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Carta do Editor

E
stamos celebrando o Ano concebida por Alexandre Medeiros a importância da aquisição automá-
Mundial da Física (AMF) cujo dando seqüência à série de entrevistas tica de dados em um laboratório bá-
objetivo principal é a divulga- com grandes cientistas. O movimento sico de ensino e sugerem formas de
ção da Física em todos os setores da político em favor da paz proposto pelo introduzi-la. Simples e eficazes expe-
sociedade exaltando sua relevância filósofo Bertrand Russel e por Einstein rimentos e demonstrações de física
como a ciência mais fundamental (não é discutido por Fernando de Sousa moderna para o Ensino Médio são
quer dizer que seja a mais importante!), Barros que realça o caráter pacifista apresentados em artigo de Marisa
suas contribuições para melhor com- do grande cientista. A contribuição do Cavalcante, Cristiane Tavolaro e Rafael
preensão do Universo em que vivemos “radiante céu do Brasil” à compro- Haag.
e para o desenvolvimento tecnológico. vação da teoria da relatividade geral Sugerimos ainda a leitura do livro
Na educação, buscamos alertar o pú- durante o eclipse de 1919 em Sobral é Física Para o Brasil: Pensando Para o
blico e as autoridades para a necessidade descrita pelo historiador Antonio Au- Futuro, elaborado pela SBF, para uma
imperiosa da melhoria do ensino desta gusto Passos Videira. Um cânone da visão geral sobre a Física desenvolvida
disciplina em todos os níveis e, em par- literatura sobre Einstein publicada no atualmente no Brasil e como deve es-
ticular, estabelecer estratégias para Brasil foi estabelecido pelo físico e tar inserida na vida social e econô-
motivar os jovens para o estudo da Fí- divulgador da Ciência Carlos Alberto mica.
sica. Santos. Ao final apresentamos uma A FnE continua com sua campa-
A escolha do ano de 2005 deve-se cronologia da vida de Einstein. nha para inserir a Física Moderna e
à comemoração do centenário dos tra- A FnE traz uma série de artigos Contemporânea em todos os níveis de
balhos produzidos por Albert Einstein de divulgação com o intuito de atua- ensino. Esperamos que esta edição es-
que tiveram um impacto extraordi- lizar e motivar os leitores para temas pecial, além de reverenciar a figura de
nário na Física do século XX: a teoria atuais da Física Contemporânea. Luis Albert Einstein, contribua para este
da relatividade restrita, a hipótese do Carlos de Meneses mostra como a Fí- fim.
fóton, a equivalência da massa- sica permeia todo o nosso cotidiano a
energia e a teoria do movimento partir de observações em sua própria
browniano e suas implicações para a sala de trabalho. Áreas da Física mais
confirmação da existência de átomos. fundamentais como a cosmologia, as
No Brasil, a Sociedade Brasileira partículas elementares e as interações
de Física escolheu o XVI Simpósio Na- fundamentais da natureza são descri-
cional do Ensino de Física realizado no tas por Rogério Rosenfeld, José
início do ano no Rio de Janeiro para Helayël-Neto e Maria Cristina
abrir as atividades do AMF-2005 de Abdalla. A matéria em sua for-
modo a registrar categoricamente sua ma mais bem estruturada
preocupação com a qualidade atual do com sua rica arquitetura e a
ensino de Física. nanotecnologia (o que é e para
Nesta edição, dedicada ao AMF, que serve?) são discutidas por
prestamos um tributo a Einstein que Belita Koiller e Peter Schulz,
se inicia com um ensaio sobre seus respectivamente. Rita de Oli-
trabalhos de 1905 por Ildeu C. Morei- veira introduz o leitor no
ra. Carlos Fiolhais, físico português e mundo da complexidade, dos
autor de Física Divertida, nos convence sistemas caóticos e dos frac-
de que a Física, decorridos 100 anos tais. São temas bastante atuais
dos trabalhos de Einstein, continua a e de muito interesse para nos-
nos dar prazer e divertir. O menos ba- sos alunos.
dalado artigo de Einstein sobre o Visando ao uso de novas
movimento browniano, mas de fun- tecnologias da informação e
damental importância para a aceita- comunicação no ensino de Fí-
ção da hipótese atomística da matéria, sica, Flávia Rezende e Susana
é abordado em nível acessível ao En- de Sousa Barros exploram os
sino Médio (assim esperamos!), por sistemas hipermídia de apren-
Silvio Salinas. Os primeiros anos de dizagem de Ciências com
Einstein são percorridos numa con- exemplos concretos. Eliane
versa imaginária com ele mesmo Veit e colaboradores mostram

Física na Escola, v. 6, n. 1, 2005 Carta do Editor 3


○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

Ildeu de Castro Moreira


Introdução matéria. Em abril, com sua tese de
Instituto de Física,
doutoramento sobre as dimensões

B
Universidade Federal do Rio de Janeiro erna (Suíça), meados de maio moleculares e, em maio, com sua
○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ de 1905. Após uma noite de análise do movimento browniano, ele
reflexões intensas, um empre- possibilitou a confirmação experi-
gado de 3a classe do escritório de pa- mental definitiva da existência de
tentes, que mal completara 26 anos, átomos e moléculas. Não é à toa que
agradece a seu amigo Michele Besso 1905 foi designado o annus mirabilis
(1873-1955): “Obrigado! Resolvi – em latim, ano miraculoso, admirá-
completamente o problema. Uma vel – de Einstein. Entre março e setem-
análise do conceito bro, produziu cinco
de tempo é a solu- E = mc2. trabalhos extraor-
ção.” No dia ante- Com essa fórmula – talvez, a dinários que muda-
rior, Albert Einstein mais famosa da Ciência – riam a face da Ciên-
(1879-1955) tinha Einstein fundiu as leis da cia moderna e que
discutido com Bes- conservação da massa o tornariam o cien-
so cada detalhe de e da energia tista mais famoso
uma questão que o do século passado.
perseguia há tempos. Seis semanas Uma das mais importantes e in-
depois, enviaria um manuscrito para trigantes cartas da história da Ciência,
a prestigiosa revista Annalen der de Einstein para seu amigo Conrad
Physik, estabelecendo a relatividade Habicht (1876-1958), em maio de
especial e unificando duas áreas da 1905, registrou esse momento:
Física: a mecânica e a eletrodinâmica.
Eu lhe prometi quatro trabalhos. O
Em setembro, como conseqüência da
primeiro trata da radiação e das pro-
nova teoria, deduziu a expressão
2 priedades energéticas da luz e é muito
E = mc . Com essa fórmula – talvez,
revolucionário como você verá. O se-
Há 100 anos, um jovem físico, trabalhando a mais famosa da Ciência –, fundiu
gundo é uma determinação dos tama-
como técnico de 3a classe em um escritório de as leis da conservação da massa e da
nhos reais dos átomos a partir da
patentes em Berna (Suíça), publicou cinco energia. Meses antes, em março, havia
trabalhos. Todos de excelente qualidade. Dois difusão e da viscosidade de soluções
proposto uma hipótese radical, que
deles mostrariam, com base em teorias simples diluídas de substâncias neutras. O
e elegantes, como poderia ser demonstrada levaria quase duas décadas para ser
terceiro prova que, baseado na hipó-
experimentalmente a realidade física de átomos aceita: a luz exibe um comportamento
tese da teoria molecular do calor, cor-
e moléculas, assunto ainda controverso no início corpuscular, ou seja, granular.
do século passado. pos da ordem de 1/1000 mm, suspen-
É impressionante que um único
Os três artigos restantes alteraram profunda- sos em líquidos, devem executar um
mente a face da física moderna. No primeiro a cientista, em poucos meses, tenha
movimento aleatório observável, que
ser concluído naquele ano, o jovem rebelde e dado contribuições tão importantes
é produzido pelo movimento térmico;
contestador propôs o que mais tarde ele classi- para a Ciência e que alteraram
ficaria como a idéia mais revolucionária de sua de fato, os fisiologistas observaram
profundamente nossas concepções
vida: a luz, sob certos aspectos, apresenta uma movimentos de pequenos corpos em
natureza granular. Em julho e setembro, con- sobre o espaço e o tempo, bem como
suspensão, inanimados, os quais cha-
cluiu os dois últimos artigos de 1905 e aos quais sobre a estrutura da radiação. Outra
mam de ‘movimento browniano’. O
seu nome estaria associado para sempre. Eles, revolução, mais silenciosa e que se
em conjunto, dariam origem à teoria da rela- quarto artigo, neste momento apenas
estendeu por séculos, receberia um
tividade, que destruiria o caráter absoluto atri- um rascunho grosseiro, é uma eletro-
buído, durante séculos, ao tempo e ao espaço. impulso essencial de Einstein no
dinâmica de corpos em movimento,
Seu nome: Albert Einstein. mesmo ano: a teoria atômica da

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ondulatória ganharia força e se con- unificação na descrição física da
solidaria com a teoria eletromagnética natureza, explicar fenômenos novos,
da luz proposta pelo escocês James como o efeito fotoelétrico, que não
Clerk Maxwell (1831-1879). podiam ser entendidos com base na
A luz passa, então, a ser vista co- física clássica: “Penso que as observa-
mo uma onda eletromagnética que se ções sobre a radiação do corpo negro,
propaga no éter, o meio material que, a fotoluminescência, a produção de
acreditava-se, lhe dava suporte. Mas, raios catódicos [elétrons] pela luz ultra-
no início do século passado, um pro- violeta, e outras classes de fenômenos
blema começou a obscurecer o céu da concernentes à produção e à transfor-
teoria ondulatória para a radiação lu- mação da luz, parecem mais compre-
minosa: como explicar a intensidade ensíveis se admitirmos que a energia
da radiação emitida por um material da luz está distribuída de maneira
aquecido, a uma dada temperatura, descontínua no espaço. Segundo a hi-
em função da freqüência dessa mesma pótese proposta aqui, na propagação
radiação? A teoria ondulatória usual de um raio luminoso, emitido por uma
não conseguia descrever corretamente fonte pontual, a energia não está dis-
o fenômeno – que ganhou o nome tribuída de maneira contínua sobre
‘radiação do corpo espaços cada vez
negro’, porque o Segundo a hipótese maiores, mas é
experimento passou proposta aqui, na propaga- constituída de um
Einstein em seu primeiro emprego como ção de um raio luminoso,
a ser feito usando-se número finito de
perito de patentes. emitido por uma fonte
um recipiente metá- quanta de energia
lico fechado, aqueci- pontual, a energia não está localizados em pon-
que utiliza uma modificação da teoria do, e observando-se distribuída de maneira tos do espaço, cada
do espaço e do tempo. a radiação emitida contínua sobre espaços cada um se deslocando
por uma pequena vez maiores, mas é sem se dividir e po-
Vamos fazer uma incursão por es- constituída de um número
abertura nele feita. dendo ser absorvido
ses trabalhos, que, escritos em estilo finito de quanta de energia
O físico alemão Max ou produzido ape-
conciso e direto, são jóias preciosas da localizados em pontos do
Planck (1858- nas em bloco.” Esta
cultura universal. Sempre que possí- espaço, cada um se
1947), em uma ten- última frase é, tal-
vel, nos apoiaremos nas palavras de deslocando sem se dividir e
tativa desesperada vez, a mais revolu-
Einstein. Comentaremos também podendo ser absorvido ou
de encontrar uma cionária na Física do
características de seu autor e aspectos produzido apenas em bloco
solução, fez a hipó- século passado.
do contexto da Ciência, da tecnologia Einstein, 1905
tese, em 1900, de Nascia o conceito de
e da cultura de sua época que podem
que a troca de ener- fóton – nome dado
contribuir para um melhor entendi-
gia entre a radiação luminosa e a ao quantum de luz após 1926 – e, com
mento de sua façanha.
matéria só pode ocorrer através de ele, a era da física quântica moderna.
quantidades com um certo valor mí- A partir desse conceito, Einstein
Uma idéia revolucionária
nimo – o quantum de energia – e não deduziu uma expressão matemática
A disputa sobre a constituição da de forma contínua, como exigido pela para descrever o efeito fotoelétrico, no
luz – se onda ou partícula – tem uma teoria ondulatória. Insatisfeito com qual elétrons são arrancados de pla-
história que remonta ao século 17, sua própria proposta e considerando-
com os ingleses Isaac Newton (1643- a um artifício provisório, Planck ten-
1727) e Robert Hooke (1635-1703) e taria inúmeras vezes encontrar outra
o holandês Christiaan Huygens maneira de chegar à expressão expe-
(1629-1695). Newton defendia uma rimentalmente correta a que chegara
teoria corpuscular para a luz, ao con- e que preservasse o caráter contínuo
trário de seus dois contemporâneos. da radiação.
Ao longo do século 18, o modelo new- Einstein, com seu trabalho de mar-
toniano predominou, embora tendo ço de 1905, ‘Um ponto de vista heu-
críticos importantes. No século se- rístico sobre a produção e a transfor-
guinte – com o inglês Thomas Young mação da luz’, vai muito além de
(1773-1829) e o francês Augustin Planck. Com grande ousadia e origi-
Fresnel (1788-1827) e com as expe- nalidade, introduz uma hipótese física
riências de dois outros franceses, revolucionária: a própria radiação tem
Armand Fizeau (1819-1896) e Leon uma estrutura discreta (ou atomística). O escritório de patentes de Berna no tempo
Foucault (1819-1868) –, a teoria Seu propósito era, além de buscar uma em que Einstein trabalhava lá.

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pleto do comportamento da luz se tintos de prudência e audácia, cujo
estende até os dias de hoje. equilíbrio é necessário para o lento
progresso da Ciência humana.”
A dança dos átomos A tese de doutorado de Einstein,
O movimento irregular de uma pela Universidade de Zurique (Suíça),
partícula muito pequena mergulhada ‘Uma nova determinação das dimen-
em um fluido – fenômeno denomi- sões moleculares’, girava em torno do
nado movimento browniano – é oca- mesmo tema: a existência e o compor-
sionado por choques com as molé- tamento dos átomos e das moléculas.
culas do fluido, que estão agitadas em Ele combinou resultados da hidrodi-
razão de sua energia térmica (calor). nâmica clássica com os da teoria da
Membros Fundadores da Academia
Olimpia: a partir da esquerda Conrad Essa foi a principal inferência feita por difusão para criar um novo método
Habicht, Maurice Solovine e Einstein. Einstein em seu segundo trabalho de de determinação das dimensões mole-
1905: ‘Movimento de partículas em culares e do número de Avogadro.
cas metálicas pela incidência de suspensão em um fluido em repouso Para isso, teve que trabalhar com uma
radiação. Mas anos se passariam an- como conseqüência da teoria cinética teoria molecular para os líquidos, ta-
tes que a expressão de Einstein fosse molecular do calor’. Einstein previu refa bem mais difícil que para os
confirmada por experimentos realiza- a variação (média) na posição da par- gases. Os átomos e as moléculas não
dos pelo físico norte-americano Rob- tícula ocasionada por essas colisões, podiam ser observados diretamente
ert Millikan (1868-1953). Este diria variação essa que pode ser medida pela pelos microscópicos então existentes.
mais tarde: “Passei dez anos da minha observação em um microscópio. De- Einstein inventou uma maneira indi-
vida testando a equação de Einstein duziu também uma maneira de se reta de fazê-lo: uma teoria simples e
de 1905. Contrariando minhas expec- calcular o número de Avogadro (cerca elegante que, a partir da medida de
tativas, em 1915, fui compelido a de 6 x 1023), ou seja, o número de áto- quantidades macroscópicas, como a
validá-la sem ambigüidade, apesar de mos (ou moléculas) existentes em viscosidade de um líquido e o coefi-
seu caráter não razoável, pois parecia uma quantidade ciente de difusão de
violar tudo o que sabíamos sobre a pré-fixada – o cha- Em 1909, Einstein, em um uma substância ne-
interferência da luz.” A descoberta da mado átomo-gra- de seus momentos mais le imersa, permitia
lei do efeito fotoelétrico daria a Eins- ma (ou molécula- visionários, havia proposto determinar as di-
tein o prêmio Nobel de Física de 1921. grama) – de um uma fusão das caracterís- mensões das molé-
No entanto, se a fórmula propos- elemento químico ticas ondulatórias e culas dissolvidas.
ta por Einstein foi confirmada, a idéia ou substância. corpusculares da radiação. Usou os dados dis-
dos quanta de luz enfrentava a opo- Einstein termi- Sete anos depois, poníveis para o açú-
sição da imensa maioria dos físicos, nou o trabalho ofe- desenvolveu a idéia da car dissolvido na
entre os quais Planck, Millikan e o di- recendo aos opo- emissão e da absorção água e, com isso,
namarquês Niels Bohr (1885-1962). nentes da teoria estimuladas da luz – que pode fazer uma boa
Foi somente após a descoberta do atômica um experi- daria as bases teóricas para estimativa das di-
chamado efeito Compton – descober- mento que poderia o desenvolvimento do laser mensões das molé-
to, em 1923, pelo físico norte-ame- testar a sua previ- na década de 1950 culas. O trabalho,
ricano Artur Compton (1892-1962) são: “Se [ela] não assim como a inter-
e no qual, como se fosse uma partí- estiver correta, isso significaria um ar- pretação estatística do movimento
cula, a luz (ou melhor, um fóton) tem gumento de peso contra o conceito browniano, foi aceito rapidamente e
a direção de sua trajetória desviada ao cinético-molecular de calor. Espere- deu início à teoria das flutuações, que
colidir com um elétron – e com as mos que logo venha um pesquisador encontrou depois enorme gama de
experiências dos alemães Hans Geiger para elucidar esta questão importante aplicações científicas, indo da econo-
(1882-1945) e Walther Bothe (1891- para a teoria do calor.” Esse desafio mia à matemática.
1957), em 1925, que o conceito viria encontrou ressonância no físico fran- A tese foi concluída em 30 de abril
a ser aceito amplamente pelos físicos. cês Jean Perrin (1870-1942). Após de 1905, mas teve uma história longa
Em 1909, Einstein, em um de seus cuidadosos experimentos que confir- e tortuosa. Em 1901, Einstein havia
momentos mais visionários, havia maram as previsões de Einstein, Perrin já submetido uma dissertação à Uni-
proposto uma fusão das caracterís- concluía em 1913: “A teoria atômica versidade de Zurique – esse original
ticas ondulatórias e corpusculares da triunfou. Numerosos ainda há pouco, não sobreviveu –, mas retirou-a no
radiação. Sete anos depois, desenvol- seus adversários enfim conquistados início de 1902, possivelmente por su-
veu a idéia da emissão e da absorção renunciam, um após o outro, às des- gestão de seu supervisor Alfred Kleiner
estimuladas da luz – que daria as ba- confianças que por longo tempo fo- (1849-1916). Em janeiro de 1903,
ses teóricas para o desenvolvimento ram legítimas e, sem dúvida, úteis. abandonou seus planos de tese dizen-
do laser na década de 1950. Mas o Será em torno de outras idéias que do: “Essa comédia toda já me aborre-
problema de um entendimento com- prosseguirá agora o conflito dos ins- ceu.” Em 1905, no entanto, retomou

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à idéia do doutorado. As razões eram tinha já décadas de suces-
claras: isso podia ajudá-lo na ascensão so. Por outro lado, a me-
no escritório de patentes e abriria a cânica clássica contava
chance de uma carreira acadêmica. Se- com mais de 200 anos de
gundo sua irmã, Maja (1881-1951), êxito quase absoluto em
ele tentou inicialmente que o trabalho seu domínio descritivo.
sobre a relatividade constituísse a dis- No entanto, as equações
sertação, o que teria sido rejeitado. de Maxwell do eletro-
Voltou-se, então, para uma questão magnetismo não são
ao feitio dos físicos de Zurique, uma compatíveis com o prin-
investigação mais solidamente escora- cípio da relatividade, que
da em experimentos. E teve êxito. está na base da mecânica
Einstein veria também, posteriormen- clássica. Como conciliá-
te, falharem várias tentativas de con- los? Hipóteses ad hoc – ou Físicos influentes na época: Da esquerda para a direita,
seguir um certificado para lecionar seja, forjadas a partir do Walther Nernst, Einstein, Max Planck, Robert Millikan e
nas universidades, o que só consegui- fenômeno que querem Max von Laue.
ria em 1908. Outro detalhe curioso, explicar e sem maiores
difundido em algumas de suas biogra- fundamentações teóricas – haviam com o primeiro, a saber, que a luz
fias, é que Kleiner aprovou a tese de sido formuladas, especialmente pelo sempre se propaga no espaço vazio
1905, mas reclamou que ela estava físico holandês Hendrik Lorentz com uma velocidade definida c, que é
muito curta – 17 páginas apenas. (1853-1928), mas não ofereciam independente do estado de movimento
Einstein acrescentou uma única frase, uma solução teórica aceitável aos do corpo emissor. Esses dois postula-
e ela foi aceita sem comentários, o que olhos de Einstein. Sua proposta será dos são suficientes para se construir
divertiu particularmente seu autor. radical e aparentemente inconsistente: uma teoria simples e consistente (...).
estender o princípio da relatividade A introdução de um “éter luminífero”
Novas concepções sobre para toda a Física e introduzir a hipó- provar-se-á supérflua ...
espaço e tempo tese adicional da independência da
Note-se a coragem do jovem físico
Enviado em 30 de junho de 1905, velocidade da luz em relação ao movi-
ao eliminar, com uma frase curta, a
o artigo ‘Sobre a eletrodinâmica dos mento da fonte que a emite.
noção de éter de suas considerações,
corpos em movimento’ abordava o O início do artigo de Einstein deixa
conceito que era um paradigma secu-
conflito aparente entre a teoria ele- claro seu propósito de unificar as duas
lar da Física como meio transmissor
tromagnética e o princípio da relati- teorias:
da luz e aceito como ‘realidade’ por
vidade – pelo qual as leis da Física Como é bem conhecido, a eletrodinâ- praticamente todos os cientistas de
devem ter a mesma forma para todos mica de Maxwell – tal como usual- sua época. O resultado, decorrente de
os observadores inerciais, ou seja, não mente aceita no momento – quando suas premissas, de que a luz tem a
acelerados –, originado da mecânica aplicada a corpos em movimento, mesma velocidade para todos os
clássica. O eletromagnetismo oferecia produz assimetrias que não parecem observadores, quaisquer que sejam
uma descrição unificada dos fenôme- ser inerentes aos fenômenos. (...) seus movimentos, estava em conflito
nos elétricos, magnéticos e ópticos e Exemplos desse tipo, juntamente com com o senso comum e com a mecâ-
as tentativas infrutíferas de detectar nica de Newton, que previa velocida-
qualquer movimento da Terra em des diferentes quando medidas por
relação ao “meio luminoso”, sugerem observadores que se movem um em
que os fenômenos da eletrodinâmica, relação ao outro. Isso forçou Einstein
assim como os da mecânica, não a uma revisão dos fundamentos cine-
possuem propriedades corresponden- máticos da Física: rediscutiu os
tes à idéia de repouso absoluto. Suge- conceitos de tempo e de espaço e a ma-
rem, além disso, (...) que as leis da neira como são mensurados. Sua
eletrodinâmica e da óptica sejam vá- nova definição para se medir o tempo
lidas para todos os sistemas de refe- e sincronizar os relógios, por meio de
rência para os quais as equações da sinais luminosos, levou ao abandono
mecânica são válidas. Elevaremos da noção de tempo absoluto: dois
essa conjectura (o conteúdo da qual eventos que são simultâneos para um
será daqui para frente chamado de observador (com um relógio) em
“Princípio da Relatividade”) ao sta- repouso não são simultâneos para um
Einstein e seu melhor amigo Michele
tus de um postulado, e também intro- observador em movimento. Da nova
Besso, a quem agradece no artigo da
Relatividade pela colaboração e valiosas
duziremos outro postulado, que é formulação decorrem alguns resulta-
sugestões. apenas aparentemente irreconciliável dos físicos importantes:

Física na Escola, v. 6, n. 1, 2005 1905: Um Ano Miraculoso 7


quantidades enormes de energia e como quarta dimensão, funde-se com
vice-versa. A massa e a energia são as outras três espaciais. Concepção
de fato equivalentes. Concluiu o artigo similar fora já expressa por Poincaré.
de maneira cuidadosa, mas premoni- Na apresentação de suas idéias,
tória: “A massa de um corpo é uma Minkowski diria em 1908: “As visões
medida de seu conteúdo de energia; de espaço e tempo que desejo apre-
se a energia muda de E, a massa varia sentar a vocês cresceram do solo da
no mesmo sentido de E/c2... Não é im- física experimental e daí nasce o seu
possível que, com corpos cujo conteú- vigor. Elas são radicais. Daqui para
do de energia é variável em um alto frente, o espaço por si mesmo, e o
grau (por exemplo, com sais de rádio), tempo por si mesmo, estão destinados
a teoria possa ser colocada à prova a se tornarem meras sombras, e so-
com sucesso. Se a teoria corresponder mente uma espécie de união dos dois
aos fatos, a radiação carrega inércia preservará uma realidade indepen-
entre os corpos emissores e os corpos dente.”
absorvedores.” Escreveu na época
para um amigo: “O argumento é di- O contexto e a fonte da
vertido e sedutor; mas, por tudo que criatividade
sei, o Senhor poderia estar zombando Um motivo de intensa discussão
A coordenação de relógios nas torres de comigo...” Não era zombaria. Na dé- e controvérsia entre os estudiosos da
Berna poderia ter contribuído para a defi- cada de 1930, expe- obra de Einstein é a
nição de simultaneidade proposta por rimentos vieram Poincaré também
fonte de sua criati-
Einstein. confirmar as ex- desenvolveu trabalhos
vidade e os cami-
pectativas ali colo- importantes sobre a
nhos que o condu-
i) o tempo flui em taxas diferentes cadas. E, em 1945, relatividade e deduziu
ziram a suas teorias.
para observadores em movimento a bomba atômica – muitas das expressões
Ele não tinha o cos-
relativo entre si; tanto os intervalos que Einstein, por matemáticas contidas na
tume de guardar
de tempo quanto os comprimentos muito tempo, du- teoria. No entanto, ele não
seus manuscritos,
medidos variam com o observador, vidou que pudesse atribuiu uma realidade física
nem se preocupou
dando origem, respectivamente, ao ser construída e cu- significativa às expressões a
muito em recons-
que se convencionou chamar dilata- jo uso condenou que chegara, ao contrário
truir a linha de suas
ção temporal e contração espacial; fortemente – mos- de Einstein
reflexões. Mas mui-
ii) a nova lei de somas das veloci- traria, de forma tas reconstruções
dades – que não obedece mais à soma trágica, o acerto e o poder de suas históricas, mais ou menos plausíveis,
direta das velocidades v = v1 + v2, co- idéias. têm sido feitas, levando em conta suas
mo ocorria na mecânica newtoniana Note-se que o físico e matemático
– permite resolver a aparente incon- francês Henri Poincaré (1854-1912),
sistência entre seus dois princípios já independentemente de Einstein, desen-
mencionados; volveu trabalhos importantes sobre a
iii) ocorre variação da massa do relatividade e deduziu muitas das
objeto com a velocidade. expressões matemáticas contidas na
Essa reformulação dos conceitos teoria. No entanto, por razões varia-
fundamentais de tempo e espaço, to- das, que têm sido muito discutidas pe-
mados como dados a priori por sécu- los historiadores – entre as quais, sua
los, constitui-se certamente em uma visão filosófica mais convencionalista
das revoluções mais importantes da e menos realista que a de Einstein e a
Ciência, embora seu próprio autor manutenção da noção de éter – não
não pensasse assim: ele a via como atribuiu uma realidade física signi-
um aperfeiçoamento da física clássica. ficativa às expressões a que chegara,
Em setembro de 1905, em um ao contrário de Einstein.
artigo de apenas três páginas, com um Em 1907, o matemático russo
titulo interrogativo, ‘A inércia de um Hermann Minkowski (1864-1909),
corpo depende de seu conteúdo ener- que havia sido professor de Einstein
gético?’, Einstein deduziu uma fór- na Escola Politécnica de Zurique Trajetória aleatória de uma pequena
mula, relacionando a energia (inércia) (Suíça), teve a importante idéia de partícula imersa em um líquido. Figura
de um corpo com sua massa, que in- considerar o espaço e o tempo conjun- original do livro Átomos de Perrin que
dica que quantidades muito pequenas tamente, constituindo um contínuo comprovou experimentalmente a teoria de
de massa podem ser convertidas em quadridimensional no qual o tempo, Einstein.

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características particulares, a situação tividade. Também, ao propor a hipó- à colocação clara do cerne do proble-
da Física em sua época e o contexto tese do quantum de luz, não foi mo- ma, se segue o elenco de premissas, o
em que estava inserido. vido por nenhum experimento par- desenvolvimento dos modelos – ou
Segundo ele mesmo, o que o dis- ticular. Partiu da constatação de uma das teorias – e as conseqüências expe-
tinguia era uma insaciável curiosi- profunda diferença formal entre a des- rimentais deles decorrentes.
dade: “Eu não sou nem especialmente crição da matéria e a dos campos Einstein era um mestre na arte,
inteligente, nem especialmente dota- eletromagnéticos. Enquanto a teoria que teve também expoentes em Gali-
do. Sou apenas curioso, muito curio- da matéria pressupõe um número leu e Maxwell, de construir experi-
so.” Esse aspecto, aliado a uma grande finito de átomos – mentos mentais –
capacidade de autodidatismo, iniciara- ou seja, partículas Sou um herético, repetia produzidos apenas
se já na infância. Exibia também uma distribuídas de for- Einstein com freqüência. A na imaginação e que
capacidade muito grande de concen- ma descontínua no pouca reverência com as estão além de nossa
tração e de se dedicar intensamente a espaço –, a teoria autoridades, inclusive univer- capacidade de reali-
um mesmo problema por anos a fio. eletromagnética faz sitárias, e a postura crítica zá-los diretamente
Até 1905, Einstein de certa forma cor- uso de ondas, que permanente quanto às no laboratório – pa-
ria por fora, às margens da Ciência são descritas por verdades adquiridas foram ra refletir sobre os
institucionalizada. Era dotado de funções matemá- sempre um traço marcante princípios básicos
notável autoconfiança e alta dose de ticas contínuas. de sua personalidade e da Física. Já em
rebeldia: “Sou um herético”, repetia No contexto podem ter contribuído para 1895, com 16 anos,
com freqüência. A pouca reverência formativo, o envol- sua dificuldade em conseguir começou a refletir
com as autoridades, inclusive univer- vimento da família um cargo em universidades sobre a questão do
sitárias, e a postura crítica permanen- de Einstein em ne- depois de formado éter e a propagação
te quanto às verdades adquiridas gócios ligados à tec- da luz. Concebeu de
foram sempre um traço marcante de nologia elétrica – uma das fronteiras início um experimento mental que o
sua personalidade e podem ter contri- tecnológicas da época – deve tê-lo acompanharia por dez anos: o que
buído para sua dificuldade em conse- influenciado significativamente. Seu ocorre se acompanharmos uma on-
guir um cargo em universidades pai – que queria vê-lo formado em da luminosa com a mesma velocidade
depois de formado, em 1900. Note- engenharia elétrica – e seu tio produ- dela? Ela ficaria ‘congelada’, em uma
se que Einstein conviveu na Suíça, co- ziam equipamentos de precisão para estranha forma de onda não mo-
mo estudante universitário, em um medidas elétricas e dínamos. Por outro vente? Para Einstein, esse experimento
ambiente no qual abundavam socia- lado, como estudante universitário, mental juvenil foi o primeiro passo
listas, anarquistas e intelectuais con- Einstein passava longas horas no para a teoria da relatividade especial.
testadores e inovadores. laboratório: “Trabalhei a maior parte Em 1902, com dois amigos Habicht e
Outro aspecto marcante em Eins- do tempo no laboratório de Física, fas- Maurice Solovine (1875-1958), criou
tein é sua visão de Ciência. Tinha pro- cinado com o contato direto com a um ‘clube’ informal, a Academia
funda crença na racionalidade do experiência.” Já sua atividade no es- Olímpia. Leram e discutiram longa-
mundo: o real pode ser descrito por critório de patentes – de junho de 1902 mente vários autores clássicos,
leis científicas, e o comportamento da a outubro de 1909 – foi “uma verda- incluindo obras de físicos e filósofos.
natureza ser entendido a partir de al- deira benção para mim. Isso me Nessa última categoria, entre os que
guns princípios ge- forçou a um pensa- mais o influenciaram, estavam Poin-
rais e esteticamente Do ponto de vista filosófico, mento multilateral caré e o físico austríaco Ernst Mach
belos. A Física deve- os avanços fundamentais e também forneceu (1838-1916), com textos que trata-
ria ser formulada a que Einstein realizou em um importante vam da crítica aos fundamentos da
partir de princípios 1905 dependeram de modo estímulo para a re- mecânica clássica, bem como o esta-
abrangentes e ‘sim- crucial de sua forte adesão flexão em Física”. tístico inglês Karl Pearson (1857-
ples’, e as teorias a uma crença na realidade Ao longo de sua 1936) e o filósofo escocês David Hume
devem naturalmen- das entidades físicas no vida, o interesse (1711-1776), com críticas sobre o
te resistir ao crivo nível atômico, preconizada pelas máquinas per- procedimento da indução em ciência,
experimental. Os por Maxwell e Boltzmann maneceu aceso: ti- além de Maxwell e do físico austríaco
artigos de 1905 ini- rou algumas paten- Ludwig Boltzmann (1844-1906). Do
ciam-se quase todos com uma tes de invenções feitas sozinho ou com ponto de vista filosófico, os avanços
insatisfação de Einstein com alguma colegas – uma delas, a de um refrige- fundamentais que Einstein realizou
assimetria ou incompatibilidade en- rador, desenvolvido juntamente com em 1905 dependeram de modo cru-
tre domínios da Física e a necessidade o físico húngaro Leo Szilard (1898- cial de sua forte adesão a uma crença
de superá-las a qualquer custo. Toda 1964). Seu trabalho na análise das pa- na realidade das entidades físicas no
sua obra gira em torno de buscar des- tentes pode ter também contribuído nível atômico, preconizada por Max-
crições unificadoras da Física. Isso para seu estilo direto e pouco usual well e Boltzmann.
ocorreu, como vimos, no caso da rela- de escrever artigos científicos no qual, O contexto no qual Einstein se in-

Física na Escola, v. 6, n. 1, 2005 1905: Um Ano Miraculoso 9


também abordou a questão da sincro- reu em Princeton (Estados Unidos),
nização dos relógios sob vários em 18 de abril, aos 76 anos de idade.
ângulos. Além de refletir filosofica- Viveu profundamente também as
mente sobre a medida do tempo, ao contradições políticas e sociais de seu
presidir o Bureau de Longitude ele aju- tempo. Lutador incansável pela paz,
dou a desenvolver métodos para socialista ‘emocional’ e crítico do so-
cobrir o mundo com um tempo sin- cialismo real, opôs-se ao nazismo, ao
cronizado, pela uti- macartismo – per-
lização de transmis- Einstein viveu, refletiu e seguição a supostos
sões telegráficas. produziu em uma arena simpatizantes de re-
Tudo isso mos- onde convergiam: a física, gimes de esquerda
tra que algumas das na tradição dos grandes nos Estados Unidos
visões predominan- mestres; a filosofia, com a –, à guerra e à cor-
tes sobre Einstein crítica à natureza do conhe- rida armamentista.
são parciais e incor- cimento e a tecnologia, com Pagou alto preço
retas. A visão empi- os aparelhos elétricos, os pessoal por isso.
rista ingênua atri- relógios e as novas Quanto ao mito de
bui a origem de seus radiações que enchiam o gênio que o cerca,
trabalhos à tentati- final do século 19 traduzido na figura
Einstein em Princeton, na sua residência va direta de explicar de um velho cien-
em Mercer Street. experimentos – como o de Michelson- tista excêntrico e isolado, com cabelos
Morley, no caso da relatividade – que brancos e desgrenhados, ele mesmo
sere é também essencial para que se a física clássica tinha dificuldade em deu a receita: “É curioso ver como a
entenda sua obra e o impacto dela tratar. Já uma visão antipositivista vê gente aparece aos olhos dos outros.
decorrente. Viveu em uma época de em seus trabalhos apenas o pensa- Foi meu destino que minhas reali-
profunda transição na Ciência: a Fí- mento abstrato, distante dos experi- zações fossem supra-avaliadas além
sica passava por uma crise, e os con- mentos e do entorno material e tec- de todos os limites, por razões incom-
ceitos e as teorias construídos nos nológico que o circundava. Esta preensíveis. A humanidade necessita
séculos anteriores se defrontavam última visão contribui para um dos de alguns poucos ídolos românticos
com novos domínios da experiência. mitos persistentes sobre Einstein: o de como spots de luz no campo da exis-
Entre os anos 1895 e 1904, muitas um pensador completamente desliga- tência humana. Eu me tornei um tal
descobertas importantes foram feitas do das coisas terrenas. Visões ambas spot de luz.”
– como os raios X, a radioatividade, parciais e que distorcem a comple- Ao rememorar mos o annus
as ondas de rádio e o elétron – bem xidade do processo criativo na Ciência. mirabilis de Einstein, vale encerrar
como novas técnicas experimentais Einstein viveu, refletiu e produ- lembrando o que para ele era o cerne
foram desenvolvidas, permitindo ziu em uma arena onde convergiam: da atitude científica diante do
perscrutar o interior da matéria. É i) a física, na tradição dos grandes mundo: “A coisa importante é não
interessante destacar que Einstein mestres e que se defrontava com parar de questionar. A curiosidade
construiu sua teoria da relatividade novos resultados experimentais tem suas próprias razões para exis-
abstrata em um contexto de um intrigantes; ii) a filosofia, com a crítica tir. (…) Nunca perca a sagrada cu-
mundo material rodeado de máqui- à natureza do conhecimento e às riosidade.”
nas elétricas e de mecanismos trans- noções clássicas sobre o tempo e o
Artigo originalmente publicado na Ciência
missores de sinais espaço; iii) a tecno- Hoje v. 36, n. 212, p. 34-41 (2005).
elétricos e de ondas É curioso ver como a gente logia, com os apa-
eletromagnéticas. aparece aos olhos dos relhos elétricos, os
Patentes e invenções outros. Foi meu destino que relógios e as novas Sugestões para leitura
de novos equipa- minhas realizações fossem radiações que en- J. Stachel, (org.) O ano miraculoso de Einstein
mentos eletrome- chiam o final do – Cinco artigos que mudaram a face da
supra-avaliadas além de
Física (Editora da UFRJ, Rio de Janeiro,
cânicos e propostas todos os limites, por razões século 19. Essa in-
2001).
para a sincroniza- incompreensíveis terseção tripla de A. Pais, Sutil é o Senhor... A Ciência e a Vida
ção de relógios – um Einstein fatores foi certa- de Albert Einstein (Editora Nova
importante proble- mente um ponto Fronteira, Rio de Janeiro, 1995).
A. Fölsing, Albert Einstein (Penguin Books,
ma da época – foram o seu cotidiano importante na construção de suas
Harmondsworth, 1997).
por anos. Até em sua caminhada teorias. A. Einstein, A teoria da relatividade especial e
diária para o trabalho, passava pelas geral. (Contraponto Editora, Rio de
grandes torres com relógios que A sagrada curiosidade Janeiro, 2000).
Einstein nasceu em Ülm (sul da D. Brian, Einstein: A Ciência da Vida (Ática,
determinavam a coordenação do
São Paulo, 1998) .
tempo em Berna. Note-se que Poincaré Alemanha), em 14 de março, e mor-

10 1905: Um Ano Miraculoso Física na Escola, v. 6, n. 1, 2005


○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

A
lbert Einstein, que evocamos inibir os professores do Ensino Médio Carlos Fiolhais
neste Ano Mundial da Física, de apresentarem-no aos seus alunos Centro de Física Computacional da
era um físico divertido. Para o e de darem uma idéia, ainda que su- Universidade de Coimbra
saber basta ler o seu melhor biógra- mária, do seu trabalho e da sua obra. e-mail: tcarlos@teor.fis.uc.pt
fo, Abraham Pais: além da monumen- O Ano Mundial da Física tem sido http://nautilus.fis.uc.pt/~cfiolhais
○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○
tal obra Sutil é o Senhor [1], que foca a uma excelente oportunidade para exi-
atividade científica, publicou Einstein bir uma variada iconografia einstei-
Viveu Aqui [2], mais centrado nos niana. Entre essas imagens incluem-
aspectos humanos. A sua pose nun- se Einstein, com um sorriso, a passear
ca foi de um professor sério e solene, de bicicleta, ou com um blusão des-
como era costume nos inícios do sé- portivo, ao leme do seu barco. Uma
culo XX. Sempre foi uma pessoa das imagens mais correntes de Eins-
acessível, mesmo quando os jornais, tein mostra o sábio com a língua
depois do eclipse solar de 1919, o colo- provocatoriamente de fora. Com base
caram nos píncaros da fama. O seu nessa imagem fizeram-se posters e
lado informal, de uma informalidade “T-shirts”. Há quem pense que a
por vezes surpreendente, foi até ga- imagem da língua de fora é um
nhando espaço com o decorrer dos engraçado truque fotográfico, uma
anos, à medida que a sua aura lhe divertida fotomontagem. Quando há
permitia libertar-se de algumas con- alguns anos publiquei essa imagem
venções sociais. A imagem que nos na capa da revista Gazeta de Física,
ficou dele não foi tanto a do jovem
bem composto, de pequeno bigode e
casaco xadrez, funcionário da repar-
tição de patentes de Berna, na Suíça,
mas mais a do sábio bonachão, cabe-
los desgrenhados, de camisola larga e
sandálias nos pés, que, já aposenta-
do, habitava uma vivenda em Prince-
ton, nos Estados Unidos.
O lado “leve” de Einstein reflete-
se também em muitas das suas afir-
mações, orais ou escritas, que não ra-
ro surpreendiam pela sua forte carga
de humor e que em alguns casos fica-
ram mesmo proverbiais. Julgo, por
isso, que a figura de Einstein devia ser
mais usada no Ensino Médio para
atrair os alunos para o estudo da Fí-
sica e para ajudar a afastar a noção, Einstein de bicicleta em Santa Barbara, Ca-
Apresenta-se o lado informal e divertido de
infelizmente bastante difundida, de Einstein, que é revelado tanto pelas suas fa-
lifornia, EUA, em 1933. O sábio declarou mosas imagens como pelas suas notáveis
que a Física é uma disciplina aborre- um dia: A vida é como uma bicileta: para frases. E descreve-se sumariamente o método
cida. Einstein foi um gênio dificilmen- manter o equilíbrio tem de se andar para a que ele usou para atingir um melhor conheci-
te igualável, mas esse fato não deve frente. mento do mundo.

Física na Escola, v. 6, n. 1, 2005 Einstein e o Prazer da Física 11


(depois do cérebro, claro, este infeliz- espólio do físico: The New Quotable
mente objeto de um furto pelo médico Einstein [7]). As frases de Einstein,
que fez a autópsia, que está relatado sempre plenas de sentido, são por
no livro, algo fantasioso, publicado vezes de uma ironia mais do que fina:
em Portugal e no Brasil, Ao Volante refinada. Por exemplo, quando ele
com Mr. Albert, de disse, em um tom
Michael Paterniti A Física é feita por humanos evidentemente ane-
[6]). Ora, Einstein e nesse sentido é uma dótico, que a teoria
gostou da foto que ciência humana. Os alunos da relatividade
outros, mais eins- gostarão decerto de significava que se
teinianos do que o saber isso... media o tempo de
próprio Einstein maneira diferente
(isto é, mais papistas que o papa), de- quando se está sentado sobre um
testaram. Não só pediu ao fotógrafo fogão quente ou quando se tem, em
uma cópia para si como autografou um banco de jardim, uma bela rapa-
outra para dar ao fotógrafo. Se todas riga sentada ao colo... (parece que ele
as pessoas que têm usado essa foto disse mesmo isto!) Por outro lado,
pagassem direitos, o fotógrafo ou os Einstein usava e abusava dos para-
seus descendentes estariam hoje bas- doxos, uma das maneiras mais inteli-
Einstein com a língua de fora na festa de tante ricos... O teatro e o cinema têm gentes de fazer humor. Por exemplo,
aniversário em 1951. ajudado a propagar a imagem de Eins- foi isso o que ele fez quando disse que
tein com a língua de fora. Com efeito, o fato mais incompreensível na Natu-
órgão da Sociedade Portuguesa de em uma peça de teatro auto-biográ- reza é ela poder ser compreendida. Ou
Física (pode ver-se a revista on-line no fica representada pelo grupo Teatro- quando ele disse que para me castigar
nosso sítio [3]; e Einstein voltou re- Ciência de São Paulo, Einstein deita a de desprezar as autoridades, o destino
centemente a ser tema de capa quer língua de fora. Também em um recen- fez de mim uma autoridade. Ou mesmo
em um artigo sobre a recepção de suas te documentário da BBC sobre Eins- ao dizer, a propósito de Deus, que só
idéias em Portugal, quer em outro ar- tein, a cena de seu 72º aniversário foi a Sua não-existência o poderia absolver
tigo em que se explica o modo revo- recriada logo no início. A imagem de dos Seus lapsos (acrescente-se, para
lucionário como resolveu efeito fotoe- Einstein com a língua de fora retrata melhor compreensão da frase, que
létrico [4, 5]), houve quem pensasse bem uma personalidade que não Einstein não acreditava em um Deus
que os editores estavam a perseguir o gostava do culto da personalidade: é que se preocupasse com as ações
ilustre professor e prêmio Nobel, uma imagem de uma pessoa que não humanas, o Deus da tradição judaico-
adulterando a sua imagem. Mas nada receia as convenções, de um físico que cristã, mas usava liberalmente a
de mais falso: a imagem é mesmo ver- se diverte, de um cientista que é
dadeira e foi muito bem aceita pelo profundamente humano. A Física é
próprio. Foi tirada em Princeton feita por humanos e nesse sentido é
quando o físico comemorou 72 anos, uma ciência humana. Os alunos gos-
portanto quatro tarão decerto de sa-
anos antes de falecer Einstein usava e abusava ber isso...
de um aneurisma dos paradoxos, uma das O Ano Mundial
na aorta. Na altura maneiras mais inteligentes da Física tem tam-
Einstein era já fa- de fazer humor. Exemplos: bém servido para
mosíssimo. No fim Para me castigar de divulgar algumas
da festa, muitos re- desprezar as autoridades, o das sentenças do
pórteres apinha- destino fez de mim uma homenageado.
vam-se para captar autoridade Einstein é autor de
imagens do home- ou um sem número de
nageado. Um deles, O fato mais citações, frases que
ao serviço da United incompreensível na têm corrido o mun-
Press International, Natureza é ela poder ser do e que têm sido
foi mais feliz que os compreendida repetidamente cita-
seus colegas. Excla- das nas mais varia-
mou “Professor, sorria por favor” e o das circunstâncias. Embora na Inter-
professor, em vez de sorrir, lançou- net se possam encontrar sítios com
lhe divertidamente a língua de fora. muitas dessas frases, a melhor cole- Einstein no seu veleiro, em um lago de
Deste modo a língua de Einstein ficou tânea é, sem dúvida, a que foi reunida Princeton, com Anna Fantova, uma amiga
a parte mais famosa do seu corpo por Alice Calaprice, uma estudiosa do bibliotecária dos últimos tempos de vida.

12 Einstein e o Prazer da Física Física na Escola, v. 6, n. 1, 2005


exemplo quando decla- a procura de soluções, essa sim, é per-
rou que muito poucas manente. A imaginação é mais impor-
mulheres são criativas). tante do que o conhecimento, afirmou
Ao sábio pouco interes- ele em outra ocasião, em resposta à
savam bens materiais questão sobre se confiava mais na sua
(chegava-lhe, disse ele imaginação ou no seu conhecimento:
um dia, uma escriva- a imaginação abre as portas ao conhe-
ninha, comida e uma ca- cimento e o conhecimento de alguma
ma) nem honrarias, que forma limita a imaginação (Feynman
aceitava para ser sim- afirmou, no seu livro O Que é uma Lei
pático para quem o que- Física [10], que a imaginação do cien-
ria honrar mas às quais tista está contida dentro de uma cami-
não atribuía demasiado sa de forças). Ora, aqui está mais uma
valor (a visita ao Brasil, lição tanto para os professores como
pormenorizadamente para os estudantes...
relatada nos livros Eins- Foi já bastante comentado e discu-
tein e o Brasil, organizado tido mas não é demais lembrar o mo-
por Ildeu de Castro Mo- do como Einstein alcançava o conhe-
reira e António Passos cimento físico. Como é que a sua
Uma das fotos mais clássicas de Einstein, tirada por Y. Videira [9], e Einstein - O imaginação atuava? Criava imagens
Kash em 1948. Viajante da Relatividade com as quais realizava “Gedanken-
palavra Deus para falar de Natureza). na América do Sul, de Alfredo Tiomno experimente” (a palavra alemã para
Ou ainda quando genialmente disse, Tolmasquin [10], é sobre isso bem “experiências mentais”), tais como uma
procurando desculpar-se de uma fal- elucidativa). A Física – a descoberta pessoa que viaja sobre um fóton, no
ta de genialidade: Não sou nenhum do mundo - era o seu leit-motiv, o seu caso da relatividade restrita, ou a
Einstein! contínuo comprazimento. Mais experiência da queda de uma pessoa
A Ciência era para Einstein a coisa modernamente, o mesmo aconteceu dentro do elevador, no caso da relati-
mais preciosa que temos. A expressão com outro físico muito midiático, Ri- vidade geral (e que ele considerou uma
que reproduzi no título do meu livro chard Feynman, também Prêmio das imagens mais férteis da sua vida,
saído na editora Gradiva [8] foi Nobel da Física (os dois estiveram no um “aha” só comparável ao de New-
extraída da frase: A Ciência pode parecer Brasil, note-se a coincidência diverti- ton quando viu cair a maçã; mas Eins-
primitiva e infantil, mas é a coisa mais da; de resto, os dois foram objeto de tein, em vez de ver cair a maçã, ima-
preciosa que temos. E peças de teatro ginou-se a cair com a maçã!). As ques-
essa “coisa mais Einstein vivia de e para a auto -biográficas tões que se podem colocar a propósito
preciosa” constituía Ciência, apenas com representadas pelo dessas duas “Gedankenexperiment” são
para Einstein uma algumas pausas para tocar grupo Teatro-Ciên-
evidente fonte de ou ouvir música, cia!). Os nomes de
prazer, tal como de nomeadamente o violino Einstein e Feynman
resto a arte musical. que haveria de deixar em deviam ser “ser-
Ele estabelecia uma testamento ao seu neto vidos” aos alunos
boa ponte entre as mais velho como heróis mo-
duas, como o mos- dernos da Física.
tra a seguinte frase: A música de Mo- Claro que já o são, mas podem sê-lo
zart é tão pura e bela que a vejo como ainda mais...
um reflexo da beleza interna do Univer- Como é que Einstein chegou ao
so. Einstein vivia de e para a Ciência, conhecimento do mundo? Declarou
apenas com algumas pausas para to- um dia: Não tenho nenhuns talentos
car ou ouvir música, nomeadamente especiais, sou apenas uma pessoa apai-
o violino que haveria de deixar em tes- xonadamente curiosa. E em uma outra
tamento ao seu neto mais velho. A altura: O mais importante é não parar
sua vida familiar não podia deixar de de fazer perguntas. A curiosidade tem a
se ressentir dessa dedicação. Talvez sua própria razão de ser. A curiosidade,
tenha sido por isso que os seus dois o querer saber, é, de fato, a mola real
casamentos não foram bem sucedi- da Ciência. A procura da solução do
dos, o primeiro de uma maneira mais puzzle é mais estimulante do que o
evidente do que o segundo (apesar de próprio puzzle. Não se pára enquanto Einstein a tocar violino, em 1934, a bordo
apreciar o belo sexo, ele fez algumas não se chega ao fim... Em Ciência, as de um navio em rota para os Estados
declarações misóginas, como por soluções são sempre provisórias, mas Unidos.

Física na Escola, v. 6, n. 1, 2005 Einstein e o Prazer da Física 13


perturbadoras. Que é que vê uma ria da relatividade, mas sim à busca em particular, devia transmitir que a
pessoa que viaja à velocidade da luz? E da teoria unificada das forças. Einstein Física não está de modo nenhum
alguém a cair, será que sente o seu não o disse, mas podia ter dito em acabada e que nem um físico tão ge-
próprio peso? O poder das imagens uma das suas famosas tiradas: Deve o nial como Einstein conseguiu pôr
pode, portanto, prevalecer sobre o po- homem procurar unir aquilo que Deus termo à Física. Einstein e Feynman
der das fórmulas matemáticas ou das separou! De fato, na segunda metade acreditavam, tal como muitos físicos,
palavras. Vê-se, em primeiro lugar, da sua vida, tentou por vários modos que a Física nunca terá fim, pelo que
com os olhos da unir as teorias do não poderão concordar com Stephen
mente... E é por isso A Física é uma disciplina eletromagnetismo e Hawking quando ele anunciou que
que as simulações que hoje em dia continua a da gravidade. O re- estava à vista o “fim da Física”... [13].
computacionais ser praticada em muitos cente documentário Com toda a probabilidade alguém
interativas são cada centros e laboratórios por da BBC sobre Eins- conseguirá um dia subir aos ombros
vez mais usadas no numerosas pessoas, porque tein enfatiza esse de Einstein para ver mais longe, fa-
ensino da Física há ainda muito mundo físico fato ao intitular-se zendo crescer a pirâmide humana que
(uma feita no para se descobrir. Esse fato “Sinfonia Inacaba- hoje incorpora Galileu, Newton, Fara-
Departa mento de devia também fazer parte da”. Einstein falhou day, Maxwell (foi Newton quem,
Física da Universi- do discurso pedagógico repetidamente nessa eloqüentemente, disse, referindo-se
dade Federal de tarefa de unificação certamente a Galileu: Se consegui ver
Santa Catarina sobre a relatividade (no próprio hospital pouco antes de mais longe foi porque estava nos ombros
restrita foi, pela sua qualidade, esco- falecer ainda pediu papel e lápis para de gigantes). E, nesse dia, será reconfir-
lhida para inclusão no portal portu- continuar uns cálculos nessa direção), mada uma frase de Einstein: Deus é
guês de Ciência, ensino das ciências e e esse é o caminho que muitos físicos sutil, mas não malicioso, isto é, não é
cultura científica “Mocho” [12]). de hoje prosseguem com permanente fácil, mas é possível avançar na com-
O objetivo de Einstein, o objetivo esperança. Já se conseguiu até, no preensão do mundo. Passados cem
da Ciência, consiste em unir coisas que quadro da mecânica quântica que anos depois de Einstein, a Física con-
estão dispersas, em simplificar o que Einstein não conseguiu compreender tinua divertida. E a dificuldade faz,
parece complicado. Segundo ele, a (Deus não joga aos dados com o Univer- evidentemente, parte da diversão.
ciência é a tentativa de fazer a diversi- so), unificar de modo harmonioso a
dade caótica da nossa experiência força eletromagnética com a força Bibliografia
sensorial corresponder a um sistema nuclear fraca, formando a força ele- [1] Abraham Pais, Sutil é o Senhor (Gradiva,
logicamente uniforme de pensamento (a trofraca, assim como a força eletro- Lisboa, 1993).
conhecida frase devem tornar-se as fraca com a força nuclear forte. Mas [2] Abraham Pais, Einstein Viveu Aqui
coisas tão simples quanto possível mas falta, ainda, para obter a alvejada uni- (Gradiva, Lisboa, 1996).
[3] http://nautilus.fis.uc.pt/~gazeta
não mais simples do que isso, atribuída ficação final, juntar a força da gravi- [4] Augusto Fitas, A Teoria da Relatividade
a Einstein, parece ser apócrifa). Foi tação, a força matematizada pela em Portugal no período entre guerras,
guiado por esse primeira vez por Gazeta de Física 27 27:2, 4 (2004).
princípio que ele O objectivo de Einstein, o Newton e compre- [5] Eduardo Lage, O Centenário do quan-
tum de luz, Gazeta de Física 28 28:1, 4
chegou à teoria da objectivo da Ciência, endida em uma (2005).
relatividade, pri- consiste em unir coisas que perspectiva geomé- [6] Michael Paterniti, Ao Volante com Mr.
meiro restrita e de- estão dispersas, em trica por Einstein Albert (Teorema, Lisboa, 2004).
pois geral. Queria simplificar o que parece (quando descobriu [7] Alice Calaprice, The New Quotable
Einstein (Princeton University Press,
simplesmente mos- complicado. Segundo ele, a que a geometria do Princeton, 2005), com prefácio de
trar que existia um ciência é a tentativa de fazer espaço-tempo era Freeman Dyson.
único princípio da a diversidade caótica da moldado pela maté- [8] Carlos Fiolhais, A Coisa Mais Preciosa que
relatividade, válido nossa experiência sensorial ria-energia). Não Temos (Gradiva, Lisboa, 2002).
[9] Ildeu de Castro Moreira e António
tanto para o eletro- corresponder a um sistema dispomos, porém, Augusto Passos Videira (organizado-
magnetismo como logicamente uniforme de de uma teoria res), Einstein e o Brasil (Editora da Uni-
para a mecânica, já pensamento quântica da gravi- versidade Federal do Rio de Janeiro, Rio
que o princípio da dade que seja con- de Janeiro, 1995).
[10] Alfredo Tiomno Tolmasquin, Einstein
relatividade de Galileu não se adequa- vincente. Muito provavelmente - O Viajante da Relatividade na América
va ao eletromagnetismo. E quis tam- alguém um dia a virá a formular. A do Sul (Vieira & Len, Rio de Janeiro,
bém mostrar que existia um princípio Física é uma disciplina que hoje em 2002).
da relatividade válido tanto para dia continua a ser praticada em mui- [11] Richard Feynman, O Que é uma Lei Física
(Gradiva, Lisboa, 1989), tradução de
sistemas inerciais como para sistemas tos centros e laboratórios por nu- Carlos Fiolhais.
não-inerciais. merosas pessoas, porque há ainda [12] http://www.mocho.pt
Foi guiado pela ânsia da unifica- muito mundo físico para se descobrir. [13] Stephen Hawking, O Fim da Física
ção que o sábio dedicou a maior parte Esse fato devia também fazer parte do (Gradiva, Lisboa, 1994), com prefácio
de Carlos Fiolhais.
da sua vida não à formulação da teo- discurso pedagógico: A escola média,

14 Einstein e o Prazer da Física Física na Escola, v. 6, n. 1, 2005


A
○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○
carta enviada por Einstein para o Premio Nobel da Paz de 1995. Fernando de Souza Barros
Russell, em 11 de abril de Alguns aspectos especiais, que Instituto de Física/UFRJ1
1955, concordando com os serão abordados a seguir, são relevan- e-mail: fsbarros@if.ufrj.br
termos do Manifesto, contêm sua tes para a história do Manifesto: (1) ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

última assinatura em um documento Por que Russell teve que apelar para
público. Sua morte em 18 de abril, Joseph Rotblat, na época um jovem
sete dias após, de certa maneira preci- cientista excluído da ciência “oficial”
pitou a divulgação do Manifesto e inglesa, para presidir a divulgação do
contribuiu para seu impacto imediato. Manifesto? (2) Quais os atores origi-
A divulgação do Manifesto por Ber- nais da proposta da conferência inter-
trand Russell para a imprensa interna- nacional que aparece no primeiro
cional foi presidida por Joseph parágrafo do Manifesto? (3) Por que
Rotblat, o mais jovem cientista entre Niels Bohr não assinou o Manifesto?
os onze assinantes. A época do Mani- (4) Por que Otto Hahn, que há muito
festo foi caracterizada pela perspectiva tempo vinha se opondo ao uso militar
do desenvolvimento de arsenais das da energia nuclear, além de não assi-
bombas de hidrogênio, bem mais po- nar o Manifesto liderou a preparação
derosas do que as bombas atômicas de outra declaração, a Declaração de
que destruíram Hiroshima e Nagasa- Mainau?
ki. Foi a era da Guerra Fria, que dividia
o mundo em duas partes. Esses fatores O momento do Manifesto
dificultaram a preparação de um en- Embora o Manifesto Russell-
contro como proposto no Manifesto, Einstein tenha sido um documento
e uma reunião entre cientistas dos que marcou o movimento contra ar-
“dois lados” foi realizado somente dois mas atômicas na década de 1950, vá-
anos após, em um remoto vilarejo rias iniciativas ocorreram após a 2a O manifesto Russell-Einstein foi lançado em
canadense denomi- Guerra Mundial pa- 1955, em plena Guerra Fria. Na época, as duas
nado Pugwash. A última assinatura de ra despertar a opi- superpotências, os Estados Unidos e a União
Posteriormente, a Einstein em um documento nião pública inter- Soviética, acumulavam e testavam seus arsenais
público está na carta de bombas atômicas para uma eventual guerra
atuação de Joseph nacional sobre a nuclear. Os cientistas já previam o enorme poder
Rotblat foi funda- enviada a Bertrand Russell, necessidade de um de destruição dos arsenais nucleares, principal-
mental para a con- em 11 de abril de 1995. Seu sistema internacio- mente das bombas de Hidrogênio, algo desco-
tinuidade dessas apoio tornou o Manifesto nal de controle das nhecido para as populações e seus dirigentes.
Russell-Einstein um marco Era previsível também a possibilidade de lança-
conferências, cujo armas nucleares. mento acidental de mísseis com ogivas nucleares.
propósitos são: (1) na luta pela paz mundial Era evidente, para O manifesto Pugwash contribuiu para alertar
alertar sobre o peri- os cientistas que a opinião pública sobre a grande ameaça que
go dos arsenais nucleares e (2) propor assumiam essas iniciativas, a inca- pairava sobre o mundo civilizado. Seu efeito foi
certamente construtivo, como evidenciado mais
caminhos alternativos para conflitos pacidade das lideranças políticas da tarde, durante a confrontação de 1962, iniciada
entre nações que levem ao desarma- época de compreenderem a magnitude com a tentativa de instalação de mísseis sovié-
mento universal. A série iniciada em devastadora de um conflito nuclear ticos em Cuba. O autor agradece as informações
1957 é reconhecida atualmente como com bombas de hidrogênio2. detalhadas fornecidas graciosamente por
Sandra Ionno Butcher, responsável pelo projeto
as “Conferências Pugwash”. Rotblat A significativa participação de “História do Movimento Pugwash” da organi-
e a organização Pugwash Conferences cientistas dos dois lados do Atlântico zação Pugwash Conferences on Science and World
on Science and World Affairs receberam no projeto original de produção da Affairs”.

