o inafastável horizonte histórico, ao tempo em que desmascara a
artificialidade de discursos. Além disso, a fenomenologia hermenêutica pode ser viabilizada
sem as condições utópicas do discurso habermasiano, não sendo, por isso, incompatível com
uma ação dialógica. Neste caso, teremos que ir além da fenomenologia hermenêutica traçada
por Heidegger na sua ontologia fundamental, que é descrita em Ser e tempo. Temos que ir
além de sua teoria da verdade e encontrar, no espaço reservado à nossa finitude, as
possibilidades e limites de um diálogo. Será a partir de um método fenomenológico que se
tornará possível equacionar as racionalidades modernas (ética, estética e instrumental) em um

9
Refiro-me à denúncia hermenêutica de que nós compreendemos dentro da nossa finitude e a partir de uma
antecipação de sentido.
10
Sobre a nova retórica, vide Tratado da argumentação (PERELMAN, 2005).
11
Sobre o debate Habermas e Apel, vide Com Habermas, contra Habermas: direito, discurso e democracia
(MOREIRA, 2004).
12
A crítica hermenêutica sobre o pensamento de Habermas pode ser vista em Verdade e consenso: Constituição,
hermenêutica e teorias discursivas, de Lenio Streck (2006).

14
Amicus Curiae V.5, N.5 (2008), 2011

único movimento metodológico e, com isso, impedir a colonização do mundo da vida pela
racionalidade instrumental da ciência. Com isso, romper o princípio epocal da técnica, sem
ignorar sua utilidade frente a questões de ordem natural.

6. O papel dos agentes sociais não-estatais na implementação das políticas públicas

Neste ponto, voltamos à estrutura analítica relativa à relação existente entre os agentes
sociais não-estatais com as políticas públicas e, a partir delas, propor, com base na ruptura
paradigmática já esboçada, novas formas de atuação. Em síntese, tal ruptura representará a
substituição de ações estratégicas, que pressupõem a crença em uma racionalidade atingida
por lógicas dedutivas e verdades metafísicas, pela ação “dialógica fenomenal”, que pressupõe
a inexistência de fundamentalismos e a aplicação de um significado às situações concretas.
Isso significa, portanto, levar em conta tanto verdades decorrentes do mundo da natureza, a
exemplo da lei da gravidade, bem como verdades de significado humano e, no mesmo
movimento metodológico, conformá-las na ação prática.
No que se refere à relação de prestação, por ela estar mais próxima do papel exercido
pelo próprio Estado, acabará assumindo algumas das críticas dirigidas a este. A necessária
organicidade das políticas implementadas pelo terceiro setor deve ser buscada em relação às
políticas implementadas pelo Estado, uma vez que essa harmonia proporcionará uma maior
eficácia na concretização dos direitos fundamentais. Essa articulação de complementariedade,
contudo, não deve ser levada a cabo se as políticas desenvolvidas pelo primeiro e terceiro
setores não forem discutidas a partir de um processo de abertura democrática. Nestes casos, a
confrontação ou oposição deve ser levada adiante (SANTOS, 2006). Deve-se, também, ter o
cuidado para que essas organizações, justamente por se aproximarem do Estado, não passem
a incorporar os mesmos vícios que levaram à sua própria criação. A abertura democrática e a
discussão com os agentes sociais que demandam as políticas públicas devem ser
consideradas, evitando o corporativismo de instituições voltadas para a defesa de interesses
alheios àqueles construídos a partir do processo democrático.
A relação de destinatário exige a compreensão das efetivas possibilidades de prestação
e, portanto, a necessidade de participação efetiva nas escolhas das políticas. Como foi dito, o
orçamento da União de 2006 só foi aprovado na segunda quinzena de abril. Pergunta-se: a
sociedade civil fez algum tipo de manifestação na porta do Congresso Nacional? Quantas
horas a imprensa dispensou ao tema? Alguém estava, efetivamente, preocupado com a ponte
que seria construída em Sergipe? Os destinatários do planejamento econômico e futuros
beneficiários da dotação orçamentária estão preocupados com as metas traçadas? Discutiram
o que ficaria de fora e o que não ficaria de fora? A preocupação com o planejamento e com

