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OS EFEITOS DE SENTIDO E EXPRESSIVIDADE COMO MARCAS DE ESTILO

EM O AMANHECER DAS CRIATURAS, DE LÊDO IVO.

Aluna: Luci Cleide Cardoso1


e-mail: lucicleidecardoso@hotmail.com

RESUMO

Propomos, neste artigo, a análise da construção dos efeitos de sentido e da expressividade no


poema O Amanhecer das Criaturas, de Lêdo Ivo, por meio da combinação de elementos
estruturais – fônicos, lexicais e sintáticos – presentes no enunciado. Para tanto adotamos a
linha teórica da Estilística. O poema apresenta dois aspectos relevantes: o uso recorrente de
imagens (concretas, sensíveis e imaginativas) e a sonoridade, que determina o ritmo e as
impressões. Entre as imagens avultam duas figuras de linguagem: a metáfora e a metonímia,
ambas alicerçam a construção do amanhecer do homem e da natureza, estabelecendo relações
entre eles. A sonoridade é evidenciada por assonâncias e aliterações, que imprimem sons e
sensações tanto agradáveis quanto desconfortáveis. Notamos, além disso, o emprego dos
verbos no presente do indicativo, em parte pela descritividade predominante nos versos, mas,
também, como recurso para a retomada do processo de repetição ou recursividade do
amanhecer. É uma linguagem concisa, na qual a imagem e o som são determinantes para a
evocação da afetividade. Mesmo na brevidade dos versos, as palavras são valorosas pelo
efeito lírico de encantamento, beleza e reflexividade. Verificamos desde a exaltação
mitológica ao homem à beleza dos fenômenos naturais.

PALAVRAS – CHAVE: Estilística; Análise Linguística; Poema; Expressividade.

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Poeta, cronista e romancista, nascido na cidade de Maceió no estado de Alagoas,


Lêdo Ivo (1924-2012) é considerado um escritor de destaque da chamada “geração de 45”
cujos poemas seguem formas fixas, mas que, segundo o próprio autor, diverso do parnasiano
constitui o “lúdico” nos versos que escreve. O Amanhecer das Criaturas foi selecionado para
o livro “Melhores Poemas de Lêdo Ivo”, publicado em 1995 pela editora Global e organizado
por Sérgio Alves Peixoto.

1
Programa de Mestrado em Linguística da Universidade Cruzeiro do Sul.

1
A poesia é caracterizada como o gênero em que a linguagem humana destina-se a
fins estéticos. “Poesia, segundo o modo de falar comum, quer dizer duas coisas. A arte, que a
ensina, e a obra feita com a arte; a arte é a poesia, a obra poema, o poeta o artífice ”
(ALMEIDA, sXVI, apud MUHANA, 2006). Em suma, a poesia é o sentimento expresso através
do poema criado pelo poeta com a finalidade de encantar e dispertar emoções no leitor.

Por conseguinte, ARISTOTELES (IX, 50) aduz que “o sentido da mensagem poética
também pode ser", ainda que a forma estética defina um texto como poético. A poesia
compreende aspectos metafísicos2 e possibilita que esses elementos transcendam ao mundo
fático. Tais elementos revelam-se nas camadas mais profundas do poema, fruto das escolhas
linguísticas subjetivas do poeta, que observadas em contexto pelo leitor atribui valor
expressivo e sentido.

É através da Estilística que podemos observar o modo como tais escolhas linguísticas
compõem a expressividade decorrente de um emprego particular. A Expressividade,
entretanto, não possui uma definição precisa, mas não diverge entre os teóricos o fato dela
consistir justamente desse emprego individual da língua e que “se revela por meio de traços
situados na escolha do vocabulário, na ênfase dos termos concretos e abstratos, na
preferência por formas nominais ou verbais, na escolhas de figuras de linguagem, tudo
diretamente relacionado à organização do que se diz ou escreve” (HATZELD, 1989).

O objetivo desta pesquisa é demonstrar e analisar a construção dos efeitos de


sentidos por meio dos aspectos sonoros e lexicais empregados pelo autor, permitindo-nos
atribuir ao texto expressividade e possíveis significados.