Física na Escola, v. 6, n. 1, 2005 Einstein e as Conferências Pugwash 15


bomba atômica foi conseqüência do nos meios científicos
reconhecimento de que o estágio em da época como filó-
que se encontrava a ciência alemã pos- sofo e matemático,
sibilitaria um empreendimento simi- mas seus ensaios e
lar na Alemanha de Hitler. Após a campanhas pacifistas
verificação de que o programa alemão já causavam impacto
havia fracassado, outros motivos apa- na Inglaterra desde o
receram para justificar o Projeto final da 2 a Guerra
Manhattan. Um dos mais importan- Mundial. Seu primei-
tes, a evidência do poder de destruição ro ensaio, publicado
da arma atômica, obtida com os lan- três dias após a bom-
çamentos de duas bombas sobre cida- ba na cidade de Hiro-
des do Japão, pode ser apontada como shima, em 15 de
o marco inicial da carreira armamen- agosto de 1945, já
tista da Guerra Fria, entre os Estados continha elementos
Unidos e a União Soviética. que aparecem no tex-
Foi nesse ambiente que um peque- to do futuro Manifes-
no grupo de cientistas, convencidos to: Esta sombria pers-
de que os desenvolvimentos em curso pectiva da raça huma-
produziriam novas gerações de armas na está além de qual-
nucleares e novos recursos técnicos quer precedente. A hu-
para enviá-las a qualquer parte do manidade encontra-se
planeta, ganharam notoriedade por perante uma clara es-
promoverem campanhas contra os colha: ou adquirimos
testes nucleares. No final da década um pouco de sensatez,
de 1950, bombas de hidrogênio, 1000 ou iremos todos perecer.
vezes mais potentes que as bombas Uma reviravolta do
lançadas no Japão, estavam sendo pensamento político
testadas na atmosfera. Fora das esfe- terá que acontecer para Seqüência de fotos do Teste Bravo: a primeira logo no início
ras oficiais, o impacto ambiental da que seja evitado o de- da explosão e acima, quando o cogumelo começa a se formar.
média anual de 16 testes nucleares da sastre final4. Note o tamanho dos navios de guerra colocados próximos ao
época, era somente do conhecimento Embora não sen- ponto zero para se avaliar o efeito da explosão sobre uma
de cientistas que trabalhavam em do físico, Bertrand frota.
partes distantes do planeta e que Russell tinha conhecimento dos desen- de fabricar bombas atômicas. Enfren-
detectavam o aumento da radioativi- volvimentos na área nuclear e, já em tando a reação oficial contrária a sua
dade ambiental devido aos testes. Em 1945, alertava a Câmara dos Lordes decisão, Rotblat retornou a Inglaterra,
março de 1954 ocorreu o primeiro inglesa sobre bombas de fusão: É con- onde havia trabalhado antes do início
teste da bomba de hidrogênio norte- cebível um novo dispositivo que guarda- da guerra, e iniciou sua campanha
americana: o Teste ria certa semelhança contra as armas atômicas, fundando
Bravo no Atol de Bi- Joseph Rotblat foi o único às atuais bombas a Associação dos Cientistas Atômicos
kini. A nuvem ra- cientista que saiu do Projeto atômicas, mas que (ASA em inglês). Os propósitos dessa
dioativa desta bom- Manhattan por questões poderia ser utilizado associação, assim como aqueles da
ba atingiu um bar- morais. Isso ocorreu quando para explosões bem sua similar norte-americana, a Fede-
co de pesca japonês, tomou conhecimento, no mais violentas, e que ração dos Cientistas Atômicos (FAS
o Dragão Feliz, in- final da 2a Guerra Mundial, decorreria da síntese em inglês), eram, e continuam sendo,
capacitando mem- que a Alemanha nazista já de elementos mais pe- o de expor projetos nucleares militares
bros de sua tripu- não tinha condições de sados a partir do hi- em elaboração pelo mundo, e de
lação e causando fabricar bombas atômicas drogênio. Isso será contribuir para o conhecimento públi-
uma morte. Esta possível se nossa co das questões das armas de destrui-
ocorrência circulou na imprensa civilização tecnológica seguir em frente ção maciça.
ocidental da época, motivando o que sem se destruir: mas tudo indica que Em 13 de abril de 1954, logo após
seria o primeiro debate publico envol- acontecerá5. o teste norte-americano da bomba de
vendo cientistas que exigiam infor- Joseph Rotblat foi o único cien- hidrogênio no Atol de Bikini, e conse-
mações mais detalhadas sobre a ra- tista que saiu do Projeto Manhattan qüente contaminação dos tripulantes
dioatividade liberada pela explosão. por questões morais. Isso ocorreu do navio pesqueiro japonês Dragão
Foi nesta ocasião que Bertrand Russell quando tomou conhecimento, no fi- Feliz, a BBC convidou Russell e Rotblat
conheceu Joseph Rotblat. nal da 2a Guerra Mundial, que a Ale- para explicarem para o público o que
Bertrand Russell era reconhecido manha nazista já não tinha condições era a bomba de hidrogênio. Rotblat

16 Einstein e as Conferências Pugwash Física na Escola, v. 6, n. 1, 2005


abordou os aspectos técnicos e Russell, Born estava alimentando esta do Manifesto), uma Conferência para
os éticos e morais. O programa teve idéia há algum tempo, tendo escrito a Paz Mundial com uma temática
uma enorme audiência e provocou para Einstein em 28 de novembro de mais ampla possível, a fim de atrair
um extenso debate na comunidade 1954 sobre a possibilidade de engajar um grande número de cientistas de
científica, nos dois lados do oceano cientistas laureados com o prêmio projeção internacional. Ao tomar
Atlântico. O debate técnico estava Nobel nessa empreitada: Li recentemen- conhecimento do programa “A Hu-
relacionado com a informação que te em um jornal a seguinte afirmação manidade em Perigo”, Joliot-Curie
prevalecia nos meios científicos de que atribuída a você: “Se eu tivesse que nas- escreveu para Russell que ...o apoio de
a bomba de hidrogênio não gerava cer de novo, eu não seria um físico, mas uma personalidade do seu porte ao em-
radioatividade. Entretanto, com base um artesão”. Essas palavras muito me preendimento ajudaria a realização da
nos dados japoneses sobre o efeito da confortaram pois tenho tido pensamen- conferência12. Russell acatou pronta-
bomba de hidrogênio na tripulação do tos similares, face aos males que a nossa mente a sugestão de Joliot-Curie,
navio de pesca japonês, Rotblat bela ciência tem trazido ao mundo... enfatizando entretanto a necessidade
postulou que a bomba de hidrogênio Venho considerando o emprego da minha de que o Manifesto precedesse à con-
possuía um estágio final do tipo “fis- notoriedade [devido ao prêmio Nobel]... ferência. Foi assim estabelecida a tro-
são”, o que seria a razão da contami- na tentativa de despertar a consciência ca de mensagens entre esses atores da
nação radioativa daqueles tripulan- de nossos pares ao desenvolvimento de montagem do Manifesto. Em carta de
tes6. tão terríveis bombas9. 11 de fevereiro 1955 para Einstein,
Foram esses os eventos que leva- Born acompanhou as providên- Russell menciona a proposta de Joliot-
ram Bertrand Russell à idéia de orga- cias tomadas por Russell, apresentan- Curie da conferência internacional:
nizar um programa de radio na Ingla- do um relato a Einstein sobre a decisão Joliot-Curie aparentemente está conven-
terra, com o propósito de atingir o de Russell em carta de 29 de janeiro cido da importância de uma grande con-
grande público com informações de 195510. Nesta carta, Born também ferência de homens de ciência13. Em 20
sobre bombas atômicas. O programa informa que sua correspondência com de abril de 1955 Russell visitou Joliot-
“A Humanidade em Perigo” foi um Yukawa, sobre o lançamento de bom- Curie em Paris. De acordo com Golds-
grande sucesso, tendo atingido uma bas atômicas no Japão, seria publi- mith [11], Russell teria iniciado este
audiência entre 5 a 6 milhões, sendo cada em um periódico japonês. encontro com o comentário Eu sou
decisivo para a montagem de um no- Yukawa, prêmio Nobel de Física em anticomunista, mas é o fato de você ser
vo evento: o Manifesto Russell-Eins- 1949 por seus estudos em partículares comunista que me induz a trabalhar
tein. elementares, foi um dos signatários com você14. Os termos do Manifesto,
do Manifesto. refletindo a proposta original de Max
Os autores do Manifesto Logo após o programa “A Huma- Born, foram certamente elaborados
O físico Max Born, que recebeu nidade em Perigo”, Joliot-Curie, prê- por Russell, mas como conseqüência
em 1954 o prêmio Nobel de Física por mio Nobel de Química de 1935, com deste encontro com Joliot-Curie, a
seus trabalhos teóricos sobre a mecâ- contribuições científicas que levaram convocação de cientistas para uma
nica quântica, foi um dos primeiros à “era nuclear”, iniciou sua partici- conferência internacional sobre as
cientistas que contatou Bertrand Rus- pação ao Manifesto. Joliot havia par- conseqüências desastrosas de uma
sell logo após a divulgação do progra- ticipado ativa-
ma “A Humanidade em Perigo”, em mente da campa-
carta datada de 21 de janeiro de 1955. nha contra as ar-
De acordo com Nicholas Griffin7: Born mas nucleares que
já estava pensando em um apelo aos foi iniciada em
governos das potências militares da épo- um encontro do
ca, que seria assinado por laureados do Council of Parti-
Prêmio Nobel, mas estava inseguro sobre sans for Peace, na
a melhor maneira de implementá-lo. cidade de Estocol-
Max Born solicitou o apoio de Russell à mo, em 1950.
proposta, o que foi aceito de imediato8. Desta iniciativa
Em um depoimento apresentado nasceu o Apelo de
por Nicholas Griffin (editor da The Estocolmo, que
Selected Letters of Bertrand Russell: The recebeu eventual-
Public Years, 1914-1970 (New York, mente o apoio de
Routledge, 2001) é dito: Born não 500 mil de assina-
Fotografia de Leo Szilard, à direita, com Einstein. A foto foi tirada
tinha condições para o empreendimento: turas11. Em 1951, em Princeton, nos Estados Unidos, e supostamente representa o
sua saúde era precária e não possuía Juliot-Curie havia histórico pedido de Szilard para que Einstein escrevesse ao presi-
experiência em atividades de caráter pú- proposto com dente Roosevelt alertando-o sobre a viabilidade das bombas atô-
blico. A tarefa da organização do apelo Leopold Infeld micas e que os aliados deveriam construir artefatos nucleares
ficou então para Russell. (outro assinante para conter a expansão da Alemanha nazista.

Física na Escola, v. 6, n. 1, 2005 Einstein e as Conferências Pugwash 17


guerra nuclear foi colocada no primei- trand Russell enviou uma carta a Eins-
ro parágrafo do Manifesto. tein, expondo eloqüentemente a ne-
A estatura científica e moral de cessidade do Manifesto: Como qualquer
Albert Einstein foi determinante para pessoa capaz de refletir, estou profun-
o sucesso do Manifesto. No percurso damente chocado com a corrida para
da sua carreira, Einstein sempre atuou aquisição de armas nucleares. Você em
em questões políticas sensíveis. Há inúmeras ocasiões expôs seus sentimen-
várias iniciativas tos e opiniões com os
que bem caracteri- Embora a bomba H seja quais concordo intei-
zam essa postura atualmente o ponto central, ramente. Acredito que
de Einstein. Em ou- ela não exaure a capacidade cientistas eminentes
tubro de 1914, da ciência de proporcionar deveriam realizar al-
noventa e dois cien- novas alternativas, sendo gum ato dramático
tistas alemães assi- provável que os perigos para sensibilizar a
naram o Manifesto advindos de material bélico opinião publica e go-
Fulda, que procla- bacteriológico sejam, em vernantes de que de-
mava o dever da ci- pouco tempo, da mesma sastres podem ocorrer.
ência alemã de estar magnitude. Isso reforçaria a Você acredita ser pos-
a serviço da pátria constatação fundamental de sível reunir talvez
Eugene Rabinovich foi o cientista norte-
que a guerra e a ciência já americano que participou ativamente da
e de suas forças ar- seis indivíduos da organização da primeira conferência
madas. Logo após, não podem coexistir mais alta reputação
B. Russell para Einstein Pugwash em 1957. Rabinowich era então
Einstein assinou científica e, sob sua presidente da Federação dos Cientistas
um contra-manifesto, organizado por liderança, preparar um pronunciamento Americanos, uma organização que iniciou
G.F. Nicolai, que promovia o interna- solene sobre a necessidade imperativa de a campanha contra armas nucleares nos
cionalismo e a paz15. Einstein partici- se evitar o conflito armado? Esses indi- Estados Unidos após a 2ª Guerra Mundial.
pou também do Emergency Committee víduos deveriam possuir posições polí- Rabinowich é reconhecido como um dos
of Atomic Scientists, uma iniciativa ticas tão diversas que qualquer declara- fundadores da biofísica.
pioneira de informação ao grande pú- ção com suas assinaturas estaria livre
blico sobre questões nucleares e para do viés pró ou anticomunista... Atribuo ra e a ciência já não podem coexistir19.
levantar recursos destinados a campa- especial importância aos seguintes pon- Esta carta de Russell recebeu o ple-
nhas contra o uso militar da energia tos. Primeiro: seria absolutamente fútil no reconhecimento de Einstein20. Em
nuclear 16. Ainda em 1944, Albert lutar por um acordo que proíba a bomba 16 de fevereiro Einstein respondia a
Einstein promovia o internaciona- H. Tal acordo não teria valor após a con- Russell: Concordo com cada palavra da
lismo como alternativa pós-2a Guerra flagração de uma guerra; cada lado par- sua carta de 11 de fevereiro. Algo deve
Mundial, reconhecendo a importância tiria para a produção do maior número ser feito nesta circunstância, algo que
de consultas entre “os cientistas mais de bombas possível. Segundo: é essencial impressione o público em geral e as lide-
destacados” dos países aliados, que na não considerar alternativas para o uso ranças políticas. Isso poderia ser alcan-
época incluíam a União Soviética, pa- pacífico da energia nuclear... Terceiro: çado em uma declaração pública, assi-
ra congregar a influência desses cientis- deve prevalecer rigorosa neutralidade em nada por um número pequeno de pessoas
tas junto aos respectivos governos, para qualquer sugestão ou proposta para - por exemplo, doze indivíduos cujas con-
que sejam criados força militar e governo evitar a guerra atômica... Tudo que será tribuições científicas (científicas no sen-
supranacionais17. afirmado o será em nome da humani- tido pleno) lhes deram estatura interna-
A contribuição de Einstein para o dade, não deste ou daquele grupo. cional e cujas declarações não perderão
próprio texto do Manifesto transpa- Quarto: deve ser en- efetividade face às
rece no seu telegrama de 24 de maio fatizado que a guer- Concordo com cada palavra respectivas afiliações
de 1946, em nome do Committee of ra poderá significar o sua. Algo deve ser feito políticas. Poderíamos
Atomic Scientists: A conquista da ener- desaparecimento da nesta circunstância, algo incluir pessoas como
gia atômica mudou tudo exceto a nossa vida no planeta... que impressione o público Joliot, que são iden-
maneira de pensar, e, assim, seguimos a Quinto: embora a em geral e as lideranças tificadas politica-
deriva rumo a uma catástrofe sem limi- bomba H seja atual- políticas mente, desde que
tes. Nós, os cientistas que liberaram essa mente o ponto cen- Einstein para B. Russell consigamos contra-
imensa fonte de energia, temos uma tral, ela não exaure balançá-las por ou-
tremenda responsabilidade nessa dispu- a capacidade da ciência de proporcionar tras do campo oposto. Sugiro que o texto
ta mundial de vida-ou-morte, a fim de novas alternativas, sendo provável que que será apresentado para as assinatu-
que a conquista do átomo seja para o os perigos advindos de material bélico ras seja preparado por duas ou três
benefício de toda a humanidade e não bacteriológico sejam, em pouco tempo, pessoas - realmente, seria preferível que
para sua destruição18. da mesma magnitude. Isso reforçaria a fosse apenas você - mas de um modo que
Em 11 de fevereiro de 1955, Ber- constatação fundamental de que a guer- assegure antecipadamente que haverá

18 Einstein e as Conferências Pugwash Física na Escola, v. 6, n. 1, 2005


total acordo por parte, ou pelo menos, para o sucesso do Manifesto. Tal en- Mainau. A proposta desta declaração
de alguns dos signatários21... dosso era fundamental face a projeção foi liderada por Otto Hahn, cientista
Na carta de 16 de fevereiro, Eins- internacional das contribuições cien- alemão que também se opunha ao uso
tein também prometia solicitar o tíficas de Bohr, que tinha pleno co- militar da energia nuclear28. Ao tomar
apoio ao Manifesto a cientistas nos nhecimento da capacidade de destrui- conhecimento do Manifesto concebido
Estados Unidos e propunha nomes de ção destas novas armas. Bohr era por Russell, Otto Hahn já se sentia
colegas na Europa. Entre esses, estava também reconhecido por sua campa- comprometido com a preparação da
Leopold Infeld 22 , nha para a impedir declaração que seria assinada por cien-
que era sugerido A notícia da morte de Einstein a “corrida nuclear” tistas que participariam de reunião
para ajudar nos chegou a Russell antes da da Guerra Fria. científica anual, na Alemanha Ociden-
contatos com cien- carta de 11 de abril, quando Einstein enviou car- tal. Esta declaração foi divulgada em
tistas russos. Eins- ele voava de Roma para ta a Bohr em 2 de 15 de julho de 1955, seis dias após à
tein também enfa- Paris. Foi um momento duro março de 1955, in- do Manifesto Russell-Einstein29. Em-
tizava a partici- para Russell, mas chegar no cluindo cópia da bora a declaração liderada por Hahn
pação de Niels Bohr. seu hotel, em Paris, ele carta de Russell que tenha conseguido eventualmente o
Em mensagem pos- verificou com emoção que a descrevia o projeto apoio de cinqüenta e um cientistas,
terior Russell carta resposta de Einstein do Manifesto. Na ela não repercutiu fora dos ciclos cien-
informou a Einstein estava a sua espera carta, Einstein es- tíficos. Esse fato é reconhecido como
sobre um encontro crevia: Bertrand devido a atuação reservada de seus
que tivera com Nehru, então Primeiro Russell tem conhecimento [desta carta], mentores. Russell, ao contrário, optou
Ministro indú, sobre a possibilidade tendo pedido que eu escrevesse para você. pelo apoio da mídia desde o primeiro
da Índia liderar uma iniciativa de Evidentemente, ele sabe muito bem que momento da preparação da divulga-
apoio ao Manifesto, após sua divul- você poderia dar uma grande ajuda ao ção do Manifesto, o que garantiu sua
gação. Einstein respondeu recomen- projeto devido à sua influência, experiên- enorme repercussão. Ainda permane-
dando que Albert Schweitzer, prêmio cia e relações pessoais com pessoas bri- cem sem respostas os motivos porque
Nobel da Paz em 1952, tivesse conhe- lhantes; realmente, ele se apercebeu de Hahn não se somou à iniciativa de
cimento do Manifesto e propõe que que sua assessoria e participação ativa Einstein e Russell, pois os textos e pro-
Russell se responsabilize pela feitura são virtualmente indispensáveis para o pósitos dessas duas declarações guar-
definitiva do texto e dos planos para sucesso do projeto... Será um grande pas- dam similaridade, como pode ser
sua divulgação (ver no Apêndice, o so se você e Bertrand Russell fizerem um apreciado nos seguintes fragmentos
texto final do Manifesto). acordo sobre seus pontos principais25. da Declaração de Mainau: Em uma
Em carta de 5 de abril, Russell Na sua autobiografia, Russell in-
apresentou a versão final do Mani- forma que enviou repetidas cartas e
festo a Einstein e relacionou aqueles telegramas para Bohr26. Nesta auto-
que iriam assiná-lo. Einstein respon- biografia, a resposta com a decisão fi-
deu para Russell em 11 de abril. Esta nal de Bohr, de 23 de março, de não
última carta de Einstein contém ape- assinar o Manifesto, tem a seguinte
nas três linhas: Agradeço sua carta de apreciação: Bohr não acreditou que a
5 de abril. Desejo com satisfação assinar declaração teria o efeito desejado, princi-
sua excelente declaração. Também con- palmente pela possibilidade de não se
cordo com sua seleção de possíveis signa- conseguir o acesso à informações críticas,
tários23. considerado como essencial para ele. Ele
A notícia da morte de Einstein, em também temia que a declaração criasse
18 de abril de 1955, chegou a Russell um impasse para a conferência progra-
antes da carta de 11 de abril, quando mada nas Nações Unidas, mas afirmou
ele voava de Roma para Paris. Foi um que consideraria a declaração com muita
momento duro para Russell, que re- atenção, esperando chegar a uma con-
conhecia a importância fundamental clusão mais satisfatória27.
do endosso de Einstein para o sucesso Bohr não assinou o Manifesto
do Manifesto. Ao chegar no seu ho- nem participou da organização da
tel, em Paris, Russell verificou com reunião que eventualmente aconteceu Sir Joseph Rotblat é presidente emérito do
emoção que a carta resposta de Eins- no povoado de Pugwash, priorizando Pugwash. Presidente de 1988 a 1997, foi
agraciado em 1995 com o Prêmio Nobel
tein estava a sua espera24. a promoção da conferência das Nações
da Paz em reconhecimento a seu trabalho,
Unidas. através do Pugwash, a favor do desarma-
As assinaturas ausentes Vários cientistas que não assina- mento nuclear. É Professor Emérito de Física
Como mencionado acima, Eins- ram o Manifesto participaram de uma na Universidade de Londres e único signa-
tein e Russell reconheciam a impor- declaração paralela, reconhecida pos- tário vivo do manifesto (foto gentilmente
tância da participação de Niels Bohr teriormente como a Declaração de cedida pelo comitê Pugwash).

Física na Escola, v. 6, n. 1, 2005 Einstein e as Conferências Pugwash 19


O manifesto Russell-Einstein mais poderosas do que aquela que arrasou Primeiro, porque qualquer acordo Leste-
Hiroshima. Oeste estaria na direção desejável de aliviar
Na situação na qual se encontra a hu- Uma bomba de tal porte, explodindo per- a tensão atual. Segundo, a eliminação das
manidade, acreditamos que os cientistas to do solo ou d’água, envia partículas radioa- armas termonucleares, na eventualidade de
devam realizar uma conferência sobre os tivas para a parte superior da atmosfera. cada lado acreditar que o outro está atuan-
perigos que surgiram com o desenvolvi- Essas partículas se depositarão vagarosa- do com sinceridade, reduziria o medo de
mento de armas de destruição maciça, com mente, caindo na superfície terrestre sob a ataque súbito no estilo Pearl Habour, expec-
o propósito de considerarem uma resolu- forma de poeira ou de chuva mortíferas. Foi tativa que tem contribuído para o estado
ção, cujo escopo é proposto em anexo. essa deposição que infectou os pescadores ja- geral de apreensão dos dois lados. Devemos,
Falamos nessa ocasião não como poneses e sua pesca. portanto, manifestar que tal acordo seria
membros dessa ou daquela nação, conti- Ninguém conhece qual o alcance da difu- benvindo, embora sendo apenas o primeiro
nente ou crença, mas como membros da são dessas partículas, mas as autoridades passo.
espécie biológica dos Homens, cuja sobre- mais competentes concordam unanimemen- Como maioria dos signatários, fica aqui
vivência é duvidosa. O Mundo está repleto te que uma guerra com bombas H poderia expresso o sentimento de neutralidade, e, na
de conflitos; mas, sobrepondo-se a todos, ser o fim da espécie humana. Existe o temor condição de seres humanos, se declara que
paira a tremenda confrontação entre comu- de que haveria aniquilação global se muitas se as questões entre o Leste e o Oeste forem
nismo e anticomunismo. bombas H fossem utilizadas; a morte seria decididas de modo a conseguir o reconhe-
Quase todos que são politicamente cons- rápida apenas para uma minoria; para a cimento satisfatório de qualquer cidadão,
cientes têm fortes sentimentos sobre esta maioria, seria uma lenta agonia de enfermi- seja comunista ou anticomunista, europeu
questão central e suas conseqüências; mas dades e de decaimento físico. ou asiático, branco ou negro, haveria uma
é nosso apelo que ponham de lado esses São muitos os pronunciamentos de cau- solução sem a guerra. Deseja-se que isso seja
sentimentos e que todos se considerem tela de cientistas eminentes e de autoridades plenamente entendido nos dois lados.
apenas como membros de uma espécie em estratégia militar. Nenhum deles afirma Perante nós, se assim optamos, haveria
biológica com uma história espetacular e que o pior cenário acontecerá. O que é dito é como contribuir para o progresso e a
cujo desaparecimento nenhum de nós po- que são conseqüências possíveis, e que nin- felicidade, o conhecimento e a sabedoria.
deria desejar. guém tem certeza do que ocorreria. Não Deveríamos, ao contrário, optar pela mor-
É nosso propósito não emitir qualquer constatamos que as expectivas desses espe- te, porque não podemos esquecer nossas
conceito cujo sentido tenda mais para um cialistas dependam, em qualquer grau de disputas? Apelamos como seres humanos
grupo do que para o outro. Todos, igual- intensidade, de ideologias ou preconceitos, a seres humanos: Lembrem-se de sua hu-
mente, estão em perigo, mas, se o perigo sendo resultantes do conhecimento específico manidade e esqueçam o resto. Se assim for
for compreendido, existe a esperança de sobre essas armas. Verificamos que quanto feito, teremos aberto o caminho do Paraíso;
que, juntos, possamos evitá-lo. maior é o conhecimento científico da pessoa, se isso não for possível, nada restará a não
Teremos que aprender a pensar de modo maior é o seu pessimismo. ser o risco da aniquilação total.
diferente. Não deveremos perguntar sobre Eis aí, portanto, o dilema que apresen- Resolução: Convidamos esse Congresso,
quais os meios nos levariam a uma vitória tamos sem nuanças, inquietante e inesca- e, em seu nome, a todos os cientistas e ao
militar, qualquer que seja o lado que pre- pável: vamos acabar com a espécie humana, público em geral, a endossarem a seguinte
ferimos, porque esses recursos não existem ou vamos renunciar à guerra1? Mas não se resolução:
mais; a questão que deveremos fazer para enfrenta este dilema por ser tão difícil abolir Cientes da constatação de que em uma
nós mesmos é: como poderemos evitar o a guerra. eventual guerra mundial armas nucleares
conflito militar cuja conseqüência seria o Eliminar a guerra implica em duras serão certamente utilizadas, ameaçando a
desastre para todos? imposições à soberania nacional2. Mas o que existência da humanidade, conclamamos
O público em geral, mesmo pessoas em talvez impeça muito mais essa superação é os governos que aceitem, e que reconheçam
posições de autoridade, não dominam o que a palavra “humanidade” soa distante e publicamente, que os interesses de estados
significado da participação de uma guerra abstrata. As pessoas dificilmente concebem não podem ser alcançados militarmente;
com bombas atômicas. Elas ainda pensam que o perigo alcançaria elas próprias, filhos instamos, conseqüentemente, que bus-
que cidades poderiam ser devastadas e reco- e netos, mas apenas uma difusa e longínqua quem meios pacíficos para a negociação das
nhecem que as novas bombas são mais po- humanidade. Elas dificilmente concebem a questões em pauta.
derosas. Assim, se a bomba atômica pôde realidade do perigo iminente como indiví- Max Born, Percy W. Bridgman, Albert
devastar Hiroshima, a bomba H poderia duos, assim como também para aqueles que Einstein, Leopold Infeld, Frederic Joliot-Cu-
ser capaz de arrasar cidades maiores como mais prezam, de perecerem de forma tão rie, Herman J. Muller, Linus Pauling, Cecil
Londres, Nova Iorque e Moscou. terrível. Assim, apenas se espera que, talvez, F. Powell, Joseph Rotblat, Bertrand Russell,
Não é posto em dúvida que em uma a guerra possa continuar existindo se essas Hideki Yukawa
guerra com bombas de hidrogênio, grandes armas são proibidas. Notas de roda-pé:
cidades seriam arrasadas. Mas essa seria Essa esperança é ilusória. Qualquer acor- 1. O professor Joliot-Curie deseja acres-
uma das suas menores conseqüências. Se do estabelecido em tempo de paz, contrário centar as seguintes palavras: “como possi-
todos que vivem em Londres, Nova Iorque ao usa das bombas H, não seria respeitado bilidades para eliminar diferenças entre
e Moscou são exterminados, o mundo assim que o conflito fosse deflagrado. Os dois Estados”
poderia, em alguns séculos, ser recuperado campos iniciariam a construção dessas bom- 2. O professor Joliot-Curie deseja acres-
do golpe. Mas sabemos agora, especialmen- bas, porque a violação unilateral levaria centar que essas limitações devem ser acei-
te desde o teste nuclear de Bikini, de que os inevitavelmente à vitória. tas por todas as partes e que sejam do inte-
efeitos dessas novas bombas nucleares atin- Se o acordo do uso de armas nucleares resse de todos.
girão, gradualmente, áreas bem maiores do for parte da redução geral de armamentos3, 3. O professor Muller faz a observação
que as previamente supostas. não seria alcançada a solução derradeira, mas cautelar de que isso seja interpretado como
Afirmamos que as bombas que estão certamente contribuiria para propósitos im- “uma concomitante e balanceada redução
sendo produzidas agora são 2.500 vezes portantes. de todas as armas.”

20 Einstein e as Conferências Pugwash Física na Escola, v. 6, n. 1, 2005


guerra total, a Terra pode se tornar tão estrangeiros, além da TV de Londres. O encontros desta natureza estavam
radioativa que nações inteiras poderão convite apenas informava que algo muito sendo propostos na época33. Em 1954,
ser destruídas. Muitos homens e mulhe- importante e de interesse mundial seria Jawaharlal Nehru, então Primeiro Mi-
res de países neutros morrerão... As na- declarado. As aceitações foram em tão nistro da Índia, propunha que cientis-
ções independentes, congregadas, deve- grande número que houve necessidade de tas organizassem uma comissão com
riam considerar a renúncia voluntária se mudar o encontro da sala para um a missão de esclarecer a opinião públi-
da força como último recurso político. auditório. A semana após a conferência ca mundial sobre as conseqüências de
Se elas não estão preparadas para isso, foi horrível. O telefone tocava todo o tempo uma guerra nuclear28. Joseph Rotblat,
elas deixarão de existir. e a sineta da porta também. Eram pessoas representando a ASA e Eugene
Finalmente, devem ser registrados da imprensa e editores querendo mais Rabinowitch34, pela FAS, reconheceram
a inexistência de qualquer assinatura informações exclusivas... Tudo isso caiu o mérito da proposta de Nehru e ini-
de cientistas soviéticos no Manifesto nos braços da minha esposa e de nossa ciaram uma longa colaboração, ini-
e o número pequeno de norte-ameri- empregada. Eu tinha sido aconselhado a cialmente para organizar encontros de
canos. Contribuíram certamente para não dar declarações e só atender telefo- trabalho, com cientistas franceses. O
isso as tensões da Guerra Fria na nemas de familiares. Ninguém deveria sair primeiro encontro ocorreu em Londres,
União Soviética e a campanha anti- de casa. Tentei ler e trabalhar sem su- algumas semanas após a divulgação do
comunista do senador Joseph cesso durante toda a semana, sentado em Manifesto, durante os dias 3 a 5 de
McCarthy, nos Estados Unidos. uma cadeira. Mais tarde me informaram agosto de 1955. Foi uma reunião pe-
que eu repetia freqüentemente a seguinte quena, mas que deu a Rabinovich e a
A divulgação do Manifesto frase: Isso será um foguete que falhou31. Rotblat a oportunidade de conhecerem
Na sua autobiografia, Russell No encontro com a mídia, Russell o acadêmico Alexander Topchiev35. A
demonstra a atenção que dispensou à necessitava da presença de alguém com história da organização da Conferência
divulgação do Manifesto: Para mim, conhecimentos técnicos necessários Pugwash é longa. Como mencionado
deveria ser feita uma cobertura dramáti- para esclarecimentos sobre a bomba H na introdução, o encontro entre cien-
ca para focalizar a atenção sobre o que a que certamente viriam da audiência. tistas dos “dois lados” foi realizado
declaração pretendia informar e sobre a Russell decidiu que esta pessoa também somente em julho de 1957, em um
estatura daqueles que deveria presidir o ato remoto vilarejo canadense denomina-
iriam endossá-la. Russell necessitava da da divulgação. Não do Pugwash, graças ao apoio finan-
Após descartar várias presença de alguém com foi fácil encontrar ceiro de doadores anônimos e, princi-
propostas, decidi re- conhecimentos técnicos para um físico nuclear palmente, de Cyrus Eaton, um mag-
correr a assessores esclarecimentos sobre a disposto a aparecer nata de petróleo que tinha nascido em
profissionais. Eu ti- bomba H, e assim decidiu- perante uma platéia Pugwash e que ofereceu suporte lo-
nha tido a oportu- se por consultar Rotblat, na de personalidades da gístico e sua residência de verão para
nidade de conhecer o época um físico jovem, mas mídia. Finalmente, realização da conferência36.
editor do Observer, e o único assinante do mani- Russell decidiu-se A conferência em Pugwash reu-
senti que ele tinha festo que tinha trabalhado por consultar niu 22 participantes de dez países, dis-
uma posição liberal e no Projeto Manhattan Rotblat, na época tribuídos entre os dois lados da “cor-
acolhedora. Ele demonstrou possuir mais um físico jovem, mas o único assinante tina de ferro”. A decisão de aceitar o
que esses dois atributos, tomando a do Manifesto que tinha trabalhado no convite para participar desta confe-
iniciativa de convocar colegas para Projeto Manhattan. Rotblat aceitou a rência não deve ter sido fácil para
apreciar a proposta30. Eles concordaram presidência do evento. Em depoimento muitos. Em plena “era MaCarthy”, a
que algo especial deveria ser tentado além recente, Rotblat registrou que esta sua aceitação poderia trazer péssimas con-
de simplesmente publicar que a declaração atuação lhe permitiu testemunhar a seqüências profissionais para cientis-
tinha assinaturas de eminentes cientistas imediata cobertura do Manifesto pela tas norte-americanos. Do lado sovié-
de várias ideologias. Foram eles que imprensa mundial. Reações contrárias tico, a “licença” foi dada a um grupo
sugeriram o encontro com a imprensa foram superadas em número pelas pequeno, do qual participavam dois
internacional para levar o Manifesto ao favoráveis ao espírito do Manifesto, a “tradutores” que anotavam todas as
grande público. Esses profissionais foram maioria solicitando mais informações discussões37.
mais além. Eles se organizaram para sobre as novas armas32. Em 2003, a 53a Conferência Pug-
conseguir recursos para o encontro com a wash ocorreu próximo ao povoado de
mídia, sob a condição de isso fosse A primeira Conferência Pugwash, na cidade de Halifax, Cana-
divulgado após o evento. Foi finalmente Pugwash dá. Ela foi bem maior do que a primeira,
decidido que a conferência com a imprensa Um aspecto que diferencia o Ma- com 172 participantes de 39 países. Os
seria no dia 9 de julho (de 1955). Uma nifesto da Declaração de Mainau é que dilemas fundamentais, infelizmente,
sala foi reservada no Caxton Hall uma o primeiro proponha uma ação espe- continuam os mesmos e bem mais
semana antes. Convites foram enviados cial: a de congregar cientistas dos dois complexos. A confrontação comunis-
para editores de todos jornais britânicos lados da “cortina de ferro”, em plena mo versus anticomunismo está sendo
e corresponsais de rádio e televisão Guerra Fria. É importante registrar que substituída pela disputa dos recursos

Física na Escola, v. 6, n. 1, 2005 Einstein e as Conferências Pugwash 21


naturais do planeta. O relacionamento financeiros sobre todos os demais. Seus enfermidades infecciosas, em um
entre as nações sofre as conseqüências efeitos se refletem até na capacidade da surpreendente regresso aos tempos das
do predomínio exarcebado de interesses espécie humana de se defender das grandes epidemias38.

Notas The Born-Einstein Letters: Correspondence in Otto Nathan and Heinz Norden, eds.,
between Albert Einstein and Max and Hedwig Einstein on Peace (Avenel Books, New
1
O autor agradece as informações detalhadas Born from 1916 to 1955 with commentaries York, 1981), p. 631.
fornecidas graciosamente por Sandra by Max Born, traduzido para o inglês por 24
Bertrand Russell, The Autobiography of
Ionno Butcher, responsável pelo projeto Irene Born (Walker and Company, New Bertrand Russell, 1944-1969, (Simon &
“História do Movimento Pugwash” da York, 1971), p. 229-230. Born não sabia Shuster, New York, 1969), p. 94.
organização Pugwash Conferences on Sci- que o comentário de Einstein não se referia 25
Albert Einstein para Niels Bohr, March 2,
ence and World Affairs. ao uso indevido da Ciência. Em carta de 1955. Referido em Nathan and Norton,
2
A bomba de hidrogênio, bomba H, difere fun- 17 de janeiro de 1955, Einstein informou p. 629-630.
damentalmente das duas bombas atô- a Born que aquele comentário se referia 26
Bertrand Russell, The Autobiography of
micas jogadas no Japão. Nessas últimas, às contingências do trabalho científico. Bertrand Russell: 1944-1969 (Simon and
a energia liberada é conseqüência da que- 10
Max Born para Albert Einstein, 28 de novem- Schuster, New York, 1969), p. 94.
bra (fissão) de núcleos atômicos pesados, bro de 1954. Mencionado em Max Born, 27
Nathan & Norton, roda-pé 8, p. 680.
enquanto que a liberação da energia de The Born-Einstein Letters: Correspondence 28
Otto Hahn, recebeu o Prêmio Nobel de Quí-
uma bomba de hidrogênio decorre da between Albert Einstein and Max and Hedwig mica, em 1944. Sua contribuição im-
fusão de núcleos atômicos leves. O poder Born from 1916 to 1955 with commentaries portante foi a descoberta da fissão dos
explosivo das bombas lançadas no Japão by Max Born, traduzido para o inglês por núcleos dos elementos Urânio e Tório,
é expresso em kilotons (equivalente a Irene Born (Walker and Company, New em 1939.
1000 toneladas do explosivo químico York, 1971), p. 234. 29
A Declaração de Mainau é referida no texto
TNT), enquanto que aquele das bombas 11
Maurice Goldsmith, Frédéric Joliot-Curie: A Bi- editado por Otto Nathan e Heinz Nor-
de hidrogênio é dado em megatons ography (Lawrence and Wishart, London, den, Einstein on Peace, (Avenel Books,
(1.000.000 toneladas de TNT). 1976), p. 189-190. New York, 1981) p. 681.
3
A carta de 15 de agosto de 1939 para o Presi- 12
Maurice Goldsmith, Frédéric Joliot-Curie: A Bi- 30
Num depoimento durante a conferência
dente Roosevelt dos Estados Unidos con- ography (Lawrence and Wishart, London, Pugwash de 2003, da qual participou o
tinha um memorandum do cientista Leo 1976), p. 193. autor desta contribuição, Joseph Rotblat
Szilard, onde pode ser lido o seguinte co- 13
Carta de Bertrand Russell para Max Born de observou que conheceu Kenneth Harris,
mentário: “... O poder de destruição dessas 25 de janeiro de 1955. Referida por Nicho- o editor do Observer que tanto ajudou a
bombas é apenas estimado grosseiramente, las Griffin, ed. The Selected Letters of Ber- Russell e que Harris escreveu uma pagina
mas não existe qualquer dúvida de que será trand Russell: The Public Years, 1914-1970 sobre sua atuação junto ao Projeto Man-
bem acima de qualquer projeção militar (Routledge, New York, 2001), p. 489. hattan, após o programa BBC Panorama
convencional”. Ver: Heisenberg and the Nazi 14
Bertrand Russell, mencionado por Maurice de abril de 1954. Esta matéria de Harris
Atomic Bomb Project, editado por Paul Goldsmith, Frédéric Joliot-Curie: A Biogra- foi uma contribuição importante para o
Lawrence Rose (University of California phy (Lawrence and Wishart, London, sucesso de Rotblat na sua iniciativa pos-
Press, Los Angeles, 1996), p. 81-105. 1976), p. 193-194. terior de dar continuidade à conferência
4
Bertrand Russell, The Bomb and Civilization. 15
John Cornwell, Hitler’s Scientists: Science, War proposta no Manifesto.
The Glasgow Forward 39 39:33 (1945). In: and the Devil’s Pact (Viking, New York, 31
Bertrand Russell, The Autobiography of
Bertrand Russell: His Works. Volume 22: 2003), p. 32-33, 57-58, 69. Bertrand Russell, 1944-1969 (Simon &
Civilization and the Bomb, 1944-47 (Ken- 16
Na sua fase inicial, o influente periódico Bulle- Schuster, New York, 1969), p. 96-97.
neth Blackwell, in progress). tin of the Atomic Scientists recebeu apoio 32
Joseph Rotblat, Science and World Affairs: His-
5
J. Rotblat, Science and World Affairs: Hystory financeiro deste comitê. tory of the Pugwash Conferences (Dawsons
of the Pugwash Conferences (Dawsons of 17
Otto Nathan and Heinz Norton, eds., Einstein of Pall Mall, London, 1962), p. 7.
Pall Mall, London, 1962), p. 72. on Peace (New York: Avenel Books, 1981), 33
Entre as principais propostas, são reconhe-
6
Joseph Rotblat conhecia o projeto da bomba p. 303. cidas as de Frédéric Joliot-Curie e Leo-
de hidrogênio, tendo participado de dis- 18
Otto Nathan e Heinz Norton, eds., Einstein on pold Infeld (em reunião da World
cussões, durante sua participação do Pro- Peace (Avenel Books, New York, 1981), p. Fedderation of Scientific Workers, (WFSW),
jeto Manhattan, em Los Alamos, com 376. de 1951, da Federation of American Scien-
membros da equipe de Edward Teller, 19
Bertrand Russell para Albert Einstein, Febru- tists (FAS) e da British Atomic Scientists
cientista que atuou decididamente para a ary 11, 1955. Mencionada in Otto Na- Association (ASA).
produção dessas bombas. Rotblat publi- than and Heinz Norden, eds., Einstein on 34
Eugene Rabinowitch, cientísta norte-ameri-
cou um artigo sobre sua hipótese de que Peace (Avenel Books, New York, 1981) cano pioneiro aas aplicações dos princí-
a bomba de hidrogênio tinha um estágio p. 623-625. pios da física em processos biológicos,
final do tipo “fissão” em 1955: The Hy- 20
Ronald W. Clark, Einstein: The Life and Times foi fundador e editor do Bulletin of the
drogen-Uranium Bomb, Bulletin of the (Avon Books, New York, 1984), p. 759. Atomic Scientists.
Atomic Scientists 11
11, 171-2, 177 (1955). 21
Albert Einstein para Bertrand Russell, Febru- 35
Professor Alexander Topchiev, foi presidente
7
Nicholas Griffin, ed., The Selected Letters of ary 16, 1955. Mencionada in Otto Na- da Academia de Ciências Soviética.
Bertrand Russell: The Public Years, 1914- than and Heinz Norden, eds., Einstein on 36
Cyrus Eaton, empresário bem sucedido nos
1970 (Routledge, New York, 2001), Peace (Avenel Books, New York, 1981), p. Estados Unidos, defendia o diálogo com
p. 489. 625-626. a União Soviética. No mesmo ano, Eaton
8
Carta de Bertrand Russell para Max Born de 22
Leopold Infeld, físico, escreveu textos sobre a foi reconhecido como Empresário do Ano
25 de janeiro de 1955. Referida por relatividade e de divulgação da ciência com nos Estados Unidos e agraciado com o
Nicholas Griffin, ed., The Selected Letters Einstein. Prêmio Lenin da Paz da União Soviética.
of Bertrand Russell: The Public Years, 1914- 23
“Thank you for your letter of April 5. I am gladly 37
Joseph Rotblat, Reunion in Pugwash.
1970 (Routledge, New York, 2001), p. willing to sign your excellent statement. I also Pugwash News Letter, 40 40:2 (2003).
489. agree with your choice of the prospective sig- 38
Antoine Dauchin, Infection of Society. Eu-
9
Max Born para Albert Einstein, 28 de novem- natories.” Albert Einstein para Bertrand ropean Molecular Biology Organization
bro de 1954. Mencionado em Max Born, Russell, February 16, 1955. Mencionada Reports 4: 333 (2003).

22 Einstein e as Conferências Pugwash Física na Escola, v. 6, n. 1, 2005


O
○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○
ano miraculoso de Albert que se referia ao calor e a variáveis
Silvio R.A. Salinas
Einstein é principalmente macroscópicas, “visíveis”, como a Intituto de Física, Universidade de São
lembrado pelas rupturas da temperatura ou a pressão de um gás. Paulo
teoria da relatividade e do “quantum As leis da termodinâmica, que impres- e-mail: ssalinas@if.usp.br
de luz”. No entanto, a tese de douto- sionaram Einstein pelo seu alcance e ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

ramento [1], [2], terminada em abril generalidade, foram resumidas numa


de 1905 e aceita pela Universidade de frase magistral de Clausius, citada ini-
Zurique em julho, e o primeiro artigo cialmente por Gibbs: “a energia do
sobre o movimento browniano, rece- universo é constante; a entropia do
bido para publicação nos Annalen der universo tende a um valor máximo”.
Physik em maio, são trabalhos de alta Lavoisier, que foi contemporâneo da
qualidade, que já teriam sido suficien- Revolução Francesa, ainda relacionava
tes para estabelecer a reputação do o calórico, fluido imponderável que
jovem Einstein [3]. O tema desses transita de corpos mais quentes para
trabalhos é o relacionamento entre o corpos mais frios, entre os seus “ele-
mundo microscópico das partículas mentos”. Mas no século XIX foi aos
(átomos, moléculas) em perene movi- poucos sendo abandonada a idéia do
mento e as leis visíveis do universo calórico; foi sendo percebido que o
macroscópico da calor é apenas uma
termodinâmica. Mesmo ignorando a ruptura forma de energia,
Tanto na tese quan- causada pela teoria da que temperatura e
to no artigo sobre o relatividade, apenas a tese calor são grandezas
movimento brow- de doutoramento, de abril distintas, que a
niano há propostas de 1905, e o artigo sobre o energia total (in-
para a estimativa do movimento browniano, de cluindo a energia
número de Avoga- maio do mesmo ano, são mecânica) é conser-
dro, grandeza para- trabalhos de tão alta vada em processos e
digmática do novo qualidade que já teriam sido sistemas fechados.
atomismo, eqüiva- suficientes para estabelecer A nova função en-
lente ao número de a reputação do jovem tropia, caracterís-
moléculas num mol Einstein tica singular da
de uma substância. termodinâmica, foi
Todos os trabalhos de 1905 compar- introduzida por Clausius a fim de
tilham muita engenhosidade e intui- compatibilizar a idéia de conservação
ção, ancoradas na realidade profunda da energia com a teoria de Carnot
dos sistemas físicos. sobre o rendimento das máquinas
As grandes vertentes da Física no térmicas [4]. Apresentamos os principais ingredientes da
final do século XIX eram a mecânica Uma das expressões típicas da ter- teoria de Einstein para o movimento brownia-
no: o balanço entre atrito viscoso e pressão os-
newtoniana, aplicada a pontos ma- modinâmica, de caráter experimental, mótica, que fornece o coeficiente de difusão das
teriais e meios contínuos, o eletro- fenomenológico, é a “lei dos gases partículas numa solução diluída; a dedução
magnetismo maxwelliano, que havia perfeitos”, estabelecendo que o produ- estatística da equação da difusão, que conduz
englobado a óptica, mas que ainda to da pressão pelo volume de um gás à expressão famosa para o desvio quadrático
médio das posições das partículas em suspen-
não tinha se libertado do universo pre- (suficientemente diluído) é função são, cabalmente verificada pelas experiências
enchido pelo éter, e a termodinâmica, apenas da temperatura (na linguagem de Perrin.

Física na Escola, v. 6, n. 1, 2005 23


Einstein, o Atomismo e o Movimento Browniano
moderna, pV = nRT, onde n é o nú- molecular do calor, baseada em enti- Já que as viscosidades podem ser me-
mero de moles, R é a constante uni- dades invisíveis, metafísicas, não de- didas, que a densidade de massa e a
versal dos gases e T a temperatura veria ter espaço na ciência. massa molar do soluto são conheci-
absoluta). Na segunda metade do sé- Einstein adotou desde cedo uma das, aparecem como incógnitas o raio
culo XIX, já era bem conhecido que visão realista, objetiva, sobre a exis- a das partículas do soluto e o núme-
essa expressão fenomenológica, inde- tência de átomos e moléculas. Na sua ro de Avogadro NA. Na parte final da
pendente de qualquer hipótese sobre tese de doutoramento Einstein analisa tese, Einstein recorre a um argumen-
a constituição da matéria, pode igual- o fenômeno de difusão das partículas to engenhoso, deduzido de forma
mente ser deduzida a partir do modelo do soluto numa solução diluída (mo- alternativa no artigo sobre o movi-
de um gás formado por partículas léculas de açúcar em água) com o mento browniano, a fim de obter uma
microscópicas, em perene movimen- objetivo de obter estimativas para o segunda relação entre a e NA. Vamos
to, obedecendo às leis da mecânica. A número de Avogadro e o diâmetro das discutir esse argumento de Einstein.
pressão do gás é causada pelo impacto partículas do soluto. As propriedades A idéia engenhosa consiste em
das partículas microscópicas nas pare- termodinâmicas das soluções diluídas considerar uma força K (na direção
des do recipiente. Maxwell foi mais já tinham sido suficientemente esta- do eixo x) atuando sobre as partículas
adiante, propondo que as velocidades belecidas. Sabia-se, por exemplo, que grandes da solução (as moléculas de
das moléculas do gás se distribuem a pressão osmótica, exercida pela solu- açúcar são muito maiores do que as
ao acaso, de acordo com a “lei dos er- ção sobre uma membrana semi-per- moléculas de água), contidas em um
ros” de Gauss e Laplace; nessa teoria meável, impedindo a passagem do volume elementar de comprimento ∆x
cinético-molecular dos gases, o calor soluto, comporta-se de acordo com a e seção transversal ∆S. Para esferas
seria a energia mecânica contida no lei dos gases perfeitos. Na parte inicial rígidas de raio a e velocidade v,
movimento desordenado das partícu- da tese, Einstein faz um cálculo hidro- mergulhadas num fluido com viscosi-
las microscópicas. Nas décadas finais dinâmico, com base nas equações de dade η, essa força deve ser dada pela
do século XIX, o programa de pesqui- Navier-Stokes para o escoamento de lei (de atrito viscoso) de Stokes,
sa de Ludwig Boltzmann em Viena, um fluido incompressível, a fim de K = 6π η a v, (5)
que Einstein estudou durante o seu obter a viscosidade efetiva do fluido de acordo com o texto de mecânica de
período de formação, consistia na na presença do soluto. No modelo Kirchhoff, que Einstein estudou du-
tentativa de obter a forma e o com- adotado, as moléculas do soluto são rante os seus anos de formação em
portamento da função entropia da esferas rígidas, não interagentes, e Zurique (e que é a única referência ci-
termodinâmica no contexto desse bem maiores do que as moléculas do tada no primeiro trabalho sobre a teo-
modelo de um gás de partículas, solvente. O resultado final, que ainda ria do movimento browniano!) Mas
obedecendo às leis da mecânica tem um errinho e precisou ser corri- as partículas se difundem pelo fluido
clássica, e analisado com métodos da gido alguns anos depois por um aluno devido ao gradiente de pressão. Então,
teoria das probabilidades. de Einstein, é dado por nesse volume elementar, estariam
No início do século XX, tanto o η* = η(1 + φ) (1) sujeitas a uma força por unidade de
programa de Boltzmann quanto os volume, ao longo do mesmo eixo x,
resultados da teoria cinética dos gases onde η* é a viscosidade efetiva, η é a
viscosidade do solvente puro, e φ é a dada por
eram vistos com suspeita, talvez
como simples artifícios matemáticos, fração do volume total ocupado pelas . (6)
distantes da realidade dos sistemas partículas do soluto. Supondo que o
soluto seja constituído por partículas Podemos agora escrever uma equa-
físicos. Apesar das propostas sobre a ção de balanço entre essas duas forças,
existência do átomo químico, apesar esféricas de raio a, a fração de volu-
me é dada por , (7)
das primeiras estimativas do número
de Avogadro e de dimensões molecu- , (2) onde ρ é a densidade de massa e m é a
lares, as suspeitas persistiam. Mesmo massa molar do soluto. Obtemos as-
se existissem, com os recursos da épo- onde Ns é o número de moléculas do
sim uma expressão para a velocidade
ca os átomos de fato não poderiam soluto e V é o volume total da solução.
v das partículas, que nos remete ao
ser observados! De acordo com os Utilizando a densidade de massa, ρ, e
fluxo ao longo do eixo x (quantidade
energeticistas, opositores da teoria a massa molar do soluto, m, que são
de massa das partículas atravessando
atômica, a termodinâmica macroscó- grandezas experimentalmente acessí-
a seção de área ∆S durante o intervalo
pica e fenomenológica, que prescindia veis, temos
de tempo ∆t),
de qualquer modelo microscópico de , (3)
constituição da matéria, seria o mo- . (8)
delo correto de ciência. Para esses ener- onde NA é o número de Avogadro. A Utilizando a forma (ideal) da pressão
geticistas (Wilhelm Ostwald e Ernst partir dessas expressões, podemos osmótica,
Mach, por exemplo, com enorme escrever a relação
, (9)
influência na física alemã; Pierre
. (4)
Duhem na França), a teoria cinético- que Einstein justificava através de

24 Einstein, o Atomismo e o Movimento Browniano Física na Escola, v. 6, n. 1, 2005


argumentos de física estatística para médio do desvio quadrático da energia apresenta uma dedução probabilística
um sistema de partículas não intera- depende do número de partículas mi- da equação da difusão e obtém uma
gentes, temos croscópicas; no caso de um fluido, o expressão para o “deslocamento carac-
, (10) desvio relativo torna-se absurdamente terístico” das partículas em suspensão.
pequeno, sem nenhuma chance de ser A equação da difusão, conhecida
de onde vem observado. No movimento browniano, desde o início do século XIX, é usual-
, (11) no entanto, Einstein vislumbrava uma mente obtida a partir da equação de
oportunidade de observar flutuações continuidade, ou equação diferencial
que é uma das expressões conhecidas dessa mesma natureza. Nesse fenôme- para a conservação da massa, dada por
de Einstein, relacionando o coeficiente no, partículas macroscopicamente pe-
de difusão D, experimentalmente quenas em suspensão, mas muito , (12)
acessível, com a temperatura e a vis- maiores que as moléculas do fluido pu- com a suposição adicional de que o flu-
cosidade do fluido. Temos então duas ro, estão descrevendo um movimento xo seja linearmente dependente do
relações independentes para a deter- incessante, errático, de vai-e-vem, que gradiente da densidade, isto é, que
minação do raio a das moléculas e do podia ser observado (e poderia ser me-
, onde D é o coeficiente de di-
número de Avogadro NA. dido) nos ultramicroscópios da época.
fusão. Temos assim a equação da difu-
A partir das expressões (4) e (11), Esse comportamento foi caracterizado
são,
com os dados disponíveis na época pa- pelo botânico escocês Robert Brown, na
ra soluções de açúcar em água, Eins- primeira metade do século XIX, que , (13)
tein obteve NA = 2,1 x 1023 (partículas observou o movimento incessante de
por mol) e a = 9,9 x 10-8 cm, con- partículas de pólen dissolvidas em cuja versão unidimensional, ao longo
cluindo que “o valor encontrado para água. O mesmo tipo de movimento do eixo x, é dada por
NA apresenta uma concordância satis- também foi observado em partículas
. (14)
fatória, em ordem de magnitude, com inorgânicas de cinza, convencendo
os valores encontrados para essa Brown sobre a natureza física do fenô- A dedução probabilística de Eins-
grandeza por outros métodos”. Mais meno. Ao contrário das flutuações invi- tein parte da idéia de que as partículas
tarde, com dados experimentais um síveis das moléculas de um gás, no estejam executando movimentos inde-
pouco melhores, o valor do número de movimento browniano tornam-se vi- pendentes, e de que os movimentos da
Avogadro foi modificado para NA = 3,3 síveis no microscópio as flutuações das mesma partícula em diferentes inter-
x 1023. Na época, diversos trabalhos partículas bem maiores em suspensão, valos de tempo também sejam proces-
dessa mesma natureza, produzindo incessantemente bombardeadas pelas sos mutuamente independentes (em
estimativas para o número de Avoga- partículas microscopicamente menores intervalos de tempo pequenos, mas
dro e as dimensões moleculares, foram do solvente fluido. suficientemente grandes para dar mar-
aos poucos impondo a realidade de Na introdução do seu artigo de gem a observações). Vamos supor que
átomos e moléculas. Graças à concor- 1905, Einstein escreve que “corpos de uma partícula em suspensão tenha
dância dos valores obtidos com base em tamanho visível ao microscópio, e que uma certa probabilidade de realizar um
técnicas e idéias distintas, as resistências estão em suspensão em um líquido, deslocamento ∆, que pode ser positivo
ao atomismo foram sendo vencidas [3]. devem executar, como consequência ou negativo, para a direita ou para a
O trabalho sobre as leis que go- dos movimentos térmicos moleculares, esquerda, durante um intervalo de
vernam o movimento browniano e a movimentos de tal magnitude que tempo τ. De forma um pouco mais
sua brilhante confirmação experimen- podem ser facilmente observáveis com precisa, seja p(∆)d∆ a probabilidade da
tal por Perrin e colaboradores alguns a utilização de um microscópio”. Nesse partícula se deslocar entre ∆ e ∆ + d∆
anos depois foram decisivos para a primeiro artigo, Einstein dispõe de no intervalo de tempo τ. A densidade
aceitação da realidade de átomos e mo- poucos dados experimentais e ainda de probabilidade deve ser simétrica,
léculas [5]. Em dois artigos anteriores tem dúvidas, que seriam depois supe- p(∆) = p(-∆), (15)
a 1905, Einstein já tinha utilizado a radas, sobre a real aplicação da sua
e normalizada,
definição estatística de entropia, que ele teoria ao “movimento molecular brow-
chamava “princípio de Boltzmann”, niano” [1]. Os argumentos de Einstein . (16)
para estudar as flutuações de energia baseiam-se na semelhança entre o
de um sistema em contato térmico com comportamento de soluções e de Então, por “puro bom senso”, se
outro sistema muito maior (com um suspensões diluídas. Os cálculos da tese, n = n(x, t) for o número de partículas
reservatório térmico, na linguagem para uma solução (diluída) de açúcar por unidade de volume no instante de
moderna). A energia do sistema de in- em água, são transpostos para as tempo t, devemos ter a relação proba-
teresse flutua em torno de um valor partículas brownianas em suspensão bilística
médio, que pode ser identificado com a (em particular, a relação entre o coefi-
. (17)
energia interna termodinâmica. Sem ciente de difusão e a viscosidade). Além
conhecimento de trabalhos anteriores disso, antecipando-se às teorias moder- Como τ e ∆ são macroscopicamente
de Gibbs, Einstein mostrou que o valor nas de cadeias markovianas, Einstein pequenos, podemos escrever as