15
Amicus Curiae V.5, N.5 (2008), 2011

seus consectários não representa, nos moldes paradigmáticos apresentados, uma submissão à
racionalidade instrumental presente na economia. Também não significa que não seja possível
dizer, em determinadas situações, que a Administração Pública estará sendo mais eficiente
construindo uma escola em um determinado lugar, ao invés de construí-la em outro. A ação
moral-prática se dá no mundo e o mundo impõe limites. Ninguém discute se é ético ou não ir
à lua de bicicleta, pelo simples motivo que não é possível ir à lua de bicicleta. Há verdades no
mundo, sejam naturais, sejam de significação humana, basta acreditarmos que elas existem.
Quanto às demandas, além dos problemas que foram retratados na abordagem quanto à
relação de destinatários, outra questão é extremamente relevante. A Constituição tem, de
certo modo, servido de vetor para o pleito. Hoje não é possível separar os movimentos sociais
dos direitos fundamentais. A Constituição passou a ser, portanto, a pauta para as demandas,
fato que mostra um importante papel da Carta no processo de concretização destes direitos.
Evidentemente, se a Constituição não enunciasse direitos sociais, o movimento não deixaria
de existir, contudo, ele poderia se dar de modo menos articulado e em seu discurso estaria,
antes mesmo da concretização, a juridicização. Contudo, do mesmo modo que a aplicação da
Constituição é vista por correntes teóricas mediante paradigmas que impedem a sua visão
orgânica, o mesmo ocorre nos movimentos de demanda. Todos seguem posturas estratégicas
na busca pela implementação de políticas públicas, distanciando as demandas da noção de
organicidade.
A ação estratégica, bem ao estilo kantiano, é, no entanto, a única possível se permanece
subjacente a toda práxis um paradigma epistemológico pautado em fundamentalismos
metafísicos. Enquanto não nos convencermos de que não existem essências e de que o
significado das coisas e de nossas ações só pode ser conquistado a partir do diálogo; e que
esse diálogo nos levará, necessariamente, ao meio termo, pneus continuarão sendo queimados
na beira da estrada, muitas vezes em vão. Ou seja, enquanto ecologistas, na tentativa de
reduzir os danos a uma determinada reserva a serem provocados pela passagem de uma
estrada, buscarem tal resultado através da luta contra a construção da estrada na tentativa de,
no final, conseguir apenas desviar parte de sua rota; enquanto os trabalhadores continuarem
pedindo um aumento de 100% do salário mínimo para que, ao final, possam chegar em 20%;
enquanto continuarmos pedindo R$ 20.000,00 em nosso carro usado, para que o comprador
leve-o por R$ 18.000,00, tudo continuará como está. A pauta de demanda dos movimentos
sociais são políticas públicas que, como vimos, tem como telos a concretização dos direitos
fundamentais. Enquanto não assumirmos que tais direitos não são absolutos, uma vez que
devem conviver com outros “estados de coisas” – a velha questão da ponderação – e enquanto
não levarmos em conta que sua relatividade passa também pela contextualização das efetivas

16
Amicus Curiae V.5, N.5 (2008), 2011

possibilidades de implementação, as demandas continuarão sendo postas estrategicamente;


não serão discutidas as efetivas possibilidades do Estado – e, portanto, também não serão
conhecidas; não estarão voltadas para a organicidade e, por conseguinte, o desenvolvimento
continuará sendo prejudicado.

7. Alternativas para a implementação das políticas públicas

Considerando que as propostas voltadas para os agentes sociais não-estatais já foram, de


