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Schopenhauer e a Metafísica da Vontade

Geral II: Semestre 2020\1


Prof. Dr. Eduardo Brandão
Natália Galvão Azevedo Silva
Nº USP: 11286956

Introdução

Um dos maiores símbolos do idealismo alemão, Arthur Schopenhauer (1788-1860),


rompeu com os gregos antigos no que diz respeito à primazia de uma força proveniente
exclusivamente da razão1. Isto é, na filosofia schopenhaueriana, não vemos o mesmo
depósito de segurança em uma racionalidade que comandaria e direcionaria as leis
naturais do universo. Nos deparamos, afinal, com uma filosofia que se desenvolve na
reflexão acerca do irracional.

A filosofia schopenhaueriana, por conta de sua empresa metafísica, se contrasta também


com posicionamentos de filosofias como as de Hume e Kant, que se colocam contrárias
aos intentos e a possibilidade de qualquer metafísica. Entretanto, o sistema metafisico
schopenhaueriano se diverge daquele dogmatismo transcendental derrubado por Kant,
“uma vez que [o dogmatismo transcendental] ultrapassa o mundo para explicá-lo por
meio de algo outro: torna-o consequência de uma razão, a partir da qual o deduz. A
filosofia de Schopenhauer, em contrapartida, começa com a afirmação de que “só
existem razões e consequências no mundo e desde que este esteja pressuposto.”
(SCHOPENHAUER, 2003, p. 118). Dessa forma, segundo o filósofo, ao contrário da
metafísica pré-kantiana que constituiu sistemas acríticos e inválidos, que pretensamente
tentavam explicar o mundo a partir de elementos extrínsecos a ele, seu sistema
metafísico, denominado por ele como imanente, embora carregue princípios dogmáticos
“[eles] não ultrapassam o mundo dado na experiência, mas apenas esclarecem o que ele
é, já que o decompõem em suas partes componentes.” (SCHOPENHAUER, 2003, p.
118). Dessa maneira, conseguimos visualizar os intentos e as convicções de
Schopenhauer acerca do que seria uma metafísica para ele: “trata-se, portanto, da
admissão de que, além da representação e da vontade, nada mais é cognoscível”2.

1
Cf. NASCIMENTO, Isaac de S. A Metafísica da Vontade em Schopenhauer. In: Revista Lampejo, ano
4, nº 8, pg. 2.
2
Cf. DEBONA, Vilmar. Schopenhauer. São Paulo: Ed. Ideias e Letras, 1ª edição, 2019. p. 45.
Todavia, para Kant, de qualquer maneira, todo sistema metafísico, mesmo o imanente,
seria um contrassenso, pois “(...) no tocante às fontes do conhecimento metafísico, elas
não podem ... ser empíricas”3. Segundo ele, nossas intuições a priori só podem
constituir fundamento para a organização do mundo empírico, isto é, são condições de
possibilidade válidas apenas para o conhecimento do mundo fenomênico. Segundo
lentes kantianas, então, a metafísica schopenhaueriana é qualificável como não crítica.
Todavia, Schopenhauer sustenta que uma metafísica pode ser sim fundada na
experiência, mas não em experiências físicas, isso é, experiências que sejam submetidas
ao princípio da razão.

Os caminhos metafísicos elucidados por Schopenhauer, a partir do momento que ele


coloca experiências possíveis alheias ao princípio da razão, podem ser obtidos em três
momentos principais: (a) na experiência interna possibilitada pela autoconsciência, que
nos oferece uma maior compreensão dos “atos volitivos suscitados pelos motivos, que
consiste em uma mera representação” 4, intitulada como metafísica da natureza ; (b) na
possibilidade de contemplação estética desinteressada do belo e do sublime 5, que se
constitui como intuição fundamental da metafísica do belo; e (c) “(...) na supressão da
diferença do eu no outro, ou seja na identificação do agente com o outro que sofre
(...)”6, “(...) o que seria considerado como fundamento do fenômeno da compaixão(...) 7,
que se constitui como base da metafísica dos costumes.

Na dissertação Sobre a raiz quádrupla do princípio de razão suficiente, somos


apresentados ao modus operandi do filósofo. Schopenhauer opera, na construção das
quatro raízes do princípio de razão suficiente, a partir das lentes das ciências naturais,
porém, segundo ele nenhum dos modos de operar da ciência é capaz de revelar a
essência íntima dos objetos, mas apenas as condições do aparecer de cada fenômeno, de
forma que, usando-se deles, é possível apenas determinar a forma geral de toda
experiência possível, entretanto sua essência continuaria desconhecida. Apesar disso, a
possibilidade metafísica expressa por Schopenhauer não necessariamente implica em
conhecimento da coisa em si.