Física na Escola, v. 6, n. 1, 2005 Einstein, o Atomismo e o Movimento Browniano 25


expansões a esquerda”. Para partículas de um chowski. A moderna equação diferen-
(18) mícron de diâmetro, em suspensão na cial estocástica associada à “dinâmica
água a temperatura ambiente, Einstein de Langevin” tem sido fartamente uti-
e estimou um deslocamento caracterís- lizada a fim de introduzir um com-
tico da ordem de 6 mícrons em um mi- portamento dinâmico no contexto de
(19) nuto (ou seja, valores perfeitamente sistemas estatísticos clássicos [7],[8].
passíveis de observação). Há um número crescente de aplicações
Há uma conexão direta entre esse contemporâneas, em vários problemas
Vamos agora inserir essas expansões raciocínio probabilístico de Einstein e o em que as flutuações desempenham
na Eq. (17). Levando em conta as problema do passeio aleatório em uma papel relevante. Um mecanismo de
propriedades de p(∆), e retendo ape- dimensão, usualmente explorado nos Langevin, na presença de potencial ade-
nas termos de ordem dominante, textos modernos de física estatística quado, foi proposto para explicar o
obtemos a equação da difusão, [7],[8]. Vamos considerar um cami- funcionamento dos motores molecu-
, (20) nhante que se desloca ao longo do eixo lares, reponsáveis pelo metabolismo
x, em intervalos de tempo iguais, dando biológico. Torna-se irônico que durante
com o coeficiente de difusão dado por passos de comprimento aleatório. O j- boa parte do século XX a interpretação
(21) ésimo passo tem comprimento ∆j, estatística da física clássica, cabalmen-
. ocorrendo com probabilidade p(∆j)d∆j, te confirmada pela teoria do movimen-
Então, em que a distribuição p(∆j) é simétrica to browniano, tenha ficado em se-
e normalizada (Eqs. 15 e 16). No gundo plano frente ao sucesso da físi-
, (22) instante de tempo t = Nτ (isto é, depois ca estatística quântica. Nesse início de
de N passos), o caminhante deve estar século, no entanto, as aplicações e a
mostrando que o desvio quadrático
na posição . Como os passos ubiqüidade das flutuações estatísticas
médio do deslocamento é proporcional
são independentes e <∆j> = 0, o valor e dos seus efeitos, particularmente em
ao coeficiente de difusão.
médio do deslocamento é nulo, problemas de biologia ou da “física da
Nesse ponto Einstein argumenta
<x> = 0, mas o valor quadrático matéria mole”, incluindo colóides,
que os movimentos das diversas par-
médio é proporcional ao número de suspensões, misturas liotrópicas,
tículas são independentes e que, por-
passos, <x2> = N<∆2> = (t/τ) <∆2>. polímeros, espumas, materias granula-
tanto, a origem das coordenadas não
Utilizando a expressão <∆2> = 2Dτ, res, estão dando vida nova às aplicações
deve ter nenhum significado. Então, a
dada por (22), recuperamos o resultado da teoria do movimento browniano.
função n(x, t), devidamente normali-
zada, famoso de Einstein, <x2> = 2Dt.
Foi muito importante que Einstein
, (23) indicasse claramente a grandeza que de- Referências
veria ser medida nas investigações sobre [1] J. Stachel, O Ano Miraculoso de Albert
representa a densidade de partículas
o movimento browniano (isto é, Einstein: Cinco Artigos que Mudaram a
cujas posições sofreram um acréscimo Face da Física (Editora UFRJ, Rio de Ja-
distâncias ao invés de velocidades). As
x entre o instante inicial e o instante neiro, 2001), tradução de A.C. Tort.
experiências de Perrin e colaboradores Este livro contém os quatro artigos
de tempo t. Einstein também aponta
[5] consistiram em registrar a observa- originais de 1905 e a tese de Einstein.
que a solução da equação da difusão
ção, no microscópio, do movimento de [2] A. Einstein, Investigations on the Theory
(20) é dada pela forma gaussiana of the Brownian Movement (Dover Pub-
um conjunto grande de partículas em
lications, New York, 1956), texto edi-
suspensão, cuja forma esférica podia ser tado, com notas, por R. Fürth.
. (24)
muito bem controlada. Nas suspensões [3] A. Pais, Sutil é o Senhor ... A ciência e a
Então, com essa interpretação de n(x, utilizadas, essas experiências verificaram vida de Albert Einstein (Editora Nova
o comportamento ideal da pressão Fronteira, Rio de Janeiro, 1995). Exce-
t), obtemos o deslocamento quadrá- lente biografia científica de Einstein.
tico médio, osmótica e a lei de força de Stokes, [4] L. Tisza, Generalized Thermodynamics
ingredientes importantes da teoria de (The MIT Press, Boston, 1966),ver
(25) Einstein. Além disso, produziram nova especialmente os capítulos 1 e 2.
, estimativa para o número de Avogadro. [5] J. Perrin, Les Atomes (Flammarion, Paris,
1991), publicado a partir do texto ori-
O sucesso dos trabalhos de Perin foi ginal de 1913, com uma introdução
que é uma das mais celebradas expres- notável. Os valores obtidos e a concor- de Pierre-Gilles de Gennes.
sões de Einstein, fornecendo indicação dância com a teoria de Einstein represen- [6] P. Langevin, Sur la théorie du mou-
precisa sobre as grandezas a serem me- taram contribuição significativa para a vement brownian. Comptes Rendues
Acad. Sci. 146
146, 530 (1908).
didas experimentalmente. O desloca- aceitação geral do atomismo. [7] S.R.A. Salinas, Introdução à Física Esta-
mento característico, dado por , Uma equação diferencial para o tística (EDUSP, São Paulo, 1997), ver
cresce com , afastando-se das formas movimento browniano foi escrita por o capítulo 16.
Langevin [6] em 1908, recuperando a [8] T. Tomé e M.J. de Oliveira, Dinâmica
balísticas usuais, pois os deslocamentos
Estocástica e Irreversibilidade (EDUSP,
individuais são aleatórios, “podendo relação de Einstein e fazendo contacto São Paulo, 2001).
ocorrer tanto para a direita quanto para com trabalhos paralelos de Smolu-

26 Einstein, o Atomismo e o Movimento Browniano Física na Escola, v. 6, n. 1, 2005


N
○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○
otícia recente de jornal diário Bonetti [2]. Pela janela chega o ruído Luis Carlos de Menezes
[1] relatou novas descobertas de um automóvel sendo estacionado Instituto de Física da Universidade de
envolvendo os dicinodontes, junto ao prédio, próximo do meu, que São Paulo
répteis herbívoros de porte médio pre- tem tido problemas para “pegar” pela e-mail: menezes@if.usp.br
○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○
cursores dos mamíferos. Alguns des- manhã. Fico, por enquanto, com esta
ses achados são fósseis de duzentos e dezena de equipamentos e faço, a
tantos milhões de anos, encontrados seguir, seu “desmonte conceitual”.
no sul do Brasil, que não são ossadas As lâmpadas fluorescentes, cilin-
inteiras do animal, nem sequer de um dros de vidro com pares de terminais
par de ossos, mas sim coprólitos, ou elétricos em seus extremos, estão liga-
seja, fezes petrificadas desses bichos das a transformadores, ou seja, dife-
ancestrais. Uma foto em tamanho rentes bobinas de fio de cobre enrola-
grande, que ilustrava a reportagem, das em torno de um mesmo núcleo
mostrava um excremento que foi de ferro, que fornecem inicialmente
pisado pelo animal, ou seja, para ale- uma tensão alta para ionizar o gás
gria dos pesquisadores as fezes esta- do interior, e depois uma tensão mais
vam marcadas com as pegadas do baixa, para acelerar elétrons e íons ao
sáurio. É dura a vida dos arqueólogos: longo do cilindro. A colisão entre estes
têm de se contentar com cada coisa... produz radiação ultravioleta, não
Por outro lado, é bem mais con- visível, que ao atingir sais fluorescen-
fortável ensinar Física do que investi- tes que recobrem o vidro produzem
gar fósseis, principalmente quando se uma cascata de radiação de diferentes
faz uso do privilégio de se lidar com freqüências cuja somatória resulta na
uma ciência vivamente presente em cor branca dessas lâmpadas, chamada
nosso cotidiano e com ramificações e luz fria por conter bem menos infra- Um coprólito do período Jurássico, com
interfaces em todas as áreas do conhe- vermelho que a emitida pelos filamen- cerca de 150 milhões de anos.
cimento. Fecho a página do jornal com tos das lâmpadas incandescentes.
a “pisada” do sáurio e me imponho o Tanto o ventilador quanto o relógio
desafio de, sem me levantar da cadeira são sistemas motores, ou seja, pro-
em que estou sentado, mostrar a Físi- duzem um movimento mecânico a
ca de corpo inteiro, e viva. Começo a
investigação, observando sobre minha
mesa de trabalho, iluminada por lâm-
padas fluorescentes, um velho ventila-
dor, um pequeno relógio e um telefone
celular ligado a seu carregador. À mi-
nha frente, o monitor de um computa-
dor pessoal mostra as palavras que
digito, enquanto ouço uma seleção de A Física está presente a cada momento, do nosso
velhos chorinhos, de um CD reprodu- dia-a-dia; basta saber enxergá-la nos mais banais
zido com auxílio da mesma unidade acontecimentos e situações. Desempenhando tal
habilidade, o professor certamente poderá passar
de processamento que registra este tex-
aos alunos a percepção não limita-se a apenas
to que estou digitando, como mostra um amontoado de equações que devem ser
a foto feita por meu amigo Marcelo decoradas.

Física na Escola, v. 6, n. 1, 2005 De Corpo Inteiro e Viva, a Física 27


partir de correntes elétricas. Um mo- telefones esses conversores
tor de indução faz operar o ventilador, eram sempre eletromag-
ou seja, a corrente de um circuito pri- netos; hoje há muitas va-
mário induz corrente em um outro, riações.
preso ao eixo onde estão fixas as pás, Um monitor do compu-
que gira devido ao torque magnético tador tem alguns aspectos
entre ambos. No relógio, o ponteiro em comum com uma
dos segundos é acionado por um pe- lâmpada fluorescente, co-
queno ímã permanente, que gira à mo ser cruzado por elé-
passagem de um pulso elétrico, em trons e ter um vidro
intervalos múltiplos do período de coberto por substâncias
oscilação de um cristal de quartzo, opticamente ativas que
que faz o papel do pêndulo dos antigos recobrem a tela. No entan- Os semicondutores são empregados nos equipamentos
relógios de mesa. to, no monitor, cada subs- do nosso cotidiano: computadores, rádios, celulares, tele-
O carregador é um transformador tância atingida pelo feixe visões etc.
semelhante ao das lâmpadas, mas de elétrons é responsável
acoplado a um retificador, que é essen- por uma das três cores fundamentais: texto que está sendo escrito, repro-
cialmente um diodo semicondutor, azul, verde e vermelho; os três feixes duzir a música gravada no CD ou rece-
compondo assim um dispositivo que de elétrons, cada qual com sua inten- ber mensagens multimídia que che-
toma corrente alternada a uma certa sidade variável, percorrem a tela re- gam a todo instante pela Internet, que
tensão e fornece corrente contínua a produzindo as proporções das cores conecta este computador a centenas
outra tensão, para recarregar energia na imagem que vemos. Os elétrons de milhões de outros em todo o mun-
na bateria do celular. Esse telefone é, dos feixes são acelerados no “pescoço” do. Na realidade, com a miniaturi-
na realidade, uma emissora de rádio do tubo e em seguida direcionados por zação que hoje é possível, até mesmo
portátil, ou seja, um circuito oscilante eletromagnetos. A produção da ima- muitos telefones celulares podem
composto de um capacitor e de uma gem se dá como em tubos de TV, com desempenhar estas funções de registro
bobina, que oscila em uma radiofre- o padrão de varredura da tela pelos e transmissão de informações escritas
qüência portadora, que é estabelecida feixes, estabelecido em convenção e audiovisuais.
pela operadora de telefonia móvel, que internacional. É mais fácil compreender, primei-
espalha em nossas cidades antenas das Os CDs e DVDs são registros de in- ro, como são feitos os registros, de nú-
estações repetidoras de sinal, três delas formações de som, de texto ou de ima- meros, letras, sons ou imagens. Eles
visíveis no meu trajeto diário de casa gem, na forma de dígitos (cifras) que são convertidos em dígitos e traduzi-
para a universidade. Além dos circui- são lidos por um equipamento perifé- dos ao sistema binário, ou seja, a uma
tos oscilantes, os telefones celulares rico do computador, e em seguida seqüência de zeros e uns. Um arranjo
também são dotados de dois conver- processados para resultar em textos, de células semicondutoras microscó-
sores eletromecânicos: o microfone, que sons e imagens. Uma música, por picas, que quando carregadas expres-
transforma a vibração sonora em um exemplo, é uma seqüência de freqüên- sam o um e quando descarregadas
sinal elétrico com freqüência de áudio, cias de várias intensidades, que podem expressam o zero, permite guardar
que modulará a portadora na emis- ser representadas por cifras, de acordo um número descomunal de informa-
são, e o falante, que transforma em com um código convencionado. Os ções em um único pequeno cristal. Já
som a freqüência de áudio filtrada da discos têm uma trilha espelhada, com o processamento dessas informações
portadora na recepção. Nos velhos profundidade variável, na qual um é realizado por meio de interligações
feixe de luz laser é refletido para recu- entre essas células, condicionadas por
perar os valores registrados em cada ordens eletrônicas que definirão se os
ponto da trilha, para depois serem registros serão mantidos ou não, e de
convertidos em sinal elétrico, que que forma serão modificados, ou seja,
informará ao processador os dados quais células manterão suas cargas,
codificados do texto, som ou imagem. quais serão carregadas e quais descar-
É essencial que se utilize laser, ou seja, regadas.
luz colimada, monocromática e em Um único monocristal semicon-
fase, caso contrário a falta de coerên- dutor, “dopado” com substâncias que
cia impediria a leitura desses dados. mudam localmente as propriedades
Um pouco mais complexa é a des- elétricas, possui uma notável arquite-
crição física, mesmo em termos tura de muitos pavimentos ou cama-
Ondas eletromagnéticas provenientes de gerais, dos componentes que permi- das, de forma a conseguir abrigar
celulares e outros equipamentos preen- tem a operação da unidade central de centenas de milhares de componentes,
chem constantemente todo o espaço à processamento do computador capaz como relês, capacitores, diodos e tran-
nossa volta. de, ao mesmo tempo, registrar este sistores interligados. Designados

28 De Corpo Inteiro e Viva, a Física Física na Escola, v. 6, n. 1, 2005


genericamente como chips, estes respectivamente compreendidos a meses por uma ressonância nuclear
cristais servem a uma grande varie- partir da estatística quântica de elé- magnética, que mapeia o magnetismo
dade de equipamentos, de relógios de trons, que são férmions que “se ex- dos núcleos integrantes das moléculas
pulso a máquinas de lavar roupas, de cluem”, e pela estatística quântica dos de água na parte do organismo sendo
computadores a sistemas de monito- fótons, que são bósons que “se ajun- investigada.
ramento por satélite. Esta base física tam”. Enfim, não precisei levantar de Não consegui terminar este artigo
dos chips é o chamado hardware da minha cadeira para identificar toda naquela mesma semana, como pre-
informática, enquanto os procedi- uma variedade de conceitos físicos, es- tendia, por conta de sucessivas via-
mentos e as linguagens com que se senciais para a construção e para a gens para participar de palestras,
definem funções, tarefas e objetivos compreensão de equipamentos e primeiro no Sul e em seguida no Norte
dos sistemas é dito software da infor- sistemas de sentido prático. do Brasil, especialmente por conta de
mática. Investigo mais uma vez a sala, ser este o Ano Mundial da Física, que
Aproxima-se a hora do intervalo para conferir de que outras formas a festeja o centenário do ano maravi-
para o almoço, e vou aproveitar para Física se apresenta à minha volta, e lhoso de 1905, em que Einstein inter-
levar meu carro para uma oficina de me ocorre algo que a princípio pare- pretou o caráter quântico do efeito
conserto. Acredito que o problema cerá ter caráter meramente geométri- foto-elétrico, apontou a origem atô-
não esteja na bateria, nem no motor co, que é a multiplicidade de retângu- mica do movimento browniano e alte-
de partida, pois este funciona quando los em minha sala; são retangulares rou as bases da mecânica newtonia-
aciono a chave de contato. Portanto, as paredes, as janelas, as portas, as na para compatibilizar as leis da
suponho que o problema esteja na estantes, as estruturas das mesas, os mecânica com processos “da eletrodi-
injeção de combustível ou na carbu- quadros de avisos, até mesmo as mol- nâmica dos corpos em movimento”,
ração. Também os automóveis foram duras dos retratos de Galileu Galilei e que é como se chamava seu famoso
muito alterados pela tecnologia dos de Mário Schenberg. Esses retângulos artigo em que lançou as bases da rela-
semicondutores, especialmente em não são mera opção estética, mas sim tividade especial.
sua injeção eletrônica e sistemas de uma sucessão de linhas de prumo e Por falar em Einstein, o mesmo
controle. Eles continuam sendo linhas de nível, orientadas pela gravi- jornal da matéria sobre os coprólitos
movidos pela mesma máquina térmi- tação local. A porta da estante fora trouxe ontem um caderno especial so-
ca, o já secular ciclo Otto, em que a de prumo, que não pára fechada, re- bre cogitações fantásticas que, se não
mistura de ar e combustível é aspira- vela a ação do torque gravitacional e, forem reais, pelo menos são um prato
da, comprimida e detonada, de forma com isto, já “decifra” a razão de tantos cheio para a ficção científica [3]. Em
que os gases de combustão se expan- retângulos. Também é o campo gravi- síntese, afirma que não precisamos
dam realizando trabalho e depois tacional o responsável pela verticali- perder as esperanças na eternidade, no
sejam expelidos. Isso é mais ou menos dade dos postes e das árvores que vejo caso de eventual morte térmica desse
assim há um século, mas, diante de pela janela, assim como a disputa en- nosso universo, que dá evidências de
problema semelhante ao de hoje, há tre o empuxo nas correntes de ar as- estar se expandindo aceleradamente
alguns anos, eu abriria a tampa do cendentes e o peso das nuvens negras, por alguma razão pouco compreen-
distribuidor para verificar eventual que ameaçam desabar em uma tardia dida, e por isso chamada de energia
platinado sujo que pudesse estar inter- tempestade de abril. escura. Daqui a vários bilhões de anos,
rompendo o pulso elétrico que produz Toca meu celular; o mecânico me quando o esfriamento universal tor-
a faísca para a explosão da mistura informa que já reparou a bomba de ga- nar inviável a vida de uma civilização
combustível, mas hoje um chip con- solina do carro, e o chamado me traz à avançada – que, aliás, já terá escapado
trola a emissão de corrente para as consciência de quanto minha sala é da incandescência o sistema solar,
velas de ignição. invadida por ondas e campos eletro- quando nossa estrela tiver inchado em
Voltei da oficina mecânica com a magnéticos, bem mais diversificados e uma gigante vermelha – ela
confirmação de que o problema estava dinâmicos que o constante e uniforme
no sistema de injeção e, antes de reto- campo gravitacional junto à superfície
mar a escrita deste artigo, reli as pági- terrestre, que tem a ver com aqueles
nas anteriores, para ver se mostra- retângulos... Penso então nos muitos
vam, como eu pretendia, a difusa usos de todo o tipo de radiação a que
presença da Física em nossa vida tenho sido exposto, voluntariamente
diária. De fato, passamos por muitos ou não: pergunto-me se o concreto da
processos eletromagnéticos, ópticos e laje, sob o piso da sala, de fato me pro-
termodinâmicos, com aspectos nem tege dos raios X do laboratório de cris-
sempre explicitados, como a dinâmica talografia que funciona no piso infe-
dos elétrons no interior do tubo de rior, e apalpo meu joelho direito, ainda
imagem do monitor, ou como o cará- convalescente após uma artroscopia O raio laser possui uma enorme gama de
ter quântico das operações dos semi- monitorada por computador, de uma aplicações, como leitores de CDs e DVDs,
condutores e lasers, que podem ser lesão de menisco diagnosticada há dois comunicações e medicina.

Física na Escola, v. 6, n. 1, 2005 De Corpo Inteiro e Viva, a Física 29


Pouco depois, George Lemaitre, um a vida ter cerca de quatro bilhões de
abade matemático, “tirou” daquelas anos não são fatos independentes, pois
equações um universo em contínua se ele fosse infinitamente velho a vida
expansão e o astrônomo Edwin Hub- deveria estar presente em todos os
ble verificou que, de fato, galáxias graus de desenvolvimento, e isto tam-
distantes estão se afastando rapida- bém depende do conhecido ciclo de evo-
mente. Duas décadas depois, George lução e morte das estrelas, que sinteti-
Gamov mostrou que, há bilhões de zam os elementos para a vida.
anos, o universo era uma bola radian- Pois bem, não é só o universo que
te e, vinte anos adiante, esta “radiação tem um tempo finito, e eu também não
de fundo” foi detectada e o modelo do posso adiar indefinidamente a entrega
big bang se tornou a hipótese mais deste artigo ao Nelson Studart, editor
aceita para a evolução do cosmo (aliás, desta Revista. Já visitamos desde
dentre as impor- equipamentos de uso
tantes contribui- Diferentes pesquisadores diário até viagens ao
ções de Gamov, à professam diferentes início dos tempos,
astrofísica, há tam- convicções sobre as origens e com a Física viva e de
bém trabalhos fei- destinos deste mundo e até corpo inteiro, ao nos-
tos junto com o de outros, mas é inegável so lado. Começamos,
brasileiro Mário que hoje não é mais possível aliás, falando dos
Einstein e Lemaitre. O primeiro acabou filosofar sobre a vida e o
Schemberg). Como pobres arqueólogos,
por perceber a importância da proposta
as contas não da- universo sem levar em conta que festejam a desco-
do abade, mesmo que inicialmente a tenha
vam certo para o suas cogitações berta de excrementos
recebido com ceticismo.
“início dos tem- pisados há muitos
simplesmente escapará, ou enviará pos”, Allan Guth propôs que nosso milhões de anos, e poderíamos acres-
sementes suas, para outros universos universo surgiu da “inflação” de um centar uma pergunta: como poderiam
paralelos, através de “buracos de dos grãos de uma entidade múltipla aqueles especialistas determinar idades
minhoca”, portais às vezes denomi- primitiva, da qual outros grãos de centenas de milhões de anos se não
nados de “pontes Einstein-Rosen”. teriam evoluído em universos inde- pudessem contar com métodos de
Faltaria aqui espaço e conheci- pendentes deste “nosso”. Por fim, nes- datação baseados na determinação de
mento de cosmologia para desenvol- se cenário de rica imaginação, pode- proporções isotópicas de elementos ra-
ver mais essas hipóteses fabulosas, ríamos quem sabe ir pulando de um diativos, desenvolvidos pela física
mas posso lembrar de onde surgiu a universo para outro, para garantir a nuclear?
idéia de um universo em expansão e vida eterna, amém. Claro que não nos causam pena,
de universos paralelos. Uma década e Diferentes pesquisadores profes- mas sim admiração, os notáveis ar-
meia após aquele ano maravilhoso, foi sam diferentes convicções sobre as ori- queólogos que fazem descobertas for-
o próprio Einstein quem deu margem gens e destinos deste mundo e até de midáveis com tão poucas evidências; o
à formulação de equações do univer- outros, mas é inegável que hoje não é que dá pena são alguns professores de
so, com sua relatividade geral onde a mais possível filosofar sobre a vida e o Física que, ignorando a ampla presen-
matéria dá forma ao espaço-tempo. universo sem levar em conta suas ça desta ciência em nosso mundo e em
cogitações. Portanto, a Física nossa compreensão do mundo, con-
não está somente presente tinuam ensinando uma “língua mor-
nas tecnologias de nosso ta”, da qual só interessa sua gramática
cotidiano ou nas fronteiras expressa em uma dúzia de equações,
da terceira revolução indus- já que ninguém fala mesmo...
trial e, portanto, na econo-
mia; ela é hoje essencial
Notas
também para todo o pensa-
mento humano. Por falar [1] Folha de São Paulo, página de Ciência,
13 de abril de 2005.
nisso, na página seguinte à [2] Marcelo de Carvalho Bonetti, físico e
da matéria sobre a “fuga do educador, além da foto fez vários co-
universo”, há uma outra mentários, que já foram incorporados
tratando da relação entre a a este texto.
[3] Folha de São Paulo, “Caderno Mais!”, 1.o
finitude do universo, no de maio de 2005, com o tema de capa
tempo e no espaço e a origem “Fuga do Universo”.
Concepção artística de uma ponte Einstein-Rosen. Esses da vida [4]. Mostra-se que o [4] No mesmo caderno, jornal e data citados
a matéria de Marcelo Gleiser se intitula
“buracos de minhoca” em princípio poderiam ligar dois universo ter “somente” cerca
“O cosmo e a vida”.
pontos do nosso universo ou nosso universo a outro. de catorze bilhões de anos e

30 De Corpo Inteiro e Viva, a Física Física na Escola, v. 6, n. 1, 2005


N
○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○
esse ano de 2005, decretado tuam o firmamento. Ao observar
Rogério Rosenfeld
o Ano Mundial da Física, mais atentamente, percebemos uma Instituto de Física Teórica, UNESP
celebramos o centenário do faixa leitosa que atravessa o céu. Essa e-mail: rosenfel@ift.unesp.br
ano miraculoso de 1905, quando um faixa nada mais é que a nossa galáxia, ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

então desconhecido físico de apenas a Via Láctea. Ela tem uma forma
26 anos chamado Albert Einstein pu- achatada como uma “panqueca”, com
blicou seus trabalhos que tiveram um as estrelas distribuídas em braços es-
profundo impacto no futuro desen- pirais (ver Box 1). Ela contém dezenas
volvimento da Física. Em seu annus de bilhões de estrelas, nosso Sol sendo
mirabilis, Einstein mostrou que mas- apenas uma delas, localizado em um
sa é equivalente a energia, luz é feita dos braços a uma distância do centro
de partículas e mo- da galáxia corres-
Cosmologia é a Ciência que
léculas são uma pondente a aproxi-
estuda a estrutura, evolução e
realidade. Sua car- madamente 2/3 do
composição do universo.
reira decolou a par- seu raio. Quando
Ciência é o método científico
tir daí, culminando olhamos perpendi-
para criar e testar modelos;
com o desenvolvi- cularmente ao plano
estrutura é o problema da
mento de sua teoria de nossa galáxia,
forma e da organização da
da gravitação, de- para cima ou para
matéria no universo;
nominada relativi- baixo da panqueca,
evolução são as diferentes
dade geral, onde o não vemos tantas
fases pelas quais o universo
espaço é encurvado estrelas. A faixa lei-
passou; composição é
pela presença de tosa no nosso céu
daquilo que é feito o universo
matéria e as partí- nada mais é que a
culas seguem trajetórias nesse espaço projeção de um grande número de
curvo. Essa teoria foi confirmada no estrelas na direção do plano galático.
eclipse solar de 1919, com a análise Tal concentração de estrelas não per-
de fotografias tomadas por 2 expedi- mite a identificação individual delas,
ções britânicas, uma delas a Sobral, resultando na aparência leitosa que dá
no Ceará. Tornou-se uma figura tão origem ao nome de nossa galáxia, que
influente que foi eleito a personalidade é apenas uma entre as bilhões de
do século XX pela revista Time. A galáxias que existem no nosso uni-
teoria da relatividade geral é a base de verso. Mas, afinal, o que vem a ser
Várias questões sobre nosso Universo têm ins-
um modelo para descrever o universo cosmologia? tigado a mente de muitas pessoas por muito
como um todo, denominado Modelo Cosmologia é a Ciência que estuda tempo. Do que é feito o Universo? Ele é finito
Cosmológico Padrão, que será o tema a estrutura, evolução e composição do ou infinito? Ele terá um fim? Ele teve um início?
central desse artigo. universo. Por Ciência, nos referimos ao Estamos vivendo uma época excitante com
novos dados observacionais revelando surpre-
uso do método científico para criar e
O que é cosmologia? testar modelos; por estrutura, entenda-
sas sobre o nosso Universo, onde essas questões
estão começando a ser respondidas. Apesar dos
Ao olhar o céu em uma noite sem se o problema da forma e da organiza- grande avanços recentes, não sabemos do que
nuvens e longe das luzes da cidade, é ção da matéria no universo; por evolu- é feito 95% do Universo. Novos instrumentos
no céu e na Terra devem ajudar os cientistas a
inevitável a sensação de vastidão do ção, as diferentes fases pelas quais o responder essas questões fundamentais. Nesse
cosmos. Inúmeras luzinhas, que hoje universo passou; por composição, que- artigo faremos uma breve introdução à Cos-
sabemos ser estrelas distantes, pon- remos saber do que é feito o universo. mologia, a Ciência que estuda o Universo.

Física na Escola, v. 6, n. 1, 2005 A Cosmologia 31


o seu passado. Por exemplo, a luz
Box 1: Nossa galáxia, a Via-Láctea que observamos hoje de Andrômeda
e que imprime sua imagem em uma
chapa fotográfica levou 2 milhões
de anos para chegar até nós e, por-
tanto, mostra como era essa galáxia
há 2 milhões de anos atrás.
Observações indicam que o uni-
verso é organizado de uma maneira
hierárquica até uma escala de tama-
nho de 300 milhões de anos-luz: es-
trelas formam galáxias (tipicamente
com dezenas de bilhões de estrelas),
galáxias formam aglomerados de
galáxias e aglomerados de galáxias
Concepção artística de nossa galáxia, a Via-Láctea. Nosso sol é uma das bilhões de estrelas formam superaglomerados de galá-
que existem nela... e nossa galáxia é uma das bilhões que existem no universo (fonte:
xias. Existem projetos dedicados a
http://solarsystem.nasa.gov/multimedia/gallery.cfm?Category=Planets&Page=15).
fazer um mapa do universo. O mais
completo desses projetos, denomi-
Devemos nos considerar privi- cia entre duas cidades em unidades nado Sloan Digital Sky Sur vey
legiados, pois somos a primeira menores, como o centímetro, mas (SDSS), está fazendo um levanta-
geração a ter capacidade tecnológica certamente não é conveniente. Da mento com cerca de 1 milhão de
para estudar cientificamente o mesma maneira, quando estudamos galáxias (ver Box 2). O resultado é
universo, graças ao desenvolvimen- distâncias entre objetos no universo, que nessas escalas de até 100 mi-
to de instrumentos de alta precisão, a unidade mais apropriada é o ano- lhões de parsecs, o universo parece
desde os grandes telescópios dos luz, definido como a distância que um queijo suíço, com estruturas
montes Wilson e Palomar, ambos a luz percorre em um ano. A velo- que parecem paredes onde há uma
nos Estados Unidos, ao telescópio cidade da luz no vácuo é de 300 mil grande concentração de galáxias
espacial Hubble e aos satélites COBE quilômetros por segundo e, portan- cercando regiões praticamente
(Cosmic Background Explorer) e to, um ano-luz equivale a cerca de vazias.
WMAP (Wilkinson Microwave Ani- 10 trilhões de km. Outra unidade Em escalas bem maiores de 100
sotropy Probe). Sem o avanço tec- relacionada ao ano-luz e também milhões de parsecs, há evidências de
nológico dos últimos 50 anos, seria muito usada é o que o universo é
impossível formular e testar teorias parsec, que equi- Paradoxalmente, ao mesmo homogêneo ou
sobre o universo. Esses instrumen- vale a 3,26 anos- tempo que alcançamos um uniforme, isto é,
tos trouxeram e alguns ainda tra- luz. estágio de grande não apresenta, na
zem muitas informações acerca do Para se ter conhecimento, sabemos que média, regiões
universo. uma noção de dis- a maior parte do universo é muito diferentes.
Paradoxalmente, ao mesmo tâncias usando a feita de algo que ainda não Isso significa que
tempo que alcançamos um estágio velocidade da luz, compreendemos: a matéria não seria possível
de grande conhecimento, sabemos vamos citar al- escura e a energia escura distinguir ou privi-
que a maior parte do universo é feita guns exemplos: o legiar uma dada
de algo que ainda não compreen- perímetro da Terra é de aproxima- região. Lembrando que estamos
demos: a matéria escura e a ener- damente 0,1 segundo-luz; a distân- olhando para o passado, o universo
gia escura, que abordaremos mais cia da Terra ao Sol vale cerca de oito primitivo foi muito mais homogê-
adiante. minutos-luz; a estrela mais próxi- neo do que é hoje. De fato, como
ma de nós (Alfa Centauro) está a 4,2 veremos mais adiante, as galáxias
A estrutura do universo anos-luz, enquanto uma das galá- ainda não haviam sido formadas no
Antes de discutirmos a estrutu- xias mais próximas (Andrômeda) passado. Mais ainda: o universo pri-
ra do universo temos que introduzir encontra-se a cerca de 2 milhões de mitivo também foi isotrópico, ou
a unidade de distância apropriada a anos-luz. O tamanho do universo seja, ao observá-lo em diferentes
seu estudo. Quando lidamos com o que podemos em princípio observar direções, os resultados são seme-
tamanho de uma sala, usamos o é de cerca de 13 bilhões de anos-luz. lhantes.
metro (m) como unidade. Quando É importante notar que, quando Concluímos, portanto, que não
olhamos em um mapa das estradas olhamos para um objeto muito dis- existe uma posição privilegiada no
brasileiras, a unidade mais apro- tante, estamos vendo como ele era universo, pois todas elas são equiva-
priada é o quilômetro (km). Obvia- quando emitiu a luz que nos chega lentes. Isso equivale a dizer que não
mente podemos expressar a distân- hoje, ou seja, estamos olhando para há um “centro” do universo.

32 A Cosmologia Física na Escola, v. 6, n. 1, 2005


vão se afastando umas das outras.
Box 2: A estrutura do universo De fato, formiguinhas posicionadas
em cada mancha veriam todas as
outras manchas se afastando dela.
Cada formiguinha pensaria que está
no centro da expansão do balão.
Mas, como já vimos, não existe um
centro.
Se o universo não é estático, isto
é, evolui, então ele possui uma
história. Podemos pensar na evolu-
ção atual do universo como um fil-
me. Rodando o filme de trás para
frente, percebemos que no passado
as galáxias estavam mais próximas
umas das outras. Conseqüente-
mente houve, portanto, um mo-
mento em que todas as galáxias
O estudo da estrutura do universo realizada pelo SDSS é feita em duas etapas: galáxias
são identificadas em imagens bi-dimensionais (à direita) e, com a determinação de
estavam juntas (na verdade, as galá-
suas distâncias, um mapa tri-dimensional com profundidade de 2 bilhões de anos- xias não existiam no passado, ten-
luz é criado (à esquerda), onde cada galáxia é representada por um ponto e a cor do sido formadas durante a evolu-
representa sua luminosidade. Essa figura mostra “apenas” 66.976 das 205.443 galá- ção do universo, a aproximadamen-
xias identificadas pelo SDSS (fonte: http://www.sdss.org/news/releases/ te 1 bilhão de anos após o início),
20031028.powerspectrum.html). quando o balão estaria totalmente
murcho (temos que imaginar que o
A evolução do universo formigas, daquelas espécies muito balão se reduz a um ponto nesse
pequenas. Imaginemo-nos, agora, caso). Esse seria o instante inicial do
Uma das maiores descobertas do movendo-nos sobre a superfície de filme, e o tempo decorrido a partir
século passado foi, sem dúvida, o um balão de borracha, desses co- daquele início até o presente é o que
fato de que o universo está em muns em festas infantis, no qual te- chamamos de idade do universo.
expansão. Por muito tempo, pen- nhamos pintado, com uma caneta, Conhecendo-se a velocidade das
sou-se que, descontado o movimen- manchas com o mesmo tamanho e galáxias e as distâncias delas até
to aparente das estrelas devido à formato para representar as galá- nós, podemos estimar o tempo que
órbita da Terra ao redor do Sol, o xias. Para nós, em nossa nova for- elas levaram para que chegassem
universo seria estático, imutável. ma (seres achatados ou formigui- onde estão hoje. Com base na teoria
Mesmo Einstein acreditava nisso, nhas), não existe nenhum ponto da relatividade geral de Einstein,
pois não havia evidências experi- privilegiado ou centro na superfície complementada com dados obser-
mentais do contrário. Porém, em do balão. Seria a mesma coisa que vacionais, foi possível chegar a uma
1929, o astrônomo norte-ameri- nos perguntar qual é o centro da su- boa estimativa da idade do universo:
cano Edwin Hubble (1889-1953) perfície do planeta Terra. Lembre- cerca de 13 bilhões de anos.
observou que as galáxias estão se se de que, pelo fato de agora sermos À medida que rodamos o filme
afastando de nós, achatados, o espa- da história do universo ao contrá-
ou seja, que o uni- Conhecendo a velocidade
ço em que pode- rio, notamos que, como as galáxias
verso está em ex- das galáxias e as distâncias
mos nos mover é ficam mais próximas umas das ou-
pansão. delas até nós, podemos
apenas a superfície tras, o universo fica cada vez mais
Mas será então estimar o tempo que elas
curva do balão, ou denso. Também, devido a essa com-
que estamos no levaram para que
seja, não temos pressão, o universo fica mais quente
centro do univer- chegassem onde estão hoje.
acesso ao seu inte- — quem já encheu um pneu de bici-
so? Afinal de con- Uma boa estimativa para a
rior. Essa analogia cleta com uma bomba manual tal-
tas todas as galá- idade do universo é de cerca
bi-dimensional é vez já tenha verificado que a bomba
xias estão se afas- de 13 bilhões de anos
mais fácil de ima- se aquece devido à compressão do
tando de nós! Para responder a essa ginar do que um espaço curvo de ar. Levando essa contração ao extre-
pergunta, vamos imaginar o se- três dimensões, que é o caso do nos- mo, concluímos que o universo
guinte caso, que é análogo ao que so universo. começou sua evolução a partir de
acontece no universo: suponha que Nessa analogia, a expansão do um estado extremamente quente e
tenhamos nos transformado em universo é representada pelo enchi- denso. Por esse motivo, a teoria que
pessoas “chatas” (no sentido de mento do balão. À medida que o ba- descreve essa evolução é denomina-
achatadas ou bidimensionais) ou em lão enche, as galáxias (manchas) da de big bang, desenvolvida princi-

Física na Escola, v. 6, n. 1, 2005 A Cosmologia 33


palmente pelo físico teórico russo nética (luz). Assim, o universo era mais pomposo para o big bang.
George Gamow (1904-1968), que opaco antes dessa época. Depois de
fez importantes trabalhos na área 400.000 anos, os átomos desses Fósseis do big bang
de cosmologia. elementos leves puderam se formar Uma das diferenças entre ciência
Quando esquentamos o gelo, ele e o plasma se neutralizou, tornando e mitologia consiste justamente no
derrete, formando água e, se conti- o universo transparente, pois os fó- fato de que modelos científicos
nuamos a esquentar a água, ela eva- tons não interagem diretamente devem ser verificados experimental-
pora. O gelo, a água e o vapor são com matéria eletricamente neutra. mente para serem comprovados ou
diferentes fases da água. Da mesma Chamamos a esse fenômeno de rejeitados. Caso nossos modelos não
maneira, o universo passou por recombinação. possam ser verificados, ou seja, caso
diferentes fases, dependendo de sua Ainda mais no passado (mais eles não façam previsões passíveis
temperatura em um dado momen- próximo ao início do universo), a de teste, então estamos fazendo filo-
to. Lembrem-se que temperatura e temperatura e densidades eram sofia.
densidade aumentam à medida que ainda muito maio- O Modelo Cos-
olhamos cada vez mais no passado res, de modo que Somente 400.000 anos após
mológico Padrão
do universo. Uma das conseqüên- em seus primeiros o início do universo sua
faz previsões sobre
cias mais interessantes é a de que, momentos o uni- temperatura ficou menor
fenômenos que
somente depois de aproximada- verso era consti- que alguns milhões de
ocorreram bilhões
mente 400.000 anos após o início tuído por uma graus, correspondente à
de anos atrás. Co-
do universo, sua temperatura ficou “sopa” quentíssi- energia de ligação do
mo podemos veri-
menor que alguns milhões de graus, ma de partículas hidrogênio. Foi então que os
ficá-las? Felizmen-
correspondente à energia de ligação elementares. A átomos puderam se formar,
te, a evolução do
do hidrogênio. Foi apenas depois teoria da relativi- em um fenômeno que foi
universo deixou
dessa época que os átomos puderam dade geral, suple- batizado recombinação
traços desses fenô-
se formar. Antes disso o universo mentada pela teo- menos que podemos detectar hoje e
era um plasma de núcleos atômicos ria da física das partículas elemen- assim testar o modelo. Pode-se dizer
leves (hidrogênio e hélio, principal- tares, fornece um modelo para a que encontrar os fósseis deixados
mente) e elétrons, fortemente aco- evolução do universo, o chamado pela evolução do universo é um tipo
plados pela radiação eletromag- Modelo Cosmológico Padrão, nome de arqueologia cósmica. Aqui, nos

Box 3: A radiação cosmológica de fundo


Em 1964, os físicos norte-americanos Robert Wilson e Arno Penzias estavam trabalhando no laboratório da Companhia Telefônica
Bell (Estados Unidos) com uma grande antena para detectar sinais fracos de rádio usados para comunicação telefônica. Com esse
equipamento, eles captaram um ruído que não desaparecia, apesar de todos os esforços. Eles verificaram também que o ruído vinha
de todo o espaço com a mesma intensidade, independentemente da direção para onde eles apontassem a antena.
Sem a menor idéia sobre a origem do ruído, Wilson e Penzias foram conversar com físicos da Universidade de Princeton. Os colegas
imediatamente reconheceram na descoberta o sinal do ‘calorzinho’ que denominamos radiação cosmológica de fundo, um tipo de
reverberação do big bang, prevista em 1948 por George Gamow e colaboradores. Penzias e Wilson receberam o prêmio Nobel em
1979 por sua descoberta acidental.

Pequenas flutuações na radiação cósmica de fundo medidas pelo satélite WMAP.


O espectro da radiação cosmológica de fundo medida As cores artificiais são geradas de maneira que os pontos vermelhos são mais
pelo satélite COBE comparada com um ajuste da quentes e os azuis são mais frios. Essa luz capturada pelo experimento foi
fórmula de Planck com uma temperatura de 2,74 K emitida quando o universo tinha apenas aproximadamente 400.000 anos,
(fonte: http://hyperphysics.phy-astr.gsu.edu/ há mais de 13 bilhões de anos atrás, sendo um verdadeiro fóssil da história
hbase/bkg3k.html). do universo (fonte: http://map.gsfc.nasa.gov/m_mm.html).

34 A Cosmologia Física na Escola, v. 6, n. 1, 2005


concentraremos em dois desses tros elementos, como nossos áto- croscópico. A madeira é feita de mo-
“fósseis”, que foram decisivos para mos de carbono, oxigênio, etc., fo- léculas e estas são compostas de
determinar o sucesso do Modelo ram sintetizados no interior de átomos. Os átomos, apesar do no-
Cosmológico Padrão: a radiação estrelas, onde as altíssimas tempe- me de origem grega que significa
cosmológica de fundo e a abundân- raturas permitem produzi-los atra- indivisível, são de fato formados por
cia de elementos vés de reações nu- um núcleo pesado contendo prótons
leves. A radiação cosmológica de cleares. Esses ele- e nêutrons e com elétrons orbitando
O Modelo Cos- fundo é extremamente mentos são ejetados ao seu redor. A estrutura do átomo,
mológico Padrão homogênea, mas suas das estrelas quando que começou a ser desvendada por
descreve o univer- pequenas variações de uma estas explodem em Lord Rutherford nos anos de 1910,
so iniciando sua parte em 10.000, detectadas eventos chamados é o que geralmente aprendemos na
evolução a partir no início da década de supernovas. Esse escola. Hoje sabemos que os prótons
de um estado 1990, deram origem às processo de forma- e nêutrons são formados por outras
extremamente galáxias, estrelas e, ção de elementos é partículas, denominadas quarks e
quente e denso. O ultimamente, a nós denominado nu- gluons, mas isso não será relevante
universo, então, cleossíntese. para nosso propósito. Portanto, ao
se expande e esfria. O que restou O Modelo Cosmológico Padrão invés de responder que a mesa é feita
hoje desse grande calor inicial equi- prevê que aproximadamente a de elétrons, quarks e gluons, aqui
vale a uma temperatura de apenas quarta parte de toda a matéria do será suficiente responder que a me-
270 graus celsius negativos, muito universo foi convertida em hélio. sa é feita de átomos.
próxima do chamado zero absoluto Cálculos sofisticados também resul- Aumentando um pouco nosso
de temperatura. Portanto, todo o tam em previsões para a abundân- escopo, vamos atentar para o mun-
espaço é permeado por esse “calor- cia no universo de deutério e lítio. do que nos cerca, como o nosso pla-
zinho” ou radiação que sobrou do Esses números fo- neta. Do que é feito
big bang. Essa é uma previsão do ram verificados O Modelo Cosmológico o planeta Ter ra?
modelo, realizada em 1948 por Ga- observacional- Padrão descreve o universo Sem dúvida, toda a
mow e colaboradores. Pouco menos mente nos últimos iniciando sua evolução a diversidade de
de duas décadas mais tarde, esse 20 anos (não é partir de um estado nosso planeta pode
“eco” do big bang foi detectado por simples realizar extremamente quente e ser reduzida a áto-
uma grande antena de comunicação essas medidas) e denso mos. Mas não é só
nos laboratórios Bell, nos EUA. Hoje seu acordo com o isso. Por exemplo,
em dia ela representa o melhor es- Modelo Cosmológico Padrão repre- caso não houvesse luz ao nosso
pectro de corpo negro já medido (ver sentam mais um sucesso a seu fa- redor, não conseguiríamos enxergar
Box 3). O estudo experimental e teó- vor. nada. A luz é apenas um exemplo
rico dessa chamada radiação cos- particular do que chamamos de
mológica de fundo tem sido funda- Do que é feito o universo? radiação eletromagnética, que
mental para o desenvolvimento da Perguntas simples de serem for- abrange desde a radiação de nossos
cosmologia. A radiação cosmológica muladas geralmente possuem res- fornos de microondas até os raios-
de fundo é extremamente homogênea, postas complexas. Por exemplo, se X usados para fazermos radiogra-
mas suas pequenas variações de uma me perguntassem do que é feita a fias. Sabemos desde o início do sécu-
parte em 10.000, detectadas no início mesa que estou usando para escre- lo passado que a luz é feita de uma
da década de 1990, ver esse texto po- torrente de partículas elementares
deram origem às Núcleos atômicos, como o deria responder denominadas fótons.
galáxias, estrelas e, carbono e ferro, também simplesmente de Um outro ingrediente que temos
ultimamente, a foram (e são) sintetizados que a mesa é feita ao nosso redor mas que não nota-
nós. através de reações de madeira. A res- mos são partículas de um tipo dife-
Um outro fós- nucleares no interior de posta é cor reta rente produzidas em reações nuclea-
sil do início do estrelas e ejetados quando mas pode não sa- res, como as que ocorrem no Sol ou
universo está na estas explodem em eventos tisfazer totalmente em reatores aqui na Terra. São os
presença de alguns chamados supernovas. Esse a curiosidade de chamados neutrinos, que interagem
elementos leves, processo de formação de uma mente inqui- tão fracamente que bilhões deles
como o deutério e elementos químicos é ridora. “Mas do podem passar por nossos corpos
o hélio, formados denominado nucleossíntese que é feita a madei- sem que percebamos. Eles foram
na fornalha cós- ra?” seria a próxi- detectados apenas na década de
mica que era o universo três minu- ma pergunta. Uma seqüência de 1950, com o desenvolvimento dos
tos depois de seu surgimento, situa- perguntas deste tipo nos leva primeiros reatores nucleares para
ção na qual a temperatura atingia rapidamente à fronteira do conhe- geração de eletricidade. Podemos en-
cerca de um bilhão de graus. Os ou- cimento científico no mundo mi- tão responder simplificadamente

Física na Escola, v. 6, n. 1, 2005 A Cosmologia 35


que no nosso planeta temos áto-
mos, fótons e neutrinos. Box 4: Evidências para a existência da matéria escura
Vamos agora iniciar nossa A teoria da gravitação de Newton prevê que a velocidade de rotação (v) de um corpo
tentativa de responder à pergunta: ao redor de outro de massa M como função do raio (r) é dada por:
do que é feito o universo? Primei-
ramente, temos que enfatizar algo
óbvio: o universo é muito grande. Essa relação é satisfeita com grande precisão no nosso sistema solar (ver Figura 1).
Como podemos tentar responder a Para galáxias, a massa como
essa pergunta se nunca consegui- função do raio inicialmente
mos sequer enviar espaçonaves para cresce com M(r) ∝ r3, o que im-
as redondezas do nosso sistema so- plica em v ∝ r (assumimos
uma densidade constante por
lar? Certamente temos que inferir
simplicidade) até sua borda
a composição do universo a partir
(onde não deveria haver mais
de observações realizadas por ins- muita matéria) e depois per-
trumentos aqui na Terra ou em sua manece constante. Portanto, a
órbita. curva de rotação em uma ga-
Como primeira tentativa, pode- láxia deveria inicialmente au-
ríamos pensar que o universo é feito mentar linearmente e depois
das mesmas coisas que estão no decrescer com o inverso da raiz
nosso planeta: átomos, fotons e quadrada da distância. Porém,
neutrinos. De fato, por muitos anos o que se observa de fato é algo
esse foi o paradigma científico. Esse como o que mostra a Figura
paradigma começou a ruir quando 2, onde a curva de rotação
observações iniciadas na década de permanece praticamente cons-
1930 pelo astrônomo suiço Fritz tante mesmo para distâncias
Zwicky, realizadas no observatório Figura 1: Curvas de rotação para os 10 planetas de maiores que a borda visível da
americano do Monte Wilson, mos- nosso sistema solar (fonte: http://bustard. phys.nd.edu/ galáxia. Esse comportamento
Phys171/lectures/dm.html). indica que a massa da galáxia
traram que o peso das galáxias (ou, cresce com M(r) ∝ r além da
mais precisamente, a quantidade de borda visível da galáxia, indi-
massa), é cerca de 100 vezes maior cando a presença de matéria
que o de todas as estrelas da galáxia escura. Essa matéria escura
somadas. Portanto, existe na galáxia estaria presente em um halo
um tipo de matéria que não irradia invisível esfericamente simé-
luz, que ficou conhecida pelo nome trico ao redor da galáxia, como
de matéria escura (matéria trans- mostrado em azul na Figura 3.
parente seria mais apropriado) (ver Existem muitas outras evidên-
Box 4). Na década de 1970, avanços cias da existência de matéria
em cosmologia mostraram como escura: dinâmica de galáxias
calcular a quantidade de átomos de em aglomerados de galáxias,
Figura 2: Curva de rotação para a galáxia de Andrô- efeitos de lentes gravitacionais,
elementos leves, como o hélio e o meda (fonte: http://bustard.phys.nd.edu/Phys171/lec-
efeitos na curvatura do uni-
deutério, que teriam sido produzi- tures/dm.html).
verso e outros.
dos nos três primeiros minutos do
universo. Para explicar as quanti-
dades observadas desses elementos Figura 3: Concepção artística de uma
leves em galáxias distantes, apenas galáxia de matéria visível (a parte
uma fração muito pequena do central, mais avermelhada) envolta
universo, aproximadamente 5%, em um halo esférico de matéria
seria composta de átomos. Uma escura (mostrada em azul). Note que
fração ainda muito menor corres- a presença de matéria escura se es-
tende muito além das estrelas e poei-
ponderia a fótons e neutrinos. Por-
ra que formam a matéria visível e
tanto, a maior parte do universo
que identificamos, efetivamente, co-
não é feito do mesmo material que mo nossa galáxia. A matéria escura
nós somos feitos, de átomos. Mas na realidade é invisível (por isso a
então qual a composição dos outros figura é apenas uma imagem artís-
95% do universo? tica), mas suas propriedades são
Não temos ainda uma resposta determinadas indiretamente através
definitiva. Chegamos à fronteira do de seu efeito gravitacional no movimento das estrelas e nuvens de gás da galáxia.
conhecimento macroscópico. A

36 A Cosmologia Física na Escola, v. 6, n. 1, 2005


dinâmica das galáxias indica que que o universo seria estático, que era fascinante e efervescente no estudo
25% do universo é composto por o paradigma do início do século XX. em cosmologia. Temos informações
um novo tipo de partícula elemen- Com a descoberta da expansão do uni- detalhadas e precisas sobre o uni-
tar responsável pela matéria escura. verso, Einstein reconheceu nessa cons- verso. Essas informações produzi-
Essa matéria, que não emite luz, tante seu maior erro. Talvez Einstein ram resultados surpreendentes: o
compõe grande estivesse certo, afi- universo está em expansão acele-
parte das galáxias A composição do universo: nal. Outros modelos rada, é aproximadamente plano e
no universo. Pos- 5% de átomos, alternativos existem não conhecemos 95% dele! Eis a
síveis candidatos 25% de uma partícula para esse meio, com receita de universo: 5% de átomos,
são postulados elementar ainda não nomes exóticos e 25% de uma partícula elementar
por várias teorias, descoberta e... apelativos como ainda não descoberta e 70% de um
mas ainda não fo- 70% de um meio difuso com quintessência, mas meio difuso com propriedades exó-
ram produzidos propriedades exóticas ainda estamos t i c a s ( p re s s ã o n e g a t i v a ) , c u j a
ou detectados no (pressão negativa), cuja aguardando por origem não conhecemos ainda.
laboratório. Exis- origem não conhecemos mais fatos experi- Certamente essas conclusões apon-
tem vários experi- ainda! mentais para confir- tam para a necessidade de novos
mentos tentando mar ou excluir mo- modelos em física de partículas ele-
capturar uma dessas partículas que delos. Novos instrumentos de obser- m e n t a re s e t e o r i a d e c a m p o s .
circulam em nossa galáxia. A vação na Terra e no espaço, alguns já Novos instrumentos planejados ou
dificuldade é que essas partículas em operação, serão fundamentais já em atividade testarão esses novos
devem interagir muito fracamente para elucidar esses mistérios. modelos. Uma verdadeira revolu-
e possuir uma densidade pequena, ção está em curso, da qual resul-
tor nando sua detecção proble- Conclusão tará um novo paradigma para as
mática. Há também a possibilidade Estamos vivendo uma fase futuras gerações.
fascinante de criar essas partículas
nos grandes anéis de colisão. Em
particular, o Large Hadron Collider,
Sugestões para leitura Novo livro de divulgação do renomado
que vai entrar em operação em físico britânico em uma edição primo-
2007 no laboratório CERN, na S. Weinberg, Os Três Primeiros Minutos (Editora rosa. Os primeiros três capítulos são
Guanabara Dois, Rio de Janeiro, 1980). excelentes mas o restante do livro é
Suíça, poderá finalmente resolver o Excelente livro de divulgação escrito por extremamente especulativo.
mistério da matéria escura. Eis aí um ganhador do prêmio Nobel em
uma conexão entre o macro e o Física e pesquisador da área de cosmo- Na Internet
microcosmo. logia. Concentra-se na discussão dos http://www.nap.edu/readingroom/books/
primeiros instantes do universo, prin-
Mas a Natureza tinha ainda uma cosmology/index.html. Excelente
cipalmente na época da formação de descrição sobre cosmologia desen-
outra surpresa guardada para os elementos leves. volvida pela Academia Americana de
cientistas. Graças a uma descoberta M. Gleiser, A Dança do Universo, (Editora Ciência.
em 1998, considerada pela revista Companhia das Letras, São Paulo, http://hepwww.rl.ac.uk/pub/bigbang/
Science como uma das mais impor- 1998). Exposição feita por um pesqui- part1.html. Páginas sobre cosmologia
sador brasileiro especialista em cos- e física de partículas elementares
tantes do século XX, sabemos hoje que mologia e de caráter mais geral que o desenvolvidas pelo Conselho Britânico
cerca de 70% do universo é composto livro de Weinberg, discutindo a história de Pesquisa em Astronomia e Física de
de algo difuso, que não se concentra e desenvolvimento da Física desde os Partículas.
em galáxias e que provoca a expansão gregos até a cosmologia moderna. http://www.stsci.edu. Nessas páginas, do
H. Cooper e N. Henbest, Big Bang: A História Space Telescope Science Institute (Esta-
acelerada do universo. Como a gravi-
do Universo, de (Editora Moderna, São dos Unidos), pode-se encontrar fotogra-
dade é sempre atrativa, todos espera- Paulo, 1998). Livro com várias ilustra- fias tomadas pelo Telescópio Espacial
vam que a expansão do universo ções excelentes e com muita infor- Hubble e ter acesso aos resultados mais
estivesse desacelerando! Podemos mação. É divertido e informativo, mas recentes obtidos por este projeto.
sem grande aprofundamento. http://www.sdss.org/. O Sloan Digital Sky
imaginar então a presença de um meio
B. Greene, O Universo Elegante: Supercordas, Survey é um projeto americano para
extremamente tênue que permeia Dimensões Ocultas e a Busca da Teoria mapear o nosso universo com as
todo o universo. Esse meio, porém, Definitiva, de (Editora Companhia das posições de um milhão de galáxias.
tem propriedades diferentes de um Letras, São Paulo, 2001). Texto de Nessas páginas, pode-se encontrar os
meio material: apresenta uma pressão divulgação escrito por um pesquisador avanços realizados por esse projeto.
da área de supercordas que descreve o http://www.astro.ucla.edu/~wright/
grande e negativa, o que causa um desenvolvimento da Física no século XX, cosmolog.htm. Curso de cosmologia da
efeito de anti-gravidade, resultando na partindo da teoria da relatividade Universidade da Califórnia, em Los An-
expansão acelerada observada. A esse restrita e chegando até as supercordas. geles (Estados Unidos), pode ser feito
meio foi dado o nome de energia escura. Porém não dedica muito espaço para a por qualquer pessoa com nível de estu-
cosmologia. dante de graduação em ciências exatas.
Esse meio poderia ser formado pela S. Hawking, O Universo Numa Casca de Noz Possui também notícias atualizadas
chamada constante cosmológica, pro- (Editora Mandarim, São Paulo, 2001). sobre pesquisas em cosmologia.
posta por Einstein para explicar por-

Física na Escola, v. 6, n. 1, 2005 A Cosmologia 37


Q
○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○
uantas e quais são as partículas elementares que compõem a matéria
Maria Cristina Batoni Abdalla
observada no nosso universo? Não exatamente usando o conceito de
Instituto de Física Teórica, UNESP
e-mail: mabdalla@ift.unesp.br partículas elementares (que é moderno), durante milhares de anos temos
○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○
buscado uma resposta a essa pergunta que aparentemente parece simples. Os
gregos já tinham idéia de que a matéria era composta de átomos (do próprio
grego indivisível). Essa concepção de indivisibilidade hibernou por mais de 25
séculos e somente no ano de 1897 o átomo foi “quebrado” pelo físico inglês
Joseph John Thomson e a primeira partícula elementar foi descoberta: o elétron.
A última partícula elementar encontrada (bem menos conhecida) foi o neu-
trino do tau em 2000, por uma equipe de físicos do Fermi National Laboratory
(Fermilab), Estados Unidos.
A física moderna precisou de 103 anos para descobrir e classificar todas
essas pequeninas partículas fundamentais. O modelo que classifica as partículas
elementares começou a ser formulado teoricamente em meados da década de
1960, mas só foi coroado de êxito duas décadas depois, no final de 1982, com
a fantástica descoberta dos bósons mediadores (W+, W–, Z0) da interação fraca.
Recomendamos fortemente que, antes de o leitor prosseguir nessa leitura,
os trabalhos de Ostermann (2001) e Moreira (2004), já publicadas nesta mesma
revista, fossem lidas e estudadas cuidadosamente, pois vários termos e conceitos
utilizados aqui estão lá explicados e colocados no contexto da física de partículas
de uma forma bem didática.
O século passado testemunhou a descoberta de centenas de novas partículas.
Até o início da década de 1950, a grande maioria das partículas descobertas foi
erroneamente considerada elementar, pois o método de observação utilizado
não permitia ver-lhes a natureza mais íntima. O critério que define elementar
até que não é difícil – é até bastante intuitivo: toda partícula que pode ser
quebrada não é elementar, e toda aquela que tem um único constituinte é
considerada elementar. No entanto, do ponto de vista experimental e teórico, o
conceito não é tão simples assim; há grandes dificuldades quanto aos limites
intrínsecos à observação, e há também dificuldades na concepção dos modelos
teóricos que descrevem o comportamento da matéria.
Do ponto de vista teórico, o conceito que define uma partícula elementar é,
antes de tudo, de natureza abstrata e matemática. Todas as partículas elementares
são descritas por objetos matemáticos denominados funções de onda, a partir
das quais são extraídas informações sobre a dinâmica de tais partículas. A função
de onda que descreve uma partícula elementar não pode ser redutível à função
de onda de outras partículas. Essa linguagem é ditada pela mecânica quântica
e, para nossos propósitos, parece um bocado complicada. É difícil transmitir os
conceitos que envolvem a função de onda a quem não é especialista. Além
Quantas e quais são as partículas elementares disso, como seria impossível construir a família das partículas elementares de
que compõem a matéria observada no nosso um ponto de vista estritamente teórico, optamos por contar sobre suas desco-
universo? Neste artigo contamos brevemente
a descoberta destas partículas elementares.
bertas teóricas e experimentais em uma organização histórica cronológica, fazer
Representações lúdicas e artísticas tentam ame- uma representação artística para as características dessas partículas e depois
nizar para o leitor essa aventura maravilhosa. acomodá-las no modelo aceito hoje em dia que é chamado de Modelo Padrão

38 O Discreto Charme das Partículas Elementares Física na Escola, v. 6, n. 1, 2005


(MP). É importante ficar claro que os desenhos artísticos partículas mediadoras (caixinhas
utilizados neste trabalho pretendem fazer apenas uma re- amarelas). Sabemos que o elétron
presentação gráfica para as características das partículas tem massa, carga elétrica e spin
(como a massa, por exemplo, que em última análise é o 1/2 (lembre-se das aulas de Quí-
que se mede) e assim atrair a atenção dos não-iniciados de mica sobre distribuição eletrôni-
uma forma divertida e pitoresca, de modo que a informação ca) e ele é um férmion fundamen-
visual fique retida e, principalmente, para eliminar a idéia tal2 que não interage fortemente
de que as partículas elementares são “bolinhas”. (não tem interação nuclear), por-
O Modelo Padrão (MP) estabelece: toda a matéria de tanto é um lépton e por isso vai
que se tem notícia é composta de três tipos de partículas ocupar a primeira caixa roxa da figura acima.
elementares: léptons, quarks1 e as mediadoras, e que um O fóton (γ) é a segunda partícula ele-
punhadinho de 61 partículas basta para construir toda a mentar a entrar no cenário. Em 1905, o
matéria observada neste universo (incluindo, é claro, as físico alemão Albert Einstein explicou o efeito
observadas em laboratórios). Como chegamos a esse fotoelétrico usando a hipótese de que a luz é
número? Quais são elas? Como estão classificadas? Essas formada de pacotinhos de energia que mais tarde rece-
são algumas das perguntas que tentaremos responder. Con- beram o nome de fóton3. O fóton também é conhecido
tudo, não temos condição de fazer aqui uma revisão sobre como quantum de luz. Por mais incrível que possa parecer,
conceitos da mecânica quântica para depois falar em o fóton não tem massa – é uma partícula que só tem
“partícula elementar” e seus “números quânticos”. Vamos energia e seu spin é 1, e portanto ele é um bóson. Na
nos deter às descobertas e ao mesmo tempo situar essas figura ao lado representamos artisticamente as caracterís-
descobertas no contexto histórico. ticas do fóton.
O elétron (e–) foi a primeira partícula elementar a ser Ao lado ilustramos o efeito fotoelétrico: quando a luz
descoberta. Thomson, em 1897 realizou uma experiência (fótons) que incide em uma placa de
com raios catódicos na Ampola de Crooks e flagrou a divi- metal tem energia suficiente, os elé-
sibilidade do átomo, ganhando o Prêmio Nobel em 1906. trons do metal podem ser arrancados
Veja, ao lado esquerdo, uma figura artística ilustrativa e ejetados, porque eles adquirem
da Ampola de Crookes, energia cinética proveniente dos
onde um feixe das partí- fótons e com essa energia cinética eles
culas que estavam sendo “pulam” da placa. Elétrons são,
observadas passa primei- então, emitidos de metais ilumi-
ro por um campo elétrico, nados, e a energia dos elétrons, ao
sendo acelerado, e depois contrário do que se podia imaginar, depende da freqüência
por um campo magnéti- da luz (cor) e não da sua intensidade. Na verdade, quanto
co, que curva sua traje- maior a intensidade da luz, mais elétrons “pulam” da placa,
tória. Thomson observou apenas mas todos com a mesma energia!
um pontinho no bulbo da ampola e Einstein mostrou que esse fenômeno poderia ser expli-
pela curva certificou-se que era o cado se a luz de freqüência (f) fos-
elétron. Na experiência há duas se composta de quanta indivi-
propriedades importantes sobre par- duais de energia (hf). Ganhou, por
tículas carregadas, a saber: quando essa descoberta, o prêmio Nobel
um elétron passa por um campo de 1921. Em 1923, dezessete anos
magnético, sua trajetória é curvada depois da proposta teórica de
(veja figura ao lado direito). Ao pas- Einstein, o fóton foi confirmado
sar por um campo elétrico o elétron é acelerado, como na experiência do efeito Compton
mostra a segunda figura (no espalhamento Compton, o
à esquerda. Essas duas fóton que bombardeia o elétron em repouso perde energia
propriedades formam o e se espalha com energia menor). No MP, o fóton é umas
princípio básico dos ace- das partículas mediadoras e vai ocupar o primeiro lugar
leradores de partículas dos bósons mediadores.
carregadas como o colisor Cronologicamente, a próxima partícula
do European Laboratory encontrada foi o próton (vem do grego
for Particle Physics (CERN), em Genebra, Suíça. protos e quer dizer o primeiro). Em 1919, o
A questão que colocamos agora é a seguinte: Conheci- próton foi descoberto pelo físico Ernest Ru-
das as propriedades do elétron, como ele é classificado no therford através do bombardeamento do
MP? Uma forma pictórica de representar o MP é o quadrado nitrogênio por partículas alfa (núcleos do
ao lado, com 16 caixinhas onde temos espaço para 6 léptons átomo de hélio), resultando em um isótopo do oxigênio
(caixinhas roxas), que não interagem fortemente, para 6 mais um núcleo do átomo de hidrogênio (próton), com
quarks (caixinhas verdes) que interagem fortemente e 4 mostra a reação a seguir.