Para tanto, a linha de pesquisa adotada é a da Estilística Estrutural, que dedica-se a


observar por meio da materialidade textual os elementos expressivos da linguagem
empregados em diferentes estruturas. Verifica-se, entretanto, a relevância da figura do leitor,
que atribuirá significação à obra, distanciando da relevância estilística a figura do autor 3.
Entre os autores que seguem esta corrente teórica destacamos em nossa pesquisa: Michael
Riffaterre (Estilística Estrutural).

2
Sentido de imaterialidade.
3
Sujeito empírico. De acordo com a teoria polifônica da enunciação proposta por Ducrot (1987), existem um ou mais sujeitos
que seriam a origem da enunciação e há, portanto, a necessidade de se fazer a distinção entre locutores e enunciadores. O
locutor é o responsável empírico pela enunciação (quem fala) e o enunciador é o ser que se expressa por meio da enunciação
(vozes/ideias presentes no discurso).
2
A figura do leitor é relevente ao passo que ninguém comunica algo para si mesmo,
ou seja, todo discurso propõe uma troca e elege um “tu”. Nesse aspecto, considerando que
nossa pesquisa foca o enunciado, não deixamos de abarcar o discurso.

Todo texto literário, segundo Wolfgang Iser, em seus estudos sobre a


“fenomenologia da leitura” (1999), é subjetivo, ou seja, contempla “espaços vazios” que são
preenchidos pela experiência do leitor. Que experiências são essas? Possivelmente estão
relacionadas ao domínio linguístico e ao aspecto sócio-histórico, marcas que todo sujeito
carrega. O preenchimento dos “vazios” só pode ser realizado dentro dos limites que o texto
permite, por meio das marcas linguísticas e é justamente essa percepção do leitor que
interessa à estilística.

ESTABELECENDO RELAÇÕES: Estilística e Análise do Discurso

Ao optarmos pela Estilística do Enunciado como linha teórica de análise nos


alinhamos a outras, igualmente relevantes, tais como a Linguística Textual e a Análise do
Discurso. Entretanto adequamos ao corpus, poema, o melhor modo de abordagem.

A Linguística Textual está intrinsecamente relacionada à Estilística ao passo que


investiga os elementos de coesão e a construção da coerência através do material gramatical, a
escolha individual desses mecanismos linguísticos compõem a expressividade e a afetividade
do enunciado, meio pelo qual o autor atua sobre seu leitor.

Por outro lado, a Análise do Discurso está mais focada para a questão argumentativa
presente no texto, não obstante também inclua o discurso literário, seu foco são os elementos
externos à língua, voltados para as questões ideológicas e sócio-históricas. Segundo
ORLANDI:

Por esse tipo de estudo se pode conhecer melhor aquilo que faz do homem um ser
especial com sua capacidade de significar e significar-se. A Análise do Discurso
concebe a linguagem como mediação necessária entre o homem e a realidade natural
e social. Essa mediação, que é o discurso, torna possível tanto a permanencia e a
continuidade quanto o deslocamento e a transformação do homem e da realidade em
que ele vive. O trabalho simbólico do discurso está na base da produção da
existência humana. (...) Levando em conta o homem na sua história, considera os
processos e as condições de produção da linguagem, pela análise da relação
estabelecida pela língua com os sujeitos que a falam e as situações em que se produz
o dizer. Desse modo, para encontrar as regularidades da linguagem em sua
produção, o analista do discurso relaciona a linguagem e sua exterioridade.
(2006, p. 15-16) Grifo nosso

Ao optar pelo gênero poesia o autor enfatiza seu discurso para os aspectos
relacionados à emoção, o nível de subjetividade é profundo e nem sempre as escolhas

3
linguísticas são claras e homogêneas, por vezes os signos carregam maior valor semântico,
não permitindo que transpareça de imediato a formação ideológica do sujeito. Assim, não é
possível realizar uma análise mais profunda sob o prisma de uma única corrente teórica, é
necessário a utilização de estudos diversos, desde que sejam compatíveis.

