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Lula está voltando?

Teria Lula se tornado instrumento de apassivamento não de uma classe


trabalhadora, mas de um presidente de extrema-direita?

07/04/2021

Por Leo Vinicius

O coletivo do Passa Palavra, entendendo ser necessário promover um debate o mais amplo e
plural possível sobre o restabelecimento dos direitos políticos de Lula e a possibilidade de que
volte a disputar a Presidência da República, decidiu pedir a alguns de seus colaboradores
frequentes que escrevessem textos sobre o assunto. Esperamos que esses textos e o debate
por eles suscitado possam estimular a re exão em torno dos desa os com que depara a
esquerda no momento.

Neste mês de março de 2021, decisões do Supremo Tribunal Federal que


suprimiram as condenações de Lula e uma mudança nítida de grandes veículos da
mídia burguesa em relação a Lula, a exemplo da Globo e seu Jornal Nacional,
indicaram movimentações talvez inesperadas nas peças do tabuleiro do xadrez da
política institucional.

O jogo é dinâmico e nas semanas que se seguiram peças foram mexidas e


reposicionadas. Mas a nal, o que essas movimentações representam de fato? Lula
estaria voltando?

Em 2015 havia dito que se Lula voltasse a ser presidente ele teria que enfrentar,
sem mecanismos de apassivamento, uma fração da classe trabalhadora com
proletarização descendente: grosso modo a classe média que estava dando corpo à
nova direita social [1]. Em 2018 disse gurativamente que Lula e Marielle só
voltariam quando a classe trabalhadora voltasse a morder a burguesia [2]. Se Lula
está voltando, ou se for eleito presidente em 2022 e tomar posse em 2023, o que
estaria ocorrendo então? Se parece óbvio que mais do que nunca a classe
trabalhadora está sem dentes e abaixando o rabinho diante da burguesia?

***

Quando Sérgio Moro disse no Telegram aos procuradores da Lava Jato para não
irem em cima de Fernando Henrique Cardoso (FHC) de modo a não melindrá-lo,
era provável que estivesse pensando que não seria uma boa tática abrir ao mesmo
tempo muitas frentes de luta e criar muitos inimigos, ainda mais que o foco
ideológico da Lava Jato era o Partido dos Trabalhadores (PT). In ados pela mídia
burguesa que os instrumentalizava, não foram prudentes e avançaram sobre
ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) e Superior Tribunal de Justiça (STJ)
que não estariam devidamente alinhados a eles. Somado a essas imprudências,
houve o desgaste causado pelas mensagens de Telegram hackeadas. Tendo
cumprido sua missão para a burguesia, que era impedir o PT, tornou-se cada vez
mais custoso politicamente sustentar a Lava Jato. Quanto mais diante do
desastroso governo protofascista que cada vez mais gente passou a enxergar como
derivação da Lava Jato.

Bolsonaro, como todos sabem, nunca foi o candidato dos sonhos da burguesia. Mas
foi a mula que deixou ser montada pelo neoliberalismo para ter chance de vitória.
Dado o golpe de 2016, e no clima social e político presente ainda em 2018, até um
estúpido como Bolsonaro percebia que a burguesia havia dado um golpe de Estado
para impor um programa ultraneoliberal. Portanto, só seria aceito e tolerado se se
convertesse ao neoliberalismo. Por isso grudou na campanha eleitoral ao Beato
Salu do neoliberalismo brasileiro, Paulo Guedes. Na incapacidade de candidatos
como Alckmin ou Meirelles despontarem nas pesquisas eleitorais, a burguesia
acreditou que o mal menor certamente era Bolsonaro-Guedes.

As expressões de nazismo dos altos escalões do governo Bolsonaro nunca


chocaram a burguesia. Assim como nunca chocaram as suas ligações com
milicianos, sua apologia de torturadores, sua ode à morte ou sua negação da
ciência. O que importa são os negócios. Foi pela retirada do presidente da
Petrobras, el representante dos neoliberais e do mercado nanceiro, que a
burguesia fez cara feia para Bolsonaro. Passou a ser o “intervencionista”, o
“comunista”, ou o “nacional-desensevolmentista” (as aspas são para marcar
expressão ditas pelo que a mídia burguesa considerou como representantes do
“mercado”). Ao mesmo tempo, nessa mesma imprensa burguesa, aqui e acolá
começaram a aparecer banqueiros e gente do “mercado” (a burguesia) em o
dizendo que hoje preferiria Lula a Bolsonaro.