Física na Escola, v. 6, n. 1, 2005 O Discreto Charme das Partículas Elementares 39


trada em uma câmara de nuvens4, a partícula foi batizada
de mésotron – que passou, mais tarde, a méson µ (interme-
diária, em grego) e, mais tarde ainda, passou a ser conhecida
por múon. Representada por µ, tem duas cargas elétricas
possíveis (µ+) e (µ–). Na verdade, a partícula que havia sido
É importante dizer que na época pensava-se que o descoberta nem era a partícula prevista por Yukawa, tam-
próton fosse uma partícula elementar. No entanto, hoje pouco era um méson. Quem era então essa partícula
sabemos que o próton não é uma partícula elementar e, descoberta em 1937, tão parecida com o elétron? Suas prin-
portanto não entra no Modelo Padrão, pois como veremos cipais características: seu spin é 1/2 e pode ser visto como
mais adiante ele é composto de três quarks. um elétron crescido, pois sua massa é 207 vezes maior. A
Núcleos atômicos podem emitir partículas de seu inte- diferença essencial entre os dois consiste em o múon não
rior. No final da década de 20 um dos grandes mistérios da ser estável e, portanto, decair, en-
Física experimental era que os elétrons emitidos do núcleo quanto o elétron é estável, por
atômico não tinham uma energia muito bem definida, isto uma razão muito simples: não há
é, podiam ser ejetados com energias que variavam conti- nada em que o elétron possa de-
nuamente, desde zero até altos valores. O cair, por ele ser o mais leve. Ele é
físico alemão Wolfgang Pauli sugeriu então um lépton e não é afetado pela
a existência de uma partícula leve, neutra força nuclear forte, ou seja, as
e fracamente interagente com a matéria, forças que o afetam são as ele-
para explicar essa aparente falha da conser- tromagnéticas e a nuclear fraca.
vação de energia nas medidas do momento No MP ele ocupa a segunda caixa roxa.
do elétron ejetado. Essa partícula leve tam- Em 1947 o píon (π) foi descoberto e o físico brasileiro
bém seria ejetada com uma certa energia, César Lattes esteve envolvido na sua detecção, mas o píon
de forma que a distribuição de momento não entra no MP porque ele não é uma partícula elementar.
do elétron fosse entendida (esse processo é A década de 1950 é conhecida pelo número espantoso
conhecido por decaimento β). Surge assim de partículas novas, um verdadeiro zoológico de espécies!
o neutrino (ν), a terceira partícula elemen- Apenas por curiosidade, eis algumas: Κ+, Λ, Κ0, ∆++, Ξ–,
tar a ser estudada que mais adiante será Σ+, (nenhuma delas elementar). A necessidade de classi-
representada por νe. Hoje sabemos que o processo funda- ficá-las se fazia urgente, mais que isso: era necessário for-
mental do decaimento β é a desintegração do nêutron, mular uma classificação inteligente, ou seja, capaz de orde-
resultando em um próton, um elétron energético (esse elétron nar tantas partículas. Nessa tentativa os físicos passaram
é β) e um antineutrino. Inicialmente as tentativas para a elaborar leis de conservação que podiam ser aplicadas às
encontrar o neutrino falharam, e seu apelido passou a ser “o reações vistas nos laboratórios. Naquela época estava “no
pequenino que não está lá”. Ele só foi observado experimental- ar” que, além das quatro leis de conservação clássicas (mas-
mente em 1956, no reator nuclear Savannah River, na Caro- sa-energia, carga elétrica, momento linear e momento
lina do Sul, Estados Unidos. A confirmação inequívoca da angular), outras leis de conservação permitiriam dar sen-
sua existência ficou a cargo de Clyde Cowan e Frederick Reines, tido ao que acontecia no mundo das partículas elementares.
que ganharam o prêmio Nobel em 1995, trinta e nove anos Assim, as leis de conservação, que são resultados da obser-
depois da primeira detecção. Esse vação, também poderiam ser estendidas e refinadas de for-
fato marca uma evidência interes- ma a acomodarem as novas descobertas fenomenológicas.
sante na pesquisa em física de Uma vez estabelecido esse consenso, o físico
partículas: inicialmente a obser- norte-americano Murray Gell-Mann, em
vação da possível não-conservação 1953, sugeriu que certas partículas “estra-
de energia; posteriormente a previ- nhas” fossem identificadas por um novo
são teórica, baseada em princípios número quântico que batizou de estranheza
primeiros, e em seguida a detec- e postulou que seria conservado nas inte-
ção experimental. O neutrino é um rações fortes, mas não nas fracas. E foi as-
lépton, e no MP ele entra na caixa roxa acima do elétron, sim que uma nova lei de conservação, a
formando a primeira família de léptons. estranheza (s), foi introduzida para explicar
O múon (µ) é a quarta partícula elementar e a primeira os estranhos comportamentos de
das partículas elementares instáveis a ser descoberta. Em algumas partículas. Na verdade,
1933, o físico japonês H. Yukawa (Prêmio a estranheza é um número quân-
Nobel de 1949) propôs uma teoria para a tico como o spin. Além de as par-
força nuclear. Previu uma partícula de tículas estranhas serem produzi-
massa 200 vezes superior à massa do das aos pares, uma característica
elétron. Em 1937, os físicos S.H. Nedder- marcante era que, ao decaírem em
meyer e C.D. Anderson anunciaram a pri- outras partículas carregadas, o
meira evidência da sua existência. Encon- traço deixado na câmara de

40 O Discreto Charme das Partículas Elementares Física na Escola, v. 6, n. 1, 2005


bolhas apresentava sempre a forma de um V invertido. além das suas respectivas antipartículas . As regras
Por essa particularidade, elas chegaram a ser conhecidas básicas do modelo são de uma simplicidade impressionante:
como partículas V. Hoje sabemos que as partículas estranhas 1) os (anti)bárions são formados de 3 (anti)quarks
são produzidas pela força forte e que seus decaimentos qqq; 2) os mésons são formados por um par quark-
são regidos pela força fraca. Cerca de 10 anos mais tarde, antiquark . Com essas duas singelas asserções, todas
esse conceito deu origem ao quark estranho (s), que está as partículas conhecidas puderam ser entendidas e cons-
representado artisticamente na página anterior. truídas. Enfatizamos aqui que a matéria comum, essa de
Em 1962, cientistas do Brookhaven National Labora- nosso cotidiano, é feita de quarks leves u e d. Os exemplos
tory (BNL) observaram a primeira evidência do neutrino mais simples são o próton (uud) e o nêutron
do múon (νµ), fato que mostrava a exis- (udd). Agora sim, podemos entender porque
tência de mais de um tipo de neutrino. o nosso cartunista desenhou o próton como
O Prêmio Nobel foi outorgado a Leon sendo aquela figura tão estranha. Se você “tirar
Lederman, Melvin Schwartz e Jack a roupa do próton” verá que ele é formado
Steinberger, em 1988, os três da univer- por 2 quarks up (os vermelhos) e um quark down (verde).
sidade de Columbia, Estados Unidos, e Apesar de fundamentais, quarks nunca foram obser-
fizeram a descoberta utilizando o Alternating Gradient Syn- vados livremente e eles só existem em estados ligados for-
chrotron (AGS), na época um dos mais sofisticados mando as partículas. Pensou-se
aceleradores do mundo. O experimento utilizou um feixe até que encontrar um quark
de prótons energéticos do AGS para produzir um verdadeiro livre seria um evento muito
chuveiro de mésons π, que viajaram 70 pés (2.133,6 cm) raro. Foram analisadas amos-
de uma parede de 5.000 toneladas de aço fabricada com tras do leito antigo de oceanos,
placas de um velho couraçado. No caminho, os mésons de meteoritos e até da poeira de
decaíram em múons e neutrinos, mas só estes últimos camadas altas da atmosfera, e
podem passar através da parede nunca se encontrou um só
na direção de um detector pleno quark livre. Na verdade essa é uma característica da teoria
de neon. Dentro da câmara, o à qual damos o nome técnico de confinamento.
impacto dos neutrinos contra Embora o modelo de Gell-Mann tenha se tornado um
placas de alumínio produziu ras- sucesso, havia um problema teórico que precisava de solu-
tros do múon, que foram detec- ção imediata. Aparentemente, violava o princípio de exclu-
tados e fotografados, compro- são de Pauli, (dois férmions idênticos jamais podem ter os
vando a existência de neutrinos mesmos números quânticos ou ocupar o mesmo lugar no
do múon. No MP, o neutrino do espaço). A partícula Ω– é formada por três quarks estranhos
múon ocupa a caixa roxa acima do múon, completando a (sss) e, como cada s é um férmion, temos um problema:
segunda família dos léptons. dois deles não poderiam ocupar o mesmo estado físico.
Ainda em 1964, dois físicos da Universidade de Chi-
Vamos falar agora dos
cago, Yoichiro Nambu e Moo-Young Han, resolveram o
quarks up (u) e down (d) impasse propondo um novo número quântico: a cor. Os
Na década de 60, alguns físi- quarks, que certamente obedeciam ao princípio de Pauli,
cos passaram a reviver uma idéia não só viriam em três sabores diferentes, mas também em
que havia sido descartada no passado e que considerava a três cores. Cada quark aparece em três versões coloridas:
hipótese de os hádrons2 serem formados por um punhado vermelho, azul e verde. Assim, uma forma possível de
de “tijolinhos” fundamentais, responsáveis pela existência se escrever a partícula Ω–, formada por três quarks estra-
de toda a matéria observada no universo. Gell-Mann nhos, seria (svermelho sverde sazul), de maneira que todos os
publicou um trabalho brilhante, em 1964, propondo que quarks estranhos fossem diferentes. Na linguagem do
todos os hádrons [2], seriam for- físico, não estariam mais no mesmo estado.
mados por três partículas funda- O charme (c) foi o quarto quark a ser proposto. Apesar
mentais (e suas respectivas anti- de o nome quark revelar uma origem bem romanceada
partículas), às quais nomeou como conta seu inventor5, a mítica não
quark, que são férmions de spin funciona para o número 3, que estava
1/2. A sorte de Gell-Mann foi que longe de ser tão perfeito como Gell-Mann
o modelo previa a existência da supôs inicialmente. Em 1964, os norte-
partícula Ω– e ela foi descoberta americanos James Daniel Bjorken e
em pouquíssimo tempo. Esse fato Sheldon Lee Glashow propuseram a
atraiu atenção e interesse de muitos físicos. No MP os existência de outro férmion fundamental:
quarks up e down ocupam as duas primeiras caixas verdes, o quark charmoso. Um novo número quântico nomeado
completando a primeira família de quarks. charme seria violado apenas nas interações fracas. No
Segundo o modelo de Gell-Mann, os quarks aparecem trabalho original, os autores preconizam a existência de
em três tipos: up, down e strange, denominados sabores, muitas partículas charmosas, cuja descoberta seria cru-

Física na Escola, v. 6, n. 1, 2005 O Discreto Charme das Partículas Elementares 41


cial para testar a idéia. A idéia dos autores para a inclusão Z0 decai de muitas formas diferentes, inclusive nas que
de um quarto quark foi, no início, baseada em argumentos incluem neutrinos; esse comportamento está intimamente
puramente estéticos: afirmavam que os léptons fundamen- ligado a uma relação simples, que
tais existiam em número de quatro (e–, νe, µ, νµ). Logo, por pode ser deduzida da teoria eletro-
uma questão de simetria, os quarks fundamentais tam- fraca, entre a vida média do Z0 e o
bém deveriam existir em número de 4 (u, d, s, c). Assim número de possíveis tipos de neu-
como a matéria ordinária estável é formada pelos quarks trinos existentes na natureza. Na
leves u e d, os quarks mais pesados, s e c, compõem as linguagem do físico, o número de
partículas mais instáveis, que vivem muito pouco e são gerações dos léptons! Veja que informação importante:
produzidas em reações nos laboratórios. O quark charmoso teoricamente, o número de gerações é igual a três. Isso signi-
foi observado no verão norte- fica que há só três tipos de neutrinos. Para observar o Z0
americano de 1974, e deu metade mais a fundo, um novo acelerador foi projetado. Em 1983,
do prêmio Nobel de 1976 ao um imenso túnel de 27 km de circunferência começou a ser
grupo liderado por Samuel Chao cavado no CERN para construir o Large Electron Positron
Chung Ting, em Brookhaven, ring (LEP), com espaço para quatro
Estados Unidos. A outra metade enormes detectores diferentes,
foi para o norte-americano Bur- destinados a observar o resultado
ton Richter que liderava o grupo das colisões dos dois anéis de ma-
no Stanford Linear Accelerator téria e antimatéria. Em 1989, o
Center (SLAC). No MP, ele ocupa a caixa verde acima da LEP ficou pronto e, logo na pri-
estranheza, completando a segunda família. meira tomada de dados, oito
Na década de 1960, surge também uma nova teoria minutos de observação bastaram
unindo a força eletromagnética e a força fraca em uma para a detecção do primeiro Z0. No
única superforça chamada eletrofraca. Em 1967, Steven MP, o W+ e o W– ocupam a caixa amarela de baixo e o Z0
Weinberg propôs um modelo para a síntese eletrofraca, ocupa a caixa amarela acima deles.
em que as interações são mediadas por quatro bósons – Apesar de o número quântico cor ter sido proposto para
W+, W–, Z0, e γ. Os três primeiros são massivos e denomi- resolver o problema do Princípio de Exclusão de Pauli, a razão
nados bósons mediadores; o quarto é o fóton, que medeia a mais profunda da necessidade desse número quântico extra
força eletromagnética e não tem massa. Abdus Salam, em consiste no fato de a força forte que inter-relaciona os quarks
1968, e Sheldon Glashow, em 1970, trabalharam outros ser mediada pela cor. Em outras palavras, a força entre os
aspectos fundamentais para a formulação da chamada quarks tem sua origem na cor. A cor é uma espécie de carga
Teoria Eletrofraca. que origina a força forte, da mesma forma que a carga elétrica
Em 1979, Weinberg recebeu o prêmio Nobel junto com é fonte da interação eletromagnética.
Abdus Salam e Sheldon Glashow, mesmo sem que essas no- Da teoria batizada de CromoDinâmica Quântica (QCD),
vas partículas media- sabe-se que a força forte é
doras tivessem sido des- transmitida por oito partículas
cobertas em laboratório. sem massa, eletricamente
A confirmação experi- neutras e de spin 1, chamadas
mental dos três bósons glúons, termo que se originou
ocorreu em 1983, outor- da palavra glue, cola, em inglês.
gando o prêmio Nobel de Os glúons mediam a força forte
1984 ao físico italiano e carregam cor e anticor. Na linguagem do físico, dizemos
Carlo Rubia, que liderava que, na função de onda do glúon, há um número quântico
um experimento instala- especificando a cor e outro indi-
do no CERN. A experiên- cando a anticor. Como há três
cia observou a colisão de um próton e um antipróton, para cores (vermelho azul verde) e
procurar posteriormente os seguintes modos de decaimentos: três anticores ( ), há 9 espé-
W+ → e+ + e W– → e– + νe (e+ é o pósitron, a antipartícula cies de glúons diferentes - um
do elétron). Dados foram tomados ininterruptamente du- octeto (8 glúons obtidos de com-
rante trinta dias, no final de 1982, e observaram um bilhão binações adequadas dos 9) e um
de colisões, gravando um milhão em fitas magnéticas, das singleto (glúon solitário) que não
quais os computadores selecionaram 2.125 eventos. A é importante, pois a soma das
precisão com que os traços das partículas são reconstruídos cores resulta branco. No MP, os 8 glúons ocupam a caixa
pelos computadores é impressionante. Sob análise cuidadosa, amarela abaixo do fóton.
esses eventos reduziram-se a 39 e, finalmente, cinco deles O tau (τ) vem formar a terceira geração de léptons. Já
mostravam ao mundo a existência dos W± ! vimos que a família dos léptons acomodava quatro elementos
O Z0 foi descoberto em meados de 1983, observando ou- agrupados dois a dois: (e–, νe), (µ, νµ). No entanto, em 1975,
tros modos de decaimento: Z0 → e+ + e– e Z0 → µ+ + µ– . O um novo lépton entrou em cena. Em Stanford, Estados

42 O Discreto Charme das Partículas Elementares Física na Escola, v. 6, n. 1, 2005


Unidos, o físico Martin Perl, observando o processo no qual acelerador subterrâneo de 2 km de diâmetro, que começou a
elétrons e pósitrons aniquilam-se, fez uma descoberta muito funcionar em janeiro de 1987, tanto o próton como o
importante. Em meio a tantas partículas, havia muito tempo antipróton eram acelerados de modo a se encontrarem em
que não se descobria um lépton. E eis algum ponto de colisão. Inicial-
que um lépton genuíno aparece, quase mente foi construído com apenas
duas vezes maior do que o próton - um detector, o Collider Detector at
sua descoberta provocou uma Fermilab (CDF). Em 1992 surgiu
verdadeira surpresa no meio cien- outro detector, chamado DZero.
tífico. Foi batizado de tau (τ), refe- Mais de 900 cientistas de 21
rindo-o à palavra triton, que vem do grego e significa o terceiro. estados norte-americanos e de 12
Da mesma forma que seus dois irmãos, elétron e múon, o outros países passaram, então, a
tau apareceu em duas versões: colaborar na busca do top, e, em
com cargas positiva e negativa. De 1995, observaram, afinal, o sexto quark, t (de truth ou top).
fato, o τ inicia a terceira família de No MP, o top ocupa a terceira caixa verde acima do bottom.
léptons (e–, νe–), (µ, νµ), (τ, ?) dando Note que nosso cartunista representou as partículas
esperança à existência do neutrino respeitando, na medida do possível, uma escala de massas.
do tau (ντ), sobre o qual falaremos A relação entre as massas dos quarks e dos léptons perma-
mais adiante. Perl recebeu o prêmio nece até hoje um enorme mistério.
Nobel de 1995 junto com Fred O neutrino do tau (ντ) foi a última partícula a ser des-
Reines, responsável pela detecção coberta. Depois de o top ter sido encontrado em 1995, as
do neutrino em 1956. No MP, o tau ocupa a terceira caixa simetrias clamavam por um
roxa da primeira linha dos léptons. acompanhante-neutrino. Da
O bottom (b) foi o quinto quark a ser descoberto. Depois mesma forma que os outros
que as primeiras gerações de quarks – (ud) e (sc) – tinham dois léptons – o elétron (e–) e o
sido entendidas, a questão era saber, e múon (µ) – tinham seus res-
testar em laboratório, se quarks ainda pectivos neutrinos (νe) e (νµ), o tau (τ) também deveria vir
mais pesados existiam. Em 1977, Leder- acompanhado do seu neutrino (ντ). A busca experimental
man, líder de um grupo do Fermilab, foi intensa. Iniciou-se oficialmente em 1997, quando físi-
observou a primeira evidência do méson cos que trabalhavam no Tevatron fizeram uso de um feixe
úpsilon [ϒ(1S)], interpretado como um intenso que passava por um alvo de 15 m de comprimento,
estado ligado de um bottom com um antibottom, indicando, feito de placas de ferro e camadas de emulsão adequadas
de fato, uma terceira família de ao registro dessas interações; o aparato foi chamado Di-
quarks. Esse quinto quark era bem rect Observation of the Nu Tau (DONUT). Apenas um neu-
maior do que qualquer partícula trino, de um trilhão deles, interage com um núcleo de ferro
já descoberta e foi batizado de b. e se transforma em um tau que vive só 300 femtosegundos
Uns dizem ser b de bottom, em (10–15 s), deixando registrado na
contraposição a down, outros emulsão um minúsculo rastro de
acham que seria b de beauty, em um milímetro, mas suficiente
analogia ao charm. Enfim, o nome para garantir a existência da
que pegou foi b de bottom. No MP partícula. O DONUT registrou 6
o bottom ocupa a terceira caixa verde da primeira linha dos milhões de eventos, dos quais mil
quarks. foram selecionados pelos compu-
No início da década de 1980, a lista de mésons contendo tadores – 4 deles exibiam evi-
o quinto quark aumentou de modo significativo, e os físicos dências concretas da existência do
teóricos começaram a especular sobre neutrino do tau! No MP, ele ocupa a caixa roxa acima do
a existência de um sexto quark para tau. Enfim, o zoológico completo!
completar a simetria. Muitas foram Resumindo: Há três famílias perfazendo seis léptons. Há
as tentativas de detectá-lo, e o top (t) ainda seis antiléptons. Juntos, somam doze partículas
foi o último quark a ser descoberto, elementares. Os seis quarks também aparecem em três fa-
em 1995. Para se ter uma idéia do mílias. As cargas são frações da carga do elétron. Os quarks
seu tamanho, a massa do top, que é uma partícula elementar, aparecem em três cores de modo que temos 3 x 6 = 18
é da ordem de um átomo inteiro de ouro. Essa partícula só quarks. Como há também os antiquarks, juntos somam 36
existiu em condições naturais na época do big bang. Depois, partículas. Partículas mediadoras: o spin é sempre 1, e as
com o resfriamento do universo, ela deixou de existir e, agora, partículas mediadoras dependem do tipo da força em questão.
precisamos de aceleradores que atinjam energias muito altas Considerando as forças forte, fraca e eletromagnética temos
para recriá-la, mesmo que seja por um brevíssimo instante. 8 glúons, 1 fóton, W+, W–, Z0. A Tabela 1 resume tudo.
Aparentemente, o único acelerador em condições de detectar A contagem final nos leva a 60 partículas elementares,
uma partícula tão pesada seria o Tevatron, no Fermilab. Neste número que não deve ser considerado alarmante nem exces-

Física na Escola, v. 6, n. 1, 2005 O Discreto Charme das Partículas Elementares 43


sivo. Fato extremamente intrigante, no entanto, é que para Essa força eletrofraca é a jóia preciosa do Modelo Padrão
formar a matéria ordinária que nos rodeia precisamos apenas e precisa ser entendida em toda a sua extensão. E eis que, em
e tão somente da primeira família estável - o elétron (com certo momento da origem do universo, essa superforça
seu neutrino sempre à sua volta) e os quarks up e down, que separa-se, para todo o sempre, em duas. De um lado, a força
são os formadores básicos dos prótons e nêutrons! eletromagnética; de outro, a força fraca. Esse é o momento
Ah! Não podemos nos esquecer do Higgs – a última exato em que o abominável infrator da simetria entra em
partícula elementar que falta ser encontrada no MP! A jogo: o Higgs, e como se fosse uma espécie de rei Midas,
sua verificação experimental é tão importante que um ace- atribui massa a tudo o que toca. Antes de o Higgs aparecer,
lerador especial no CERN, chamado Large Hadron Collider tanto o fóton como os bósons mediadores não eram massi-
(LHC), está sendo construído para procurá-lo (estará em vos. Quando o Higgs entra em cena, os W± e Z0 adquirem
operação em 2007). Um orçamento de bilhões de dólares e uma notável corpulência, enquanto o fóton continua sem
mais de 3000 físicos em busca de uma única partícula! Em massa. Teoricamente - e com uma margem de erro bem
princípio o Higgs é o responsável pela escala de massas, então grande -, a massa do Higgs é estimada em 110 GeV/c2 (giga
vamos promovê-lo e elevar o número total para 61! eletronvolts (109 eV) dividido pela velocidade da luz ao
A história do Higgs começou em 1964 quando o físico quadrado, pois E = mc2). Se ele existir e for descoberto (basta
inglês Peter Higgs, da Universidade de Edinburg, Inglaterra, apenas um!), os físicos ficarão muito felizes, porque o modelo
propôs um mecanismo que ficou padrão terá funcionado maravilhosamente bem, e tudo,
conhecido por Mecanismo de Higgs, enfim, será explicado!... ou melhor, quase tudo...
um dos maiores enigmas do MP, e O Modelo Padrão resiste aos testes experimentais há mais
que gera a massa das partículas cha- de 30 anos. Mas apesar de todo o seu sucesso, nem tudo esta
madas bósons mediadores (W± e Z0). explicado. Ele não responde a diversas perguntas funda-
Na década de 1970, com os físicos mentais: por que as partículas têm massas numa certa
Weinberg e Salam, aprendemos que, hierarquia? Qual seria o mecanismo que privilegia a matéria
a temperaturas muito altas, da or- suprimindo a antimatéria? Como incluir a força gravitacio-
dem de 1015 graus, a força fraca e a nal, que é a quarta interação fundamental6, de forma a atri-
eletromagnética constituem, juntas, uma superforça, batiza- buir o status de partícula ao quantum de interação gravita-
da de força eletrofraca6. De certa forma, seriam duas facetas cional (gráviton)? Seriam as quatro forças da natureza (forte,
da mesma força. Sabemos que os mediadores dessa superforça fraca, eletromagnética e gravitação) simplesmente aspectos
são bósons. O bóson que medeia a força eletromagnética é o diferentes de uma mesma realidade? Uma possível resposta
fóton, que não tem massa, e os bósons que medeiam a força é a teoria de cordas, mas esse já é um assunto que está fora
fraca são os W± e Z0, que são massivos! Ora, por que essa do escopo deste artigo. Para responder a essas perguntas o
falta de reciprocidade? físico continua o seu trabalho...
Tabela 1. Resumo do número total de partículas elementares do Modelo Padrão.
Partículas Antipartículas Total
Léptons e , νe, µ, νµ, τ, ντ (6)

e ,
+
(6) 12
Quarks u, d, s, c, b, t (cada quark pode ter 3 cores) (6x3 = 18) (18) 36
Mediadoras γ, W+, W– , Z0 , g1, g2, g3, g4, g5, g6, g7, g8 (12) As antipartículas são as mesmas 12
que as partículas
Total 60

Referências desempenha um papel essencial em todos os processos de ra-


diação, o nome fóton.”
[1] Abdalla, M.C.B. O Discreto Charme das Partículas Elementares (Editora 4
Câmera de nuvens: inventada em 1912 por pelo físico escocês Charles
da Unesp, São Paulo, no prelo, previsto para outubro de 2005). Thomson Rees Wilson (premio Nobel de 1927), foi muito utilizada
[2] Ostermann, F. Um Pôster para Ensinar Física da Partículas na Escola. no estudo da radioatividade. Vapor de água é confinado em uma
Física na Escola, 2(1), 13-18 (2001). câmera fechada até o ponto de saturação. A pressão é diminuída,
[3] Moreira, M.A. Partículas e Interações, Física na Escola 5(2), 10-14, produzindo-se ar num estado supersaturado. A passagem de partí-
(2004). culas carregadas condensa essa massa de ar em gotículas diminutas
de vapor, deixando, assim, os vestígios da partícula que passou.
Notas 5
“Em 1963, quando atribuí o nome ‘quark’ aos constituintes funda-
1
Insistimos que o leitor deve ler antes o trabalho de Ostermann (2001) mentais dos núcleons, primeiro eu tinha o som da palavra, sem
para que os termos léptons, quarks e bósons mediadores, entre sua grafia, que poderia ser kwork. Então, em uma das minhas olha-
outros, passem a fazer parte do vocabulário básico e possibilite delas ocasionais em Finnegans Wake, de James Joyce, encontrei a
uma melhor compreensão deste texto. palavra quark na frase Three quarks for Muster Mark!... Como quark,
2
O próton é um férmion pois seu spin é 1/2. No entanto ele não é um que significa, entre outras coisas, o pio da gaivota, tinha a intenção
férmion fundamental, pois é constituído de partículas ainda menores clara de rimar com Mark, assim como bark e outras palavras
chamadas quarks. semelhantes, eu tinha encontrado uma desculpa para pronunciá-
3
O termo fóton foi proposto por Gilbert N. Lewis em 1926, onze anos la como kwork. ... De qualquer modo, o número 3 ajusta-se perfei-
depois de Einstein ter resolvido o efeito fotoelétrico, em uma carta tamente ao modo pelo qual os quarks ocorrem na natureza” (O
ao editor da revista Nature: “(...) Portanto eu tomo a liberdade de Quark e o Jaguar (Rocco, São Paulo, 1994), p. 194.
propor para esse átomo novo hipotético, que não é luz, mas 6
Veja mapa conceitual para interações fundamentais em Moreira (2003).

44 O Discreto Charme das Partículas Elementares Física na Escola, v. 6, n. 1, 2005


A
○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○
física contemporânea descreve atômicos instáveis decaem e emitem José Abdalla Helayël-Neto
os fenômenos naturais em partículas. Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas
termos de quatro interações Cada um destes campos de força (CBPF/MCT) e Grupo de Física Teórica
fundamentais que, para efeitos de é descrito por uma teoria. A força José Leite Lopes (GFT - JLL)
compreensão em um contexto mais gravitacional, em sua escala macros- e-mail: helayel@cbpf.br
○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○
próximo da física newtoniana, po- cópica, é descrita pela mecânica new-
demos pensar como sendo descritas toniana, sempre que as velocidades
por campos de forças. A força gravi- envolvidas forem baixas se compa-
tacional e a eletromagnética são as radas à velocidade da luz; ainda em
interações fundamentais que se fazem escala macroscópica, e mesmo cosmo-
sentir no mundo macroscópico, inclu- lógica, mas no regime em que fenô-
sive em escala humana. As outras menos relativísticos começam a
duas, a força nuclear forte e a força operar, a descrição do campo gravita-
nuclear fraca, não se revelam em cional fica a cargo da teoria da relati-
escala macroscópica. Aparecem ape- vidade geral. A descrição microscópica
nas em escala subatômica - na verda- da gravitação, que constitui o que se
de, como o nome indica, nas escalas chama na literatura de gravitação
nuclear e subnuclear, portanto a dis- quântica, é um campo de investigação
tâncias tão pequenas ou ainda meno- com várias questões ainda em aberto.
res que o décimo do trilionésimo do De fato, abordagens mais recentes
centímetro, o que corresponde ao cen- como a das teorias de Supercordas são
tésimo de milésimo da escala atômica novos encaminhamentos no sentido
ou à milionésima parte da nanoescala. de, entre outras questões, resolver os
A força gravitacional é a respon- problemas da gravitação quântica.
sável pelos movi- Já a eletrodi-
Quatro interações
mentos planetários nâmica quântica
fundamentais descrevem
e pela organização descreve os fenôme-
todos os fenômenos naturais
da estrutura em nos que envolvem a
que observamos. Duas são
larga escala de nos- força eletromagné-
observáveis no mundo
so Universo. A for- tica. Foi desenvol-
macroscópico (gravitacional
ça eletromagnética vida a partir do
e a eletromagnética) e duas
é a interação que re- início da década de
apenas em escala
sponde pela forma- 1940 e ajudou a en-
subatômica (nuclear forte e
ção dos átomos, tender o mundo das
nuclear fraca)
pelas ligações mole- chamadas partícu-
culares e pelos processos biológicos las elementares - ou seja, partículas
fundamentais, por exemplo. Já a for- ‘indivisíveis’. Trabalhos publicados
ça nuclear forte responde pela coesão entre 1961 e 1968 ajudaram a formu- Neste artigo, procura-se ressaltar e elucidar o
dos prótons e dos nêutrons no inte- lar a teoria que unificou tanto os fenô- papel central das simetrias na construção de
rior dos núcleos atômicos e pela li- menos eletromagnéticos quanto modelos e teorias para as interações fundamen-
gação dos quarks no interior dos aqueles regidos pela força nuclear tais. neste cenário, introduz-se a supersimetria,
discute-se o seu conceito, apresentam-se as suas
hádrons; finalmente, a interação nu- fraca. A teoria eletrofraca ou o Modelo conseqüências e se esclarece o seu papel primor-
clear fraca é a responsável pelos de Salam-Weinberg-Glashow - como dial no programa de unificação dos campos de
processos radioativos, em que núcleos ficou conhecido - mostrou, portanto, força da natureza.

Física na Escola, v. 6, n. 1, 2005 Supersimetria 45


que essas duas forças, apesar de se nos da-se na estrutura imposta pelo gru- mesmo grupo de partículas degene-
apresentarem com características po SU(2), que responde pelo chamado radas em massa, ou que, caso venham
marcadamente distintas, têm uma isospin fraco; a QCD é formulada em a ter massas muito próximas, que
origem comum, sendo possível pro- termos do grupo SU(3), que descreve esta diferença possa ser reproduzida
por para elas um cenário de unificação a carga de cor e, finalmente, o grupo em termos de um mecanismo de
que ilustra como ambas se separam subliminar à gravitação é o SO(1,3), violação da Supersimetria. Em um
no regime da natureza em que faze- conhecido como o grupo de Lorentz, mundo regulado pelas leis da Super-
mos as nossas observações. associado a uma grandeza intrínseca simetria, a cada bóson de uma certa
A cromodinâmica quântica (QCD) das partículas elementares, a que nos massa corresponderia um férmion
é a teoria física que incorpora o co- referimos como spin. com a mesma massa. Não é esta a si-
nhecimento experimental e a fenome- O conceito de simetria e a estru- tuação que encontramos no mundo
nologia das interações nucleares tura algébrica a ela correspondente a nós acessível das partículas verda-
fortes; a sua formulação ficou estabe- organiza as leis de conservação asso- deiramente elementares. Mas a idéia
lecida em 1973, com os trabalhos de ciadas a um dado tipo de interação, é que isto deva ocorrer em uma escala
Gross e Wilczek, e independente- sistematiza a classificação das partí- de altíssimas energias, ainda muito
mente, de Politzer, o que valeu a estes culas e dos estados físicos da teoria afastadas do regime de energia a que
três autores o Prêmio Nobel de Física em termos de especificações bem pre- temos acesso experimental.
de 2004. Esta é uma teoria que ainda cisas - os chamados números quân- A partir da premissa de que existe
ocupa uma parte considerável da ticos - e estabelece mecanismos para um princípio de simetria segundo o
comunidade dos teóricos e apresenta a compreensão das relações existentes qual bósons e férmions possam ser
desafios estimulantes a serem escla- entre as massas e cargas das partículas degenerados em massa é que se de-
recidos, como por exemplo a resolução envolvidas na interação considerada. senvolveu fortemente a Supersimetria
do problema do confinamento dos Entretanto, estas relações de massa na comunidade da física teórica de
quarks e glúons no interior dos há- envolvem exclusivamente bósons altas energias; em 1975, já eram
drons, o desenvolvimento de técnicas (partículas de spin inteiro) ou férmi- conhecidas as ditas extensões supersi-
matemáticas e computacionais para ons (partículas com spin semi-inteiro métricas da eletrodinâmica quântica
os chamados cálculos não-perturba- e que obedecem ao chamado Princípio e das teorias de Yang-Mills, em cujo
tivos e a compreensão da teoria in- da Exclusão de Pauli); as simetrias contexto são descritas as interações
cluindo efeitos de temperatura finita, usuais não inter-relacionam, contudo, nucleares fortes e fracas. Em 1976,
a fim de compreender o seu rico dia- os setores bosônico e fermiônico. É conseguiu-se chegar à formulação su-
grama de fases. exatamente neste ponto, a comparti- persimétrica da gravitação, em uma
Neste cenário das quatro intera- mentação bóson-férmion, que a teoria denominada Supergravidade,
ções fundamentais devidamente orga- Supersimetria faz a sua entrada na que trouxe uma compreensão mais
nizadas em termos de teorias micros- cena das interações fundamentais. aprofundada de como deve ser a inte-
cópicas, que incorporam tanto as leis E, muito interessante também, é ração gravitacional no mundo mi-
do mundo quântico quanto a teoria se observar que foi exatamente em croscópico.
da relatividade especial, percebe-se que 1973, quando as teorias específicas Em todas estas teorias, a idéia de
o conceito-chave para a formulação para cada interação ficaram estabe- que a interação seja mediada por um
das mesmas é o conceito de simetria, lecidas, que se inaugurou a era da bóson intermediário fica, agora com
e, ao lançar mão da idéia de simetria, Supersimetria como conceito funda- a Supersimetria, acrescida da presença
as teorias de Yang-Mills, propostas em mental no projeto de construção de de férmions parceiros dos bósons
1954, estabelecem o referencial teórico uma teoria de unificação dos quatro mediadores, também conhecidos
para a formulação de todas as teorias campos de força da nature-
acima mencionadas. Do ponto de vista za, tendo o propósito, inclu-
matemático, cada interação tem asso- sive, de viabilizar um
ciado a si um grupo de simetria, ambiente teórico para a
estrutura matemática que obedece a consolidação de uma teoria
um conjunto de regras bem específi- quântica para a gravitação.
cas; no que diz respeito às caracterís- A Supersimetria coloca
ticas de cada campo de força, o grupo férmions e bósons no mes-
de simetria organiza e sistematiza mo patamar, e, na proposta
grandezas de natureza física como as de ser uma simetria do es-
cargas e as correntes envolvidas na pectro de partículas físicas
interação. Os fenômenos eletromag- (entretanto, é preciso deixar
néticos são descritos em termos de um claro que ainda não foi
grupo de simetria designado por U(1), detectada experimentalmen-
associado à carga elétrica; a fenome- te), propõe que bósons e fér- Visão artística dos eventos dentro de uma câmara de
nologia das interações fracas acomo- mions possam figurar no bolhas.

46 Supersimetria Física na Escola, v. 6, n. 1, 2005


tes iniciais e que, com o resfriamento figurou, por certo tempo na litera-
do mesmo, esta simetria entre bósons tura, como o paradigma da teoria
e férmions tenha sido quebrada (exis- mais propícia para a unificação das
tem mecanismos específicos e inde- interações fundamentais.
pendentes para se implementar a A segunda fase, iniciada em 1985,
violação da Supersimetria) de tal já nos apresenta a Supersimetria em
forma que, em seu regime atual, as uma outra perspectiva, colocando-a
partículas introduzidas pela Supersi- na qualidade de um ingrediente físico
metria no espectro físico tenham suas e matemático necessário para a cons-
massas em uma escala acima da escala trução das teorias de Supercordas -
acessível aos experimentos atuais de nesta visão, genuínas teorias funda-
altas energias. Isto significa que os mentais - as quais, se espera, possam
“inos” devem estar todos localizados propiciar o cenário que viabilize o pro-
na escala do TeV, ou seja, uma ordem grama de unificação, incorporando o
de grandeza acima da escala fixada setor gravitacional, descrito, neste no-
para a separação das interações fra- vo panorama, por uma teoria quânti-
cas dos setores eletromagnético e for- ca consistente para a gravitação. A
te, o que ocorre na faixa das centenas Supersimetria foi, assim, definitiva-
de GeV. Apenas para efeito de referên- mente incorporada à física de partí-
cia, a energia de repouso do próton é culas e vem sendo, de forma crescente,
de 0.938 GeV. aplicada também a outros campos da
A Supersimetria também tocou Física, como a física nuclear, a física
A supersimetria, em sua proposta de
unificar férmions e bósons, traz natural- questões teóricas muito relevantes, da matéria condensada e, até mesmo,
mente consigo uma descrição do campo como o atenuamento das divergências a alguns sistemas biofísicos. Seria bas-
gravitacional, e sua versão específica para (quantidades infinitas) no regime tante oportuno ainda mencionar que
o mesmo é a supergravidade, onde tempo ultravioleta (região de altíssimas ener- sistemas quanto-mecânicos muito
e espaço se unificam em um cenário gias) das teorias quânticas de cam- simples, como aqueles constituídos
espaço-temporal mais amplo, o chamado pos, essenciais para a descrição das por partículas, carregadas ou neutras,
superespaço. interações fundamentais, e culminou e sujeitas a certas configurações de
com uma teoria de gravitação com campo magnético externo, exibem
como bósons de gauge. No caso da mais possibilidades de consistência do características de uma supersimetria
eletrodinâmica, o fóton é acompanha- que a gravitação quântica tradicional; que se revela como uma simetria di-
do do férmion neutro denominado além desta notável realização, a nâmica. Esta é uma indicação de como
fotino; no contexto das interações fra- Supersimetria possibilitou a formula- a Supersimetria possa ser subjacente
cas, os bósons carregados W e o bóson ção da primeira classe de teorias quân- a interessantes sistemas quânticos
neutro Z são acompanhados dos fér- ticas de Yang-Mills livres de qualquer realísticos. Finalmente, com a entrada
mions chamados W-inos e Z-ino. Os tipo de divergência ultravioleta, con- em operação do large hadron collider
parceiros supersimétricos dos glúons cretizando uma grande expectativa de (o LHC), a partir de 2007-2008,
da QCD são conhecidos como gluinos Dirac, que sempre sustentava que espera-se dispor de recursos experi-
e, como parceiro do gráviton, partí- uma teoria quântica viável deveria ser mentais suficientes para a busca e a
cula de massa nula e spin -2 (o quan- absolutamente finita. Também, na identificação de partículas supersimé-
tum da interação gravitacional) sua busca por uma teoria de unifica- tricas (o que seria um teste direto da
aparece o gravitino, férmion eletrica- ção dos diferentes campos de força, a Supersimetria) e de outras conseqüên-
mente neutro com spin -3/2. Ne- Supersimetria resolve alguns proble- cias indiretas da presença da Supersi-
nhum destes parceiros supersimétri- mas fundamentais de consistência que metria no mundo físico, reforçando
cos é degenerado em massa com o bó- o programa usual de unificação en- o seu marcante papel na formulação
son que acompanha; por exemplo, o frenta. das teorias fundamentais para a des-
fotino e o gravitino não são partículas Os dez primeiros anos de desen- crição dos campos de força da natu-
de massa de repouso nula, como o volvimentos em Supersimetria (1974- reza.
fóton e o gráviton. 1984) foram marcados pela incorpo-
Isto impõe que a maneira de se ração desta simetria na física de Saiba mais sobre
introduzir a Supersimetria nas teorias partículas, no programa de unificação supersimetria
de interações fundamentais, de forma e no projeto de construção de uma
http://web.mit.edu/afs/athena.mit.edu/
compatível com a realidade experi- teoria matematicamente consistente user/r/e/redingtn/www/netadv/
mental de que dispomos, é através dos para a gravitação. Vários modelos de ssym.html
chamados mecanismos de quebra. Supergravidade foram propostos e a http://www.supersymmetry.com/
http://www1.imperial.ac.uk
Propõe-se que a Supersimetria tenha célebre Supergravidade- N = 8, com
http://www.ocf.berkeley.edu
operado no Universo em seus instan- uma série de mecanismos agregados,

Física na Escola, v. 6, n. 1, 2005 Supersimetria 47


A
○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

Rita M.C. de Almeida Ciência, bem antes da nos avanços da Ciência como um to-
Instituto de Física, Universidade Complexidade, representou do. Quais as condições sociais e mate-
Federal do Rio Grande do Sul, um avanço significativo para riais que possibilitaram a vitória do
Porto Alegre, RS a humanidade. Isto porque podemos Iluminismo é uma questão longe de
e-mail: rita@if.ufrgs.br pensar a Ciência como o mais eficiente estar fechada, mas que um mínimo
○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○
método de se obter conhecimento. de liberdade de pensamento e expres-
Antes do método científico, intro- são foram necessárias, está fora de
duzido por Galileu (1564-1642), en- cogitação [1].
tre os critérios para aceitação da vali- Como oposto ao método científico
dade de uma teoria, hipótese ou supo- de obtenção de conhecimento, pode-
sição, estava o critério da Autoridade, mos encontrar formas diversas em
segundo o qual a teoria deveria ou não que metáforas não justificadas pro-
ser aceita dependendo de quem a pro- põem algumas maneiras de como sis-
punha ou defendia. Resumidamente, temas naturais ou todo o Universo
Galileu propôs que, deixando de lado funcionam. Algumas destas explica-
o critério da Autoridade, se fosse ções não são mais aceitas hoje em dia
indagar diretamente à Natureza se a devido à divulgação de resultados de
teoria era correta ou não. Em outras investigações científicas e tecnológi-
palavras, que se fizessem experimen- cas. Por exemplo, após as fotografias
tos para verificar a veracidade das tiradas via satélite, poucas pessoas po-
previsões da teoria. E propôs um deriam aceitar um modelo da Terra
método pelo qual estes experimentos plana. Após a descoberta dos fósseis
fossem conclusivos e repetíveis por de dinossauros e da datação destes
outros investigadores. Isso soa mais como tendo vivido há várias dezenas
como uma questão de milhões anos
de bom senso do Galileu propôs que, atrás, fica mais difí-
que como uma re- deixando de lado o critério cil acreditar que lite-
volução no pensa- da Autoridade, se fosse ralmente a Terra e o
mento científico. indagar diretamente à Universo tenham
No entanto, esse Natureza se a teoria era sido criados há ape-
bom senso punha correta ou não. Em outras nas pouco mais que
em cheque autori- palavras, que se fizessem 6 mil anos.
dades da época, experimentos para verificar A Ciência, como
Durante um longo período, a Ciência avançou
como a Igreja Cató- a veracidade das previsões se desenvolveu até
modelando sistemas naturais que podem ser da teoria
descritos com poucas variáveis ou propondo lica. E incitava pen- meados do século
descrições - mas não explicações - para fenô- samento indepen- XX, conseguiu ex-
menos mais complexos. Neste artigo discuti- dente, criatividade, críticas, tudo plicar muitos fenômenos que hoje
mos como a ampla disseminação de recursos
numéricos poderosos através de computadores
aquilo que leva à rebeldia. poderiam ser descritos como não
pessoais possibilitou o desenvolvimento e in- No final da estória, o método complexos, propondo modelos mate-
vestigação de modelos matemáticos através dos científico prevaleceu no ocidente máticos analiticamente tratáveis.
quais é possível modelar fenômenos naturais apesar dos contras e vimos o Ilumi- Fenômenos como organismos vivos,
onde i) o detalhe determina a evolução do sis-
tema, tornando imprescindível a descrição do
nismo florescer, resultando em desen- ecossistemas ou o funcionamento da
sistema através de muitas variáveis e ii) onde volvimento científico e tecnológico mente humana revelaram-se muito
indeterminismo aparente pode ser modelado. refletidos nas revoluções industriais e complexos para que os tratemos da

48 A Ciência da Complexidade Física na Escola, v. 6, n. 1, 2005


mesma maneira. Eles apresentam não é uma Ciência Natural, pode gerar
qualidades como não linearidade, de- novas fronteiras, como por exemplo
pendência crítica das condições a geometria fractal [3].
iniciais, amplificação por retro-ali-
mentação, etc., que tornam a solução
O complexo vs. o simples:
analítica muito difícil, senão impos- Maneiras de comprimir a
sível. Na verdade, certas qualidades informação
globais destes sistemas, como a depen- Uma maneira possível de se
dência forte nos detalhes de sua histó- apresentar a Ciência é considerar que
ria, ou a imprevisibilidade operacional a Natureza nos fornece uma infini-
do seu comportamento, levaram dade de dados através de nossas per-
muitos pensadores a concluir que, cepções, com ou sem o auxílio de Figura 1. Gráfico representando as
nesses casos, uma explicação do seu aparelhos de medida, os quais são medidas conjuntas das varáveis Y e X
comportamento através de uma teo- classificados e então são extraídas
ria geral seria impossível e tudo o que previsões. A priori, não temos como temos um valor de Y. Contamos com
se poderia fazer seriam classificações ter certeza de que os acontecimentos uma lista, uma tabela de valores de X
taxonômicas. Aristóteles dizia que “a que se sucedem diante de nós estejam e Y associados. Como os possíveis
Ciência termina onde começa a natu- de alguma forma correlacionados. No valores de X são infinitos, precisamos
reza”. entanto, depois de haver deixado cair de uma tabela infinita! Mas existe
Assim, durante um largo período várias vezes o bico no chão, mesmo alguma regularidade no gráfico
de tempo, sistemas complexos, que um bebê chega à conclusão de que, apresentado acima; podemos aproxi-
apresentam diferenças qualitativas em quando o bico é solto, ele cai. Assim, madamente descrever os pontos como
relação àqueles sistemas que são o ser humano está dotado com esta pertencendo a uma reta (Figura 2).
solúveis analiticamente, permanece- capacidade de inferir leis de causali- A vantagem é que retas podem ser
ram sem uma modelação matemática dade a partir de exemplos repetidos descritas por equações com duas
adequada. Na falta disso, metáforas de fenômenos naturais. O método constantes:
foram tentadas e algumas delas pa- científico consiste em uma maneira
Y= a X + b (1)
reciam explicar melhor tais fenôme- eficiente de testar a natureza para
nos. Explicações mágicas da Natureza verificar se as inferências, as hipóteses A partir do gráfico, pode-se en-
em que holismos, propósitos e consci- levantadas, são corretas e se suas contrar os valores de a e b. Tendo estes
ências bem ou mal intencionadas são conseqüências (previsões) se confir- valores, a partir de qualquer valor de
introduzidos, foram apresentadas co- mam. X, pode-se então obter Y. Se o modelo
mo mais eficientes na explicação da Quando uma teoria é aceita, isto estiver correto, não precisamos mais
Natureza. Talvez naquela data assim significa que nós podemos prever o realizar o experimento para todos os
o parecessem. Em todo o caso, elas resultado de um experimento antes de X para obter o Y correspondente, basta
nunca passaram pelo teste de uma ve- realizá-lo e, se a nossa fé no modelo é usarmos a Eq. (1). Toda a informação
rificação mais rigorosa [2]. forte, nem precisamos realizar o contida na lista infinita fica agora
Hoje, com o advento de compu- experimento. Ou então, até arrisca- comprimida nos valores das duas
tadores suficientemente rápidos, tais mos a nossa vida apostando no resul- constantes a e b, mais o conhecimento
sistemas já podem ser modelados, tado do modelo, como o fazem as que estes pontos são modelados por
pelos menos em suas formas mais pessoas que, por exemplo, andam de uma reta. O teste para este modelo
simples, e muitos resultados têm sido avião. Isto necessariamente implica seria então comparar a predição do
obtidos. O surpreendente é que as que a informação foi comprimida. valor de Y para um X ainda não
bases científicas são as mesmas, isto Como um exemplo concreto dessa
é, nenhuma lei da Física foi desrespei- compressão da informação, considere
tada, reescrita ou reinterpretada. O que estamos realizando um experi-
que aconteceu é que equações que já mento em que entramos com um
haviam sido propostas estão sendo valor X de uma quantidade qualquer
agora resolvidas e suas soluções apre- (por exemplo, a massa de um corpo)
sentam resultados inesperados. E, e obtemos o valor de uma quantidade
ainda, tais soluções incentivaram no- Y (por exemplo, o peso do corpo). Os
vas descrições, possibilitaram novos dados poderiam ser resumidos pela
pontos de vista, que, por sua vez, ge- Figura 1.
raram novos resultados. Na realidade, Se não for feita nenhuma inferên-
a Ciência da Complexidade não é uma cia sobre o fenômeno que estamos
nova Ciência, mas sim novos resul- estudando, um novo experimento Figura 2. Gráfico onde uma reta é
tados para a mesma Ciência Natural. deve ser realizado para qualquer novo proposta como um modelo para descrever
Por outro lado a Matemática sim, que valor de X. E para cada valor de X, a correlação entre as variáveis Y e X.