A análise de um texto, especialmente de um poema, deve procurar entender as


complexas relações que se estabelecem para a formação do sentido; e, nem sempre,
é possível fazer-se uma análise mais abrangente, atentando-se exclusivamente a um
quadro teórico. (MICHELETTI, 2006, p. 21)

A Estilística alia-se a Análise do Discurso quanto ao objetivo de atribuir sentido ao


enunciado e complementam-se ao passo que, a primeira atribui através das escolhas
linguísticas a expressividade de um sujeito, relevando também os elementos predominantes na
AD, o contexto sócio-histórico da construção linguística e o leitor4, a quem intencionalmente
se destina o discurso e que por intermédio do texto designará um significado. Daí
aproveitamos a definição de discurso: o discurso é efeitos de sentidos entre locutores
(ORLANDI, 2006, p. 21).

Ao que nos parece é perfeitamente viável o estudo analítico de um enunciado


partindo-se de uma ordem interna, coordenada pela linguística textual, para uma ordem
externa, relacionada aos sujeitos e aos aspectos histórico-culturais.

A ESTILÍSTICA ESTRUTURAL: O estilo em função do contexto linguístico e do leitor.

Para Riffaterre o estilo resulta da forma da mensagem alicerçada sobre alguns


procedimentos “decorrentes de uma convergência (paralelismo, colocação de elementos
linguísticos equivalentes – fônicos e semânticos – em posições equivalentes), e outros
decorrentes dum contraste de signos” (MARTINS, 2008, p. 32-33).

Os signos5 recebem valor resultante de oposição e interação com outros signos, não
existindo valor absoluto e por si só. É por meio do contexto6 que atualizamos seu valor
expressivo.

Segundo o autor uma obra literária não deve ser análisada apenas sob a ótica da
linguística, é necessário destacar suas funções e os traços que as tornam elementos estilísticos,
4
Para a análise do discurso o leitor equivale ao coenunciador (MAINGUENEAU, 1997).
5
Segundo Benveniste: Elemento primordial do sistema linguístico, constituído por um significante e um significado cuja
ligação deve ser reconhecida como necessária, sendo esses dois componentes consubstanciais em com o outro.
6
O autor distingue dois tipos de contexto interior e exterior do processo estilístico: o microcontexto, que é formado pelos
elementos não marcados no texto. E o macrocontexto, que “precede o processo estilístico e é exterior a ele.” É o responsável
por reforçar o efeito estilístico do processo, bem como equilibrar os efeitos de contraste, restabelecendo o nível do contexto
como um todo.
4
ou seja, o melhor é aplicar os métodos linguísticos atentando-se tanto para a questão
linguística quanto estilística. Para tanto, Riffaterre entende “o estilo como um reforço
(emphasis) – expressivo, afetivo ou estético – acrescentado à informação transmitida pela
estrutura lingüística, sem alteração de sentido.” (1971, p. 32) “Vale dizer que a linguagem
exprime e o estilo realça” (1971, p.33)

Com relação aos elementos da linguagem literária, o autor as utiliza com finalidade
precisa, tornando-as unidades de seu estilo e o que depreende atenção é esta realização
particular do valor de tais elementos.

Ponto também importante na obra de Riffaterre é o destaque dado ao leitor: é


necessário que ele se sinta atraído pela leitura. Com esse intuito criam-se elementos
imprevisíveis no texto, oportunidade em que o autor impõe sua própria interpretação ao
poema impedindo que o leitor preveja quaisquer traços importantes. A previsibilidade conduz
a uma leitura superficial, enquanto o contrário requer maior atenção.

O autor eleva a importância do leitor da mesma forma que o coenunciador é elevado


na análise do discurso. “O estudo do estilo só pode ser definido em função do leitor, sendo
destituída de pertinência estilística toda referência ao autor” (MARTINS, 2008, p. 33).
Entretando, vale ressaltar novamente que o julgamento do leitor é provocado por estímulos
presentes no texto.

São os elementos marcados que permitem ao leitor reconhecer um estilo e limitar a


liberdade de atribuição de significados: a estilística é, portanto, a parte da lingüística que
estuda a percepção da mensagem.

Como podemos observar, os estudos estilísticos voltam-se para a compreensão do


texto através do material linguístico, não quer dizer que o analista desconsidere as questões
ideológicas, pelo contrário, elas estão inseridas em todo discurso. Um texto está
constantemente em diálogo com outros textos e os signos são flexíveis, interagem com o
conhecimento do leitor e recebem novos valores de expressividade e afetividade.