Em parte coincidência, foi poucas semanas depois do anúncio da troca do


presidente da Petrobras que as decisões do STF reestabeleceram a elegibilidade de
Lula. É certo que uma delas, a do Ministro Fachin, buscava unicamente preservar a
Lava Jato da iminente derrota que viria quando do julgamento da suspeição do ex-
juiz Sério Moro na Segunda Turma do STF. No entanto, o mais signi cativo não
foram as decisões do STF, embora fossem condições necessárias para uma volta de
Lula. O mais signi cativo foi a mídia burguesa ter desinterditado Lula como ator
político, reproduzindo suas falas e não o apresentando mais como corrupto [3].
Falas de Lula que durante os últimos anos só eram reproduzidas pela relativamente
nanica imprensa de esquerda.
Ora, caram claras as movimentações no tabuleiro. A burguesia, suas frações mais
poderosas, se cansaram de Bolsonaro e passaram a ver, naquelas semanas, Lula
como o menos ruim. Parecem ter vislumbrado que a aposta de que enquadrariam
Bolsonaro fora equivocada. Bolsonaro se tornara insuportável, e a condução da
pandemia (de fato, condução da pandemia e não de seu combate) também teve um
papel no afastamento da burguesia em relação a Bolsonaro, como deixou clara a
carta dos banqueiros e seus capangas economistas, redigida quando a burguesia
passou a car sem leitos de hospital [4]. Obviamente, a reabilitação de Lula pela
burguesia, e o olhar afetuoso com que ela olhou para ele durante pelo menos uma
semana, só ocorreu porque Lula se apresentava aos olhos dela como o mais viável
ou o único capaz de ganhar de Bolsonaro, que parecia ter se tornado aquele a ser
derrotado.

Bolsonaro também movimentou suas peças para não levar o xeque. Copiou o
discurso do Lula sobre a pandemia, que a burguesia havia gostado, e tomou
algumas medidas, como a troca do Ministro da Saúde e a formação de um comitê
de crise como Lula havia falado que faria. No m das contas, a burguesia abanar o
fantasma de Lula na frente de Bolsonaro pode ter servido, consciente ou
inconscientemente, como instrumento para mais uma tentativa de enquadrar
Bolsonaro. Até porque concomitante a esse reposicionamento de Bolsonaro em
relação à pandemia, mesmo que cosmético, ocorreu também um afastamento da
mídia burguesa em relação a Lula, se compararmos com a semana anterior.

Se Lula permanecerá meramente como uma sombra instrumentalizada pela mídia


burguesa para enquadrar Bolsonaro, ou se de fato será adotado pela burguesia na
ausência de um candidato viável do seu coração, é cedo para saber. Nesse mês de
março de 2021 houve enormes mudanças de posicionamento nas peças do
tabuleiro, tendo em conta o tempo de apenas dias transcorridos. Trata-se de
movimentações, de mudanças de posição, que ainda não se estabilizaram.
Certamente não está descartado um novo impedimento de Lula caso a burguesia
encontre um candidato viável para derrotar Bolsonaro.

Lula está voltando ou será ele apenas uma fera que a burguesia solta para assustar
e enquadrar Bolsonaro, pronta para pô-la de volta à jaula ou à mordaça quando
quiser? Teria Lula se tornado instrumento de apassivamento não de uma classe
trabalhadora, mas de um presidente de extrema-direita?

***

Ora, o leitor deve ter percebido que para falar dessa virtual volta de Lula falamos
apenas da burguesia, e em nenhum momento falamos dos proletários.

Quando Lula nalmente foi eleito presidente em 2002 a relativa unidade e força da
classe trabalhadora no Brasil já estava em descenso, nítido a partir da década de
1990. Durante o pouco mais de uma década de governo do PT, a capacidade da
classe trabalhadora que sustentou a ascensão das lutas sociais dos anos 1970 aos
anos 1980 se esvaiu, sem que a maior parte da esquerda se desse conta. Encantada
com os governos petistas, não percebia que a base no qual ele se sustentava era
erodida. Em 2016 o castelo de cartas de um governo “social-democrata”
latinoamericano sem uma classe trabalhadora com existência sociológica,
desmoronou. E estamos longe ainda de vislumbrar uma recomposição da classe
trabalhadora e um ascenso das lutas. Além disso, como bem costuma dizer Marcio
Pochmann, a classe trabalhadora que existia na fundação do PT não existe mais.
Sua composição é muito diferente. E embora Lula enquanto governante tenha
conseguido migrar eleitoralmente para um proletariado diferente do da sua origem
sindical através de programas como Bolsa Família, não houve uma equivalente
migração de organização dos trabalhadores e das lutas para outros setores da
classe trabalhadora. Se Lula está voltando não foi como resultado de um ascenso
dos con itos postos pela classe trabalhadora. Trata-se de mera escolha da
burguesia pelos votos que Lula ainda carrega, para tirar ou assustar Bolsonaro.
Essa volta de Lula, como diriam os marxistas parafraseando Marx, seria a repetição
da história como farsa.