Física na Escola, v. 6, n. 1, 2005 A Ciência da Complexidade 49


experimentado com o resultado expe- mente. E à medida que o tempo vai No que segue mostraremos alguns
rimental (observe que uma teoria passando, cada vez mais são propos- exemplos em que equações simples
pode ser refutada por uma predição tas novas formas de se olhar para a podem gerar soluções complicadas.
errada, mas uma predição correta não Natureza, novas maneiras de se
Exemplo 1: A equação
assegura que as futuras também o modelar, originárias de progressos na
serão). Matemática, e novas ferramentas de logística e o caos determinista
As teorias (ou modelos) da Natu- trabalho, viabilizadas pelo desenvol- O caos determinista é uma impor-
reza nunca são exatas. São sempre vimento de computadores pessoais. tante aquisição para a ‘Biblioteca de
aproximações em que alguns fatores Assim, as informações contidas nas Modelos Analisáveis’, onde estariam
foram simplificados ou simplesmente observações da Natureza são cada vez todos os modelos matemáticos pos-
desprezados. Se os efeitos destes fato- mais comprimidas em um conjunto síveis que os modeladores poderiam
res forem pequenos, dentro de uma (pequeno) de parâmetros, mais a es- utilizar para descrever os sistemas na-
margem de erro previamente estipu- pecificação do tipo de sistema dinâ- turais. Isto ocorre porque estes mo-
lada como aceitável, o modelo ainda mico que se está considerando. delos resolvem um conflito antigo pa-
funciona. Por exemplo, na Figura 2, O que possibilitou a modelação de ra os cientistas: existem sistemas
os pontos não caem exatamente em sistemas mais complicados foi a am- naturais que são modelados por equa-
cima da reta, mas ainda assim a reta pliação drástica da ‘biblioteca’ de dife- ções que são essencialmente determi-
‘modela’ o comportamento destes rentes sistemas di- nistas, mas que
pontos. Outra maneira de se modelar nâmicos analisáveis A Ciência está sempre vêm frustrando to-
seria procurar outra curva que pas- disponíveis. Anali- procurando uma maneira da a tentativa de se
sasse pelos pontos experimentais. As- sáveis significa que matemática de comprimir a fazer previsões cor-
sim, o modelo destes pontos seria o de uma maneira ou informação retas sobre o seu
conjunto de parâmetros necessários outra pode-se re- comportamento
para determinar a curva, mais a solver estes sistemas dinâmicos (que em tempos mais longos. Um exemplo
especificação da curva (reta, parábola, são geralmente um conjunto de equa- é o clima.
etc.). ções matemáticas) e classificar suas O que as soluções destes sistemas
Este foi um exemplo simples. A soluções. E são estas soluções que po- matemáticos que descrevem caos
Ciência está sempre procurando uma dem apresentar características surpre- determinista apresentam é uma
maneira matemática de comprimir a endentes, como fractalidade, depen- dependência crítica nas condições ini-
informação. Os fenômenos naturais dência crítica das condições iniciais ou ciais. Isto significa o seguinte: supo-
podem ser muito complicados e efeitos não lineares, isto é, pequenas nha que estamos observando um
sempre fica a dúvida se são ou não mudanças nos parâmetros das equa- sistema em um dado instante, por
passíveis de uma modelação, isto é, ções provocando grandes mudanças exemplo, uma pequena partícula que
se o número de constantes necessárias nas soluções. se locomove no espaço. Esta partícula
para encontrar a descrição matemá- Essas soluções, obtidas para siste- descreve uma trajetória em tempos
tica de um dado fenômeno não seria mas dinâmicos determinados por subseqüentes. Suponha que possamos
tão extensa quanto a lista dos dados poucos parâmetros, podem ser bem repetir exatamente a experiência, in-
de entrada e resultados experimental- complicadas. Este é um ponto interes- clusive a ação do meio externo sobre
mente obtidos. Por outro lado, poderia sante para a Ciência. Isto significa que a partícula, mas dessa vez deslocamos
o número destes por trás de um um pouquinho do ponto inicial. Tão
As teorias da Natureza
parâmetros ser re- conjunto complica- pouquinho que só pudéssemos notar
nunca são exatas. São
duzido se uma cur- do de dados, pode a diferença com a ajuda de uma lupa.
sempre aproximações em
va mais adequada haver um sistema Duas coisas podem acontecer: i) a
que alguns fatores foram
fosse considerada? dinâmico que é de- segunda trajetória é quase igual à
simplificados ou
Quais tipos de cur- terminado por pou- primeira, e somente com uma lupa
simplesmente desprezados.
vas estão disponí- cos parâmetros - poderíamos notar a diferença das duas
Se os efeitos destes fatores
veis para o modela- podemos modelar para qualquer tempo, ou ii) a segunda
forem pequenos, dentro de
dor? Na prática não sistemas compli- trajetória fica notavelmente diferente
uma margem de erro
são somente cur- cados! Assim, hoje da primeira. Neste caso, um observa-
previamente estipulada
vas, mas, de uma em dia, sistemas dor sem lupa poderia chegar à con-
como aceitável, o modelo
forma mais geral, que antes eram pre- clusão que coisas diferentes podem
ainda funciona
sistemas dinâmicos ferencialmente des- acontecer para uma situação inicial
(receitas de como gerar as curvas) é critos (equivalente à lista de entradas indiferenciável e, portanto, não se
quem são propostos como modelos. e saídas) passaram a ser modelados. pode prever a trajetória a partir da
Este ponto, se a Natureza é mode- Freqüentes exemplos são encontrados condição inicial. Isto é indetermi-
lável ou não, é muito importante para entre sistemas biológicos e sociais: nismo. Por outro lado, para um obser-
a Ciência. Diferentes disciplinas genética de populações, o problema vador poder prever qual a trajetória
discutem-no mais ou menos intensa- predador-presa, teoria de jogos, etc. seguida pela partícula, ele tem que ser

50 A Ciência da Complexidade Física na Escola, v. 6, n. 1, 2005


capaz de distinguir as duas posições mos um valor inicial X0, calcu-
iniciais, isto é, tem que ser capaz de lamos X1 através da equação
medidas com grande precisão. Na rea- acima, calculamos então X2 a
lidade, para que as trajetórias de um partir de X1 e assim sucessi-
sistema no regime caótico não divir- vamente. Essa operação está re-
jam nunca, é necessário precisão infini- presentada na Figura 4, para
ta. Por exemplo, especificação das dois valores diferentes de λ.
condições iniciais através de números O ponto onde a reta verde
com infinitas casas decimais. O que, deixa o eixo horizontal repre-
na prática, não é possível. Assim, em- senta X0. Seguindo vertical-
bora sistemas caóticos sejam determi- mente até a curva cor de rosa,
nistas em princípio, não podemos encontramos X1, representado
prever comportamentos na prática, pelo valor do eixo vertical neste
porque condições iniciais com precisão ponto. Seguindo horizontal-
infinita podem não ser possíveis. mente até a reta azul, onde
Em todo o caso, o fato de não se Y = X, e então subindo pela ver-
poder descrever com exatidão as traje- tical verde até a curva cor de
tórias não significa que informações rosa novamente, encontramos
úteis não possam ser extraídas das X2. E assim sucessivamente,
soluções. Usualmente estas trajetórias vamos obtendo a trajetória
caóticas são um número bem menor definida por (X0, X1, X2, X3,...). Figura 4. Representação de iterações sucessivas do
do que todas trajetórias que se podem Na figura superior, para peque- mapa logístico (ver texto). A trajetória pode
imaginar, e compartilham algumas nos λ, este processo acaba convergir para um ponto fixo (gráfico superior) ou
características. O que este resultado levando-nos a um ponto fixo então descrever uma trajetória que não converge
nos aponta é que diferentes aspectos, Xfixo, para o qual (gráfico inferior), dependendo do parâmetro l que
que não a trajetória em si, são rele- está associado à altura máxima da curva em rosa.
Xfixo = λ Xfixo (1- Xfixo) (3)
vantes de ser medidos - aqueles co-
tória caótica está contida na informa-
muns às trajetórias caóticas. e portanto Xt + 1 = Xt.
ção que a equação de evolução é o ma-
Talvez o exemplo mais simples de Repetindo este processo para valo-
pa logístico, e nos valores de λ e X0.
um sistema caótico seja o mapa res maiores de λ, depois de muitas ite-
logístico, dado por rações, o sistema pode oscilar entre O conjunto de Mandelbrodt:
dois valores, ou entre quatro valores, Uma estrutura fractal
Xt + 1 = l Xt (1 - Xt), (2)
e, à medida que λ cresce, o período de
para 0 ≤ X ≤ 1. Um exemplo fascinante onde
oscilação vai duplicando até que para
Esta equação significa que toma- um valor crítico λc , o sistema entra estruturas muito complicadas podem
em caos, isto é, não há um ser geradas por uma equação simples
limite definido para Xt → ∞ e o com poucos parâmetros é dado pelo
sistema pula de um valor para conjunto de Mandelbrot. Benoit Man-
outro sem uma lógica aparente. delbrot é um matemático belga que
Este processo está representado inventou a geometria fractal [3].
na gráfico inferior da Figura 4. Para obtermos o conjunto de
Esta equação fornece o Mandelbrot, temos que definir um
modelo mais simples que se mapa de evolução, como na seção an-
tem para o crescimento limi- terior. Com uma diferença: as variá-
tado de populações biológicas. veis são complexas. Isto significa que
Mas o que ela nos ensina é que cada variável é composta de duas par-
uma equação bastante simples tes, uma real e outra imaginária. Tipi-
pode apresentar soluções bas- camente, um número complexo Z é
tante complicadas, no sentido escrito como
que X evolui de um valor para Z=a+bi (4)
outro de uma maneira aparen-
temente aleatória. E que peque- onde a e b são números reais, e i é a
Figura 3. Representação esquemática da dependên-
nas mudanças no valor de X0 raiz quadrada de -1. As 4 operações
cia das condições iniciais. Iniciando de pontos dife-
rentes, mas muito próximos, as trajetórias des-
pode levar a trajetórias que aritméticas podem ser definidas para
critas podem i) continuar próximas, caracterizando divergem - levam a resultados estes números, bem como potenciação
um comportamento regular ou ii) separar-se diferentes. Toda a informação e radiciação. Um ponto interessante é
exponencialmente no tempo, caracterizando um contida na lista infinita de posi- que estes números têm que ser repre-
regime caótico. ções sucessivas de uma traje- sentados por dois valores indepen-

Física na Escola, v. 6, n. 1, 2005 A Ciência da Complexidade 51


dentes e, portanto, localizam-se sobre diferentes regiões da superfície e dar mento dos computadores, muitos
um plano e não sobre uma reta. Cada ‘zooms’ para melhor vermos os deta- outros modelos matemáticos pude-
ponto em um plano, então, pode re- lhes. Na realidade, podemos dar zoom ram ser resolvidos de uma forma ou
presentar um número complexo Z e dentro de zoom, dentro de zoom, sem de outra, e a ‘Biblioteca de Modelos
a distância deste ponto à origem é defi- parar. O nível de detalhes nunca Analisáveis’ aumentou conside-
nida como o módulo de Z. diminui. Esta é a característica mais ravelmente, possibilitando a investi-
Podemos definir a equação de marcante de estruturas fractais, e a gação de sistemas naturais mais com-
iteração chamamos de invariância de escala. plexos. As conseqüências extrapolam
Alguns destes o meio acadêmico,
Zt + 1 = (Zt)2 + C (5) Modelos matemáticos são
exemplos estão nas vivenciado princi-
onde Zt, Zt + 1 e C são números com- Figuras 6 a 8. As propostos não só com o palmente por cien-
plexos. Para construir o conjunto de Figuras 6 e 7, em intuito de reproduzir tistas e estudantes,
Mandelbrot, procedemos da seguinte especial, repetem o experimentos já realizados, porque os resulta-
maneira. Tomamos um valor de C fixo conjunto de Man- mas também de prever dos destes modelos
e iteramos a Eq. (5) a partir de Z0 = 0 delbrot depois de resultados para situações matemáticos têm
+ 0i. Se o módulo de Zt → ∞ permanece várias magnifica- ainda não vivenciadas características que
finito, isto é, não cresce sem limites, ções. Elas próprias não se esperava que
então este valor de C pertence ao também contêm regiões que após pudessem apresentar.
conjunto de Mandelbrot. Varrendo mais magnificações repetirão este Notemos primeiramente o fato de
todos os valores de C, isto é, para todos mesmo padrão. Toda esta riqueza de que sistemas com comportamentos
os valores possíveis para as partes real detalhe está contida na informação de complexos podem ser modelados por
e imaginária de C e pintando de preto que o mapa de iteração é dado pela equações com poucos parâmetros.
os pontos C que pertencem ao con- Eq. (5) e que pontos C que levam de Isto significa que a informação con-
junto de Mandelbrot, obtemos a Figu- Z0 = 0 a Zt → ∞ limitados devem ser tida em comportamentos complexos
ra 5. As diferentes cores fora do núcleo pintados de preto. pode ser comprimida e, também, que
preto relacionam-se com o número de pode ser explicada e não apenas des-
iterações necessárias para Z estar fora Conclusões crita. Novas fronteiras para a Ciên-
da tela. A aquisição de conhecimentos a cia!
Esta já é certamente uma figura partir de dados fornecidos pelo meio Também, vimos que equações
complicada. Porém o grau de detalhe que nos cerca é uma capacidade inata deterministas podem apresentar solu-
na superfície do conjunto de Mandel- do ser humano e certamente foi van- ções não previsíveis na prática. Desse
brot (interface entre o preto e o ver- tajosa para a sobrevivência de nossa modo, modos alternativos de se expli-
melho) é infinita. Podemos escolher espécie. A Ciência moderna trata dos car os resultados, assim como o grau
conhecimentos adquiridos de incerteza nas previsões, devem ser
através de um método eficiente definidos. Isto implica em uma
e seguro e descarta o critério da atitude diferente frente a sistemas
Autoridade. complexos naturais: nem a confiança
Sempre que possível os cega de que podemos fazer alguns
cientistas tentam comprimir a cálculos e então prever o futuro do
informação adquirida em expe- sistema com exatidão, nem a atitude
rimentos em leis matemáticas, nihilista de que nada podemos saber
de forma a descrever e explicar a respeito e portanto não existe
a Natureza. Assim, modelos porque interferirmos na evolução ou
matemáticos são propostos não tentarmos uma explicação para estes
só com o intuito de reproduzir sistemas.
experimentos já realizados, mas Os sistemas simples são a exceção
também de prever resultados na Natureza. Os complexos são a re-
para situações ainda não viven- gra geral. A complexidade aparece
ciadas. Alguns sistemas na quando o grau de interação entre os
Natureza são muito complica- vários componentes do sistema é
Figura 5. Gráfico no plano representando as dos e fornecem dados experi- suficientemente alto para que a
componentes real e imaginária do parâmetro C de mentais que parecem aleatórios análise do sistema em subsistemas
um mapa de Mandelbrot (ver texto). Os pontos
e sem correlação visível. Estas não faça mais sentido. Nos modelos
em preto representam valores de C para os quais
sucessivas iterações do mapa não divergem (vão
características tornaram im- matemáticos isto é reconhecível. E na
ao infinito). As diferentes cores estão associadas possível modelarmos matema- vida real também. Assim, ao ava-
ao número de iterações necessárias para que o ticamente tais sistemas através liar mos situações do dia-a-dia,
resultado do mapa apresente módulo maior que 2 de técnicas existentes antes dos devemos estar alertas para o fato de
(o que garante a divergência). computadores. Com o surgi- que a interconexão de diferentes

52 A Ciência da Complexidade Física na Escola, v. 6, n. 1, 2005


Figura 6. Figura 7.

Figuras 6-8. Conjunto de fractais que apresentam invariância de escala.

aspectos pode não permitir analisá- sociais, como escolas. Pequenas mu- deve ser tomado, pois pequenos des-
los separadamente. danças no ambiente, por exemplo, vios podem acarretar grandes efeitos,
Finalmente, gostaríamos de res- provocam grandes mudanças no tanto para melhor quanto para o pior.
saltar um ponto que não tivemos a aproveitamento e produtividade. Em todo o caso a exigência de otimi-
oportunidade de entrar muito em Assim, o estudo dos sistemas zação de recursos, humanos e mate-
detalhes, que é o caráter não-linear complexos leva-nos à conclusão de riais, a que estamos submetidos atual-
das equações que descrevem sistemas que sim, podemos modelar e tentar mente, não nos permite tomar deci-
complexos. Este fato implica que pe- explicar sistemas complicados como sões relevantes sem uma avaliação da
quenas mudanças nos parâmetros das o clima, ecossistemas e organizações situação tão realista e precisa quanto
equações podem ocasionar grandes sociais, mas que os resultados não po- possível, o que poderia implicar em
mudanças nas soluções. Esta caracte- dem ser previstos sem algum grau de um modelo ou, na pior das hipóteses,
rística é freqüentemente observada em incerteza calculável (que pode ser acei- uma metáfora, baseado em equações
ecossistemas e em organizações tável ou não) e que muito cuidado não-lineares.

Referências F. Capra, A Teia da Vida (Editora Cultrix, São http://scientium.com/drmatrix/ é um


Paulo, 1996). endereço de ciência em geral, desde
Além das referências, listamos outras obras
M. Gleiser, A Dança do Universo (Cia das Letras, Matemática à Biologia e Geologia. Tem
de divulgação científica bastante interessantes
São Paulo, 1997). muitos vínculos interessantes também.
e acessíveis ao leigo interessado, bem como
S.J. Gould, Wonderful Life (Penguim, Londres, http://math.rice.edu/~lanius/frac: é adap-
alguns sítios na internet.
1989). tado para escolas dos níveis Fundamen-
[1] D.S. Landes, A Riqueza e a Pobreza das
Nações (Editora Campus, São Paulo, S. Kauffman, At Home in the Universe (Oxford tal e Médio.
1998). University Press, Oxford, 1995). http://spanky.triumf.ca/www/fractint/
[2] C. Sagan, O Mundo Assombrado pelos M. Novello, O Círculo do Tempo (Editora Cam- fractint.html: pode-se baixar versões
Demônios (Cia das Letras, São Paulo, pus, Rio de Janeiro, 1997). atualizadas do programa Fractint, que
1997). H.-0. Peitgen e P.H. Richter, The Beauty of Frac- gera fractais.
[3] B.B. Mandelbrot, The Fractal Geometry tals (Springer Verlag, Berlin, 1986). http://www.thorsen.priv.no/ser vices/
of Nature (Freeman, São Francisco, I. Prigogine e I. Stengers, A Nova Aliança (Edi- mandelbrot: java applet para o conjun-
1983). tora UnB, Brasília, 1991). to de Mandelbrot.
P. Bak, How Nature Works (Springer-Verlag, C. Sagan, Cosmos (Francisco Alves Editora, Rio www.geocities.com/inthechaos/ esta página
New York, 1996). de Janeiro, 1989). é feita em português.

Física na Escola, v. 6, n. 1, 2005 A Ciência da Complexidade 53


A
○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○
organização dos átomos na da condução de eletricidade pelos
Belita Koiller
Instituto de Física, Universidade formação do estado sólido dos metais. Thomson realizou experimen-
Federal do Rio de Janeiro materiais tem conseqüências tos em um tubo de raios catódicos:
e-mail: bk@if.ufrj.br importantes nas propriedades eletrô- raios emitidos por um filamento
○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○
nicas dos mesmos. O entendimento metálico aquecido semelhante ao de
microscópico da estrutura da matéria uma lâmpada incandescente, e acele-
é relativamente recente. Há séculos rados por uma grade mantida a um
cientistas reconheceram que a matéria potencial inferior ao do filamento
não é um contínuo sucessivamente emissor, demonstrando que estes raios
divisível, mas sim constituída de áto- eram constituidos de partículas (os
mos. Uma das evidências deste conhe- elétrons) de carga negativa. Por sua
cimento foi a publicação, já em 1822, descoberta, Thomson recebeu o Prê-
de um tratado de cristalografia. As mio Nobel de Física em 1906.
formas facetadas dos diferentes cris- Vários modelos atômicos micros-
tais, com planos de lapidação prefe- cópicos se sucederam imediatamente,
renciais, permitiu a classificação dos dos quais citamos i) o de Rutherford
mesmos segundo o posicionamento (1911), consistindo um sistema solar
periódico dos átomos em estruturas em miniatura, com os elétrons orbi-
geométricas regulares chamadas redes tando em torno de um núcleo maci-
cristalinas. ço central; ii) o de de Bohr (1913),
Em 1869, o cientista russo restringindo as órbitas do modelo de
Mendeleev organizou todas as espécies Rutherford a algums poucas segundo
atômicas até então identificadas em critérios de quantização; e iii) o de
uma tabela com linhas em ordem Schrödinger (1925), abandonando a
crescente de massa e na qual
elementos em uma mesma
coluna têm propriedades
químicas semelhantes. Esta
organização dos átomos
constitui a moderna Tabela
Periódica dos Elementos, e
sua concepção por Men-
deleev deu início à química
O início da física moderna pode ser atribuído à
moderna.
descoberta, em 1897, da primeira partícula O início da física moder-
sub-atômica: o elétron. Estudos visando o na pode ser atribuído à iden-
entendimento microscópico do comportamento tificação da primeira partí-
dos elétrons em sólidos abriram novas áreas
da física básica. Abriram ainda a possibilidade
cula sub-atômica: o elétron.
de controle dos elétrons em diferentes materiais, Sua descoberta por J.J.
levando a engenhosas invenções e à fabricação Thomson em 1897 levou
dos aparelhos eletrônicos que tanto impactam imediatamente à sugestão
o nosso dia-a-dia. Neste artigo assinalamos as
principais etapas destes desenvolvimentos bá-
de que os elétrons seriam os
sicos, bem como algumas aplicações e perspec- portadores responsáveis pe- Diferentes tipos de arranjos periódicos de átomos for-
tivas futuras. lo mecanismo microscópico mando estruturas cristalinas.

54 A Arquitetura da Matéria Física na Escola, v. 6, n. 1, 2005


idéia de órbita e adotando a interpre-
tação probabilística da mecânica
quântica. Elétrons em átomos, molé-
culas e sólidos não seguem as leis de
Newton da mecânica clássica, mas as
leis da mecânica microscópica, ou
mecânica quântica. Os trabalhos de
Bohr e de Schrödinger, marcos iniciais
do sucesso da mecânica quântica, fo-
ram também reconhecidos com o Prê-
mio Nobel em 1922 e 1933, respecti-
vamente.
O grafite (à esquerda) é constituido, em escala microscópica, de átomos de carbono
Evidências experimentais concre-
ordenados em estrutura hexagonal. Os mesmos átomos de carbono, ordenados em
tas dos arranjos atômicos periódicos estrutura cúbica, constituem o diamante (à direita).
no estado sólido foram conseguidas
por Davisson e Germer (1927) através ficar os sólidos em qualquer tipo de anti-horário.
de uma técnica de microscopia desen- tabela periódica fracassaria, devido à • A energia dos elétrons tem seus
volvida por eles que utiliza a trans- relevância da disposição espacial dos valores restritos a faixas (ou bandas)
missão de elétrons em vez de luz átomos em redes cristalinas. Um permitidas intercaladas por faixas
através do cristal. Este efeito é possível exemplo bem conhecido é o caso do proibidas. As faixas proibidas deno-
devido ao comportamento ondulató- carbono no estado sólido: se o arranjo minam-se gaps de energia.
rio (quântico) dos elétrons, previsto atômico é cúbico, resulta o diamante, • A cada valor permitido da ener-
por de Broglie, o que permite a fabri- enquanto que se o arranjo é hexago- gia está associado um vetor k e um
cação dos microscópios eletrônicos, nal, resulta o grafite! Em 1955, índice de banda n. O índice de banda in-
aperfeiçoados e utilizados até hoje. Por Bundy e colaboradores realizaram um dica o ordenamento das diferentes
seus trabalhos, de Broglie recebeu o velho sonho dos alquimistas, subme- energias associadas a um dado k: as
Prêmio Nobel em 1929, e Davisson e tendo uma amostra de grafite a energias permitidas são denominadas
Germer em 1937. Outro efeito quân- condições extremas de temperatura e En(k) e o estado do elétron com esta ener-
tico engenhosamente explorado para pressão, transformando-a em dia- gia e spin σ é denotado por |n, k, σ〉.
a fabricação de microscópios podero- mante. Atualmente, várias outras for- • Cada estado |n, k, σ〉 pode estar
sos, neste caso permitindo a visuali- mas do carbono foram identificadas, ocupado por, no máximo, um elétron.
zação em escala atômica, é o Efeito como por exemplo os nanotubos de Esta é a expressão do Princípio da Ex-
Túnel, que consiste na possibilidade carbono. clusão de Pauli, outro fenômeno pura-
de propagação de um elétron através Um dos sucessos iniciais da mecâ- mente quântico.
de regiões inacessí- nica quântica foi a Do ponto de vista dos elétrons, o
veis pelas leis da me- A existência de uma banda explicação por estado fundamental de um sólido,
cânica clássica. Em parcialmente ocupada Bloch, Peierls e correspondente à situação de mais
1981, Binnig e garante o comportamento Wilson, em 1930, baixa energia total (temperatura
Rohrer inventaram o metálico do sólido. Os da razão para a di- T = 0 K), é obtido ocupando sucessi-
microscópio de var- isolantes e semicondutores ferença notável no vamente os estados |n, k, σ〉 em or-
redura por tunela- correspondem à presença transporte de cor- dem crescente de energia, até que
mento (STM), dis- exclusiva de bandas rente elétrica entre todos os elétrons do sólido estejam
positivo que fornece totalmente ocupadas ou metais e não-me- acomodados. Desta forma as bandas
imagens reais da dis- desocupadas tais. As seguintes de energia mais baixa estarão ocupa-
posição atômica em características do das, as de energia mais alta estarão
superfícies de sólidos. Por esta inven- comportamento quântico determi- desocupadas. Eventualmente existirão
ção, estes dois pesquisadores recebe- nam as propriedades de transporte de bandas parcialmente ocupadas; a exis-
ram o Prêmio Nobel em 1986. elétrons em sólidos cristalinos: tência de uma banda parcialmente
De acordo com o comportamento • Os elétrons são partículas carac- ocupada garante o comportamento
no transporte de corrente elétrica, os terizadas pela carga e, massa m (como metálico do sólido.
sólidos podem ser classificados em as da partícula clássica) e spin. O spin Em 1911 foi descoberto um novo
condutores, isolantes ou semicondu- é um fenômeno puramente quântico, estado dos elétrons em condutores
tores. Com relação à tabela periódica vagamente semelhante à rotação de quando resfriados a baixíssimas tem-
de Mendeleev, os condutores tendem um pião. A medida do spin do elétron peraturas: o estado supercondutor.
a ocupar a região à esquerda da tabela, fornece um entre dois valores possí- Seu descobridor, Kamerling Onnes, re-
e os isolantes à direita, ficando os veis: σ = ↑ ou σ = ↓ que correspon- cebeu o Prêmio Nobel de Física em
semicondutores na região de fronteira. dem, na analogia com o pião, à rota- 1913. A supercondutividade se estabe-
Infelizmente, uma tentativa de classi- ção do mesmo no sentido horário ou lece a partir de uma temperatura crí-

Física na Escola, v. 6, n. 1, 2005 A Arquitetura da Matéria 55


tica TC que varia de material para ma- dutor. Na prática, são considerados
terial. Por exemplo, no caso do mercú- semicondutores materiais com Egap até
rio, TC = 4 K, enquanto que TC = 7 K 2 eV.
para o chumbo. O estado supercon- Em 1906, De Forest inventou um
dutor é caracterizado pela resistência dispositivo denominado válvula
elétrica nula do material para tempe- triodo, que é semelhante ao tubo de
raturas abaixo de TC, e não pode ser raios catódicos de Thomson: elétrons
descrito no contexto idividual de cada emitidos por um filamento são
elétron: trata-se de um fenômeno acelerados ou freados pelo potencial
coletivo dos elétrons no ambiente da de uma grade de controle. Neste caso
rede cristalina. Outra característica os elétrons que atravessam a grade
deste estado é a repulsão do supercon- são recolhidos por um dreno, fechan- A válvula apresenta limitações severas: é
dutor por um campo magnético apli- do um circuito elétrico. A ação deste volumosa, frágil, dissipa energia gerando
cado. A supercondutividade continua dispositivo é de controlar uma resposta calor e tem vida útil relativamente curta.
sendo um dos aspectos mais estu- relativamente forte – a corrente co-
dados do comportamento de sólidos, lhida pelo dreno – através de um si- suas propriedades de transporte elé-
tendo a descobera dos “supercondu- nal relativamente fraco – a tensão trico, é denominada dopagem. Através
tores de alta temperatura” em 1987 aplicada à grade. A válvula constitui de diferentes dopantes, é possível
(TC da ordem de 100 K) revigorado o portanto um amplificador de sinal produzir semicondutores onde o
interesse neste fenômeno. elétrico, tendo sido utilizada em vários transporte de corrente é realizado por
Os isolantes e semicondutores cor- aparelhos elétricos como os amplifi- portadores de carga negativa ou posi-
respondem à presença exclusiva de cadores de som e as primeiras televi- tiva, e cuja densidade também pode
bandas totalmente ocupadas ou deso- sões. O primeiro computador eletrô- variar de acordo com a concentração
cupadas. A separação em energia en- nico digital, denominado ENIAC (Elec- dos mesmos. Nas aplicações em dis-
tre o último estado ocupado e o pri- tronic Numerical Integrator and positivos semicondutores, a dopagem
meiro desocupado constitui uma faixa Computer), também utilizava válvu- envolve tipicamente a substituição
proibida, ou gap, caracterizada pela las. As válvulas apresentam limita- aleatória de um para cada milhão de
energia Egap. Se o valor deste gap de ções severas: os feixes de elétrons átomos no semicondutor.
energia for grande comparado às transitam em tubos de vidro que são O controle de sinais elétricos por
energias térmicas disponíveis, resulta volumosos e frágeis, além das altas transistores permite sua aplicação
um comportamento isolante, en- temperaturas requeridas para que os tanto em circuitos amplificadores
quanto que se Egap for da ordem da filamentos metálicos emitam os elé- quanto em circuitos lógicos. No caso
energia térmica no ambiente do trons, gerando forte aquecimento e de operações lógicas, o transistor fun-
sistema (esta energia é Eterm = kB T, dissipação de energia. Outro grave ciona como uma chave, que abre e fe-
kB = 1,38 x 10-5 eV/K é a constante inconveniente é sua curta vida útil, cha um circuito elétrico fornecendo
de Boltzmann e T a temperatura), comparável à de uma lâmpada incan- os bits 0 ou 1 conforme os sinais rece-
obtém-se o comportamento semicon- descente. O enorme sucesso e a rápida bidos. Os chips dos computadores mo-
proliferação de aplicações desta inven- dernos são circuitos integrados (CI),
ção demandou portanto a substitui-
ção das válvulas por dispositivos de
estado sólido: o habitat robusto e na-
tural para os elétrons.
O substituto da válvula triodo de
De Forest foi desenvolvido pelos pes-
quisadores Shockley, Bardeen e
Brattain nos laboratórios da Bell Tele-
phone em 1947. Eles receberam o
Prêmio Nobel de Física em 1956 pela
invenção do transistor. Trata-se de um
dispositivo semicondutor, que se ba-
seia no fato de que a substituição de
uma pequena fração dos átomos de
um material semicondutor, como o
Uma pastilha no estado supercondutor le-
vita acima de uma bobina ao ser repelida
silício, por outra espécie atômica,
pelo campo magnético gerado pela bobina. como o fósforo, aumenta significati-
A supercondutividade é um fenômeno vamente sua condutividade elétrica.
coletivo dos elétrons no ambiente da rede A subsituição de átomos de um semi- O primeiro transistor, protótipo montado
cristalina. condutor por outros, visando alterar em 1947 por Shockley, Bardeen e Brattain.

56 A Arquitetura da Matéria Física na Escola, v. 6, n. 1, 2005


envolvidos nos compo-
Rumo ao futuro: o transistor
nentes semicondutores
em uso exploram as pro- de um elétron
priedades quânticas dos
elétrons, porém os sinais
aplicados e medidos –
tensões e correntes – são
clássicos, semelhantes aos
análogos nas válvulas
que os precederam. Para
bits constituidos de um Um transistor consiste na justaposição
único átomo, os efeitos de camadas de semicondutores com
diferentes tipos de dopagem. A opera-
quânticos se manifestam
ção de cada transistor como uma chave
em todas as etapas do lógica envolve a passagem de cerca de
processamento. A ma- mil elétrons entre a fonte e o dreno.
nipulação controlada de
estados de vários bits
quânticos, ou qbits, é alvo
de intensas pesquisas
atualmente em desen-
volvimento, inclusive no
Brasil. Espera-se que uma
nova geração de com-
Sessenta anos da nossa aventura tecnológica: do Eniac ponentes eletrônicos ope-
(1946), com 17.468 válvulas, 500.000 conexões de solda, re em regime inteira-
30 toneladas de peso abrigadas em 180 m² de área cons- mente quântico, levando
truída, com 5,5 m de altura, 25 m de comprimento aos ao desenvolvimento de
modernos chips com 42 milhões de transistores.
transistores e outros dis-
isto é, fabricados em um único “blo- positivos mais complexos tais como Protótipo de um SET (single electron
co” de silício e contendo dezenas de computadores quânticos. transistor) fabricado por H.W.
milhões de transistores. O primeiro CI A computação quântica pode Schumacher em 1999. O chaveamento
foi fabricado por J. Kilby em 1958, revolucionar a solução de alguns do SET envolve a passagem de um úni-
tendo viabilizado a produção de calcu- tipos de problemas numéricos. co elétron.
ladoras de bolso a partir de 1966. Pela Propostas de computadores quânticos
invenção do CI, Kilby recebeu o Prêmio baseados em semicondutores vêm dispositivos atingir o nível de controle
Nobel de Física no ano 2000. Atual- despertando grande interesse devido individal: átomo-por-átomo. Con-
mente a operação de cada transistor à possibilidade de utilização dos cluimos este trabalho lembrando
como uma chave lógica envolve uma recursos disponíveis associados com sábias palavras a respeito dos átomos:
corrente elétrica produzida por cerca a infra-estrutura tecnológica já
Se, em algum cataclisma, todo o
de 1000 elétrons. Já foi demonstrado existente, bem como pela possibili-
conhecimento científico fosse destrui-
que é possível fabricar um transistor dade de integração com os disposi-
do, e uma única frase passasse para
(SET) cujo chaveamento envolve a tivos convencionais. Tentativas de
a próxima geração de criaturas, que
passagem de um único elétron. nano-fabricação de tais dispositivos
frase conteria mais informação no
O vigoroso crescimento da micro- baseados em silício e arseneto de gálio
menor número de palavras? Acredito
eletrônica é muitas vezes quantificado encontram-se em andamento, porém
que seja a hipótese atômica, o fato de
pela “lei” de Moore, que estabelece que a possibilidade de controle das di-
que todas as coisas são feitas de áto-
o número de componentes em um versas operações necessárias ao fun-
mos - pequenas partículas em movi-
único chip duplica a cada 18 meses. cionamento destes e de outros tipos
mento perpétuo, que se atraem quan-
Embora esta tendência, enunciada em de computadores quânticos perma-
do estão próximas, mas que se repelem
1965, continue verdadeira no início nece um desafio em aberto. Segundo
quando pressionadas entre si. Nesta
do século XXI, fatalmente ela se esgo- Bruce Kane, que formulou em 1998
frase existe uma enorme quantidade
tará quando o tamanho de compo- uma proposta de computador quân-
de informação sobre o mundo, se um
nentes individuais nos chips se apro- tico baseado em silício, as flutuações
pouco de imaginação e pensamento
ximar das dimensões atômicas: este inerentes a semicondutores dopados
forem aplicados.
será o fim da linha para dispositivos limita o desempenho da computação
de Si baseados em sucessivos aprimo- quântica, que poderá só ser acessível R.P. Feynman
ramentos e ajustes das concepções no limite extremo da lei de Moore: The Feynman Lectures
atuais. Os processos eletrônicos quando a engenharia de fabricação de on Physics

Física na Escola, v. 6, n. 1, 2005 A Arquitetura da Matéria 57


○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

Peter A.B. Schulz A bilionésima parte ocorrem em outras escalas de tama-


Instituto de Física, UNICAMP nho. Em outras palavras, não esta-

O
e-mail: pschulz@ifi.unicamp.br prefixo nano, seguido de al- mos falando simplesmente de minia-
○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ guma outra palavra, aparece turização de algo grande para algo
com freqüência cada vez muito pequeno. O tema, embora re-
maior no nosso dia-a-dia. Por en- cente, não pode ser esgotado em um
quanto essa presença dá-se principal- espaço tão pequeno (sem trocadilho)
mente através dos meios de comuni- como o desse artigo. Na medida do
cação (no instante em que estou possível, referências a outros artigos
revisando esse artigo, em janeiro de impressos e, principalmente, artigos
2005, o termo “nanotecnologia” apa- na internet, tentam complementar a
rece 33.400 vezes no Google, apenas história contada aqui [1-2].
em páginas brasileiras). Muitas das
notícias parecem prometer que essa O relógio como exemplo
presença será mais efetiva em algum Um exemplo fantástico de minia-
futuro mais ou menos distante, turização é dado pelos antigos reló-
embora aplicações de “nano-isso” ou gios mecânicos, aqueles que precisa-
“nano-aquilo” já estejam disponíveis vam de corda, lembram-se? Os pri-
e melhorando a nossa qualidade de meiros relógios com engrenagens e
vida. O Ano Internacional da Física em pêndulos ficavam no alto das torres
2005 representa um ótimo pretexto das igrejas medievais e as peças ti-
para olhar com bastante atenção para nham que ser medidas em metros. Al-
essa verdadeira “nano-mania”. Acho guns séculos se passaram e essas peças
que vale a pena até compará-la a uma foram miniaturizadas e os relógios
também verdadeira passaram a ser
“micro-mania”, que Nos primeiros relógios
usados nos pulsos
existia há exata- mecânicos as engrenagens e
das pessoas e as pe-
mente um século, pêndulos eram medidos em
ças passaram a ter
ou seja, por volta do metros. Em alguns séculos
dimensões de milí-
“ano miraculoso” as peças foram miniaturiza-
metros. É uma his-
da Física. das e passaram a ter dimen-
tória fascinante,
O prefixo nano sões de milímetros, mas o
pois estamos falan-
descreve uma ordem princípio físico para medir o
do de uma dimi-
de grandeza, vem do tempo continuou o mesmo
nuição de tamanho
grego e quer dizer essencialmente um de mil vezes! No entanto, o antigo e
bilionésimo de alguma coisa. No caso enorme relógio da torre da igreja é
atual estamos interessados em um essencialmente o mesmo dispositivo
bilionésimo de metro, o nanômetro. de engrenagens e alavancas do relógio
Nanociência e nanotecnologia são, de pulso (à corda, com rubis, etc.). O
A partir da miniaturização, outros vários as- portanto, ciência e tecnologia que princípio físico para medir o tempo
pectos da nanociência e nanotecnologia são acontecem ou são feitas nessa escala continuou o mesmo. Nos relógios a
discutidos. Apesar de característica desse
começo de século, a história da nanociência
de comprimento, mas de maneira quartzo temos uma mudança funda-
comemora também, de certa forma, seu cente- controlável e reprodutível, envolvendo mental no princípio para medir o
nário em 2005. fenômenos que muitas vezes não tempo, que leva a um dispositivo

58 Nanociência e Nanotecnologia Física na Escola, v. 6, n. 1, 2005


muito menor e mais preciso. Estamos nosso tema, ou seja, a eletrônica! Co- dade e velocidade inimagináveis para
falando de um cristal de quartzo de mo era a nossa vida no início do século os antigos “racks” de válvulas. Mas
dimensões de milésimos de milímetro XX? Bem, a invenção do diodo de vál- ainda estamos no micrômetro e não
de comprimento. Diminuímos o dis- vula ocorreu em 1904 - por isso 2005 no nanômetro e, portanto, vale a pena
positivo novamente em mil vezes, pode ser quase considerado o ano voltar ao ano de 1959 e falar de uma
mas o relógio de pulso é para que as internacional da eletrônica também! profética palestra de Richard Feyn-
pessoas possam ver as horas, portan- No alvorecer do século passado podía- man: “Está cheio de espaço lá embai-
to um dispositivo tão pequeno tem mos ler à noite com iluminação elé- xo” (There is plenty of room at the bot-
que ser acoplado a ponteiros e mos- trica. Era possível ir ao cinema, tele- tom), proferida em um encontro da
tradores grandes o suficiente para fonar ou ouvir música em casa com American Physical Society em 29 de de-
serem vistos, resultando em algo do a ajuda dos gramofones. A eletrônica zembro de 1959 [7]. Nessa palestra
mesmo tamanho dos antigos relógios certamente aperfeiçoou todos esses ele abordou a miniaturização de regis-
de pulso, que precisavam de corda. aspectos do nosso cotidiano, mas não tros de memória como letras impres-
Então qual foi a vantagem, além de foi necessária para a criação de todos sas (mas hoje em dia podemos falar
saber as horas com uma precisão esses inventos. Herbert Kroemer, diretamente de bits e suas dimensões).
maior do que a necessária? Simples- prêmio Nobel de Física de 2000, pela Um bit (0 ou 1) é a unidade de infor-
mente eles são muito mais leves e invenção do laser de semicondutores mação binária e um caracter do nosso
baratos e o relógio [6], salientou em sistema de lingüagem precisa de uns
deixou de ser um A invenção do diodo de recente palestra que oito bits para ser representado, mas
objeto exclusivo válvula ocorreu em 1904 - uma tecnologia não vamos arredondar para dez, pois só
para virar brinde por isso 2005 pode ser é criada para sim- falaremos de estimativas. Até o ponto
na compra de san- quase considerado o ano plesmente “fazer anterior a essa frase, esse texto soma
dálias. Mas isso já internacional da eletrônica melhor o que é feito aproximadamente 5.700 caracteres.
é nanociência, ou também! Depois dele a com as tecnologias Quanto espaço pode ocupar essa
melhor, nanotec- invenção do transistor, em já existentes”. E o quantidade de informação? A palestra
nologia? Ainda 1947, e a do circuito que as tecnologias de Feynman pode ser vista como uma
não! Temos que integrado, em 1959, anteriores à eletrô- “resposta especulativa” a essa pergun-
pensar em dimi- propiciaram outros passos nica não foram ca- ta. Hoje em dia um bit gravado em
nuir as dimensões para a miniaturização de pazes de criar? A um CD tem uma dimensão típica de
em outras mil ve- componentes eletrönicos resposta é a comu- 0,5 microm. Portanto os cerca de
zes, além de outras nicação sem fio, o 6000 caracteres são traduzidos em
coisas, mas as potenciais conseqüên- rádio. A transmissão e recepção de da- 60.000 bits que ocupariam uma tri-
cias sobre a sociedade, envolvendo o dos complexos (som e depois imagem)
controle de novos fenômenos físicos, a longas distâncias.
nessa viagem ao muito pequeno é bem
ilustrado por essa breve e leiga digres- A origem da nanociência e
são sobre o relógio [3]. Por outro lado, seu profeta
para ser sincero, essa história do reló- Não demorou muito e a eletrônica
gio atravessou só umas 3 ou 4 ordens seguiu o exemplo dos relógios, ou seja,
de magnitude. O conhecimento a busca da miniaturização. Dois fo-
humano consegue vislumbrar até 39 ram os passos fundamentais para tor-
ordens de grandeza, como ilustrado nar essa miniaturização efetiva: a in-
no tema “Potências de 10” [4]. venção do transistor em 1947 [7] e a
do circuito integrado em 1959. Eram
Sobre a necessidade de novas
novas tecnologias, baseadas em mate-
tecnologias riais semicondutores e não mais em
O exemplo da sofisticação do reló- bulbos de vidro com filamentos. Com
gio é também um motivador para isso foi possível chegar à microele-
uma pergunta importante: para que trônica, também um novo, digamos,
novos paradigmas tecnológicos? No paradigma tecnológico, como o foi a
caso do relógio, a possibilidade de uma eletrônica 50 anos antes. Novamente Luz de nanofios: um nanofio de sílica
medição precisa do tempo tornou devemos nos lembrar que a micro- transporta um feixe de luz em volta de
um cabelo humano. Os nanofios são
possível a navegação (medição de lon- eletrônica não se desenvolveu para fa-
flexíveis e podem ter apenas 50 nanôme-
gitude) e mais recentemente relógios zer melhor o que a “macroeletrônica” tros de diâmetro, cerca de um milésimo
atômicos são necessários nos satélites já fazia e sim para dar origem a algo da espessura de um fio de cabelo (http://
de navegação por GPS [5]. Vamos pen- novo: o processamento em grande vo- www.fas.harvard.edu/home/news_and_
sar em um outro paradigma tecnoló- lume e velocidade de dados e a possi- events/releases/nanowire_
gico, no caso algo mais próximo ao bilidade de transmiti-los em quanti- 12172003.html)

Física na Escola, v. 6, n. 1, 2005 Nanociência e Nanotecnologia 59


desafio passou a ser levado a sério nos de alta resolução. O desenho todo é
últimos 20 anos e é parte importante transferido para um fotograma de 35
do que chamamos de nanociência. O mm x 25 mm, que será a máscara.
porque de que só em 1960 começou- Um traço de um milímetro de espes-
se a pensar em mover nessa direção sura na tela é diminuído de uma escala
tem uma resposta razoavelmente de 100 vezes, ou seja, no fotograma
simples: foi nessa época que foram in- ele terá apenas 10 microns. Bem, já
ventados os circuitos integrados e deu para chegar na microeletrônica,
dispositivos opto-eletrônicos que per- mas ainda não é suficiente. Como
mitiram os primeiros passos nesse ca- fazer desenhos menores? Atualmente
Um nanofio de prata de 50 nm de altura,
minho. são utilizados feixes de elétrons, que
100 nm de largura e 1 microm de com-
primento está conectado a dois reserva- podem ser focalizados em pontos de
O caminho de cima para até 0,05 microm. Essa “caneta” pode
tórios supercondutores constituídos de fil-
mes de alumínio de 400 nm de espessura.
baixo (top-down) ser guiada com grande precisão e gra-
A densidade de estados eletrônicos no fio O problema é como trabalhar nes- var o circuito diretamente sobre o ma-
é medida pelos dois dedos de prata conec- sas dimensões. Uma maneira já tra- terial foto sensível mencionado acima.
tados no meio do caminho. Esse disposi- dicional, chamada de abordagem “de Agora a dimensão característica de
tivo foi fabricado por meio de nanolito- cima para baixo” (top-down), consis- 10 microns foi reduzida 200 vezes e
grafia de feixe eletrônico e evaporação do te em “esculpir” circuitos cada vez chegamos à escala de 50 nanômetros.
material através de máscaras (vide texto)
menores nos chips de silício, por exem- Na verdade, hoje em dia é utilizada a
(http://www-drecam.cea.fr/drecam/
spec/Pres/Quantro/Qsite/gallery/ plo. Uma maneira é por ataque quí- chamada tecnologia de 0,07 microm
nanowire.htm). mico. Receita simples (os detalhes de (dimensão característica de detalhes
protocolo e a “cozinha” são extrema- do circuito integrado) na fabricação
lha de 30.000 micra, ou seja, 3 enor- mente sofisticados): cubra o tablete de microprocessadores. Pode-se dizer
mes centímetros, de comprimento e wafer de silício com um material foto que de certa forma a atual eletrônica
0,5 microm de largura, que corres- sensível que se modifica quimica- já está mais para “nano” do que para
ponde a uma área menor que o pingo mente quando exposto à luz e cubra “micro”.
desse i. Parece impressionante, mas esse material com uma máscara com Vamos especular sobre um dos
ainda pouco ousado para Feynman. o esquema do microcircuito que deve desafios dessa nanoeletrônica. O silício
Afinal o que repre- ser formado no para fins eletrônicos tem cerca de 1018
senta 0,5 microm? Uma caixinha de 0,1 microm chip. Depois ilumine elétrons por centímetro cúbico. Do
Já sabemos que é a de aresta pode ser o conjunto, retire a ponto de vista físico, um bit é uma
aresta de um “cu- carregada por 1000 máscara e “revele” “caixinha” de silício vazia, represen-
bo” gravado em elétrons, para a densidade com um ácido (es- tando o 0, ou carregada de elétrons,
um CD que repre- dada.Diminuindo a aresta pecial), que elimina representando o 1. Uma caixinha de
senta um bit. para 0,01 microm a caixinha apenas o material 0,1 microm de aresta seria carregada
Quantos átomos seria carregada com um foto sensível não por 1000 elétrons, para a densidade
cabem nesse cubo? único elétron! Não é iluminado junto dada. Se diminuirmos a aresta para
São cerca de 10 10 possível diminuirmos mais com o material se- 0,01 microm a caixinha seria carre-
(dez bilhões). Su- do que isso, e já estamos micondutor embai- gada com um único elétron! Não é
pondo que só fos- chegando perto desse limite xo. Pronto: cria- possível diminuirmos mais do que
sem necessários 10 nos “transistores de elétron ram-se canais e isso, e já estamos chegando perto
átomos para regis- único” ligações no silício, desse limite. Aliás, os “transistores de
trar um bit, o pingo que deverão ser pre- elétron único” (single electron transis-
daquele i poderia armazenar 6 x 1012 enchidos com outros materiais. Esse tor) já existem como protótipos expe-
caracteres, um bilhão de vezes mais processo é repetido várias vezes e o rimentais e são utilizados como sen-
do que na estimativa anterior. Imag- “bolo” acaba tendo muitas camadas. sores [10].
ine que até agora esse texto chegou a Uma idéia da complexidade do proces- Apesar de tudo isso ser fantástico,
cerca de 6.500 caracteres: No pingo so de fabricação de um componente devemos ter em mente a profecia de
do i seriamos capazes de guardar a desses é bem descrita por simulações Feynman: quantos átomos de silício
informação contida em um texto 1 disponíveis livremente na internet [9]. existem nesse cubo de 0,01 microm
bilhão de vezes maior que esse! Onde está o nano nessa história? Está de lado? Cerca de 60.000, e se pudés-
Feynman lançou então esse desafio e no tamanho dos detalhes do desenho semos realizar a profecia (registrar
previu que no ano 2000 as pessoas se na máscara. Uma maneira é desenhar um bit em apenas 10 átomos) ainda
perguntariam porque apenas em o circuito em escala gigante em uma poderíamos avançar entre 3 e 4 ordens
1960 a humanidade começou a pen- tela de 3,5 x 2,5 m. Essa tela é de grandeza! Isso, no entanto, é
sar nessa possibilidade. Feynman é enquadrada por uma máquina foto- impossível de cima para baixo. Temos
uma espécie de profeta, pois esse gráfica e fotografada com um filme que ir de baixo para cima.

60 Nanociência e Nanotecnologia Física na Escola, v. 6, n. 1, 2005


cional” tem milhões de se: uns poucos átomos para represen-
componentes, que são tar um bit [18]).
construídos simultanea-
mente. Construir um Uma outra origem: Einstein, os
objeto com essa comple- colóides e as nanopartículas
xidade, movendo uma Partículas suspensas em líqüidos
peça (no caso um átomo) são consideradas coloidais se seu tama-
Artistas quase sempre precisaram de mecenas (cientistas de cada vez torna o pro- nho varia de alguns nanômetros até
também!). Aqui o artista , logo após a descoberta de como cesso extremamente len- centenas de microns. O limite inferior
mover átomos com um microscópio de tunelamento, en- to. Essa tecnologia aproxima-se de dimensões moleculares.
controu uma maneira de retribuir à corporação que lhe parece, por enquanto, O limite superior indica uma situação
deu emprego, quando precisou, e os meios necessários limitada a situações nas na qual as forças externas (como a
para que fosse bem sucedido (http://www.almaden.ibm.
quais alguns protótipos atração gravitacional) passam a deter-
com/vis/stm/atomo.html#stm10).
são necessários, não sen- minar a dinâmica no lugar do movi-
A vereda de baixo para cima do factível para uma “produção em mento Browniano, descrito por Eins-
série”. A aposta para uma “produção tein em um dos artigos do ano
(bottom-up)
em série” aparece no conceito de auto- miraculoso [19]. Essa história é fasci-
Registrar e ler bits em escala de organização. nante e constitui um dos marcos his-
poucos átomos não é possível, como tóricos da nanociência. Uma questão
vimos, na eletrônica “tradicional”. Átomos que se auto-organizam fundamental no início do século XX era
Uma nova tecnologia torna-se neces- Se nos convencemos de que a na- a determinação da carga do elétron,
sária. Essa tecnologia, chamada de nociência teve um profeta, é justo que bem como a determinação precisa do
microscopia de sonda por varredura possamos falar também de um guru número de Avogadro. Os dois proble-
(scanning probe microscopy) passou a da nanotecnologia. Esse papel pode ser mas eram correlacionados: tanto a
ser desenvolvida nos anos 80 do sé- atribuído a K.E. Drexler, autor do livro matéria quanto a carga elétrica têm
culo passado com a invenção do mi- Engenhos da Criação: O advento da Era unidades fundamentais, átomos e elé-
croscópio de tunelamento (prêmio da Nanotecnologia de 1990 [15]. A trons, respectivamente. Esse aspecto
Nobel de 1986) e o posterior desenvol- idéia, audaciosa sem dúvida, baseia- não-contínuo da natureza ainda sofria
vimento do mi- se na possibilidade forte oposição de cientistas importantes
croscópio de força Sabemos há um bom tempo de que os próprios da época: “fazer dos átomos objeto de
atômica [11]. Uma que todas as coisas são “nano objetos” se pesquisa, fosse na Física ou na Química,
ponta extrema- feitas de átomos e agora organizassem e era considerado pelos adeptos de Ernst
mente fina, cons- estamos aprendendo a fazer construíssem os dis- Mach (1838-1916) como uma hipótese
tituída de poucos as coisas a partir dos positivos para os metafísica falsa e até mesmo perigosa”
átomos, pode ser átomos quais as máquinas [19]. Essa corrente de uma física
aproximada, afas- exteriores (como os fenomenológica praticamente caiu por
tada e varrida ao longo de uma super- microscópios) tornaram-se incapazes. terra com a determinação da carga do
fície com precisão de até 0,1 Angstron. A natureza fornece pelo menos dois elétron por Millikan (1868-1953) [19]
É uma das maneiras para se “ver” exemplos muito úteis: os átomos e a medida do número de Avogadro por
átomos individualmente [12], mas o organizam-se em arranjos periódicos J. Perrin (1870-1942) [20], sem falar
que nos interessa principalmente é que (cristais) quase que por si só, desde na descrição do movimento Browniano
essa ponta, sob certas tensões elétri- que algumas condições sejam satis-
cas, é capaz de arrancar um único feitas (não é necessário enfileirá-los
átomo e depois depositá-lo em outro um a um via agente externo), como
ponto da superfície. É, portanto, uma no caso do átomo de carbono. A pro-
ferramenta para manipular átomo a pósito, duas formas de organização
átomo, como um pedreiro consegue dos átomos de carbono foram desco-
fazer com tijolos. Sabemos há um bom bertas nas últimas décadas: o fulereno
tempo que todas as coisas são feitas de e o nanotubo de carbono. São grandes
átomos e agora estamos aprendendo a estrelas da nanociência e mereceriam
fazer as coisas a partir dos átomos [13]. um capítulo à parte. Esse lapso certa-
Esse talvez seja o conceito essencial da mente é sanado pelas notas de aula
nanociência. Existem vários protóti- do Prof. Rodrigo Capaz da UFRJ [16].
pos de nano objetos construídos áto- Um outro exemplo de auto-organi-
mo a átomo e podemos formar toda zação e auto-montagem é o DNA,
uma galeria de imagens com eles [14]. cujas características estão sendo
Problemas? Pelo menos um bem exploradas como opção para uma Outro exemplo de arte com átomos (http:/
grande: um microprocessador “tradi- eletrônica molecular [17] (lembrem- /www.almaden.ibm. com)

Física na Escola, v. 6, n. 1, 2005 Nanociência e Nanotecnologia 61


por Einstein. Estamos falando, por-
tanto, de duas experiências funda-
mentais e que tinham em comum a
necessidade de partículas muito peque-
nas e homogêneas. Vale lembrar que
as gotículas de óleo na experiência de
Millikan tinham um raio médio de 2,8
micra (2800 nm), enquanto as peque-
nas esferas da experiência de Perrin,
apenas 0,2 microm (200 nm!). Esses
estudos fundamentais tornavam mais
acessível o mundo do colóides, que ti-
nha também um guru, o químico
Wolfgang Ostwald (1883-1943), que
escreveu um livro chamado O Mundo
das Dimensões Esquecidas (1914, mas
publicado apenas depois da 1ª Guerra
Mundial). Acreditava-se que a ciência
dos colóides teria grandes aplicações
com promessas para a indústria e para Os cálices de Licurgo, exemplo de “nanoartesanato” do século IV D.C. (http://lilt.ilstu.edu
e http://www.cambridge2000.com).
a Medicina.
É interessante nesse Ano Interna-
cional da Física comparar a ciência dos rugas [24]. de diâmetro [25]! Isso foi provavel-
colóides com a nanociência, que ga- mente obtido por acidente, de modo que
nharam destaques nos extremos Algumas aplicações são mais é um exemplo de “nano artesanato” e
opostos do século XX. Vale lembrar antigas ainda não de tecnologia, que se baseia em
uma vez mais que partículas coloidais O produto mais antigo da nano- protocolos que podem ser reprodu-
são nanopartículas, cujo negócio é tecnologia conhecido é o cálice de Lycur- zidos. Nada impede que o leitor se aven-
estimado em mais de US$ 40 bilhões gus, que remonta ao século IV D.C. e ture um pouco com a nanociência
anuais. E as promessas de aplicações se encontra no museu britânico. Esse usando poucos recursos [26], ou mes-
em Medicina estão se realizando com cálice romano é feito de um vidro que mo muito poucos recursos: basta um
a utilização de nanopartículas mag- parece verde sob luz refletida, mas é lápis e uma folha de papel. Você sabe a
néticas no diagnóstico e tratamento vermelho translúcido sob luz trans- espessura de um traço de lápis sobre o
do câncer [22], entrega inteligente de mitida através dele. Esse efeito óptico é papel? Uma estimativa [27] por me-
remédios no interior do corpo huma- causado por nanopartículas compos- dida de resistência elétrica leva ao incrí-
no [23] e até mesmo cremes contra tas de ouro e prata de apenas 70 nm vel valor de... 17 nm(!)

Referências e Notas [11] http://www.scielo.br/scielo.php? [20] G. Holton, in Subelétrons, Pressupostos e


pid=S0366-69131998000600002 a Polêmica Millikan-Ehrenhaft, editado
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org/id46.htm. [12] Caio Mário Castro de Castilho, Quando e fica.
[2] http://www.comciencia.br/reportagens/ como o Homem começou a “ver” os áto- [21] A. Bebeachibuli, L.H. Libardi e V.S.
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31, 58 (2004).
[5] http://gps.ciagri.usp.br/. [15] http://www.foresight.org/FI/Drexler. [23] U. Capozzoli, O Brasil na era da nano-
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309 (1998).
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21, 264 (1999).
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br/noticias/noticia.php?artigo= suspendierten Teilchen. Ann. Phys. 17 17, (veja o Alice Newcomber ’s physics
010110030603. 549 (1905). project).

62 Nanociência e Nanotecnologia Física na Escola, v. 6, n. 1, 2005


○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○
Introdução tema. Estudos sobre a utilização do Flavia Rezende
F&M e do Biomec no contexto educa- Universidade Federal do Rio de Janeiro

U
ma das linhas de pesquisa de cional a partir de dados coletados por e-mail: frezende@nutes.ufrj.br
alta relevância no campo das testes (lápis e papel) e registros da na- ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

Tecnologias da Informação e vegação possibilitaram identificar Susana de Souza Barros


Comunicação aplicadas ao ensino de estratégias e formas diferenciadas de Universidade Federal do Rio de Janeiro
Ciências é a que propõe o desenvolvi- interação dos usuários com a infor- e-mail: susana@if.ufrj.br
○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○
mento de sistemas hipermídia e o mação disponibilizada no formato
estudo de processos de aprendizagem hipermídia.
a partir de sua utilização. Um projeto O presente trabalho apresenta
de pesquisa2 tendo como parte de seus uma descrição sucinta dos programas
objetivos o desenvolvimento e a pes- desenvolvidos e de alguns resultados
quisa sobre materiais didáticos desta dos estudos realizados, oferecendo as-
natureza, se propôs a produzir mate- sim, um panorama geral sobre o po-
riais didáticos dirigidos às necessidades tencial educacional dos sistemas
de professores e alunos de Física e de hipermídia para o ensino-aprendi-
disciplinas relacionadas à Física, como zagem de ciências.
é o caso da Biomecânica, que se apóia
em conceitos da mecânica para com- Sistemas hipermídia de
preender as atividades físicas. Este aprendizagem
esforço é válido para o ensino no nível Sistemas hipermídia podem ser
médio e para cursos de licenciatura conceituados a partir da relação entre
em Educação Física, que se ressentem os conceitos de hipertexto e multi-
da escassez de materiais didáticos que mídia: a multimídia compreende os
possam contribuir múltiplos meios que
para melhorar o Uma das linhas de pesquisa podem ser usados
nível motivacional de alta relevância no campo na representação de
e cognitivo dos alu- das Tecnologias da uma informação,
nos. Informação e Comunicação como, por exemplo,
No âmbito do é a que propõe o desenvol- texto, imagem, áu-
projeto menciona- vimento de sistemas dio, animação e ví-
do, foram produ- hipermídia e o estudo de deo. Este termo pode
zidos três sistemas processos de aprendizagem se referir a um sis-
hipermídia que a partir de sua utilização tema computacio-
contemplam con- nal ou a outros
teúdos de física e suas relações inter- suportes não informatizados. Por
disciplinares com outras áreas. Um hipertexto, entende-se um sistema
dos sistemas, denominado de Força & computacional que apresenta infor-
Movimento [1], explora conceitos de mação em geral na forma de texto,
mecânica básica, outro, denominado organizada não-seqüencialmente, por
de Biomec [2], integra conteúdos de meio de ligações entre palavras-chave
A hipermídia é uma ferramenta muito poderosa
mecânica, biomecânica e anatomia (vínculos), destacadas em geral pela e deve ser usada no ensino. Discutimos aqui
humana e o terceiro, Energia [3], abor- cor, que permitem a navegação3 do alguns sistemas desenvolvidos e como é a inte-
da diferentes aspectos relativos a este usuário entre nós4 relacionados con- ração dos estudantes com tais sistemas.