Nosso intuito, enquanto analistas, não é o de limitar a investigação a uma única linha
teórica, mesmo porque atualmente já nos é permitido considerá-las combinatórias e
complementares. A intenção é verificar alguns usos expressivos da linguagem através do
material gramatical apreendido no texto.

PERSPECTIVAS DE ANÁLISE: aspecto sonoro, lexical e frasal.

5
O corpus de nossa pesquisa, O Amanhecer das Criaturas, é um poema que possui 21
versos distribuídos simetricamente em três quartetos e três tercetos. Não obstante apresente
forma fixa, o poema é extremamente rico em sonoridade e aspectos semânticos atribuídos
pelo léxico, ele nos permite transitar pela fonoestilística transpassando para a estilística da
palavra e da frase.

A estilística fônica ou fonoestilística estabelece relação entre a sonoridade e a


construção de sentido, geralmente despertam no leitor impressões e sensações relacionadas as
figuras de som (aliteração, assonância, onomatopeia ) e rimas. Corroborando com essa
construção teórica, Nilce Sant’Anna Martins aduz que,

A fonoestilística trata dos valores expressivos de natureza sonora observáveis nas


palavras e nos enunciados.(...) Além de permitir a oposição de duas palavras –
função distintiva – a matéria fônica desempenha uma função expressiva que se deve
a particularidades da articulação dos fonemas, às suas qualidades de timbre, altura,
duração, intensidade. Os sons da língua – como outros sons de seres – podem
provocar-nos uma sensação de agrado ou desagrado e ainda sugerir ideias,
impressões. (...) Evidentemente, essas impressões e sugestões oferecidas pela
matéria fônica são recebidas de maneira diversa conforme as pessoas. São os artistas
que trabalham com a palavra, poetas e atores, os que melhores apreendem o
potencial de expressividade dos sons e que deles extraem um uso mais refinado.
(MARTINS, 2008, p. 44-45)

Quanto à estilística da palavra dedica-se ao estudo dos aspectos expressivos do


léxico relacionados aos seus elementos semânticos e morfológicos, esses, por sua vez,
indissociáveis dos aspectos sintáticos e contextuais.

São amplas as possibilidades de análise nesse segmento. Observam-se as palavras


lexicais e gramaticais, o emprego de determinadas classes e os seus valores
semânticos ligados à referencialidade e à figurativização promovida pelo usuário
que a tornam plurissignificativa. O uso de metáforas, metonímias e de figuras tidas
como figuras de pensamento como as de oposição, o emprego de sinônimos e
antônimos, e a exploração de homonímia e polissemia criam notáveis campos
significativos, organizando o sentido textual. Notam-se os morfemas que a
compõem e que, muitas vezes, criam combinações inusitadas, causadoras de um
estranhamento para o leitor. As flexões constituem um campo fértil da
expressividade, tanto em relação aos nomes como ao verbo. Este, em suas variações
de modo-tempo, número-pessoa e mesmo na polivalência de suas formas nominais
se prestam à descrição, registro e avaliação dos fatos mais diversos. Verificam-se os
usos geográficos e histórico-sociais das palavras (...) Tudo isso num nível estrutural
mais amplo que a frase.(MICHELETTI, 2006, p. 25)

Ressalta-se que os atos de fala são resultados da combinação de palavras segundo as


normas da língua, apenas hipoteticamente se separa léxico e gramática e, mesmo as palavras
com significado extralinguístico, só resultam em efeito de sentido no enunciado com a
composição de outro elemento gramatical. Como já destacamos, um signo só possui valor
expressivo em contato e oposição com outros signos.

6
Por fim, observamos com relação ao nível frasal a manifestação e organização do
pensamento em unidades de sentido maiores ou menores, Segundo Bally “a frase é a forma
mais simples possível de manifestação do pensamento”, e acrescenta:

Pensar, explica o autor, é reagir ao mundo por constatação, apreciação ou vontade.


