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Trecho de Helena de Machado de Assis - 1876

— Pois bem, tu transgrediste a lei divina, como a lei humana, sem o saber. Teu coração é um grande
inconsciente; agita-se, murmura, rebela-se, vaga à feição de um instinto mal expresso e mal
compreendido. O mal persegue-te, tenta-te, envolve-te em seus liames dourados e ocultos; tu não o sentes,
não o vês; terás horror de ti mesmo, quando deres com ele de rosto. Deus que te lê, sabe perfeitamente
que entre teu coração e tua consciência há como um véu espesso que os separa, que impede esse acordo
gerador do delito.

— Mas que é, padre-mestre?

Melchior inclinou-se e encarou o moço. Os olhos, fitos nele, eram como um espelho polido e frio,
destinado a reproduzir a imagem do que lhe ia dizer.

— Estácio, disse Melchior pausadamente, tu amas tua irmã.

O gesto mesclado de horror, assombro e remorso com que Estácio ouvira aquela palavra, mostrou ao
padre, não só que ele estava de posse da verdade, mas também que acabava de a revelar ao mancebo. O
que a consciência deste ignorava, sabia-o o coração, e só lho disse naquela hora solene. A consciência,
depois de tatear nas trevas, recuou apavorada, como afastando de si o clarão súbito que acendera nela a
palavra do sacerdote. Estácio não respondeu nada; não podia responder nada. Com que vocábulo e em
que língua humana exprimiria ele a comoção nova e terrível que lhe abalara a alma toda? que fio pudera
atar-lhe as idéias rotas e dispersas? Nem falou, nem se atreveu a erguer os olhos; ficou como estúpido e
morto. Melchior contemplou-o alguns minutos, silencioso e compassivo. Os olhos, que eram de águia
para os mistérios da vida, eram de pomba para os grandes infortúnios. Abaixo da cabeça máscula, havia
um coração feminino.

A mudez de Estácio cessou enfim; o corpo agitou-se; o lábio articulou algumas frases desconcertadas.
Vago era o sentido delas; podia concluir-se que ele não cria na revelação de Melchior, que o suposto
sentimento era tão absurdo e desnatural que só a maus instintos devia ser atribuído. Melchior ouviu-o,
sorriu com satisfação. Não era aquilo mesmo um protesto de consciência honrada?

— Maus instintos, não, respondeu Melchior; um desvio da lei social e religiosa, mas desvio inconsciente.
Entra em teu coração, Estácio;

revolve-lhe os mais íntimos recantos, e lá acharás esse gérmen funesto; lança-o fora de ti,que é o preceito
do Eterno Mestre. Não o sentiste nunca; a tentação usa essa tática serpentina e dolorosa; é insinuante com
a calúnia, e pertinaz como a suspeita. Mas eu sou a verdade que afirma, e a caridade que consola. Digo-te,
não que pecaste, mas que ficaste à beira do pecado, e estendo-te a mão para que recues do abismo.

— Padre-mestre! murmurou Estácio, cujo coração recebia a influência da palavra de Melchior, a um


tempo severa e meiga.

— Não fales, continuou o padre; negá-lo é mentir; confessá-lo é ocioso. Como nasceu em teu coração
semelhante sentimento? Quis a fortuna que entre vocês dois não houvesse a imagem da infância e a
comunhão dos primeiros anos; que, em plena mocidade, passassem, do total desconhecimento um do
outro, para a intimidade de todos os dias. Esta foi a raiz do mal. Helena apareceu-te mulher, com todas as
seduções próprias da mulher, e mais ainda com as de seu próprio espírito, porque a natureza e a educação
acordaram em a fazer original e superior. Não sentiste a transformação lenta que se operou em ti, nem
podias compreendê-la. São Paulo o disse: para os corações limpos, todas as coisas são limpas. Vias a
afeição legítima naquilo que era já feição espúria; daí vieram os zelos, a suspicácia, um egoísmo exigente,
cujo resultado seria subtrair a alma de Helena a todas as alegrias da Terra, unicamente para o fim de a
contemplares sozinho, como um avaro.

Ouvindo a palavra do padre, Estácio soletrava o próprio coração e lia claramente o que até então era para
ele como um livro fechado. A situação tornava-se, entretanto, por demais aflitiva, profunda a vergonha,
intenso o remorso. Estácio ergueu-se: erguendo-se, deu com os olhos no retrato do conselheiro que, na
penumbra em que ficava, parecia olhar para o filho e interrogá-lo. Esta circunstância desorientou o moço:
— Não, padre-mestre! exclamou ele deixando-se cair na cadeira. É impossível! isto que me está dizendo é
um sonho mau, é um funesto equívoco; é impossível; juro-lhe que é impossível. É certo que a amo... que
a amava, com sentimentos de irmão; mas esquecer-me, aninhar em minha alma tão odioso afeto... oh! era
impossível!

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