Física na Escola, v. 6, n. 1, 2005 Hipermídia e Aprendizagem de Ciências 63


ceitualmente. Assim posto, o conceito namento de grande quantidade de visitas guiadas, disponíveis em algumas
de hipermídia pode ser visto como a informações representadas sob os páginas, com o objetivo de permitir
interseção entre os conceitos de multi- mais diversos meios, permitindo que uma interação mais profunda do aluno
mídia e hipertexto (Figura 1), na me- conteúdos extensos e variados sejam com determinado conceito. Os sistemas
dida em que se trata de sistemas com- agrupados e disponibilizados aos Biomec e Energia oferecem glossários,
putacionais que permitem a ligação estudantes; (ii) o alto nível de controle que podem ser acessados por meio de
interativa não seqüencial entre nós de do sistema pelo usuário, o que torna palavras destacadas pela cor e sublinha-
informação, como os sistemas de hi- constante a sua tomada de decisões, das. Os termos que constam do glos-
pertexto, mas representados por múl- a avaliação de pro- sário são conceitos
tiplos meios. gresso e permite o Multimídia são múltiplos complementares ao
Por suas características, os siste- desenvolvimento de meios usados na conteúdo principal,
mas hipermídia descartam o processo habilidades e a esco- representação de uma necessários para
de leitura seqüencial nos moldes tradi- lha de objetivos por informação (texto, imagem, prover pré-requisi-
cionais e permitem que um conceito parte deste. áudio, animação e vídeo). tos incompletos,
seja apresentado através de diversos A utilização dos Hipertexto é um sistema aprofundar ou deta-
meios, associados àqueles que o texto sistemas hipermídia onde a informação em geral lhar aspectos dos
confere. Nessa organização diferencia- na educação pode aparece na forma de texto, conteúdos.
da da informação, os sistemas hiper- ser eficaz também organizada não-seqüencial- Estes sistemas
mídia de aprendizagem permitem ain- para evitar a simpli- mente, por meio de ligações podem ser utiliza-
da que esta se faça em diferentes níveis ficação de assuntos entre palavras-chave. dos de forma flexí-
de detalhes, que são livremente acessa- complexos [6], pois Hipermídia pode ser vista vel pelo professor,
dos pelos usuários, conforme as expe- facilitam sua abor- como a interseção entre a como por exemplo,
riências e habilidades deles frente a um dagem como um multimídia e o hipertexto em uma sessão no
novo conceito. todo e aumentam a laboratório de
Por outro lado, os sistemas hiper- possibilidade do aluno conseguir informática, na qual o estudante tra-
mídia de aprendizagem também po- atingir uma compreensão mais pro- balha individualmente ou em duplas
dem proporcionar a navegação linear funda e interdisciplinar. a partir de suas instruções. Outra
em visitas guiadas, que são seqüências forma de utilizá-los seria em uma
de informações previamente estabe- Um conjunto de três sistemas projeção em sala de aula durante uma
lecidas pelo autor. Dentro de uma visi- hipermídia5 de Ciências aula expositiva. O professor pode,
ta guiada, o usuário só pode avançar Os sistemas hipermídia Força & assim, apresentar animações de
para o nó seguinte ou voltar para o Movimento, Biomec e Energia foram situações físicas ou de movimentos
anterior. Conforme apontam Rezende desenvolvidos com diferentes objeti- humanos com o objetivo de exempli-
e Barros [4], quando os conceitos e vos pedagógicos, tendo em comum, ficar conceitos ou de criar contextos
estratégias a serem trabalhados nas entretanto, a organização do conteú- para que os alunos exponham suas
visitas guiadas são criteriosamente do e as possibilidades de navegação próprias concepções. Uma sessão de
escolhidos, este tipo de navegação oferecidas. interação no laboratório de informá-
pode servir para oferecer contextos Nos três sistemas, o conteúdo abor- tica após uma aula expositiva, pode
que levem o aluno a integrar suas dado foi organizado em três classes de auxiliar o professor na revisão concei-
representações do fenômeno (concep- informação, que são acessadas por tual de unidades de mecânica básica
ções) ao conhecimento científico. índices6. As páginas pertencentes a cada ou biomecânica.
Desde o final da década de 80, a uma das classes, são compostas Os professores dispõem também
estrutura dos sistemas hipermídia basicamente de textos explicativos e de de uma ferramenta para a avaliação
tem atraído a atenção de educadores animações com as quais o estudante e levantamento das concepções dos
que vêem, nos mesmos, um grande poderá interagir, selecionando variáveis alunos que armazena em um arquivo,
potencial educacional. Marchionini [5] e observando o resultado de sua seleção. o nome do usuário, o título das pági-
aponta duas características da hiper- A ligação hipertextual entre as páginas nas visitadas e o instante em que estas
mídia que são importantes para a é feita por meio de palavras-chave, foram acessadas, além de todos os
educação: (i) a capacidade de armaze- destacadas pela cor, nos textos explica- dados digitados durante a interação.
tivos. A navegação livre, isto é, Esse arquivo é criado toda vez que os
a movimentação do usuário programas são abertos, ficando locali-
em função do seu interesse ou zado na pasta onde os sistemas fo-
necessidade conceituais, é pos- ram gravados.
sível por meio dos índices e das
O sistema hipermídia Força &
palavras-chave.
Juntamente com a nave-
Movimento (F&M)
Figura 1. Relação entre hipertexto, multimídia e gação livre, os sistemas hiper- O sistema hipermídia F&M aborda
hipermídia. mídia desenvolvidos oferecem conceitos físicos, situações físicas e as

64 Hipermídia e Aprendizagem de Ciências Física na Escola, v. 6, n. 1, 2005


leis do movimento de Newton. A idéia menor do que 50%, o que resultou em
é que a integração desses conteúdos, um conjunto de seis situações físicas
representados por textos e simulações que abordam movimentos em uma e
de fenômenos físicos, ajude o aluno a em duas dimensões. Todas as situa-
compreender as relações entre força e ções físicas foram desenvolvidas em
movimento. Seus objetivos específicos visitas guiadas compostas por 6 ou 7
são: (i) oferecer contextos para que os páginas. A Figura 3 apresenta, como
estudantes possam expressar suas exemplo, a primeira página da visita
formas de raciocínio; e (ii) possibilitar guiada referente à situação física da
a construção de modelos qualitativos força perpendicular à velocidade na qual
mais adequados dos conceitos e leis o aluno é solicitado a selecionar a força
físicas; (iii) enfatizar a consistência do resultante que age sobre o foguete. Por
conhecimento científico por meio da ser o início de uma visita guiada, os
exploração de situações físicas diferen- índices estão indisponíveis e a única
tes porém explicadas pelas mesmas opção de navegação é por meio do bo-
leis. tão seguir.
O conteúdo do sistema hipermídia O conjunto de páginas referentes
F&M foi distribuído em três classes, às leis do movimento apresenta as três
que disponibilizam três conjuntos de leis de Newton. A 1a lei de Newton foi
páginas relacionados entre si: concei- desenvolvida em uma visita guiada
tos físicos, situações físicas e leis do que mostra inicialmente a simulação
movimento. Os conceitos físicos são da experiência de um disco que desliza Figura 2. Páginas que compõem o conceito
discutidos qualitativamente, enfati- sobre uma superfície rugosa, que vai de Referencial.
zando-se, na medida do possível, pon- sendo substituída por superfícies cada
tos problemáticos das relações entre vez mais lisas. O processo é interrom- O sistema hipermídia Biomec
força e movimento, como por exem- pido e uma pergunta aberta que solici- O sistema hipermídia Biomec
plo, a relativa independência entre a ta uma previsão sobre o movimento aborda aspectos biomecânicos e
força aplicada e a do disco caso o anatômicos do movimento humano
velocidade do corpo A idéia básica do sistema atrito fosse total- com apoio de conceitos de mecânica.
- já que elas podem hipermídia F&M é que a mente retirado. In- A idéia é que a integração desses con-
ter sentidos opos- integração de conteúdos, dependentemente teúdos leve o aluno a entender a bio-
tos, como no caso representados por textos e da resposta, a pró- mecânica do movimento humano e
da queda de um cor- simulações de fenômenos xima página mos- suas relações com a mecânica e a ana-
po e pode haver físicos, ajude o aluno a tra a simulação do tomia humana, podendo assim vir a
velocidade com for- compreender as relações movimento do dis- favorecer a visão interdisciplinar en-
ça resultante nula - entre força e movimento co sobre uma tre estes conteúdos e atender às neces-
e a relação direta superfície ideal- sidades conceituais dos alunos dos
entre a força aplicada e o apare- mente sem atrito e o texto explicativo cursos de Educação Física e de Fisiote-
cimento de uma aceleração. Os tex- aborda a 1a Lei. A 2a Lei de Newton é rapia. O sistema apresenta conceitos
tos explicativos incluem pelo menos apresentada em uma pequena visita mecânicos, biomecânicos e anatômi-
uma palavra-chave, que permite a guiada, que discute a experiência de cos em três classes, que se relacionam
navegação livre para outro conceito uma mola fixada a um corpo sobre o entre si: conceitos físicos; aplicações
relacionado ao atual. Cada conceito qual é aplicada uma força e, conse- biomecânicas e aplicações anatômicas.
pode ser apresentado em uma ou mais qüentemente, uma aceleração. Essa O conjunto de páginas derivado
páginas. A Figura 2 apresenta, a título situação é usada para mostrar que a
de exemplo, as duas páginas que com- razão entre diferentes massas é
põem o conceito de referencial. inversamente proporcional à razão
O conjunto de situações físicas entre as acelerações e concluir a
apresenta situações físicas seleciona- expressão da 2a Lei de Newton. A
das a partir do resultado de um teste situação física utilizada para exem-
de mecânica básica aplicado a calouros plificar a 3a Lei de Newton mostra um
dos cursos de Licenciatura noturna trailer sendo puxado por um carro e
em Física, Química e Matemática da os pares de força de ação e reação que
UFRJ, em 1995. Visando ao objetivo atuam sobre ambos.
de atender a dificuldades conceituais O Quadro 1 sintetiza os conceitos,
dos estudantes, foram selecionadas as leis e situações físicas que são abor- Figura 3. Primeira página da visita guiada
situações exploradas nas questões dados nas três classes que compõem referente à situação da força perpendicu-
cuja freqüência média de acerto foi o sistema hipermídia F&M. lar à velocidade.

Física na Escola, v. 6, n. 1, 2005 Hipermídia e Aprendizagem de Ciências 65


Quadro 1. Conceitos físicos, situações físicas e leis do movimento abordados no sistema
hipermídia Força & Movimento.

Conceitos físicos Situações físicas Leis do movimento


• velocidade • queda livre • 1ª lei de Newton
• aceleração • lançamento vertical • 2ª lei de Newton
• força • lançamento horizontal • 3ª lei de Newton
• movimento • lançamento oblíquo
• referencial • força impulsiva perpendicular
• força de atrito • à velocidade
• distância • força constante perpendicular
• tempo à velocidade
• posição
• deslocamento
• massa inercial
• massa gravitacional
• inércia
• quantidade de movimento
• impulso
• peso
• vetores

da classe Conceitos de Físicos reúne cações Biomecânicas, apresentam-se Figura 4. As páginas que compõem o con-
ceito de vetores.
conceitos envolvidos em movimentos a seguir, as escolhas de movimentos
humanos ou que dão apoio à abor- humanos que enfatizam a aplicação entre o ângulo descrito pelo braço do
dagem biomecânica dos mesmos, co- dos conceitos físicos abordados no jogador e a velocidade inicial da bola,
mo por exemplo, o conceito de vetores sistema. A contração muscular foi es- destacando-se nessa análise, a parti-
(Figura 4). O conceito de força é im- colhida por ser possível aplicar o con- cipação dos aspectos anatômicos. A
portante na medida em que ajuda o ceito de vetor aos aspectos anatômicos Figura 5 mostra a página referente ao
entendimento da força de um mús- nela envolvidos e verificar como a saque, como exemplo das páginas da
culo e como esta participa da análise direção, o módulo e o sentido deste se classe Aplicações Biomecânicas.
biomecânica do movimento. O concei- comportam durante o movimento. O No conjunto de páginas de apli-
to de momento de uma força e as movimento de levantamento de carga cações anatômicas foram abordados
grandezas relacionadas a este concei- foi incluído porque, do ponto de vista movimentos dos membros superiores
to, como o módulo da força e a distân- biomecânico, será importante para o e inferiores que se relacionam às apli-
cia entre a linha de ação e o centro de aprendizado de como o peso de uma
rotação, são abordados por serem carga, a força de um músculo e as
fundamentais para o estudo do movi- suas características anatômicas, parti-
mento humano e dos detalhes anatô- cipam do movimento humano. A
micos envolvidos. O conceito de mo- flexão do cotovelo foi escolhida para
mento de inércia foi mostrar a aplicação
abordado para faci- O conceito de força é de variáveis de na-
litar o entendimen- importante na medida em tureza mecânica
to de como a distri- que ajuda o entendimento aos aspectos anatô-
buição da massa de da força de um músculo e micos envolvidos:
um corpo se rela- como esta participa da como o módulo da
ciona com o seu análise biomecânica do força e a distância
movimento. Final- movimento entre a linha de ação
mente, o conceito de desta e a articulação
velocidade angular foi escolhido por- influenciam o movimento. O movi-
que, assim como na Física, é importa- mento de locomoção foi abordado para
nte também para a Biomecânica, a demonstrar como a massa de um cor-
análise da relação entre o ângulo des- po e a sua distribuição em relação ao
crito pelo corpo e o intervalo de tempo centro de massa a influenciam, ressal-
gasto por este em um movimento tando a importância desses fatores e
giratório, considerando neste processo suas implicações anatômicas no
a participação dos aspectos anatômi- modelo biomecânico do movimento
cos envolvidos. humano. O movimento do saque foi Figura 5. Páginas referentes ao movimen-
Para dar uma idéia da classe Apli- escolhido para a análise da relação to do saque.

66 Hipermídia e Aprendizagem de Ciências Física na Escola, v. 6, n. 1, 2005


cações biomecânicas abordadas no Quadro 2. Conceitos e aplicações biomecânicas e anatômicas abordados no sistema
sistema. O músculo bíceps braquial foi hipermídia Biomec.
escolhido porque está diretamente Conceitos físicos Aplicações biomecânicas Aplicações anatômicas
envolvido na flexão do cotovelo, na
contração muscular e no levantamen- • vetores • contração muscular • músculo bíceps
• força • levantamento de carga • braquial
to de carga. O músculo deltóide foi
• momento de uma força • flexão do cotovelo • músculo deltóide
abordado porque permite discutir os • momento de inércia • locomoção • músculos isquiotibiais
movimentos de levantamento de • velocidade angular • saque • músculo glúteo
carga, contração muscular e saque. • máximo
Os músculos isquiotibiais e glúteo
máximo foram selecionados porque
permitem apresentar analogias rela- O conjunto de páginas relaciona-
cionadas aos conceitos de contração das à classe Leis apresenta as princi-
muscular e locomoção. pais leis relacionadas à energia a partir
O Quadro 2 apresenta os conceitos de simulações de situações físicas a
físicos, as aplicações biomecânicas e serem analisadas pelos alunos, nas
as aplicações anatô- quais eles podem
A possibilidade de ligar
micas que são abor- controlar variáveis.
conceitos, oferecida pela
dados nas três clas- O conjunto de
hipermídia foi
ses que compõem o páginas referentes à
particularmente vantajosa
sistema hipermídia classe Propriedades
para o enfoque do conceito Figura 6. Índice formas de energia.
Biomec. da Energia se inicia
de energia, dificilmente
pela imagem de
O sistema Energia abordado de maneira
uma montanha à
O objetivo geral similar nos livros didáticos
beira mar, sol, ven-
do sistema hiper- tos e nuvens (Figura 7) que serve para
mídia Energia7 é mostrar a correlação mostrar as relações entre as diversas
entra as diversas formas pelas quais formas de energia originadas no Sol e
a energia se manifesta e sua integra- na Terra, podendo-se fazer o cômputo
ção conceitual, evidenciada pelas pro- quantitativo aproximado da energia
priedades da energia e suas leis total da Terra, através dos dados
fundamentais. A possibilidade de ligar apresentados. Cada parte da imagem
conceitos, oferecida pela hipermídia, abre uma página que mostra outras
foi particularmente vantajosa para imagens representativas e textos Figura 7. Página inicial da classe Proprie-
este enfoque do conceito de energia, explicativos sobre as propriedades dades da Energia.
dificilmente abordado nos livros didá- básicas da energia.
ticos. O conteúdo, representado basi- O Quadro 3 apresenta as formas, F&M e Biomec mostrou que a maior
camente por animações, imagens e propriedades e leis da energia que são parte dos alunos conseguiu organizar
textos explicativos, foi dividido em abordadas no sistema hipermídia o conhecimento consistentemente e
três classes: Formas, Leis e Proprie- Energia. tirar proveito da estrutura não-line-
dades da Energia. Em todas as páginas ar dos sistemas hipermídia. Os siste-
é possível acessar conceitos físicos en- A interação de estudantes com mas hipermídia F&M e Biomec
volvidos na situação abordada, que os sistemas desenvolvidos permitiram interações adaptadas às
fazem parte do glossário. A análise dos dados de navegação necessidades conceituais de cada alu-
O conjunto de páginas referentes à dos alunos que utilizaram os sistemas no, seja pelo conteúdo selecionado, o
classe Formas de Energia apresenta as
principais formas de energia, buscan- Quadro 3
do-se a relação interdisciplinar entre Formas de energia Propriedades da energia Leis da energia
elas. As páginas de cada forma de ener-
gia são acessadas a partir de um índice • energia cinética • conservação • lei de conservação da
(Figura 6) composto por animações de • energia potencial gravitacional • transformação energia mecânica
• energia potencial elástica • propagação • leis da termodinâmica
fenômenos físicos e químicos que re-
• energia sonora • armazenamento
presentam diferentes manifestações da • energia elétrica • degradação
energia. A estrutura hipertextual serviu • energia luminosa
para destacar outros tipos de energia • energia magnética
que podem ser considerados, dependen- • energia nuclear
do da ênfase dada, a partir da energia • energia térmica
que está sendo enfocada. • energia bioquímica

Física na Escola, v. 6, n. 1, 2005 Hipermídia e Aprendizagem de Ciências 67


tempo gasto em cada página ou pela sentar ainda uma novidade pode tê-
ordem em que os conceitos foram los levado a fazer a opção por uma
Notas
visitados. navegação mais seletiva, prova-
1
Apoio: CNPq.
2
Tecnologias da informação e comunicação
Foi possível verificar que os alu- velmente, orientada por curiosidades
no ensino de Física: no processo de
nos usam diferentes estratégias para e dificuldades conceituais rema- aprendizagem, na formação e na práti-
abordar o conteúdo. A navegação de nescentes do Ensino Médio. Assim, a ca do professor de nível médio. Flavia
um dos alunos no sistema F&M, por diferença entre as condições iniciais Rezende, CNPq, 2002 (em andamento).
exemplo, parece ter sido guiada por dos estudantes em termos do conhe-
3
Navegação é a movimentação do usuário
no sistema.
um planejamento prévio que incluiu cimento anterior parece estar direta- 4
Nós são as unidades de informação que
visitas a 19 dos 20 conceitos e leis, o mente relacionada aos perfis de nave- compõem o sistema.
mesmo tempo em gação observados, 5
Estes sistemas são distribuídos gratuita-
O desenvolvimento de
todas as páginas e a como já sugerido mente para escolas públicas mediante
sistemas hipermídia para a uma licença de utilização concedida
volta ao índice para pelo estudo de
educação em Ciências é um pelo NUTES-UFRJ à direção da escola.
escolher a próxima Fitzgerald e Sem-
trabalho que exige 6
Índices são estruturas de acesso ao sistema.
página. Também foi rau [7]. O conteúdo do índice pode ser organi-
investimento de muito
possível identificar, Com base nos zado segundo uma determinada ordem
tempo por parte de uma
na estratégia usada resultados obtidos pré-estabelecida pelo autor ou não,
equipe multidisciplinar para quando organizado na forma de rede.
por dois estudantes, foi também possí-
se chegar a um protótipo 7
A versão do sistema Energia descrita nesta
que ambos visita- vel concluir que o
que seja relevante do ponto seção está sofrendo revisão de sua pro-
ram, separadamen- sistema Biomec gramação visual, o que no entanto não
de vista educacional
te, um conjunto de permitiu a compre- irá afetar seu conteúdo e as formas de
páginas relacionadas à dinâmica e ensão dos aspectos interdisciplinares navegação oferecidas.
um outro, de páginas relacionadas à dos conceitos envolvidos no movi-
cinemática. Os demais estudantes mento humano e que a interação com
Referências
cruzaram alternadamente as pági- o programa melhorou esta compre- [1] F. Rezende, Desenvolvimento e avaliação
de um sistema hipermídia para facilitar
nas referentes às sub-áreas da mecâ- ensão principalmente por abordar a
a reestruturação conceitual em mecâ-
nica. Tanto a estratégia de agregar relação entre conceitos físicos, bio- nica básica. Caderno Catarinense de En-
conjuntos de conteúdo segundo um mecânicos e anatômicos. sino de Física, 18, 197 (2001).
critério individual, quanto a de cru- [2] C.S.D. Cola, Biomec: um sistema hiper-
zar conhecimentos de diferentes sub- Considerações finais mídia que integra conceitos de mecâ-
nica, biomecânica e anatomia humana.
áreas do conteúdo são importantes A realização deste projeto tem
Dissertação de mestrado, NUTES-
características que diferenciam a deixado claro que o desenvolvimento UFRJ, 2004.
navegação hipertextual dos alunos de sistemas hipermídia para a educa- [3] A.S.Pereira, Desenvolvimento de um sis-
no F&M. Ficou claro que, quando o ção em Ciências é um trabalho que tema hipermídia de aprendizagem so-
estudante pode controlar alguns exige investimento de muito tempo bre Energia para uma introdução à Físi-
ca. Anais da XXIV Jornada de Iniciação
aspectos do conteúdo, como, por por parte de uma equipe multidis-
Científica da UFRJ, 2002.
exemplo, a ordem segundo a qual ele ciplinar para se chegar a um protótipo [4] F. Rezende e S. Souza Barros, Discussão e
é apresentado, a organização resul- que seja relevante do ponto de vista reestruturação conceitual através da
tante pode ser diferente daquela que educacional. Tendo enfrentado essas interação de estudantes com as visitas
pareceria a mais plausível para o condições, considera-se que os siste- guiadas do sistema F&M. Revista
Brasileira de Pesquisa em Ensino de
professor. mas hipermídia desenvolvidos repre-
Ciências. ABRAPEC. 1:2, Maio/Agosto
A partir da análise da navegação sentem um conjunto de materiais (2001).
apresentados de dois grupos que inte- didáticos inovadores que pode atender [5] G. Marchionini, Hypermedia and learn-
ragiram com o sistema hipermídia à carência de materiais educativos in- ing: feedom and chaos. Educational
Biomec, pôde-se concluir que os estu- formatizados para o ensino médio e Technology 28, 8 (1988).
[6] R.J. Spiro, P.J. Feltovitch, M.J. Jacobson
dantes que apresentavam nível mais superior.
and R.L. Coulson, Cognitive Flexibil-
estruturado de conhecimento ante- Do ponto de vista da pesquisa rea- ity, Constructivism and Hypertext: Ran-
rior demonstraram interesse em lizada, é possível dizer que houve um dom Access Instruction for Advanced
abranger mais conteúdo e participar avanço do conhecimento sobre a inte- Knowledge Acquisition in Ill-Structured
ativamente da construção do conhe- ração de estudantes com sistemas Domains, edited by T.M. Duffy & D.H.
Jonassen, Constructivism and the Tech-
cimento viabilizada pelo sistema na hipermídia, apoiado pelo estudo dos
nology of Instruction: A Conversation
medida em que esta experiência foi, sistemas hipermídia F&M e Biomec. (Lawrence Erlbaum, NJ, 1992).
provavelmente, vista como auxiliar, Os resultados obtidos sobre sua [7] G.E. Fitzgerald and L.P. Semrau, The ef-
ou mesmo como revisão do processo utilização trouxeram resultados inte- fects of learner differences on usage
de ensino-aprendizagem. Por outro ressantes que contribuem para a patterns and learning outcomes with
hypermedia case studies. Journal of
lado, para os alunos com nível mais validação deste tipo de material
Educational Multimedia and Hyper-
baixo de conhecimento anterior, o educativo para o ensino-aprendi- media 7, 309 (1998).
fato do conteúdo do sistema repre- zagem de Ciências.

68 Hipermídia e Aprendizagem de Ciências Física na Escola, v. 6, n. 1, 2005


P
○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○
odemos localizar temporalmente rendo em nosso sistema de ensino no Rafael Haag
a segunda metade do século intuito de preparar nossos alunos e-mail: haag@if.ufrgs.br
XVIII como o ponto de partida para darem conta desse novo mundo Ives Solano Araujo
de um processo de transformação informatizado que os cerca. Entretan- e-mail: ives@if.ufrgs.br
socioeconômica como poucas vezes to, na escola atual, o computador está e
antes foi vista na história da huma- sendo explorado prioritariamente na Eliane Angela Veit
nidade, a chamada revolução indus- construção de materiais (como textos, e-mail: eav@if.ufrgs.br
trial. Este período foi caracterizado apresentações e páginas na web), Instituto de Física, Universidade
Federal do Rio Grande do Sul
pela substituição do modo de produ- como fonte de consulta de informa- ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

ção artesanal pelo sistema fabril, ções e como meio de comunicação. É


impulsionado pelo advento das má- indiscutível a importância da aborda-
quinas a vapor. Devido a esta notável gem de tais temas pela escola, porém
evolução tecnológica, hábitos e cos- visualizamos outras aplicações perti-
tumes humanos foram drasticamente nentes, particularmente ao ensino-
modificados, tornando necessária aprendizagem de Ciências, que não
uma adaptação dos sistemas de ensino podem ser suprimidas no Ensino Mé-
da época de modo a capacitar os indi- dio, sob pena de comprometer a for-
víduos a lidarem com esta tecnologia. mação da cultura científica e tecno-
Nas últimas três lógica do aluno, ali-
décadas pudemos Nas ciências em geral e na jando-o da educa-
presenciar outra Física em particular, o ção e alfabetização
grande transforma- computador vem sendo científicas [1].
ção com um impac- maciçamente utilizado para a Dentre as diver-
to gigantesco sobre criação de complexos sas aplicações das
a estrutura de nossa modelos científicos que não tecnologias de in-
sociedade como um poderiam ser realizados sem formação e comu-
todo. Desta vez, o o seu auxílio. Entretanto, na nicação na forma-
computador ocupa escola atual, ele serve ção do cidadão, des-
o papel principal prioritariamente como tacamos duas como
neste processo, sen- simples fonte de consulta e particulares do en-
do raras as áreas do apresentação de textos sino de Ciências: o
conhecimento hu- computador como
mano nas quais não está presente. Nas instrumento para a modelagem
ciências em geral e na Física em parti- científica e como suporte ao laborató-
cular, o computador vem sendo ma- rio. Neste trabalho nos concentramos
ciçamente utilizado para a criação de no segundo tipo de aplicação, enfo-
modelos científicos altamente comple- cando a aquisição automática de da-
xos, que não poderiam ser realizados dos no laboratório didático de Física. No presente trabalho abordamos o uso de aqui-
sem o auxílio de algum recurso tecno- Nos países do primeiro mundo, isto sição automática de dados no laboratório didá-
lógico a ele relacionado. Tal importân- já vem sendo feito desde o início dos tico de Física, apresentando alguns conceitos
cia adquiriu esta ferramenta em nosso anos 90 [2-3], enquanto nas escolas básicos sobre o tema e exemplos ilustrativos.
Diversas referências com detalhes técnicos sobre
cotidiano que poderíamos imediata- brasileiras pouco se avançou nesta os sistemas de detecção, sobre os softwares uti-
mente imaginar as mais incríveis área. Esta defasagem se deve, primor- lizados e com a descrição de experiências vol-
transformações que estariam ocor- dialmente, a três fatores: i) somente tadas para o ensino médio são sugeridas.

Física na Escola, v. 6, n. 1, 2005 Aquisição de Dados no Laboratório de Física? 69


nos últimos anos microcomputadores têxtil, por exemplo. Entretanto, para
estão sendo introduzidos nas escolas, que consigamos atingir este objetivo,
ii) até recentemente os sistemas de o sistema de aquisição não pode ser
aquisição de dados disponíveis reque- visto como uma caixa-preta. É preciso
riam interfaces externas ao computa- desmistificar o processo de aquisição
dor, importadas e caras (só muito automática de dados, permitindo que
recentemente surgiram ofertas nacio- o aluno manipule os sensores, que
nais) e iii) o desconhecimento por faça medidas manuais, para observar
parte da maioria dos professores da o efeito de variações de grandezas fí-
possibilidade de confecção de sistemas sicas sobre os sensores, que trabalhe
de aquisição automática de baixo com sistemas de detecção, que explore
custo e fácil desenvolvimento [4-12] Figura 2. Medidas da velocidade de rotação softwares para, somente então, operar
e, especialmente, da possibilidade de de um pião. O sistema de detecção envolve sistemas automáticos de aquisição de
uso do próprio microfone [13-17] ou um sensor ótico construído com fotodio- dados. Também é imprescindível
dos (ou fototransistores). A leitura da en-
da entrada auxiliar [18] do PC para abandonar os roteiros de laboratório
trada digital da porta de jogos é feita com
medida em diversas áreas da Física. a linguagem Visual Basic Application, em tradicionais, que em muito se asseme-
uma planilha Excel. lham a uma receita de bolo, e introdu-
Por que inserir a aquisição zir atividades abertas, potencialmente
automática de dados no queiram um longo período de tempo. mais propícias para aprendizagem da
laboratório de Física? Nestes casos, o registro de dados pode física envolvida no experimento [22].
Vários motivos podem ser aven- ser possível manualmente, mas tor-
na-se tedioso. (Veja Fig. 4.) [21]; Que tipos de sensores
tados para introduzir aquisição auto-
• propiciar redução no tempo podemos utilizar?
matizada de dados em um laboratório
didático: gasto para a coleta de dados, permi- Todo sistema de aquisição de da-
• enriquecer as experiências de tindo que o aluno disponha de maior dos necessita de um sensor para con-
aprendizagem propiciando outras tempo para desenvolver outras habi- verter alguma grandeza física - como
alternativas para o aluno compreen- lidades e competências, como traba- temperatura, força, pressão - em um
der e relacionar os resultados obtidos lhar com planilhas eletrônicas [12]; sinal elétrico que posteriormente é en-
e os conceitos vinculados à funda- • obter mais medidas, com maior tregue ao microcomputador para a
mentação teórica do experimento e, precisão e mais rapidamente [4-15]. coleta e análise dos dados. Atualmente
assim, trazer a Física escondida entre Outra motivação, que considera- há no mercado uma enorme quanti-
os números e fórmulas para o “mun- mos ainda mais importante, diz res- dade de sensores e componentes ele-
do real” (Veja Fig. 1) [3]; peito à alfabetização científica. Viven- trônicos de baixo custo que podem ser
• permitir a realização de experi- ciar processos de medida em tempo utilizados para este fim. Um simples
mentos que envolvam medições de real e, simultaneamente, observar na potenciômetro (resistência variável),
tempo em frações de segundos e a tela de um computador a represen- se acoplado a uma haste metálica com
coleta manual é impossível (Veja Figs. tação dos dados colhidos, oportuniza uma massa na sua extremidade,
2 e 3) [11-13, 20]; uma melhor compreensão não só do transforma-se em um sensor que
• explorar experiências que re- estágio atual das Ciências, mas tam- possibilita a leitura da posição angu-
bém do que ocorre em um consultó- lar de um pêndulo em função do tem-
rio médico, quando são realizadas po [7]. Um termistor do tipo NTC1
ecografias, ou nos sistemas de contro- pode ser usado para medida de tem-
le de produção em uma indústria peratura2 [8, 21]. Até mesmo um

Figura 1. Posição em função do tempo. A


linha contínua representa o gráfico de um
movimento que se pretende reproduzir e
a linha pontilhada é uma tentativa de re-
produzi-lo, com um sistema CBL (Calcu-
lator Based Laboratory) [19]. Resultados de Figura 3. Dados coletados, com um equipamento da PASCO [20], para a força em função
pesquisa mostram que a interatividade do do tempo sofrida por um carrinho que sofre uma colisão. O fenômeno em estudo tem
aluno com este tipo de experimento é um duração de centésimos de segundos, e sua detecção só é possível com algum sistema
fator que contribuiu para a compreensão automático de coleta de dados. Neste exemplo, o software permite que seja avaliada a
de gráficos da cinemática [3]. área sob a curva, que fornece o impulso.

70 Aquisição de Dados no Laboratório de Física? Física na Escola, v. 6, n. 1, 2005


to digital. Se desejarmos coletar dados
analógicos, devemos empregar uma
interface de conversão A/D para que
ele seja compreendido pelo microcom-
putador. Felizmente, existe uma in-
terface deste tipo em praticamente
todos os computadores pessoais: a
placa de som.
A placa de som, uma das interfa-
Figura 4. Curva de resfriamento (a) e aquecimento (b) de um líquido. No caso (a) o ces entre o microcomputador e o mun-
tempo total da coleta é de cerca de 1h, mas no caso (b) é de mais de 5h [21]. do externo, possui no mínimo uma
entrada e saída de áudio e, usualmente,
mouse com defeito pode ser aprovei- Como conectar os sensores ao uma entrada de jogos, com quatro en-
tado como sensor, bastando para isso, microcomputador? tradas analógicas e quatro digitais, que
retirar o conjunto de fotodiodos exis- podem ser utilizadas para aquisição
tente no seu interior. Um conjunto de O microcomputador é um equi- automática de dados. Nas Refs. [7-9]
fotodiodo emissor e receptor presta- pamento eletrônico que, para ser útil, encontram-se detalhes do circuito
se muito bem para medidas de tempo deve receber e transmitir informações elétrico da porta de jogos e as respecti-
[8, 12]. Uma atividade preliminar à ao usuário. Basicamente, todas as en- vas conexões do conector tipo DB15.
aquisição automática consiste em tradas que o computador utiliza para As quatro entradas digitais podem
propiciar aos alunos a oportunidade receber estas informações, como o ser conectadas a sensores digitais para
de manipular sensores e, com um mouse, teclado, porta de impressora, medida de tempo, por exemplo. As
multiteste, observar que a variação porta USB, entrada de jogos (joystick) entradas analógicas da porta de jogos
de intensidade luminosa, por exemplo, e entrada de microfone podem ser possuem uma resolução de 8 bits. Isto
produz uma variação da resistência utilizadas para aquisição de dados [9]. significa que é possível medir 28 (256)
em um LDR3 ou que a variação da Cada uma destas portas de comuni- valores distintos nesta entrada. Origi-
temperatura tem o efeito de variar a cação entre o microcomputador e o nalmente, cada entrada analógica da
resistência de um termistor. mundo externo possui características porta de jogos foi concebida para tra-
próprias que devem ser observadas balhar com um potenciômetro cuja
Sensores digitais e analógicos cuidadosamente antes de ligar os resistência varia desde zero até apro-
Os inúmeros sensores que podem sensores. Nas Refs. [5-13] encontram- ximadamente 100 kΩ. Assim, se a
ser utilizados para a coleta de dados se detalhes para a utilização de várias variação de resistência sofrida pelo
se dividem em dois tipos: analógicos destas entradas. sensor ao longo da experiência se
e digitais. Os analógicos apresentam Por que devo usar (ou não) aproximar de 100 kΩ, sem ultrapas-
resposta contínua em uma larga faixa uma interface analógico/ sar este valor, tem-se a melhor reso-
da grandeza física medida. Por exem- lução para a conversão analógico/
digital (A/D)?
plo, NTC’s usuais operam na faixa de digital possível com este sistema.
temperatura de -50 °C a 150 °C. Já Para a coleta de sinais analógicos Neste ponto, o leitor pode perceber que
os sensores digitais podem fornecer através do microcomputador há estas entradas analógicas existentes
apenas duas respostas na sua saída: necessidade de alguma forma de no conector de joystick, aceitam so-
ligado (nível alto) ou desligado (nível conversão deste sinal para a lingua- mente sensores que se comportam
baixo). O interruptor de luz é um gem digital, única que o microcompu- como resistências variáveis, como é o
exemplo de sensor digital. À primeira tador compreende. A Fig. 5 representa caso dos NTC, PTC, LDR, e potenciô-
vista, pode parecer que os sensores simbolicamente a conversão analó- metros. Para usar outros tipos de
digitais não possuem muita utilidade gico-digital (A/D). O sinal analógico sensores ou efetuar medidas de ten-
na aquisição de dados, mas este tipo captado, geralmente a diferença de po- são, por exemplo, é necessária uma
de sensor, se bem empregado, é muito tencial existente entre as extremidades
útil para a medida de tempo, veloci- de um sensor, é convertido numa in-
dade, posição, deslocamento e outras. formação binária composta pelos bits
Na família dos sensores digitais, além 0 (baixo) e 1 (alto), que é coletada por
dos fotodiodos, há os interruptores uma das portas de comunicação do
magnéticos (também chamados de microcomputador com o mundo
reed-switch ou reed-relay), que podem externo. A qualidade4 desta conversão
substituir com vantagens as tradicio- depende do número de bits utilizados.
nais fagulhas utilizadas em trilhos de Quanto maior a quantidade de bits,
ar [23]. A família dos analógicos inclui maior é a semelhança entre o sinal ori- Figura 5. O sinal analógico deve ser trans-
termistores, microfones, potenciô- ginal, presente na entrada do conver- formado em digital para poder ser inter-
metros e vários circuitos integrados. sor, e o sinal convertido para o forma- pretado pelo computador.

Física na Escola, v. 6, n. 1, 2005 Aquisição de Dados no Laboratório de Física? 71


interface A/D mais versátil. prio software, usando LOGO [8, 23, tion, que acompanha o Excel, permite
31], Visual Basic Application [12] ou que se faça a leitura da portas de jogo,
Pode-se construir interfaces consultando alguns dos códigos fon- tanto em sua entrada analógica quan-
A/D de baixo custo tes disponíveis na rede. A indústria to na digital, assim como a leitura da
Até alguns anos atrás, a constru- PICO [30] disponibiliza um software porta paralela (da impressora). As pla-
ção de uma interface analógico/digi- específico para o circuito integrado nilhas confeccionadas por Figueira e
tal era uma tarefa demasiadamente TCL548 (procure pelo modelo Veit [12] também se encontram dispo-
sofisticada para sua implementação ADC10) que é distribuído livremente níveis livremente em [32].
pelo professor com pouca aptidão em na web juntamente com o seu código
fonte em várias linguagens, entre elas Comece pelo mais simples: A
montagens eletrônicas, pois os com-
ponentes envolvidos eram em elevado a VISUALBASIC, DELPHI, C++ e entrada de microfone
número e nem sempre disponíveis no planilha Excel. Esta empresa também Se você quer ver resultados de
comércio eletrônico local. Atualmente comercializa unidades conversoras A/ imediato, ponha mãos à obra com um
podemos montar uma unidade con- D, porém o custo destas unidades é microfone e um software para leitura
versora A/D de baixo custo, usando relativamente elevado em comparação da entrada de áudio, como o Spectro-
apenas poucos com- com as unidades gram [25], Goldware [26] ou o Aware
ponentes eletrôni- Existem diversos softwares produzidas de mo- Audio [27]. Além de experiências em
cos. A Ref. [24] disponíveis livremente do artesanal. acústica, como a medida da velocidade
apresenta uma in- (freeware) ou parcialmente Para fins didá- do som (Fig. 6) e o estudo de timbre
terface que pode ser livres (shareware) na ticos, de particular de instrumentos musicais (Fig. 7),
construída em mi- Internet que podem ser interesse são as al- você poderá fazer experiências de
nutos, pois emprega usados para aquisição ternativas propicia- mecânica, como medir o coeficiente
um único compo- automática de dados das por planilhas de restituição em choques mecânicos
nente eletrônico, o eletrônicas, pois (Fig. 8) e determinar a aceleração de
próprio circuito integrado (TLC548), conforme sugerem Figueira e Veit [12]:
que é um conversor A/D. O TCL548 • “são altamente ajustáveis às ne-
é um conversor de 8 bits com um ca- cessidades em vários campos de ativi-
nal analógico de entrada com resposta dade, assim como na vida doméstica;
entre 0 e 5 V e resolução temporal • permitem cálculos numéricos sem
melhor do que 1 ms. Este circuito conhecimento de qualquer linguagem de
integrado pode ser ligado diretamente programação ou metáfora simbólica;
à entrada de impressora do micro- • cálculos com planilhas costumam
computador e basicamente necessita ser inteligíveis e apreciados por profes-
apenas da alimentação externa de 5 V sores de Ensino Médio, enquanto progra-
Figura 6. Espectro sonoro produzido em
para operação, simplificando a mon- mas escritos em linguagem de progra- um tubo de PVC [10]. A identificação da
tagem. Esta alimentação pode ser mação não têm a mesma receptividade; freqüência dos diversos harmônicos per-
retirada da entrada de jogos ou de uma • planilhas eletrônicas propiciam a mite determinar a velocidade do som no
bateria de 9 V e um circuito regulador construção de gráficos”. ar. Cavalcante & Tavolaro discutem em de-
de tensão de 5 V. Existem no mercado A linguagem Visual Basic Applica- talhe esta experiência [16].
várias outras opções de circuitos inte-
grados que podem ser adotados nesta
interface.
Não conheço nenhuma
linguagem de programação, e
agora?
Existem diversos softwares dispo-
níveis livremente (freeware) ou parcial-
mente livres (shareware) na Internet -
por exemplo nas Refs. [25-30] - que
podem ser usados para aquisição
automática de dados. Alguns são
específicos para a entrada de microfo-
ne ou a auxiliar5 [25-27] outros se
destinam à entrada paralela [30] e Figura 7 Espectros sonoros de uma mesma nota musical mostram que os instrumentos
outros às entradas de jogos [29]. O musicais vibram em várias freqüências distintas ao mesmo tempo e que a composição
leitor com alguma noção de progra- destas freqüências, cada uma com sua intensidade característica, é o que define o tim-
mação poderá implementar o seu pró- bre. Espectros obtidos com o software Spectrogram [24], apresentados na Ref. 10.

72 Aquisição de Dados no Laboratório de Física? Física na Escola, v. 6, n. 1, 2005


trônicos e a análise envolvia o uso do
Excel. Os alunos despenderam um
tempo considerável para começar a
tomada de dados, pois não estavam
familiarizados com os instrumentos.
A nosso ver, esta é mais uma razão
para se inserir atividades deste tipo,
quer porque a familiarização com os
instrumentos necessários ao ensino de
Figura 8 Espectro sonoro de uma bolinha
Física é um dos objetivos das aulas de
que, largada de certa altura, quica no
chão. A partir do intervalo de tempo en- Figura 10. Pressão de vapor para o álcool laboratório, quer porque os questio-
tre duas colisões sucessivas é possível me- (azul) e água (cor de rosa) em função da namentos levantados costumam ser
dir o coeficiente de restituição na colisão. temperatura, obtido com um CBL (Cal- frutíferos, o que dificilmente aconte-
Detalhes na Ref. [13]. culator Based Laboratory) [33]. Os dados ceria na obtenção de medidas manuais
foram coletados com um intervalo de repetitivas.
queda de um corpo ou a velocidade 1 min, durante 1 h. Medeiros e Medeiros [37], citando
de uma bola de futebol, que é jogada representadas por pontos fora da cur- Härtel, enfatizam que “o valor edu-
contra uma parede [9] ou, ainda, va, assim como o significado de umi- cacional de uma simulação dependerá
investigar a Lei de Faraday-Lenz. dade relativa e de sua medida [33]. Os do fato de ela poder vir a representar
dados foram coletados com um sis- para o estudante um papel de auxiliar
Outros exemplos ilustrativos tema de aquisição automático (CBL - heurístico e não apenas cumprir um
Determinação da velocidade do Calculator Based Laboratory). papel algorítmico ou meramente
som no ar: dois microfones conecta- ilustrativo”. Também no caso da aqui-
dos à entrada auxiliar do microcom-
O microcomputador também sição automática esta colocação é
putador detectam um sinal sonoro pode se usado como gerador pertinente. É por isto que comparti-
(som da batida de uma colher em uma de sinais lhamos da visão de vários autores [4-
tampa de panela). Como os microfo- O microcomputador também 12] que evitam tratar o sistema de
nes estão situados a diferentes distân- pode desempenhar a função de um aquisição automática como uma cai-
cias da fonte geradora do som, um gerador de sinais, desde que se dispo- xa-preta e instigam alunos e profes-
dos microfones detecta o som antes nha de um software apropriado. Por sores para que participem ativamente
do outro, conforme pode ser visto na exemplo, Cavalcante e Tavolaro [34] de várias etapas do processo. Como
Fig. 9. Detalhes são discutidos por utilizam o software Sine Wave Genera- um contraponto ao uso exacerbado
Grala e Oliveira [18]. tor [35], para gerar um sinal elétrico dos tradicionais roteiros fortemente
Determinação da pressão de va- com freqüência definida, que acoplado estruturados em atividades experi-
por saturado: uma quantidade de a um alto-falante, gera ondas esta- mentais de cunho didático, conside-
água (álcool) é colocada em um reci- cionárias em cordas esticadas (veja ramos indispensável a apresentação de
piente hermeticamente fechado e a Fig. 11). alternativas metodológicas que enfa-
pressão de vapor é medida em função tizem a “análise e interpretação dos
da temperatura. Pode-se observar na Nem tudo são flores resultados, a reflexão sobre as impli-
Fig. 10 que para um mesmo valor de O argumento usual de que a in- cações destes e a avaliação da quali-
temperatura, a pressão de vapor é trodução do microcomputador como dade das evidências que suportam as
maior para o líquido mais volátil, no instrumento de medida no laboratório
caso o álcool. Sias e Ribeiro-Teixeira didático de Física, minimizando o
[33] discutem as situações físicas tempo necessário para a aquisição dos
dados, possibilita um tempo maior
para a discussão e análise dos fenôme-
nos físicos, nem sempre é correta. Em
atividades que presenciamos em sala
de aula com alunos do Ensino Médio
[36], este argumento mostrou-se ver-
dadeiro nas experiências de som para
as quais não era requerida montagem
de sistema de detecção e o sensor uti-
Figura 11. Onda estacionária produzida em
lizado era o microfone, mas não se uma corda esticada. O lado esquerdo da cor-
Figura 9. A onda sonora chega no mi- mostrou verdadeiro em atividades em da está preso a um alto-falante, que é acio-
crofone 1 antes de chegar no 2. A medida que a montagem experimental reque- nado por um sinal elétrico gerado pelo
deste intervalo de tempo permite deter- ria um sistema de detecção ótico microcomputador. Fotografia gentilmente
minar a velocidade do som no ar [18]. construído com componentes ele- cedida por Cavalcante & Tavolaro [34].

Física na Escola, v. 6, n. 1, 2005 Aquisição de Dados no Laboratório de Física? 73


conclusões obtidas”, como destaca envolvendo um grande volume de da- possibilidades fornecidas por esse tipo
Borges [22]. dos. Sem dúvida para estes casos, de ferramenta em um laboratório
coleta automatizada se mostra de didático de Física não leve ao seu em-
Concluindo grande valia, livrando o aluno do prego em experiências simples (do
Reiteramos que o uso do compu- “trabalho braçal” de anotar os resul- ponto de vista operacional), apenas
tador na aquisição automática de tados e permitindo que ele se concen- porque o recurso está disponível. Isto
dados é recomendável em medidas que tre no entendimento da Física rele- pode mascarar a Física a ser apreen-
tomam muito tempo ou, ao contrá- vante ao experimento. Entretanto, dida, tornando o experimento mais di-
rio, precisam ser feitas em frações de devemos tomar cuidado para que o fícil para os alunos compreenderem
segundo; ou, ainda, para experiências deslumbramento com as enormes do que o necessário.

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[12] J.S. Figueira e E.A. Veit, Usando o Excel [26] Goldwave Inc., Disponível em: http:// resposta linear ao contrário do LM35,
para medidas de intervalo de tempo no www.goldwave.com/. Acesso em: 15 de que também é um sensor térmico, mas
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74 Aquisição de Dados no Laboratório de Física? Física na Escola, v. 6, n. 1, 2005


○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○
Espectros e modelos atômicos tura de estrelas, permite estudar o Marisa Almeida Cavalcante
movimento dos corpos celestes, por e-mail: marisac@pucsp.br

Q
uando Kirchhoff e Bunsen, Efeito Doppler. Mas foi na física do e
ambos professores em Hei- final do mesmo século e início do Cristiane Rodrigues Caetano Tavolaro
senberg, deduziram a partir de século XX, com o estudo do espectro e-mail: cris@pucsp.br
suas experiências em 1859 que cada de emissão de um corpo negro, que a Pontifícia Universidade Católica de São
elemento emite em determinadas espectrometria impulsionou o surgi- Paulo
○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○
condições um espectro característico mento do que chamamos de física
Rafael Haag
exclusivamente desse elemento, moderna. Corpos negros emitem, a
Universidade Federal do Rio Grande do
descobriu-se não só uma propriedade uma dada temperatura, espectros Sul
fundamental da idênticos, indepen- e-mail: haag@if.ufrgs.br
matéria, mas tam- Tudo que se sabe sobre a dente de sua com- ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

bém um poderoso composição química dos posição. Essa carac-


método de análise. astros se deve aos avanços terística intrigante
Abriu-se então um da espectroscopia, cujas o tornou alvo de
novo campo de in- contribuições à Ciência são grande interesse por
vestigação altamen- inúmeras, principalmente na parte dos físicos
te promissor que indústria e em análises teóricos, cujo traba-
permitiu, dentre clínicas lho consistia em
outras coisas, a des- deduzir uma equa-
coberta de um novo elemento até ção que permitisse calcular a energia
então desconhecido na Terra: o hélio. emitida pelo corpo negro correspon-
A descoberta deu-se a partir da análise dente a cada um dos comprimentos A introdução de física moderna no Ensino Médio
espectral do Sol, em 1868. É impor- de onda do espectro da luz por ele emi- é hoje consenso entre os professores de Física, já
tante notar que praticamente tudo tida. Leis empíricas surgiram do es- que o seu entendimento é visto como uma
necessidade para a compreensão de fenômenos
que se sabe sobre a composição quí- tudo experimental detalhado de cor-
ligados a situações vividas pelos estudantes,
mica dos astros se deve aos avanços pos negros a temperaturas diferentes. sejam de origem natural ou tecnológica. Muitos
da espectroscopia. Mas as contribui- A Lei de Wien mostra uma propor- esforços têm sido alocados com o objetivo de se
ções da espectroscopia são inúmeras. cionalidade entre a freqüência na qual desenvolver recursos pedagógicos que permitam
aos professores abordar tópicos da Física desen-
A partir de meados do século XIX, os a radiação emitida tem intensidade
volvida no século XX [1-17]. Neste trabalho
progressos nas técnicas de espectro- máxima e a temperatura do corpo, apresentaremos um conjunto de experimentos
metria e a sistematização das medidas isto é: que permitirá ao professor discutir o conceito
permitiram catalogar os diversos de quantum de energia. Tais experimentos per-
mitem dentre outras observações determinar
comprimentos de onda dos elementos
através de dois métodos distintos a constante
até então conhecidos, bem como a de Planck. Formas discretas de emissão e absor-
descoberta de novos elementos. (c = 3 x 108 m/s é a velocidade da luz ção de radiação e que são manifestações imedia-
Métodos de espectrometria são no vácuo e b = 2,898 x 10-3 m.K a tas do quantum de energia serão apresentadas
utilizando material de baixo custo e de fácil
hoje utilizados na indústria e em labo- constante de Wien). reprodutibilidade. Por outro lado, o instrumen-
ratórios de análises clínicas para deter- A lei de Stefan - Boltzman explica tal construído nos permite também estudar a
minar a composição de uma substân- o fato de termos um aumento consi- emissão e absorção característica de LEDs (light
cia, já que a radiação luminosa derável para a intensidade total da emission diode), permitindo a abordagem de con-
ceitos importantes como a ressonância e o prin-
emitida é característica da substância radiação emitida pelo corpo negro cípio de funcionamento de dispositivos semicon-
que a emite. Em astrofísica, além de com o aumento de temperatura, pois dutores, fruto das descobertas da física moderna
determinar a composição e tempera- a energia total irradiada pelo corpo e contemporânea.

Física na Escola, v. 6, n. 1, 2005 Experiências em Física Moderna 75


negro é proporcional à quarta potên- diferentes propostas experimentais já que se pode observar nitidamente
cia da temperatura absoluta. que permitem estudar espectros de suas linhas características laranja,
Baseando-se nesses resultados, emissão e absorção e ainda uma pro- verde e violeta, cujos comprimentos
Max Planck, em 1900, deu um salto posta de baixo custo para a observa- de onda são 578 nm, 546 nm e 436
qualitativo muito importante para o ção de espectro de absorção. nm, respectivamente.
desenvolvimento da física moderna ao Em seguida retira-se a fonte cali-
introduzir a hipótese dos quanta na Espectros de emissão bradora e dispõe-se na mesma posição
equação do cálculo da energia emitida Vários trabalhos têm sido desen- uma fonte de luz cujo comprimento
pelo corpo negro. Segundo a hipótese, volvidos [10-18] utilizando CDs como de onda se deseja medir. O gráfico da
a radiação eletromagnética apresenta redes de difração envolvendo desde a Figura 2 mostra a curva de calibração
uma descontinuidade: nasce o fóton construção de espectroscópios manu- bem como os pontos obtidos para os
de luz de energia E = hν e Einstein, ais [13-17] até a medida de compri- comprimentos de onda de dois LEDs
em 1905, utiliza esse mesmo conceito mentos de onda através de anéis comerciais, vermelho e verde. Os re-
para explicar o Efeito Fotoelétrico! projetados [11]. Selecionamos três téc- sultados, 600 nm para o vermelho e
Concomitante a essas descobertas, nicas distintas de análise e se manu- 550 nm para o verde, estão próximos
a incrível regularidade dos espectros seadas adequadamente permitirão dos valores fornecidos pelo fabricante.
emitidos por gases permitiu que se efetuar medidas com elevado grau de
obtivessem fórmulas empíricas para Espectro de emissão por projeção:
precisão.
calcular as freqüências emitidas por Feixe transmitido
um dado elemento. Espectro de emissão por projeção: Para se obter a projeção do espec-
O mesmo conceito de descontinui- Feixe refletido tro por feixe transmitido usando o
dade da radiação eletromagnética, Este método fornece anéis de CD, é necessário retirar sua camada
aliado à regularidade dos espectros interferência projetados em uma tela. refletora de alumínio de modo a tor-
emitidos por gases, levou Bohr, em Os comprimentos de onda da radiação ná-lo transparente. Para isso, toma-
1913, a utilizar as fórmulas empíricas podem ser obtidos a partir da medida se um CD gravável, recobre-se com
dos espectros atômicos na formulação do ângulo de desvio de cada anel. Esta fita crepe e faz-se um pequeno corte
dos seus famosos postulados, dando técnica de medida é descrita em com um estilete na sua superfície,
origem ao primeiro modelo atômico detalhes por Cavalcante e Benedetto como indica a Figura 3a. Ao puxar a
consistente: o modelo para o átomo [11]. Uma montagem que permite a fita (Figura 3b), esta traz a camada
de hidrogênio. visualização destes anéis de interfe- refletora, deixando o CD completa-
Vemos, portanto, o papel funda- rência pode ser vista na Figura 1. mente transparente.
mental desempenhado pela espectro- Valores dos comprimentos de on- Para a observação do espectro será
metria não somente como técnica de da podem ser estimados se construir- necessário utilizar uma fonte colima-
medida utilizada até hoje mas princi- mos uma curva de calibração deste da de luz, uma lupa, um CD transpa-
palmente como protagonista do nas- espectroscópio. Para isso basta utilizar rente e réguas. Inicialmente ajusta-se
cimento de conceitos e modelos que como fonte luminosa uma lâmpada a posição relativa entre tela, fonte e
revolucionaram a Física no século XX! eletrônica fluorescente de Hg compac- lupa de modo a se obter uma imagem
Na seqüência, apresentaremos ta (aconselha-se no mínimo 24 W), bem nítida da fenda (Figura 4).

Figura 2. Curva de calibração e determinação dos comprimentos


de onda de dois LEDs comerciais, vermelho e verde. Observe os
Figura 1. Montagem utilizada para a observação do espectro de valores obtidos para os comprimentos de onda, cerca de 600 nm
emissão por reflexão no CD. Na tela, são observados os anéis de e 500 nm, respectivamente, são bem razoáveis e estão de acordo
interferência. com os valores fornecidos pelos fabricantes.

76 Experiências em Física Moderna Física na Escola, v. 6, n. 1, 2005


Figura 3. Procedimento para a retirada da superfície refletora de um CD.

Figura 6. Espectro de 1ª ordem obtido para


o Hg. As linhas que são observadas com
maior nitidez são violeta, verde, azul, la-
ranja e vermelha.

vermelho. Para 5.0 cm de distância


entre o CD e a tela obtivemos um
desvio X de 2,3 cm, o que conduz a
um comprimento de onda médio da
emissão igual a 669 nm. A Figura 8
Figura 4. Montagem mostrando o ajuste inicial da imagem da fenda na tela. Algumas mostra o espectro de 1ª ordem obtido.
vezes a fonte de luz provoca uma luminosidade excessiva na tela prejudicando a visua- Para que se obtenha bons resultados,
lização das linhas espectrais. Neste caso pode-se reduzir esta luminosidade interpondo devemos garantir uma boa simetria
uma placa com orifício entre a lupa e a tela, melhorando a visualização do espectro. para estes desvios em relação à ima-
gem da fenda. Desvios simétricos ga-
Em seguida coloca-se o CD entre Nλ = dsenθ, (1) rantem que tanto o CD quanto a tela
a lupa e a tela até que se observe o onde N corresponde à ordem do es- encontram-se perpendiculares ao feixe
espectro com nitidez (Figuras 5 e 6). pectro que será analisado, d é a incidente.
Para a determinação dos compri- distância entre as ranhuras do CD
mentos de onda devemos medir o des- Espectroscópio manual
(d = 1/625 mm pois o CD contém
vio de cada linha projetada em relação 625 ranhuras/mm) e θ é o ângulo de Uma opção muito interessante e
à fenda, conforme o esquema da desvio da linha escolhida em relação bastante funcional para as escolas que
Figura 7. A equação que permite ao eixo correspondente à fenda não dispõem de laboratórios ou salas
calcular o comprimento de onda λ da projetada. Para determinar senθ , faz- escuras para a observação dos espec-
radiação correspondente à linha se tros de projeção são os espectroscópios
escolhida é dada por: manuais. Detalhes sobre a construção
, (2) de um espectroscópio manual podem
ser encontrados em Cavalcante e Ta-
onde X é o desvio medido na tela de volaro [16]. A Figura 9 mostra uma
projeção e D é a distância entre o CD e foto de um desses espectroscópios.
a tela (Figura 7). Trata-se de uma caixa em que em uma
Para permitir uma comparação de suas extremidades é fixado um pe-
entre os resultados
obtidos pelo método
1 (espectro de emis-
são por reflexão) e o
método 2 (espectro
de emissão por feixe
transmitido), obti-
vemos informações
relativas ao compri-
mento de onda mé-
Figura 5. O CD disposto entre a lupa e a dio emitido por um Figura 7. Esquema indica como determinar o comprimento
tela para a decomposição espectral. LED comercial de onda da radiação usando um CD como rede de difração.