Assim, a partir do uso de frases, o falante atualiza as estruturas formais da língua,
enunciando julgamentos de fato, de valor e de vontade. A frase, ou o enunciado, é
produto de uma intenção do falante, uma reação ao mundo tal como ele é percebido
por esse sujeito. A frase é composta pelo dictum e pelo modus. O dictum
corresponde à representação da parte intelectual do pensamento do falante, à parte
formal do enunciado. O modus, por sua vez, é a parte mais essencial do enunciado,
no qual a subjetividade do falante é explicitada (FLORES, 2009, p. 126)

Quanto à organização do pensamento podemos relacioná-la às frases inorgânicas e


orgânicas. A primeira exige maior contribuição do leitor para atribuição de sentido, pois o
pensamento não é transmito de forma completa. Nas frases orgânicas são produzidas inúmeras
expressões por meio de combinações variadas, desde períodos simples meramente justapostos
para formação de estrofes, versos e parágrafos, que conduzem o leitor ao ritmo e outros
aspectos emocionais, até chegar à frase mais longa, que exige do autor uma postura mais
reflexiva com usos mais comum de conectores e frases de períodos complexos.

E ainda, no interior das frases é relevante investigar a ordem dos termos, pois tais
posições demonstram a intencionalidade e o valor emocional que o autor quis empreender ao
enunciado. As pausas são outro elemento que merece abordagem, pois de sua combinação
com a sonoridade determina-se o ritmo e por meio dos sinais gráficos revelam-se sentidos
precisos (exclamar, interrogar, interromper, declarar), sentidos esses mensurados pelo
analista.

Destacamos que nosso intuito até aqui não é o de inventariar as diversas formas de
abordagem teórica da Estilística, mas sim conceder-lhe o espaço devido dentre as categorias
de análise do campo linguístico. As tendências de análises atuais têm privilegiado mais
amplamente a análise do discurso, a nova retórica, os estudos enunciativos, semânticos e
pragmáticos, todavia, a estilística se mostra sempre bastante flexível e atemporal, uma vez
que seus estudos estão sempre voltados para os usos da língua na construção de sentido, o que
a permite se adaptar continuamente a quaisquer novas teorias.

O estudo do poema que segue abarca todos os aspectos abordados. Partimos de sua
estrutura, ou seja, de todas as marcas convergentes elencadas por Riffaterre, com o objetivo
de demonstrar possíveis interpretações e, consequentemente, instaurar a expressividade.

Acreditamos que a breve abordagem teórica elucidará eventuais dúvidas sobre os


aspectos fônicos e semânticos que iremos apontar em nossa análise.
7
A EXALTAÇÃO À MULHER: um olhar estilístico na poesia de Lêdo Ivo

Lêdo Ivo ocupou o mesmo espaço de destaque de outros escritores da “geração de


45”, como: Guimarães Rosa, João Cabral de Melo Neto, Ferreira Gullar, Clarice Lispector,
dentre outros, reconhecidos pela reforma de valores estéticos voltados para a valorização da
palavra escrita e releitura dos costumes regionalistas, além do desenvolvimento de traços
formalizantes, sem deixar de expressar as questões políticas, as contradições internas do
homem e os problemas sociais.

O poema que selecionamos foge da formalidade, típica dos parnasianos – estilo


adotado em 1945 - e surpreende-nos pela riqueza “lúdica”, ou seja, pelo aspecto semântico
presente em cada verso.

O Amanhecer das Criaturas foi originalmente escrito em 1960 e selecionado,


posteriormente, para integrar algumas antologias e obras reunidas, destacamos o livro
“Melhores Poemas de Lêdo Ivo”, lançado em 1995 e organizado por Sérgio Alves Peixoto
(Professor Doutor da Universidade Federal de Minas Gerais ).

O Amanhecer das Criaturas


O dia forma-se
de quase nada:
um seio nu
por entre pálpebras,

o sol que raia


e a luz acesa
no arranha-céu
que a aurora lava.

A mão incerta
deixa na rósea
carne dormida
o gesto equívoco.

Tudo é lilá
na luminosa
e vã partilha.

No dia imenso
nascem tesouros:
curvos, redondos.

O pão à porta,
depois o leite,
e o erguer dos corpos

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O poema demonstra dois aspectos relevantes, quais sejam: o uso recorrente de
imagens (concretas, sensíveis e imaginativas) e a sonoridade, que determina o ritmo e as
impressões, ambas produzem valores expressivos. Nota-se também, a utilização de verbos no
presente do indicativo (que correspondem à ação não acabada) e duas principais figuras de
linguagem: a metáfora e a metonímia7.