certo modo, apresentadas, são necessárias considerações quanto aos agentes estatais, em
especial quanto ao papel do Judiciário. Canotilho, já nos aportes do “constitucionalismo
moralmente reflexivo” (2001, V-XXX) faz no prefácio da segunda edição da referida obra
uma crítica à transferência da autoaplicabilidade imediata das normas fundamentais para
todos os direitos e coloca a gratuidade do ensino público como um problema que pode “lançar
a constituição nas querelas dos „limites do estado social‟ e da „ingovernabilidade‟”. A
preocupação do Mestre lusitano se lança, também, contra a “vaguidez” das teorias relativas
aos direitos econômicos (2004, p. 100), na medida em que o jurista deveria se preocupar com
questões de ordem prática relacionadas ao complexo tema da eficácia desses direitos (2004, p.
100). No que toca à “reserva das caixas financeiras”, Canotilho critica a tentativa de reduzir o
seu significado a uma única dimensão do problema (2004, p. 107), afirmando que há uma
dose de verdade em diversas teses sobre a matéria, a exemplo da gradualidade, dependência
financeira relativa ao orçamento, liberdade do legislador e, até mesmo, insusceptibilidade de
controle judicial (2004, p. 108). Essas teses, de certo modo, já foram sintetizadas acima.
E, de fato, há uma dose de verdade em todos os posicionamentos apontados. Todos que
defendem os direitos subjetivos e admitem prestações materiais do Estado não defendem
provimentos que possuam custos elevadíssimos, a exemplo de tratamentos médicos
milionários, mesmo que a vida ou a dignidade da pessoa esteja em jogo, logo, mesmo que o
mínimo existencial para um determinado cidadão seja afetado. Se forem analisadas decisões
diversas em um mesmo Tribunal, teses diversas serão encontradas. Isso implica, de certa
forma, a admissão por todos da existência de limites de um Estado provedor. A impressão que
fica, muitas vezes, é que há pontos comuns entre todas as concepções apontadas, contudo, a
falta de maturação e a ausência de mecanismos para equilibrar a tensão entre os poderes
acabam gerando o conflito. Sendo assim, há de se buscar a construção desses mecanismos. O
caminho, creio, passa pela melhor identificação dos três elementos já referidos: a) “mínimo
existencial”; b) “reserva do possível”; e) “planejamento-orçamento”.
Quanto ao mínimo existencial, creio que não basta identificá-lo como o núcleo duro de
direitos fundamentais, mas também na sua dimensão fática-material como um conjunto de

17
Amicus Curiae V.5, N.5 (2008), 2011

prestações voltado para a garantia desse núcleo duro de direitos sociais e econômicos 13. Neste
aspecto, devemos estar atentos ao fato de que ele não representa uma prestação material ou
uma política pública determinável a priori. O conjunto de prestações materiais mínimas
constitui um meio para se atingir um “estado de coisas”, ou seja, uma “condição humana”.
Logo, verificar se um cidadão tem o seu “mínimo existencial” atendido implica em verificar a
sua “condição humana” e não aquilo que ele está recebendo. Essa ressalva é importante
porque cada um terá necessidades diferenciadas e, assim, as prestações materiais deverão ser
diferenciadas. Além dessa variável subjetiva, a garantia desse “mínimo existencial”, ou seja,
dessa “condição humana”, pode, como foi visto, ser atingida por diversos meios, por diversas
prestações e por diversas políticas. No que toca à saúde, por exemplo, o objetivo é amenizar o
sofrimento e a dor, garantindo uma vida digna, consequentemente, isso pode ser obtido a
partir de políticas preventivas e curativas, sendo que, cada uma delas admitirá diversas formas
de campanhas e de tratamentos. Assim, encontramos variáveis subjetivas, variáveis relativas
às diversas formas de política e variáveis relativas às diversas prestações que essas políticas
podem abarcar. A eficiência da política pública e, por conseguinte, o atendimento aos
princípios da administração, passa pela conformação sistemática de todos esses elementos,
logo, a manipulação de apenas uma variável pode representar um desequilíbrio.
Além disso, sabe-se que a dimensão positiva dos direitos fundamentais admite uma
maior liberdade de concretização14 justamente pelas inúmeras possibilidades apresentadas.
Isso significa que a moldura hermenêutica proporcionada pelas normas constitucionais
relacionadas aos direitos sociais e econômicos confere uma grande amplitude política.
Consequentemente, seguindo a linha já defendida neste trabalho, a gradação entre o político e
o jurídico, no particular, reduz, na nova configuração de divisão de poderes, uma maior
liberdade para o Executivo e uma menor liberdade para o Judiciário. Isso, porém, não
significa que o problema da implementação das políticas públicas seja, exclusivamente, um
problema político. No particular, nenhum fundamentalismo é bem vindo. Neste ponto, a
solução exigirá uma quebra no paradigma epistemológico voltado para a construção de uma
metodologia jurídica. Partindo dos aportes da fenomenologia hermenêutica, que aqui não
poderão ser demonstrados a contento, a interpretação não deverá partir do texto, tendo em
vista a impossibilidade de identificação “da” política adequada, mas, diante da política
efetivamente implementada (fato) é perfeitamente possível verificar sua constitucionalidade
ou não. Normalmente, quando se analisa a eficácia das normas constitucionais, utiliza-se

13
Quanto ao mínimo existencial como um núcleo duro de direitos fundamentais, equiparando-se à densidade
suficiente dos direitos fundamentais, vide Walber de Moura Agra em a Reconstrução da legitimidade do
Supremo Tribunal Federal (2005).
14
Neste sentido, Canotilho, Lenio Streck, Víctor Abramovich e Cristian Courtis, entre muitos outros.