Física na Escola, v. 6, n. 1, 2005 Experiências em Física Moderna 77


Tabela 1. Calibração de um espectroscópio
manual com D = 12,5 cm.

λ (nm) senθ X (cm)

400,00 0,25 3,23


450,00 0,28 3,66
500,00 0,31 4,11
550,00 0,34 4,58
600,00 0,38 5,06
Figura12. Lâmpada utilizada para a obser-
650,00 0,41 5,56
Figura 8. Espectro de 1ª ordem de um LED vação do fenômeno de absorção no vapor
700,00 0,44 6,08 de Na.
vermelho. Nesta montagem X1 = X2 mos-
trando uma perfeita simetria, condição
necessária para se obter bons resultados. absorção: à medida que aumenta sua
Essa simetria indica que tanto o CD temperatura, uma camada de vapor
quanto a tela encontram-se perpendicu- de sódio preenche o espaço entre o
lares ao feixe incidente de luz. bulbo central de emissão e o seu bulbo
externo (Figura 12). É essa camada de
daço de CD transparente e na outra, vapor de sódio que permitirá o
onde ocorre a incidência de luz, dis- processo de absorção.
pomos de uma escala graduada que A Figura 13 mostra o aparato
servirá de tela para a projeção do experimental utilizado para a projeção
espectro. A fenda que colima o feixe é Figura10. Espectro observado em um do espectro de Na.
ajustada pelo observador, permitindo espectroscópio manual com D = 12,5 cm. Assim que ligamos a lâmpada
maior facilidade de manuseio. observa-se nitidamente as linhas
Como sugestão, pode-se calibrar amarelas de emissão do sódio carac-
a escala a partir da relação expressa terísticas das transições que envolvem
na Eq. (1), onde a distância da rede de o seu estado fundamental (Figuras
difração à tela (D) é característica de 14a e 14b).
cada caixa (Figura 9). Como a distân- No entanto, à medida que a tem-
cia entre as ranhuras de um CD é co- peratura aumenta inicia-se o processo
nhecida e assume o valor de 1,6 µm, de absorção das energias caracterís-
pode-se obter os valores de cada desvio ticas das transições fundamentais e as
para comprimentos previamente linhas amarelas desaparecem do es-
fixados. Para o espectroscópio da pectro conforme mostram as Figuras
Figura 11. Espectro observado na tela de
Figura 9 temos D = 12,5 cm, forne- 15a e 15b.
um espectroscópio manual. Pela tabela de
cendo a Tabela 1. calibração, temos um valor para o com- Uma aplicação importante desse
A Figura 10 mostra o espectro de primento de onda médio de emissão do fenômeno reside no estudo dos gases
uma lâmpada de Hg comercial obtido LED vermelho próximo a 650 nm, valor das camadas atmosféricas das estrelas
com um espectroscópio manual. compatível com os anteriormente obtidos. que acabam por absorver certos com-
De modo a permitir comparações primentos de onda, deixando linhas
com os demais métodos, obtivemos o escuras no espectro observado. Como
espectro de um LED vermelho tam- Espectro de absorção de gases cada elemento absorve apenas os
bém a partir deste espectroscópio, Para se obter um espectro de comprimentos de onda que lhe são
indicado na Figura 11. absorção de um gás deve-se fazer com característicos, através destas linhas
que uma radiação de es-
pectro contínuo e inten-
so atravesse o gás de
modo que este absorva
as radiações com ener-
gias que lhe são carac-
terísticas. Utilizaremos
aqui como fonte uma
lâmpada de sódio comer-
cial que apresenta uma
propriedade muito pecu-
Figura 9. Espectroscópio manual segundo liar e bastante útil para Figura 13. Montagem utilizada para a observação do
Cavalcante e Tavolaro [16]. a observação de linhas de espectro de absorção do Na.

78 Experiências em Física Moderna Física na Escola, v. 6, n. 1, 2005


absorvidas podemos identificar os
gases que compõem essas camadas
atmosféricas.
Determinação da constante de
Planck utilizando LEDs

Determinação da constante de Planck


a partir do espectro de emissão de
um LED
Figura14a. Espectro de 1a ordem do Na observado através de uma rede de 300 linhas/ A determinação da constante de
mm quando ligamos a lâmpada (nos primeiros 30 s). Planck a partir da radiação emitida
por um LED é um método bem conhe-
cido e os detalhes sobre este experi-
mento podem ser vistos em Caval-
cante e Tavolaro [6], onde determina-
se a constante de Planck a partir de
informações relativas à curva caracte-
rística de um LED. Admite-se que a
energia necessária para o acendimento
de um LED é no mínimo igual à ener-
gia emitida pela radiação de maior
intensidade. Podemos portanto dizer
que a constante de Planck é determi-
nada a partir da emissão de radiação
de um LED.
Figura14b. Espectro de emissão do Na observado após 1 minuto. Após este intervalo de Um diodo emissor de luz consiste
tempo começam a surgir as demais linhas de emissão características do Na. em uma junção entre semicondutores
fortemente dopados. De acordo com
o diagrama de energias (Figura 16),
ao aplicarmos um campo elétrico ex-
terno oposto à junção pn, estaremos
polarizando-a diretamente, fazendo o
diodo conduzir, isto é, a corrente elé-
trica obtida aumenta com a tensão
aplicada.
Dessa forma, os elétrons de con-
dução ganham energia suficiente para
vencer a barreira de potencial e cami-
nham para a região p. Podemos ver
Figura 15a. Espectro observado transcorrido cerca de 3 minutos em que a lâmpada foi na Figura 16 que para os elétrons de
ligada. maior mobilidade penetrarem na re-
gião p, a quantidade de energia míni-
ma necessária é dada por:
eVaplicada = EG + ∆EF, (3)
onde ∆EF incorpora os efeitos do nível
de Fermi e a distribuição de elétrons
na banda de condução.
Quando o elétron passar para a
região p, podemos ter uma recombi-
nação entre elétrons e buracos e, como
conseqüência, para cada transição
teremos a emissão de um fóton com
energia hν. Em geral, ∆EF é muito pe-
queno e pode ser desprezado em pri-
Figura 15b. Absorção das linhas associadas às transições que envolvem o estado funda- meira aproximação. Admitindo que a
mental do Na. freqüência de radiação de intensidade

Física na Escola, v. 6, n. 1, 2005 Experiências em Física Moderna 79


Figura18a. O visor do voltímetro indica o
valor de tensão necessária para o LED
vermelho acender (1,65 V).
Figura 16. Diagrama de energias para uma junção p-n.

máxima pode ser escrita em termos Usando os resultados anteriores


do limiar de tensão (aquele valor para para o comprimento de onda do LED
o qual o diodo começa a conduzir cor- vermelho, isto é, um valor da ordem
rente), temos de 650 nm e a Eq. (4) , obtém -se para
hν = eV, (4) a constante de Planck um valor de:
onde V corresponde ao limiar de ten- h = eVλ/c = 5,7 x 10-34 J.s
são aplicada aos terminais do LED Já para o LED verde obtivemos
para fazê-lo acender e pode ser um valor de emissão da ordem de
determinado através da curva carac- 560 nm, o que nos fornece um valor
terística do LED. de 5,8 x10-34 J.s para a constante de Figura18b. O visor do voltímetro indica
No entanto, caso se tenha interes- Planck. Estes valores são muito satis- o valor de tensão necessária para o acen-
se apenas em obter informações acer- fatórios se considerarmos todas as dimento do LED verde (1,85 V). Observe
que o LED vermelho neste caso encontra-
ca da ordem de grandeza da constante aproximações realizadas.
se totalmente aceso, já que apresenta com-
de Planck, basta variarmos a tensão primento de onda maior e, portanto,
nos terminais do LED até que a luz Determinação da constante de Planck
a partir da absorção de um LED requer menor energia para iniciar o seu
emitida possa ser visualizada direta- processo de condução.
mente. Um LED, como todo semicondu-
O esquema do circuito para a tor, aumenta sua condutividade à realizado de modo a comprovar a
obtenção da ordem de grandeza da medida que fótons de energia corres- propriedade ressonante de um LED
constante de Planck encontra-se na pondente a sua “banda de emissão” como sensor de radiação. Para isso
Figura 17. incidem sobre ele. Esta propriedade basta conectar os terminais de um
O procedimento consiste em alte- nos permite utilizar um LED como LED a um voltímetro (utilize escala
rar a tensão aplicada aos terminais um sensor de radiação com uma res- máxima de 2 V) e inicialmente veri-
dos LEDs através do potenciômetro posta espectral definida pela largura fique sua resposta com o aumento da
até que seja visualizada a luz de emis- de sua banda de emissão. Podemos incidência de luz.
são de cada LED. O LED de maior com- dizer, portanto, que a corrente elétrica O próximo passo consiste em de-
primento de onda necessita de menor fornecida pelo LED, na incidência de monstrar a sua resposta ressonante.
energia para acender. As Figuras 18a uma radiação ressonante, é propor- Um LED vermelho, por exemplo, res-
e 18b mostram um exemplo de mon- cional à intensidade de luz incidente. ponderá apenas a radiação de compri-
tagem e os valores correspondentes de Os LEDs vêm sendo utilizados mento de onda na faixa de 600 nm.
tensão para acendimento de cada um como sensores de radiação em fotô- Para isso disponha diferentes filtros
dos LEDs. metros solares [19-22] desde 1992, diante do LED e verifique que só se
apresentando uma lar- obtém um valor significativo para a
gura típica de resposta tensão de saída na presença de um fil-
na região de 550 a 700 tro vermelho. O LED verde, por sua
nm da ordem de 25 a 35 vez, responderá significativamente
nm, o que nos permite para o filtro verde.
selecionar adequada- Uma outra observação muito
mente o comprimento de interessante consiste em incidir sobre
onda da radiação. o LED verde um feixe de luz de uma
Figura 17. Diagrama elétrico para a obtenção da ordem Um experimento ponteira laser. As ponteiras lasers
de grandeza da constante de Planck. muito simples pode ser comerciais em geral emitem radiação

80 Experiências em Física Moderna Física na Escola, v. 6, n. 1, 2005


de comprimento de onda de 630 a
680 nm, que não é ressonante para o
LED verde mas o é para o vermelho.
Mesmo na presença de um feixe
bastante intenso quanto o proveniente
de uma ponteira laser, o LED verde é
praticamente insensível. O único LED
que responde de maneira significativa
ao feixe da ponteira laser é aquele cuja
resposta espectral intercepta a sua fai-
xa de emissão, ou seja, o LED verme-
lho. Cavalcante e Haag [23] desenvol-
veram um trabalho que permite
determinar a constante de Planck
utilizando LEDs como sensores de
radiação.
A Eq. (5) é a aproximação de Wien
para a energia emitida por unidade de
tempo e de área, à temperatura T e Figura 19. Gráfico obtido para a tensão nos terminais de cada LED em função da
comprimento de onda λ no intervalo temperatura de aquecimento do filamento.
dλ, por um filamento de tungstênio
aquecido: qüência, aconselha-se a utilização de Observa-se facilmente a relação
um amplificador. Nos fotômetros so- linear entre ln(VLED) x 1/T, indicando
, (5)
lares tem sido utilizado como amplifi- a aplicabilidade da aproximação de
cador o CI 741, na configuração de Wien para o filamento.
onde I é potência emitida pelo filamen- conversor “corrente x tensão”, onde a Por outro lado, a constante de
to de tungstênio, por unidade de área, corrente gerada é convertida em ten- Planck pode ser obtida a partir da
por unidade de comprimento de onda, são. Nessa configuração, a tensão inclinação da reta, sendo dada por:
em um intervalo de comprimento de presente na saída do amplificador h = inclinação da reta. λKB/c, (6)
onda dλ em torno de λ, λ é o compri- operacional, será linearmente propor-
onde, em uma primeira aproximação,
mento de onda, T é a temperatura em cional à intensidade da radiação rece-
λ corresponde ao comprimento de
Kelvin, β = 1/kBT, com kB a constante bida pelo LED. Um esquema deste am-
onda da radiação de máxima intensi-
de Boltzmann, h a constante de plificador é descrito por Cavalcante e
dade emitida pelo LED. A Tabela 2
Planck, c a velocidade da luz e a emis- Haag [23]. No entanto é possível tam-
fornece os resultados obtidos.
sividade média do tungstênio (pratica- bém obter medidas de tensão direta-
Pode-se determinar experimental-
mente independente do comprimento mente nos terminais de cada LED. Para
mente o comprimento de onda de
de onda e da temperatura, que o ca- isso devemos aproximar o LED da
emissão do LED utilizando qualquer
racteriza como um “corpo cinza”). lâmpada de filamento. Ainda assim
um dos métodos propostos neste tra-
Analisando a equação, percebe-se temos uma redução no número de
balho. Os valores dos comprimentos
que o gráfico de ln(I) x 1/T deve nos pontos para baixas temperaturas, já
de onda indicados na coluna 2 da
fornecer uma reta cuja inclinação é que nesta região há um decréscimo
Tabela 2, bem como as corresponden-
dada por hc/λkB, permitindo portanto significativo na intensidade de radia-
tes larguras espectrais, foram obtidos
obter informações sobre a constante ção emitida pelo filamento (aconse-
por visualização direta através de um
de Planck. lha-se trabalhar com tensões nos
espectroscópio manual.
Nossa proposta é utilizar um LED terminais do LED sempre abaixo de
Verifica-se facilmente a partir da
como sensor da luz emitida pelo fila- 1,0 V).
Eq. (6), que a relação entre as inclina-
mento e como conseqüência a corren- Os resultados obtidos para os
ções das retas obtidas para ln(VLED) x
te gerada será proporcional à intensi- LEDs vermelho, verde e azul estão
1/T nos fornece a relação entre as fre-
dade de radiação incidente com indicados na Figura19.
qüências de emissão dos LEDs envol-
comprimento de onda λ no intervalo
dλ. O procedimento consiste em obter
Tabela 2.
informações sobre a corrente ou
tensão fornecida pelo LED em função Cor do LED Comprimento de onda Inclinação Valor de h
da temperatura de aquecimento do e largura espectral (nm) da reta (x10–34) J.s
filamento. É importante alertar para Vermelho 649 ± 24 19253 5,8 ± 0,3
o fato de que, em geral, essa “fotocor- Verde 562 ± 31 22796 5,9 ± 0,4
rente” assume valores da ordem de Azul 459 ± 28 28132 5,9 ± 0,4
poucos microamperes e, como conse-

Física na Escola, v. 6, n. 1, 2005 Experiências em Física Moderna 81


Tabela 3. enfoque à caracterização das radiações
Relações Relação entre as inclinações Relação entre as freqüências que compõem o espectro eletromag-
das retas de emissão nético. Os recursos de baixo custo e a
metodologia desenvolvida constituem
Verde/Vermelho 1,18 1,15 ± 0,08
uma ferramenta tecnológica acessível
Azul/vermelho 1,46 1,41 ± 0,11 para identificação das radiações no es-
Azul/verde 1,23 1,22 ± 0,10 tudo dos mais variados tipos de estru-
tura, de gases a sólidos incandes-
vidos. A Tabela 3 apresenta a relação atribuídos principalmente a erros na centes. Atenção especial foi dedicada
obtida para cada caso. determinação da temperatura do fila- aos semicondutores - mostramos que
Nota-se que a precisão dos resul- mento. O cálculo dessa temperatura LEDs comerciais podem substituir
tados obtidos neste experimento está depende dentre outras variáveis da re- tanto as fontes como os sensores de
limitada à largura de emissão de cada sistência elétrica do filamento a zero luz na incansável e importante tarefa
LED, o que é indicado na 3a coluna e grau Celsius [23] e a estimativa desse de verificar a validade de modelos
que para o pior caso nos conduz a valor é bastante difícil de ser efetuada. através da determinação de constantes
precisões da ordem de 8%. De qualquer modo, podemos dizer que físicas: o modelo do quantum de luz e
A concordância entre as relações a aproximação de Wien para a energia a constante de Planck. Dessa forma,
indicadas nas colunas 2 e 3 da Tabela 3 emitida pelo filamento foi verificada. esperamos contribuir para o enrique-
nos leva a crer que os desvios obser- cimento das abordagens experimen-
vados para os valores da constante de Conclusão tais como estratégia para o ensino de
Planck indicados na Tabela 2 devem ser Neste trabalho procuramos dar física moderna no Ensino Médio.

Referências (2001). Moderna Experimental (Editora Manole,


[9] N. Studart, Física na Escola 4 :2, 4 (2003). São Paulo, 2003)
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16, 123 (1999a). acesso ao texto completo na pagina
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○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

Novidade
A Sociedade Brasileira de Química lançou o
sexto Caderno Temático de Química Nova na
Escola e dois CD-Roms especiais: um con-
tendo os fascículos de QnEsc de números 1
a 20 e outro contendo os Cadernos Temá-
ticos de Químina Nova na Escola de números
1 a 5.
Maiores detalhes sobre esta publicação
da SBQ, que já está em seu vigésimo pri-
meiro número, pode ser encontrada no sítio
da Sociedade:

http://www.sbq.org.br

82 Experiências em Física Moderna Física na Escola, v. 6, n. 1, 2005


○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

N
o dia 24 de janeiro de 1920, ser obedecido, feito também em jor- Antonio Augusto Passos Videira
quase um ano após a ocor- nal, pelo astrônomo brasileiro Henri- Universidade do Rio de Janeiro
rência do já então famoso que Morize, a saber: durante o eclipse e-mail: guto@cbpf.br
○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○
eclipse de Sobral, uma carta assinada as pessoas deveriam se manter calmas
por Frank H. Dyson era publicada no e em silêncio, o que implicava, por
jornal Correio da Manhã. A carta tinha exemplo, não soltarem fogos de artifí-
como objetivo agradecer a colabora- cio, pois estes poderiam atrapalhar a
ção prestada pelo seu destinatário, o qualidade das chapas fotográficas.
Dr. José Jacome d’Oliveira, o então Morize, no dia 24 de maio de 1919,
prefeito da cidade, aos astrônomos publicou no Correio da Manhã um ex-
ingleses Charles Davidson e Andrew tenso artigo, descrevendo como seria
Crommelin, que foram a Sobral com o eclipse. Em particular, por que esse
o intuito de verificar a existência do seria o principal objetivo da expedição
“efeito Einstein”. Além do agradeci- brasileira, comandada pelo próprio
mento, polido, mas Morize. Nesse artigo
A população de Sobral foi
sincero, dadas as encontramos uma
muito prestativa, chegando
dificuldades exis- descrição de aspectos
mesmo a acatar sem
tentes para a orga- visuais interessan-
protestos um pedido feito
nização de expedi- tes, apresentados pe-
(em jornal), por Morize:
ções astronômicas, lo Sol durante o
durante o eclipse as pessoas
já que elas exigem eclipse, como as pro-
deveriam se manter calmas
um grande suporte tuberâncias. Morize,
e em silêncio, o que
logístico, a carta e aqui encontramos
implicava, por exemplo, não
transmitia a infor- a explicação para o
soltarem fogos de artifício,
mação de que “...a estranho pedido fei-
pois estes poderiam
Expedição foi intei- to aos moradores de
atrapalhar a qualidade das
ramente bem suce- Sobral, ignorando o
chapas fotográficas
dida....”. Ou seja, grau de conheci-
as fotografias tiradas pelos astrôno- mento da população a respeito de
mos ingleses comprovaram o desvio eclipses, mencionou ainda que eles
da luz pela presença de campos gravi- não erram nocivos à saúde humana.
tacionais intensos. A colaboração prestada pela po-
Obviamente, contudo, não foi pulação da cidade de Sobral não
apenas o Dr. José Jacome d’Oliveira a entrou para a história da Ciência. A
única pessoa a contribuir para o su- rigor, nem mesmo a colaboração O presente trabalho descreve o famoso eclipse
cesso da expedição. Muitas outras pes- prestada por Morize, autor de um solar total de 1919, importante para confirmar
soas, conhecidas ou não, tiveram pa- relatório minucioso e enviado a vários uma das predições da teoria da relatividade geral
de Albert Einstein (1879-1955), aquela que
pel nesse evento. Cientistas, políticos observatórios, possíveis candidatos
afirmava a existência de um desvio da trajetória
e a própria população deram a sua para o envio de expedições ao Ceará, dos raios luminosos. Em particular, são des-
parte. A se crer nos relatos dos partici- uma das melhores regiões para a critos os eventos acontecidos durante o período
pantes da expedição inglesa, de fato, observação do eclipse, é corretamente de organização das duas expedições inglesas
responsáveis pela obtenção dos dados empíri-
a população de Sobral foi muito pres- citada pelos livros que mencionam
cos. Comenta-se também a participação brasi-
tativa, chegando mesmo a acatar sem esse importante evento astronômico. leira, bem como a preocupação com o compor-
protestos um pedido, nada trivial de Pouco importa. Não se trata, no pre- tamento da população da cidade de Sobral.

Física na Escola, v. 6, n. 1, 2005 Einstein e o Eclipse de 1919 83


sente artigo, de contar a história desse truir uma física válida para todo e são iguais, o que faz com que as traje-
eclipse com o intuito de recuperar a qualquer sistema de referência. tórias dos corpos, sob a ação da força
participação de Morize e de outros No processo de construção da gravitacional (em termos modernos,
cientistas brasileiros para sanar uma TRG, Einstein usou como um de seus seria correto falar em campo gravita-
lacuna nos anais da historiografia da pontos de partida uma observação cional), sejam independentes de suas
Ciência. O meu objetivo com este tra- conhecida desde Galileu: no vácuo, massas. Essa constatação, já empre-
balho é outro: apresentar fatos rela- todos os corpos caem do mesmo gada por Newton, ganhou um outro
cionados à preparação inglesa para modo, independentemente de suas estatuto nas mãos de Einstein, pas-
que o eclipse solar total de 29 de maio naturezas. Einstein ficou maravilha- sando a ser considerado um novo
de 1919 fosse um completo sucesso. do com a exatidão com que essa lei princípio físico. De forma muito bre-
Se há uma conclusão a ser enfatizada foi verificada. Tal exatidão fez com ve, na gravitação que o físico suíço-
neste artigo, ela pode ser descrita co- que suspeitasse que essa lei não des- alemão propôs em fins de 1915, pu-
mo: as revoluções científicas, caso crevia uma mera propriedade dos cor- blicada no início do ano seguinte, os
existam, são cuidadosamente prepa- pos em queda livre. Na verdade, ela corpos, que se encontram sob a ação
radas. seria um princípio de um campo gra-
Como veremos neste artigo, a da natureza, deno- Em 1915, após imenso vitacional, têm as
comprovação da teoria da relatividade minado por Eins- esforço intelectual e mesmo suas trajetórias di-
geral de Einstein resultou do esforço tein de Princípio de físico, Einstein tornou retamente determi-
conjunto de cientistas e não-cientistas Equivalência (PE). pública a sua teoria da nadas pela massa
de vários países, entre os quais do Sendo um princípio relatividade geral, propondo responsável pelo
Brasil e da Inglaterra. da natureza, o PE tornar os sistemas não- campo. Uma traje-
deveria ser aplicado inerciais ‘equivalentes’ aos tória, que em uma
Einstein e a teoria da à gravitação, apon- geometria plana se-
sistemas inerciais. Assim, ele
relatividade geral tando para o fato de procurou construir uma ria retilínea, na teo-
Aproximadamente dois anos após que as massas dos física válida para todo e ria de Einstein pas-
a criação da teoria da relatividade res- corpos, que sofrem qualquer sistema de sou a ser uma geo-
trita (TRR), entre outros fantásticos a ação de um cam- referência désica do espaço,
resultados obtidos em 1905, Einstein po gravitacional tornado curvo de-
tomou a decisão de resolver um qualquer, não interfeririam nas equa- vido à presença de corpos maciços.
problema que acometia a teoria new- ções que determinam os seus movi- Desde 1907, ano em que Einstein
toniana da gravitação. O problema mentos. começou a colocar no papel as idéias
em questão pode ser resumidamente Em sua teoria da gravitação, que o levariam a TRG, ele tentava ex-
descrito com as seguintes palavras: Newton empregou dois conceitos trair algumas conclusões a respeito
no quadro teórico da TRR, o conceito diferentes de massa: a massa gravita- da gravitação compatibilizada com a
de velocidade é relativo, o que não cional, responsável pela presença da TRR. É, inclusive, importante obser-
acontece com o conceito de acele- força da gravidade, e a massa inercial, var que Einstein procurava extrair
ração. Tal situação faz com que o que representa a reação de um corpo conseqüências que pudessem ser
sistema inercial ocupe um lugar pri- a uma força qualquer. Desde New- submetidas ao crivo da experiência.
vilegiado na teoria newtoniana. Aos ton, sabe-se que essas duas massas Por essa mesma época, Einstein estava
olhos de Einstein, essa situação era
sinal de que existia uma incompati-
bilidade de princípios entre a TRR e a
teoria da gravitação formulada por
Isaac Newton. Sendo um homem de
fortes convicções científicas e adepto
do uso de princípios como fonte heu-
rística para a prática da Ciência, Eins-
tein recusou-se a aceitar que os siste-
mas inerciais desfrutariam de uma
situação privilegiada quando compa-
rados aos sistemas não-inerciais. Em
fins de 1915, após um imenso esforço
intelectual e mesmo físico, Einstein
tornou pública a sua teoria da relati-
vidade geral (TRG), com a qual propôs Equipes brasileira e inglesa em Sobral, entre outras pessoas. Henrique Morize é o quarto,
tornar os sistemas não-inerciais em pé, da esquerda para a direita. Os astrônomos ingleses estão sentados: A.C.D. Crom-
‘equivalentes’ aos sistemas inerciais. melin é o quarto da esquerda para a direita; C.R. Davidson é o quinto (Observatório
Com a TRG, Einstein procurou cons- Nacional/MCT).

84 Einstein e o Eclipse de 1919 Física na Escola, v. 6, n. 1, 2005


ficação experimental necessária. O carta de agradecimentos mencionada
primeiro astrônomo que o ajudou foi no início deste trabalho. Eddington
o alemão Erwin Freundlich, do Obser- era o secretário geral dessa mesma
vatório de Berlim. A primeira tenta- associação. Além disso, ele era
tiva de Freundlich não deu certo, pois catedrático de astronomia na Univer-
ele usou fotografias de estrelas tiradas sidade de Cambridge. Atualmente,
por ocasião de antigos eclipses, mas sabe-se que foi Eddington o principal
que não foram feitas com o objetivo responsável pela decisão dos ingleses
de calcular o desvio da luz. Para isso, organizarem e enviarem duas expe-
seria fundamental poder registrar dições diferentes (uma para Sobral e
imagens por ocasião de um eclipse. outra para a Ilha de Príncipe, então
Equipamento usado pela equipe inglesa
A importância do eclipse de 1912, que uma possessão colonial portuguesa
em Sobral (Science Museum/Science and
Society Picutre Library).
também foi observado do Brasil - na costa ocidental da África) com o
mais precisamente no sul do estado único objetivo de comprovar as idéias
convencido de que a nova teoria im- de Minas Gerais - foi que ele se cons- de um cientista, ainda que apenas for-
plicaria dois efeitos físicos: 1) os reló- tituiria na primeira tentativa de regis- malmente, oriundo de um país ini-
gios funcionariam mais lentamente trar fotograficamente o desvio. No migo. Não se deve esquecer que a
nas proximidades de um campo gra- entanto isso não foi possível, pois no decisão inglesa foi tomada pouco
vitacional intenso e ocorreria uma dia do eclipse choveu torrencialmente, tempo antes do fim da Primeira
mudança das freqüências em que um impedindo toda e qualquer observa- Guerra Mundial.
átomo emite radiação nas mesmas ção. Registre-se também que o perso- As atividades que Eddington rea-
circunstâncias e 2) o caráter curvo nagem central no eclipse de 1919, lizou em favor da teoria da gravitação
da trajetória da luz no espaço. Eddington, esteve no Brasil para de Einstein foram múltiplas. Ele escre-
Em 1911 Einstein teve uma idéia participar do evento. É provável que veu um dos primeiros textos introdu-
que lhe permitiu esclarecer o desvio o primeiro contato de Eddington com tórios a essa teoria. Divulgou-a junto
dos raios luminosos ao realizar que as idéias de Einstein tenha ocorrido aos públicos especializado e não-
poderia aplicar o princípio de nesse momento. especializado. Para o eclipse de Sobral,
Huygens a respeito da propagação em O fracasso do eclipse de 1912 não a participação de Eddington foi deci-
linha reta da luz e as leis de reflexão e desanimou a comunidade internacio- siva, não apenas pela influência que
refração. Como o efeito é muito fraco, nal de astrônomos interessada em exerceu no comitê permanente de
sua medição requer um campo comprovar as idéias einsteinianas eclipses, mas também porque organi-
gravitacional muito intenso. Para a sobre a gravitação. Pouco tempo de- zou uma propaganda na imprensa
sua verificação experimental, seria pois, Henrique Morize, acionado por que foi muito favorável à recepção
preciso obter duas fotografias, uma Charles Perrine, astrônomo norte- das idéias de Einstein. O cientista
do campo de estrelas durante a americano e diretor do Observatório inglês, ajudado por colegas e
passagem do corpo maciço (por de Córdoba, na Ar- membros da im-
exemplo, o Sol) diante dele e outra do gentina, começou a Eddington foi o principal prensa, montou
mesmo campo de estrelas sem a pre- trabalhar em um responsável pela decisão uma cuidadosa es-
sença desse corpo, e comparar, nas relatório de modo a dos ingleses organizarem e tratégia de propa-
duas imagens, as posições das estrelas apontar as condi- enviarem duas expedições ganda nos jornais
mais próximas da borda desse corpo. ções que reinariam diferentes com o único britânicos. Durante
Se o efeito existisse, a posição dessas no Brasil por oca- objetivo de comprovar as dez meses, o The
estrelas estaria ligeiramente modifi- sião do eclipse de idéias de um cientista, ainda Times publicou vá-
cada. Caso o Sol fosse usado como 1919, o qual seria que apenas formalmente, rios artigos tratan-
‘corpo teste’ para as idéias de Einstein excepcional em fun- oriundo de um país inimigo do do eclipse de
restaria uma outra dificuldade, ção do seu tempo de 1919.
causada pela luminosidade do Sol, já duração. Morize escreveu o tal relató- A primeira menção ao eclipse na
que esta impediria que as estrelas rio, o qual foi enviado para vários imprensa foi uma curta nota, intitu-
mais próximas da sua borda fossem observatórios no mundo. No seu lada ‘Próximo eclipse do Sol’, e pu-
fotografadas. Obter as fotografias relatório, Morize indicava que a blicada no dia 13 de janeiro de 1919.
com o Sol no céu, mas sem a sua luz, cidade de Sobral, no Ceará, seria um Essa nota afirmava que o astrônomo
seria possível em apenas uma única excelente local de observação. real enviaria proximamente ao norte
circunstância: durante um eclipse so- O relatório de Morize foi acolhido, do Brasil dois astrônomos para a
lar total. por exemplo, pelo Joint Permanent observação do eclipse de final de maio.
Eclipse Committee, órgão oficial da Três meses depois, um outro artigo,
Sobral e o eclipse Royal Astronomical Society para desta feita maior e mais completo,
Como físico teórico, Einstein não eclipses. Na época, o astrônomo real contava sobre os objetivos da expe-
tinha como conseguir sozinho a veri- era Dyson, o mesmo que redigiu a dição, acentuando a sua ligação com

Física na Escola, v. 6, n. 1, 2005 Einstein e o Eclipse de 1919 85


algumas horas depois, as nuvens se com as fotografias do telescópio de
dissiparam e um clarão abriu-se entre quatro polegadas foram consideradas
elas. O Sol permaneceu nesse buraco as melhores, com um desvio médio
durante praticamente todo o eclipse, 1,98 segundos de arco com uma
possibilitando a realização de fotogra- margem de erro de ± 0,12. As placas
fias. Do outro lado do Atlântico cho- do astrógrafo da Ilha de Príncipe
veu torrencialmente durante a ma- deram um valor médio para o desvio
nhã, mas no momento do eclipse de 1,61 segundos de arco com uma
Eddington e Cottingham consegui- margem de erro de ±0,30. As placas
ram tirar fotografias. do astrógrafo de Sobral forneceram
As fotografias, reveladas mais o valor de 0,97 segundos de arco, o
tarde em Londres, apresentaram que corresponderia ao valor calculado
resultados bem diferentes. Daquelas pela teoria newtoniana. Esse valor,
obtidas na Ilha de Príncipe, apenas contudo, foi descartado em função da
duas foram usadas, embora regis- baixa qualidade das imagens. Tal foi,
trassem apenas seis ou sete estrelas. ao menos, a argumentação oficial, o
A situação em Sobral foi inteiramente que foi posteriormente contestado.
outra. Davidson e Crommelin consi- Hoje em dia, permanecem poucas
Imagem do eclipse solar de 29 de maio de deraram entre satisfatórias e excelen- dúvidas com relação ao fato de que
1919, foto tirada pela equipe brasileira tes as várias placas tiradas com um Eddington, no que foi acompanhado
(Observatório Nacional/MCT). telescópio de quatro polegadas. por Dyson e Davidson, seus com-
Nessas imagens, sete estrelas apa- panheiros no artigo que apresentou
a teoria da gravitação de Einstein. No reciam nitidamente. Aquelas fotogra- os resultados das expedições, delibe-
próprio dia do eclipse, 29 de maio, fias tiradas com o astrógrafo de radamente deixou de lado esses resul-
saiu uma nota acerca do esquema Greenwich continham doze estrelas, tados.
telegráfico de comunicação entre as as quais apareciam difusamente. A
expedições e Londres montado para explicação sugerida para isso foi que, A participação brasileira
a transmissão de informações rela- no momento do eclipse, a regulagem A expedição brasileira, chefiada
tivas ao eclipse. Mesmo após a do astrógrafo teria sido alterada em por Morize e composta por Lélio Ga-
ocorrência do evento, a população era função da queda brusca de tem- ma, Allyrio de Mattos, Th. H. Lee e
mantida a par dos trabalhos de peratura dentro da luneta. Em Domingos Costa, chegou a Sobral
análise das imagens obtidas na Ilha meados de julho, os dois astrônomos no dia 9 de maio. Morize publicou,
de Príncipe e em Sobral. Eddington e retornaram a Sobral para fotografar em 1920, na Revista de Sciencias,
Dyson não economizam esforços o mesmo campo de então o órgão ofi-
para criar interesse e expectativa estrelas, desta vez O dia 29 de maio cial da Academia
junto à população para os resultados sem a presença do amanheceu completamente Brasileira de Ciên-
finais. Sol. nublado, mas as nuvens se cias, um relatório
As duas expedições inglesas em- O cálculo da dissiparam e um clarão sobre as observa-
barcaram no dia 8 de março de 1919 medida do efeito abriu-se entre elas. O Sol ções brasileiras. O
para viagens que durariam seis previsto por Eins- permaneceu nesse buraco principal objetivo
meses; elas se separaram em Lisboa. tein não foi um durante praticamente todo o da expedição brasi-
Duas semanas depois da sua partida, processo simples. eclipse, possibilitando a leira era fazer
Crommelin e Davidson chegaram ao Em todas as placas realização de fotografias. observações espec-
estado do Pará. Informados de que analisadas, as es- Em meados de julho, os troscópicas da co-
Morize ainda não chegara a Sobral, trelas estavam astrônomos retornaram a roa solar. Segundo
os dois partiram para Manaus, onde situadas a alguma Sobral para fotografar o suas próprias pala-
permaneceram um mês. A expedição distância do Sol. mesmo campo de estrelas vras: A forma e a
inglesa chegou à cidade cearense no Para calcular o va- sem a presença do Sol disposição da coroa
dia 26 de abril. Os astrônomos lor do desvio na [solar], assim como
ficaram hospedados na casa de um borda solar era preciso estimar as a indagação espectroscópica de sua
deputado da cidade, situada em frente distâncias de cada uma das estrelas e composição constituíram, pois, os dois
à pista de corridas do Jockey Clube, de seus raios luminosos ao centro do principais assuntos do programa da
local onde foram instalados os Sol e aplicar a lei do decrescimento Comissão Brasileira em sua expedição
equipamentos usados durante a do desvio, dada por 1/r. Além disso, a Sobral...
observação do eclipse. era preciso tomar cuidado com Apesar de ter enfrentado proble-
Segundo o relatório escrito por deslocamentos ou rotações nas placas mas com alguns instrumentos, a
Crommelin, o dia 29 de maio ama- e com a aberração e a refração. Rea- comissão brasileira conseguiu fazer
nheceu completamente nublado; lizada a análise, as medidas obtidas as obser vações desejadas, o que

86 Einstein e o Eclipse de 1919 Física na Escola, v. 6, n. 1, 2005


permitiu Morize afirmar, em seu apresentação das possibilidades de que a lei de Einstein (era desse modo
trabalho de 1920, que também os resultados quantitativos que não dei- que ele se referia à TRG) teria sido
brasileiros tinham alcançado os seus xava muitas margens para que a TRG confirmada pelas expedições.
objetivos. Afinal, o que estava em não fosse sancionada pelas conclusões Silberstein não foi, naquele dia, pra-
jogo, para Morize, em última ins- das expedições. ticamente ouvido. O responsável pela
tância, era mostrar a competência Eddington trabalhou o tempo to- condução dos trabalhos daquela
científica dos cientistas brasileiros, do com três possíveis resultados para sessão, J.J. Thomson, o descobridor
bem como a da instituição da qual as medições, todos do elétron, se co-
ele era o diretor: o Observatório eles referentes a um Eddington tinha grande locou ao lado da-
Nacional. raio de luz que pra- preferência pela teoria da queles três, apesar
ticamente tocasse a relatividade em detrimento de reconhecer pu-
Conclusão: Newton derrubado borda do disco so- da gravitação newtoniana. blicamente que a
A literatura secundária sobre o lar: a) um desvio Essa preferência era tão audiência não tinha
eclipse de Sobral e a sua contribuição igual a zero, o que grande que ela levou o capacidade de au-
para a confirmação empírica da TRG exigiria que se for- astrônomo inglês a ferir completa-
não deixa dúvidas a respeito do papel mulasse uma nova deliberadamente escolher mente o sentido das
de Eddington e da sua preferência por compreensão da as imagens que melhor se figuras que foram
essa teoria em detrimento da gravi- composição da luz; adequavam ao propósito de exibidas. Ele con-
tação newtoniana. Essa preferência b) um desvio igual comprovar a ‘lei de Einstein’ fiava na qualidade e
era tão grande que ela levou o astrô- 0,87 segundo de na seriedade da
nomo inglês a deliberadamente esco- arco (este resultado confirmaria a análise levada a cabo por Dyson e
lher as imagens que melhor se ade- teoria de Newton); e c) um desvio de Eddington.
quavam ao propósito de comprovar 1,75 segundo de arco, explicado pela Após muito tempo de trabalho,
a ‘lei de Einstein’, como ele se referia TRG de Einstein. Ainda que existissem o clima estava maduro o suficiente
à TRG. No seu trabalho junto à im- outras explicações potenciais para os para que se proclamasse que uma
prensa, Eddington cuidadosa e delibe- diferentes graus de deflexão da luz, revolução na Ciência havia sido
radamente escolheu um modo de tal como, por exemplo, aquela que realizada. Vista a partir da perspectiva
conjeturava a existência de de uma estratégia deliberada e pla-
uma atmosfera refrativa no nejada, a manchete do The Times,
Sol, Eddington e Dyson publicada no dia 7 de novembro, não
somente levaram em con- pareceu exagerada: “Revolution in
sideração as predições de Science – New Theory of the Universe
Newton e Einstein. Ao eli- – Newtonian Ideas Overthrown:
minarem outras possibi- Revolução na Ciência – Nova Teoria
lidades, Eddington e seus do Universo – Idéias Newtonianas
colegas defendiam que todo derrotadas”. Começava, então, a
e qualquer resultado supe- construção da fama mundial de
rior ao valor “newtoniano” Einstein.
somente poderia ser expli-
cado pela teoria de Einstein.
Essa posição contribuiu Referências
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rável à teoria einsteiniana. gravitational red shift as a test of gen-
No dia 6 de novembro eral relativity: History and analysis.
Studies in History and Philosophy of
de 1919, quando houve a Science 11
11, 175 (1980).
reunião oficial para a divul- Jean Eisenstaedt and Antonio Augusto Pas-
gação dos resultados, o cli- sos Videira, A prova cearense das teo-
ma reinante na sala em que rias de Einstein ou como a cidade de
Sobral entrou para a história da Ciên-
ocorreram as conferências cia. Ciência Hoje 20
20:115, 25 (1995).
de Dyson, Crommelin e Henrique Morize: Resultados obtidos pela
Eddington, era de muita Comissão Brasileira do eclipse de 29
expectativa. Após a apre- de maio de 1919. Revista de Sciencias
3 :IV, 65 (1920).
sentação dos resultados Alistair Sponsel, Constructing a ‘revolution
somente uma pessoa, in science’: The campaign to promote
Ludwig Silberstein, se pro- a favourable reception for the 1919
nunciou publicamente con- solar eclipse experiments. British Jour-
Descrição do eclipse e de seus resultados publicado no
nal of History of Science 35 35, 439
Illustrated London News (Illustrated London News Pic- tra a interpretação sus- (2002).
ture Library). tentada por Eddington de

Física na Escola, v. 6, n. 1, 2005 Einstein e o Eclipse de 1919 87


A
○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

Alexandre Medeiros noite estava animada ao redor geral para o nascimento da física mo-
SCIENCO do açude velho de Campina derna, ainda que de forma muito
e-mail: alexandre@scienco.com.br Grande. Camello, Stanley e breve, para depois me concentrar nas
○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○
Jobson, todos professores de Física do origens mais específicas da relativi-
Ensino Médio, discutiam as dificul- dade restrita. Como a Cleide sugeriu,
dades da introdução da física moderna eu poderia desenvolver os outros
em suas aulas. João Tertuliano, nosso temas depois em outras entrevistas.
anfitrião da UFCG, ouvia atentamente Lula: Quais seriam esses outros
as ponderações dos colegas e refletia temas?
com eles sobre o seu trabalho de capa- Alexandre: Tem tantos, que eu até
citação de professores naquela área e fico confuso. Por exemplo: o papel do
a sua colaboração comigo e com a Einstein na criação da teoria quântica,
Auta Stella. Ao seu lado, o Carlos Ruiz, a sua educação na escola e na Univer-
nosso amigo cubano de Mossoró, sidade, a relatividade geral, a sua
explicava ao Jenner e ao Piolho as suas discordância em relação à interpreta-
reservas quanto ao conceito de massa ção de Copenhague para a mecânica
relativística. Eu, a Cleide e o Henrique, quântica e a sua proposição do para-
apenas ouvíamos aquelas duas con- doxo EPR, polêmica essa que prosse-
versas paralelas. Foi quando o Luis gue, após a sua morte, com as desi-
Augusto, ainda preocupado com a gualdades de Bell, nos anos sessenta.
conclusão do seu doutorado em ensi- A sua tentativa, sem sucesso, de cons-
no de Física na USP, me perguntou se truir uma teoria unificada de cam-
eu já havia escrito aquela entrevista pos e a sua idéia das variáveis ocultas.
com o Einstein que prometera ao Nel- Isso, além de temas mais gerais, como
son Studart. o seu humanismo, a sua religiosidade
Alexandre: Nem me fale nisso, cósmica, o seu pacifismo, a sua visão
cara! O Einstein é um personagem de produção do conhecimento e a sua
muito rico e complexo. Eu acho que concepção de Educação. É mole ou
entrei em uma fria, ao prometer isso. quer mais?
Ainda tenho que ler muito sobre o as- Lula: Pode parar por ai, você está
sunto. frito, mesmo.
Cleide: E além disso, você vai pre- Piolho: Meu amigo, por que você
cisar ser bastante seletivo, pois uma em lugar de se preocupar com tudo
entrevista que tente abarcar toda a isso, simplesmente não entrevista o
obra do Einstein, a riqueza da sua bio- homem e deixa-o falar livremente?
grafia e da sua personalidade, ficará, Alexandre: Mas, como?
certamente, muito longa. Talvez você Piolho: Sei lá! Você já não entre-
tenha que dividir a entrevista em vá- vistou outros personagens ilustres
rias outras. E quando quiser escrever que já subiram há muito tempo para
a parte de Educação me peça que eu o primeiro andar?
ajudo. Henrique: Alexandre! Sabe quem
Prosseguindo com a série de bem humoradas
entrevistas com celebridades da Física, nosso
Alexandre: Eu acho que seria inte- me telefonou agora mesmo e está vin-
autor-reporter e seus companheiros batem um ressante começar expondo a obra do para cá?
rápido papinho com Albert Einstein. geral do Einstein, a sua contribuição Alexandre: Não me diga que foi o

88 Entrevista com Einstein Física na Escola, v. 6, n. 1, 2005


Einstein? Einstein: Certa-
Henrique: Que nada! Foi o Nelson mente, Herr Bastos! E
Studart, que está de passagem para o o senhor, tem ido
Ceará e resolveu dar uma parada em muito a Zurique?
Campina Grande. Eu disse que você Piolho: O Henri-
estava aqui e ele falou que vem buscar que pirou! O que é
a tal entrevista que você prometeu a que ele está falando?
ele. Einstein: Herr
Alexandre: E agora? Já sei! Quan- Bastos, quem é este
do o Nelson chegar, o Henrique finge senhor, que me fala de
que é o Einstein e nós entrevistamos um modo tão vulgar?
ele. Explique a ele que nós
Henrique: Está louco, cara? Estou dois fomos estudantes
fora! O que é que eu vou dizer? na ETH de Zurique.
João: Olhe aí, gente! Temos uma Eu no final do século
nova visita chegando. XIX e o senhor, certa-
Nelson: Boa noite, gente. E então, mente, muito depois.
Alexandre, a entrevista já está pronta Jenner: Bem, eu
ou ainda vai começar? não estou compre-
Alexandre: Vai começar agora endendo. Eu fiz meu
mesmo, o Henrique vai nos ajudar. doutorado na ETH,
Henrique: Eu vou é pedir empres- mas você ...
tado o skate daquele garoto e sair des- Einstein: Caro
sa. Herr Bastos, não me Estátua em homenagem a Einstein em Washington.
Alexandre: Lembre-se do tombo diga que não se lem-
que você levou no Rio de Janeiro ao bra de mim. Albert, Albert Einstein, por aquele belo país. Depois disso,
dar uma de skatista. Você quase que- seu colega de profissão. meu pai me convenceu a estudar em
brou a cabeça. Piolho: Virgem Maria, o Henrique Zurique, na Escola Politécnica, a ETH.
Cleide: Como assim? endoidou mesmo. Vamos dar uma Como eu não havia completado a
Alexandre: Pois é! O Henrique água gelada para ele beber, para ver educação secundária eu precisaria fa-
também engoliu um bocado de água se melhora. zer um teste de admissão. Aliás, a ETH
ao tentar surfar na praia do Recreio e Alexandre: Nada disso! Se ele era uma das poucas instituições de
para completar ficou completamente pensa que é o Einstein, tudo bem. Me- ensino superior que aceitavam estu-
zonzo ao experimentar aquele brin- lhor assim! Vamos sentar aqui e dantes nessas condições.
quedo em forma de giroscópio na entrevistá-lo, agora mesmo. Piolho: O Henrique não me enga-
Exposição Ciência para Todos do Rio- Nelson: Pode ser uma boa idéia; na. Ele leu isso tudo e está fingindo.
Centro. vamos ver no que dá. De todo modo, Vamos perguntar algumas coisas
Henrique: Não foi tanto assim, a revista já está quase pronta. mais difíceis.
mas eu ainda estou meio enjoado. João: Pois então vamos testar esse Auta: Pois ele está me parecendo
Nelson: O Henrique sempre foi nosso Einstein do Paraguai. real. Deixe o bichinho falar.
metido a surfista e skatista, desde que Einstein: O que? Einstein: Obrigado, Frau Stella.
foi meu aluno em São Carlos, ou mes- João: Nada! Mas, me diga a sua Pois bem, eu fui estudar Engenharia,
mo antes no Ceará, e já levou muitas ficha: onde e quando nasceu, onde es- segundo o desejo dos meus pais, mas
quedas e engoliu muita água. É me- tudou, coisas assim. Eu quero checar mudei de idéia comecei a estudar Física
lhor não deixar ele cometer suicídio. a sua identidade. e resolvi ser professor. Fiz o tal teste
Auta: Lá vai ele! É maluquinho, Einstein: Eu nasci em Ulm, na de admissão, mas não passei. Mas me
mesmo. Meu Deus! Olhem o tombo Alemanha, em 1879. Ainda muito sai muito bem nos exames de Mate-
que ele levou! Vamos lá, gente. jovem a minha família mudou-se pa- mática e de Física, a ponto de impres-
Todos se levantam e correm em ra Munique, onde recebi a minha sionar tanto o professor dessa discipli-
direção ao Henrique que se encontra sofrida educação básica. Eu detestava na, o Weber, quanto o próprio diretor
caído no chão e desacordado com um aquele rígido padrão educacional da Escola.
enorme galo na cabeça. germânico. Aos dezesseis anos, meus Camello: Isso eu já sabia. E então?
Cleide: Henrique, Henrique, você pais foram para Milão e me deixaram Einstein: Então, eu fui estudar na
está bem? naquele maldito colégio, o Luitpold escola cantonal de Aarau durante um
Auta: Ele não está falando, gente. Gimnasium. Eu, então, inventei uma ano. Lá concluí os estudos interrom-
Vai ver que foi coisa séria. desculpa, consegui um atestado mé- pidos em Munique. Voltei para a ETH
Jenner: Henrique, acorde cara, dico e fui encontrar os meus pais na e finalmente pude entrar, como dese-
você está bem? Itália. Passei um ano inteiro passeando java, no curso de Física.

Física na Escola, v. 6, n. 1, 2005 Entrevista com Einstein 89


moderna. Para ser sincero, eu acho a eletromagnética, e a luz está aí incluí-
relatividade algo muito abstrato, da, tomamos um caminho que nos
muito diferente de tudo que eu estou leva diretamente à relatividade. Por
acostumado a ensinar. Eu não com- outro lado, se nos debruçamos sobre
preendo de onde aquelas idéias esqui- os problemas da natureza da radiação
sitas podem ter surgido. Será que dava eletromagnética, ou mais especifica-
para o senhor explicar como tudo isso mente, sobre os problemas da intera-
começou? ção da radiação com a matéria, a nos-
Einstein: Certamente! Eu tentarei sa rota conduz à teoria quântica.
discutir isso dentro do cenário mais Camello: Espera aí! Eu sempre
amplo do que foi a minha contribui- soube que a teoria quântica surgiu do
ção para o advento da física moderna. estudo da radiação de corpo negro.
Jobson: Eu sei que a coisa toda Não foi esse o trabalho do Planck? Não
começou com o tal experimento de foi ele o criador da teoria quântica?
Michelson-Morley, certo? Foi do Einstein: Bem, a coisa é mais com-
resultado negativo desse experimento plexa. Na verdade, o problema da
que a sua teoria da relatividade surgiu, radiação de corpo negro, ou seja, o
certo? problema de encontrar uma função
Einstein: Não foi exatamente as- de distribuição da densidade de energia
Einstein lecionando em Princeton. sim. Para ser sincero, foi de um modo emitida por um corpo negro, do
bem diferente. Deixe-me começar estudo da sua radiância, surgiu muito
Cleide: Eu gostaria muito de lhe falando de um modo geral do nasci- antes, com o Kirchhoff. Foi o Kirchhoff
perguntar sobre a sua educação, tanto mento da física moderna, para depois quem lançou o célebre problema de
em Munique quanto em Zurique. As nos concentrarmos no surgimento da encontrar uma função matemática
impressões que guardou dos seus pro- Teoria da Relatividade. para a radiância que dependesse ape-
fessores e como isso veio a influenciar Stanly: Pois, então, como é que a nas da freqüência e da temperatura
a sua visão posterior da Educação em física moderna surgiu? Eu já ouvi absoluta. Esse problema foi parcial-
geral. Temo, entretanto, que tenha- falar em uma história de duas nuvens mente abordado pelo Stefan, que foi
mos de ser seletivos e que os meus negras do Kelvin. Como é mesmo isso? professor do Boltzmann. O Stefan
amigos aqui queiram lhe perguntar Einstein: Isso é um conto da caro- encontrou uma função para a energia
outras coisas. chinha. Realmente o Kelvin, que era total emitida, aquela coisa de ser dire-
Einstein: Certamente, Frau Medei- um excelente físico, deu uma palestra tamente proporcional à quarta potên-
ros. Eu terei o maior prazer de conver- no final do século XIX na qual falou, cia da temperatura absoluta. Depois
sar sobre esses temas educacionais e alegoricamente, nessas tais duas veio o próprio Boltzmann que com
mesmo sobre a minha postura huma- nuvens negras e propôs as suas solu- uma abordagem baseada na mecânica
nista. Eles sempre foram muito im- ções para as mesmas que, em verdade, estatística, conseguiu demonstrar a
portantes para mim. Entretanto, creio não deram certo. Há, na verdade, função encontrada pelo Stefan. Essa
que preciso antes conversar sobre muito mito e exagero em torno dessa história é muito longa e merece um
alguns temas científicos com os meus história. estudo mais detalhado. Ela prossegue
colegas físicos aqui presentes para que Nelson: Estou de pleno acordo, eu com a descoberta, pelo Wien, de uma
eles parem de duvidar da minha iden- digo isso freqüentemente em minhas lei para o deslocamento das raias es-
tidade. aulas de física moderna. Isso de dizer pectrais da radiação do corpo negro,
Cleide: Tudo bem, depois, então, que todos achavam que a Física estava seguida por uma verdadeira função
faremos uma outra entrevista com o acabada é mesmo um mito. Entretan- para a radiância. E como vocês sabem,
senhor. to, havia alguns problemas centrais os estudos experimentais mostraram
Auta: E sobre os outros detalhes que nortearam o desenvolvimento da que a lei de Wien não valia na faixa
biográficos? física moderna. das baixas freqüências. É nesse ponto
Einstein: Eu creio que os colegas Einstein: Certamente, Herr Stu- que se insere a contribuição do Planck.
estão querendo começar pelos temas dart. O senhor, certamente, se refere Camello: Eu acho que o senhor
científicos, mas, de todo modo, para aos problemas advindos do estudo da pulou a questão da equação de
tratar dos mesmos, eu farei algumas radiação eletromagnética. Foi aí que Rayleigh-Jeans, da catástrofe ultra-
poucas incursões biográficas. Depois a polêmica começou. Na verdade, o violeta, não? Que eu saiba, o Planck
discutiremos essas questões biográ- nascimento da física moderna é decor- introduziu a sua hipótese da quanti-
ficas em maiores detalhes. rente do estudo dos mistérios envol- zação da energia para resolver a tal
Stanly: Senhor Einstein, eu ensino vidos na radiação eletromagnética; catástrofe ultravioleta.
Física em alguns colégios de Campina dos mistérios da sua natureza e da sua Einstein: Isso é um outro mito,
Grande e de Caruaru e estou muito propagação. Quando olhamos para os uma outra história da carochinha.
preocupado em ter de lecionar física problemas da propagação da radiação Nelson: Concordo! Eu até escrevi

90 Entrevista com Einstein Física na Escola, v. 6, n. 1, 2005


sobre isso um dia desses. 1900, embora desse conta matemati- dessa sua hipótese, não foi?
Einstein: Eu sei, eu li o seu artigo, camente do problema da radiação de Einstein: Isso! Ele ficou terminan-
mas eu já conhecia essa história an- corpo negro, não tinha ainda uma temente contra a minha idéia dos
tes. fundamentação física consistente. Foi quanta de luz, que depois seriam de-
Nelson: Certamente, Herr Eins- apenas nesse intervalo até dezembro de nominados de fótons, já nos anos 20.
tein! 1900 que o Planck, em desespero, João: Ele e toda a torcida do Fla-
Jobson: Eu não estou entendendo ousou apelar para a mecânica estatís- mengo.
mais nada! Afinal, o Planck resolveu tica do Boltzmann e conseguiu assim Nelson: Não apenas a torcida do
ou não a tal catástrofe ultravioleta? encontrar uma justificativa aceitável Flamengo, a do Corinthians, a do Vas-
Einstein: Nunca houve isso de para a sua lei da radiação. co, a do Santos, a do Palmeiras... Acho
problema de catástrofe ultravioleta. Piolho: Isso nós sabemos, Herr que só a turma do Canto do Rio ou a
Esse nome foi inventado bem poste- Einstein. Mas, assim fazendo, ele não do Íbis concordou com o Einstein.
riormente pelo meu amigo Paul se viu forçado a introduzir a hipótese Risos...
Ehrenfest. Além disso, há alguns da quantização da energia? Foi assim Einstein: É, de início foi mesmo
detalhes importantes a serem consi- que eu aprendi nos livros de estrutura assim. Em 1909, quando eu apresen-
derados nessa história. Em primeiro da matéria. tei a minha teoria das flutuações, que
lugar: a tal equação de Rayleigh- Einstein: Mas, Herr Piolho. Des- antecipava em muitos pontos as idéias
Jeans, como os livros didáticos de vo- culpe, é esse mesmo o seu nome? do De Broglie, em um Congresso na
cês costumam chamar, é posterior ao Piolho: É! Prossiga! Áustria, o Planck colocou-se vigoro-
trabalho do Planck, de 1900. O Jeans Einstein: Pois bem, o que o meu samente contra a minha idéia dos
corrigiu em 1902 um expoente errado caríssimo amigo Planck supôs, e ainda quanta de luz. Ele achava a idéia da
na equação do Rayleigh e assim sendo assim em desespero de causa, foi ape- quantização geral da energia, senão
a denominada equação de Rayleigh- nas que as energias dos osciladores das absurda, no mínimo completamente
Jeans nem existia em 1900. paredes da cavidade eram quantiza- desnecessária. Ele parece só ter come-
Jenner: Mas, Herr Einstein, se não das. Ele não afirmou, como você fa- çado a mudar a sua atitude após o
formos tão exigentes, a equação do lou, de um modo geral, que a energia primeiro Congresso Solvay, em 1911.
Lord Rayleigh já existia na época do era quantizada. A simples idéia de que Não sei, entretanto, se ele de fato pas-
trabalho do Planck. a energia se propagasse de forma dis- sou a aceitar a idéia da quantização
Einstein: Certamente, Herr Bas- creta lhe causava horror. E ainda da energia como algo incorporado
tos, mas o senhor sabe muito bem que assim, ele durante muito tempo ten- firmemente à sua estrutura de pensa-
ela não se constituía em nenhum pro- tou livrar-se daquela hipótese que lhe mento ou teve de resignar-se com
blema para o Planck, pois o trabalho parecia incômoda, que lhe parecia uma aceitação cada vez mais ampla
do Lord Rayleigh estava todo funda- uma mera hipótese heurística. Vários dessa idéia.
mentado na mecânica estatística de livros de vocês dizem que a hipótese Jenner: Entretanto, em suas me-
Boltzmann, na versão estatística da do Planck não foi, de início, bem mórias, escritas já nos anos 30, o
Segunda Lei da Termodinâmica, na aceita. Isso é verdade. Entretanto, nem
concepção probabilística do conceito o próprio Planck pareceu apreciar
de entropia. E isso o Planck não acei- aquilo que lhe parecia um mero arti-
tava de modo nenhum. Eu não deveria fício de cálculo a ser posteriormente
estar falando dessas coisas, mas é pre- removido.
ciso salientar que o trabalho do meu Auta: Mas, se não foi o Planck
grande e estimado amigo Planck foi quem introduziu de fato a hipótese
excessivamente parcial. Ele não disse, da quantização da energia, de uma
como afirmam muitos livros didáti- forma geral, de uma forma abran-
cos de vocês, que a energia era quan- gente, que incluísse a sua propagação,
tizada. quem foi que fez isso?
João: Como, não? Se não foi ele o Einstein: senhorita, por favor, não
pai da teoria quântica, quem foi me pergunte isso. A modéstia me im-
então? pede...
Einstein: Olhe! O Planck certamen- Nelson: Eu estou de pleno acordo
te conhecia o trabalho do Rayleigh e com o senhor. A hipótese da quanti-
nós podemos até admitir que ele tenha zação da energia em sua forma mais
de fato feito uma interpolação mate- abrangente é realmente sua.
mática entre duas equações: a de Alexandre: Eu diria que o senhor
Rayleigh e a de Wien, que valiam em é o verdadeiro pai da teoria quântica,
faixas opostas do espectro emitido pelo que o Boltzmann é provavelmente o
corpo negro. Entretanto, a fórmula avô e o Planck é, quando muito, o tio.
assim obtida por ele em outubro de O Planck, inclusive, não gostou muito Planck e Einstein.