Lula como presidente em 2023 terá que enfrentar todas as di culdades que
enfrentou vinte anos antes, e muitas mais. De partida estará enquadrado pela
Emenda Constitucional 95 (o “Teto dos Gastos”), pela autonomia concedida
legalmente ao Banco Central, com o principal instrumento de fomento da atividade
econômica interna retalhado e des gurado (Petrobras) e possivelmente com
privatizações da Eletrobras também. Somada a isso, a imensa dívida pública que o
coronavírus e Paulo Guedes estão construindo. E claro, dessa vez com uma
oposição social de direita ativa e organizada contando com frações da própria
classe trabalhadora, e com a mesma falta de base social que permitiu a derrubada
do PT em 2016.

Caso ambas as candidaturas se con rmem, sabemos que você, que está lendo este
artigo, irá votar em Lula no segundo turno contra Bolsonaro. Porque você sabe que
nas atuais circunstâncias Lula signi cará uma redução da temperatura do inferno.
A questão nem é o quanto a temperatura poderá ser reduzida, mas por quanto
tempo aguentaremos arder ainda nesse fogo.

***

Em 2018, quando questionava quando Lula e Marielle voltariam, a rmei que os


militantes de esquerda, diante do claro futuro neocolonial escolhido pela
burguesia, deveriam estar “atentos a formas de organização, lutas e imaginários
fora das cartilhas, dos livros e do próprio imaginário da esquerda militante. A
revolução não vai ser encontrada no museu de cera da classe operária” [5].

A classe trabalhadora da época da fundação do PT não existe mais, como


lembramos. De lá para cá o percentual de produção industrial no PIB brasileiro está
abaixo de 1/10, próximo à proporção de 1910, enquanto nos anos 1980 chegou a
responder por 1/3 do PIB. Mesmo com o esforço do governo Lula, o caminho
estrutural da desindustrialização não pode ser mudado [6]. A Ford é coisa do
passado, a classe média assalariada está em extinção e as três maiores ocupações
do Brasil, em 2019, são o trabalho doméstico, atividades ligadas à segurança
privada e entregador [7]. A semelhança dessa tendência ocupacional com o retrato
exposto no premiadíssimo lme sul coreano Parasita, nos faz lembrar que o Brasil
está inserido numa tendência global. Nas palavras de Marcio Pochmann
observando o quadro brasileiro, trata-se de “uma massa crescente de pessoas que
dependem das migalhas das famílias muito ricas”; uma massa sobrante como na
Velha República, submetida ao banditismo (jagunços) e gerida também pelo
fanatismo religioso. Exemplar desse amálgama de passado reformulado de
banditismo e fanatismo religioso, “o Rio de Janeiro é praticamente uma nova
Canudos” [8].
Somos parte de uma tendência global, que certamente encontra no Brasil
destacada velocidade e profundidade. Aaron Benanav ressalta que globalmente “os
movimentos da classe trabalhadora emergiram durante um longo período de
industrialização, e agora vivemos no marasmo pós-industrial”; e as lutas que
viveremos serão relacionadas “às consequências do m da industrialização” [9].
Era a isso que me referia ao dizer que a revolução não será encontrada no museu de
cera da classe operária. Na segunda década do século XX, enquanto a classe
operária se formava no Brasil num processo de industrialização ainda incipiente,
verdadeiras guerras se davam entre trabalhadores camponeses e interesses
capitalistas no interior de Santa Catarina. Os operários dos centros urbanos
in uenciados pelas ideias iluministas socialistas e anarquistas pareciam habitar
outro mundo, muito diferente daquele habitado pelos camponeses que produziam
a Guerra do Contestado. Catolicismo rústico, Carlos Magno e os Pares de França e
um messias que era interpretado por diferentes atores ao longo do tempo, em vez
de Malatesta, Comuna de Paris e mártires de Chicago.

É certo que a esquerda tem alguma presença na Nova Canudos, agora urbana,
animando movimentos de sem-teto e movimentos comunitários. Mas de um modo
geral as referências e signi cações que compõem o imaginário dos socialistas
parecem cada vez mais distantes do imaginário e vida cotidiana da massa que
produzirá as guerras que virão. Poderão essas guerras constituir um projeto de
emancipação como o movimento operário constituiu um dia? Ou o nosso futuro
estará sempre preso ao retorno do passado?

Notas

[1] Que horas Lula volta?.


[2] Que horas Lula e Marielle voltam?.
[3] Eliara Santana: Após muitos anos, Lula recupera o direito à voz e retoma a cena
no Jornal Nacional.
[4] Na íntegra: o que diz a dura carta de banqueiros e economistas com críticas a
Bolsonaro e propostas para pandemia.
[5] Que horas Lula e Marielle voltam?.
[6] POCHMANN, M. Brasil sem industrialização: a herança renunciada. Ponta
Grossa: Editora UEPG, 2016.
[7] Márcio Pochmann: Estado de Sítio.
[8] Idem.
[9] Ver o artigo de Aaron Benanav, Automation and the Future of Work, part 2, p.
144.

Este artigo está ilustrado com fotogra as de Dean West (1983 –      ).

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