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pela consecução do interesse coletivo, ainda que não suportar o ônus de conservá-la sob o regime do
haja amparo jurídico para tal desproporcionalidade. tombamento. Por isso, no Estado de São Paulo, a mera
instauração de procedimento administrativo para o
Há tombamento feito por diversas esferas
estudo de eventual tombamento já é o suficiente para
federativas. Quais são os problemas práticos dessa
tutelar a inalterabilidade do bem, cuja modificação
situação?
poderá causar a incriminação do respectivo agente
Daniel Scheiblich Rodrigues. De fato, há casos de por dano a coisa de valor artístico, arqueológico ou
imóveis que figuram como objeto de duplo histórico, conforme tipificado no Código Penal. Repare
tombamento, entre os quais podemos citar, no que as legislações estadual, de 1979, e municipal, de
âmbito paulistano, a Casa do Sítio do Tatuapé – sobre 1985, adotaram a mesma linha de tombamento
a qual recaem tombamentos concomitantes pelo provisório estabelecida pela legislação federal, de
Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio 1937, ou seja, aplica-se o regime de proteção sumária.
Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São
Existem limitações práticas em relação ao que pode
Paulo, conhecido pelo acrônimo CONPRESP, e pelo
ser alegado pelo particular dentro de um processo de
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional,
tombamento? Já teve contato com algum
conhecido pelo acrônimo IPHAN –, o antigo Instituto
contraditório exercido em que o particular reverteu a
de Educação Caetano de Campos, no qual está situada
intenção de tombar seu bem? Qual a situação mais
a sede da Secretaria da Educação do Estado de São
comum na prática?
Paulo – caso em que há tombamentos coincidentes
pelo CONPRESP, e pelo CONDEPHAAT –, e a Estação Daniel Scheiblich Rodrigues. Embora a legislação não
da Luz – na qual há tombamentos simultâneos pelo delimite expressamente o que pode ser alegado, o
CONDEPHAAT e pelo IPHAN. O principal problema da procedimento de tombamento deverá ter como
sobreposição de poderes é o risco de decisões objeto bens de valor arqueológico, artístico,
contraditórias entre os órgãos competentes dos bibliográfico, etnográfico, histórico, paisagístico ou
distintos entes federados. Além disso, ainda que não turístico, seja por seu interesse público ambiental ou
sejam contraditórias as decisões prolatadas por cultural, de modo que o particular poderá contestar a
autoridades investidas em distintos poderes, há existência de tal valor. Haja vista que qualquer bem é
também o risco de hipertrofiar de tal modo os vinculado a determinado contexto natural ou
trâmites burocráticos, decorrentes de procedimentos momento histórico, a prova da falta de valor é
administrativos simultâneos e independentes, que as excepcionalmente difícil, quase leonina. Em suma, o
prerrogativas do titular do bem se tornem que deve ser avaliado é se o ônus da preservação é
excessivamente limitadas, numa situação que se proporcional em relação à memorabilidade do bem,
aproxima perigosamente da desapropriação indireta. pois a violação à proporcionalidade – que integra a
Haja vista que os bens tombados pelo IPHAN são principiologia constitucional – feriria não apenas o
também tombados pelo CONDEPHAAT, em ato direito do proprietário do bem, mas também o
administrativo de ofício, a possibilidade de hipertrofia interesse da coletividade, uma vez que o aparato
é enorme. estatal não deve ser manejado sem respaldo do
interesse público. A propósito, eu jamais tomei ciência
A que o Poder Público deve ficar atento, quando há a
de um caso em que a contestação ou de recurso
intenção de tombar um bem?
administrativos do titular do bem, fundamentados na
Daniel Scheiblich Rodrigues. Sempre que o Poder carência de valor, que tenha sido responsável pela
Público visar ao tombamento de um bem, a primeira descontinuidade ou reversão do tombamento. Vale
medida que deverá adotar é a sua proteção sumária. lembrar que a carência de valor difere da perda de
Isso se deve ao fato de que, em decorrência das materialidade do bem, pois, nesta segunda hipótese, o
restrições a que se sujeitam os titulares de bens que que se alega é que, embora outrora o bem tornasse
venham a ser tombados, mormente na hipótese de palpável um fato ou contexto memorável, sua
imóveis, existe o risco de que o proprietário de uma integridade material foi prejudicada de tal sorte que o
edificação de valor cultural prefira destruí-la a ter de
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bem não tem mais o condão de expressar o valor de imagem; mesmo assim, o Grupo de Estudos de
outrora. Inventário e Reconhecimento do Patrimônio Cultural e
Natural, a Consultoria Jurídica e a Assessoria Técnica
do Gabinete da Secretaria da Cultura – da qual eu
Além de imóveis, existem tombamento de bens fazia parte, sendo-me atribuída a tramitação do caso –
móveis? Poderia nos dar exemplos de tombamentos se alinharam em relação à viabilidade jurídica e aos
relevantes de bens móveis? imperativos de interesse coletivo relativos ao
tombamento. A conclusão a que chegamos era a de