3
KANT, 1988, p. 23-24 Prolegômenos a toda a metafísica futura.
4
SCHOPENHAUER, Arthur. Sobre a Quadrúplice Raiz do Princípio de Razão Suficiente. Tradução de
O. Giacoia e G. Valladão. São Paulo: Unicamp, 2020. p. 319-321.
5
DEBONA, Vilmar. Ibidem, p. 75.
6
Ibidem, p. 99
7
Ibidem, p. 100
Embora os eventos metafísicos citados estejam fora do domínio das ciências naturais,
são completamente compreensíveis metafisicamente. Afirmar a possibilidade metafísica
não é afirmar a possibilidade de conhecimento da coisa-em-si, como já foi mencionado.
As condições para a possibilidade de um conhecimento da coisa-em-si, segundo
Schopenhauer, seriam a desvinculação e a oposição a toda forma de representação, isso
é, a negação da vida.

Apresentadas as considerações prévias acerca da metafísica e da epistemologia


schopenhauerianas, passemos agora à elucidação e à exploração do elo que une toda a
metafísica de Schopenhauer, utilizando como ilustração a teoria do caráter e dando
destaque ao sentimento de compaixão, com o objetivo de demonstrar que é a partir da
compaixão que podemos vir a compreender o significado moral das ações humanas na
negação da vontade, e também entender como as ações humanas estão sempre
submetidas à necessidade, e que o único caminho para alcançar a liberdade da vontade
seria a emancipação desse querer, pois há sempre intervenção da coisa-em-si em
qualquer ação tomada pelo indivíduo, isto é, há sempre uma causa interferindo no ato.

Por fim, uma nota metodológica acerca deste artigo é a de que, para a sua realização,
utilizou-se, como leitura principal para o desenvolvimento dos pontos colocados, a
dissertação de doutorado de Schopenhauer, Sobre a quádrupla raiz do princípio de
razão suficiente, além de sua obra O mundo como Vontade e representação (volumes I
e II), também os livros Schopenhauer do professor Vilmar Debona e Sobre o
fundamento da Moral de Schopenhauer e outras leituras secundárias, inclusas na
bibliografia.

1. Somos livres?

Para entendermos melhor do que se trata a teoria do caráter de Schopenhauer e,


consequentemente, o que serve de base para sua construção, como também a concepção
do filósofo sobre a essência do mundo, temos de compreender, primeiramente, os
principais elementos e conceitos que fundamentam a metafísica da vontade como um
todo, pois o fundamento da teoria do caráter se concentra nela, em especial ao tratar-se
dos graus de objetivação da vontade na natureza.
Schopenhauer estabelece sujeito e objeto como correlatos inseparáveis intricados em
uma relação na qual: “(...) onde começa o objeto, termina o sujeito. A continuidade
desse limite mostra-se precisamente no fato de as formas essenciais e universais de todo
objeto – tempo, espaço e causalidade – também poderem ser encontradas e
completamente conhecidas partindo do sujeito, sem conhecimento do objeto, isto é, na
linguagem de Kant, residem a priori em nossa consciência.” 8. Compreendida essa
dependência da relação sujeito-objeto, é preciso enumerar quais são os
mecanismos/ferramentas que o sujeito cognoscente utiliza para a apreensão da
representação empírica.

O conhecimento do mundo se fundamenta, para Schopenhauer, sobre quatro classes do


princípio da razão: a do devir, a do ser, a do conhecer e a do agir. Para a construção e
elucidação do que foi proposto, será necessário expor apenas duas classes das quatro
citadas acima: (1ª) a do devir, que rege as representações intuitivas provindas do
entendimento, e (4ª) a do agir, que rege a motivação. A classe do devir aparece como
lei de causalidade, sendo o devir aquilo que rege as representações dos objetos
empíricos. A apreensão do mundo efetivo, em seus elementos formais (espaço e tempo)
e materiais, é feita mediante o conhecimento da causa pelo efeito, sendo tal relação
estabelecida pelo entendimento. No indivíduo, os simples dados dos sentidos oferecem
a “ponte” para a construção das representações. Entretanto, sem as formas a priori da
intuição, eles não passariam de sensações vagas e confusas recebidas pelo corpo. Assim
“(...) [o sentido acaba por] não [ser] meramente sensual, mas intelectual, isto é,
conhecimento puro do entendimento da causa pelo efeito; por conseguinte, supõe a lei
da causalidade”9.