Na primeira estrofe já é possível perceber a progressão do poema por meio da


presença de diversos sons. Há uma aliteração das sibilantes /s/ e /z/ (forma-se, quase, seio,
pálpebras), que segundo Martins (2008, p. 56), sugerem a ideia de chiados, neste caso,
remetem aos primeiros sons do amanhecer, um barulho suave ou murmúrio típico das manhãs.

Por conseguinte, na segunda estrofe, nota-se a assonância da vogal aberta /a/, que
remete a sons nítidos e a ideia de brancura, claridade e vastidão, habituais no momento em
que o sol começa a raiar o dia (o sol que raia, a luz acesa, no arranha céu, que a aurora
lava). Também é marcante a presença de aliteração das consoantes constritivas vibrantes /R/ e
/r/, sugerindo algo deslizante, que remete a fluidez (o sol que raia, a luz acesa, no arranha
céu, que a aurora lava).

De certo, a aliteração das consoantes constritivas vibrantes /R/ e /r/ estão presentes
em todo o poema, pois é uma forma de marcar o fluir (progressão) do amanhecer. Destarte, a
partir da quarta estrofe estes sons são menos frequentes, quando dão lugar a aliteração das
consoantes constritivas laterais /l/ e /lh/ que também transmitem a ideia de fluidez, bem como,
a sensação de rapidez ou aceleração do processo de transformação do dia (Tudo é lilá, na
luminosa, e vã partilha).

Na quinta estrofe, a assonância das vogais orais fechadas /o/ e /u/, marcam ou
sugerem, seguindo os mesmos exemplos de Martins, a ideia de redondez e fechamento,
ratificando a imagem anterior citada do sol no pino do dia e das curvas que compõem o corpo
feminino (No dia imenso/ nascem tesouros:/ curvos, redondos).

Por fim, a sexta e última estrofe conclui todo o processo de nascer e raiar do dia, é
o amanhecer que temos, evidente pela sonoridade expressa pelas consoantes oclusivas
surdas /p/ e /t/, que produzem ruídos duros, de pancadas, passos pesados, que remetem ao
barulho do dia a dia que as pessoas produzem (O pão à porta, depois o leite, e o erguer dos
corpos).
7
A metáfora é o emprego de um significante com um significado secundário ou a aproximação de dois ou mais significantes,
estando nos dois casos, os significados associados por semelhanças, contiguidade, inclusão. ( MARTINS, 2008, p. 125). A
metonímia ocorre apenas com o substantivo, é a figura pela qual uma palavra que designa uma realidade “A” é substituída
por uma palavra que designa uma realidade “B”, em virtude de uma relação de vizinhança, de coexistência, de
interdependência, que une “A” e “B”, de fato ou no pensamento ( MORIER, apud MARTINS, 2008, p. 132).
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Iniciamos a análise pela estilística fônica, ao tratar do amanhecer o autor
empregou palavras cujos sons transpassam todas as sensações e impressões que resgatamos de
nossa memória quando pensamos na maneira que iniciamos as manhãs todos os dias nos
centros urbanos.

Por outro lado, os chiados, a fluidez e o fechamento atribuídos por assonâncias e


aliterações não fazem menção a todo e qualquer amanhecer, é o amanhecer do homem, ser
racional, fruto da criação mitológica.

Adiante observamos os efeitos semânticos das escolhas das palavras,


compreendemos que Ledô Ivo quis elevar e homenagear a Mulher, pois o poema é rico em
elementos e símbolos que remetem ao feminino.

A primeira estrofe apresenta, de maneira discreta, o tema do poema, “O


Amanhecer”, por meio das imagens: O dia forma-se/ de quase nada:/ um seio nu/ por entre
pálpebras. Observa-se que os elementos masculinos: O amanhecer/ O dia, surgem a partir
dos elementos femininos, seio nu/ pálpebras (“formar-se” também remete a ideia de
nascimento, que sempre está relacionado ao elemento feminino).

As imagens: seio nu/ por entre pálpebras; representam tanto o despontar do sol,
quanto o próprio corpo feminino ao amanhecer, ou seja, pode-se dizer que são imagens de
duas vertentes, sendo que a imagem do sol nascendo é estabelecida metaforicamente ( o nascer
do sol é como um seio nu por entre as pálpebras ), enquanto a da mulher é apresentada por meio de
uma metonímia (o seio representa a mulher em si – parte pelo todo).