18
Amicus Curiae V.5, N.5 (2008), 2011

apenas o sentido norma-fato, não se atentando para o sentido fato-norma, o que é explicado
pela influência de teorias que viam no fato um objeto da prova, apenas. Interpreta-se fatos,
sendo que a interpretação do texto é, apenas, uma interpretação indireta de um fato
(hipotético).
Isso abre, no que toca ao “mínimo existencial”, possibilidades de controle pelo
Judiciário, sem, com isso, atingir o equilíbrio entre os poderes. Se não é possível ao Judiciário
determinar “a” política, afinal ele não possui um aparelho estatal apto a conformar todas as
variáveis; se não é possível identificar essa política a partir do texto constitucional, uma vez
que o alto grau de abstração e a própria mobilidade social impedem tal conclusão; é
perfeitamente possível verificar a constitucionalidade das políticas efetivamente
implementadas e, com isso, exercer o controle de constitucionalidade. No que toca ao
mecanismo processual, se o centro do controle se desloca do texto para o fato, perceberemos
na jurisdição constitucional o deslocamento da ADIN (Ação direta de inconstitucionalidade)
para a ADPF (Ação de descumprimento de preceito fundamental), tendo em vista que ela
abarca não só atos normativos, mas, também, “atos e omissões não normativos” (CUNHA
JÚNIOR, 2004, p. 590).
A “reserva do possível” também merece esclarecimentos. Algumas prestações estão
notoriamente abarcadas pelas possibilidades do Estado, do mesmo modo que outras, com
elevados custos, estão certamente fora das possibilidades de um determinado Estado. Para
ambas, não há problemas, na medida em que a demanda judicial é atendida ou rechaçada, não
gerando o conflito. Contudo, há prestações que ficam em uma zona nebulosa, onde não é
possível identificar se ela se encontra dentro ou fora das reais possibilidades do Estado. Tais
prestações – a exemplo de medicamentos de médio custo ou determinados exames e
procedimentos médicos – são, considerando-se o valor absoluto, sempre passíveis de
cumprimento pelo Estado, contudo, se ultrapassarem as reais possibilidades do Estado
provocarão um tratamento não isonômico entre aqueles que demandaram o Judiciário e
aqueles que não o provocaram. Além disso, como a prestação relativa ao “mínimo
existencial” não foi determinada previamente, mas identificada no caso concreto para garantir
uma “condição humana”, resta saber se o provimento judicial se adequa ao contexto orgânico
das políticas públicas a ele relacionado.
Disso tudo, percebe-se que, quando sustentamos a possibilidade de o Estado se escusar
de uma prestação necessária ao “mínimo existencial” de um indivíduo, fazemo-lo sem saber
quais são as efetivas possibilidades do Estado. A “reserva do possível”, no que diz respeito às
prestações materiais do Estado, não possui outro conteúdo que não seja o econômico, afinal,
não se trata de uma impossibilidade ligada à vontade política ou à consciência ética. Trata-se