Construídos os caminhos de apreensão da representação, se faz necessária agora a


elucidação da relação da lei da causalidade com a modificação da matéria (Materie),
para que avancemos no edifício metafísico em questão. Schopenhauer, em seu texto
Sobre a quádrupla raiz do princípio de razão suficiente, no §21, apresenta uma
identidade entre substância e matéria, as quais se fazem perceptíveis no momento em
que as forças naturais estão tentando tomar posse da matéria. É como se, por conta de

8
SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e como representação. Tradução: Jair Barboza.
São Paulo: UNESP, 2005, p. 46.
9
Ibidem, p. 55.
uma disputa por dominação, a matéria se transformasse e houvesse uma sucessão de
estados. Assim, os fenômenos naturais se sucederiam segundo a lei de causalidade.

A causalidade como modificação ingressa na natureza de três formas, isto é, o mundo


empírico se move conforme três formas de causalidade: (1) causa: se refere às
modificações no reino inorgânico, formados apenas pela agregação da matéria; (2)
estímulo: diz respeito à vida orgânica, ou seja, se refere àquilo desprovido de
consciência, ao contrário da vida animal; (3) motivo: essa terceira forma de causalidade
pertence às causas; está diretamente relacionada com as ações externas dos seres
conscientes.

Apresentadas, brevemente, todas as formas de causalidade, daremos agora um destaque


maior ao motivo. Essa terceira forma de causalidade é mediada pelo conhecimento, “(...)
pois a receptividade aos motivos exige um intelecto (...)”10, além de também ter um
papel primário na caracterização e na diferenciação da ação humana em relação à dos
outros animais. A forma de conhecimento que atua no motivo recebe o nome de
autoconsciência e é desenvolvida por Schopenhauer no §41 de sua dissertação de
doutorado.

Adentramos, aqui, a 4ª classe do princípio de razão suficiente, a do agir. Ela rege


justamente a forma de causalidade citada anteriormente: o motivo. Para darmos início à
explicação dessa classe, recapitulemos a condição fundamental para toda representação:
todo sujeito pressupõe um objeto, e todo objeto pressupõe um sujeito. Ou seja, temos
um elemento que conhece e o outro que é conhecido, de forma que “todo conhecimento
pressupõe, de maneira incontornável, sujeito e objeto”11. A autoconsciência, citada
anteriormente, representa o conhecimento mediador do motivo, e isso fica evidente no
momento em que Schopenhauer nos introduz à explicação da 4ª classe de objetos para o
sujeito, ao se referir ao objeto imediato do sentido interno como “(...) o sujeito do
querer, que é objeto para um sujeito cognoscente, e que, com efeito, é dado apenas no
sentido interno (...)”12. Esse sujeito do querer, definido como vontade (Will), é objeto
para o sujeito cognoscente, e permite que este se conheça internamente como sujeito do
querer. Com isso, Schopenhauer delimita o que é possível conhecer internamente:

10
SCHOPENHAUER, Arthur. Sobre a Quadrúplice Raiz do Princípio de Razão Suficiente. Tradução de
O. Giacoia e G. Valladão. São Paulo: Unicamp, 2020. p. 123-125.
11
Cf. Ibidem. p. 311.
12
Cf. Ibidem. p. 313
“(...) o sujeito conhece a si mesmo apenas como
querente, não, porém como cognoscente. Pois o eu
que representa, o sujeito do conhecer, jamais pode
tonar-se, ele próprio, representação ou objeto – uma
vez que, como correlato necessário de todas as
representações, é condição destas (...)”.13