Daniel Scheiblich Rodrigues. Os exemplos mais que o tombamento jamais poderia vedar a exposição
importantes de tombamentos de bens móveis são e a fruição do bem, pois estas eram suas principais
aqueles incidentes sobre acervos inteiros, casos em finalidades; contudo, ao CONDEPHAAT incumbiria
que todo um cabedal constituinte de um mesmo estabelecer tecnicamente as condições adequadas
contexto é tombado em conjunto. Lembro-me que para seu uso litúrgico, que não deveria ser restritivo a
são tombados, pelo CONDEPHAAT, os acervos de ponto de comprometer o direito constitucional à
diversos museus paulistas, assim como da Capela do liberdade religiosa, mas também não poderia deixar
Hospital da Clínicas. Contudo, o exemplo com o qual desprotegido o caráter cultural daquela obra artesanal
tenho mais familiaridade é o do acervo do Palácio dos de madeira, que tem como acessórios o manto
Bandeirantes, onde trabalho e tenho o prazer de ver confeccionado para a festa de coroação realizada no
diariamente as obras; neste caso, o tombamento foi início do século XX, bem como a própria coroa, doada
realizado pelo IPHAN.Houve no Estado de São Paulo por ninguém menos que a Princesa Isabel. Eu mesmo
toda uma discussão sobre a questão do tombamento preparei para o Secretário da Cultura, Marcelo Mattos
da imagem de Nossa Senhora de Aparecida, dado que Araujo, a decisão que conheceu da contestação
ela tinha de se deslocar em procissões, o que poderia subscrita pelo Dom Raymundo Damasceno Assis, mas
gerar um desgaste ou degradação. lhe negou provimento. Aproximadamente um mês
Como foi resolvida no Estado essa questão? depois, finalizamos o procedimento administrativo e
publicamos a decisão de tombamento na véspera do
Daniel Scheiblich Rodrigues. O caso da imagem de Ano Novo. Apesar das dificuldades que a preservação
Nossa Senhora de Aparecida exigiu bastante cautela de um bem móvel tombado traga para seu titular,
porque se trata de um bem que – como você bem entendo que, desde que não haja desapropriação
disse – exige deslocamento, de modo que indireta ou qualquer outra perpetração
reconhecíamos haver restrições à própria imposição desproporcionalmente restritiva, é possível conciliar a
de limites ao uso do bem. Em novembro de 2014, eu realização teleológica do bem e o interesse social
tive contato profundo com os autos do procedimento existente em sua preservação. Sei que uma das
administrativo que levou ao tombamento da imagem medidas adotadas pela Igreja Católica, para assegurar
em âmbito paulista e me lembro de que a a preservação daquele patrimônio cultural, é a
Arquidiocese de Aparecida, representada pelo Dom utilização de uma réplica em determinados atos
Raymundo Damasceno Assis, protocolizou uma públicos, limitando o uso do bem original a
contestação que nos deixou bastante pensativos. À determinadas ocasiões de menor risco à sua
época, o CONDEPHAAT estudava o tombamento não integridade. Parece-me uma solução adequada do
apenas da imagem de Nossa Senhora de Aparecida, ponto de vista do Direito Cultural.O §1º do art. 216 da
mas também do porto onde ela havia sido Constituição dá o fundamento jurídico constitucional
encontrada, além da basílica e do seminário do tombamento, enfatizando que a proteção do
missionário locais, embora a recomendação imediata patrimônio cultural brasileiro também pode ser feita
do colegiado se referisse apenas ao tombamento da por meio de inventários, registros, vigilância e pela
imagem, tendo os autos sido desmembrados para a desapropriação.
continuidade, em apartado, do estudo referente aos
outros itens. Evidentemente, o tombamento Poderia explicar como se dão os inventários, qual a
implicaria em cuidados restritivos para a realização de diferença entre registro e tombamento e em que
peregrinações que envolvessem o deslocamento da hipótese a desapropriação pode ser utilizada para
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cultura para o exercício da cidadania plena – não é discussão sobre tombamento, ficamos muito
verdade? Estou certo de que, se o Poder Público se contentes com sua disponibilidade em compartilhar
valesse do fomento estatal para fomentar com o público do portal direitoadm de seus
significativamente a cidadania cultural – e não apenas conhecimentos e relatar casos e experiências que
as artes propriamente ditas – muitos dos problemas fazem parte de nossa história e das formas de
decorrentes da falta de autocompreensão de nosso preservação do rico patrimônio cultural paulista e
povo seriam solucionados.Muitíssimo obrigada Daniel brasileiro!
Scheiblich Rodrigues pela rica e aprofundada
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Graduado em Direito, pós-graduado em Direito Processual Civil e mestrando em Direito Político e Econômico pela
Universidade Presbiteriana Mackenzie. Advogado, Subsecretário de Assuntos Parlamentares do Estado de São
Paulo; membro titular do Comitê de Elegibilidade e Aconselhamento da Empresa Paulista de Planejamento
Metropolitano S/A (EMPLASA). No Estado de São Paulo, foi Vice-Presidente da Comissão de Avaliação da Execução
dos Contratos de Gestão das Organizações Sociais da Área da Cultura e Chefe de Gabinete da Secretaria da Cultura