19
Amicus Curiae V.5, N.5 (2008), 2011

de saber se é ou não é possível fazer algo sob a ótica das efetivas possibilidades econômicas
do Estado. É justamente aí que encontramos a parcela de verdade referida por Canotilho no
tocante ao orçamento – e planejamento, seria possível completar, afinal, não há outro
mecanismo que nos permita afirmar se algo está dentro ou fora das possibilidades econômicas
do Estado além do orçamento. Neste aspecto acentua Fábio Conder Komparato (2003, p. 255-
256) que “toda política pública, com efeito, enquanto programa de ação governamental
financiado com recursos públicos, deve concretizar-se nas três modalidades de orçamento
previstas na Constituição Federal: o plano plurianual, as diretrizes orçamentárias e os
orçamentos anuais (art. 165)”. Certamente não será esse orçamento que aí está – ou que
muitas vezes nem existe, mas um orçamento que deixe de ser uma mera peça de contabilidade
pública; que assuma a magnitude de ser uma opção de justiça15 e que garanta sua legitimidade
através da participação direta da sociedade civil em sua elaboração, como demonstrado na
análise da relação com os agentes não-governamentais.
Desse modo, chegamos ao nosso terceiro elemento: ao planejamento e dotação
orçamentária. Ninguém respeita o orçamento que aí está. O Executivo não o respeita; o
Legislativo é condescendente com o descumprimento do orçamento pelo Executivo e o
Judiciário, por sua vez, afirma que não será ele quem irá respeitar. Se vamos admitir uma
“reserva do possível” ao Estado, não podemos dissociá-la da questão orçamentária, a não ser
que criemos outros mecanismos para essa análise. Nem mesmo o “Juiz Hércules” de Dworkin
conseguirá a partir do texto da Constituição e da realidade do Estado brasileiro saber o que é e
o que não é possível ao Estado se um mecanismo de verificação não for instituído. Esse
mecanismo existe e é o orçamento, muito embora ele deva ser encarado como tal.
O respeito ao orçamento não implica nem inviabiliza a atuação judicial, na medida em
que uma lei, inclusive a orçamentária, pode (e deve) ter o seu controle de constitucionalidade
verificado. Se a sociedade, através das suas entidades representativas e legitimadas para
propor a ADIN, levar a questão aojudiciário, poderá ele determinar uma nova alocação de
recursos que atenda à moldura constitucional. Essa forma de atuação é muito mais radical do
que qualquer outra que vem sendo exercida pelo Judiciário, afinal, ela pode representar um
controle em sede de macro-justiça e não de micro-justiça. A questão é saber se o Supremo
Tribunal Federal está disposto a assumir essa responsabilidade, afinal, a atuação judicial
voltada para a concretização dos direitos sociais e econômicos tem sido posta em prática, no
mais das vezes, por juízes de primeira instância. Quando a questão envolve valores absolutos
que exigem uma efetiva modificação da estrutura orçamentária, e não apenas uma simples

15
Sobre o papel do orçamento na sociedade contemporânea, vide Ricardo Lobo Torres, Tratado de Direito
Constitucional, Financeiro e Tributário.

20
Amicus Curiae V.5, N.5 (2008), 2011

alocação, o problema não é enfrentado. Utilizando-se, normalmente, uma dogmática


fetichizada e despistadora, a exemplo das teses sobre eficácia limitada, direitos (não)
adquiridos, dentre outros, o Judiciário, em especial, os Tribunais superiores, não enfrentam o
verdadeiro fundamento de suas decisões: a escassez e as efetivas possibilidades do Estado
provedor.
No que toca às determinações judiciais em situações subjetivas há de se verificar, ainda,
que a redução das desigualdades sociais não será atingida se a medida judicial representar um
desequilíbrio isonômico, fazendo com que o Estado tire de um para dar a outro. Isso não
significa que o Poder Judiciário não possa determinar prestações materiais a um indivíduo que
as postula em juízo, contudo, o deferimento deve levar em conta todas as questõesqueforam
levantadas. Será possível, em situações concretas, identificar o conjunto de prestações
materiais equivalentes ao “mínimo existencial”. Contudo, esse mínimo, como vimos, deverá
obedecer à “reserva do possível”, já que é essa a estrutura dogmática responsável pelo
tratamento jurídico da escassez. Ocorre que o Judiciário não poderá saber o que é e o que não
é possível se o Executivo, seja através do orçamento, seja através de seus próprios atos
normativos, não conferir concretude a essa realidade econômica. Desse modo, diante da
omissão do Executivo e, consequentemente, da inexistência de abismos entre o jurídico e o
político, caberá ao Judiciário arbitrar tais possibilidades.
Neste ponto, a nova configuração do checkand balance se manifesta na medida em que
a ausência de concretização daquilo que é “possível” representa uma omissão dos outros
poderes (Executivo e Legislativo) e que deve ser suprida pelo Judiciário. Essa omissão,
contudo, deve ser combatida preventivamente, já que o avanço do Judiciário frente a essas
questões representa uma patologia do sistema. Uma vez que seja dito através dos seus atos
normativos sobre aquilo que é “possível”, através de mecanismos como o orçamento e outros
instrumentos normativos, caberá ao Judiciário levar em conta ou, em sede de controle de
constitucionalidade – se for o caso – combater os vícios. O avanço do Judiciário em situações
subjetivas não pode, portanto, invadir uma esfera ocupada pelo Executivo e pelo Legislativo,
sendo cabível apenas no campo de suas omissões.
Continuar dando um tratamento não jurídico à escassez, ou seja, continuar tentando
vencê-la ou, pelo menos, vencer a parcela que é decorrente da má gestão ou da corrupção,
fazendo da Constituição uma arma do Judiciário contra os outros poderes é, ao meu ver, uma
atitude equivocada, por melhores que sejam as intenções. Trazer a “reserva do possível” para
o centro da discussão orçamentária e de outros atos normativos representará não apenas o
questionamento sobre a incapacidade de um determinado administrador público ou uma
contingente má gestão de recursos. Representará o questionamento do próprio sistema