Na última estrofe, surge uma nova imagem, que confirma o paralelo entre o
amanhecer da natureza e do homem (este representado pela mulher): No dia imenso/ nascem
tesouros:/ curvos, redondos.

Possível afirmar a existência de uma progressão entre a imagem descrita na


primeira estrofe e na penúltima; um seio nu/ por entre pálpebras transmite a ideia de sol
despontando, o homem acordando, enfim, o amanhecer; já na imagem: nascem tesouros:/
curvos, redondos, o sol e o corpo feminino estão novamente representados, porém agora, eles
se mostram de maneira completa: é o sol do dia já formado, com suas curvas, redondo, assim como
o corpo feminino, em pé, visto de modo inteiro.

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A mulher simboliza o amanhecer do ser humano, formando um paralelo com o
amanhecer da natureza. O processo do amanhecer ocorre de maneira suave, delicada, assim
como a ideia que se tem do corpo feminino, da mulher em todos os seus gestos.

Na quarta estrofe há um verso que exprime esta suavidade: Tudo é lilá, na


luminosa, e vã partilha; a cor lilás é suave, todavia a palavra “luminosa” se contrapõe a ideia
de suavidade. Estabelece-se um paradoxo, apesar do sol já estar quase no auge ainda existe a
suavidade própria do dia se formando, é um momento de ruptura.

Existem também no poema, substantivos comuns, como “pão”, “leite” e o verbo


“erguer”, na forma infinitiva, assumindo o valor de substantivo, todos juntos empreendem e
reforçam a ideia de que o dia começou, com todos os hábitos que fazem parte do cotidiano.

Além disso, pode-se afirmar que há vários aspectos descritivos no poema (A mão
incerta/ deixa na rósea/ carne...), marcados pelos verbos, em sua maioria, no presente do
indicativo, os quais, diga-se de passagem, além do aspecto descritivo, são empregados como
recurso para a retomada do processo de repetição ou recursividade do amanhecer. A
descrição é feita simultaneamente, por meio de imagens que se desmembram em metáforas e
metonímias.

Ademais, este processo de descrição, por meio dessas figuras de linguagem,


representa a própria fragmentação/progressão característicos da formação do dia, ora
determinado pela posição do sol e ora pelos hábitos matutinos do homem (o despertar com a
mão esfregando o rosto; a entrega do leite e do pão à porta, típico da década de 60’ e o
levantar-se da cama).

Esta progressão do amanhecer, regido pela posição do sol, inicialmente como


“um seio nu, por entre pálpebras”, depois, no alto, “no arranha-céu”, e após, na mudança de
cores, “lilás e luminosa”, exalta a simbologia universal do infinito e da energia vital, ou seja,
o sol é representado pelo círculo, portanto não há começo nem fim. Já sua luz, esta
relacionada com a ampliação da nossa consciência superior, bem como, representa, segundo
os dicionários de simbologia, a busca pela realização e a capacidade criadora.

A claridade do sol também fecunda a vida, assim como a mulher, portanto, nada
mais natural do que comparar os dois elementos, razão que nos leva a crer na “ode à mulher”
implícita no poema.

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A expressão “que a aurora lava”, demonstra mais uma simbologia do elemento
feminino, posto que, Aurora é a Deusa da Manhã, em sentido etimológico é a claridade que
antecede o nascimento do sol. Destarte, estão presentes, por meio das expressões: “seio”,
“Sol”, “luz”, “aurora”, “lilá” (cor da intuição e espiritualidade) e “nascem”, as várias
mulheres (a Mulher humana; a Mulher natureza - que fecunda e dá vida - a Mulher Deusa,
etc.) que o poema revela.

Observamos também que, o homem é gerido pela posição do sol: “o sol que raia,
a luz acesa no arranha-céu”, determina o esfregar de rosto, o despertar; “o dia imenso”, o sol
a pino, determina o momento de se levantar.

A linguagem que compõe todo o poema reflete de maneira progressiva o que se


quer expressar: “O Amanhecer”, como um processo sugestivo pelo uso de muitas imagens e
figuras de linguagem, especialmente a metáfora e a metonímia.