Dessa forma, o filósofo acaba por definir o corpo duplamente: corpo como
representação, objeto mediato, e corpo (Leib) como vontade, objeto imediato. Isto é, o
corpo do sujeito cognoscente é o mesmo do indivíduo volitivo que quer. Isso revela,
portanto, a engrenagem interior do ser, de seu agir, dos seus movimentos: cada
movimento corporal corresponde a um ato volitivo. 14 E é a partir desse conhecimento
duplo do corpo – corpo que tanto participa da efetividade do mundo quanto descobre-se
como essencialmente volitivo – que Schopenhauer faz a analogia com os outros objetos,
os quais, diferentemente do corpo humano, não se dão a nós de modo duplo, mas apenas
como representação. Tais objetos são, assim, julgados analogamente àquele corpo, são
considerados como ele: de um lado representação, de outro vontade. Assim, ao
perceber aquilo que se passa em meu corpo/vontade, estendo-o analogamente para toda
a natureza. Schopenhauer expõe a importância desse ponto ao dizer que “(...) essa
compreensão é a pedra fundamental de minha metafísica inteira.”. 15

A vontade é caracterizada, dessa forma, como base de todo movimento, sendo ele
interior ou exterior, isto é, como princípio de toda natureza. Segundo essa leitura “(...) o
caráter de cada indivíduo humano passará a representar mais um grau de manifestação
da vontade genérica, esta que, nesse sentido, constitui o caráter de todas as outras
espécies animais e vegetais, assim como o caráter de todas as forças orgânicas e
inorgânicas da natureza”16. A vontade aqui, para Schopenhauer, assume o papel de uma
força volitiva, cega, algo sem fundamento (grundlos), de onde surge toda a natureza.
Ela é uma força insaciável, que se afirma nas mais variadas formas da natureza e da
existência em geral.

Apresentado isso, se torna complicado afirmar a possibilidade de liberdade nos âmbitos


da ação e do fenômeno em geral. Explicarei o porquê após o breve desenvolvimento
13
Cf. Ibidem. p. 313
14
Cf. DEBONA, Vilmar. Ibidem, p. 37
15
SCHOPENHAUER, Arthur. Sobre a Quadrúplice Raiz do Princípio de Razão Suficiente. p. 321.
16
Cf. DEBONA, Vilmar. Ibidem, p. 37. Grifo meu.
daquilo que Schopenhauer coloca como “a mais importante de todas verdades”, que é o
primado da vontade sobre o intelecto.

Nós humanos, de acordo com Schopenhauer, somos providos de um caráter individual


peculiar, que é expresso como caráter empírico – isto é, por representação – pelas
ações. Esse caráter independe de um ou outro modo de proceder. Ele é caráter
inteligível, isto é, um ato oriundo da vontade, que cada indivíduo tem como essência,
enquanto indivíduo empírico e inteligível. Ele é impulso e instinto e, por isso, é aquilo
que mais carece de razão e fundamento. O caráter empírico, como manifestação do
caráter inteligível segundo a lei da motivação, deve ser compreendido como tendo uma
causa (o motivo) que determina sua reação (o agir). Dessa maneira, podemos dizer que
não há liberdade no terreno da individualidade, pois, para Schopenhauer, diante de um
determinado motivo, nosso querer nunca muda: não há deliberação nossa sobre o fazer
ou o não fazer deste; ou seja, inevitavelmente iremos ter uma reação – a partir da causa
– a qual não decidimos. Entre o motivo e o querer existe uma relação de necessidade:
diante de um mesmo motivo minha ação, necessariamente, será a mesma. O que nos
resta é uma “liberdade do fazer”: a possibilidade de nos induzirmos um motivo
alternativo, de modo que seja possível mudar a direção da ação. Apesar disso, o querer
continuará o mesmo, estará apenas com um foco diferente.

2. Soluções para alcançarmos a liberdade: a compaixão como supressão da


diferença entre o “eu” e o ‘não-eu” e a negação da vontade.

Nesta última parte da dissertação, apresentarei, primeiramente, a teoria do caráter. Em


seguida, darei destaque a apenas duas (egoísmo e compaixão) das três motivações
originárias dos homens (egoísmo, maldade e a compaixão). E, por último, a motivação
protagonista do “acontecimento ético misterioso”17: a compaixão.