21
Amicus Curiae V.5, N.5 (2008), 2011

capitalista, retirando da Constituição uma característica que ainda carrega, a do mascaramento


da realidade. Se o capitalismo ainda permanecerá hegemônico por mais tempo que a própria
modernidade (SANTOS, 2000), questionar a sua atual configuração é o que nos resta.

Considerações finais

Ainda que as conclusões tenham sido colocadas já ao longo do texto, creio que seja
necessária uma melhor sistematização, principalmente pelo fato de terem sido abordados
diversos temas, cuja complexidade impedia um tratamento adequado no âmbito deste artigo.
I – As políticas públicas nascem como uma forma de atuação do Estado Social e, ao
lado delas, percebe-se a necessidade de planejamento das ações estatais. Esse planejamento
vem sendo deixado de lado e as ações estratégicas vêm tomando o lugar de ações orgânicas,
fato que auxiliado por uma idéia de aplicabilidade imediata de normas constitucionais. Essa
aplicabilidade tem como pressuposto a possibilidade de se extrair do texto normativo uma
verdade, pautada em métodos de interpretação constitucional.
II – As políticas públicas são vistas a partir de um conceito normativo que esconde sua
complexidade fenomenal. Elas são meios voltados para um determinado fim e não um fim em
si mesmo. Esse fim, além de tudo, sequer pode ser extraído do texto constitucional,
principalmente quando essa “extração” é legitimada por métodos que geram a ilusão de uma
racionalidade.
III – Esse desencontro proporcionado pelo encobrimento da complexidade fenomenal
provoca uma série de contradições secundárias, principalmente quanto à divisão de poderes
do Estado e ao exercício de suas respectivas funções. Ora se preconiza a impossibilidade de
intervenção do judiciário, em face de uma divisão radical entre o político e o jurídico; ora se
preconiza a possibilidade de intervenção judicial na implementação das políticas públicas
justamente por se ignorar a fronteira do político e do jurídico.
IV – As teses que sustentam a possibilidade de intervenção judicial acabam ignorando o
problema da escassez de recursos do Estado, justamente por ignorar o paradigma econômico
sobre o qual o Estado Social se consolida e, com isso, não perceber que outrora se admitia
orçamentos deficitários, o que hoje seria inadmissível em face do ordenamento jurídico
brasileiro. As teses que não ignoram a escassez, por sua vez, preconizam o total respeito ao
orçamento, sem refletir sobre a forma e o modo como ele é feito. Desse modo, o orçamento
continua sendo tratado como uma peça de contabilidade pública.
V – A pauta estratégica que domina a política, aliado ao desprestígio do planejamento
econômico, acaba proporcionando a falta de organicidade no trato das políticas públicas, o

22
Amicus Curiae V.5, N.5 (2008), 2011

que provoca a redução de sua eficácia e, consequentemente, prejuízos no que toca à