Física na Escola, v. 6, n. 1, 2005 Entrevista com Einstein 91


Planck se reporta a uma conversa com surgiu? tese geral da quantização da energia,
o filho dele, o Erwin, logo após o Einstein: Foi, mas tudo isso se eu reconstruí de forma mais rigorosa
trabalho que ele havia apresentado em deveu a que vocês me perguntaram o caminho para a solução do proble-
dezembro de 1900, na qual ele teria sobre o papel desempenhado pelo ma da radiação de corpo negro, do
se referido à hipótese da quantização estudo da radiação de corpo negro no mistério da luminescência, da varia-
por ele introduzida, como algo revo- surgimento da física moderna. ção dos calores específicos atômicos e
lucionário e bastante promissor. João: Pois bem, isso nós já enten- finalmente do efeito fotoelétrico.
Alexandre: Eu também já li isso, demos. Já está bem claro que foi desse João: Poderíamos, então, dizer,
mas não me convenci de sua exatidão. estudo que surgiu a teoria quântica e que você colocou quatro bolas na ca-
Eu acho que ele reescreveu a sua pró- que a explicação mais completa foi çapa com uma só tacada.
pria história. Os seus depoimentos até sua e não exatamente do Planck. Einstein: Se você quiser entender
1911 depõem contra essa sua versão Einstein: Espere um pouco, eu não assim, foi. Mas eu não me vangloriei
posterior constante em sua autobio- disse exatamente isso. Eu estava fa- jamais desse feito. Eu sempre achei
grafia. lando no início que a teoria quântica que a grandiosidade da inteligência
Piolho: Quem sabe ele fez isso surgiu do estudo dos mistérios da humana está justamente no fato dela
para aparecer melhor na fotografia. interação da radiação eletromagnética ser suficiente para percebermos o
Einstein: Não concordo! O Planck com a matéria. quão pequena ela é para dar conta dos
foi uma das personalidades mais éticas Ruiz: Mas o estudo da radiação mistérios do Universo. O maior exem-
que eu conheci em toda a minha vida, de corpo negro se insere, exatamente, plo de inteligência está na humildade.
um verdadeiro exemplo de pessoa hu- nessa questão do mistério da interação A humildade, para mim, sempre foi
mana digna. Se ele cometeu esse tipo da radiação eletromagnética com a uma ponte entre a minha religiosidade
de falha em suas memórias, a expli- matéria. cósmica e a minha visão de produção
cação deve ser outra. Einstein: Certo, certíssimo, mas do conhecimento. Para mim, o grande
Nelson: Não se aborreça Herr não se resume a isso. Havia, também, mistério sempre foi que o mundo
Einstein, o nosso amigo Piolho estava o mistério do efeito fotoelétrico, des- pudesse ser compreendido.
brincando. Todos nós admiramos coberto pelo Hertz em 1887. O efeito Cleide: Vamos aprofundar esses
muito o senhor e o Planck. Mas, me fotoelétrico também é um exemplo temas em uma outra entrevista.
diga uma coisa, só para satisfazer a importante de um fenômeno miste- Einstein: Com muito prazer Frau
minha curiosidade. O senhor, nas suas rioso envolvendo a interação da radia- Medeiros. Mas, vamos ver logo se essa
viagens, conheceu a Dona Fifi? A ção eletromagnética com a matéria. nossa primeira entrevista vai ser
Dona Fifi foi uma brasileira que viajou E nesta mesma linha havia ainda o publicada.
pela Europa no início do século XX e mistério da variação dos calores espe- Ruiz: Herr Einstein, o senhor nos
conheceu muitos físicos importantes. cíficos atômicos, que não obedecia à apresentou, brilhantemente, um elen-
Ela era um tanto namoradeira e não lei de Dulong-Petit, e também o mis- co de quatro mistérios, todos eles rela-
era um tipo fácil de esquecer. tério da luminescência, aí incluídas a cionados com a interação da radiação
João (sussurrando): Eu nunca fosforescência e a fluorescência. Esses eletromagnética com a matéria e nos
ouvi falar dessa tal Dona Fifi. quatro mistérios, entretanto, apesar presenteou com a informação precio-
Nelson (sussurrando): Fala baixo, de estarem todos relacionados às sa de que o seu trabalho laureado com
a Dona Fifi é um personagem inventa- formas de interação entre a radiação o prêmio Nobel envolveu a solução
do por um amigo meu da Univer- e a matéria, eram tratados, até então, simultânea desses quatro problemas,
sidade Federal do Ceará, o Evangelista. de modos diversos. Cada um tinha a solução esta que nasceu da hipótese
Einstein: Bem, quando eu me se- sua forma específica de ser abordado. da quantização geral da energia. Sem
parei da minha primeira esposa, a O que faltava não era apenas uma querer entrar já nos problemas da
Mileva e antes de me casar com a Elza, explicação isolada e bem sucedida para propagação da radiação, que o senhor
minha segunda esposa, você sabe... cada um deles, mas, sobretudo a com- bem disse, nos levam ao desenvol-
Bem, eu conheci algumas senhoras preensão de que todos eles eram fa- vimento da relatividade, ainda existia
em Berlim, mas eu não me lembro cetas diferentes de um mesmo tipo de algum outro grande problema no fi-
bem dessa tal Dona Fifi. Acho que você mistério. Esse foi um dos meus traba- nal do século XIX de que a Física esti-
deveria fazer essa sua pergunta ao lhos de 1905, justamente aquele que vesse ocupada?
Schroedinger. Ele provavelmente deve depois me valeria o premio Nobel. Einstein: Existia, por exemplo, a
ter conhecido. Jenner: Mas, Herr Einstein, o se- ferrenha disputa entre os atomistas e
Stanly: Não entendi porque. nhor não ganhou o prêmio Nobel os energeticistas. Apesar de bem suce-
João: Deixa para lá, Stanley. justamente pela explicação do efeito dida, em vários aspectos, a teoria atô-
Lula: Mas, me diga uma coisa, o fotoelétrico? mica estava ainda longe de ser aceita
senhor não falou que ia dizer como a Einstein: É verdade, Herr Bastos, como uma unanimidade. Faltavam
física moderna surgiu e logo em mas o trabalho premiado era bem evidências convincentes e argumen-
seguida iria entrar na questão mais mais geral, não era apenas sobre o tações mais poderosas. A mecânica
específica de como a relatividade efeito fotoelétrico. Com a minha hipó- estatística, filha da teoria atômica,

92 Entrevista com Einstein Física na Escola, v. 6, n. 1, 2005


tinha muitos adversários, dentre eles ford previa cargas orbitando em torno idéia da quantização geral da energia.
nomes de peso, como Ostwald, Ernest do núcleo, estando, portanto acelera- E está faltando, ainda, o tal mistério
Mach e mesmo o Planck. O Planck até das. Assim, como uma conseqüência, da propagação da luz, ok?
bem próximo dos 1900 era ainda um pela teoria eletromagnética de Max- Einstein: Isso!
ferrenho adversário da teoria atômica. well, elas deveriam emitir radiação e João: Traduzindo, Camello, dos
Auta: Meu Deus! Mas, afinal, espiralarem em direção ao núcleo. Foi sete mistérios que deram origem à
quando é que essa situação mudou? o Bohr que resolveu esse problema física moderna, ele matou seis e deu a
A partir de quando a teoria atômica com a introdução do conceito de níveis arma para o Bohr matar o sétimo.
se impôs de forma paradigmática aos estacionários de energia. Lula: Agora sou eu que digo: é
físicos? Quem foi o principal respon- Auta: Mas quer dizer que final- mole ou quer mais?
sável por isso? mente alguém além de Herr Einstein Jobson: Pois bem, Herr Einstein,
Einstein: Desculpe-me, Frau Stel- resolveu algo realmente grandioso como é que esse mistério da propaga-
la, mas a senhora me faz perguntas dentre os grandes mistérios da física ção da luz começou? Não é ele sobre
realmente embaraçosas para a minha clássica? A questão de mérito, para o qual está faltando o senhor falar e
modéstia. mim, entretanto, é saber em que o que levará à relatividade?
Jenner: O que o senhor quer dizer, Bohr se fundamentou para contornar Einstein: Por favor, posso beber
com essa sua modesta argumentação, esse problema da instabilidade eletro- um pouco de água e descansar um
que foi também o senhor que deu con- magnética dos átomos. pouquinho? O assunto que vem a
ta desse problema? Camello: Isso! De onde o Bohr seguir é muito longo e merece ser
Einstein: Isso mesmo, Herr Bas- tirou essa idéia? discutido com todo o carinho. Temos
tos, fui eu, novamente, com a graça Einstein: Perdoe-me, Frau Stella, de falar do desenvolvimento da óptica,
de Deus. A minha tese de doutorado, mas o Bohr se baseou exatamente na do eletromagnetismo, da construção
juntamente com o meu trabalho sobre minha concepção mais geral da e da desconstrução do conceito de éter,
o movimento Browniano, foram quantização da energia. Ele a aplicou temos também de discutir direitinho
como que uma lápide para os oposi- brilhantemente ao seu modelo atômi- a contribuição de cada um dos perso-
tores da teoria atômica. Após aqueles co. nagens envolvidos nessa história do
meus dois trabalhos, também de Auta: Meu Deus, quer dizer, que éter, das suas propriedades exóticas,
1905, a teoria atômica passou a ser ainda quando não foi o senhor quem do mistério da aberração estelar, de
definitivamente paradigmática como resolveu o problema diretamente... como e porque o éter veio a ser to-
perguntou Frau Stella. João: Pois é, ele estava por detrás mado como um referencial absoluto.
João: Mas, havia, também, o pro- daquela nova explicação. Há de se discutir os papéis de Maxwel,
blema das raias espectrais. Graças à Stanly: Por favor, chega de falar Hertz, Voight, Fitzgerald, Lorentz,
sua descoberta, no século XIX, desen- do nascimento da teoria quântica. Larmor e Poincaré. Só assim, por con-
volveu-se a análise espectral e novos Vamos voltar ao outro grande misté- traste e por comparação, a minha
elementos químicos foram encontra- rio. O mistério da propagação da ra- contribuição poderá ser apreciada.
dos, mas ninguém sabia a razão de diação eletromagnética. Alexandre: Desculpe, sem querer
ser daquelas raias, de onde elas pro- Camello: E que levará, ao final importunar, Herr Einstein, mas o
vinham. Certamente elas estavam para onde? senhor pretende falar também em
relacionadas com a própria estrutura Jenner: Para a teoria da relativi- Olinto De Pretto?
da matéria, mas não havia ainda uma dade. Einstein: Eu sei ao que você está
teoria que desse conta das mesmas. Auta: De quem? se referindo. São aquelas acusações de
Ruiz: Mesmo se levando em conta Jenner: Do Einstein. plágio lançadas contra mim. Terei o
que já se sabia descrever e calcular as Auta: Essa eu já sabia. maior prazer em discutir isso tam-
freqüências de parte daquelas raias Camello: Deixe eu me situar um bém.
com a fórmula empírica de Balmer e pouco. O senhor falou de sete misté- Alexandre: Concordo com o se-
a fórmula mais geral de Rydberg. A rios ao todo, não foi? Um deles era a nhor, há muita gente que só conquista
solução para esse problema só veio questão da validade ou não da teoria os seus míseros quinze minutos de
muito depois, já em 1913, com os atômica, quatro outros estavam liga- fama jogando lama em quem brilha,
trabalhos do Bohr. dos à interação da radiação eletromag- mas mesmo assim essa questão me-
Camello: Mas qual a gênese do nética com a matéria, certo? rece um esclarecimento.
trabalho do Bohr? Eu sei que ele de- Einstein: Certo! A radiação de cor- Nelson: Eu acho que nós podería-
senvolveu um modelo atômico seme- po negro, a luminescência, os calores mos interromper a entrevista por aqui
lhante ao modelo do tipo planetário específicos atômicos e o efeito fotoe- e retomar depois com as origens da
de Rutherford, mas que tentava esca- létrico. relatividade. Além disso, se a entre-
par da contradição da instabilidade Camello: Isso já dá um total de vista ficar muito longa vamos ter pro-
eletromagnética daquele modelo. cinco mistérios. E tem mais o mistério blemas de espaço na revista e o Carlão
Stanly: Como assim? das raias espectrais que o João falou vai querer cortar algumas partes.
Nelson: É que o átomo de Ruther- e que o Bohr resolveu baseado em sua João: Podem deixar. Enquanto

Física na Escola, v. 6, n. 1, 2005 Entrevista com Einstein 93


isso, o velho fica hospedado na minha cada, nós entrevistaremos o velho so- Henrique acordar coloque ele de novo
casa comendo carne de Sol com feijão bre os outros assuntos que o Alexan- no skate. O importante é não deixar
verde, farofa, inhame e manteiga de dre falou. o Einstein ir embora.
garrafa. SE essa entrevista for publi- Alexandre: Tudo bem, mas se o Risos...

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94 Entrevista com Einstein Física na Escola, v. 6, n. 1, 2005


M
○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○
ais de quarenta livros (veja Para a primeira leitura Carlos Alberto dos Santos
a relação no final do artigo) Instituto de Física, Universidade
já foram publicados no Bra- Não há, no Brasil, livro que seja Federal do Rio Grande do Sul
sil tendo Albert Einstein como autor recomendado para o leitor absoluta- Editor do sítio www.if.ufrgs.br/
ou objeto central. Entre essas obras mente leigo em assuntos relacionados einstein
encontram-se: a Einstein, tanto do ponto de vista Endereço atual: Pró-Reitoria de Ensino,
• biografias; científico quanto histórico. O único Coordenação de Educação a Distância,
• divulgação científica; que se aproxima dessa categoria é UERGS
○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

• compilação de textos atribuídos Einstein e a Relatividade em 90 Minutos,


a Einstein; escrito por Paul Strathern. Trata-se de
• romances um pequeno livro de bolso, com 90
• pelo menos um livro no estilo páginas, em estilo fluente e agradável.
auto-ajuda (Pense como Einstein); No entanto, para o leigo absoluto o
• um livro sobre ciência na cozi- texto apresenta questões quase
nha, com receitas culinárias (O que incompreensíveis a partir da página
Einstein Disse a seu Cozinheiro), que 31, quando o autor diz “(...) devemos
embora seja muito bom na sua cate- primeiro traçar a história científica da
goria, não pode ser incluído em uma luz. Desde a época dos gregos antigos,
seleção de literatura sobre Einstein. filósofos e cientistas acreditavam que
A presente seleção foi motivada ela consistia em minúsculos grãos de
pela grande quantidade de pedidos que matéria. (...) Em 1678, o astrônomo
o autor recebe para indicar livros sobre e físico holandês Christian Huygens
Einstein. Sendo natural que ninguém sugeriu que a luz era de fato composta
deva indicar livros de ondas.” Mais
de qualidade duvi- Não há, no Brasil, livro que adiante, na página
dosa, decidiu-se seja recomendado para o 32: “Na década de
aqui fazer uma se- leitor absolutamente leigo 1860, Maxwell cal-
leção que se pre- em assuntos relacionados a culou que tanto as
tende canônica, de Einstein, tanto do ponto de forças elétricas
modo que só serão vista científico quanto quanto as magnéti-
incluídas obras que histórico. O único que se cas deviam movi-
o autor sente-se à aproxima dessa categoria é mentar-se através do
vontade para reco- Einstein e a Relatividade em espaço com veloci-
mendar. Uma rela- 90 Minutos, de Paul Strathern dade próxima à da
ção completa de luz.” Ultrapassados
resenhas do autor e de outros rese- esses pequenos obstáculos, o leigo vai
nhistas encontra-se em www.if.ufrgs. ficar encantado com a leitura deste
br/spin/amf/canone.htm. livro. A propósito, o autor deixou pas-
Embora alguns livros possam ser sar a oportunidade para discutir a po-
enquadrados em mais de uma das lêmica entre Newton e Huygens sobre
categorias arbitrariamente definidas a natureza da luz. Polêmica que, no
Este artigo relaciona e comenta livros de e sobre
abaixo, eles serão mencionados apenas Século 20, desembocou na dualidade Einstein, tendo como propósito servir de guia
naquela que o autor considera a mais partícula-onda. Também não pode- para os interessados na vida e obra de uma das
representativa. mos deixar de comentar uma pequena mentes mais brilhantes do século 20.

Física na Escola, v. 6, n. 1, 2005 Cânone da literatura einsteniana no Brasil 95


falha do autor, que deixou de men- va quanto à dificuldade de leitura para
cionar a observação do eclipse solar o leigo. Por volta de 1919, quando um
de 1919 em Sobral. Mencionou ape- jornalista pediu a Einstein uma des-
nas a ilha de Príncipe, no golfo da Gui- crição do seu trabalho que fosse aces-
né, na África portuguesa. sível a mais de doze pessoas, “o doutor
O prenome de Bohr aparece mais riu amigavelmente, mas insistiu na
de uma vez grafado erradamente (tal- dificuldade de se fazer compreender
vez um erro tipográfico?): Nils, ao por leigos”.
invés de Niels. Na verdade, o nome Em função do nível de dificuldade
completo é Niels Henrik David Bohr. imposto pelo seu primeiro livro, Pais
escreveu Einstein Viveu Aqui, no qual
Biografias trata a obra científica de Einstein sob
Nessa categoria temos cinco exce- um enfoque qualitativo e mais aces-
lentes indicações, cada uma tratando sível a todos os leitores. Além disso,
de um aspecto particular da vida de Pais prioriza nesse novo livro a di-
Einstein. mensão humana da vida de Einstein,
Importantes fatos científicos e sem desprezar o rigor da abordagem
pessoais são apresentados na magní- histórica. Resulta daí um texto fluente
fica obra de Abraham Pais, Sutil é o e agradabilíssimo, abordando ques-
Senhor...: A Ciência e a Vida de Albert tões polêmicas, como o suposto
Einstein. Trata-se de um livro reco- envolvimento de Einstein com a
mendável para a biblioteca de qual- fabricação da bomba atômica ameri- congratulações até pedidos de ajuda
quer pessoa culta, e obrigatória na cana. Mesmo para o leitor razoavel- ou informações adicionais; de comen-
cabeceira de qualquer cientista. Entre mente atualizado com a literatura tários inteligentes a declarações lou-
todos os que escreveram sobre Eins- pertinente à história da Física, Pais cas; de expressões de ódio a ameaças.
tein, Abraham Pais parece ser o mais revela fatos esclarecedores. Por exem- Não se sabe quantas dessas mensa-
qualificado. Físico teórico de reconhe- plo, no primeiro capítulo, há uma bela gens lhe foram enviadas, mas, não
cida competência, professor emérito descrição da dramática vida conjugal menos do que 600 sobreviveram. O
da Universidade Rockefeller, em Nova de Albert e Mileva Maric, sua primeira alentado ensaio Einstein e a Imprensa,
York, Pais conviveu com Einstein de mulher. Pais discute, detalhadamente, representa a primeira abordagem
1946 a 1955. Todavia, apesar de ine- a suposta influência de Mileva no tra- desse tipo na extensa bibliografia a
gável fonte bibliográfica, o livro balho de Einstein, de modo particular respeito do cientista. Pais considera
apresenta um inconveniente para o na teoria da relatividade. Em duas que Einstein, criador de uma parcela
leigo, que não entende e eventualmen- páginas ele apresenta uma argumen- da melhor Ciência de todos os tem-
te não esteja interessado nas compli- tação para concluir que tudo o que pos, é em si próprio uma criação da
cadas equações apresentadas ao longo resta como evidência de um possível mídia, no sentido de ser e permanecer
das mais de 600 páginas. A propósito, papel de Mileva no desenvolvimento uma figura pública.
há uma história que justifica a ressal- da relatividade é o comentário de Tanto em Sutil é o Senhor... quanto
Einstein, numa carta de março de em Einstein Viveu Aqui, Pais tratou
1901: “Juntos concluiremos com com pouca profundidade a vida do
êxito nosso trabalho sobre o movi- biografado em Berlim e, mesmo as-
mento relativo”. Pais atribui essa afir- sim, de forma dispersa ao longo dos
mação ao estado emocional em que dois livros. Mas Einstein viveu em
se encontrava Albert; um jovem de Berlim momentos extremos da sua
22 anos, profundamente apaixonado, vida! Da completa felicidade pelo
sem emprego e sem contato com cien- desenvolvimento da relatividade geral
tistas da sua geração. Mileva era a e pela convivência em um ambiente
única caixa de ressonância sempre dis- científico de altíssimo nível intelectual,
ponível para as suas idéias. Em suma, à dolorosa provação dos ataques anti-
a afirmação acima poderia ter o peso semitas, com sérias possibilidades de
e a medida da gratidão. assassinato. Entre um extremo e ou-
Tanto em vida, como após sua tro, registra-se o drama da sua vida
morte, Einstein foi alvo de intensa cu- conjugal. Na década de 1920 ele era o
riosidade pública. Isso está bem regis- cientista mais festejado em qualquer
trado em três capítulos. Em Amostras lugar do mundo civilizado, como con-
do die komische Mappe, Pais nos apre- tinua sendo até hoje. Não obstante,
senta inúmeras e pitorescas mensa- era submetido a enormes tensões
gens de estranhos, desde notas de emocionais. Tudo isso é relatado com

96 Cânone da literatura einsteniana no Brasil Física na Escola, v. 6, n. 1, 2005


Além da extraordinária descrição Rathenau em junho de 1922, temia-
do contexto político alemão nos anos se que a vida de Einstein também esti-
que antecederam a Segunda Guerra vesse em perigo. Outra hipótese é que
Mundial, Levenson discute conceitos ele estava fugindo da sua jovem se-
físicos com razoável precisão. Por cretária, Betty Neuman, com quem
exemplo, é maravilhosa a apresenta- tivera um caso amoroso. Tolmasquim
ção da idéia de simultaneidade. Toda- usa um argumento convincente para
via há pequenos equívocos, como contestar esta hipótese: se fosse ape-
quando trata do modelo de Bohr, na nas para viajar, Einstein bem poderia
página 312. Também não apresenta ter aceito outros convites na mesma
referências para a colaboração entre época, como aquele do importante
Einstein e Wander Johannes de Haas, físico americano Robert Millikan, para
discutida na página 127. Trata-se de visitar a Califórnia. Como Einstein,
um estudo sobre magnetismo, cujos Millikan também era Prêmio Nobel de
resultados Einstein publicou em dois Física, e talvez tenha sido com frus-
trabalhos de 1915. tração que leu a
No conjunto, a literatura
Há ainda um equí- resposta do emi-
internacional trata bem as
voco quando fala da nente colega ale-
contribuições científicas e a
viagem de Einstein à mão: havia sido
vida privada de Einstein. No
América do Sul, em preterido em favor
entanto, há uma lacuna
precisão e agradável estilo pelo docu- 1925. Ao contrário dos sul-america-
muito especial para o leitor
mentarista Thomas Levenson, no seu do que ele diz, Elsa nos. Outro motivo
brasileiro: entre as dezenas
maravilhoso livro Einstein em Berlim. não acompanhou o importante teria
de biografias amplamente
Um exemplo dramático desse estado marido nessa sido seu envolvi-
conhecidas, apenas três
de tensão encontra-se no próprio diá- viagem. A menos mento com o ju-
citam a viagem à América
rio de Einstein. No dia 6 de dezembro desses pequenos daísmo. Aparente-
do Sul
de 1931, a bordo de um navio a deslizes, o livro de mente ele tinha in-
caminho da Califórnia, ele escreveu: Levenson é maravi- teresse na integra-
“Resolvi hoje que renunciarei essen- lhoso, e pode ser colocado ao lado das ção das jovens comunidades judaicas
cialmente à minha posição em Berlim melhores biografias de Einstein. da América do Sul com a proposta de
e serei uma ave de arribação pelo resto No conjunto, a literatura interna- criação da Universidade Hebraica, que
da vida”. No entanto, protelou o cional trata bem as contribuições seria inaugurada durante a sua via-
quanto pôde esta decisão. Em dezem- científicas e a vida privada de Einstein. gem. Esse foi outro importante evento
bro de 1932, partiu da Alemanha para No entanto, há uma lacuna muito que ele abdicou em favor dos com-
nunca mais voltar. Na despedida da especial para o nosso leitor. Refiro-me promissos assumidos com os sul-
casa de campo em Caputh, olhou para à viagem que ele fez à América do Sul. americanos.
sua mulher e disse: “Olhe bem para Ao meu conhecimento, entre as deze- Mesmo que não fosse um belo li-
nossa villa”. “Por que?”, perguntou nas de biografias amplamente conhe- vro, e o é, Einstein, o Viajante da Relati-
Elsa. “Você nunca mais vai vê-la”. É cidas, apenas três fazem referência a
impossível estimar a amargura da- esta viagem. Em Einstein Viveu Aqui
quelas palavras, conclui Levenson. Abraham Pais dedica apenas um pe-
A ida da família Einstein para Ber- queno parágrafo. Em Einstein em
lim, em abril de 1914, marcou o colap- Berlim, Thomas Levenson dá informa-
so final do seu casamento com Mileva ções equivocadas sobre a viagem, e
Maric. Levenson trata essa questão parece duvidoso que a “viagem era
com muita profundidade e isenção. primordialmente de férias”.
Apresenta fatos pouco conhecidos, Agora, com o livro de Alfredo
como por exemplo, o trecho de uma Tiomno Tolmasquim, Einstein, o
carta que Einstein em 2 de dezembro Viajante da Relatividade na América do
de 1913, enviou para Elsa, sua prima, Sul, ficamos sabendo que a coisa não
que viria a ser sua mulher pelo resto foi assim tão simples. Em primeiro lu-
da vida: “Trato minha mulher como gar, várias são as hipóteses para justi-
uma empregada que não posso demi- ficar a decisão de Einstein viajar à
tir”. Como disse Levenson na página América do Sul. Uma delas refere-se
37: “A atitude de Einstein em relação à à preocupação do físico em buscar um
esposa passou de um afeto aparente- lugar seguro onde se refugiar dos ata-
mente distante a uma atitude de frieza ques sofridos na Europa. Depois do
e surpreendente brutalidade”. assassinato do ministro Walter

Física na Escola, v. 6, n. 1, 2005 Cânone da literatura einsteniana no Brasil 97


vidade na América do Sul teria posição citações e histórias sobre Einstein,
destacada na literatura sobre Einstein. colecionadas por quem conviveu com
É a primeira vez que se publica inte- ele. Helen Dukas foi sua secretária
gralmente o seu diário durante esta particular de 1928 até a morte do
viagem. O diário revela um Einstein cientista. Banesh Hoffmann, ao lado
livre de qualquer limite psico-social, de Leopold Infeld, foi colaborador de
migrando da sincera admiração pela Einstein em dois artigos sobre a teoria
região e por alguns representantes do da relatividade geral. Vários textos
seu povo às mais ácidas e abjetas transcritos nos livros são apresenta-
observações preconceituosas. Vejamos dos na versão original, em alemão.
alguns exemplos. Há 80 anos, precisa- Embora seja uma fonte histórica de
mente no dia 4 de maio de 1925, ele grande valor, a organização do livro
escrevia: “Chegada ao Rio ao pôr-do- é confusa, coisa que os próprios orga-
sol e tempo fabuloso. Ilhas graníticas nizadores não deixaram de perceber
de formas fantásticas estão a pouca quando na apresentação escrevem:
distância”. Ele vinha do Uruguai, onde “(...) ele [o livro] representa uma via-
passara uma semana depois de uma gem de turismo, aparentemente errá-
estada de 28 dias na Argentina. Longa tica, cujo efeito cumulativo, espera-
viagem de navio, com início em 5 de mos, será um conhecimento mais
março, no porto de Hamburgo, com profundo e mais rico do homem Eins-
uma rápida parada no Rio de Janeiro, gotada], livro organizado por Ildeu C. tein”.
no dia 21. Em 4 de maio estava de Moreira e Antonio A. Videira. O mé- Agora, em termos de organização
volta para permanecer uma semana rito inquestionável de Tolmasquim foi cronológica e tratando de um tema
na Cidade Maravilhosa. Na despedida trazer ao conhecimento público o diá- tão específico como o jovem Einstein,
demonstrava admiração pelo mare- rio de Einstein, um documento im- o livro Albert Einstein /Mileva Maric:
chal Rondon: “Grande apresentação prescindível para a compreensão de Cartas de Amor é imbatível. São 43 car-
cinematográfica da vida dos índios e seus sentimentos frente às populações tas de Einstein para Mileva e 11 delas
seu desenvolvimento exemplar atra- tropicais. para ele, escritas entre 1897 e 1903.
vés do general Rondon, um filantropo Sob o ponto de vista mais amplo Trata-se de um livro essencial para
e líder de primeira ordem”, escrevia e de interesse para o leitor comum, a quem deseja conhecer o pensamento
ele no dia 11. Em seguida indicaria visita de Einstein ao Brasil talvez seja do jovem Einstein e sua arrebatadora
Rondon para o Prêmio Nobel da Paz, melhor abordada em Einstein e o Bra- paixão por Mileva Maric. Nas cartas
honraria jamais concretizada. sil, que apresenta uma série de artigos de Einstein percebe-se claramente sua
Parece não ter gostado das suas interessantes, escritos por estudiosos heurística em direção aos trabalhos
companhias de viagem. Em 19 de importantes, incluindo o próprio que o tornaram a personalidade do
março, escreve: “Na primeira classe Tolmasquim. Século 20. Alguns desses trabalhos,
os argentinos fizeram feio. Classe rica, Para concluir esta seção, é de se justamente aqueles que motivaram a
esnobes e ainda por cima infantis”. Por lamentar apenas que a bela biografia
outro lado, adorou o Uruguai (24 de escrita por Albrecht Fölsing (Albert
abril): “No Uruguai encontrei uma Einstein: A biography. New York: Pen-
autêntica cordialidade como raramen- guin, 1997) ainda não tenha desper-
te na minha vida”. tado o interesse de qualquer editora
Já no Rio de Janeiro, em 6 de brasileira.
maio: “Sou um tipo de elefante branco
para os outros, eles, para mim, tolos”. Textos de Einstein
E no dia seguinte: “Almoço na casa Editados no Brasil, existem pelo
do professor Castro. Verdadeiro tolo, menos seis livros escritos por Einstein.
mas companhias interessantes (...) Além desses, existem três editados por
Quando elogiam alguém, estão elo- outros autores, com textos de Eins-
giando a eloqüência. Acredito que essa tein. Não há como compará-los, pois
tolice e irrelevância tenha a ver com o são textos da mesma fonte, abordan-
clima”. do assuntos diferentes. Tentarei aqui
O livro de Tolmasquim será um apenas informar do que tratam. Co-
marco da literatura histórica brasilei- mecemos pelos três últimos. Desses,
ra, mas ele não foi o primeiro a tratar o primeiro a ser editado no Brasil foi
com detalhe a visita de Einstein ao Albert Einstein, o Lado Humano, orga-
país. Em 1995, a Editora da UFRJ pu- nizado por Helen Dukas e Banesh
blicou Einstein e o Brasil” [edição es- Hoffmann. Trata-se de um livro com

98 Cânone da literatura einsteniana no Brasil Física na Escola, v. 6, n. 1, 2005


biblioteca de quem deseja ter um breve Golgher. O livro foi publicado pela Ofi-
mas significativo panorama da vida cina de Livros, mas não se sabe o lo-
de Einstein. Único texto autobiográ- cal e a data da publicação, pois não
fico de Einstein, foi escrito em 1946 há ficha catalográfica na edição. Pela
para atender o insistente pedido de Bibliografia, a data de publicação deve
Paul Arthur Schilpp, que em 1949 edi- ser posterior a 1989. Apesar desses
tou um livro em comemoração aos inconvenientes editoriais, o texto é
setenta anos do cientista (P.A. Schilpp muito bom, e para quem dá impor-
(ed), Albert Einstein: Philosopher-Sci- tância a essas coincidências nume-
entist (The Library of Living Philoso- rológicas, o autor nasceu em 1905!
phers, Evanston, 1949). O texto foi Finalmente, os dois mais recentes
originalmente publicado nessa obra, livros de divulgação científica em
mas em 1979 ele apareceu como um torno de Albert Einstein. O primeiro,
volume separado, para comemorar o Einstein Estava Certo? é uma obra-
centenário de nascimento de Einstein. prima de popularização da teoria da
Em Como Vejo o Mundo, Einstein relatividade geral. Seu autor, Clifford
fala de tudo, mas o capítulo V, intitu- Will, entende muito bem do que fala,
lado Estudos Científicos, é uma jóia em e o faz com estilo da melhor quali-
termos de divulgação científica. No dade. É uma leitura obrigatória. Com
capítulo I, Einstein demonstra toda um espectro mais abrangente, mas
sua admiração por Hendrik Antoon igualmente de qualidade, temos o li-
escolha de 2005 como o Ano Mundial Lorentz, com quem ele muito apren- vro de Cássio Leite Vieira, Einstein o
da Física, estão no terceiro livro men- deu. Reformulador do Universo. Apresenta
cionado acima. Refiro-me a O Ano Os livros Pensamento Político e a estrutura de uma biografia, mas
Miraculoso de Einstein: Cinco Artigos Últimas Conclusões e Escritos da Matu- discute, com linguagem simples, os
que Mudaram a Face da Física, obra ridade apresentam uma curiosidade: principais trabalhos de Einstein. Uma
organizada pelo historiador John ambos têm a mesma origem, Out of beleza de livro.
Stachel. Além dos famosos artigos My Later Years, publicado pela primei-
publicados por Einstein em 1905, o ra vez em 1950. Em 1983 a editora Textos ficcionais
livro traz um belo prefácio de Roger Brasiliense publicou o Pensamento..., Ao meu conhecimento, existem
Penrose e uma alentada introdução com seleção de textos e prefácio do apenas três obras ficcionais publicadas
escrita por Stachel. Além disso, os ar- ilustre físico Mário Schenberg. Em no Brasil, tendo Einstein como figura
tigos são acompanhados de interes- 1994, a editora Nova Fronteira publi- central. O primeiro, Os Sonhos de Eins-
santes notas editoriais. cou Escritos da Maturidade, a versão tein, é um livro de bolso que se tornou
Dos livros com autoria explícita completa do texto original. best-seller internacional. Escrito por
de Einstein, o primeiro a ser publicado Finalmente, devo mencionar o Alan Lightman, professor de Física no
no Brasil foi A Evolução da Física livro cujo assunto é aquele a que o MIT (Massachusetts Institute of Tech-
[edição esgotada], escrito em co-au- imaginário popular predominante as- nology), este livrinho de 175 páginas é
toria com Leopold Infeld. Além de socia a figura de Einstein: A Teoria da
uma bela obra de divulgação cientí- Relatividade Especial e Geral. Conheço
fica, a edição deste livro envolveu uma este livro na versão inglesa, mas infe-
comovente história de solidariedade lizmente não cheguei a ler a edição
humana. Na década de 1930, o físico publicada no Brasil. Pelo que sabemos
polonês Leopold Infeld emigrou para do texto original, não é um despro-
os EUA, fugindo da perseguição pósito recomendar a versão nacional.
nazista. Einstein o acolheu, mas não
foi capaz de lhe garantir uma bolsa História e divulgação científica
de estudo. A solução encontrada para para iniciados
mantê-lo foi a edição deste livro. Um belo livro nesta categoria,
Existem quatro livros nos quais mas que se encontra esgotado, é As
Einstein discute aspectos da sua vida Idéias de Einstein, de Jeremy Bernstein.
pessoal, emite opiniões sobre política, Outra obra interessante é o livro de
educação, ciência, religião, etc., tudo bolso Albert Einstein, de Harvey
em um tom coloquial, sem qualquer Brown. Em 105 páginas, Brown apre-
sofisticação científica. Entre esses, senta uma bela síntese da vida e da
Notas Autobiográficas talvez seja o obra do pesquisador. Uma obra sur-
mais relevante. Este livrinho de 88 preendente é O Universo Físico e
páginas é uma obra indispensável na Humano de Albert Einstein, de Isaías

Física na Escola, v. 6, n. 1, 2005 Cânone da literatura einsteniana no Brasil 99


cada capítulo corresponde uma data, tório de Patentes de Berna, a Academica
mas essas datas não têm qualquer Olímpia, e, obviamente, Einstein.
correspondência com a cronologia que Finalmente, o terceiro livro é da mi-
se conhece da vida de Einstein. nha autoria, e não gostaria de co-
Sherlock Holmes & Einstein no Caso mentá-lo aqui. Sugiro que o leitor con-
dos Cientistas Assassinados, de Alexis sulte duas resenhas publicadas pelo
Lecaye, é escrito no melhor estilo dos professores Arden Zylbersztajn (Física
romances policiais. Começa com um na Escola, v. 5, n. 2, 37-38 (2004)) e
recorte de jornal, onde se noticia a mor- Volnyr Santos (Voz do Paraná, 24/6/
te de um homem dentro de uma gar- 2004, p. 11). Ambas encontram-se no
rafa com bicloreto de cálcio. Na seqüên- endereço www.if. ufrgs.br/spin/amf/
cia, Holmes toma conhecimento de plagio.htm.
uma série de assassinatos envolvendo
cientistas e o princípio do movimento Edição especial da revista
perpétuo, todos ocorridos em Berna. Ciência & Ambiente
Para desvendar o mistério, Holmes Este cânone não tinha como obje-
designa o dr. Watson, seu indefectível tivo a indicação de edições especiais de
parceiro, para conhecer o terreno da revistas. Várias foram publicadas,
tragédia. Logo de- algumas delas com
pois, Holmes junta- Sherlock Holmes & Einstein excelentes matérias,
se ao amigo e estabe- no Caso dos Cientistas mas esta edição de
uma maravilhosa “viagem” ao tempo lecem uma disputa Assassinados, de Alexis Ciência & Ambiente,
e local em que Einstein vivenciou seu pela descoberta do Lecaye, é escrito no melhor publicada pela Uni-
ano miraculoso. O autor empresta sua mistério dos cientis- estilo dos romances policiais versidade Federal de
voz a Albert Einstein, e o livro, recheado tas assassinados. Na Santa Maria, tem
de referências iconográficas, é como se busca pela solução eles vão conhecer um caráter diferente. A qualidade do
fosse um diário para o ano de 1905. A Mileva Maric, Michele Besso, o Escri- material obriga-nos a abrir esta exceção.

Bibliografia de e sobre Einstein, publicada no Brasil


M. Avalon, Einstein, Por Ele Mesmo (Martin Conclusões, seleção de Mário Schenberg A. Pais, Sutil é o Senhor... A Ciência e a Vida de
Claret, São Paulo, 1992). São Paulo, Brasiliense, 1983). Albert Einstein (Nova Fronteira, Rio de
J. Bernstein, As Idéias de Einstein (Cultrix/ A. Einstein, Escritos da Maturidade (Nova Janeiro, 1995).
EDUSP, São Paulo, 1975). Fronteira, Rio de Janeiro, 1994). A. Pais, Einstein Viveu Aqui (Nova Fronteira,
D. Bodanis, E = mc2. Uma Biografia da Equação A. Einstein, A Teoria da Relatividade Especial e Rio de Janeiro, 1997).
que Mudou o Mundo e o que ela Significa Geral (Contraponto, São Paulo, 1999). C. Phillips, O Livro Completo sobre Einstein
(Ediouro, Rio de Janeiro, 2001). M.B. Freeman, Albert Einstein (Difusão Pan (Cidade, Madras, 2004).
D. Brian, Einstein. A ciência da Vida (Ática, Americana do Livro, 1964). J. Renn, e R. Schulmann, orgs., Albert Einstein
São Paulo, 1998). H.G. Garbedian, A vida de Einstein (José /Mileva Maric: Cartas de Amor (Papirus,
J. Brockman, Einstein, Gertrude Stein, Olympio, Rio de Janeiro, 1959). Campinas, 1992).
Wittgenstein e Frankenstein: Reinventando I. Golgher, O Universo Físico e Humano de Albert H. Rohden, Einstein, o Enigma do Universo
o Universo (Companhia das Letras, São Einstein (editado pela Oficina de Livros. (Martin Claret, São Paulo, 2004).
Paulo, 1988). Não há ficha catalográfica. Não se sabe o B. Russel, ABC da Relatividade (Zahar, Rio de
H.R. Brown, Albert Einstein (Brasiliense, São local da publicação. Pela Bibliografia, a Janeiro, 1966).
Paulo, 1984). data de publicação deve ser posterior a J. Stachel, org., O Ano Miraculoso de Einstein:
A. Calaprice, Assim Falou Einstein (Civilização 1989). Cinco Artigos que Mudaram a Face da
Brasileira, Rio de Janeiro, 1998). M. Jammer, Einstein e a Religião (Contraponto, Física (Editora da UFRJ, Rio de Janeiro,
N. Calder, O Universo de Einstein (Editora da São Paulo, 2000). 2001).
UNB, Brasília). A. Lecaye, Sherlock Holmes & Einstein: O Caso F. Stern, O Mundo Alemão de Einstein (Com-
M. Claret, (coord. editorial). O Pensamento Vivo dos Cientistas Assassinados (Zahar, Rio de panhia das Letras, São Paulo, 2004).
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1984). T. Levenson, Einstein em Berlim (Objetiva, Rio Minutos (Zahar, Rio de Janeiro, 1998).
C.A. Dos Santos, O Plágio de Einstein (WS, de Janeiro, 2003). S. Thorpe, Pense como Einstein (Cultix, São
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H. Dukas, e B. Hoffmann, Albert Einstein, o das Letras, São Paulo, 1993). A.T. Tolmasquim, Einstein. O Viajante da
Lado Humano (Editora da UNB, Brasília, F.Macdonald, Albert Einstein (Globo, São Paulo, Relatividade na América do Sul (Vieria &
1979. 1993). Lent, Rio de Janeiro, 2003).
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(Zahar, Rio de Janeiro, 1966). tin Claret, São Paulo, 1988), 3ed. Universo (Odysseus, Rio de Janeiro,
A. Einstein, Como Vejo o Mundo (Nova Fron- I.C. Moreira, e A.A.P. Videira, orgs., Einstein e o 2003).
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A. Einstein, Notas Autobiográficas Rio de 1995). UnB, Brasília, 1996).
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A. Einstein, Pensamento Político e Últimas Científico (Globo, São Paulo, 2002). (Zahar, Rio de Janeiro, 2003).

100 Cânone da literatura einsteniana no Brasil Física na Escola, v. 6, n. 1, 2005


forma original, é introduzida em um
artigo curto “A inércia de um corpo
depende de seu conteúdo energético?”
(publicado em 21 de novembro).
1906 – Recebe formalmente o título
de doutor da Universidade de Zurique.
1907 – Introduz a teoria quântica
na física do estado sólido. Publica seu
primeiro artigo de revisão e especula
sobre uma possível extensão da teoria
da relatividade para sistemas
acelerados.
1908 – Torna-se Privatdozent
(docente remunerado por aulas dadas)
1879 – Em 14 de março nasce Physik. Submete à Universidade de na Universidade de Berna.
Albert Einstein em Ulm, Alemanha na Zurique uma tese de doutorado sobre 1909 – É designado Professor
casa dos pais Hermann e Pauline Koch. forças moleculares em gases. Extraordinário de Física Teórica na
1880 – A família muda-se para 1902 – Nasce sua filha Lieserl. Universidade de Zurique e se demite do
Munique. Retira sua tese de doutorado e inicia escritório de patentes e da Universidade
1881 – Nasce sua irmã Maja. trabalho provisório como perito técnico de Berna. Recebe o título de doutor
1884 – Ganha uma bússola de seu no escritório de patentes em Berna, “honoris causa” da Universidade de Ge-
pai que lhe causou profunda impres- 1903 – Casa-se com Mileva em nebra. Participa de importante confe-
são. Berna onde fixam residência. Não existe rência em Salzburgo onde sugere o
1885 – Ingressa na escola primária menção a Lieserl depois que contrai conceito de dualidade onda-partícula
católica (Petersschule). Interessa-se pela escarlatina. Parece que Einstein nunca para a radiação.
religião judaica a partir de ensina- viu a filha. 1910 – Nasce seu segundo filho
mentos de um tio. Tem aulas de violino. 1904 – Nasce seu filho Hans Albert Eduard. Termina seu mais importante
1888 – Freqüenta a escola secun- em Berna. Seu emprego torna-se trabalho em mecânica estatística clás-
dária (Luitpold-Gymnasium) em permanente. sica: “Sobre opalescência crítica e a cor
Munique. 1905 – Annus mirabilis de Einstein. azul do céu”.
1894 – A família muda-se para a Em 30 de abril submete para publicação 1911 – Em abril assume o cargo
Itália, mas Albert permanece em sua tese de doutoramento “Uma nova de diretor do Instituto de Física Teórica
Munique. No final do ano abandona o determinação das dimensões molecu- na Universidade Alemã de Praga e pede
Gymnasium e se reune à família. lares”. Em seguida, publica três de seus demissão da Universidade de Zurique.
1895 – Não consegue admissão mais significativos trabalhos científi- Em outubro participa do primeiro
precoce no Instituto Politécnico Federal cos: “Sobre um ponto de vista heurís- Congresso Solvay em Bruxelas.
(ETH) em Zurique, apesar do bom tico a respeito da produção e transfor- 1912 – Troca cartas amorosas com
desempenho em matemática e ciências. mação da luz” (publicado em 9 de sua prima divorciada Elsa Lowenthal e
O diretor sugere que antes conclua a junho) em que propõe o conceito do a relação com Mileva começa a se de-
escola secundária. Freqüenta a escola quantum de luz sugerindo que a radia- teriorar. Demite-se de sua posição em
de Aarau morando na casa de um dos ção eletromagnética interage com a Praga e torna-se Professor de Física
seus professores. matéria como se possuísse uma estru- Teórica da ETH.
1896 – Renuncia à cidadania alemã tura granular (o efeito foto-elétrico); 1913 – Em novembro é eleito para
porque detestava a mentalidade mili- “Sobre o movimento de pequenas a Academia Prussiana de Ciências. É
tarista alemã. Conclui o ensino médio partículas em suspensão dentro de convidado para ser diretor do recém-
em Aarau e no final de outubro líquidos em repouso como exigido pela fundado Instituto de Física Kaiser
ingressa na ETH. teoria cinético-molecular do calor” Wilhelm e para assumir uma cátedra
1900 – Conclui o curso, mas não é (publicado em 18 de julho), seu de pesquisa, sem obrigação de dar
escolhido como assistente na ETH. trabalho sobre o movimento aulas, na Universidade de Berlim, onde
1901 – Torna-se cidadão suiço. browniano que provocou a realização Elsa morava.
Procura emprego. Trabalha como pro- de experimentos comprovando a 1914 – Em abril, chega em Berlim.
fessor substituto numa escola técnica validade da teoria cinética do calor e a Mileva vem depois com os filhos, mas
em Winterthur e como tutor numa consolidação da hipótese atomística da logo retorna a Zurique porque alega
escola particular em Schaffhausen. matéria; e “Sobre a eletrodinâmica dos não gostar de Berlim.
Mantém relacionamento amoroso com corpos em movimento” (publicado em 1915 – Assina sua primeira decla-
Mileva Maric, uma colega da ETH. Seu 26 de setembro), seu trabalho seminal ração pública, o “Manifesto aos
primeiro artigo científico é publicado sobre a teoria da relatividade especial. Europeus”, em prol de uma cultura
na prestigiosa revista Annalen der A famosa equação E = mc2 , em sua européia. Em novembro termina seu

Física na Escola, v. 6, n. 1, 2005 Cronologia 101


trabalho sobre a estrutura lógica da que ganhara o prêmio Nobel de 1921 onde Einstein, Elsa, Margot, Maja, e
teoria da relatividade geral. por seu trabalho sobre o efeito foto- Helen Dukas viverão até a morte.
1916 – O artigo “As origens da elétrico. Recebe a medalha Franklin.
teoria geral da relatividade” é publicado 1923 – Visita a Palestina e Espanha. 1936 – Hans Albert conclui o
no Annalen der Physik. Em maio é 1924 – A enteada Ilse casa com o doutorado em ciências técnicas na ETH
escolhido Presidente da Sociedade jornalista Rudolf Kayser, que veio a ser (em 1947 torna-se professor em Ber-
Alemã de Física. Finaliza seu livro de o primeiro biógrafo de Einstein. Há keley). Em dezembro, Elza falece.
divulgação científica A Teoria da indícios de que Einstein, por certo 1938 – Publica com Leopold Infeld
Relatividade Especial e Relatividade Geral. tempo, esteve apaixonado por ela, an- seu segundo livro de divulgação
Publica três artigos sobre teoria tes de ter se casado com a mãe. Evolução da Física que se torna um best
quântica. 1925 – De março a maio viaja para seller.
1917 - Escreve, em fevereiro, seu a América do Sul, com visitas à Ar- 1939 – Em agosto, assina a famosa
primeiro artigo sobre cosmologia. Fica gentina, Uruguai e Brasil. Em solidarie- carta ao Presidente Roosevelt acerca das
prostrado com icterícia e úlcera e Elza dade a Ghandi, assina um manifesto implicações militares da energia
cuida dele. Em outubro assume a contra o serviço militar obrigatório. atômica.
direção do Instituto de Física Kaiser Torna-se um pacifista fervoroso. Até 1940 – Torna-se cidadão ame-
Wilhelm. Depois da 1ª Guerra Mundial 1928 participa do Conselho Curador ricano.
mantém cidadania dupla: suíça e da Universidade Hebraica. 1943 – Torna-se consultor do
alemã. 1926 – Ganha a medalha de ouro Escritório Naval de Artilharia dos EUA.
1919 – Divorcia-se de Mileva em da Royal Astronomical Society da Grã- 1944 – Uma cópia do manuscrito
fevereiro, concordando com a cláusula Bretanha. re-escrito do artigo original de 1905
que destinava qualquer dinheiro 1928 – Tem problemas cardíacos e sobre a teoria especial da relatividade é
advindo de futuro prêmio Nobel para permanece acamado por um ano. leiloada por 6 milhões de dólares como
a manutenção dos filhos. Em 29 de Helen Dukas torna-se sua secretária e contribuição ao esforço de guerra.
maio, durante o eclipse solar, em Sobral governanta pelo resto da vida. 1945 – Aposenta-se oficialmente
e na ilha de Príncipe, expedições 1929 – Inicia amizade duradoura do Instituto de Estudos Avançados,
britânicas confirmam a deflexão da luz com a Rainha Elizabeth da Bélgica. Em recebe uma pensão, mas mantém uma
pelo Sol conforme previsto pela teoria junho recebe a Medalha Planck. sala de trabalho até sua morte.
da relatividade geral. Em 6 de novem- 1930 – Assina o manifesto em prol 1946 – Einstein torna-se Presidente
bro, os resultados são apresentados por do desarmamento mundial. Em de- do Comitê Provisório dos Cientistas
Arthur Eddington na reunião conjunta zembro visita Nova York e Cuba e Atômicos. Conclama as Nações Unidas
da Royal Society e Royal Astronomical permanece até março de 1931 no a formar um governo mundial,
Society. A notícia corre o mundo e Instituto de Tecnologia da Califórnia declarando que seria a única maneira
Einstein torna-se uma figura pública. (Caltech) em Pasadena. de manter a paz mundial.
Contrai matrimônio em 2 de junho 1931 – Profere palestras em Ox- 1948 – Em agosto, Mileva morre
com Elza que tem duas filhas solteiras ford e recebe título honorífico. Passa em Zurique. Médicos de Einsten
Ilse (22 anos) e Margot (20 anos). Inicia uma temporada de vários meses em descobrem um grande aneurisma na
seu interesse pelo sionismo. sua casa de campo de Caputh, perto de aorta abdominal.
1920 – Aparecem as primeiras Berlim. 1950 – Em março escreve seu ul-
manifestações de anti-semitismo e con- 1932 – De janeiro a março visita o timo testamento.
tra a teoria da relatividade entre os Caltech. Volta a Berlim e em dezembro 1952 – Declina o convite para ser
alemães, mas Einstein ainda permanece retorna aos Estados Unidos. Presidente de Israel.
leal a Alemanha. Começa a se envolver 1933 – Em Janeiro, os nazistas 1955 – Em 11 de abril, escreve sua
em assuntos não científicos. assumem o poder. Desliga-se da última carta para Bertrand Russel con-
1921 – Em abril e maio realiza sua Academia Prussiana de Ciências, cordando em assinar um manifesto
primeira viagem aos Estados Unidos. renuncia à cidadania alemã e nunca conclamando as nações a renunciar ao
Recebe títulos honorários e faz quatro mais retorna à Alemanha. Dos EUA, uso de armas nucleares. Na madrugada
palestras em Princeton que se transfor- vai para a Bélgica, visita Oxford para de 18 de abril, Einstein morre devido à
mam no livro The Meaning of Relati- proferir palestras. Em setembro, deixa ruptura do aneurisma.
vity. Ajuda a levantar fundos para a definitivamente a Europa com Elsa e
criação da Universidade Hebraica de Helen Dukas e chega em Nova York em Nelson Studart
Jerusalém. 17 de outubro. Publica, com Sigmund DF/UFSCar
1922 – Termina seu primeiro Freud, Por que Guerra? e assume a
trabalho sobre uma teoria de campo cátedra no Instituto de Estudos Avan- Baseado em Excertos de The Expanded Quotable
unificado. De outubro a dezembro, çados de Princeton. Einstein, editado por Alice Calaprice, Princeton
U.P., Princeton, (2000) e Sutil é o Senhor... A
viaja ao Japão, com outras escalas no 1935 – No outono, muda-se para Ciência e a Vida de Albert Einstein, A. Pais, Nova
Oriente. Em Xangai, recebe a notícia de a casa na rua Mercer 112, Princeton, Fronteira, Rio de Janeiro, 1995.

102 Cronologia Física na Escola, v. 6, n. 1, 2005


direta quanto indiretamente, ajuda-
ram-me de modo considerável (1916,
Artigo Ernst Mach Calaprice, p. 283).

Já há dois meses vagueio nesse he-


misfério [sul] como um viajante da
relatividade. Aqui é um verdadeiro
paraíso e uma alegre mistura de povos
(A Paul Ehrenfest, Rio, 5/5/1925. Tolmas-
quim, p. 131).

Não sou sionista no sentido de acre-


ditar que aquilo resolva o problema
Aprender fatos não é muito impor- deira arte de inquirir consiste em judaico. Simpatizo com a obra que
tante para uma pessoa. Para isto ela descobrir o que o estudante sabe ou realizam os partidários desse ideal e
realmente não precisa de universi- aquilo que é capaz de entender (1920, contribuo para ela porque creio na
dade. Pode aprendê-los nos livros. O Calaprice, p. 67). necessidade de formar um centro mo-
valor da educação em uma universi- ral que possa unificar a todos os
dade [liberal arts college] não é a Educação é o que sobra, depois que se judeus e donde seja factível irradiar
aprendizagem de fatos, mas o trei- esquece tudo que se aprendeu na escola a cultura judaica. Esta última é a
namento da mente para pensar em (Esta citação não é primazia de Einstein, função da Universidade de Jerusalém,
mas ele concordou com ela, pois aparece que se inaugura em breve (Mundo
algo que não pode ser aprendido nos
no artigo Sobre Educação citado acima). Israelita, 20/3/1925, Buenos Aires.
livros-texto (1921, Sobre a opinião de
Tolmasquim, p. 94).
Thomas Edison de que a educação univer-
sitária é inútil. Calaprice, p. 67). A coisa importante é não parar de
questionar. A curiosidade tem suas A pergunta que minha mente formu-
O objetivo [da educação] deve ser trei- próprias razões para existir. Não lou foi respondida pelo ensolarado céu
nar indivíduos capazes de ação e pen- adianta ficar espantado quando do Brasil (Um gesto de gentileza num pe-
samento independentes, que, no contemplamos os mistérios da eterni- daço de papel. Rio, 21/3/1925. Tolmas-
quim, p. 73).
entanto, encarem o serviço à comuni- dade, da vida, da maravilhosa estru-
dade como sua maior realização de tura da realidade. É suficiente tentar Jardim Botânico, bem como flora de
vida (Discurso na convenção da Univer- todo dia apenas compreender um pou- modo geral, supera os sonhos das
sidade Estadual de Nova York. Em 15/10/ co deste mistério (revista Life de 2/5/ 1.001 noites. Tudo vive e cresce a olhos
1936. Calaprice, p. 69. Transcrito no artigo 1955, Calaprice, p. 281).
Sobre Educação em Escritos da Maturidade, vistos por assim dizer. Deliciosa é a
p. 40, Nova Fronteira, 1994). mistura étnica nas ruas. Português-
Não tenho nenhum talento especial.
índio-negro com todos os cruzamen-
A meu ver, a pior coisa para uma es- Sou apenas apaixonadamente curioso
(Para Carl Seelig, 11/03/1952).
tos. Espontâneos como plantas,
cola é trabalhar com métodos de me- subjugados pelo calor. Experiência
do, força e autoridade artificial. Esse fantástica. Uma indescritível abun-
Todas as grandes realizações da ciên-
tratamento destrói os sentimentos dância de impressões em poucas horas
cia devem começar no conhecimento
sadios, a sinceridade e a autocon- (Diário de bordo, Rio 22/3/1925. Tolmas-
intuitivo, a saber, em axiomas, a par-
fiança do aluno (Ibid. p. 69). quim p. 77).
tir dos quais as deduções são então
feitas... Intuição é a condição neces- (...) À tarde, Academia de Ciências.
Muitos professores perdem tempo
sária para a descoberta de tais axio- Sujeitos são oradores veementes.
formulando perguntas com o obje-
mas (1920, Calaprice, p. 180). Quando elogiam alguém, estão elo-
tivo de descobrir o que o estudante
não sabe, enquanto que a verda- giando a eloqüência. Acredito que esta
Quando penso nos estudantes mais tolice e irrelevância tenham a ver com
habilidosos que encontrei na minha o clima. As pessoas acreditam que não
docência – menciono aqueles que se (Diário de bordo, Rio 7/5/1925. Tolmas-
sobressaíam não somente pela habi- quim, p. 197).
lidade, mas pela independência de Nelson Studart
pensamento – então devo confessar DF/UFSCar
que todos possuíam um vívido inte-
resse em epistemologia. Ninguém pode Excertos de The Expanded Quotable Einstein,
negar que epistemólogos pavimenta- editado por Alice Calaprice, Princeton U.P.,
Princeton, (2000) e Einstein – o Viajante da
ram a estrada para o progresso [na Relatividade na América do Sul, por Alfredo
direção da teoria da relatividade]; Tiomno Tolmasquim, Vieira & Lent, Rio de
Quadro do Museu do Eclipse, Sobral, Ce. Pelo menos Hume e Mach, tanto Janeiro (2003)].

3_4_capas.p65 3 9/13/2005, 11:47 AM

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