Na representação, toda ação humana reflete o caráter do indivíduo que a executa e,


consequentemente as motivações predominantes dele. Dessa forma, a doutrina
schopenhaueriana do caráter inteligível é fundamental para entendermos a fonte e a
causa do significado moral das ações humanas. O caráter é peculiar de cada indivíduo e
carrega uma essência imutável. Isto é, o caráter é a índole que é empiricamente

17
Cf. DEBONA, Vilmar. Ibidem, p. 97
conhecida, constante e imutável. Essa “inalterabilidade de cada individualidade em si” 18
remete àquilo que foi arquitetado pela natureza e constituído enquanto caráter inteligível
de cada indivíduo. Dessa forma, como é expresso em Sobre a Liberdade da Vontade, o
caráter do indivíduo é constante:

“...isto é, [o caráter] permanece o mesmo durante


toda vida. É o que também se entende por
imutabilidade do caráter, pois o homem, quanto ao
ser, não muda. [...] Não pode ora agir de uma
maneira ora de outra sem ser outro. A vontade, como
coisa em si, não muda, porque ela não está
submetida ao tempo."19

Por isso, em cada indivíduo, as ações são estabelecidas por sua índole mais íntima, ou
seja, pelo caráter inteligível de cada indivíduo. O caráter empírico mostra aquilo “que se
é” na medida em que revela o caráter inteligível no tempo e no espaço 20. Dessa maneira,
pelo fato de o caráter empírico ser aquele que é acessível, ao contrário do inteligível, é
através dele que o indivíduo percebe, como ações do corpo, os atos da vontade dentro
de si. As ações do corpo são atos da vontade provocados pelo motivo, e, mesmo eles
sendo intrinsicamente relacionados, são conhecidos de formas diferentes. A vontade,
por exemplo, não está sujeita à causalidade, isto é, não nos é dada de maneira empírica;
já o motivo, é um meio de perceber o ato da vontade se exteriorizando através de
movimentos corporais. O motivo se apresenta como “razão suficiente para, quando
apresentado certo caráter, a ação acontecer”21. Já o caráter/motivação é concebido como
aquilo que é imutável, inalterável. Existem infinitos motivos que podem conduzir o
indivíduo a agir, porém as motivações principais são três: egoísmo, maldade e
compaixão. Destas, respectivamente, resultam três classes de motivos: o bem próprio, o
sofrimento alheio e o bem alheio. Por exemplo, sobre o caráter egoísta, será mais forte
os motivos egoístas. O egoísta, assim, seria levado a praticar uma ação caridosa somente
com intento de que o alívio do sofrimento de alguém cause lhe alguma vantagem em
retorno.

18
DEBONA, Vilmar. Ibidem, p. 60
19
Cf. SCHOPENHAUER, Arthur. Los dos Problemas Fundamentales de La Ética. Espanha: Ed. Siglo, 2ª
edição, 1993.
20
Cf. Ibidem. DEBONA, Vilmar. p. 62
21
Ibidem. DEBONA, Vilmar. p. 85.
O egoísmo é concebido como motivação principal e fundamental22. Esta motivação está
na origem do conflito eterno entre os indivíduos de todas as espécies, além de estar
associada ao que existe de mais profundo da condição natural de seres desejantes. Ela é
oriunda da vontade e se manifesta na pluralidade dos indivíduos. Essa pluralidade dos
indivíduos tem como condição, no espaço e no tempo, o princípio de individuação:

“(...) [o] principium individuationis (...) [é] o modo


pelo qual reconhecemos, egoística e empiricamente,
a multiplicidade e as diferenças numéricas e
fenomênicas de todos os seres, no espaço e no
tempo...”23

Na realidade empírica, se dá uma separação do “eu” e do “outro”, de forma que “cada


indivíduo se vê fundamentalmente diferente de todos os outros tomando estes como um
“não-eu”.24 Esse princípio constitui a base do egoísmo. E é a partir das lentes desse
princípio de diferenciação de um indivíduo para com o outro que se pode deduzir o
porquê de o bem próprio ser sempre colocado à frente de tudo e de todos.

Para Schopenhauer, essa diversidade entre indivíduos, influente nos atos de egoísmo,
acontece exclusivamente na representação, isto é, quando subordinada ao princípio de
razão suficiente. Ao perceber essa diferenciação entre os indivíduos como mero
fenômeno, o indivíduo compreende sua essência verdadeira, revelada pela
autoconsciência. Essência que é estendida a todos os outros indivíduos e que permite
descobrir-se a si próprio no outro. É esse conhecimento, de se reconhecer no outro, que
Schopenhauer nomeia como compaixão, “(...) sobre a qual repousa toda virtude
genuína, isto é, altruísta, e cuja expressão real é toda ação boa”.25.