concretização da dimensão positiva dos direitos fundamentais.
VI – Por trás dessa crise há uma outra crise: a crise epistemológica. A ação ideológica
do capitalismo acaba proporcionando a hegemonia do princípio epocal da técnica, anulando a
racionalidade prática e deslocando a análise para a racionalidade instrumental. A
epistemologia contemporânea pautada na viragem lingüística propõe para a racionalidade um
paradigma dialógico, superando a filosofia da consciência, pautada na estrutura cognitiva
sujeito-objeto, e se estruturando a partir da estrutura sujeito-sujeito(s).
VII – Dentre as correntes epistemológicas, é a fenomenologia hermenêutica aquela
capaz de se viabilizar como paradigma. Ela trabalha tanto com a dimensão do apofântico, ou
seja, do discurso, sem perder de vista o fenômeno na sua complexidade. Além disso, ela
assume uma metodologia que respeita os limites e possibilidades da nossa cognição, na
medida em que está atenta à antecipação de sentido da compreensão, à pré-compreensão
decorrente da historicidade e à fusão da interpretação, compreensão e aplicação.
VIII – Diante de um novo paradigma, os agentes sociais e o Estado devem incorporar o
paradigma dialógico, o que só ocorrerá com a superação da filosofia da consciência, deixando
de agir estrategicamente. O Estado, por sua vez, deve ser repensado a partir do paradigma
proposto, o que envolve uma reformulação da teoria da divisão de poderes, dos limites entre
político e jurídico. O planejamento econômico e o orçamento devem ser construídos a partir
de ações dialógicas, o que depende do fortalecimento dos procedimentos garantidores da
democracia.
IX – Essa reformulação epistemológica, principalmente no que toca à divisão de
funções entre os poderes do Estado e aos limites entre o jurídico e o político, permitirá uma
nova forma de checkand balance, onde o Judiciário atuará em lacunas deixadas pelos outros
poderes, e se retrairá quando esses espaços forem tomados. Tais ações não devem ser,
contudo, pautadas na crença de métodos legitimadores de uma pseudo racionalidade, mas sim
atenta ao ser construído na faticidade e refletido na ação dialógica. A fenomenologia coloca o
direito como sendo o fato e o texto como sendo um discurso apofântico do fato. Isso provoca
uma inversão no sentido clássico de análise do direito e permite, graças à riqueza fenomenal,
pensar em verdades e um maior avanço do jurídico em direção ao político.
Por fim, cabe apenas ressaltar que o ponto de partida para a superação da crise é a
criseque a antecede: a epistemológica. Sem a sua superação, sequer poderemos pensar a crise
de modo coerente, uma vez que as lentes teóricas de uma modernidade deturpada não estão
reguladas para esse fenômeno.

23
Amicus Curiae V.5, N.5 (2008), 2011

Referências

ABRAMOVICH, Víctor; COURTIS, Christian. Los derechos sociales como derechos


exigibles. 2. ed. Madrid: Trotta, 2004.

AGRA, Walber de Moura. A reconstrução da legitimidade do Supremo Tribunal Federal:


densificação da jurisdição constitucional brasileira. Rio de Janeiro: Forense, 2005.

ALEXY, Robert. Los derechos fundamentales em el Estado constitucional. In.


Neoconstitucionalismo(s). Miguel Carbonel (org). 2. ed. Madrid: Trotta, 2005.

_____. Direitos fundamentais no Estado constitucional democrático: para a relação enter


direitos do homem, direitos fundamentais, democracia e jurisdição constitucional. Tradução
Luís Afonso Heck. In Revista de Direito Administrativo, vol. 217, jul/set 1999. Rio de
Janeiro: Renovar, 1999.

AMARAL, Gustavo. Direito, escassez e escolha: em busca de critérios jurídicos para lidar
com a escassez de recursos e as decisões trágicas. Biblioteca de Teses. Rio de Janeiro:
Renovar, 2001.

BERCOVICI, Gilberto. A constituição dirigente e a crise da teoria constitucional. In


Teoria da Constituição: estudos sobre o lugar da política no direito constitucional. São Paulo:
Lumen Juris.

_______. Desigualdades regionais, Estado e Constituição. São Paulo: Max Limonad, 2003.

_______. Constituição Econômica e desenvolvimento: uma leitura a partir da Constituição


de 1988. São Paulo: Malheiros, 2005.

BONAVIDES, Paulo. Do Estado liberal ao Estado social. 6 ed. São Paulo: Malheiros,
1996.

CANOTILHO, J.J. Gomes. Constituição dirigente e vinculação do legislador. Coimbra:


Coimbra, 1982.

CARNEIRO, Wálber Araujo. Hermenêutica e processo: a produção do direito como


compreensão. Disponível em: www.unifacs.br/revistajurídica.Acesso em: 28 de jul. 2005.

_____. Escassez, eficácia e direitos sociais: em busca de novos paradigmas. In Revista do


Programa de Pós-Graduação em Direito da UFBA. Salvador: EDUFBA, 2004.

COMPARATO, Fábio Konder. O Ministério Público na defesa dos direitos econômicos,


sociais e culturais. In: CUNHA, Sérgio Sérvulo da; GRAU, Eros Roberto (org). Estudos de
direito constitucional em homenagem a José Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2003.

CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Controle judicial das omissões do poder público: em busca
de uma dogmática constitucional transformadora à luz do direito fundamental à efetivação da
Constituição. São Paulo: Saraiva, 2004.

DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Tradução Nelson Borba. São Paulo:
Martins Fontes, 2002.