É importante esclarecer quanto ao termo recorrente que utilizamos: a imagem, que


para alguns teóricos, em especial Charles Bally (apud MARTINS, 2008, p. 120) está diretamente
relacionado à linguagem figurada, em específico, à metáfora. O autor aponta três tipos de
imagem: a sensível, que apreendemos pela imaginação; a afetiva, que desperta o emocional e
a morta, que por ser uma abstração, exige um movimento intelectual mais apurado. Bally
afirma que as metáforas surgem sensíveis, se tornam afetivas e morrem quando já desgastadas
por seu uso.

Quanto mais detalhada for uma imagem, mais se tornará concreta, imaginativa e,
consequentemente, própria da criação de cada individuo, despertando suas emoções pelo
vigor da evocação.

No poema que analisamos a linguagem figurada se dá por meio de associações,


entre o sentido literal e os termos empregados na construção de sentidos. Assim é construída a
associação entre o amanhecer e a mulher, como ocorre, por exemplo, na primeira estrofe: “um
seio nu/ por entre pálpebras”. O sentido literal nos faz associá-los as partes do corpo
feminino, mas uma vez empregados com o verso “O dia forma-se”, os relacionamos ao sol
visualizado entre o solo e o céu. A construção de sentido ocorre ao final, quando percebemos
as relações entre o sentido literal e figurado: a mulher simboliza o amanhecer do ser humano,
formando um paralelo com o amanhecer da natureza.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nossos estudos focalizaram a interpretação de um poema que integra a obra de


Lêdo Ivo, para tanto adotamos como linha teórica a estilística, que induzido pelo próprio texto
nos pareceu o melhor modo de abordagem, posto que o escopo são os efeitos de sentido e a
notoriedade dos usos linguísticos, os quais, por sua vez, destacam as possibilidades e
capacidades expressivas da língua.

Lembramos que a língua não se resume a um conjunto de categorias gramaticais.


Sendo o enunciado o objeto de nossa pesquisa, nossa análise demonstra um enfoque
discursivo. O que é a língua se não a combinação de elementos que incluem desde a menor
estrutura morfológica ou fônica das palavras até a significação mais relativa do discurso em
constante diálogo com a realidade.

A poesia é resultado da combinação entre as escolhas linguísticas empregadas no


poema e a interação com a realidade por meio do leitor que lhe atribui valor expressivo. Esta
percepção da mensagem, por meio da tríade autor – texto – leitor, é que interessa ao estudo
estilístico.

Determinar o estilo não é algo simples e objetivo, mesmo porque o emprego da


linguagem no discurso literário é subjetivo e depende da interação com o outro, da alteridade,
para que possamos observar quais as marcas presentes no enunciado que realçarão e
determinarão a atribuição de expressividade.

Reparamos que a linguagem concisa, a imagem e o som determinam os efeitos de


sentido no poema de Lêdo Ivo. Por meio da combinação entre o sentido real e figurado da
linguagem tecemos relações entre imagens e sensações que ao final permite construir um
significado, única para cada individuo, mas sempre remetendo ao nível das emoções.

Em nossa análise verificamos que, mesmo na brevidade dos versos, as palavras


são valorosas pelo efeito poético de encantamento, beleza e reflexividade. Verificamos desde
a exaltação mitológica ao homem à beleza dos fenômenos naturais, alicerçados na estrutura
fixa do gênero, formalidade esta superada pela criatividade do poeta.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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- ISER, Wolfgang. O ato de leitura: uma teoria do efeito estético. Tradução: Johannes Kretschmer.
São Paulo: Ed. 34, 1996, v. 1.

- ISER, Wolfgang. O ato da leitura: uma teoria do efeito estético. Tradução: Johannes Kretschmer.
São Paulo: Ed. 34, 1999, v. 2.

- LIMA, Renira Lisboa de Maura. A forma soneto. 1ª edição. São Paulo: EdUFAL, 2007.

- MAINGUENEAU, Dominique. Novas Tendências e Análise do Discurso. 3ª edição. São Paulo:


Pontes, 1997.

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edição.Uberlândia: EDUFU, 2006.

- VARGAS, Maria Valíria. Verbo e Práticas Discursivas. São Paulo: Contexto, 2011.

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