A compaixão, portanto, é um sentimento natural, porém, não necessariamente


predominante em todos. A compreensão dessa diferenciação entre os indivíduos apenas
como mero fenômeno “revelaria não apenas um tipo específico de ação, mas uma
disposição (...). O mundo [para o caráter mau] é um não-eu absoluto (...). O bom
caráter, ao contrário, vive num mundo exterior homogêneo a seu ser: os outros não são
para ele nenhum não-eu, mas um “eu mais uma vez” (SCHOPENHAUER, 2001, p.

22
Ibidem. p. 89.
23
Ibidem. p. 97.
24
Ibidem. p. 99.
25
SHOPENHAUER, Arthur. MVR/WWV II 47, p. 686-687
220). É dessa maneira que podemos vir a entender que a moral schopenhaueriana
implica a supressão da diferença entre o eu e outro. A compaixão é, portanto, a única
motivação genuinamente moral, e é considerada um grande mistério do ponto de vista
metafísico26.

Como foi apresentado, segundo Schopenhauer, somos indivíduos essencialmente


volitivos e, por isso, seremos eternamente insatisfeitos, pois nossas ações estão sempre
submetidas à necessidade, ou seja, iremos querer algo, e tal condição nos leva ao
sofrimento, que se iguala, por fim, à infelicidade. O homem só seria livre se estivesse
emancipado de qualquer necessidade. Assim, ao perceber a essência natural a todos os
indivíduos, o indivíduo compassivo estará sempre participando do sofrimento do outro.
Concluímos, portanto, que a essência da vida humana é o sofrimento e que a compaixão
está sempre ligada a esse estado de sofrimento, sendo ela essa espécie “sofrer no outro”.
Tal noção da essência do mundo – esse conhecimento que não está submetido ao
princípio de razão suficiente – se torna, assim, um paliativo para todo querer, para toda
vontade. E é desse modo que a teoria da compaixão se torna a “ponte” para a negação
da vontade. Pela exposição na segunda parte dessa dissertação, sabe-se que, segundo
Schopenhauer, a liberdade não tem lugar no âmbito da representação. Nesse horizonte,
o único caminho apresentado pelo autor, para que seja possível atingir a liberdade, é o
da a negação da vontade, a partir da supressão do caráter, representado pela seara da
ascese:

“A seara da ascese representaria justamente a


passagem do plano das virtudes para um plano em
que não está mais em questão o acionamento de
determinado caráter por determinados motivos (...).
Com o advento da ascese, entra em cena justamente
o contrário do motivo, isto é, o quietivo, que
significa o mesmo que a impotência dos motivos. Há
uma viragem da vontade individual e o que antes era
nela estimulado e afirmado é, agora
espontaneamente negado.”27

26
Ibidem. DEBONA, Vilmar. p. 101.
27
Ibidem. p. 107.
Considerações finais

Através dessa exposição da filosofia de Schopenhauer, fica claro que, para ele, não há
espaço para a felicidade em sua filosofia, pois a vontade, que é sem fundamento e cega,
conduz a uma busca incansável pela satisfação de necessidades, e isso sempre resulta no
sofrimento e na insatisfação. E até mesmo aqueles que se submetem à negação da
vontade, ou seja, até mesmo aqueles que reconhecem que há uma única essência comum
a todos os seres e se tornam indivíduos compassivos, e a partir disso atingem o estado
da ascese (como negação da vontade), reconhecem e sentem que a vida não é nada mais
que sofrimento.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

DEBONA, Vilmar. Schopenhauer. São Paulo: Ideias e Letras, 2019.

KANT, Immanuel. Prolegómenos a toda a metafísica futura. Tradução de A. Mourão.


Lisboa: Edições 70, 1988.

SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e representação. Tradução de J.


Barboza. São Paulo: Unesp, 2005.

SCHOPENHAUER, Arthur. Sobre o fundamento da moral. (M. L. M. O. Cacciola,


trad.). São Paulo: Martins Fontes, 2001.

SCHOPENHAUER, Arthur. Sobre a Quadrúplice Raiz do Princípio de Razão


Suficiente. Tradução de O. Giacoia e G. Valladão. São Paulo: Unicamp, 2020.

SCHOPENHAUER, Arthur. Aforismos para a sabedoria na vida. São Paulo:


Melhoramentos, 1953.

SCHOPENHAUER, Arthur. Fragmentos para a história da filosofia. Tradução,


apresentação e notas de M. L. Cacciola. São Paulo: Iluminuras, 2003.

SOUZA. Isaac. A Metafísica da Vontade em Schopenhauer. Ceará: Apoena, 2015.

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