24
Amicus Curiae V.5, N.5 (2008), 2011

FERNANDES, Rubem César. O que é o terceiro setor. In. IOSCHPE, Evelyn Berg (org). 3º
Setor: desenvolvimento social sustentado. 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005.

GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método. 5 ed. Petrópolis: Vozes, 2003. v. 1.

GRAU, Eros Roberto. Realismo e utopia constitucional. In. ROCHA, Fernando Luiz
Ximenes; MORAES, Filomeno (coord). Direito Constitucional contemporâneo. Belo
Horizonte: Del Rey, 2005.

_____. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito. São Paulo: Malheiros,


2002.

GOHN, Maria da Glória. Teorias dos movimentos sociais: paradigmas clássicos e


contemporâneos. São Paulo: Loyola, 1997.

HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Márcia Sá Cavalcante Schuback. 14 ed. Petrópolis:


Vozes, 2005. Parte I.

KUSCH, Martin. Linguagem como cálculo versus linguagem como meio universal: um
estudo sobre Husserl, Heidegger e Gadamer. Tradução Dankwart Bernsmüller. São Leopoldo:
UNISINOS, 2003. (Coleção Idéias)

MORAIS, José Luis Bolzan de. As crises do Estado e da Constituição e a transformação


espacial dos Direitos Humanos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002. (Coleção Estado
e Constituição I)

MOREIRA, Luiz (org). Com Habermas, contra Habermas: direito, discurso e


democracia. São Paulo: Landy, 2004.

PERELMAN, Chaim; OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado da Argumentação. 6. ed.


São Paulo: Martins Fontes, 2005.

ROHDEN, Luiz. Hermenêutica filosófica: entre a linguagem da experiência e a experiência


da linguagem. São Leopoldo: UNISINOS, 2003. (Coleção Idéias)

SANTOS, Boaventura de Souza. Pela mão de Alice. 9 ed. São Paulo: Cortez, 2003.
_____. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência – Para um novo
senso comum: a ciência, o direito e a política na transição paradigmática. Porto:
Afrontamento, 2000.

______. A reinvenção solidária e participativa do Estado. Disponível em:


http://www.planejamento.gov.br/arquivos_down/seges/publicacoes/reforma/seminario/Boave
ntura.PDF. Acesso em: 19 de abr. 2006.

SILVA, Guilherme Amorim Campos da. Direito ao desenvolvimento. São Paulo: Método,
2004.

STEIN, Ernildo. Seis estudos sobre “ser e tempo”. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 2005.

STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: Constituição, hermenêutica e teorias discursivas.


Rio de Janeiro: Lumem Júris, 2006.

25
Amicus Curiae V.5, N.5 (2008), 2011

_____. A hermenêutica filosófica e as possibilidades de superação do positivismo pelo


(neo)constitucionalismo. In: ROCHA, Leonel Severo; STRECK, Lenio Luiz (org).
Constituição, sistemas sociais e hermenêutica. Revista do Programa de Pós-Graduação em
Direito da UNISINOS – Mestrado e Doutorado, São Leopoldo, anuário 2004. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2005.

_____. Ontem os códigos; hoje as Constituições: o papel da Hermenêutica na superação do


positivismo pelo neoconstitucionalismo. In. ROCHA, Fernando Luiz Ximenes; MORAES,
Filomeno (coord). Direito Constitucional contemporâneo. Belo Horizonte: Del Rey, 2005.

_____ . Hermenêutica jurídica e(m) crise. 5 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004.

_____. Jurisdição constitucional e hermenêutica: uma nova crítica do direito. 2. ed. Rio de
Janeiro: 2004.

_____. Hermenêutica (jurídica): compreendemos porque interpretamos ou


interpretamos porque compreendemos? Uma resposta a partir do OntologicalTurn. In:
Revista do programa de Pós-Graduação em Direito da UNISINOS, São Leopoldo, anuário de
2003.

TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de direito constitucional financeiro e tributário: o


orçamento na constituição. v. 5. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2000.

TOURAINE, Alain. Crítica da modernidade. Tradução Elia Ferreira Edel. 7. ed. Petrópolis:
Vozes, 2002.

WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. Tradução de M. Irene de Q.


F. Szmrecsányi. 11. ed. Col. Biblioteca Pioneira de Ciências Sociais. São Paulo: Pioneira,
1996.

______. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Tradução de


Régis Barbosa e Karen Elsabe Barbosa. Vol. I. 3. ed. Brasilia: Universidade de Brasilia, 1994.

26

Você também pode gostar